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VIAGEM AO BRASIL

nos anos de 1815 a 1817

COMPANHIA EDITORA NACIONAL


SÃO PAULO
,

VIAGEM AO BRASIL

,
BIBLIOTECA PEDAGÓGICA BRASILEIRA

SÉRIE 5.a
BRASILIANA VoL. 1
* (SÉRIE GRANDE FORMATO) *
Direção de
AMÉRICO JACOBINA LACOMBE

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- "' ~- ~~~ --------

MAXIMILIANO
(Pdncipe de WiecL-Neuwied)

VIAGEM AO BRASIL
Tradução de

EDGAR SÜSSEKIND DE MENDONÇA


e
FLÁVIO POPPE DE FIGUEIREDO

2.a EDIÇÃO
Refundida e anotada por
OLIVÉRIO PINTO

Príncipe Maximil ian o de Wied Neuwied


( ex . Bo/. do Museu Na cional, tomo VII) .

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COMPANHIA EDITORA NACIONAL
SÃO PAULO

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Advertência dos Editôres

EM 1931, quando começamos as publicações da "Brasiliana", uma


das cinco séries de que se compõe a Biblioteca Pedagógica Brasi-
leira, as primeiras dificuldades, - e não foram poucas as que tivemos
de enfrentar para levar por diante essa iniciativa, - não chegaram a
abalar-nos a confiança no seu êxito completo. A consciência profunda
de que êsse empreendimento corresponde a uma aspiração geral, e
estava destinado a prestar os maiores serviços à cultura brasileira,
deixava-nos tranqüilos sôbre o acolhimento com que mais dia menos
dia acabariam por consagrá-lo todos os que se dedicam aos estudos
nacionais. Mas a aceitação unânime que logrou a nossa biblioteca de
estudos brasileiros, o impulso que adquiriu, os rápidos progressos que
realizou e a repercussão que teve nos maiores centros de cultura exce-
deram, alguns anos depois, a nossa expectativa e nos permitiram apre-
ciar ao justo o alcance cultural dessa obra verdadeiramente fecunda
e o ardente interêsse do público pelos estudos e problemas nacionais.
Em 1937 já atingia a "Brasiliana", a primeira centena de volumes,
com a História Econômica do Bras.il, de RoBERTO SIMONSEN, tendo
Exemplar levado, portanto, cêrca de sete anos, para alcançar êsse alto grau de
desenvolvimento e de expansão. Era a primeira vez, no Brasil, 4
talvez na América, que subia a tão elevado número uma coleção de obras
sem aplicação didática e profissional. Em 1940, a série que já ultra-
passa 175 obras, completará, num período de menos de três anos, a
1958
segunda centena de volumes. Se se considerar, porém, que êsse
Obra executada nas oficinas da crescimento quantitativo extraordinário, exatamente calculado em 200
S!i.o Paulo Editora S/ A. - S!i.o Paulo, Brasil
VIII IX

volumes em menos de 10 anos, foi acompanhado de um constante alemão, as anotações lançadas ao pé da página ou no fim dos capítulos
progresso qualitativo, mediante critério cada vez mais rigoroso de por um dos nossos maiores especialistas em zoologia, e a nitidez das
seleção, ter-se-á a compreensão mais clara das perspectivas que abriu primorosas ilustrações do texto, mostram à evidência o empenho que
e do interêsse que despertou essa coleção de estudos brasileiros. Além pusemos não somente em conservar, na edição brasileira, todo o
das obras, de autores nacionais, publicadas pela primeira vez, incorpo- interêsse do original, mas em atualizar e enriquecer o texto primitivo
raram-se à Brasiliana numerosas reedições de livros fundamentais e de comentários seguros e oportunos. A nova série da coleção não
as primeiras edições em língua portuguêsa de obras antigas e modernas podia, pois, iniciar-se melhor e estamos certos de que o público brasi-
de viajantes e sábios estrangeiros. leiro lhe dispensará o mesmo acolhimento com que consagrou defini-
tivamente a iniciativa da "Brasiliana", animando-nos a novos empre-
í.sse êxito invulgar, que devemos à simpatia com que o público
endimentos em favor da cultura nacional.
nos acolheu a iniciativa e ao apoio franco e generoso que nos trou-
xeram os aplausos de uns e a colaboração valiosa de outros, nos animou
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
a alargar o plano primitivo, criando na série "Brasiliana" uma secção
Rua dos Gusmõs, 639 - São Paulo
especial de obras em grande formato. A experiência nos havia mostrado
a inconveniência de publicar, no formato pequeno dos livros dessa
coletânea, certas obras que, pelo número e pela importância das
gravuras, seriam sacrificadas em volume de menores dimensões. As
gravuras, reduzidas em tamanho para reprodução em páginas dos
volumes comuns, perderiam sem dúvida, com a nitidez, parte de seu
interêsse pitoresco ou de seu valor documentário. Daí a resolução que
tomamos de publicar em volumes de formato maior essas obras que
exigem, pela sua natureza, melhor apresentação material, difícil e,
em certos casos, impossível de se obter em volumes de proporções
reduzidas. Essa iniciativa representa, pois, mais um esfôrço para corres-
ponder à confiança do público e facilitar a incorporação, na série
"Brasiliana", de obras do maior alcance e interêsse que dela ficariam
excluídas por uma dificuldade de ordem puramente material, fácil de
ser removida, sem quebrar a unidade orgânica de concepção e de plano
dessa coleção.
Inauguramos a série Brasiliana (formato grande) com a edição
brasileira da notável obra Viagem ao Brasil} por MAXIMILIANO}
Príncipe de Wied-Neuwied, já vertida para o inglês e o francês.
A quem já teve contato com essa obra de primeira ordem, pela leitura
do original alemão ou de qualquer das traduções, francesa ou inglêsa,
não poderá passar despercebido o interêsse particular que representa,
para os estudos sôbre o Brasil, a divulgação, em língua vernácula,
dêsse livro geralmente tão pouco conhecido. A tradução feita sôbre
a edição francesa e cuidadosamente revista de acôrdo com o original
PREFACIO DA l.a EDIÇÃO

"Uberall auf der Erde findet der gebildete Mensch


Unterhaltundg und Beschiiftigung, doch gebuhrt
unter allen Klassen der Menschen hierin dem
Naturforscher der Vorrang" ...
Reise nach Braftlien, 11, p. u.

N ESSA OPULENTA BRASILIANA legada pelos sábios estrangeiros que


nos visitaram no decurso do século passado, o livro da Viagem
ao Brasil, do Príncipe Maximiliano de Wied é, sem contestação possí-
vel, um dos mais preciosos e encantadores. Não temendo paralelo
com quaisquer outros, sob muitos aspectos até a todos se avantaja, recla-
mando para si pôsto de relêvo muito especial. Pelo menos, nenhum
com êle logrará rivalizar na estima dos que entre nós se dedicam aos
estudos zoológicos, pois que ainda hoje poderá servir de guia fiel e
ameno para o conhecimento da fauna das zonas percorridas pelo
douto e apaixonado viajante. Com efeito, às vagas indicações em que,
via de regra, se comprazem os relatos dos exploradores-naturalistas,
contrapõem-se no livro admirável do príncipe-zoólogo informações sem-
pre exatas e precisas, de extraordinário valor e permanente atuali-
dade. Aliando à mais intransigente probidade científica a bonomia e
serenidade de espírito do verdadeiro filósofo, nas descrições dos sêres
e quadros de nossa Natureza uma só vez não lhe escaparam inexpres-
sivos lugares comuns, exageros ou fantasias, deslizes tão freqüentes
nas obras dos melhores autores, e ainda muito menos conceitos tends.n-
ciosos ou deprimentes sôbre a gente e a terra alvo de sua curiosidt'"de
esclarecida. Referindo-se aos mamíferos ou aves que ia encontrando,
jamais se limitara Wied a escrever - "vi um bando de macacos",
"atirei num lindo papagaio" ou "esvoaçavam borboletas multicores"
- mas, invariàvelmente, preocupara-se em indicar de modo inequívoco
a espécie zoológica de que se tratava, apontando-lhe o nome pelo
qual poderá quase sempre ser rigorosamen e identificada, ou, quando
XII VIAGEM AO BRASIL PREFÁCIO DA 1. a EDIÇÃO XIII

se supunha diante de uma forma não descrita, ~m fornecer ~ súmul~ assim a grande floresta do Rio Doce, impiedosamente devastada para
dos caracteres necessários ao seu futuro reconhecimento. Mmtas espe- o fabrico do carvão, assim as matas do sul da Bahia, de cuja gran-
cies novas foram assim apresentadas pela primeira vez, ordinàriamente diosidade guardo uma das minhas mais vivas impressões de naturalista
em notas extratexto, fato absolutamente relevante para os sistematistas, em campanha. A fauna, acossada em todos os recantos, por tôda
e de todo excepcional nos trabalhos do gênero. Como se pressentisse parte perseguida, vê-se ameaçada de extermínio até nos últimos r~du­
ainda a importância capital que viria a adquirir, com o evolucionar da tos em que se refugiara. E as vozes que se levantam para profl1gar
ciência biológica, o estudo da distribuição geográfica em para~elis­ essa destruição imprevidente e bárbara, condenam-se a cassandrear
mo com as modificações morfológicas apresentadas pelas formas v1vas, esterilmente junto a uma turba delirante, atenta apenas à hora que
0 autor timbrara sempre em informar com escrupuloso cuidado os passa, e sequiosa de colhêr dela todos os frutos em seu exclus1vo
lugares de observação ou de procedência dos ex~m~l~es que co~igira. benefício.
E' desnecessário encarecer o valor dessa contnbmçao, até hoJe de Encerremos, porém, esta digressão inicial, passando ao verdadeiro
inestimável auxílio à tarefa dos continuadores. motivo por que se ousaram estas linhas.
Não obstante, porém, essa feição, por assim dizer especializada, O livro da viagem do Príncipe de Wied teve originàriamente,
- que admite ao lado da simples narrativa dos incidentes de viagem, a em língua alemã, duas edições simultâneas, ambas em dois
apresentação de novidades científicas, nunca resvalara o escritor a um tomos, datados de 1820 a 1821; uma, em grande formato in-4t~,
falar técnico capaz de tornar a matéria inabordável, ou menos atraente, acompanhada de magnífico atlas e aparentemente privativa dos subs-
ao leitor comum. Antes, pelo contrário, a singeleza do estilo, a fide- critores constantes da lista nela publicada; outra, de pequeno formato
lidade inflexível na exposição dos fatos, o realismo esplêndido no in-8vo e em caracteres góticos, desacompanhada de atlas e apenas
debuxo das cenas, a que realçam amiúde requintes de pormenor, verda- possuidora de duas cartas geográficas referentes à zona percorrida. Con-
deiros selos de autenticidade, a associação harmoniosa da curiosidade do temporâneamente, sob os olhos do autor, saiu também a lume pelo
sábio com a sensibilidade do esteta, tudo contribui para tornar a menos uma edição francesa, seguida de outras, em quase todos os
leitura da "Viagem" raro prazer intelectual, pelo menos para quantos idiomas cultos. Em português, não consta que haja aparecido alguma
o artificialismo da vida nos tempos atuais não haja embotado de todo tradução antes da presente, feita primitivamente da edição francesa
os sentimentos que prendem o homem à natureza, essa "única bíblia e depois pelo anotadoi· refundida perante texto da edição alemã, que
verdadeira" de que falou o poeta. Lê-lo é acompanhar o .viajante em procura reproduzir tão fielmente quanto possível. Restituíram-se então
sua longa e acidentada peregrinação através das matas vugens e dos ao texto trasladado muitos trechos que injustificáveis escrúpulos, ou
agrestes descampados, sentir com êle tôdas as emoções que o salteavam preocupações de brevidade, haviam feito suprimir na primeira, man-
a cada trecho da jornada, admirar a solene beleza dos quadros admi- tendo intacto tudo quanto pareceu indispensável para manter intactas
ràvelmente descritos, e até participar dos sustos, riscos e privações, a na obra as verdadeiras feições e todo o valor de documentol.
que não se poderia inevitàvelmente furtar. Transportando-nos men- No que tange aos inúmeros nomes vernáculos de animais e plan-
talmente a lugares primitivos e distantes, revivendo épocas que o pas- tas mencionadas pelo autor, matéria que a tradução francesa decidira
sado reveste com a inexprimível magia peculiar às coisas extintas, é sacrificar completamente, mas para nós de tão extraordinário interêsse,
como se muitas vêzes nos víssemos num mundo diferente, longe do tu- procurou-se tanto quanto possível respeitar a grafia do original. Apa-
multo e da vertigem da hora que passa; um repouso salutar alheia-nos recem elas em composição comum, não raro porém entre aspas, para
por instantes das tribulações costumeiras; o espírito, atento ao segredar que mais fàcilmente se destaquem das apelações técnicas latinas, com-
das vozes interiores, sente-se conduzir insensivelmente ao recolhi- postas em grifo, consoante praxe generalizada. A estas, mais ainda do
mento propício às reflexões transcendentes, e o pensamento alçando- que aos nomes vernáculos, houve timbre em mantê-las intactas. Assim,
se à meditação dos grandes problemas inacessíveis à sua peq~enez, foram-lhes conservadas peculiaridades chocantes muitas vêzes com as
curva-se perante o enigma impenetrável do Cosmos, testemunha Impas- atuais convenções da nomenclatura, como seja a inicial maiúscula
sível e eterna dêsse misterioso drama em que somos comparsas efême- nos nomes específicos de natureza substantiva, adotada sempre por
ros e inconscientes. Dos quadros e cenários pintados pelo naturalis- Wied, a exemplo do que praticara Lineu. Também não se supri-
ta, breve não existirá mais que pálida reminiscência; das imensas. e miram as vírgulas entre os nomes científicos e o autor por êles respon-
magníficas matas que êle vira e descrevera, há menos de século e me10,
o pouco que ainda resta encontra-se quase por tôda parte despojado dos (1) Aug. Salnt·Hilalre, Insuspeito para julga r, em carta a sua progenit~ra
colossos vegetais que nelas se exibiam em sua primitiva pujança; (datada de São Joã o dei Rei, fever. 24, de 1822), emite o mais honroso concetto
sôbre a veracidade de Wied (cf. trad . brasll. in "Brasiliana", vol. V, 2.• ed., 1988, p. 88).
XIV VIAGEM AO BRASIL PREFÁCIO DA l.a EDIÇÃO XV

sável. Isso explica as freqüentes discrepâncias com relação às notas Apesar de ter sido, como conceitua o autor há pouco referido,
do comentador, onde, é ocioso dizer, tôdas as normas nomenclaturais "excelente ornitologista para o seu tempo, reunindo ampla experiên-
foram cuidadosamente observadas. cia de campo a bom conhecimento técnico do assunto", o príncipe
Como já anteriormente foi assinalado, enriquecem o livro do Maximiliano não fôra muito afortunado com as formas que descreveu
Príncipe de Wied inúmeras notas marginais, versando quase sempre como novas. Contribuíram para isso várias circunstâncias, entre elas
matéria estritamente zoológica, ou remetendo a fontes bibliográficas. a rara liberalidade com que se apressara em comunicar a amigos e
Afora essas, juntara ainda o autor, em apêndice no final da obra, colegas os frutos de suas descobertas, dando margem a que se lhe
copiosa série de notas suplementares, ferindo muita vez assunto já antecipassem nas primeiras descrições. Assim acontecera com relação
tratado nas primeiras. Umas e outras, remetidas por asteriscos, inse- a muitos mamíferos, descritos por Kuhl 4 , e a número não menor de
rem-se na presente tradução sob o texto a que se reportam, assinaladas aves figuradas por Temminck em sua célebre coleção de estampas
estas pela abreviatura (Suplem.). Nenhuma confusão é também possí- coloridasll. Sem falar em Spix6, cujo livro é anterior aos Beitriige, em
vel entre as notas do original e as do comentador, para as quais se muitos casos, tiraram-lhe também a prioridade Lichtenstein7 e Vieillot8,
adotaram chamadas numéricas, em série ininterrupta. o primeiro antecipando-se-lhe na descrição das mesmas formas, e o
Uma palavra convém acrescentar sôbre estas últimas, pôsto que, segundo conferindo às de Azara nomes válidos perante as convenções
quase exclusivamente zoológicas, de algum modo destoam das que é do Código internacional de Nomenclatura zoológica9 •
comum acrescentarem-se às obras congêneres. Seu fito principal é A biografia do príncipe de Wied, tão interessante para os seus
auxilia[ o leitor a tirar do livro tudo quanto êle encerra de instrutivo admiradores, está ainda por escrever-se. Entre nós escasseiam inteira-
no capítulo da história natural, quer facilitando a identificação das mente a êsse respeito fontes informativas; o mais que sabemos consta
formas vegetais ou animais apontadas, quer indicando as publicações de um pequeno ensaio publicado por Afrânio do Amaral10 de par
mais recentes a que poderão recorrer os desejosos de melhor informar-se. com a fotografia reproduzida no presente volume.
Grande atenção foi prestada ainda às questões de nomenclatura,
tão irritantes para os que a elas não se acham afeitos, mas às vêzes OuvÉRIO PINTO
de todo indispensáveis à elucidação dos pontos de sistemática.
Há nos comentários, freqüentes referências aos Beitriige zur Natur-
geschichte von Brasilien, obra notável em que o Príncipe de Wied,
anos depois da publicação do seu relato de sua viagem, tratou, sob
critério estri~amente técnico, das formas animais que lhe fôra dado
observar2 • Sob o título de Abbildungen zur Naturgeschichte Brasilien's
(Weimar, 1823-31) publicara êle também esplêndida série de estam-
pas coloridas de animais, em regra extraordinàriamente fiéis e magnl.-
ficamente executadas.
Os exemplares zoológicos levados do Brasil por Maximiliano de
Wied na sua maioria ainda existem, cuidadosamente guardados pelo
American Museum of Natural History, de New-York, que em 1870
os adquirira, juntamente com tôda a coleção que àquele havia perten-
cido. Conquanto zoólogo, ou antes naturalista, na acepção mais lata
(4) HEINRICH KOHL, Beitrãge zur Zoologie und vergleichenden Anatomie, Frank-
do têrmo, o Príncipe de Wied foi mais que tudo apaixonado ornitolo- fort, sôbre o Meno (1820).
gista. O valor de sua obra nesta especialidade evidencia-se ao pri- (5) CoNRAD JAooB TEMMINCK e LAUGIER DE CHARTRoussE, Nouveau Récueil de
meiro exame, e tem sido atestado pelas autoridades mais competentes planchea coloriéea d'oiBeaux, semi-foi., 5 vol. (1820-1889).
(6) J. B. SPrx, Avium Species Novae quas in itinere per Brasiliam anniB 1817-1810
tais como J A. Allen, a quem se deve pormenorizado estudo crítico ;usau et auspiciiB Maximiliani Joaefi etc., vol. I (1824), vol. li (1825), Muncben.
sôbre os exemplares "tipos" das espécies criadas pelo grande viajante 3 • (7) VerzeichniBB der Doubletten des Zool. Mus. Berlin, Berlim, 1828.
(8) Artigos sôbre ornitologia no Nouveau Dictionnaire d'Histoire Naturelle, Paris,
Détervllle (1816-1819) •
. (2) Os Beitrãge compreendem quatro volumes editados em Welmar. dos quais (9) Dêsse código, Indispensável a todos quantos militam no campo da zoologia,
o pr1me1ro trata de Anflbios e Répteis, o segundo de Mamlferos e os dois restantes foi dada à estampa uma recente edição em vernáculo no tomo VII (1950) dos
de Aves, vindos a lume em datas diferentes: I (1825); 11 (1826); 111, 1.• parte Arquivos de Zoologia do Estado de Sdo Paulo, com Introdução e notas de Atr. do Amaral.
(1820); lll, 2.• parte (1881); IV, 1.• parte (1882); IV, 2.• parte (1833).
(10) AFRÂNIO oo AMARAL, Maximiliano, Pr,ncipe de Wieà, In Boletim do Museu
(8) Cf. Bulletin of American Museum of Natural Hiatory, vol. li, p. 209-276. Nacional, vol. VII, num. 8, págs. 186-208 (1981).
PREFÁCIO DA 2.a EDIÇÃO

O curto lapso de tempo em que se esgotara a primeira publicação


em vernáculo da "Viagem ao Brasil", do príncipe Maximiliano
de Wied-Neuwied, prova é de que não exageramos a importância
dêsse livro notável e o interêsse que iria êle despertar entre todos
brasileiros amantes do passado e da natureza de sua terra. Graças a
isso, muitos anos não se fi zeram necessários para que a desejada
oportunidade nos surgisse de trabalhar no preparo de uma outra
edição, em que fôssem eliminadas, tanto quanto possível, falhas e
omissões encontradas na primeira e, no que toca às notas elucidativas,
aproveitacf,as novas fontes de informação, só mais tarde postas ao
alcance do comentador.
Livre das injunções que da primeira vez eram de molde a nos
1·estringir a liberdade, tais e tantas são as alterações agora introduzidas,
que êrro não haveria em considerar a presente uma nova versão do
texto original, utilizada desta feita não mais a edição alemã in Bvo,
mas sim a de grande formato, tida, a justo título, por edição princeps.
Essa tarefa, escusa dizer, longe de ser enfadonha, trouxe-nos satisfação
tanto maior quanto nos propiciou ensejo para, em mais de um
caso, dar a palavra ao próprio autor que, primeiro crítico de sua
própria obra, nada menos de trinta anos após ter ela aparecido,
dedicara um opúsculo especial a "Quelques corrections indispensables
a la traduction française", só ultimamente para nós tornado acessível.l
Depois daí, puderam também os comentários beneficiar-se das aprecia-
ções, reparos e subsídios com que houveram por bem honrar-nos
pessoas competentes. Colaboração voluntária, essa última, a que
somos nimiamente gratos e, conosco, estamos certos, todos os admiradores
da obra do insigne viajar.
No que diz respeito à zoologia foram os lagartos, e especialmente
os ofídios, objeto de pormenorizada análise da parte de Afrânio do

(1) Convém saber que o referido opúsculo veio a !um~ três anos após a publicação
do trabalho similar, em alemão, a que adian•e se fará mais minuciosa referência (v. nota 73) :
XVIII VIAGEM AO BRASIL PREFÁCIO DA 2. a EDIÇÃO XIX

Amaral, reconhecida autoridade no assunto, permitindo, como se verá, senão ambos, conjuntamente. De seu próprio punho sabemos ser a
completar ou retificar muitas das notas referentes a êsses animais. grande maioria dos quadros que ilustram _as suas descrições, e ainda
Semelhantemente, esclarecimentos muito interessantes sôbre localidades muitos outros que não tiveram a oportuntdade de ser nelas aprovei-
do Rio de janeiro nos foram comunicados em carta por um distinto tados, por desnecessáriosa.
colaborador anônimo, filho da terra fluminense- Pio Lourenço Corrêa, As divergências que ressaltam da comparação do texto presente .co"!
de Araraquara, relembrando intermináveis cavacos sôbre história-na- 0 da edição anterior, não reclamam, de modo geral, nenhuma JUSh-
tural e dias proveitosos de sertão e mata, brindou-nos também com ficação especialj jaz todavia exceção a eliminação das iniciais
inteligentes comentários, inclusive lingüísticos, terreno predileto de maiúsculas nos nomes latinos de espécie, mesmo em se tratando de
suas lucubrações. substantivos em aposição ao nome genérico, pois pare c~ provado. q_ue
Em extenso ensaio biobibliográjico sôbre o nosso sábio viajante, ao proceder de modo diverso conformara-se o naturalzsta germantco
chama H. Baldus1 a atenção para a excelência da contribuição do com o que é de uso em seu idioma pátrio.
príncipe de Wied no terreno da especialidade em que é hoje um dos
mais profundos conhecedores, convencendo-nos de que na "Viagem ao São Paulo, 7 de Janeiro de 1956.
Brasil" não fica o etnógrafo aquém do zoologista. Opondo-se embora,
com severidade, a certas generalizações a· que se arriscara o naturalista, ÜLIVÉRIO M. DE OLIVEIRA PINTO
a ponto de qualificar de superficiais e pouco escrupulosas algumas de
suas informações, reconhece o autorizado crítico pertencer o príncipe
Maximiliano, no campo da etnologia brasileira, ao número dos maio-
res pesquisadores do século passado, ao lado de C.F.P. v. Martius,
K. v. den Stein e P. Ehrenreich. Num paralelo com o primeiro,
Wied lhe parece muito mais fiel à objetividade e, sobretudo, isento
do "sentimentalismo verbosd' que naquele parece censurar, como
contrário ao es,pírito científico, acabando por concordar em que o
"príncipe, em geral, revela uma compreensão que, mesmo em nossos
dias, é alcançada por poucos".
De resto, como se só em nossos dias os grandes méritos da obra
científica de Wied lograssem ser devidamente apreciados pelos seus
próprios compatriotas, de data recentíssima é o livro que na Alemanha
se publicou em sua homenagem 2, com o fim especial de salientar
a importância da contribuição etnográjica por êle prestada, e de dar
disso testemunho mediante inúmeros excertos tirados aos seus manus-
critos. A notícia biográfica de que se fizera preceder êsses excertos
lançam nova luz sôbre o pouco que sabíamos a respeito da persona-
lidade fascinante do autor da "Viagem", sem desfazer todavia em
nosso espírito a dúvida sôbre se nela seria· maior o pesquisador, ou
o artista. Dois modos de ser julgados por muitos antitéticos, ou inca-
pazes de se jazerem boa companhia, mas, na realida·de susceptlveis
de andarem juntos, com grande proveito para o patrimônio intelectual
da humanidade culta. Artista era·-o Wied na exata acepção do têrmo,
e antes de tudo pintor, manejando com igual habilidade, para atingir
os seus fins, ora a pena, ora o pincel, conforme as circunstâncias,

(1) HERBERT BALnus, "Maximiliano Prlncipe de Wled-Neuwled", Revista do Arquivo


Municipal, LXXIV, São Paulo 1941, pp. 288-291. (8) JOSEPH RoDER e IIERMANN TRIMBOBN, Maxinlilian Prinz ZU Wied. Unveri:Jf-
(2) Faz pouco tempo, por Iniciativa de H. Baldus, foram exibidos, em magnlflca fentlichte Bilder und Handschriften zur Vlllkerkunde Brasiliens, Ferd. DUmmlers Verlag,
exposição, na sala nobre do Museu Paulista, os originais de quase todos os desenhos Bonn, 1954.. São colaboradores Josepblne Huppertz, Udo Oberem e Karl Viktor Prlnz
e aquarelas que ainda nos restam do principe Maximiliano. zu Wied, autor êste último da biografia do prlncipe. ,
VIAGEM AO BRASIL
nos anos de 1815 a 1817
de
MAXIMILIANO
PRÍNCIPE DE WIED-NEUWIED

PRIMEIRO TOMO

Com uma carta da costa oriental do Brasil

FRANCFORT SOBRE O MENO, 1820


Impresso e editado por H. L. BRONNER

,
.
91 t I f t
lNDICE DO TOMO I
a o cfJ

. •
6 r af l l t en INTRODUÇÃO ... ... ·· ·· ····· ·· ··· ···· ······ ·· ··· ··· ············ .. .. .
PÁGS.
5
11
in btn ~Q~ttn t8a5 bi~ .a., I.

li.
TRAVESSIA DA INGLATERRA AO RIO DE JANEIRO

ESTADA NO RIO DE JANEIRO.


A cidade e seus arredores. Os índios de São Lourenço. Pre-
••• parativos para a viagem pelo interior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Ill. VIAGEM DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO.


9na~imiliAn Praia Grande. - São Gonçalves. - Rio Guaxindiba. - Serra
de Inuã. - Lago e Freguesia de Maricá. - Guarapina. -
tr i •t 1• !Bic•·!Jlr••itt Ponta Negra. - Saquarema. - Lago Araruama. - São Pedro
dos índios. - Cabo Frio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

IV. VIAGEM DE CABO FRIO À VILA DE SÃo SALVADOR DOS CAMPOS


DOS GOITACÁS.
Campos Novos. - Rio e Vila de São João. - Rio das Ostras.
Cf r ft e r ~ a a b. - Fazenda de Tapebuçu. - Rio e Vila de Macaé. - Paulista.
- Curral de Batuba. - Barra do Furado. - Rio Bragança. -
Abadia de São Bento. - Vila de São Salvador, à margem
do Paraíba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

V. ESTADA A VILA DE SÃO SALVADOR E VISITA AOS PURIS EM SÃO


FIDÉLIS.
Vila de São Salvador. - Jornada a São Fidélis. - Os índios
Coroados. - Os Pu ris . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

VI. VIAGEM DA VILA DE SÃO SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO.

Muribeca. - As hostilidades dos Puris. - Quartel das


Wfanffurr a. IDl. afbo. Barreiras - ltapemirim. - Vila ova de Benevente, à margem
do Iritiba. - Guaraparim ........ .... .................... 119
fJchecft ••• tci'lctl Ht !1. f . !rhur.
VIl. ESTADA NA CAPITA IA E VIAGEM AO R IO DoCE.

Vila Velha do Espírito Santo. - Cidade de Vitória. -


Barra do Jucu . - Araçatiba. - Coroaba. - Vila o~a de
Almeida. - Quartel do R iacho. - Rio Doce. - Linhares.
- Os Botocudos, inveterados inimigos .................... 141
4 VIAGEM AO BRASIL

VIII. VIAGEM DO RIO DoCE A CARAVELAS, AO RIO ALCOBAÇA E VOLTA


AO MORRO D'ARARA, À MARGEM DO MUCURI.

Quartel de Juparanã da Praia. - Rio e Barra de São Mateus.


- Mucuri. - Vila Viçosa. - Caravelas. - Ponte do Gentio, no
rio Alcobaça. - Estada neste último . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

IX. EsTADA EM MORRO D'ARARA, MUCURI, VIÇOSA E CARAVELAS. ATÉ


A PARTIDA PARA BELMONTE.

Descrição da estada em Morro d'Arara. - Caçadas. - Os INTRODUÇÃO


mundéus. - Estada em Mucuri, Viçosa e Caravelas I!Jl

X. VIAGEM DE CARAVELAS AO RIO GRANDE DE BELMONTE.

Rio e Vila de Alcobaça. - Rio e Vila do Prado. - Os Pa-


tachós. - Os Machacalis. - Comechatiba. - Rio do Frade. Acontecimentos extraordinários, repetidas guerras, puseram duran-
- Trancoso. - Pôrto Seguro. - Santa Cruz. - Mogiquiçaba. te longos anos obstáculos insuperáveis ao desejo dos homens de
- Belmonte ......... .. ....... .... . ............. ..... .. . ... 209
percorrer as partes mais distantes do mundo, para ampliar os domí-
XI. ESTADA NO RIO GRANDE DE BELMONTE E ENTRE OS BOTOCUDOS. nios da história natural e da geografia; a Inglaterra, menos constran-
Quartel dos Arcos. - Os Botocudos. - Viagem ao Quartel gida por tais obstáculos, quase que, durante êsse período, foi a única
do Salto. - Volta ao Quartel dos Arcos. - Combate entre Boto- a contribuir para o enriquecimento dessas ciências. Entre os nume-
cudos. - Viagem a Caravelas. - Os Machacalis do Rio Prado. rosos benefícios que o restabelecimento da paz nos permite esperar,
- Volta a Belmonte ............................ . ........ 237 conta-se, para os homens animados pela paixão de realizar descobri-
mentos nos domínios da Natureza, a vantagem de poderem empre-
ender com sucesso importantes viagens e transmitir as riquezas que
forem encontrando àqueles de seus compatriotas presos ao solo pátrio
pela vocação, pela conveniência ou pela necessidade. Possa uma
sólida paz, tão ardentemente desejada, nos assegurar por longos anos
êsses inestimáveis benefícios!
O olhar dos naturalistas, por muitos anos, voltou-se principalmente
para o Brasil, cuja feliz situação prometia rica messe às pesquisas,
mas que, até agora, estêve tão rigorosamente fechado a quem quer
que quisesse percorrê-lo e estudá-lo.
Antigas relações de viagens, narrativas dos navegantes espanhóis
e portuguêses, informações mais minuciosas fornecidas pelos jesuítas,
finalmente as observações de Piso e Marcgrave 1 , constituíam tudo

(1) GEORGE MARCGRAVE, Historia Rerum naturalium Brasiliae, libri VIII, etc., Lug-
dunum Batavorum, 1648. Obra publicada juntamente com De Medicina BTasiliensi, libri
IV de Guil. Piso (num mesmo vol. e em seguida a esta última), sob os cuidados de
Joannes de Laet, autor também de multas obras, entre as quais merece referência
especial Novus orbis seu descriptio Indiae occidentalis, libri XVIII (Lugd. Batav., 1688,
foi.), onde são pela primeira vez descritos muitos animais da fauna neotrópica. O livro
de MARCGRAVE, cujo valor é desnecessário encarecer, domina tôda a literatura histórico-
natural referente ao Brasil, até o advento do século XIX, quando se inicia o grande ciclo
das explorações cientificas do nosso pais por sábios estrangeiros de tôdas as nações.
Da! os numerosos estudos a que tem dado lugar o homem e, multo particularmente,
a sua obra, de que já hoje existe, traduzida para o vernáculo e copiosamente anotada
por colaboradores especializados, primorosa edição facsimilar, dada a lume pelo Museu
Paulista (1942) sob os auspícios de Affonso d'E. Taunay autor êle próprio de extensa
noticia biográfica sôbre Marcgrave. Sôbre o assunto' consulte-se: RoDOLFO GARCIA,
Intr. Dicc. Histor., Geogr. e Ethnogr. do Brasil I, p. 863 e ss. (1922) ; ALFREDO DE
CARVALHo, Biblioteca Exótico-Brasileira, vol. III, p. 802 e ss. (1930); JuLIANO MoREIRA,
"Marcgrave e Piso" (na Rev. do Museu Paulista, XIV, p. 651 e ss., 1926).
6 VIAGEM AO BRASIL INTRODUÇÃO 7
quanto sabíamos a respeito dêsse país, descoberto há três séculos e bondade, encorajando-os e assistindo-os com os seus conselhos. Outros
tão interessante. Entretanto, êsse estado de coisas, que tanto difi- alemães, animados do mesmo zêlo, foram ao Brasil e certamente não
cultava os estudos sôbre o Brasil, sofreu uma feliz mudança. Acon- lhes faltarão ricos materiais para suas observações. Recomendados
tecimentos por demais conhecidos para que se necessite narrá-los 2 , ao Rei pelo Conde da Barca, ministro protetor das ciências, foi-lhes
levaram o monarca a transportar-se para êste belo pedaço de seus dada a permissão, não só de viajar sem obstáculos nas diferentes capi-
domínios, por êle ainda não vistos, e onde se encontravam as fontes tanias da monarquia, como também lhes fixaram generosamente uma
principais de suas riquezas, mudança de residência esta que deveria importância anual para se manterem5 ; deram-lhes passaportes conce-
ter uma extraordinária influência sôbre o Brasil. Efetivamente, o bidos em têrmos lisonjeiros, e as melhores cartas de recomendação
opressivo sistema dos entraves misteriosos foi abolido; a confiança para os capitães gerais das várias províncias.
se substituiu à inquietação, e os viajantes estrangeiros conseguiram Como o atual govêrno, com essas medidas esclarecidas e liberais,
permissão para penetrar nesse campo de descobertas. As intenções se afasta honrosamente do antigo sistema, em que o viajante, chega-
liberais de um rei esclarecido, apoiado em um ministério de valor, do ao Brasil, logo se via cuidadosamente cercado de soldados e vigiado!
não somente permitiram a entrada de estrangeiros no país, como enco- Em nome de meus compatriotas e de todos os viajantes europeus,
rajaram também suas pesquisas da forma mais generosa. Assim foi desejo que êsse solene testemunho exprima o reconhecimento de que
que o Sr. Mawe 3 foi contemplado com a permissão de ir visitar as me sinto possuído para com o monarca que tomou essas medidas libe-
minas de diamantes, de que a simples aproximação fôra até então inter- rais. Que inexprimível satisfação para o viajante longe de sua terra
dita aos estrangeiros, e que percorreu parte do território de Minas Gerais encontrar acolhida tão benévola e receber tratamento tão amistoso!
para estudar a sua mineralogia. Depois disso, alguns viajantes alemães Resulta também daí uma incalculável vantagem, de que participa
percorreram essa província. O Sr. d'Eschwege 4 , tenente-coronel do todo o mundo civilizado e culto.
corpo real de engenheiros em Vila-Rica, favorecido por uma perma- Quem quer que deseje percorrer utilmente o interior dêsse vasto
nência de muitos anos no Brasil, já deu a público interessantes memó- território, deve destinar a isso vários anos e dirigir os seus planos de
rias, e é com razão que devemos esperar importantes descobertas de acôrdo com tal determinação. Por exemplo, para alcançar Goiás e
homem tão profundamente competente. l.le mediu as altas cadeias Cuiabá, dois anos não são bastantes; que tempo, então, não será pre-
de montanhas de Minas Gerais, desenhou-lhes o perfil, e, em suas ciso para atravessar o Brasil até as fronteiras do Paraguai, até o rio
excursões mineralógicas, pesquisou os diferentes produtos dessas altas Uruguai, ou até os confins mais longínquos de Mato Grosso, onde
montanhas, onde êle, entre outras coisas, descobriu recentemente fon- uma pirâmide de mármore, talhada em Lisboa, marca os limites do
tes sulfurosas. Costuma acolher os viajantes estrangeiros com generosa reino na foz do Jaurul O território de Minas Gerais já foi percorrido
pelos Srs. Mawe e Eschwege; e se bem que o assunto não haja sido
(2) Refere-se o autor à transmigração da famllla real portuguêsa para o Brasil esgotado, é pelo menos em grande parte conhecido. Por conseguinte,
como conseqüência da Iminente invasão de Portugal pelas tropas napoleônlcas coman: à minha chegada ao Brasil, achei melhor orientar as minhas excursões
d_ada~ pelo general • Junot. O príncipe regente, com o grosso da esquadra fugitiva,
dtvldt~a que esta fora pelos temporais, arribou à Bahia em 28 de Janeiro de 1808; para a costa oriental do país, que, em grande parte, era inteiramente
mas Já em 7 de Março entrava D. João VI na baia de Guanabara, decidido a desconhecida ou que, até então, não tinha sido absolutamente des-
transformar o Brasil na sede da Monarquia, como complemento do ato (28 de janeiro)
pelo qual abrira os seus portos a tôdas as nações amigas. crita. Várias tribos dos primitivos habitantes dessas regiões ainda aí
. ( 8) J ?H>: MAWE, Travels in the interior of Brazü, particularv in the Gold. and. vivem em estado selvagem, sem terem sido perturbadas pelos europeus,
Dtamond. Dt.Strtets of that country etc., London, 1912. O autor, que estêve no Brasil
em 1807 e 1810, foi dos primeiros estrangeiros a ter permissão de visitar o nosso que gradualmente se vão espalhando em tôdas as direções. A alta
pais em caráter científico. Estêve em Santa Catarina, em São Paulo e principalmente cadeia de montanhas, desprovida de vegetação, do Brasil central, das
em Minas Gerais, ocupando-se quase exclusivamente de mineralogia. Deve-se-lhe noticia
vall~sa sôbre . os trabalhos de mineração do ouro em Jaraguá, perto da capital províncias de Minas Gerais, Goiás e Pernambuco, é separada da
paultsta. Mmto embora no relato de suas viagens nos dê, segundo a expressão de
Rod. GARCIA, "a Impressão bem nitida de que o mineralogista foi a Minas Gerais costa oriental por uma larga cintura de florestas virgens, que se esten-
tratar de seus interêsses, antes do que Investigar o que fôsse digno de atenção", a dem desde o Rio de Janeiro até as proximidade da baía de Todos
aparição de seu livro "constituiu quase um acontecimento mirfflco". Não admira, pois,
que. venha amiudadamente citado por WIEo, apesar de todos os defeitos com que o os Santos, isto é, por uma extensão de 11 graus de latitude, ou sejam
acmmaram alguns contemporâneos seus, Auguste Saint-Hilalre à frente dêles. (Cf. ALFR.
DE CARVALHO, op. clt., 111, p. 342).
(4) Dos trabalhos de EscnwEGE (Wilhelm Ludwig von), já publicados na época (5) Confirma-se o que diz o autor nesta passagem pelo conhecido exemplo de
em 9ue escr~vla WIED, é objeto de referência particular o intitulado Journal von seu patrício Fr. Sellow, em favor do qual, por decreto de 16 de Abril de 1820,
BraSllen (Wetmar, 1818, 2 vols.). A propósito, veja-se o titulo EscHWEGE na "Bibl. instituiu D. João VI uma_ pensão anual de 600 mil réis, "a fim de se ocupar em
Exótico-Brasileira" (vol. 11, p. 1ll) de ALFREDO OE CARVALHO e o cap. I da segunda al~as v111:gens e exploraçoes filosóficas por diversas partes do Brasil". Cf. M. Fleluss,
parte da presente obra. In Dicc. HtBt. Geogr. e Ethnogr. do Brasil, Introd. Ger. pág. 995 (1922).
8 VIAGEM AO BRASIL I TRODUÇÃO 9

198 léguas portuguêsas (165 milhas geográficas), ainda não ocupadas Silveira de Araújo, levantaram as costas desde Mucuri, São Mateus,
por colonos portuguêses. Até agora, só um pequeno número de cami- Viçosa e Caravelas até Pôrto Seguro e Santa Cruz.
nhos, acompanhando os rios que as atravessam, foram abertos com Tenho também que agradecer ao govêrno português ter êle, com
grande dificuldade. Nessas florestas é que os primitivos habitantes do seu modo de pensar esclarecido e liberal, permitido que eu apresentasse
país, fustigados de todos os lados, continuam a encontrar um seguro a meus compatriotas essa relação de minha viagem ao longo da
abrigo, e é aí que ainda se podem observar êsses povos em seu estado costa oriental, desde o 23° até o 13° grau de latitude sul. Dois
original. Como não haveria essa região de atrair de preferência um alemães, os srs. Freyreiss0 e Sellow7, que projetavam passar vários
viajante que não tinha em mente passar muitos anos nessa porção da anos percorrendo o Brasil, encontraram generoso apoio em Sua
zona tórrida? Majestade Rei de Portugal e do Brasil. Dificilmente um estrangeiro
Essas tribos indígenas, que habitam tais desertos, são desconhe- poderia penetrar no país com maiores vantagens do que êsses dois
cidas na Europa, com exceção talvez de Portugal. Os jesuítas, entre viajantes, pois êles conhecem a sua língua e os seus costumes, e as
outros Vasconcellos•, em suas "Notícias curiosas do Brasil", dividi- excursões que vêm realizando, já há muitos anos, os prepararam
ram todos os povos selvagens, tanto os que viviam ao longo da costa convenientemente para isso. Realizei em companhia dêles parte de
marítima como os que habitavam essas antigas florestas, em duas classes, minha viagem, havendo o Sr. Freyreiss me transmitido vários informes
a saber: os do litoral, que, um tanto civilizados pelos portuguêses, interessantes, pelos quais aqui lhe dou o testemunho de meu vivo
principalmente pelos jesuítas, eram chamados "índios mansos", e reconhecimento.
os das florestas e solidões do interior que, ainda bárbaros e O Sr. Freyreiss comunicar-me-á ainda as observações sôbre histó-
em parte desconhecidos, eram chamados "tapuias"; êstes últimos, tendo ria natural que fôr fazendo no prosseguimento de suas viagens, ava-
se mantido até agora em estado de cultura primitiva, merecem ser liando-se quanto me será agradável poder transmiti-las aos que amam
mais bem conhecidos. Os jesuítas e vários antigos viajantes, na ver- tais investigações.
dade, nos deram algumas notícias dessas regiões cobertas de florestas A presente narrativa deve, portanto, ser apenas considerada como
ininterruptas, porém muito imperfeitas e misturadas de incidentes fabu- a precursora de outras observações posteriores mais interessantes; novas
losos; não fornecem, também, pormenor algum referente à história
minúcias e pesquisas adicionais suprirão as deficiências que ocorrem
natural. Por isso, pouca coisa sabíamos, ou mesmo nada, sôbre os
no decorrer desta obra.
primitivos habitantes dessa região, que vivem ainda em estado nativo,
assim como sôbre as suas produções naturais, animadas e inanimadas. Sei quanto é temerário aventurar-me eu a publicar tais obser-
E, no entanto, quantas coisas novas e interessantes nessas paragens, vações, feitas durante uma viagem através duma parte da América
mormente para o botânico e o entomologistal Quando se deseja per- do Sul, depois do aparecimento da obra do nosso ilustre compatriota
corrê-las, é preciso de antemão resignar-se a gente a suportar uma
infinidade de aborrecimentos e obstáculos, tais como a falta de víveres (6) FREYREISS (Georg Willbelm) chegou ao Brasil em agôsto de 1813, recomendado
ao Sr. Lourenço Westin, cônsul da Suécia e Noruega no Rio de Janeiro, que lhe
para si e o pessoal que a acompanha, e pastagens para os animais de forneceu os meios necessários para fazer coleções de História Natural. Visitou
carga; dificuldades para transportar os objetos de história natural; primeiramente o interior de Minas Gerais, em companhia de Escbwege, fazendo importantes
observações sôbre os índios Coroados; jornadeava, portanto, independentemente de Wied,
chuvas de longa duração, umidade, e uma infinidade de outros contra- embora se tornasse seu companheiro em grande parte de sua viagem. Não mais deixou
o nosso pais, vindo a falecer no sul da Bahia, perto da Vila de Viçosa, onde foi
tempos. Porém, a mais penosa privação é a falta de mapas das sepultado (Cf. A. LoEFGREN, Rev. Hist. e Geour. de São Paulo, VI, 1901, p. 286).
regiões que se percorrem; o de Arrowsmith está cheio de erros; omite Deve-se-lhe, além de outros escritos, a obra Beitraeoe zur naheren Kenntnis der Kaiserthums
Brasiliens (Frankfurt, 1824) e a descoberta, na foz do Rio Pardo, do cu rioso morcêgo
rios importantes da costa oriental, e, pelo contrário, assinala-os em branco (Diclidu•·us albus Wied) denominado a principio, em sua homenagem, por Wied
Diclidurus treyreissii.
pontos onde não existem; dêsse modo, o melhor mapa do Brasil, até
(7) FRIEDRICH SELLOW (1789-1881) chegou ao Rio de Janeiro em meados de 1814,
então conhecido, é quase que inútil para os viajantes. Para remediar graças à interferência do Barão de Langsdorff, cônsul da Rússia, a quem o Brasil
essa falta, o govêrno acaba de ordenar que se faça um levantamento multo deve no campo das explorações naturallsticas. Tendo aceito o convite do príncipe
de Wied, ao cabo de alguns meses deixa todavia a sua companbla, resolvendo trabalhar
exato do litoral, a fim de se indicarem com precisão os perigos que por conta própria a interêsse do museu de Berlim, que dêle recebeu importantes coleções.
Não mais deixando o Brasil, dedicou-se especialmente à Botânica, sua especialidade,
ameaçam os navegantes. Essa útil tarefa já foi iniciada e hábeis ora à custa de instituições estrangeiras, ora mediante o auxilio financeiro a que já
oficiais de marinha, srs. José da Trindade, capitão-tenente, e Antônio se fêz menção em nota anterior. Após cêrca de 17 anos de viagens quase ininterruptas,
teye trágico fim,. morrend? afogado no Rio Doce (Cachoeira Escura), Estado de
Mmas Gerais. Sobre a VIda e os trabalhos de Sellow, extensa noticia poderá ser
procurada em Fr. HoEHNE, O Jardim Botéinico de São Paulo (1941, edição do Dept.
(*) Padre Simão de Vasconcellos. de Botânica da Secret. da Agricult. Industr. e Comere. de São Paulo).
10 VIAGEM AO BRASIL

Alexandre de Humboldt8 ! Mas a boa vontade pode suprir a infe-


rioridade dos recursos, e, se bem que não tenha a pretensão de apre-
sentar algo perfeito, ouso entretanto esperar que os estudiosos da
história natural, da geografia, dos hábitos e costumes de cada povo, I
encontrarão nas minhas informações contribuição não totalmente
despida de importância para os interêsses da ciência e da humanidade.
TRAVESSIA DA INGLATERRA
AO RIO DE JANEIRO

O Brasil, para o qual, há alguns anos, grande número de viajan-


tes tem convergido a atenção, apresenta a vantagem de estar separa-
do da Europa por um mar dos mais calmos. Se bem que as tempes-
tades sejam freqüentes no imenso Oceano, durante determinados meses,
mormente nos equinóxios, são entretanto menos perigosas nessas para-
gens do que nas próximas do cabo da Boa Esperança, cabo Hom etc.
Deixei Londres pela época em que comumente as tempestades
perdem a sua maior violência9; esperava, portanto, desfrutar uma
travessia calma e agradável. O nosso navio, o Janus, de 320 tonela-
das, saiu do Tâmisa por um belo tempo; e tivemos tanto maior con-
fiança no provérbio dos marinheiros inglêses - "evening red and
moming grey sign of a very fine day" 1o, quanto, na tarde de nossa
partida, o céu estava de uma côr vermelha magnífica. Uma brisa
fresca e favorável nos fêz chegar prontamente à embocadura do
Tâmisa; mas, à noite, mudou, e foi preciso ancorar.
Os primeiros dias de viagem são geralmente empregados em fazer
os arranjos a bordo e observar os objetos novos que nos cercam;
por isso passam muito depressa. Ao raiar o segu~do dia, t.udo pressa-
giava feliz viagem. Navegávamos em companhia de m~1tas em~ar­
cações de todos os tamanhos, que as velas enf.una.das faZiam deshz~r
rápidas sôbre a superfície das águas. Ao meiO-?Ia, essas agra?áveis
previsões se dissiparam, o vento tomou-se contráno e ~orno~ obn~ados
a bordejar. Passamos em frente de Margate, bomta Cidadezmha,
dobramos o cabo North Foreland, com suas penedias brancas e escar-
padas, entramos na Mancha e, à tarde, ancoramos em Downs, em frente
de Deal. Essa parte da costa inglêsa é inteiramente desabrigada;
nenhuma angra, nenhuma elevação, põem o navegante ao abrigo das
tempestades. Muitos navios estavam ancorados em frente de Deal;
entre os maiores viam-se os da carreira das índias e vários navios
(8) BAIÃo DE HnMBOLDT (Fried. Heinrich Alex. von ), célebre geógrafo e naturalista
alemão, nascido em 1769 e morto em 1859. De 1799 a 1804 empreendeu em companhia (9) Segundo a tradução francesa, a partida de Londres deu-se a 15 de maio
de Almé Bonpland uma grande expedição clentlfica à Améri ca Meridional , sem ter de 1815, Informe que não aparece na edição alemã e não se afigura multo exato.
podido contudo visitar o Brasil, cujo acesso lhe foi interditado pelas disposições draconianas Pelo menos, êle parece colidir com a passagem em que, mais adiante, conta·nos o
mterpostas pela côrte portuguêsa aos viajantes estrangeiros. Essa memorável expedição nosso viajante que a 14 de julho já eram passados mais de setenta dias que estava
foi relatada pelos viajantes numa série de publicações, enfelxadas sob o titulo V Oflage no mar. Assim a partida deveria ter·se dado nunca depois de 5 de maio.
aux régiorn~ équinoxiales du nouveau continent (181'-1827). ( lO) " Tarde rubra e manhã cinzenta, sinal de belo dia ".
12 VIAGEM AO BRASIL
TRAVESSIA DA INGLATERRA AO RIO DE JANEIRO 13
de guerra. Um navio de linha deu o sinal de recolher, transmi-
tido aos outros por um tiro de espingarda. Os ventos contrários novos e excelentes maçames. O grande número de navios que encon-
nos retiveram alguns dias nesse pôrto. O comandante aproveitou essa tramos no ancoradouro nos consolou de algum modo da perda de
p~rada para fazer provisão ~e carne fresca, verduras e alguns animais tempo que sofrêramos. Os grandes navios, todos êles, haviam amai-
VIVOS. A~ cabo de alguns d1as, o vento pareceu mais favorável, levan- nado os seus mastros de gávea e joanete, bem como as vêrgas, para
tamos. a ancora e dobramos o cabo South Foreland, acompanhados ficarem menos expostos ao furor da tempestade; os vasos de guerra
do bngue Albatross, comandado pelo capitão Harrinson. O vento, estavam amarrados a duas âncoras.
poré~, tornou-se de novo tão contrário e o tempo tão mau que foi Escapáramos do mais iminente perigo; mas, encerrados sempre
preciso regressar ao pôrto de Deal. Cresceu a fúria do vento; foi no navio, que as ondas varriam de modo terrível, levávamos uma
aumentado o _número dos homens que faziam quarto durante a noite; triste vida; por isso, sentimo-nos duplamente felizes quando a violên-
o céu se cobnu cada vez mais e não mais se distinguia o cabo South cia das vagas acalmou afinal e pudemos navegar em direção à nossa
Foreland de que estávamos tão perto. Finalmente, a tempestade arre- rota. Passamos em frente de Dungeness, avistamos os dois rochedos
bentou em :ôda a sua fúria; arriaram-se as vêrgas ("yards") para aumen- de Beachyhead, no promontório de Sussex, situado entre Hastings e
t~r a pro_:eçao contra ? _vento. ~sse mau tempo se prolongou por alguns Shoreham, onde em 1690 uma esquadra francesa bateu as esquadras
dias e nao deu ao VIaFnte, amda desacostumado ao mar, uma idéia combinadas da Inglaterra e da Holanda; avistamos ao meio-dia a
lisonjeira dos prazeres da vida de bordo. Uma tarde em que o vento cidade de Brigthelmstone, por abreviação Brighton, tão afamada pelos
pareceu mais favorável, um navio de guerra deu o sinal e todos os seus banhos de mar, e achamo-nos à vista da ilha de Wight. O mar
demais levantara~ âncora. Mas, ao cair da noite, novo perigo nos estava sereno, a lua iluminava o horizonte; a alegria reaparecera a bordo;
ameaçou; os navws navegavam a tão pequena distância uns dos outros as violas dos marinheiros se fizeram ouvir de novo; os jovens dan-
e se aproximavam tanto a todo instante, que foi preciso grande çaram, esquecendo as inquietações que os haviam atormentado.
pre:auçã? para não a?alroarem. Lá para a meia-noite, um grande Na manhã do dia 20 de maio, deixamos a ponta de Santa Cata-
naviO vew em nossa direção a todo pano; a escuridão não o deixou rina, na ilha de Wight, e em breve nos achamos em frente da ponta
ver, a não ser quando passou diante de nós, rente aos nossos bordos. de Portland, no Dorsetshire, donde se retira a bela pedra de cons-
O vento aumentava constantemente. trução empregada ~m Londres. Mas à noite levantou-se uma tem-
Ao raiar do dia a cena se modificou inteiramente. A atmosfera pestade tão rude que tivemos que bordejar para não ser atirados
sem nuvens p~recia serena e apenas velada por alguma neblina. contra os rochedos; uma de nossas velas foi estraçalhada pelo vento.
Durante todo dia, porém, a tempestade aumentou sempre de violência. Na manhã do dia seguinte, o mar forte e o vento pouco favorável nos
O nosso navio, inteiramente adernado, apenas se sustentava contra o forçaram a arribar em Torbay, pôrto seguro e amplo, rodeado por
vento com um pequeno número de velas; às dez horas da manhã, altos rochedos, fechado ao norte pela ponta de Portland e ao sul pelo
está~amos diante d~ .far_ol de Dungeness. Todos os passageiros se cabo Start Point. Pensamos então em aguardar o bom tempo, des-
senttam mal. Um silenciO completo reinava no salão de bordo; só o cansando dos reveses sofridos. Apenas dois navios que tinham o mesmo
interrompiam o sibilar do vento nas cordas e o assustador barulho destino que o nosso, fizeram sinais de que desejavam seguir a nossa
das <:ndas, batendo d~ encontro ao navio. O comandante fêz esforços esteira. Aproveitamos também o repouso para escrever cartas para
em vao para prossegUir a rota, mas teve que ceder e voltar ao ancora- nossa terra, antes de rumarmos para o oceano. À tarde dobramos
douro. Na volta, o vento nos favoreceu; percorremos em pouco o cabo Start Point, constituído por altas penedias recortadas, em
tempo e com pouco pano a mesma distância que leváramos a noite seguida às quais se estendem, como ao longo de tôda a costa do
inteira a percorrer. Um brigue que navegava conosco, viu-se cons- Devonshire, uma bela planície verdejante, cuja uniformidade é inter-
tantemente coberto pelas vagas; o nosso navio, tendo maior altura rompida pela côr amarela das flôres do Ulex, arbusto muito comum
acima das ondas, nos preservava em parte dêsse inconveniente. Che- nas duas margens da Mancha. Viam-se na superfície do mar penedias,
gamos à costa de Deal com tal violência que foi preciso arriar depressa contra as quais as vagas se vinham quebrar, espetáculo êsse que a
a _âncora par~ nã?. sermos atir~dos sôbre aquela, o que, porém, foi luz suave do sol poente vinha embelezar. Entrementes, o nosso navio
feit_.? com mUI~a dificuldade, pois o cabo correu com tanta rapidez que prosseguia em sua rota. Na manhã do dia seguinte, avistamos ao
a força _do atnto 9u~se que ir:flamou a :nadeira; já ia saindo fumaça, longe o forte Pendennis, perto de Falmouth, e deixamos a Mancha na
ma~ evitou-se o mcider:te atirando-se agua, e escapamos do perigo- altura do cabo Lizzard que se distingue pelos seus dois brancos faróis.
Felizmente o nosso navw, que era muito bom e sólido, tinha cabos As costas de Cornwall e do Devonshire não têm a coloração branca
das do North e South Foreland; apresentam uma côr avermelhada.

14 VIAGEM AO BRASIL TRAVESSIA DA INGLATERRA AO RIO DE JANEIRO 15

Achamo-nos enfim no imenso oceano; a terra desaparece~a inte~­ dos seus habitantes. Nos flancos das montanhas, que as nuvens não
ramente dos nossos olhos; o cabo Landsend, a ponta ma1s men- cobriam, viam-se verdes pastagens como nos Alpes, e grupos altos e
dional da Inglaterra, se furta à nossa vista no dia 22, ao meio-dia. cerrados de árvores ensombravam as pequeninas casas. Essa bela ilha
Depois ?aí, cessa tôda distração causada pelas coisas circundantes; desfruta do melhor clima; os vegetais da zona tórrida crescem aí
só se avistam o céu e o mar; todos procuram se distrair escrevendo; maravilhosamente; o calor forte se combina com grande umidade,
felizes os que fizeram uma ampla provisão de bons livros! e as chuvas são freqüentes, pois as torrentes a que deram origem sul-
cara_m profun?amente os rochedos escarpados da costa- Oitenta mil
Nada nos sucedeu de notável até Madeira, que avistamos no
h~bitantes retuam a sua subsistência da cultura da vinha, que dá um
décimo dia de viagem. Atiraram-se anzóis e outros instrumentos de
vmho procurado por todos, bem como da laranja, do limão, da banana
pesca, mas só se pescaram Trigla gurnardus11 , peixe excelente para
e de outros frutos excelentes.
comer. Bandos de golfinhos (Delphinus phocaena, Linn.) 12 nos acom-
Como não pretendíamos visitar Funchal, capital da ilha, conti-
panhavam de longe, principalmente quando o mar estava um tanto
nuamos a nossa viagem com um vento fresco, e cedo perdemos a ilha
agitado; atiraram sôbre êles, mas sem matar nenhum. Entre os nos-
de vista. Os v_entos alísios nos fizer~m chegar, ràpidamente ao trópico.
sos companheiros mais constantes achava-se particularmente a pequena
Bandos de peixes voadores se erguiam de ambos os lados do navio,
procelária preta (Procellaria pelagica), que os portuguêses chamam
acD:na da superfície das águas; quanto mais próximo do equador,
de "alma de mestre" 13 . Os marinheiros, que consideram como indício
ma1s numer~sos se tornam; são mais raros antes de chegar ao trópico.
de tempestade próxima a chegada de um bando numeroso dessas aves
A 6 de JUnho, cruzamos o trópico de Câncer, divertindo-nos então
em volta do navio, não a viam com satisfação.
com a variedade de moluscos que se mostravam à nossa vista. Aos
Um "cutter" da marinha real da Inglaterra nos anunciou que o 22°~ 7' d~ latitude norte avistam~s a primeira fisália (Physalia), molusco
seu país havia declarado guerra à França; convocaram imediatamente mmto smgular• 14 que a part1r dêsse ponto se mostra sempre em
os ~ossos marinheiros, mas, entretanto, nenhum foi tomado para o maior q~antidade, à medida que se avança para o equador, de sorte
serv1ço do estado. Essa notícia nos causou vivas inquietações, sobretudo que, mais ~o su_l, se vêem às centenas cada dia. Vários viajantes já
quando, passando em frente da costa da Espanha, vimos um navio t~ataram_ dess.e smgular produto da natureza e por isso senti um par-
se dirigir para nós. Mas os nossos alarmes logo se dissiparam; trata- ticular mteresse em observá-lo com atenção. A parte mais volu-
va-se de um navio inglês; êle se incumbiu de levar as nossas cartas mosa. do animal é uma vesícula transparente cheia de ar, que flutua
para a Europa. em nma d'água, e que parece exclusivamente destinada a sustentar a
No dia 1. 0 de junho, ao meio-dia, uma terra elevada e algumas p~rte superior nessa posição; a parte inferior apresenta oito a nove
montanhas se mostraram confusamente ao longe; era a grande ilha feixes de longos tentáculos gelatinosos que se prendem às raízes por
da Madeira. As seis horas da tarde, estávamos diante de Ponta tubérculos gelatinosos, curtos e espessos, formando uma massa na base
Parga, a sua ponta ocidental, que contornamos com vento fresco; o da vesícula. A vida do animal reside nessa parte do corpo: os ten-
mar estava coberto de procelárias, gaivotas e outras aves marinhas. O táculos são irritáveis, a vesícula não; êles se alongam, se contraem,
aspecto da Madeira é imponente, visto de qualquer lado; essa ilha seguram a prêsa, e são cobertos por uma infinidade de ventosas. A
se apre~entava aos nossos olhos como um rochedo imenso cujos cimos vesícula não parece sujeita a nenhuma variação; não consegui des-
se perdiam nas nuvens. Suas costas, escarpadas e negras, são recortadas
de vales e gargantas fundas; por tôda parte, as vinhas ostentam os (* ) Ver sôbre êsse molusco a nota do Sr. Tllesius, no volume terceiro da Viagem
seus pâmpanos verdejantes, entre os quais se elevam as casas brancas do Cap. Krusenstern em redor do mundo, edição em alemão, p. 1 f1 I08.
(H) Convém lembrar que a organização das fisálias (Phvsalia), animais perten-
centes aos Celenterados da atual classificação, na da tem que ver com a dos Moluscos
(11) Nos mares inglêses é a espécie comum do numeroso gênero Trigla. O nome de que já os havia separado, dentro da sua vasta "classe " dos Vermes o própri~
gurnardus é simples latinização de gurnard, palavra inglêsa oriunda de grognard, que Linneu; ela é extraordinàriamente mais simples e tem como traço mais ~racterlstlco
significa grunhldor e faz alusão ao hábito que têm êsses peixes de emitir singular a Inexistência de um~~; _cavidade corpórea vlsceral (celoma), da qual faz as vêzes, até
e caracterlstico ruldo, qua ndo seguros pelos pescadores, ou mesmo debaixo d'água. certo ponto, a própria cavidade digestiva. Dentro dos Celentéreos as fisá.lias ou
No Brasil os seus representantes mais afins são o "peixe-cabra " Prionotus beani e a "caravelas", . pertencem à subdivisão dos Sifonótoros, sêres formados por colÔnias
" cabrinba ", P. capella. errantes de mdivlduos elementares, à abertura de cujas cavidades gástricas corresponde
(I2) Phocaena phocaena (Linn.) na atual nomenclatura. Cumpre não confundir o qu~ descreve lmprôpriamente '\:YIED com o nome de ventosas. Mesmo lançadas
esta espécie, desconhecida no Mediterrâneo, com o verdadeiro golfinho, Delphinus delphiB à praia ~elas ondas, as carav_!!las sao de contacto temlvel, pela doloroslssima queimadura
Llnn., q_ue ocor~e naquele mar e tão Importante papel representou na antiga literatura que ocasiOnam com os órgaos microscópicos de defesa (nematocistos), de que são
greco-latma. Nao obstante, há no gênero outra espécie, Ph. relicta Abel, privativa do munidos os. seus tegumentos; por um fenômeno singular (anafilaxia) a vitima de um
primeiro aCidente torna-se multo mais senslvel aos ulteriores.
Mar Negro.
( 13) Não se confundam as "procelárias" (em alemão "Sturmvõgel", francês .. . 0 padre DUTERTRE (Hist. gén. des Antilles, 1667-91, 4 vol.) e LEBLOND (Voy. au:-e
Antilles), referidos por ALFR. FREDOL (Le monde de la mer 8.• ed. 188I p 190)
" oiseaux des tempêtes ") com as gaivotas, que são também ordlnàriamente aves oceânicas, deixaram dramática descrição dos efeitos da caravela. ' ' ' • '
mas pertencem a famllla perfeitamente distinta (Laridae).

16 VIAGEM AO BRASIL

cobrir aí o orifício de nenhum vaso. Com a morte do animal, ela não


murcha, e, mergulhada em espírito de vinho, conserva mesmo a sua
forma. A sua faculdade de mover-se é fraca; contrai-se em forma
de crescente; curva também as suas duas extremidades para baixo
e para cima; com êsses movimentos ergue-se de novo quando virado
pela onda. Pode-se tocar a vesícula sem sentir qualquer sensação de
dor; os tentáculos, porém, produzem uma comichão violenta. Os
portuguêses chamam êsse singular molusco "água viva" ou "cara-
vela", os inglêses "portuguese man of war"; os franceses "galere".
Mais próximos do equador, diminui o número dêsses moluscos e,
pelo contrário, aumenta o de Medusa pelagica 15 • Aves marinhas voa-
vam às vêzes em tôrno de nós. O nosso segundo comandante pegou
com as mãos, depois de uma rajada de vento, uma andorinha do mar
(Sterna stolida, Linn-), que, cansada, veio pousar a bordo; vimos
também fragatas (Pelecanus aquilus, Linn-)1 6 que haviam sido trazidas
dos rochedos vizinhos.
Enquanto atravessávamos a parte norte da zona tórrida, o tempo
se conservara geralmente belo; mas, depois, o calor que foi conti-
nuamente aumentando, tornou-se muito incômodo. Nuvens sombrias,
indícios de chuva e tempestade, se elevavam isoladas no horizonte;
espalhavam-se e aproximavam-se ràpidamente, trazendo uma borrasca
violenta e uma forte chuvarada, que num instante inundou o navio;
mas, comumente, o sol brilhava de novo meia hora depois. Quando
começou a se alterar nossa provisão de água potável, essas pancadas
de chuva foram recebidas com prazer. Os navegantes imprudentes
que, ao se aproximar semelhante meteoro, não cerram as suas velas
superiores, têm sofrido muito, com freqüência, dessas rajadas fortes
e bruscas, ou delas sido vítimas. O nosso comandante nos contou
que um acidente dêsse gênero se dera pouco tempo antes com um
navio, que soçobrava. O nosso teve uma vela rasgada; como se
tomavam sempre as necessárias providências, não sofreu outra avaria.
A 22 de junho, o "Janus", transpôs a linha. Não foram esqueci-
das as cerimônias habituais em semelhante ocasião. Ao sul do
equador, o tempo piorou. Chuvas de pouca duração, acompanhadas
de violentas rajadas, eram freqüentes; o mar se mostrava muitas
vêzes agitado; viam-se com maior freqüência procelárias, golfinhos,
toninhas e outros cetáceos maiores.
Cruzamos o equador aos 28°25' de longitude oeste de Greenwich,
porquanto, navegando antes nas paragens mais próximas da costa da

(l~) As medusas, também Celenterados, têm a forma caracterlstica de guarda-chuva


aberto; são ordinàriamente incolores e transparentes, e locomovem-se por movimentos
rltmicos dos bordos da umbrela.
(16) As "fragatas", notáveis pelo poder do vôo, formam um gênero de grandes
aves marinhas quase cosmopolita. Sabe-se hoje que a espécie nomeada por Linneu é
privativa dos mares da ilha Ascensão; nas costas meridionais do Brasil, a forma
que existe é Fregata magni/icens rothschildi Mathews, vulgarmente conhecida pelos nomes
de "tesourão ", "alcatraz" e "joão grande ". Na Bahia chamam-na "grapirá,, "pássaro
do sul", etc. (cf. nota 368).
TRAVESSIA DA I TGLATERRA AO RIO DE JANEIRO 17

Africa, onde apanhamos muita chuva e ventania, havíamos aproado,


para delas nos afastarmos, em direção oeste; o que nos levou para
as correntes marinhas que nos fizeram progredir em direção da costa
da América.
Na manhã de 27 de junho, durante o almôço, anunciou-se terra.
Todos acorreram ao tombadilho para contemplar a costa do Brasil,
que emergia do seio do Oceano. Surgiram logo, na superfície das
ondas, duas espécies de sargaços (Fucus) e numerosos indícios de terra
próxima; cruzamos, enfim, com uma embarcação de pescadores, carre-
gando três homens; chamam a essas embarcações "jangadas"; são
feitas de cinco a seis troncos de uma madeira leve que no Brasil
se denomina "pau de jangada". Koster nos deu uma estampa da
jangada em sua viagem ao Brasil 17 • Essas jangadas navegam com
grande segurança no mar; são empregadas na pesca ou no transpor-
te de diferentes coisas ao longo do litoral; andam muito depressa,
impelidas por uma grande vela latina, prêsa a um mastro curto. Tería-
mos com prazer aproveitado a ocasião, após uma longa travessia,
de conseguir peixe fresco; mas não valia a pena, para satisfazer êsse
desejo, correr atrás dos pescadores. Fizemos rumo para a costa; apro-
ximamo-nos dela o bastante para, ao meio-dia, reconhecer que está-
vamos próximos de Goiana ou Paraíba do Norte, na capitania de
Pernambuco. Tão perto da terra como estávamos, a fôrça do vento
teria podido, durante a noite, nos fazer correr sério perigo: feliz-
mente, pudemos virar de bordo a tempo, e voltar ao largo. À noite,
caiu chuva torrencial acompanhada de vento, que nos forçou a bordejar
durante alguns dias, quase sem mudar de posição. O vento soprava
furiosamente; o navio jogava com violência. A chuva não cessava;
quase não nos achávamos em segurança em nossos leitos. Os mari-
nheiros eram os que mais sofriam com a umidade; o perigo que
corríamos os obrigava a estarem dia e noite no passadiço; o "rhum"
a custo mantinha-lhes a coragem e a boa vontade. O aspecto do mar,
nas noites escuras, tempestuosas e chuvosas, era assustador; as vagas
barulhentas, alteando-se, vinham bater de encontro ao navio; a
imensa superfície das águas parecia em fogo; milhares de pontos
luminosos, faixas e largos traços de luz brilhavam de todos os lados,
variando de forma e posição a todo instante 18 . Essa luz semelha

(17) KosTER (Henry), Tmvels in Brazil (London, 1816, vol. de ~01 págs. com
mapas e estampas coloridas). O autor, natural de Portugal e filho de pais inglêses,
estêve uma primeira vez no Brasil, em 1810, permanecendo cêrca de ano e melo
entre nós e visitando vários Estados do nordeste. Em fins de 1811 voltou novamente ao
Brasil, estabelecendo-se com propriedade agrícola em Pernambuco (Itamaracá), donde
só saiu em princípios de 181~. Seu livro teve várias edições e constitui documento dos
mais preciosos sôbre a situação daquela parte do Brasil, no comêço do século passado.
Cf. ALFR. DE CARVALHo, op. cit., UI, p. 104 e ss.
(18) A fosforescência do mar é ocasionada ordinàriamente pela presença de
Hnimálculos microscópicos (Protozoários Cistoflagelados), dos quais o mais conhecido é
a Notiluca miliaris Suriray. A luminosidade é porém fenômeno muito difundido nos
animais marinhos, mormente nas grandes profundidades, onde não penetra a luz do dia.
' os vegetais e animais em putrefação o fenômeno deve-se à presença de diferentes
bactérias, ou mais comumente, de cogumelos.
18 VIAGEM AO BRASIL TRAVESSIA DA INGLATERRA AO RIO DE JANEIRO 19

muito a que se produz na madeira apodrecida quando molhada; é resplandeciam com brilho singular, era muito agradável. Os indí-
um fenômeno observado freqüentemente nas florestas. Durante cios da proximidade de terra aumentavam de momento em momen-
essas noites escuras e tempestuosas, a gente põe sua esperança no dia to: encontravam-se sargaços, plantas, troncos de árvores, tôda
seguinte, mas, por muitas vêzes, o dia raiou sem que melhorássemos espécie de coisas semelhantes; finalmente, no dia 14, ao meio-
de situação. _Eram tão nublados e escuros como as noites que os dia, vimos de novo a costa e reconhecemos distintamente à nossa
precediam; o pessoal de bordo não podia esconder os seus temores; frente o Cabo Frio, diante do qual existe uma ilhota rochosa. A
receavam uma tempestade mais violenta. Cada vez que ela parecia alegria se manifestou em todos; estávamos no mar fazia mais de
se anunciar, faziam-se os necessários preparativos para lhe resistir setenta dias, e só nos faltava fazer uma bem curta travessia para che-
à violência, preparativos que causavam inquietações e alarmes extre- garmos ao Rio de Janeiro.
mos aos passageiros. Havíamos cometido o grande êrro de muito nos Pela manhã, o J anus dobrou o Cabo Frio com uma brisa fresca
aproximarmos da costa nas vizinhanças de Pernambuco, pois, durante e favorável; no dia 15 vimos de perto a costa meridional do Brasil,
o inverno da zona tórrida, reinam tempestades em tais paragens. O pois aquêle cabo separa-a da costa oriental. O vento agitava forte-
comandante fêz o seu rumo, tanto quanto lhe permitia o vento, para mente o mar, que, semelhantemente ao das costas da Europa, tomara
alcançar o mar alto, mas se viu constantemente na obrigação de bor- a coloração verde-claro que tem perto de terra. A vista das montanhas
dejar, e, por conseguinte, não avançou muito. Enfim, oito dias depois do Brasil, notáveis pela beleza e variedade de suas formas, pelo ver-
de têrmos avistado terra pela primeira vez, o vento melhorou um dor de suas soberbas matas, iluminadas nessa hora da maneira mais
pouco e permitiu-nos tomar uma rota mais direta- Media-se com variada, pela sua extensão ininterrupta ao longo da costa, causava-
freqüência a fôrça das correntes, precaução necessária para quem navega nos prazer e entusiasmo extraordinários; figurávamos em nossa ima-
tão próximo da costa. Grandes aves marinhas, gaivotas ou procelárias, ginação as cenas novas que iríamos contemplar, e aguardávamos com
pairavam isoladamente sôbre nós, sem que pudéssemos atirar em impaciência a hora do desembarque. As montanhas selvagens em
nenhuma, enquanto as fisálias circundavam o navio, a cuja frente os direção às quais fazíamos vela, apresentam as mais diferentes formas;
peixes-voadores fendiam o ar, e grandes cetáceos jorravam água pelos são muitas vêzes cônicas ou piramidais. As nuvens cobriam-lhes
seus respiradouroslo. os cimos e uma névoa ligeira lhes emprestava um colorido suave
No dia 8 de julho, ao meio-dia, avistamos de novo a costa do muito agradável. Ao meio-dia, por uma brisa muito fraca, o
Brasil nas vizinhanças da baía de Todos os Santos. Ela se nos mos- termômetro à sombra se manteve a 19° Réaumur; desceu logo a 17 ° ,
trava sob o aspecto de lindas montanhas, acima das quais passavam numa calmaria que durou até à noite; um pouco mais tarde, o
nuvens espêssas. Via-se a chuva cair sôbre as praias e, no mar, supor- vento se tornou bastante forte, o navio se moveu ràpidamente, e na
távamos constantemente as alternativas de temporal, chuvas e ventos manhã do dia seguinte achamo-nos em frente da entrada da baía do
contrários. Como em tôdas as tardes, o vento soprava de terra; apro- Rio de Janeiro.
ximávamo-nos da costa de dia e, à noite, ganhávamos o largo: e A calmaria que sobreveio em seguida nos obrigou a ficar no mesmo
dessa forma nunca perdíamos a terra de vista. lugar, enquanto que a agitação do mar nos sacudia rudemente. Está-
No dia 10, o tempo se mostrou bom e o vento favorável. Passa- vamos perto da barra que conduz à real cidade do Rio de Janeiro;
mos os perigosos escolhos chamados Abrolhos ("abra os olhos"); assim, uma porção de pequenas ilhas, algumas surpreendendo pelas suas
pudemos tomar rumo direto a cabo Frio. A 22°23' de latitude sul, formas estranhas, erguem-se ali da superfície das águas, unindo-se
observei uma outra espécie de caravela (Physalia) 20 , muito menor do à massa das montanhas ao longe, o que constitui uma perspectiva
que a espécie comum e sem a coloração vermelha; é, sem dúvida, a muito pitoresca.
que Bosc em sua "Histoire naturelle des Vers" figura na estampa 19. A vinheta que acompanha o segundo capítulo 21 dá dela uma ima-
:ltsse animal apresentava-se em grande número. O calor do meio-dia gem muito verdadeira: os raios de sol refletem-se sôbre o espelho
nessas paragens se tornava cada dia mais forte: bastava uma xícara calmo do mar, que aparece ladeado pela cercadura pitoresca das mon-
de chá para provocar uma abundante transpiração. Em compensação, tanhas. Entre estas, à esquerda, vê-se o Pão de Açúcar, assim deno-
a temperatura das noites, durante as quais a lua brilhava e as estrêlas minado por causa de sua forma, enquanto à direita proemir1a a ponta

(19) Nos grandes cetáceos, como a baleia, a umidade do ar expirado pelas (21) Na edição alemã in-Bvo, com a qual foi conferida a presente tradução,
narinas, situadas na parte superior do focinho, produz, condensando-se, um jato de remete-se . freq_tJ.entemente para as vinhetas_ que ornam o comêço dos capltulos na
vapor, visível a grande distância. s;ran~e edição m-4to. Julgou-se de vantagem nao suprimir essas remissões, não só por maior
(20) Em nota inserta na edição francesa de sua obra, informa Wied que " a f1dehdade ao texto do livro, como pelo interêsse com que serão, provàvelmente,
recebidas pelos estudiosos.
segunda Physalia foi figurada por Lesson, no Atlas da V ovaue de la Ooquille" .
20 VIAGEM AO BRASIL TRAVESSIA DA INGLATERRA AO RIO DE JANEIRO 21
de terra em que fica o forte de Santa Cruz, pequeno, mas guarnecido Nossos marinheiros se viram forçados a trabalhar vigorosamente contra
de numerosos canhões. a fôrça das ondas, sem saber de que lado se achava o Janus. Ajudá-
Às 11 horas, como a brisa se tivesse levantado muito suavemente, vamo-nos o quanto podíamos, esvaziando ainda por duas vêzes o bote
o navio pôs-se a andar de forma apenas perceptível, embora esti- com as nossas botinas; finalmente, tivemos a felicidade de avistar por
vesse com todo o seu pano sôlto. Resolvemos aproveitar essa inação sôbre as ondas o tôpo dos mastros do nosso navio. Depois de muitos
para visitar as ilhotas mais próximas, e travar assim conhecimento esforços e fadigas, o alcançamos : estavam inquietos por nossa chegada.
com a terra do Brasil. O comandante fêz arriar um bote, e levou . Pouco caminhávamos, devido à fraqueza do vento, mas, mesmo
consigo alguns marinheiros; três passageiros, entre os quais eu, o assim, ancoramos à tarde no canal da entrada da baía. Essa entrada
acompanharam. Avançávamos sem perceber que a água entrava ràpi- é imponente e muitíssimo pitoresca. De cada lado se erguem penedos
damente no bote; por ter estado suspenso na pôpa do navio, o calor ásperos e gigantescos, semelhantes aos da Suíça, terminando em cumes
do sol abrira-lhe as juntas. Depois de têrmos penosamente trabalhado arredondados ou pontudos, alguns com denominações especiais; duas
para vencer as vagas, vimo-nos forçados a esvaziar o barco da água que pontas juntas têm o nome de "Dois Irmãos"; uma outra recebeu
o enchia; mas, como nos faltavam os instrumentos necessários para isso, dos inglêses o de "Parrotbeak" ("bico de papagaio"). Mais ao longe
tivemos que nos servir de nossas botinas. A altura das vagas nos se vê o Corcovado, que os habitantes do Rio galgam para desfrutar
escondia a vista do navio; por fim, depois de esvaziarmos duas vêzes
do soberbo panorama de suas cercanias. Depois de ancorados a cêrca
o bote, chegamos felizmente à "Ilha Rasa", assim denominada para
de uma milha inglêsa do forte, nossas vistas se dirigiram para a natu-
distingui-la da "Ilha Redonda" 22 , que é elevada. Mas, ao nos aproxi-
reza grande e nova que nos cercava. As montanhas recortadas em
marmos dessa ilha, reconhecemos que seria impossível nela desembarcar,
cima são parcialmente cobertas de matas verde-sombrio, do seio das
visto como de todos os lados se erguiam rochedos pontudos, sôbre os
quais uma multidão de polipeiros estendia verdadeira rêde de raízes quais emergem, altivos, os coqueiros de caules esguios. De manhã
e ramos. O mar se quebrava com tal barulho e com tanta fúria sôbre e à tarde, nuvens se abaixam sôbre essas enormes montanhas selvá-
êsses recifes, que, cheios de receio, tivemos de nos contentar em admirar ticas, escondendo-lhes os cimos; o mar vem bater-lhes espumante
de longe os belos arbustos copados que cobrem a superfície da ilha, aos pés, fazendo um barulho que ouvíamos de todos os lados, durante
e escutar o canto dos pássaros que se fazia ouvir acima de nossas cabeças. a noite inteira. À luz do sol poente, avistávamos na superfície do
O aspecto dessa ilha tropical era inteiramente novo e interessante para mar cardumes de peixes de vivas côres e cujo vermelho intenso produzia
nós. Nas pontas dos rochedos pousavam, aos pares, uma multidão um singular espetáculo. As algas (Fucus) e os moluscos que apanhá-
de gaivotas de dorso negro, em tudo semelhantes a Larus. marinus 23 vamos foram a nossa ocupação até o cair da noite; o sereno, extre-
dos mares da Europa. Atiramos-lhes várias vêzes sem matar uma só, mamente abundante nessas paragens, expulsou-nos do tombadilho.
p·ois logo ao primeiro tiro tôdas levantaram vôo, girando no ar como íamo-nos entregar ao descanso, quando um tiro de canhão ao longe
andorinhas, e soltando gritos ensurdecedores. Depois de demorarmos nos chamou novamente ao tombadilho. No fundo da baía, precisa-
cêrca de uma hora junto dessa ilha, pensamos em regressar ao navio, mente no ponto em que muitos grandes navios fazem supor que se
que não mais se avistava daí. A nossa situação se tornara crítica, acha situado o Rio de Janeiro, um espetáculo verdadeiramente magní-
pois reinavam nessa barra correntes que desviam insensivelmente os fico nos surpreendeu no meio da noite: era um lindo fogo de artifício.
navios de sua rota, atirando-os à costa. Há muitos casos disso•. Aguardamos o dia seguinte com redobrada impaciência; desde
o raiar do dia levantou-se âncora, e, com vento moderado, avan-
( *) As correntes maritimas da entrada da baia do Rio são muitas vêzes perigosas çou-se em direção ao pôrto. A alegria a todos animava, reunidos no
para os navios qua ndo sobrevém calmaria. Um acontecimento notável do gênero
ocorrera pouco a ntes de minha chegada. Um navio americano entrou e foi Jogo tombadilho. Um bote, trazido de terra por oito remadores índios •,
seguido por um corsário inglês. O americano hesitou muito tempo em sair, mas
enfim se decidiu; o inglês quis se aparelhar Imediatamente para persegui-lo. De nos trouxe dois pilotos, que guiaram o J anus ao seu ancoradouro, em
a côrdo porém com o regulamento do pôrto do Rio, é concedido um prazo de três frente da cidade. tsses marinheiros nos trouxeram belíssimas laranjas,
horas d e a nteced ência a um navio em relação a um inimigo que o persiga. O inglês
foi porta nto obriga do a esperar três horas, findas as quais soltou todo pano, e que nos pareceram tanto melhores quanto, depois de setenta e dois
perseguiu o a mericano. Mas, apena s a tingira as vizinhanças da Ilha Redonda, sobreveio
uma calmaria; a corrente atirou violentamente o corsário contra os rochedos; o navio dias que nos achávamos a bordo, não havíamos tido nenhuma fruta
encalhou, perecendo tôda a tripulação ao passo que o americano já se achava, havia fresca.
muito, ao largo.
(22) No original lê-se " Ilha rotunda ".
(23) A gaivota em questão, como pelo próprio autor foi depois reconhecido (cf. (*) Pelos portuguêses são chamados " indlos " todos os indigenas do Brasil , assim
Beitr. Natw·g. Brasilien s, IV , p. 850 ), é o cha mado gaivotão, L an1s domi nicanus Llcht., como, crrôneamente, é costume chamar-se de indios todos os habitantes primitivos do
comun issi mo na ba ia de Guanabara. vasto cont inente a mericano.
22 VIAGEM AO BRASIL

Vogamos de um lado para outro da estreita entrada, e aproxima-


mo-nos da cidade; os morros diminuíam de altura em cada margem
da baía e avistavam-se bonitas casas de telhados vermelhos, no meio
de pequenas elevações sombreadas por espêsso arvoredo, e dominadas
por coqueiros; embarcações passavam em todos os sentidos pelo pôrto.
Deixamos atrás de nós várias ilhas, entre as quais aquela em que li
Villegagnon construiu o forte Colligny, que ainda tem o seu nome.
Dêste ponto se avista grande parte da baía do Rio, a qual é cer-
cada de altas montanhas, entre as quais a serra dos órgãos se desta- ESTADA NO RIO DE JANEIRO
ca por seus picos, semelhantes aos dos Alpes suíços. Muitas ilhas
lindas se acham espalhadas pelo pôrto, o mais belo e seguro do Novo
Mundo, e cuja entrada é defendida de ambos os lados por fortes A cidade e seus. arredores. Os índios de São Lou-
baterias. De onde nos encontrávamos, via-se, em frente, a cidade do renço. Preparativos para a viagem pelo interior.
Rio de Janeiro, construída sôbre várias colinas a beira-mar. Oferece
ela uma bela perspectiva, com suas igrejas e conventos situados no alto.
O fundo do cenário por trás da cidade é constituído por montanhas
de forma cônica, arredondadas em cima e cobertas de florestas; em-
belezam extraordinàriamente a paisagem, cujo primeiro plano é ani-
mado por grande quantidade de navios de tôdas as nacionalidades. E' O Rio de Janeiro, que na última metade do século XVII contava
aí que reinam a atividade e a vida; canoas e chalupas passam em apenas 2. 500 habitantes com uma guarnição de 600 soldados•, hoje
contínuo movimento, e as pequenas embarcações de portos vizinhos se eleva à categoria das primeiras cidades do Novo Mundo. Como
enchem os intervalos entre os grandes navios das nações da Europa. existam muitas descrições dessa capital, seria entrar em inúteis repe-
Logo que a âncora foi arriada, fomos cercados por embarcações; tições pretender fazer uma descrição minuciosa. Barrow nos deu dela
uma trazia soldados que encheram o passadiço do navio. Empregados uma idéia bastante exata 24 ; mas depois de sua descrição, as coisas
da alfândega entraram a bordo; a comissão de saúde chegou também; mudaram muito. Cêrca de vinte mil europeus, vindos de Portugal
vieram oficiais que examinaram nossos passaportes; finalmente, o com o rei 2 5, se estabeleceram na cidade, daí naturalmente resultando
navio se encheu de uma porção de inglêses pedindo notícias de sua que os costumes do Brasil se modificaram pelos da Europa. Melho-
pátria- A última noite que passamos a bordo, após uma prisão de ramentos de todo gênero foram realizados na capital. Ela muito per-
setenta e dois dias, correu ràpidamente; havia um belo luar, o tempo deu de sua originalidade, tornando-se hoje mais parecida com as
estava levemente quente, mas agradável; ficamos conversando no cidades européias. Todavia, os estrangeiros recém-chegados se surpre-
tombadilho até bem tarde da noite, sem no entanto podermos disfarçar endem com o grande número de negros e mulatos que encontram nas
uns aos outros certa impaciência de ver chegar o dia seguinte. Nossa
imaginação preocupava-se vivamente com o futuro. No meio desses (* ) SoUTH EY, History of Brazil, vol. li. p . 667.
pensamentos, os meus olhos se dirigiram para os mastros do navio que
(2 4 ) JoHN BARRow, V 011aue to c_ochin:<Jhina, Londres, 1806. A obra foi traduzida
nos havia conduzido satisfatoriamente de regiões longínquas; esca- em fra ncês (Paris, 1807, chez Françcns Butsson ) por MALTE-BauN, em catorze volumes,
pando de numerosos perigos, estava tranqüilamente ancorado no com g1·andes acréscimos e correções na parte referente ao Brasil. J. Barrow (1764-1848)
foi secretário do almirantado inglês e grande na vegador, estando seu nome diretamente
pôrto: olhei-o com fundo reconhecimento. O viajante que, durante ligado à fundação da Royal GeograpWcal Soclety de Londres e a várias descobertas
geográfica s. Cumpre não confundir o seu citado livro com uma outra obra de autor
vários meses, faz do Oceano a sua morada, numa dessas grandes má- homônimo, cheia de erros grosseiros e Informações Inexatas, publicada em data muito
quinas móveis, experimenta para com ela um sentimento de gratidão anterior ( 1766). A inadvertência ocorre nos comentários aduzidos ao livro póstumo de
ALFREDO DE CARVALHO (Biblioteca Exótico-Brasileira, I, p. 171) .
quando chega a hora de deixá-lo; diz um adeus cordial ao marinheiro Sabemos o que era a cidade do Rio de Janeiro e seus arredores, ao tempo da
viagem de Wied, através da obra de MARTms (C. F. P. von) e SPrx (Joh. Bapt. von) ,
rude, porém franco, que por tanto tempo lhe prestou auxílio, dese- Reise in Brasilien (München, 1828-81, 8 vols. e 1 atlas in-foi.). Jt.sses dois célebres
jando-lhe no futuro feliz sorte em suas viagens sôbre o móvel ele- naturalistas, acompanha ndo o séquito da arquiduquesa Leopoldina d ' Áustria , primeira
Imperatriz do Brasil, ali aportaram apenas dois anos depois de Wled (Julho de 1817);
mento, tão enganador, a que consagrou a sua existência. ambos realizaram, em seguida, através de todo o leste e norte do Brasil, uma das
mais memoráveis jornadas de finalidade cientlfica. Sôbre sua obra consultem-se as
noticias que precedem a tradução recentemente (1988) editada pelo Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro.
(25) Jt.ste assunto já foi objeto de breve referência nestes comentários (nota 2).
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24 VIAGEM AO BRASIL

ruas, no meio da multidão que as enche; pois a população do Rio


de Janeiro conta maior número de negros e homens de côr que de
brancos.
Várias nacionalidades se dão encontro aqui pelo comércio, e de
sua união saíram novas e numerosas misturas. A classe que domi·
na sôbre tôdas as outras, em tôda a extensão do Brasil, é a dos portu-
guêses da Europa ou "filhos do Reino"; seguem-se os brasileiros
filhos de portuguêses, de origem mais ou menos pura; os mulatos,
provenientes da mistura de brancos e negros; os mamelucos ou mesti-
ços, saídos de brancos com índios; os negros d'Africa (também cha-
mados "muleques"); os pretos crioulos, nascidos no Brasil; os curibo-
cas26, nascidos de negro e índio; os índios puros, os habitantes primi-
tivos elo Brasil, entre os quais denominam-se caboclos os civilizados,
e gentios tapuias, ou bugres os que ainda vivem em estado primitivo.
Tôclas essas variedades ele côres se exibem no Rio ele Janeiro;
só os tapuias aí aparecem isoladamente como curiosidade. Desde que
se põe o pé nas ruas ela cidade, observa-se essa singular mistura de
gentes diversamente ocupadas, e junto delas uma reunião de tôdas as
nacionalidades ela Europa. Inglêses, espanhóis, italianos, são aqui
bem numerosos; chegam presentemente muitos franceses; encontram-
se em muito menor número alemães, holandeses, suecos, dinamarque-
ses, russos. Os pretos, seminus, fazem todos os trabalhos pesados; é
essa útil classe de homens que transporta tôdas as mercadorias do
pôrto para a cidade; reúnem-se para isso aos dez e doze e com
paus resistentes e fortes, carregam os mais pesados fardos, mantendo a
cadência do grupo por meio de cantos ou antes de gritos, pois não se
empregam veículos para êsses trabalhos. Por outro lado, vêem-se car-
ruagens e outros veículos, puxados por muares, rolar nas ruas, em
geral mal calçadas, porém dotadas de passeios laterais; a maioria
delas se cruzam em ângulo reto; as casas só possuem comumente andar
térreo, ou um só andar em cima; todavia, há enormes edifícios em
alguns pontos da cidade, sobretudo nas proximidades do pôrto, na
"Rua Direita", e perto do palácio do rei, que não é magnífico, mas
muito bem situado, descortinando-se dêle uma linda vista sôbre o mar.
Os principais edifícios são as igrejas, cujo interior é geralmente ornado
com magnificência; as festas religiosas, as procissões e outras ceri-
mônias parecidas são freqüentes; é um costume singular em tôdas essas
solenidades atirar, nas ruas, em frente às portas das igrejas, fogos de
artifício com grande estrondo e alarido.
O Rio possui um teatro lírico suficientemente espaçoso; aí se
representam óperas italianas; os bailarinos são franceses. O aque-
duto é uma obra grandiosa 27 ; o passeio à colina, donde êle se lança

(26) " Mamaluccos ", " Muleccos ", "Creoulos ", " Caribocos" é a grafia do original.
(2 7) Completando velhas canallzações cujo Inicio remonta a meados do século
XVII, a construção do aqueduto foi empreendida pelo governador Aires Saldanha
( 1 7 19·172~ ) . que resolvera trazer até próximo do centro da cidade as águas do rio
ESTADA NO RIO DE JANEIRO 25
para a cidade, é muito agradável; daí se desfruta um panorama do
pôrto e da cidade, que se estende num vale onde crescem coqueiros
(Cocos butyracea) 2 B. Para o interior, o Rio é rodeado de mangues
(Rhizophora). Essa vizinhança, e a sua situação geral não devem
ser muito favoráveis à saúde dos habitantes.
O europeu, transplantado pela primeira vez para êsse país equa-
torial, sente-se arrebatado pelas belezas das produções naturais
e sobretudo pela abundância e riqueza da vegetação. As mais belas
árvores crescem em todos os jardins; vêem-se aí mangueiras colossais
(Mangifera indica, Linn.), que dão uma sombra densa e excelente
fruto, os coqueiros de estipe alto e esguio, as bananeiras (Musa) em
cerradas touceiras, o mamoeiro (Carica) , a Erythrina 2 9, de flôres de
vermelho coral, e grande número de outras espalhadas por todos os
jardins pertencentes à cidade. tsses soberbos vegetais tornam os
passeios extremamente agradáveis; os bosques, que formam, ofere-
cem à admiração dos estrangeiros pássaros e borboletas que jamais
viram, entre os quais citarei apenas os colibris de dourada plumagem,
como os mais conhecidos. Os passeios à beira-mar não têm menores
encantos, pela vista dos navios que chegam das mais distantes regiões
do mundo- Não devo também esquecer o "Passeio Público", grande
praça plantada de árvores em aléias, terminando em terraço.
Até agora a natureza realizou mais para o Brasil do que o homem;
contudo, após a vinda do rei, muito se tem feito em benefício do
país. Devem-se contar entre tais benefícios, várias medidas tomadas
em favor do comércio, que é muito ativo e no qual, todavia, em
detrimento dos habitantes, a Inglaterra tem exagerada preponde-
rância, pois os navios portuguêses pagam direitos mais pesados do
que os da Grã-Bretanha. A circulação de consideráveis capitais tem,
contudo, enriquecido muito a cidade; a presença da côrte não contri-
bui pouco para tal prosperidade: ela sustenta grande número de pes-
soas, e os emissários das côrtes européias, bem como os estrangeiros
atraídos ao país por diversos motivos, têm sobremodo espalhado o
gôsto pelo luxo entre as diferentes classes da população. A aparência dos
habitantes, as modas, semelham em tudo às das capitais européias. Já
aí se encontram tantos artistas e artesãos de todos os gêneros e nacio-
nalidades, que em poucos anos pouca coisa faltará no Rio de Janeiro
do necessário ao confôrto da vida. Tem-se aí também em abundân-
cia frutas e outros produtos naturais, devidos à excelência do clima,

Cari~a, fazendo-as correr por grossos canais sôbre arcadas de pedra, desde os altos
do . Silvestre e de Santa Teresa até o Campo de Santo Antônio, hoje La rgo da Carioca.
Mms tarde, s~b o govêrno ~e Gomes Freire de Andrada, o viaduto sofreu completa
reforma, adqmrlndo a arqmtetura que ainda ostenta de duas fileiras de arcadas
superpostas. Cf. Rev. do Serviço do Património Histórico Nacional, N.• 4, pá.gs. 7 a 58.
, ( ~ 8 ) Refere-se P:~vàvelme_nte Wied à palmeirinha a nã, mais geralmente chamada
ca_tolé , Attalea humü•s MartiUs ( = Cocos butyrosa Linn. ), d e fruto comestível e
mmto comum da costa oriental do Rio de Janeiro pa ra o norte.
(29) Erythl'ina, nome genérico do " mulungu " e papilon ácea s afins.
26 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NO RIO DE JANEIRO 27

e que o homem só sabe apreciar e aproveitar quando os obtém a As minhas cartas de recomendação proporcionaram-me benévola
custa do trabalho e da cultura, e quando consegue aperfeiçoá-los. acolhida no seio de várias casas. Devo citar, com profundo reco-
As laranjas, as mangas, os figps, as uvas, as goiabas (Pisidium pyri- nhecimento, o Sr. Westin, cônsul geral da Suécia, o Sr. Langsdorff33 ,
ferum, Linn.), os ananases (Bromelia ananas, Linn.), adquirem aqui cônsul da Rússia, o Sr. Chamberlain34 , "Chargé d'affaires" da Ingla-
excelente qualidade; há muitas variedades de bananas, entre as quais terra e o Sr. Svertskoff, da Rússia. í.sses senhores porfiaram em
a de "São Tomé", e a "banana da terra", que ainda se considera tornar agradável a minha estada no R_io de Janeiro e o meu c~mpa­
melhor para a saúde; ambas são muito nutritivas e saborosas. Entre triota Sr. Feldner35, major de engenheiros, cumulou-me de gentilezas.
as frutas que são vendidas na rua, notam-se os côcos, cujo leite 30 Promoveu-me alguns passeios campestres muito alegres, 9ue me prop~r­
é tão refrigerante; a jaca (Artocarpus integrifolia), cujo sabor é cionaram o ensejo de conhecer os belos recantos do R10. A excursao
dum doce desagradável; as melancias; as amêndoas da sapucaia (Le- mais interessante para mim foi a que fizemos à aldeia de São ~ou­
cythis ollaria, Linn.); as do pinheiro do Brasil (Araucaria). Dizem renços6, a única das proximidades da capital onde se encont~~m amda
que a cana-de-açúcar cresce espontâneamente no país, principalmente habitantes primitivos do país, outrora t~o numer~sos na reg1ao .. Pa_:a
nas imediações do Rio de Janeiro. Os mercados não são menos pro- melhor poder examinar essa gente, sa1mos da c1dade sob a dueçao
vidos de peixes de diferentes espécies, das mais singulares formas e do capitão Pereira, que conhecia muito bem o local- Tomamos uma
das mais belas côres; finalmente, as aves domésticas e as caças de embarcação para atravessar parte da baía. Um belíssimo tempo nos
tôda espécie vêm somar-se a essa abundância. Criam aqui uma raça favorecia; a cada instante, desfrutávamos panoramas deslumbrantes
de galinhas de bico e pés amarelos, que parece proveniente da África. que se renovavam sem cessar e cujo encanto aum:ntava com a diver-
A guarnição, atualmente bastante numerosa, mantém igualmente mui- sidade e vivacidade de colorido que tomavam os lmdos tufos de vege-
tos homens. A diferença entre os soldados vindos da Europa, depois tação, espalhados pelas margens da baía.
de terem servido na Espanha sob as ordens de Wellington, e aquêles Desembarcamos a pouca distância de São Lourenço, e pusemo-
que não saíram do Brasil, impõe-se à primeira vista- Aquêles têm nos a galgar pequenos morros, por um caminho sombreado por lin-
um aspecto todo militar; êstes são vagarosos e amolentados pelo calor das plantas; lantanas (Lantana)3 7 com suas flôres côr de fogo, vermelho
do clima; acabado o exercício, mandam os negros levar as suas armas carregado ou côr-de-rosa; helicônias (Heliconia) e outros arbustos de
para casa. aspecto igualmente gracioso, formam aqui moitas ce~adas. N~ ~lto
Não se espere uma descrição completa dessa capital e de seus da colina, as cabanas dos índios se espalham no me10 de laranJeiras,
habitantes da parte dum viajante que aí teve apenas pequena perma- bananeiras e outras plantas carregadas de deliciosos frutos. Aqui
nência. A muitos juízos precipitados e falsos se expõem os que pre-
tendem fazer pronunciamentos apressados, sem ter podido amadurecer (33) O Barão de LANGSOORFF, que estêve no Brasil nada menos de três vêzes,
suas idéias em longa observação, correndo, assim, o risco de tornar fêz longa permanência entre nós e merece menção muito esp~ial, já pelo espontâneo
interêsse que sempre votou ao estudo de nossa Natureza, Já por. ter cbef1ado, às
suspeita a sua veracidade. Deixemos, pois, a tarefa de descrever essa expensas da Rússia, uma expedição de larga enverg~~;dur~ pelo Bras1l Central. D~ssa
capital aos europeus que a puderam estudar mais à vontade e que, sem expedição, que transcorreu cheia de dramáticas penpéCJas _ e de lances até trá!!'ICOS,
deixou-nos o seu desenhista, Hércules Florence, viva descrlça!>, prlmelra~ente p~bli~da
dúvida, não deixarão esperar muito pelo fruto de suas observações3 1 • pelo Visconde de TAUNAY no tomo XXXVIII (1875) da Re1nsta do. l?_tshtuto Htst6nco,
Geogr. e Ethnogr. do Brasil. A êsse respeito, além do livro de Estevao Bourroul sôbre
Cheguei ao Rio durante o inverno da zona tórrida; a tempera- Hércules Florence, consulte~e o artigo de H. von IHERJNG no tomo V d a Rev. do
tura lembrava a dos meses mais quentes do nosso verão. Esperava Museu Paulista e 0 excelente resumo de RoooLFO GARCIA no volume I como introdução ao
Dkcion. Hist., Geograf. e Etnogr. do Brasil (1922), pp. 884-5.
ver cair chuva durante êsse inverno dos trópicos, mas, com grande (34) HENRY CHAMBERLAIN, cônsul da Inglaterra no Rio de Janeiro (1815-1829),
alegria, era um êrro da minha parte, não choveu: o que demonstra e pai do "lieutenant Chamberlain ", que se tornou especialmente credor de nossa estima
e gratidão por ter viajado pelo Interior do Brasil e, na qualld';'-de de deseruusta, deixado
o pouco fundamento da opinião vulgar de que, na estação fria da um álbum hoje raríssimo de Wiews and customs of the C•t11 and Ne>ohbourhood of
zona tórrida da América, chove constantemente3 2 • Rio de J~neiro (1819-20).' Dêste álbum há uma tradução brasileira feita por RUBENS
BoRBA DE MoRAIS e editada pela Livraria Kosmos (1948).
(85) WILHELM C. G. VON FELDNER (1772-1822). Mineralogista alemão, tinha entra.do
( 80) " Leite " está aqui pelo que usualmente se conhece por "água-de-eôco ", confusão em 1803 ao serviço de Portugal; admitido no exército, como tenente do estado-mawr
em que incorrem todos os autores estrangeiros. A água-de-eôco é um liquido levemente de artilharia passou-se para o Brasil em 1810. Fêz entre nós importantes descobertas
adocicado, de esquisito sabor, que enche completamente a cavidade do albúmen dos mineralógicas: e deu conta de suas peregrinações num llvro publicado após a sua morte
frutos verdes do coqueiro dito da praia (Cocos nucifera Llnn.) e ao depois gradativamente - Reisen durch mehr. Prov. Brasiliens, 2 vols. peq. (Lelpzlg, 1828), de que alguns
desaparece, por reabsorção. O leite-de-eôco, êsse é uma emulsão do óleo obtido pela trechos foram traduzidos pelo insigne publicista ALFREDO DE CARVALHO. Cf. a Biblioteca
expressão do albúmen, e de aspecto Idêntico ao do leite de vaca. A propósito, leia-se Exótico-Brasileira, vol. 11, págs. 188-9.
o que sôbre o mesmo assunto escreverá adiante o próprio autor. (86) Colônia de índios fundada pelo cacique Ara.ribóia, chamada depois Martim
(81) Veja-se a nota 24 supra. Afonso de Sousa. Faz hoje parte Integrante da cidade de Niterói, onde constitui
uma paróquia e bairro dos mais populosos.
(82) Esta versão é entretanto verdadeira para tôda a faixa litorânea do nordeste
brasileiro inclusa. a da Bahia. (37 ) Vide nota (68), adiante.
ESTADA NO RIO DE JANEIRO 29
28 VIAGEM AO BRASIL
O francês Jean de Léry 4 o e o alemão Hans Staden41 deram-nos, em
um paisagista teria motivos para aperfeiçoar o seu pincel, diante da suas interessantes relações de viagens, uma descrição fidelíssima do
rica vegetação dos trópicos e das cenas campestres duma natureza estado, dos usos e costumes dos Tupinambás; são tanto mais instru-
sublime. Os moradores estavam ocupados, em suas cabanas, na fabri- tivas quanto retratam ao mesmo tempo tôdas as tribos dos índios
cação de vasos com uma argila cinzento-escura, que toma côr aver- civilizados que vivem ao longo do litoral, e que os portuguêses deno-
melhada quando levada ao fogo. Fabricam com elas grandes vasos uti- minam "índios mansos". Southey em sua "History of Brazil", livro
lizando-se apenas das mãos, sem empregar a roda, e alisam-lhes a cheio de boas informações, e Beauchamp, em sua "Histoire du
superfície por meio de pequenas conchas que umedecem com a bôca. Brésil", obra romanesca, aproveitaram-se dessas fontes. Vascon-
Velhos e moços estavam sentados no chão. Os homens trabalham a cellos, em suas "Notícias curiosas do Brazil"•, divide em duas classes
serviço do rei na confecção de vasilhas. A fisionomia da maior tôdas as tribos indígenas do Brasil oriental, os civilizados ou domes-
parte dêsses índios trazia ainda os traços distintivos de sua raça; outros, ticados, "índios mansos", e as hordas selvagens, "Tapuias". Os pri-
pelo contrário, pareciam apresentar uma origem já mestiça. Os carac- meiros, por ocasião da descoberta do país pelos europeus, só habitavam
teres distintivos da raça brasileira, que observei em São Lourenço pela o litoral; dividiam-se em numerosas tribos, que não diferiam muito
primeira vez, e que depois sempre verifiquei são as seguintes: estatura entre si pela língua, usos e costumes. Todos êles engordavam seus
média, muitas vêzes medíocre; corpo bem proporcionado, reforçado e prisioneiros de guerra, matavam-nos nos dias de festa, com o "tacape"
musculoso nos homens; pele avermelhada ou pardo-amarelada; cabelos ou "iverapema"42 , maça ornada de penas, para comê-los em
duros, compridos, espessos, lisos, negro carregado; face larga bastante seguida. Citam-se entre essas tribos os Tamoios) os Tupinambás)
ossuda; olhos geralmente oblíquos, e, no entanto, o conjunto do rosto os Tupiniquins, os Tabajaras) os Tupis) os Tupiguás) os Temiminós)
bem feito, traços fortes, lábios comumente grossos; mãos e pés peque- os Amoigpiras, os Araboiaras) os Rariguaras) os Potiguares) os Cari-
nos e de forma delicada; barba ordinàriamente pouco basta e dura. jós) etc. Como a língua dêles era falada ao longo de todo o litoral,
O pequeno número de índios que moram nesse lugar é o resto da denominava-se "língua geral" ou "matriz". Os jesuítas, com especia-
antiga e numerosa gente que povoava esta região; não era, entre- lidade José de Anchieta, deram-nos dela uma gramática muito com-
tanto, nesse lugar, propriamente falando, que êles viviam. Originà- pleta... Se bem que todos êsses índios estejam hoje civilizados e
riamente, o Rio e suas circunvizinhanças eram povoados pela belicosa falem português, compreendem ainda algumas palavras dessa lín-
tribo dos "Tamoios". ~stes, expulsos em parte pelos "Tupin-Imba") gua, e alguns velhos ainda estão de posse dela, mas dia a dia se
(chamados Tupinambás pelos portuguêses), uniram-se em seguida a vai ela perdendo.
êsses índios contra os portuguêses, e fizeram, juntos, aliança com os Dela derivam todos os nomes de animais, plantas, rios, que se
franceses; mas, expulsos êsses europeus em 1567 pelos portuguêses, lêem nas relações de viagens pelo Brasil. Como era falada de São Paulo
os índios que tomaram o partido dêles foram em parte exterminados e (*) "Noticias antecedentes, curiosas, e necessárias, das coisas do Brasil", em
em parte repelidos para as florestas. Se se dá crédito a uma tradição Padre Simão de Vasconcellos, "Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, etc.".
(**) Pater JosEPH DE ANCHIETA, Arte da Língua brasilica. Lisboa, etc.
pouco verossímil, êsses Tupinambás foram forçados a recuar através
das matas até às margens do rio Amazonas, onde se estabeleceram. (40) JEAN DE LÉRY, adepto da reforma instituida por Calvino, veio para o Rio
de Janeiro em fins de 1556, a convite de Villegaignon, como ministro da nova seita.
Com efeito, é certo que se encontra um resto dessa tribo numa pequena Havendo privado longo tempo com os Tupinambás do Rio de Janeiro. aliados então
ilha situada na confluência dêsse grande rio com o Madeira, onde está aos franceses , à sua volta para a Europa redigiu o fruto de suas observações na célebre
Histoire d'un Voyaue tait en terre du Brésil, autrement dite Amerique, salda pela primeira
a povoação de Tupinambara3 8, que, depois, deu origem à de Tapa- vez a lume em 1578 (La Rochelle). Dentre as numerosas edições dêsse livro, de que
foram feitas traduções para as principais llnguas cultas, a publicada por Payot (Paris,
jós39: por aí pode-se avaliar a extensão imensa dessa nação indígena •. 1927), é uma das mais recentes e bem cuidadas. Cf. sôbre o assunto as notas de
Eduardo Tavares na "Bibl. Exótico-Brasileira", vol. III, p. 195 e ss.
(41) HANs STADEN, natural de Homberg (Alemanha, Hessen). que já houvera
(*) Segundo o Padre d' Acunha, citado por La Condamine, p. 137, as tribos dos
em 1548 visitado ràpidamente o nordeste do Brasil (Pernambuco e Paraiba) a serviço
Tupinambás e outros indios do litoral que têm afinidades com êles, se estendiam pelo de Portugal, conseguira no ano seguinte engajar-se numa expedição militar mandada pela
Brasil inteiro; é o que provam os nomes tirados de sua llngua, encontrados em tôda Espanha ao Rio da Prata, mas que, em virtude de um naufrágio, arribara em Santa
a costa oriental, ao longo do rio Amazonas, e mesmo no Paraguai, onde Azara lhes dá Catarina. Passando-se depois para São Vicente, viera a cair prisioneiro dos Tupinambás,
o nome de Guaranis ("Voyage dans l'Amérique méridionale ", tomo 11, p. 52). sob cujo cativeiro estêve durante cêrca de três anos, ao cabo dos quais conseguira escapar.
retornando finalmente à Europa. O que foram as suas aventuras durante essa longa
Os vocábulos de llngua guarani, citados por êsse viajante, apresentam algumas odisséia, contou num livro curioso, Geschichte eines Landes America uennant (1557), de
diferenças com a "lingua geral", mas ao mesmo tempo vários pontos de semelhança, que traduções existem nos diferentes idiomas. Alberto Lõfgren dêle publicou em 1900
de sorte que êsses dois povos parecem ter grande afinidade entre si. uma primeira tradusão brasileir~, enriquecida de notas de Th. Sampaio; pela Sociedade
Hans Staden, de Sao Paulo, fOI dada à estampa uma capricbada edição, prefaciada e
anotada por Francisco de Assis Carvalho Franco (São Paulo, 1942). Uma edição condensada
(88) Refere-se indubitàvelmente Wied, embora em têrmos relativamente vagos, foi publicada, mais tarde, por Monteiro Lobato (Cia. Edit. Nacional).
a "Tupinambarana", lugarejo e larga ilha formada pela confluência de rios na margem (42) Grafados " Tacapé" e "lwera-Pemme" no original.
direita do Rio Amazonas e a leste do baixo Madeira.
(89) No original " Topayos", que tudo leva a crer corresponda a Tapajós.
30 VIAGEM AO BRASIL ESTADA O RIO DE JANEIRO 31

até o Pará, nela se encontram tôdas as denominações, principalmente Quando Mem de Sá46 fundou São Sebastião (Rio de Janeiro),
de animais, empregadas pelos autores, sobretudo Marcgrave em sua em 1567, ~ando_u .cons~ruir a aldeia de São Lourenço para os índios
"História natural". Todavia, a adoção dessas denominações locais que se hav1~m d1stm~1do. nas lutas contra os franceses e os Tupinam-
nas obras sistemáticas causaram lamentáveis erros, pois, embora sejam bás, seus ahados, contnbumdo para a expulsão dos últimos; colocou-os
entendidas em vasta extensão da costa, sofrem grandes modificações, sob a direção de um certo Martim Afonso. Os jesuítas introduziram aí
conforme se verá no decorrer desta narrativa. Eis alguns exemplos de os ·:coitac~ses:· recém-convertidos, par~ de novo povoar êsses lugares.
palavras e nomes dessa língua: "jauarété" (Felis onca, Linn.), "taman- Assim os mdws que atualmente habitam São Lourenço são descen-
duá" (Myrmecophaga); "pecari" (porco); "tapiirété" (Tapirus ameri- dentes dessa tribo.
canus, Linn.); "cuia" (cabaça)•; "tapiia" 43 (povo bárbaro ou ini- Voltemos às pacíficas habitações de São Lourenço. Um engra-
migo), de que depois proveio "tapuia"; "panacum" (cêsto alongado); dado de paus, cujos intervalos são cheios de barro, forma as paredes
"tinga" (branco); "uassu" ou "assu" (grande); "miri" (pequeno). das cabanas, sendo que o teto é coberto de fôlhas de coqueiro. O
Os portuguêses adotaram e conservaram os nomes indígenas dos vege- mobiliário é dos mais simples. "Esteiras" de caniço colocadas sôbre um
tais comestíveis do país e dos alimentos que com êles se preparam. estrado de varas fazem as vêzes de cama; vêem-se algumas vêzes
Comem por exemplo o "mingau" das antigas tribos do litoral. "rêdes" feitas de cordas de algodão entrelaçadas, outrora usadas pela
Os nomes de animais citados por Azara44 em sua História natural tribo. ~sses dois modos de dormir são também adotados pelos portu-
do Paraguai, provam que essa língua era muito espalhada no Brasil guêses de classe inferior em todo o Brasil· Grandes vasos de barro,
e nos países vizinhos; são tirados do dialeto dos guaranis, mas em chamados "talhas", onde se conserva a água fresca, se encontram tam-
parte coincidem exatamente com os da língua geral. bém aqui, como aliás em todo o país; são feitos duma argila porosa
A primeira das divisões dos índios, segundo Vasconcellos, tendo através da gual a água filtra lentamente, de sorte que, evaporando-se
mudado completamente o seu modo de viver, perdeu necessàriamente na superfície externa do vaso, refresca o interior. Uma casca de
o seu caráter original. O mesmo não se deu com os tapuias; êstes côco, provida dum cabo de madeira, serve para tirar água da talha.
ainda se conservam no seu primitivo estado. Habitando o interior das Alguns potes de barro para a cozinha ("panelas"), cuias ou cabaças,
grandes florestas que orlam o litoral, e assim furtando-se aos olhares que fazem as vêzes de pratos, diversas bagatelas para vestimenta e
e à influência dos europeus que chegaram à terra dêles, viveram em ornamentação, algumas vêzes o fuzil ou o arco e as flechas para a
mais segurança e tranqüilidade que os seus irmãos que habitavam à caça, compõem o resto dos pertences.
beira-mar, com os quais, como com os europeus, estavam sempre em . Todo êsse povo vive em parte da mandioca (Jatropha manihot,
guerra. Dividem-se os tapuias em várias tribos e, o que é notável, Lmn.) e do milho que plantam. Não descreverei essas plantações,
tôdas elas falam línguas diferentes. Uma única, excessivamente es- porque Koster47 e Mawe 48 já deram os informes suficientes sôbre o
quiva, a dos Uetacás•• 45 , ou Goitacás, como a chamavam os portu- assunto. Além dessas duas plantas, que constituem a base da alimen-
guêses, habitava a costa oriental entre as tribos da língua geral, mas tação de tôdas as populações do Brasil, cultivam-se, em volta das casas,
falava um idioma absolutamente diferente vivendo em estado de pimenteiras. Várias espécies de Capsicum, das quais uma, a mala-
constante hostilidade para com essas, e dêles temidas tanto quanto gueta, tem frutos alongados e vermelhos, enquanto que a outra, chamada
dos europeus. Finalmente, porém, os jesuítas que de tal modo se tor- "pimenta de cheiro", os tem redondos vermelhos ou amarelos. Vêem-se
naram capazes de civilizar essas tribos selvagens, conseguiram, pela também moitas de mamoneira ("baga")•, de fôlhas recortadas e com
paciência, doçura e perseverança, dominar também o caráter intratável (*) Denominada "carrapato" em Pernambuco, segundo KOSTER, pãg. 376 (tomo 11,
dessa tribo. pâg. 287).
(46) No original lê-se "Mendo de Sã".
(*) As cuias são porções da casca de uma dada espécie de "cabaça" que quando . (47) HENRY KOSTER, Travels in Brazil, London, 1816, pp. I-IX, 1-501, com 8 pl.
vazia e limpa, fornece pratos e tigelas muito leves para com elas se comer 'e beber. colon_das, 1 plaJ?ta e I mapa. O autor velo ao Brasil em busca de melhoras para
Se fica Inteira e ôca e tem a forma duma garrafa, chamam-na de "cabaça". t!.sse uso a saude e residiu longos anos em Pernambuco, onde se ocupou de trabalhos agrfcolas.
e a palavra "cuia" derivam, como ficou acima dito, da llngua geral; um e outra foram Aportou entre nós nos fins de 1809, e em nosso país faleceu em começos de 1820
adotados no Brasil. depois de haver voltado por duas vêzes à Inglaterra. Observador consciencioso ~
(**) LÉRY, pãg. 15. benévolo de nos~ gente e de nossas. coisas, seu livro é um dos mais preciosos com
que c!?nta a hibllografla xeno-braslle•ra. Teve novas edições em Idioma Inglês e
traduçoes em francês e alemão; dela foi publicada também uma primeira versão portuguêsa
(43) No original "Tapyyia ". na r Rev. do Inst. Arqueol. e Geogr. Pernambucano (entre os n.os 51 e 90, salteadamente):
(44) Don FELIX DE AzARA, Voyages dans l' Amérique Méridionale, publicados po A. C. de A. Pin~entel. Em data mais recente, veio a lume a tradução completa
~Ba 0 ~ ~a, ~m prefãc10 _e notas de Luis da Câmara Cascudo (Cia Edlt Nacional
ras• 1 •ana , vo.
pelos manuscritos do autor C. A. WALCKENAER e seguidas da Histoire Naturelle de•
oiseaux du Paraguay, tradução do espanhol por Sonnini, Paris, 1809, 4 vols. e 1 atlas. 1 221, Sao Paulo, 1942). · · •
(45) Na edição de Payot (Paris, 1927), corresponde à página 94. (48) Veja-se a nota 3 dêste comentário.
32 VIAGEM AO BRASIL
ESTADA NO RIO DE JANEIRO 33
sementes de onde se espreme um óleo para as necessidades caseiras.
O Sr. Sellow, nosso botânico, achou junto às cabanas dos índios uma que a natureza ostenta as suas riquezas. Graças ao apoio do govêrno,
espécie de agrião (Lepidium) selvagem, cujo gôsto faz lembrar o de cujas disp_osições liberais tive a prova na benévola atitude para
do mastruço da Europa; contam os índios que é um remédio garantido conosco do ministro Conde da Barca, pude ativar os preparativos
contra as doenças do peito. Enquanto o Sr. Sellow colecionava nos de minha viagem. Obtive um passaporte e cartas de recomendação
campos, eu comprei aos índios, que os tinham presos em gaiolas de dirigidas aos capitães-gerais das províncias, concebidas em têrmos tão
madeira, uns lindos passarinhos, entre outros o tangará violeta e lisonjeiros para mim, que duvido se tenham dado iguais aos Vlapn-
alaranjado (Tanagra violacea), conhecido por "gaturama" 4 9 nessa zona. tes que me precederam. As autoridades eram solicitadas a nos prestar
Após essa curta, mas interessante, estada em São Lourenço, desem- auxílio e proteção tôda vez que o necessitássemos e a fazer chegar
barcamos próximo da casa de campo do Sr. Chamberlain, situada nossas coleções ao Rio, fornecendo-nos, quando pedíssemos, soldados,
numa pequena enseada cercada de rochedos. Está construída no guias, carregadores e animais de carga. Dois jovens alemães, Srs. Sel-
meio de encantadoras laranjeiras e cacaueiros (Theobroma), cujos low e Freyreiss, que conheciam muito bem os costumes e a língua
frutos crescem unidos ao caule; mangueiras (Mangifera indica, Linn.), da região, prometeram acompanhar-me na minha viagem ao longo da
que ultrapassam em altura os nossos maiores carvalhos, sombreiam costa oriental, até Caravelas, auxiliando-me nas pesquisas. Leváva-
uma fresca fonte que brota de estreita garganta, formando aí um mos dezesseis muares, carregando cada um duas caixas de madeira
retiro delicioso e ameno. As margens dêsse riacho, admiramos a diver- cobertas de couro cru, que as abrigava da chuva e da umidade.
sidade de formas dos frutos selvagens, síliquas, vagens, cápsulas e Tomamos a nosso serviço dez homens, uns para tratar dos animais de
nozes, e entre os quais é particularmente abundante o da paineira, carga, outros como caçadores. Todos bem armados, seguimos via-
árvore cujo tronco é inteiramente coberto de espinhos. E' nessa árvore gem, providos de munição suficiente e de todos os pertences necessários
que vive, conforme observou o Sr. Sellow, o soberbo e brilhante para colecionar exemplares de história natural, parte dos quais eu
Curculio imperialis, um dos mais belos insetos do Brasil, e cujas notá- trouxera desnecessàriamente da Europa.
veis metamorfoses serão fielmente descritas por êsse culto viajante.
Nas montanhas vizinhas, erguem-se, próximas à costa, muralhas de
penedos extremamente altas, onde crescem imensos cactos e a Agave
foetida 50 ; aos seus pés crescem bosques cerrados, cuja coloração escura
oferece os mais pitorescos efeitos.
Regressando ao Rio, visitamos também a "armação das baleias",
ou o estabelecimento de pesca da baleia. :esses cetáceos são muito
numerosos ao longo da costa do Brasil; atualmente, porém, perse-
guem-nos sem tréguas. Outrora, como se vê da descrição de Léry,
êles vinham até o interior da baía do Rio de Janeiro 51 •
Por mais agradável que fôsse para mim uma longa permanência
na capital, não entrava porém nos meus planos estacionar aí por
muito tempo, pois nos campos e nas florestas, e não nas cidades, é

(49) Tanaom (Eupltonia) violacea (Linn.). O passarinho, que o autor voltará


muitas vêzes a referir. é ainda conhecido vulgarmente por gurinl1atá (do tupi guira-enguetá), de Todos os Santos, próximo à ilhota de Madre de Deus, reg1ao onde é sabido haverem
vem-vem (Ceará), povi (Goiás), tieté, bonito, etc. A espécie, representada por duas varie- funcionado outrora numerosas armações. (Cf. FERNÃo CARDIM, Tratados da T erra e
dades geográficas, ocorre em todos os estados do Brasil, à exceção talvez de Mato Grosso; Gente do Brasü, Rio, 1925, J. Leite, p. 288; J. de LÉRY, Voy. au Brésil, Paris, 1927,
outras há, a ela muito afins, e por isso eventualmente conhecidos pelos mesmos nomes J. Payot, p. 137).
vulgares. Atualmente a pesca da baleia é praticada quase que exclusivamente nos mares
(50) Refere-se o autor à piteira (Fourcroya uioantea Vent.), da famllia das árticos e antárticos, principalmente pelos noruegueses, a quem se deve 0 destruidor
Amarilidáceas. invento do arpão-granada (Svend Foyn, 1868). Nos mares do norte ela culminou
(51) A pesca das baleias, de que uma meia dúzia de espécies, pertencentes a em 1905, qua~do 24 companhias: aparelhadas de. 63 navios, capturaram nada menos
noda menos de quatro ou cinco gêneros (Sibbaldus, Balaenoptera, Megaptera, Eubalaena) de 2 671 espéCJmens, que produziram 83 000 barris de óleo. Atualmente a indústria
desenvolve-se especialmente nos mares an.tárticos, onde a produção de 1928-1929 orçou
freqüenta os nossos mares, foi nos primeiros tempos uma indústria extremamente rendosa pela. apavorante cifra de 1 600 000 ba~ns.. (Cf. GuNNAR lsACHEN, em Geograpltical
em numerosos pontos da costa brasileira. Mas, se ao tempo de Wied era lícito R~v•ew_, XIX, PP· . 387-408).. Sôbre o histórico da pesca da baleia no Brasil, além da
exprimir-se como êle o fêz a respeito da progressiva escassez daqueles cetáceos, pode Hutórta do Brastl de Frei VICENTE DO SALVADOR (ed. de 1938, p. 397) e do extenso
dizer-se que hoje entre nós está completamente extinta a sua pesca regular. Não obstante, trabalho do Almi~ante Alvo;s ~âmara na Rev. Soe. Geogr. do Rio de Janeiro (1889,
de tempos em tempos encalham às nossas costas alguns espéclmens do gigantesco V, pp. 17-48), veja-se o rmnuCJoso estudo de WALTER ÁLVARES no Jornal do Comércio
mamífero. Tive, não há muito tempo, ocasião de presenciar um fato dêstes na baia do Ri_o de Janeiro (n.• de 21 de Ag. de 1988) e o pequeno artigo da D.A.C. no Estado
de São Paulo (1989, 27 Jan.) .
III

VIAGEM DO RIO DE JANEIRO


A CABO FRIO

Praia Grande. - S. Gonçalves. Rio Guajindiba.


Serra de Inoã. - Lago e Freguesia de Maricá. -
Gurapina. - Ponta Negra. - Saquarema. - Lago Ara-
ruama. - S. Pedro dos lndios. - Cabo Frio.

Após terminados os últimos preparativos em S. Cristóvão, vilarejo


nos arredores do Rio, acomodamos os burros num grande barco.
Deu-nos trabalho insano convencer êsses animais, proverbialmente
obstinados, a saltar para a embarcação, o que em parte se explica
pela falta, no país, de instalações apropriadas ao embarque dos ani-
mais de carga.
Partimos de São Cristóvão a 4 de Agôsto e atravessamos a grande
baía do Rio a caminho da povoação de Praia Grande 52, onde che-
gamos à meia-noite. Todos os habitantes estavam recolhidos: encon-
tramos, porém, alguns negros, que tinham acampado em plena areia,
ao ar livre; uma pequena fogueira espalhava débil calor, e ape-
nas leve roupa de algodão cobria-lhes os corpos nus, protegendo-os
muito mal contra o abundante sereno que então caía. Dirigimo-nos
imediatamente a uma espécie de hospedaria, cujo dono, embrulhado
em uma capa, e ainda estremunhado, nos veio abrir a porta. Foi
preciso permanecer aí todo o dia seguinte, porque a nossa "tropa" (no-
me dado a um certo número de animais de carga que viajam em
conjunto) só conseguiu desembarcar tarde do dia, devido à pouca
profundidade da água. Só novamente à fôrça de pancada foi possível
obrigar os animais a saltarem do interior do barco, serviço que entre-
tanto souberam bem conduzir os nossos dois "tropeiros", Mariano e
Filipe, ambos moradores de São Paulo, capitania situada mais ao

(~2) Hoje absorvida pela cidade de Niterói.


36 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 37
sul, onde há muito capricho na criação de muares. Acompanhados na vida. o prazer de uma dessas excursões que eu até então só conhecera
por alguns amigos, que amàvelmente quiseram assistir à nossa par- pelas interessantes descrições de Le Vaillant56 • Nossos cobertores e a
tida, deixamos Praia Grande a 6, na esperança de fazer uma boa bagagem estavam todos molhados pelo orvalho; mas os primeiros raios
jornada; cedo, entretanto, verificamos ser muito mais tedioso e incô- de sol logo os secaram. Após o almôço, cada qual tomou da espingarda
modo viajar com animais carregados, do que conduzir bagagens em e, bem provido de munição, foi explorar a bela região vizinha. Anima
carros. Os contratempos aumentaram pela dificuldade de conseguir os bosques uma multidão de pássaros que iniciavam os cantos matinais.
que muitos dêles, desacostumados à sela e aos fardos, transportassem Se, de um lado, nos deliciávamos com as notas melodiosas de uns,
uma carga penosa. Por isso, mal iniciáramos a marcha, quando, para de outro tínhamos a atenção chamada pela vistosa e brilhante plumagem
nosso sério aborrecimento e não pequena diversão dos espectadores, de outros. Num brejo próximo logo consegui uma franga d'água (Ga.Z-
quase todos os burros, no mais ridículo dos espetáculos, começaram linula), diversas espécies de tangarás (Tanagra) 51 de lindíssima pluma-
a sacudir fora as bagagens. Vários o conseguiram, enquanto outros gem, e um maravilhoso beija-flor. O sol se fêz mais opressivo e eu
escaparam por entre as macegas, de modo que levamos algumas horas voltei para o nosso pouso. Cada caçador então mostrou o que caçara.
antes que os nossos tropeiros pudessem restabelecer a ordem e con- O Sr. Freyreiss, entre outros pássaros, trouxe a soberba Nectarinia
tinuar o caminho. Isso impediu que fizéssemos grande avanço nesse azul (Certhia cyanea, Linn.)58.
dia 53 . Carregamos então a nossa tropa. Embora os animais não se tives-
Cêrca de duas horas depois, chegamos a um lindo campo emol- sem ainda aquietado e algumas vêzes alijassem as cargas, melhoravam,
darado por frágeis mimosas, de fôlhas penadas, onde paramos a fim contudo, gradualmente. A estrada seguia entre montanhas, cuja magní-
de nos habituarmos a acampar ao ar livre, se bem que houvesse habi- fica vegetaçã~despertava grande admiração; plantações de mandioca,
tações nas vizinhanças. Protegendo a bagagem da umidade da noite, canas-de-açúc r, laranjeiras, cercando as casas de arvoredos, alterna-
colocamo-la em semicírculo e adiante estendemos as peles para dor- vam com pe uenos brejos. Espêssas touças de bananeiras, mamoeiros,
mir; acendemos um bom fogo no centro. Cobrimo-nos com grossos altos e esbelt s coqueiros adornavam as habitações esparsas, enquanto
cobertores, fugindo ao forte sereno dêsse clima; os sacos de viagem várias e policr micas flôres desabrochavam sob as moitas baixas; entre
serviram de travesseiros. Nossa frugal refeição de arroz e carne dentro outras a Eryt rina vermelho-escarlate, com suas longas e tubulosas
em pouco estava pronta. Ceamos sob a constelada abóbada dos flôres, e uma Bignonia de flôres infundibuliformes, a que o Sr. Sellow
trópicos; a alegria sazonou a comida, e os lavradores das cercanias, deu o nome de coriacea. No meio dêsses arbustos se erguiam o
que voltavam à casa, observaram atentamente aquêle estranho bando Cactus, a Agave foetida, e soberbas touceiras de um caniço de fôlhas
de ciganos• 54 . A fim de nos acautelarmos contra ladrões, se é em leque. A Canna indica Linn.59, de lindas flôres vermelhas, cresce
que algum poderia aparecer, estabelecemos uma sentinela regular. à margem da estrada, às vêzes até dez ou doze pés de altura; mas o
Meus cães de raça alemã prestaram grande serviço, porque, ao menor forasteiro ainda mais se surpreende com a Bougainvillea brasiliensis6o,
ruído, corriam, latindo corajosamente, em sua direção. Estava bonita
a noite, e contemplamos muitas vêzes o esplêndido firmamento: o (56) FRANÇOIS LE V AILLANT (1753-1824). Célebre ornitólogo francês, nascido em
caburé 55 , pequena coruja bruno-avermelhada, piou entre as moitas; Paramaribo (hoje capital da Guiana Holandesa), a quem se devem importantes publicações,
na sua maioria Ilustradas magnlficamente, com estampas coloridas. A lnterêsse de seus
nos charcos em derredor cintilavam insetos luminosos e as rãs coaxavam estudos prediletos viajou através da África meridional ( 1781-1785), deixando dela
a descrição de que nos fala Wied e mais uma grande monografia das aves da região.
melancolicamente. A manhã seguinte ofereceu-me, pela primeira vez Não obstante o valor de sua contribuição, apontam os críticos muitas falhas e defeitos
em suas obras.
(*) Deve haver ciganos no Brasil, visto como Koster a êles faz referências ( pág.
(57) Os tangarás a que nesse momento se refere Wied não são os mesmos pássaros
899); eu, contudo, nunca vi nenhum. que o nosso povo, a exemplo dos primeiros cronistas (v. gr. CARDIM, Tratado, ed.
J. Leite, 1925, p. 58), conhece por êsse nome. Jtstes últimos se Incluem na familla
dos Pipridas e não devem ser confundidos com os que, sob aquela mesma apelação,
(~3) Com êstes contratempos devem estar bem familiarizados os que ainda hoje ~pa~ecem na generalidade dos livros de escritores europeus, obedecendo a velha praxe
viajam em certas zonas de nossos sertões. SPIX e MARTIUS tiveram também que msbtuida por Llnneu e Brisson (que modificara arbitrAriamente o nome em Tangara).
experimentá-los (cf. Viagem pelo Brasil, ed. do Inst. Hist. e Geogr. Bras., 1938, p. 169) e Com efeito, êstes últimos, adotando o nome indígena, tomado a Marcgrave, aplicaram-no
dêles me ficou inapagável lembrança, da vez em que excursionei em Goiás (cf. Rev. a uma multidão de aves incongêneres, de que fazem parte os sanhaços, os gaturamos,
do Museu Paulista, tomo XX, p. 1~). os sais, etc. Não obstante, Wied, em outras partes de sua obra, referir-se-á
(54) Aos a quem a nota de Wied venha a despertar interêsse pela matéria, ao têrmo "tangará" em sua atual acepção vulgar (cf. Beitr. Natur(J. Bras., lii, p. 413).
recomendo o recente e exaustivo estudo do Sr. José B. d'Oliveira China (em Rev. do (58) Cyanerpes cyaneus cyaneus (Linn.), da presente nomenclatura. Cf. O. PINTO,
Mus. Paulista. XXI, p. 823-669 - 1987). R ev. Mus. Paul., XIX, p. 251 (1985) .
(55) "Caburé" ou "Caboré", Glaucidium brasilianum (Gmelin) é a espécie referida; (59) E' planta ornamental ainda hoje largamente cultivada nos jardins. Cresce
apresenta-se com plumagem ora côr de ferrugem, ora parda; será referida várias também espontâneamente e é em alguns estados conhecida por "bananeira do mato", nome
vêzes pelo autor, que, por êsse fato a descreveu com os nomes de Strix ferruuinea e aliás comum a outras plantas de semelhante aspecto.
S. passerinoides. Tem hábitos semidiurnos, ouvindo-se, às vêzes, mesmo durante o dia, (60) Numerosas são entre nós as espécies do gênero Bougain'IJillea, umas trepadeiras,
o seu canto, que lembra muito de perto o do surucuá. Na Bahia viria a descobrir outr~s ,~r~rescentes~ tôdas ornamentais, e conhecidas pelos nomes de "primavera", "três-
Wied uma espécie ainda menor, a que chamou Strix minutissima. manas , ceboleiro , etc., conforme a espécie ou a localidade.
38 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 39
arbusto de um admirável colorido vermelho suave. Não são, porém, nistas nessa região. Todos os arbustos, especialmente as mimosas,
as flôres e, sim, as grandes brácteas que as revestem, que produzem são cheios de espinhos, e as muitas espécies de trepadeiras ("cipós")
êsse magnífico efeito. se entrelaçam tão estreitamente em volta dos troncos das árvores, que
Os habitantes da região, vestidos de jaquetas claras de um leve se não consegue varar tais brenhas sem uma grande faca de mato,
tecido de verão, e amplos chapéus redondos de copa baixa, olhavam- "facão". E' também necessário usar fortes calçados de sola grossa, ou
nos com visível espanto, quando passavam, a cavalo, por nós. Os botas de caça.
cavalos do Brasil são bons e ligeiros, se bem que pequenos; são origi- Os mosquitos atormentam extremamente o caçador, tanto no inte-
nários da Espanha, e têm geralmente o corpo bem feito e per- rior da mata como próximo da água. Conhecem-se êsses minúsculos
nas elegantes. As selas são ainda, como antigamente, pequenas e pesa- animais pelo nome de "maruim"6 5 ; são muito pequenos, mas sua
das, revestidas de veludo, e muitas vêzes curiosamente trabalhadas: picada causa violenta comichão. Alguns viajantes inglêses me asse-
têm um par de velhos estribos franceses de cobre ou ferro, trabalhados guraram que êles não diferem em nenhum ponto das "sand-fly" 66
em filigrana: muitos trazem mesmo um completo sapato de madeira das lndias Ocidentais•. Éramos, no entanto, largamente recompen-
para receber o pé. Os portuguêses, em geral, cavalgam bastante, e sados dos aborrecimentos pela novidade das coisas ambientes e, sobre-
muitos são excelentes cavaleiros. A andadura favorita é o "trote" tudo, pela beleza dos pássaros. Encontramos, nesse lugar, muitas plan-
e costumam prender pedaços de madeira nas patas dos animais para tas formosas; entre outras, na sombra, uma Salvia de flor vermelho-
habituá-los a êsse passo. Passando pela aldeia de S. Gonçalo 61 , que escura, que o Sr. Sellow chamou splendens•• e também uma ]usticia,
possui uma igrejinha, chegamos aó entardecer ao rio Guajindiba, onde de flôres róseas67.
paramos perto de uma estalagem solitária, ou "venda", como é chamada Como, apesar do calor excessivo, a terra estivesse ainda muito
no Brasil. úmida dentro dos balcedos, devido ao orvalho da noite, dirigi-me a
O Guajindiba62 é um riacho que serpeia, num gracioso leito de um campo aberto e enxuto, vestido de arbustos baixos, particular-
areia, entre densas matarias. Os campos prometiam bom pasto aos nossos mente a Lantana e a Asclepias cumssavica68 , com as suas flôres alaran-
animais, e os bosques estavam cheios de pássaros, o que nos levou a jadas. Aí, inúmeros colibris esvoaçavam e zumbiam em redor das
escolher êsse ponto. flôres, a modo de abelhas. Na minha volta, cacei alguns, entre os
Pelo amanhecer, quando nos dispersamos para caçar, corri à mar- quais o de bico vermelho (Trochilus sapphirinus, Linn.), muito
gem do rio, bordada por vicejantes e. admiráveis mimos~s. Esta p~~n­
ta é muito comum nas matas do Brastl, como em quase todas as regwes (*) V. 0LDENOORP, Caraib, I, p. 128.
(**) (Suplem.) O Professor Nees d'Esenbeck dá para esta bela planta os
tropicais. Dentro em breve descobri pássaros dos mais lindos: entre seguintes caracteres: S. calycibus campanulatis trilo bis coloratis, verticillis trifloris subnudis,
êles o tié (Tanagra brasilia, Linn.)sa, de côr vermelho vivo; o cuco follis deltridibus acuminatis serratis.
bruno-avermelhado, de longa cauda (Cuculus cayanus, Linn.) 64 e outras
(65) Os "maruins" ou "mosquitos pólvora" são minúsculos mosquitos hematófagos,
formosas espécies. Matei em P.ouco tempo grande número de aves •. e pertencentes principalmente ao gênero Culicoides, da fam!Ua dos Chironomidae e subfamllia
comecei a experimentar as dificuldades com que topam os excursw- dos Ceratopogoninae. As larvas desenvolvem-se na água estagnada ou em meios úmidos,
como as matérias vegetais em putrefação. Todos são extremamente molestos pelas suas
picadas e alguns têm sido criminados como vectores posslveis de certas moléstias
infecciosas. Cf. A. LUTz, Mem. Inst. Oswaldo Cruz, 1912, p. 1 e ss.; 1918, p. 45
(61) "S Gonzalves" no original. E' hoje a cidade de São Gonçalo, dita de e ss.; 1914, p. 81 e ss.
Niterói, sita ,;a E. F. Leopoldina e distante 9 quilômetros dessa cidade. (66) Pertencem êstes a uma outra famllia, a dos Simuliidae e, no Brasil, são
(62) Wied escreveu "Guajintibo". De uma carta endereçada por distinto conhecidos por "borrachudos" (Brasil central e meridional) ou "piuns". Suas picadas
colaborador anônimo, que apenas modestamente se assina ~Iuminense, tenho o prazer costumam ser ainda mais dolorosas do que as dos maruins, constituindo, durante o
de extrair alguns dados interessantes sôbre êste pequeno no que,_ nascendo ao norte dia, o maior flagelo a perseguir os viajantes, nas margens dos rios e do interior.
da cidade de Niterói "nos flancos setentrionais da Serra de Inoa, corre para norte, Ct. A. LuTz, Mem. Inst. Osw. Cruz, 1909, p. 124 e ss.: 1909 p. 218 e ss.
irrigando zona produt~ra de frutas", e desaguando "na costa leste da Bala de Guanabar~, (67) O gênero Salvia, da famllla das Labiadas, conta no Brasil grande número
bem mais ao norte do velho pôrto de S. Gonçalo e um pouco ao sul da foz do Macacu . de espécies silvestres e ornltófilas (a fecundação é promovida pelos belja-flôres), algumas
Como informa o mesmo missivlsta, o Rio Guajindiba é ainda "multo piscoso, e é um cultivadas; a descrita por SeUow ocorre do Rio ao Paraná e é vulgarmente conhecida
prazer subi-lo pela manhãzinha, pela grande variedade de pássaros que se pode observar: por diversos nomes como "sangue de Adão" e "Cardeal do México"· é ela representada
garças, socó-bois, martins-pescadores, ti és, etc.". em ~e.Ia estampa colorida no livro de J. DEcKEB, Asp. Biol. FI. Brasil, 1986, p. 288.
Just<ew, da famllia das Acantácc:as, apresenta flôres bilabiadas, agrupadas em cacho,
(68) Rhamphocelus bresilius (Linn.), mais conhecido por ".ti~·sangue" e "sangue- e Inclui no Brasil numerosos vegeta1s herbáceos ou arbustivos, de grande efeito ornamental.
de-boi" (Bahia). Da espécie há no este brasileiro duas raças distintas. Cf. O. PINTO,
Rev. Mus. Paul., XIX, p. 264. (68) As espécies de Lantana (fam. Verbenáceas), das quais os "camarás" ou
"cambarás" contam-se entre as mais conhecidas do povo, são dos vegetais mais comuns
(64) Pia11a ca11ana macroura Gambel é precisamente !!- "alma de gato", de que nos nossos campos e cerrados. Lantana camara Llnn. é representada em bellssima
fala e voltará a falar o viajante no curso de sua narraçao. Ave comum em tôdas estampa na pl. 40 do 111 vol. do atlas do Dict. d'Hist. Nat. D'Orbigny, 2.• ed. No
as matas do Brasil meridional, e representada noutras regiões por formas mais ou mesmo caso está Asclepias curassavica Llnn., vulgarmente "paina de sêda" "cega~lho"
menos afins. "oficial da sala", que aparece de igual forma em J. DECKEB, op. cit., 'p. 256. '
DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 41
40 VIAGEM AO BRASIL
santemente o próprio nome, bem-te-vi! ou tie-ti-vi! Perto de uma fazenda
comum; observei também o beija-flor de topete côr de ferrugem (Tro- o Sr. Sellow também achou uma bela e nova espécie de Canna de
chilus ornatus)•69. flôres amarelas. Um pouco além, chegamos a um trecho coberto de
Não vimos quadrúpedes nessa primeira excursão, exceto um mato rasteiro e rodeado de morros vestidos de mata, onde topamos,
pequeno tapiti (Lepus brasiliensis, Linn.)1o, que foi atirado pelo sôbre a frescura da sombra, várias poças de água clara. Inúmeros
Francisco, rapagote coropó pertencente ao Sr. Freyreiss. f.ste animal pássaros alegravam êsse lugar. O Inondé de AzARA (T. III, p.
é encontrado em tôda a América do Sul; assemelha-se ao nosso 461)14, côr de ferrugem e de penas caudais pontiagudas, trazia mate-
coelho selvagem, e a carne é um bom petisco. Francisco era o nosso riais para o seu ninho, entre os caniços. Não longe daí alcançamos
hábil caçador, pois sabia manejar a espingarda tão bem quanto o uma grande floresta: altas e esguias mimosas de casca branca, cecró-
arco, e a sua destreza, ao se esgueirar por entre os mais espinhentos e pias75, cacaueiros e outras árvores se enlaçavam tão intimamente com
intrincados labirintos, era espantosa. Como recompensa sempre lhe inumeráveis trepadeiras, ("cipós" dos portuguêses, "lianas" dos espa-
dávamos os pássaros, depois de esfolados; êle os espetava num pe- nhóis) que o conjunto parecia formar uma só e impenetrável massa.
queno espêto de pau, para assar, e devorava-os com grande apetite. Nos escuros cimos das árvores, as flôres da Bignonia Bellas (assim
Deixamos, depois, o Guajindiba e atingimos um denso bosque de chamada por Sellow, em virtude da marquesa de Bellas, que descobriu
Rhexia 71 , de dez a doze pés de altura, entremeado de árvores altas essa linda planta) esplendiam como fogo, além de muitas outras
e intercalado de clareiras. As baixadas eram envolvidas de todos os mais, não menos magníficas como ela: embaixo voejava grande
lados por altas montanhas azuis, forradas de vastas florestas e coquei- variedade de beija-flôres e de borboletas. Essa mata, entretanto, era
ros. Entre as manadas de gado que pastavam nos campos, voava apenas uma pálida imagem da selva primitiva que em breve conhe-
e saltitava em abundância o anum 72 prêto (Crotophaga ani, Linn.), cemos na Serra de Inoã•o.
como também o bem-te-vi (Lanius pitangua, Linn.) 73 a repetir inces- Passamos, depois, por trechos em que a floresta fôra queimada
em alguns lugares para fins de cultivo, ou, como se diz aí, para fazer
(*) (Suplem.) O "beija-flor de coleira" (Trochilus ornatus) das zonas de leste um roçado, ou uma "roça". Os imensos troncos queimados pareciam
do Brasil que percorri, parece um tanto diferente do figurado por Audehert e Vielllot;
porém duvido sôbre se será uma espécie diversa, tratando-se talvez de uma variação ruínas de colunatas, ainda parcialmente ligadas pelo cordame dos
ligada à idade, muito embora eu sempre tenha observado os mesmos caracteres, até
nos machos mais velhos. A coleira não é vermelho-bruna, as penas são porém cipós ressequidos. Enquanto aí nos detivemos incomodou-nos muito
brancas, com as pontas de um belo verde, de modo a formar nos bordos daquela uma o rangido forte e desagradável dos carros que usam nas fazendas.
ourela desta côr.
f.stes são ainda construídos de modo mais grosseiro e elementar: pesa-
(69) A forma típica de Hylocharis sapphirina (Linn.) pertence à Amazônia, devendo das e maciças rodas de madeira, com duas pequenas aberturas redon-
o exemplar aqui citado por Wied ser referido à raça meridional da espécie, por êle
mesmo descrita, com exemplares de Belmonte, sob o nome de Trochilus latirostris, das, giram com forte atrito em tôrno de um eixo 77 , produzindo agudo
no vol. IV, pág. 64 das suas Beitr. Naturues. Brasilien. e áspero ruído, que se ouve a grande distância. Não obstante parece
Trochilus (hoje Lophornis) ornatus Bodd, é também do extremo norte do Brasil
e repúblicas vizinhas; a de que trata Wied, como êle próprio veria mais tarde se ter tornado para os lavradores uma necessidade o ouvir esta maviosa
(Beitraue, IV, p. 79) , é espécie congênere, Lophomis mauniticus (Vielllot), bastante música; tão poderosa é a fôrça do hábito! Mesmo em Portugal
comum em todo Brasil central e meridional.
(70) "Tapiti ", nome dado pelos tupis à única espécie de coelho, ou lebre. perten- se utilizam ainda êsses rudes veículos. Os bois que puxam são
cente à fauna brasileira. A espécie Sylvilauus brasillemis (Linn.) conta quatro raças de tamanho colossal e da melhor raça; notei que os chifres eram
distribuídas pelo Brasil oriental e central.
(71) O gênero llneano Rhexia, da famflia das Melastomáceas, ulteriormente muito muito compridos e grossos; são geralmente guiados por um escravo
restringido pelos botânicos, não contém hoje nenhum representante no Brasil meridional. negro, que leva uma longa vara, em vez de chicote.
Em virtude da grande variedade de formas pertinentes ao grupo, só conjeturar é possível
sôbre as espécies observadas por Wied, as quais devem, contudo, corresponder às que, no Aproximamo-nos agora de uma cadeia de montanhas, conhecida
grande gênero Tibouchina, são vulgarmente conhecidas por "flor de Quaresma ".
(72) E' o nosso anum vulgar; Madentresser, escreveu Wied, na ignorância
por Serra de Inoã. O selvático espetáculo excedeu de muito tudo
ainda, talvez, do nome popular, da comunlssima ave. (74) "L'Inondé" de AzARA (edição francesa de Sonnini) corresponde ao pequeno
(73) Pitangus sulphuratus (Linn., 1766) é o nome aceito para a espécie a que Pássaro Certhiaxis cinnamomea russeola (Vieiilot), freqüente nas baixadas, onde sôbre
pertence o "bem-te-vi" comum. ~rbustos constrói o seu volumoso ninho de gravetos. E' comumente conhecido por
Divergindo de Wied, todos os ornitologistas modernos vêem em Lanius pitanuua corrufra do brejo", "curutié", etc.
(Linn.) não o conhecido pássaro de cujo canto provém a denominação onomatopaica (75) Ao grande gênero Cecr6pia, da família Moráceas, pertencem as imbaúbas,
de bem-te-vi, mas sim outro passarinho com êle muito parecido, o vulgarmente chamado de que a flora indígena é riquíssima em espécies, imediatamente reconhecíveis entre
"bem-te-vi de bico chato", ou "nel-nel". Boas razões assistiam todavia ao príncipe as outras árvores da mata pelo aspecto característico, malgrado grandes diferenças
em sua. opinião sôhre o assunto, por isso que Pitangua guacu de Marcgrave, origem do de porte.
nome llneano, outro não pode ser senão o verdadeiro bem-te-vi, bem identificado (76) lnoã (Wied escreve " lnuâ "), fazenda e estação ferroviária; a serra fica
pelo canto inconfundível, a que faz menção o grande naturalista do Brasil holandês. entre Niterói e Maricá..
Muitos anos depois da publicação do livro de sua viagem, num curioso opúsculo . ~77) . Aqui parece falha a observação do autor, visto como nos carros-de-bois o
intitulado Brasilien Nachtraue, Berichtigunuen und Buséitze zu der Beschreibunu meiner eiXO gira Juntamente com as rodas, nêle sõlidamente engastadas. O ruído é produzido
Reise im ostlichen Brasilien (Francfort sôbre o Meno, 1850), voltou o príncipe a defender pela fricção do eixo nos toscos mancais, também de madeira.
com calor o seu ponto de vista. A matéria é complexa e não caberia aqui discuti-Ia
nos seus pormenores. Cf. Pinto, Catál. das Aves do Brasil, 2.• parte, pág. 151, nota 1.
42 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 43

quanto a minha fantasia concebera até então sôbre as grandes cenas da para o pólo glacial, o oceano imens? sôbre o qual sopram os v~ntos
natureza. Entramos num profundo vale, em que a água muito lím- tropicais, a uniformidade da costa onental, as fnas correntes mannhas
pida ora corre sôbre um leito de pedra, ora descansa em lagoa tran- que rumam, em direção norte, da Terra de Fogo para o Peru; as
qüila. Pouco além de uma floresta imensa, da qual nenhuma ima- numerosas montanhas, causas de cachoeiras sem conta, e cujas cris-
gem pode dar uma idéia adequada. Por tôda a parte, as palmeiras e tas nevadas pairam muito acima das nuvens; a abundância de rios
as magníficas árvores da região se entrelaçavam tanto com as trepa- caudalosos, que, depois de curvas incessantes, sempre buscam o litoral
deiras, que era impossível à vista penetrar aquela espécie de muralha remoto; desertos sem areia e, portanto, menos ardentes; florestas
verdejante. Tôdas elas, mesmo nos raminhos mais tênues, estavam impenetráveis, que enchem as planícies bem irrigadas próximas ao
cobertas de plantas carnosas, Epidendrum, Cactus, Bromelia, etc., mui- equador; e que, para dentro do continente, onde as montanhas ,e o
tas das quais com flôres de tal beleza, que quem quer que as oceano ficam tão distantes, desprendem massas enormes de agua
contemplasse pela primeira vez não poderia esconder a admiração. embebida ou de formação local; tôdas essas circunstâncias dão à
Apenas menciono uma espécie de Bromelia, de flôres de um vermelho- planície americana um clima que, pela umidade e frescura, forma
coral carregado, e cujas fôlhas eram de um belo violeta na ponta; e a surpreendente contraste com o da África. Apenas a êsses fatôres se
Heliconia78, espécie de bananeira semelhante à Strelitzia, de invólucros devem atribuir a extraordinária opulência da vegetação e a exube-
côr de sangue e flôres brancas. Naquelas sombras espêssas, próximo rância das {rondes, que constituem o principal característico do Novo
às frias correntes da montanha, o viajante afogueado, especialmente Continente".
o nascido nos países do norte, goza de uma temperatura absolutamente Quando atingimos o alto da Serra de Inoã, vimos, acima das
refrescante, aumentando o encanto que essas cenas sublimes trazem grandes árvores, numerosos papagaios voando aos p~res com grande
ao espírito, incessantemente arrebatado pelo selvagem panorama. A alarido. Era o papagaio de cabeça vermelha, (Pstttacus coronatus
cada momento encontrávamos alguma coisa nova que atraía nossa do Museu de Berlim, ou Perroquet Dufresne, Le Vaillant)• 81 aí
atenção. Até as rochas se cobrem de milhares de plantas carnosas conhecido por "camutanga", e, em outras zonas, por "chauã",. devido
e de criptógamos: entre êstes belíssimos fetos (Filix), que em parte à sua voz. Aproveitamo-los muito, posteriormente, como ahmento.
pendem das árvores, de maneira pitoresca, como fitas emplumadas. Continuando a viagem, descemos a uma aprazíve_l re!?ião campe_st_;e,
Um cogumelo achatado, de côr vermelho-vivo, forrava os troncos secos; e passamos a noite na fazenda de Inoã. O p~opnetáno, ~~ cap1_tao,
enquanto um bonito líquen carmesim cobria de manchas arredonda- que rião demonstrou a menor surprêsa pela mesperada V1s1ta, cnava
das • a casca das árvores pu jantes. As árvores das florestas brasileiras bastante ·gado e aves nos seus domínios. Vimos, criados por êle,
são tão colossais que as nossas espingardas não lhes alcançam os cimos, bonitos bois, porcos gordos, de uma raça pequena e preta, com ~orso
de modo que muitas vêzes atirávamos baldadamente em magníficos caído, longo focinho e orelhas pendentes, galinhas, perus, galmhas
pássaros; porém muitas vêzes assim nos cobríamos de flôres su- de Angola, gansos da espécie européia e o pato almiscarado (."!-nas
cosas, que, infelizmente, éramos obrigados a jogar fora, porque mo~chata, Linn.), que às vêzes voava e tornava a voltar. :Este últ1mo,
cedo murchavam e não se podiam conservar num ervário. Um Re- como se sabe, existe nas matas do Brasil.
douté79 encontraria aí copioso material para esplêndido trabalho, de A Serra de Inoã é um braço que se projeta para o mar da
valor incomum. A luxúria e a riqueza do reino vegetal na América altaneira cadeia montanhosa que corre paralela à costa. Cobrem-na
do Sul é conseqüência da grande umidade que prevalece em tôda densas florestas, onde existem muitas qualidades úteis de madeira e
parte. E' uma nítida vantagem sôbre todos os demais países quentes, em que o caçador encontra abundante variedade de caça. O dia aí
e Humboldt8o se expressa com tanta felicidade a êsse respeito, que não transcorrido, levamo-lo a caçar, enquanto nos detinha a súbita doença
me posso furtar à transcrição de suas próprias palavras • •: "A estrei-
teza dêsse continente variadamente recortado, sua grande extensão (*) (Suplem.) O papagaio de testa vermelha (Psittacus Dufresnúmus) . Valll.,
era até aqui errôneamente designado como coronatus do Museu de Berlim. Os brasi-
leiros cbamam-no •·cha uá ", nome que imita muito perfeitamente a voz da bela e
inteligente ave; conhecem-no ainda por " Camutanga ", nome derivado da llngua dos
(*) Jtste belo !lquen vermelho já foi levado para a Inglaterra por Mawe Tupinambás, ou llngua geral, na qual êle tinha o nome de "Aiuru-Acamutanga "·
(pág. 271 de sua Viagem) e pesquisas foram feitas sôbre o emprêgo de sua matéria corante.
( **) V. ALEXANDRE VDN HUMBOLDT, Ansichten d er Natur, p. 14. (81) O conde SALVAOORI (lbis, 1890, p . 370), demonstrou que o papa gaio de
Dufresne, Amazona dufresneana (Shaw), da Guiana, é espécie diversa da que ocorre
(78) As espécies do gênero são conhecidas vulga rmente por " bananeira do mato", nas matas de leste do Brasil· esta ficou sendo chamada Amazona rhodocorytha (SALVAD.).
"bananelrinha do brejo". Heliconia angusti folia talvez seja a de que o autor faz menção. De há multo não mais exist~ no Rio de Janeiro; vive porém ainda no Espírito ~~nto
(79) JosEPH REOOUTÉ (1759-1840), exímio e apaixonado pintor de flôres, ao qual e especialmente nas matas do sul da Bahia, até Ca mamu, conforme se poderá verificar
se devem Importantes e magníficas obras, entre as quais é famosa a sôbre as através do relatório da excursão que realizei naquela zona, anos atrás (Rev. M tts. Paul.,
Lüiáceas, em 8 vol. In-foi. XIX, p. 124, 1985). Faz pouco que colecionadores do museu de São Paulo obtiveram-no
(80) Cf. ALEXANDRE HUMBOLDT, Ansichten d er Natur, pág. 14. também em Alagoas.
44 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 45

de um dos nossos animais. Conseguimos grande número de lindos Procnias por Jlliger, e se chama "arapong~" em tôda a costa ~rient!!·
pássaros; o Sr. Freyreiss, porém, atirou em vão no pequeno macaco Em côr assemelha-se bastante ao Ampelzs carunculata de Lmneu ;
vermelho e dourado, conhecido por "mariquina" (Simia rosalia, Linn.). é, todavia, espécie diferente, como o indicam su_ficientemente a gar-
í.sse belo animalzinho é aí chamado "sauí vermelho". Vive nas matas ganta verde pelada e a ausência da excrescência carnosa na testa.
mais espêssas e somente se encontra no sul, nas vizinhanças do Rio A ensombrada floresta que agora atravessávamos era extrema-
e Cabo Frio; pelo menos, nunca mais o encontramos para o norte. mente aprazível; bandos de papagaios voavam em derredor, numa
Os papagaios são muito numerosos nas florestas que cobrem essas
ensurdecedora algazarra; entre êles era part~,c?l_a~ente abun~~n \e
montanhas, especialmente algumas das espécies de cauda comprida
belo periquito, de rab~ pont~d~, cha~a_do t~nba nessa reg1~0 · 8
e cuneiforme, aí denominadas "maracanã", entre as quais o Psittacus Matei também um esqmlo da umca espeCie (Sczurus aestuans, Lm?.)
macavuanna•B 2 e guianensisB3, que se abatem aos bandos sôbre os que observei em tôda a viagemB8; di~tingue-o o pêlo pardo-ac~n­
milharais vizinhos.
zentado, misturado de amarelo. Os nativos que passavam, conduz~n­
Deixando Inoã, entramos noutra floresta de árvores gigantescas do tropas de animais pesadamente carregados, mostravam-se mmto
e imponentes, estreitamente entrelaçadas, onde se nos depararam algu- espantados com os tiros que ouviam de ambos os lados da estrad~,
mas coisas novas. Vimos a grande "aranha càranguejeira" (Aranea
disparados pelos nos~os caçadores ~ispersos ~trás da caça. Depois
avicularia, Linn.)B4, cuja picada, segundo se diz, causa dolorosa infla- de atravessarmos mmtas matas queimadas, pantanos e savanas, cer-
mação. Vive ela, como já verificou o Sr. von Langsdorff, principal-
cados por altas montanhas de p_edra, chegamo~ em extensos .ca~pos
mente sob a terra. Além dêsse curioso animal, vi muitos sapos enor-
interrompidos por charcos e breJOS, onde se VIam em abundanCia a
mes, não, contudo, tão numerosos quanto na Serra que acabára-
garça branca, o pavoncinho89 americano . (Vanellu_s cayennenszs~, a
mos de deixar, e onde, mal começava a escurecer, o chão ficava
"jaçanã", chamada aqui "piaçoca" (Parra 7acar;:a, Ln~n.) e ~a~ancos.
coalhado dêles. Entre muitas, observei uma espécie que provàvelmente
Havia gado pastando nesta várzea e por entre ele saltitavam mumeros
nunca foi descrita (Bufo bimaculatus) e que se caracteriza pela presença
melros de um violeta brilhante (Oriolus violaceus) 90 •
de duas grandes manchas escuras no dorsos5. Fios de "barba de
velho" (Tillandsia) de tamanho invulgar pendiam dos alvos e elevados Os muares estavam agora tão mansos que pude fazer fogo se~
troncos das mimosas. No tope de um alto galho ressequido, sob os apear. Com um só tiro consegui matar vários melros. Em quanti-
ardores do sol, brilhava um pássaro branco (Procnias nudicollis), dade não menor que as dos melros enco~trava-se C: anum (Crotophaga
cuja voz estridente soa tal qual o choque de um martelo na bigorna, ani, Linn.), tão comum no pasto e sobre as _:ercas como. o nosso
ou de encontro a um sino rachado. Pertence ao gênero denominado estorninho, em muitos lugares; mostravam-se tao pouco anscos que
podíamos quase passar a cavalo junto dêles.
(*) (Suplem.) A ave a que dou aqui o nome de Psittacus macavuanna Linn., À tardinha chegamos à freguesia de Maricá, junto ao _lago do
parece constituir efetivamente uma espécie diversa, da que os Srs. Temmlnck e Kuhl mesmo nome. A população dêsse povoado é de cêrca de Oitocentas
chamaram Psitt. 11/igeTi. Azara foi o primeiro a descrevê-la (ediç. de Sonnini. IV.
p. 55), denominando-a Maracana fardé (vide Kuhl, Conspectus Psitt. nas Verhandl. der
Kaiser. Leopold. Caro!. Acad. vol. 10, pâg. 19).
Por êsse motivo, na primeira parte de minha descrição de viagem, sempre se (86) p 1·ocnias alba (Hermann, 1788) é o nome que, em obediência !J-OS direitos
deverâ ler Psitt. Illioeri em vez de Makavuanna. de prioridade, vinga para esta espécie, próp_ria das. Gll;ianas, mas encontradtça também
no norte do Amazonas (Rio Negro). Procmas nudu:oll.s (Vleill.) ocorre nas matas de
(82) Como viria a reconhecer o próprio Wled (nota em apêndice), hâ aqui leste desde o nordeste da Argentina (Mlsiones) até o sul da Bahia.
equivoco; Psittacus macavuanna Gmelln (hoje Ara manilata Bodd.) não ocorre senão ' (87) "Tlriba" é, em todo 0 sul do Brasil, o nome vulgar das espéci«:s do grande
no Brasil central e na Amazônia. A ave a que se refere o viajante é a vulgarmente gênero Pyrrhura, entre as quais P. cruentata (Wted), a que o autor aqut se reporta,
chamada "maracanã"; seu nome mais antigo é Macrocercus maracana VIEILLOT, 1816 como seu descobridor (cf. adiante a nota (126). e texto correspondente), é gjralmente ,?-
(baseado em AzARA), que prevale e sôbre Psittacus illigeri Temm. & Kuhl. 1820. Miranda mais comum. Mais para 0 norte (Bahia) Wled fm encontrâ-las com o nome de fura-mato ,
Ribeiro propôs separâ-la das verdadeiras araras (Ara), no novo gênero Propyrrhura. que ainda vinga.
Cf. 0. PINTO, Cat. Av. Bras., pte. 1.•, pâg. 184. (88) A espécie lineana, guianense-amazônica. ocorrerâ também, quando muito, n.o
(83) Psittacus guianensis Gmelin (1788) é o grande periquito hoje denominado Brasil este-setentrional. A observada por Wled deve ter sido, com tõ,das as probabi-
Aratinoa leucophthal7n.a (Müller, 1766) em obediência às regras de prioridade. lidades, Guerlinguetus ingrami (Thomas). Cf. O. PINTO, Rev. Mus. Paul., Xvli, p. 295 (1931).
(84) Ao tempo de Wied as "aranbas caranguejeiras", apenas conhecidas, eram (89) Vê-se que o autor, pelo menos até aqui, n_ão ~?-avia recolhido nenhum nome
referidas cumulativamente à espécie guianense descrita por Linneu; hoje, entretanto, popular para 0 nosso "quero-quero", Belonopterus chilensts lampronotus (Wagl.), ave
formam elas uma vasta superfamUia, Theraphosoideas, que Melo-Leitão, em sua grande multo freqüente, ainda hoje, não só em nossas costas. ma:ftlm!ls, como nos pântanos
e bem conhecida monografia (cf. Rev. Mus. Paul., XIII, 1922, pâg. 1-488), divide do interior. Freqüenta igualmente as malhadas, s~ndo VIsto mvanàvelme~te nas fazendas
em nada menos de sete familias, com avultado número de gêneros e espécies. Claro dos sertões de Minas, Goiás e Bahia. A ave européia (Vanellu~ vane!lus !;-tnn.l,: comparad.a
é que se torna vã qualquer conjetura com respeito à espécie observada pelo natura- com a nossa por Wied, é o "pavoncinho" (também chamado avecomha ou abecolnha ,
lista alemão. • galispo", "verdlzela ", "abibe", etc.) dos portuguêses. Cf. O. PINTO. Rev. Mus.
(85) Bufo bimaculatus foi depois pelo próprio autor (Beitrage, I, pâg. 555) reco- Paul., XIX (p. 16 a 78) e XX (p. 18 e 42).
nhecido como simples "variedade" de Bufo agua Daudin, Isto é, do sapo comum, ou
"sapo cururu". Bttfo ictericus Spix (= Bufo marinus Boulenger, n ec Linné). Cf. D. (90) Refere-se o autor ao chamado "chupim" ou "vira-bosta" (Molothrus bona-
Cochran, in Buli. 206, St. Nat. Museum, U. S. A. riensis, (Gmel.)).
DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 47
46 VIAGEM AO BRASIL

ou montanhas, com rochas e florestas. ~arece que aqui se criam mui-


almas. Os moradores de uma casa um pouco afastada, diante da
tos cavalos, mas não prestam, sendo a mawr parte de pequeno tamanho.
qual paramos, fecharam as portas cuidadosamente. Todos os vizinhos
Vimos também cabras, de pêlo curto, brilhante e amarelo-avermelhado,
também se reuniram para nos contemplar, embasbacados; mas, quando
manchado de prêto. Não muito longe das margens do lago, ch_ega-se
começamos a esfolar e a preparar os animais mortos durante o dia,
a estrada arenosa que passa entre arvoredos para a pe9uena V ~la , de
moços e velhos sacudiram as cabeças e riram-se ruidosamente dos
Sta. Maria de Maricá, localidade principal da freg~es1~, constltmda
parvos estrangeiros. As espingardas de dois canos, para êles aparição
inteiramente nova, interessavam-nos ainda mais que nós próprios. O de casas acachapadas de um só andar, de uma 1gre1a e d~ ruas
lago Maricá, junto ao qual levamos um dia a explorar-lhe as cercanias regulares, mas sem calçamento. As construções não possue~ )an~las
de vidro, porém simples abertur~s, que, como no _Br_as1l mteiro,
arenosas, tem cêrca de seis léguas de circunferência. Suas margens
são fechadas com rótulas de madeira. Nas suas proximidades plan-
são baixas e pantanosas, e o peixe é abundante. Vi uma espécie de
bagre (Silurus) que nêle existe em abundância; parecem numerosas ta-se mandioca, feijão, milho, algum café e principalmente can_a-
as espécies dêsse gênero na costa oriental do Brasil. A beira do lago de-açúcar, que dizem crescer a c~nsiderável altura nos lugares férteis,
encontramos algumas conchas, porém só de uma espécie muito conhe- ao passo que mal vai além de seis palmos no solo arenoso:
cida; e nos pauis próximos, um caracol de terra ou brejo, de que me Vegetação sempre nova nos distrai enquanto prosseguimos; big-
ocuparei em outro lugar. As aves vistas na praia foram uma espécie nônias das mais lindas flôres se enroscam nos arbustos; encontra-
de gaivota muito semelhante ao nosso Larus ridibundus91 , com cabe- mos, também, alguns frutos de forma muito ~r!ginal: Observam os
ça preta, bico vermelho e pés da mesma côr; uma bonita espécie de botânicos que as leguminosas constit~em a faffilha ma1s n~m~rosa da
andorinha do mar (Sterna), pavoncinhos, uma espécie de maçarico flora brasileira. Não obstante as mmtas fazendas que aqm s~ encon-
(Charadrius), enquanto nas alturas pairavam os "urubus", assim tram, a região é selvagem e forma, entre altas e pitorescas montanhas,
sôbre o pântano como na mata. Foi aí que tive, pela primeira vez, amplo vale de superfície irregular, donde, cercados_ pelos arbusto~,
o prazer de caçar o "acabiray" (Vultur aura, Linn.), que somente sobem os troncos esbeltos das grandes árvores. Nas ornas destas, pre-
Azara soube, até agora, distinguir devidamente• o2. Assemelha-se, à sas aos galhos, vêem-se massas pardo-e~,cura_~; que .. são. as, casas de_ uma
primeira vista, ao urubu de cabeça cinzenta ("Iribu" de Azara), se pequenina térmite amarela, chama~a cupi ou cupim · Fo~nugas e
bem que a um exame mais acurado, mesmo voando a considerável criaturas semelhantes são no Brasil extremamente danosas ~s ~lan­
altura, se possa diferenciar do outro. ~sses abutres representam tações. Encontram-se aí em tal abundância êstes v?razes an~mais, e
uma dádiva da natureza em todos os países quentes; porque êles lim- tal é 0 número de suas espécies, que um entomatolog1sta pode~Ia escre-
pam o chão, que, a não ser assim, encheria o ar de exalações deletérias. , Ab eAles uin grande tratado São de tamanhos diferentes;
ver, so so re , · da d ·
O seu olfato é tão agudo, que, morto um animal, logo se precipitam uma das maiores espécies, que tem perto de uma polega e compn-
para o lugar, em grande número, embora um pouco antes nenhum mento, e cujo corpo é desproporcionad~mente ~osso, é , assada ~
fôsse visto, mesmo a distância 03 ; por isso, nunca os perseguem, sendo comida em muitos lugares, máxime em Mn~as Gera1s, onde ~ denomi-
igualmente numerosos nas regiões descampadas e nas matas. As nada "tanajura"o4. Outra espécie, peque~ma e_ vermelha, e terrivel-
zonas próximas do lago não parecem muito férteis, por causa do solo mente incômoda e daninha. Essas formigas sao, também, bastante
arenoso e alagado. Os lugares secos são campos, onde pasta o gado, prejudiciais ao colecionador, pois em pouco tempo ~estruíram grande
· e de nossos insetos, sobretudo borboletas. Nao raro penetram,
num ro 'dA . d d d
(*) As melhores gravuras dêsses dois abutres, ainda assim um tanto defeituosas, em massas compactas, nas casas de resi enCia, on e evoram tu o
são as de VIErLLOT, na Histoire naturelle du oiseauz de l' Amérique Septentrionale 95
tomo I, pl. 2 e 2 bis. A última é a melhor delas, não obstante a côr da cabeç~ que seja comível, especialmente doces -
não representar exatamente a natural. O que os autores chamam Vultur urubu não
possui, pelo menos no Brasil, a cabeça vermelha, mas sim côr de cinza, bem como Não existem meios de proteger êsses alimentos, a não ser o de
o pescoço. pôr os pés das mesas dentro de latas cheias d'água, ou untá-los com
(91) Esta espécie, que freqüenta todo o litoral sul-atlântico, do Rio de Janeiro
à Argentina, foi descrita por Wied com o nome de Larus poliocephalus (Beltr., IV, p. ( 94.) No original "tanachura". As tanajuras, mais conhecidas no sul por ."lçás",
854) ; corresponde a Larus cirrhocephalus Vieillot, anterior em data e por Isso prevalente. são as fêmeas aladas e o v i geras d,e várias esJ?écies do" gê_nero, A tta, CUJOS ind1vlduos
(92) Trata-se aqui do "urubu de cabeça vermelha" também chamado "urubu~­ neutros, ou operários, são as form1gas cortadeiras ou sauvas .
pelro" " urubu-eaçador ", etc. (Cathartes aura ruficollis SPrx) multo espalhado no litoral ( 95 ) Refere-se Wied partlcula.rmente às ch';'-mada~ " formigas de correição" (Fam.
e nos campos do interior. Mesmo em pleno vôo, é fácil distingui-lo do urubu comum, Dorvlidae, gênero Eciton, etc.), CUJOS bandos IDlgratónos, e carn!voros, fo~mados por
com ter a face inferior das asas, em grande parte, branca. ·mero incontável de indiv!duos, fazem pelos lugares onde passam verdade1 ra limpeza
(98) As reflexões de Wled sôbre os hábitos de espécie estendem-se às que lhe n~tre os outros insetos quaisquer animais pequenos, capazes de ser por êles devorados.
são afins. Sôbre a matéria há ainda multo que Investigar; veja-se o que tive ocasião ~f. WHEELER, Social Life among the Insects, London, I92S.
de escrever a propósito do "urubu-rei" na Rev. Mus. Paul., XX, p. 4.8.
48 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 49
piche; mas, a~nda assim, muitas vêzes elas vencem êsses obstáculos. daoo. Em todos os troncos vicejam plantas herbáceas e lenhosas,
Algumas espéc1es constroem, com certa qualidade de terra, nas pare- como Cactus, Agave e Epidendrum, ostentando entre os galhos entre-
des do~ quartos, túneis multi-ramificados, por onde sobem ou descem96. laçados flôres ricamente coloridas. Quando um tronco apresenta uma
~as tnlhas das florestas vimos e;ércitos inteiros de grandes formigas, cavidade ou fenda, plantas tais como Arum, Caladium, Dracontium
todas carregando pedaços de folhas verdes para os formigueiros97. e outras despontam em grandes tufos de sumarentas fôlhas verde-
. Uma floresta virgem em que depois penetramos, ofereceu-nos novos escuras, cordiformes ou sagitadas, de tal sorte que o viajante contem-
e mteres~antes c~n~rios. O tucano, (Ramphastos dicolorus, Linn.)98 pla a mais extraordinária associação de espécies vegetais. Entre as
com o b1eo prod1g~oso e a garganta de côr alaranjado-vivo, formando plantas acima mencionadas, aparece freqüentemente o Dracontium
?elo ~~nt~aste com a plumagem negra, pela primeira vez suscitou a pertusum, de fôlhas perfuradas do modo mais estranho: uma esplên-
lmpaClencta dos nossos caçadores; a sorte, entretanto, foi-lhes adversa, dida Maranta de flôres azuis também chamou a atenção do nosso
porque, as aves pousavam tão alto no tope das árvores, que nos era botânico.
1mposs1vel alcançá-las. Em nossa jornada de hoje gozamos uma cena divertida com o
, Passamos em seguida pela. terra escura de um charco e logo depois nosso índio Francisco. Alguém de nossa comitiva julgou ver um
estavamos novamente na argila vermelha. Quanto mais avançáva- pássaro no alto de uma árvore sêca e fêz fogo em sua direção; porém
mos, I?ais soberbas e imponentes se mostravam as florestas. O euro- logo verificou que o que lhe havia parecido um pássaro era apenas
P<;U vmdo do norte não tem a menor idéia dessa magnificência, nem o nó de um galho. Francisco, que com a vista aguda, comum a todos
h! palavras para descrever o quadro com tintas comparáveis às sensa- os filhos da terra, percebera o êrro desde o primeiro instante, conser-
çoes d~spertadas. C~esce em abundância neste lugar uma palmeira vando-se porém calado a espera do tiro, depois do qual prorrompeu
de ma1s ou I?enos tnnta pés de altura, chamada "airi-açu" na língua em ruidosa gargalhada que a custo conseguiu reprimir. Todos os
geral e em Mmas "brejeúba". Os selvagens empregam-na na construção sentidos do índio são muito agudos e aperfeiçoados, motivo pelo qual
de seus ar~os; seu caule é pardo-escuro e compactamente coberto de um engano dêsses lhe parece risível ao mais alto grau. Vêzes fre-
l~ngos esp~nhos, que se implantam em anéis horizontais. As fôlhas qüentes nos divertimos com Francisco; era fiel e tinha bom coração,
~ao co~pndas e penadas como em tôdas as espécies de coqueiro, de embora fôsse também muito birrento e genioso; era assim que fazia
JUnto a sua base pender:r;t os cachos amarelos, em que posteriormente questão de atirar o maior número de vêzes, e nas melhores aves. Por
se !?rmam os frutos, mmto duros e de um prêto reluzente, de forma certo não lhe faltavam esquisitices de índio; êle nunca saía para
ov01de e do tamanho de um ôvo de pomba. Há também em tôdas caçar em jejum como os outros, mas, pelo contrário, esperava o almôço,
essas matas ~I?~ siL?-i.lai;, espinhosa, que se conserva sempre pequena e ainda que êsse devesse demorar muito, e ter-se-ia tornado muito mau
é chamada a~n r:r;tmm . Nenhuma delas foi ainda introduzida nos para seus patrões se porventura se houvesse querido forçá-lo a
sistemas de H1stóna Natural, e apenas foram mencionadas por Arru- proceder como os demais.
Era nossa intenção, continuando a viagem, atingir Ponta Negra
. (96) Não se trata no caso vertente de formigas, mas sim das térmitas ou " · " nesse dia; porém perdemos o camiriho na labiríntica e quase impra-
;ns~tos qu~ [óor~am uma c~teg~ria bem caracterizada (Ord. Isópteros, Fam. Tern~í~l:}~:) ' ticável floresta que a estrada atravessava. Chegamos, entretanto, a
an o mor o _g•ca como bwlôgtcamente. Alimentam-se da matéria vegetal viva 0 ,_;
!norta ( made•r~~;.) e é com terra, saliva e resíduos da digestão, evacuados uma grande fazenda, cujo proprietário, Sr. Alferes da Cunha Vieira,
m~estlno, que eles constroem os carreiras onde se mantém ao abrigo da 1 pe 10
evitam a todo o custo. uz, que nos recebeu muito hospitaleiramente. Chama-se a propriedade Gura-
. A história nat~ral das té_rmitas tem sido objeto de aprofundados estudos, devendo pina1oo, e possui um grande engenho de açúcar, cujas instalações cor-
Citar-se, no que respeita à s espéCies sul-americanas, os de Silvestri (cf. Redia, I, 1906 ).
. (97) Faz-se referência aqui às saúvas (Atta), flagelo bem conhecido de todos os
agricultores! sôbre o qua} A. St. Hilaire proferiu a sua frase célebre: "ou 0 brasileiro
~ata a sauva, ou a sauva destrói o Brasil ".
(99) A primeira espécie (Astrocaryum avri auct.) ocorre nas matas da Baltia
A biologia da saúva de conhecimento onde, segundo Melo Morais (Bot. Brasil., 181, p. 91), é conhecida por " brijaúba", leve
t~d}spensável ao ~ombate eficiente da praga que ela representa para' a agricultura é variante do nome consignado por Wied. Ambas parece pertencerem ao grande número
OJe. bem co~ectda graças às pesquisas de vários entomologi stas à cuja frente dabe Astrocaryum Meyer, fartamente representado no Brasil. O autor citado é o Dr. Arruda
rre~CIO~~~ asXI e M. Autuori . do Instituto Biológico de São Paul~. Cf. Arquivos do Câmara, a quem se devem copiosos manuscritos sôbre a flora medicinal do Brasil,
X~~· (l;go·Í, p. I 82 ~~941) p. 197; XIII (1942), pg. 67 e 187; XVIII ( 1948 ), p. 89 ; e com base principalmente nos quais foi editado, em 1873, o Diccion . de Botan . Bnwil.
de JoAQUIM DE ALMEIDA PINTO.
(98)
~:ro ~le f es~ela
01
côr atribuída pelo autor à garganta da ave, vê-se ue a é ·
to l~melro a reconhecer mais tarde (cf. B eitr. Naturu. Bra~. IV ~sp :::;;•
u a a co_m o nome de R. Temminckii), não é descrita por Lfnne~ c~m d
(100) Vê.se que essa fazenda deve, seguramente, ter tirado o nome da lagoa
existente junto ao litoral fluminense, pouco antes de Ponta Negra. Segundo o informante
n e ea a que nos referimos em nota anterior (62) a verdadeira denominação dessa lagoa
~os~e r~~on~:'rpa~tos d •cg!oru s, mas sim R. a?:iel V_igors, que tem habitat ma is meridional seria "Gururupina "; não obstante, Moreira Pinto (Apontam. para o Diccion. Geograf.
madu I . edo seu •co esverdeado (e nao preto) e garganta amarela côr de limão do Brazil, 11, pág. 46) escreve Gururapina, ao passo que na " Carta corográfica do
espéciro,r a aranJa a no centro. Aliás, na Serra dos órgãos teve Wl~d noticia da Estado do Rio de Janeiro, comemorativa do 1.0 centenário da Independência", lê-se
e •neana sem cbegar a vê-Ia (cf. Beit!·. IV, p. 281). "Guarapina", grafia decerto mais próxima da registrada pelo nosso viajante.
DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 51
50 VIAGEM AO BRASIL

ao cansaço, e o costume de andar sempre descalços, dão-lhes grande


respondem às já descritas e figuradas por Koster e outros viaJantes.
superioridade nesse gênero de trabalho. A vinheta que antecede êste
A cana é colocada entre três cilindros verticais que se engrenam uns
capítulo representa dois dêles, de volta de uma caçada. Vestem-se
nos outros _ror meio de dentes de madeira dura, e assim a esmagam.
de uma leve camisa e calças de algodão; muitas vêzes levam uma
A cana sa1 do outro lado como palha espremida e completamente
jaqueta sôbre o ombro, usando-a quando chove, ou nas noites f:ias. A

achatada; e o caldo é recebido numa tina de madeira, colocada em-


Cobrem a cabeça com um chapéu de palha ou de felt:o. Um em to
baixo. Os cil_indros são movidos a bois, burros ou cavalos por meio
de couro, passando sôbre o ombro, sustenta o polvannho e o saco
de um compndo varal. Em seguida, o caldo é fervido em caldeiras
de escumilha, ao passo que o gatilho da longa espingarda. é geralme~te
e pôsto depois para cristalizar em grandes potes afunilados, com um
resguardado da umidade por meio da pele de um ammal. ~ss1m
orifício no fundo, por onde se escoa o líquido em excesso; a superfície
equipado, um dos caçadores trouxe-nos ~m macaco berrador o~, gua-
do ~çúcar que enche o pote é depois coberta com barro que se diz
riba"l04; outro tinha pendurado à espmgarda um grande_ tem (La-
servu para clareá-lo 101 . Assegurou-nos o Sr. da Cunha Vieira que,
certa teguixin, Linn.) e na mão alguns pássaros, entre os quais _cha~ava
com. 20 escravos, _obtém agora~ anualmente, cêrca de 600 arrôbas (de
a atenção um tucano. Os cães, que costumam levar consigo estes
32 hbras), o~ seJam 19.200 libras de açúcar; e que se tivesse mais
braços, poden~ fazer de 90 a 100.000 libras. Cultivavam a princípio caçadores, servem na caça de veados e porcos do mato.
a cana de Catena; tornando-se, porém, conhecida a de Taitilo2, e A temperatura de Gurapina era muito variável; havia dias tão
revelando-se_ es~a muito mais produtiva, substituiu quase completa- frios, que o termômetro marcava 13° Réaumur105 , ao meio-di~, embora
mente a pnmetra- tivéssemos períodos de tempo cálido e agradável. Muttas vêzes
Nosso amável hospedeiro deu-nos um alpendre bastante espaçoso penetrei naquelas matas sombrias que cobriam as m~mtanhas, e onde
para abrigar tôdas as pessoas com a sua bagagem e onde pudemos poderia ficar o dia inteiro, extasiando-me com a qm7tude e o solene
ainda acender muitos fogos e cozinhar. Tanto êle como os demais silêncio nelas reinantes, e apenas quebrados pelo vozeno dos bandos de
moradores da fazenda, vinham visitar-nos com freqüência e não tinham papagaios. Tanto mais satisfeitos e felizes vivía~os no me_io dêsses
meios de exprim~r a. admiração ante o nosso trabalho de preparar prazeres, nos arredores de Gurapina, quanto. ~av1amos obti~O farto
exemplares de htstóna natural. Como começassem a cair grandes suprimento de provisões frescas. As que o viaJante, no Brasil, pode
a~uaceiros,. demoramo-~os bastante aí, e quando o tempo levantou, carregar consigo consistem em farinha de mandwca (comumente cha-
t1vemos ótima oportumdade para caçadas produtivas nas altas mon- mada apenas "farinha"), feijão prêto, milho, carne salgada ("c~me
tanhas cobertas de mata, que circundam o vale cheio de canaviais. sêca" ou "do sertão")• e arroz. Em vez de carne sêca, consegmmo~
Um môço português, chamado também Francisco, que vivia na boa carne fresca; o proprietário da fazenda forneceu-nos grande
fazenda entrou para o nosso serviço como caçador, e revelou extra- quantidade de excelen~es lara~jas, como t~mbém de _agu~rdente de
ord~nário~ talentos nesse mister. Era de compleição franzina, mas cana, arroz, açúcar, fannha, milho e algodao; e era tao hbe:al, que
mmto reststente, de esplêndida pontaria e muito boa índole. Conhecedor não aceitou a menor retribuição por tudo isso. Essa re~usa o~ng?u-n?~
J?rofundo da região e da sua fauna, conseguiu-nos uma porção de a partir mais cedo do que o faríamos em outras Circunstan_Cias, Ja
m~eressantes. exe~plares, entre os quais devo mencionar a mariquina que a nossa situação ali, além de outra~ vantage~s, no_s trazia a de
(Szmza rosalza, Lmn.) 103 que até então não havíamos obtido. A "ara- obter abundante material para a proveitosa contmuaçao das nossas
ponga" (Procnias nudicollis), como já foi dito, era muito comum pesquisas científicas. Assim, despedimo-nos de nosso hospedeiro e
em tôdas essas montanhas e de todos os lados ouviam-se as notas metá- rumamos para Ponta Negra.
licas de seu canto. Francisco foi quem primeiro conseguiu êsse lindo (*) Em Pernambuco chama-se, segundo Koster (pág. 123 e 180), "carne do Ceará".
pássaro par~ a ?ossa coleção. Os bons caçadores brasileiros possuem
extraordmáno tmo para explorar as florestas; sua enorme resistência (104) Os "guaribas", ou "barbados", chamad~s no sul "bugios", formam hoje .o
grande gênero Alouatta Lacépede (= Mycetes Illtger, Stentor Geoffr.). A espéc1e
a que alude Wied outra não é senão o "bugio rui_vo", Alouatta fusca (Geotfr., 18I2),
_ (101) Introduzido no Brasil em começos do século XVII é êste ainda em todo de que Simia ursina Umboldt, 1815, é um dos slnouimos. Os macbos adultos têm o
sertao o processo usual de fabricação do açúcar, quer no que respeita à moagem pêlo ruivo ao passo que os jovens de ambos os sexos têm-no ordinàrlamente muito
da cana, quer no que se refere à cristalização do xarope e à refinação consecutiva. mais escur;,, às vêzes quase prêto. E' espécie exclusiva da faixa litorânea compreendida
Cf. Rev. Mus. Paul., XX, pp. 7 e 8. entre a BaWa e o Rio Grande do Sul, voltando a ser mencionada várias vêzes pelo
autor, no decur o da obra. Mais para o interior, nas bacias dos Rios Paraná e
(102) Wied escreve " OtaWtl", forma de transição entre o nome atual e "Otaheite" São Francisco, ela é substituída pelo "bugio prêto", Alouatta. ca.ra.va (Humboldt, ISll),
primitlv~~; ?enorninação da ilha principal do arquipélago da Sociedade (situado no Pací: que o príncipe de Wied iria depois encontrar, nos confins de Bahia e Minas.
fico meridional) . Cf. Wied Beitrllge, I, p. 48; idem, Abbildungen; H. von Iherlng, Rev. do Mus. Paulista,
_ (103) ~ontoceb~ rosalia (Linn.), cb31mado vulgarmente "sauim-piranga" e " mico- IX, 1914, p. 281-256.
leao vermelho . já hoJe multo raro, hab1tava as matas do Brasil oriental do Rio (105) O que equivale a 16° centlgrados.
de Janeiro ao Espírito Santo. '
52 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 53

Os caminhos eram às vêzes tão maus, que os nossos animais cor- Museu de Berlim), ali chamado "sabiá"I09, desferia o canto melancólico,
riam o perigo de atolar-se sob o pêso da enorme carga. Cavalgamos mas agradável, do cimo dos arbustos. Ao crepúsculo, os bacuraus
entre moitas espêssas de altas gramíneas, de Canna, de Rhexia e de (Caprimulgus) esvoaçavam ao redor dos nossos cavalos, e bem assim
pequenas palmeiras; encontramos, em algumas elevações, negros des- uma grande falena de côr azul-ardosiado (Papilio idomeneus, Fabr.)*,
bastando o mato com segadeiras de cabos compridos ou "fouces", de que poderíamos caçar muitos exemplares, se tivéssemos uma rêde
para tornar o terreno próprio à lavoura; e, em algumas fazendas própria. Achei um morcêgo morto pendurado num galho, na posição
que atravessamos, havia fileiras ou sebes compactas de laranjeiras. mesma em que devia estar antes de morrer. Pertencia ao gênero
Com os bolsos e as sacolas pesadas de passarinhos e de diversas Phyllostoma 110 e assemelhava-se bastante ao descrito por Azara com o
espécies de sementes então maduras, chegamos, por fim, à Lagoa da nome de Chauvesouris premiere ou obscure et rayée u . Foi o único
Ponta Negra. Nas margens brejosas e cheias de caniços dêsse bonito exemplar que vi dessa espécie durante todo o transcurso da minha
lago, vimos grandes bandos de jaçanãs ( Parra jacana, Linn.)I06 e viagem.
garças brancas, sendo que uma destas foi abatida pelo nosso caçador; Quando íamos examinar a flor de uma palmeira baixa, encon-
mesmo nos pântanos a plumagem branca de leite dessa ave conserva tramos, seguro a um ramo, o ninho hàbilmente construído de um
sempre a mais deslumbrante pureza, devido às longas pernas. beija-flor de coroa azul, espécie que se parece bastante com Tmchilus
Alcançamos uma venda solitária, não longe do lago, onde os via- bicolor (Saphir éméraude, Buff.).,.* 111 • Era elegantemente revestido
jantes abatidos pelo calor costumam refrescar-se com limonada, ou com musgo, tal como os ninhos do nosso pintassilgo ou de outros
melhor, com um ponche frio. Aí soubemos que a notícia da nossa passarinhos. Em todos os ninhos acham-se dois ovos brancos, extrema-
próxima chegada nos precedera, e que o proprietário já imaginara mente pequenos em algumas espécies. Continuando o caminho,
especular sôbre as nossas bôlsas. De uma eminência perto da casa, passamos à noitinha por uma porção de lagoas onde cintilavam
admiramos lindo panorama da lagoa, do oceano, e da região do Rio insetos luminosos e coaxavam as rãs, e, após longo dia de jornada,
de Janeiro que ficara atrás de nós. Mais além, nos matos que atra- chegamos a uma venda situada junto à lagoa Saquarema112 , onde
vessamos, descobrimos, e em quantidade, um pássaro ainda intei- encontramos os cargueiros e camaradas, que tinham seguido outro
ra_mente desconhecido para nós, o anu grande (Crotophaga major, caminho. Esperávamos encontrar as panelas no fogo; porém faltava
Lmn.) 107 . A plumagem é negra, lustrada de azul-ferrête e verde cúpreo. aqui tudo que é necessário para preparar uma refeição. Mandamos,
Aí ouvimos o fragor das vagas, e logo depois surgiram as dunas, de por isso, alguns serviçais em busca de provisões; mas demoraram
onde se viam as ondas espumejantes rebentarem violentamente de tanto, que começamos a desesperar da volta e despachamos outros
encontro às penedias selváticas da costa. Próximo à areia branca da atrás dêles, a cavalo. Voltaram com os nossos mensageiros, trazendo
"praia" há um intrincado mato de várias espécies de árvores mofinas apenas em seus sacos de couro ("bruaca") peixe fresco. A noite,
de crescimento tolhido pelos ventos do mar e pelas tempestades. Ness~ porém, já passara e a ceia converteu-se em almôço.
cerr~do, de cêrca. de vinte a trinta pés de altura, através do qual
contmuamos a v1agem ao longo da costa, vicejam altos Cactus. e (* ) (Suplem.) Minba borboleta se ajusta perfeitamente à descrição que dá
Fabricius de Idomeneus, como ainda concorda com a figura d e Seba, tomo IV, ta b. 81,
abundam bromélias de formosas flôres. Pequenos lagartos faziam fig. 8 e 4.
ruído nas fôlhas sêcas das moitas, enquanto o grande anu, e o tié (** ) V. DoN FELIX DE AzARA, Essais sur l'histoire naturelle des Quadrupédes
d e la Provin ce d e Paraguay. Tomo 11, p. 269 .
(Tanagra brasilia, Linn.) de plumagem vermelho-sanguínea, animavam ( *** ) Trochilus pileatus: 4 polegadas e oito linhas (medidas de Paris); corpo
de soberba côr verde-metálica; alto da cabeça, cauda bifurcada, remlges e grandes
a cena. Este lindo pássaro é muito comum no Brasil, sobretudo coberteiras das asas cinzento-escuras; região anal branca; bico direito.
perto do litoral e nas margens dos rioslos.
A tarde, estávamos entre o mar e um grande caniça! brejoso, (109) Turdus ruji ventris Vleillot, vulgarmente " sabiá-laranj eira" (São Paulo),
"sabi á~oca" (Bahia), " sabiá-gongá" (Pernambuco) etc. Admite-se que no nordeste
onde bandos de pássaros vinham chegando para dormir: o "tié" era do Brasil a espécie esteja diferenciada numa raça particular, Turdus rufiventris juensis
(Cory) de colorido apenas mais desbotado.
abundante, e o tordo de ventre vermelho (Turdus rufiventris do (110) :esse exemplar vem descrito nos B eitrãge (11, p . 200 ) com o nome de
Phyllostoma supet·ciliatum, sendo assim posslvel referi-lo, com segurança, a Artibem
jamaicensis Leacb. 182 1, em cuj as populações este-brasileiras é hábito sepa rar subespecl-
(106 ) Jacana spi n osa jacalUl (Linné), pequena pernalta comunlssima em tôda& ficamente como A. jamaicensis litturatus (Licbt., 1825).
as lagoa s e pân ta nos do sertão. Os dedos extraordjnà ria mente longos permitem-lhe (111) Em nota marginal dá Wied a descrição do beija-flor por êle observado,
a ndar cômodamente sôbre as grandes fôlha s dos aguapés (Nymphaea) que flutu a m na apHcando-lhe o nome de Trochilus pileatus; só ma is tarde (Beitr. IV , p. 85) é que
superflcie. O nome vulgar "piaçoca" (=aguapé-soca) está em relação com êsse fato. verificou corresponder êle a uma espêcie já anteriormente descrita por Gmelin, sob
(107) A espécie, encontradiça nas margens dos gra ndes rios do Brasil onde quer a denominação de Trochilus glaucopis (e hoje pertencente ao gênero Thalurania Gould).
que haja abundância de matas, é vulgarmente conhecida por "anum de' enchente" O " Saphir éméraude " de Buffon (Tha lurani a bicolor, Gmel.) é peculi a r às Antilhas
" anum-peixe " (São Paulo), " anum coroca ", "corola " (Bahia), etc. Cf. O. PINTO, Rev: e difere da nossa espécie principalmente pela côr da garganta , que é a zul, como o a lto
Mus. Paul., XX, p. 158. da cabeça (e não verde).
(108) Cf. nota 68 da página 88. (112) No original vem sempre "Sagoarema".
54 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 55

O lago Saquarema comunica-se com o mar e tem vasta extensão, (6400 réis) por libra; mas os próprios colonos destruíram o lucra-
cêrca de 6 léguas de comprimento por % de largura. A água é tivo comércio, adulterando essa valiosa mercadoria com farinha, a
salgada, e embora, em alguns lugares, desprenda um cheiro desagra- ponto de tomá-la imprestável. No dia seguinte, domingo, meus com-
dável, contém muito peixe. Existe aí uma povoação esparsa de panheiros assistiram à missa na Igreja de Saquarema; enquanto isso
pescadores, que habitam as margens, em casebres de barro. Cada eu fazia transportar a bagagem em canoas, atravessando o lago, e
casa possui um poço cavado no terreiro, que serve como cisterna, a os animais, descarregados, passavam a pé através da água pouco
água da lagoa sendo muitas vêzes suja. ~sses pescadores andam profunda.
muito à frescata, como todos os brasileiros, usam largo chapéu de Deixando o lugar acima, entrávamos agora em florestas cheias de
palha, calças leves e folgadas, camisa deixando o pescoço descoberto, belíssimas flôres. A maior beleza dessa zona está na quantidade de
e os pés descalços. Todos carregam à cintura uma afiada faca de lagos espelhantes, que se estendem de Maricá às cercanias de Cabo
ponta, com cabo de latão ou de prata. Esta arma é de uso geral Frio. Bandos enormes de aves aquáticas vivem nas margens dessas
entre os portuguêses; mas é muito perigosa, dando freqüentemente lagoas; principalmente andorinhas do mar, gaivotas e garças, de
lugar a assassinatos, mormente entre homens rudes como são os pesca- que em pouco tempo matamos grande quantidade. Impõe-se ao
dores de Saquarema. A venda situada nas margens do lago é mantida ornitólogo a observação de que a maior parte das aves aquáticas e
por tôda aquela gente, e os lucros são divididos entre êles; não é palustres dessa região tem espécies análogas na Europa; vimos assim
preciso dizer que os viajantes pagam aí mais caro que alhures. A uma espécie parecida com Larus ridibundus, o Larus marinus} e
uma légua mais ou menos dêsse lugar, fica a freguesia de Saquarema, Sterna· caspia} hirundo} e uma terceira muito semelhante a minuta 113 •
grande aldeia, ou antes pequena vila, com uma igreja. Como a A diferença que há entre estas aves, tanto na América como na Europa
nossa tropa tinha que atravessar a lagoa, que aí deságua no mar por é, muitas vêzes, insignificante. A menor das andorinhas-do-mar•
estreito canal, alojamo-nos numa casa vazia, e aproveitamos a oportu- era muito abundante nas dunas da costa; essas lindas aves voavam
nidade para explorar os arredores. como as andorinhas, e a brilhante plumagem branca mais se destacava,
Não longe da freguesia, ergue-se sôbre a praia uma colina, onde então, em contraste com os nimbos do céu sombrio. Por detrás das
estão a igreja, o cemitério e o pôsto telegráfico. Subimos a colina dunas litorâneas apareciam extensos pântanos, e o terreno arenoso de
ao pôr-do-sol. Que cena grandiosa e sublime contemplamos então! permeio era coberto de uma densa vegetação de coqueiros anões de
À nossa frente, o oceano imenso, espumejando aos pés do monte em cêrca de três pés de altura. Essa planta, que não tem caule, possui
que estávamos; à direita, nos longes do horizonte, as montanhas fôlhas penadas encurvadas para baixo, ou senão enroladas, e cachos
do Rio; mais próximo, o longo litoral recortado, e, mais perto ainda, presos a uma haste erecta semelhante à da Typha, e com coquinhos do
Ponta Negra; atrás, a serra coberta de matas, que se estendem também tamanho de uma avelã; alinham-se êstes como os grãos de milho,
até a baixada, e, de permeio, a vasta superfície espelhante do lago. e têm na base uma substância comestível, vermelho-amarelada, de
Aos nossos pés a freguesia de Saquarema, e, à esquerda, a costa, gôsto adocicado. A planta é conhecida neste lugar por "côco de guriri"
aonde as vagas vinham rebentar com tremendo estrondo. ~sse enorme ou "pissandó"•• 114 •
cenário, iluminado pelos últimos raios do sol agonizante, e aos poucos
(*) Chamo essa ave Sterna a!'Uentea: é fácil confundi-Ia com a nossa Sterna
esbatido nas brumas do crepúsculo, despertou em nossas almas a sau- minuta, mas é diferente; o tamanho excede o da ave européia, medindo nove polegadas
dade da pátria longínqua. Encostados numa sepultura, perto de um e uma linha; o bico e os pés são amarelos, a ponta do bico é preta; a parte
anterior da cabeça e tôdas as partes inferiores da ave são brancas, o alto da cabeça
montão de crânios empilhados debaixo da cruz de um muro musgoso, e o pescoço, negros; o dorso, as asas e o rabo de um lindo cinzento-prateado.
(**) (Suplem.) O Prof. Nees von Esenbeck chama a esta planta Allauoptera
ficamos a cismar silenciosamente. Então sentimos com intensidade pumila, caracterizando-a da seguinte maneira: "Classis Linneana Monoeci~ Monadelphla.
quantas privações tem que arrostar o viajante, que, impelido por irre- Fam. nat. Cicadeae. Spadix simplex. Flôres à' e 9 quincunciatlm positt. - à' Calyx
sistível desejo de alargar os seus conhecimentos, sente-se sozinho num triphyllus, corolla tripetala, filamenta 14, basi connata. Antherae llberae. 9 Calyx
et corolla maris, ampliores. Stlgma cuneiforme. trifidum. Drupa monosperma. " O Prof.
mundo desconhecido. A vista tentava em vão penetrar o misterioso Martius em sua já citada obra sObre as palmeiras, divulgará a descrição feita pelo
véu do futuro, e a imaginação calculava todos os reveses ainda por Sr. Ne~ von Esenbeck com os exemplares que lhe remeti.
vencer, antes de tomarmos às plagas natais, através do oceano desme- (118) A espécie em que Wied reconhece semelhança com Larus ridibundus (Linn.),
é, como ficou dito antes (v. nota 91), Larus cirrlwcephalus Vielll.; Larus marinus
dido. A noite pôs fim a essas meditações. corresponde a L. dominicanus Licht. (v. nota 23). Das três andorinhas-do-mar, a parecida
Voltamos para Saquarema, habitada principalmente por pesca- com Sterna caspia (e descrita em Beitraue sob a denominação de St. erythrorhvnchos)
é o "trinta-réis grande ", Thallasseus maximus Boddaert, da atual nomenclatura; a tomada
dores, que também tiram da agricultura parte da subsistência. Anti- por St. hirundo é St. ltirundinacea Lesson; a semelhante a St. minuta (St. aruentea
Wied) é a nossa Sterna superciliaris Vielll.
gamente criavam aí, em grande quantidade, a cochonilha, mas essa (114) De acôrdo com a nota acrescentada por Wied, em suplemento ao seu livro,
criação foi abandonada. Comprava-a o Rei pelo preço de meio-dobrão o "cOco de guriri" seria, segundo Nees von Esenbeck, uma Cicadácea ; entretanto, nas
56 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 57

Resolvemos passar a noite na fazenda do Pitanga, que avistamos outras coisas, a velha igreja. Pelo meio-dia, estava carregada a nossa
numa eminência fronteira, semelhante a um castelo antigo, deslum- tropa, e o administrador prestou-nos grande serviço acompanhando-
brantemente iluminada pelo branco clarão da lua. Cavalgando até nos a cavalo para indicar o caminho. Se a noite nos apanhasse, a
à casa, batemos no portão, que pouco depois se abria para receber- teimosia dos burros nos teria, decerto, feito perder na treva parte
nos. O obsequioso feitor (administrador) veio imediatamente indi- da bagagem, nos péssimos caminhos, então debaixo de ~huva; porque
car-nos a casa em que a farinha é preparada. Aí encontramos quartos os animais, sem poderem andar carregados pelas estreitas sendas da
espaçosos para todos, e por isso resolvemos permanecer alguns dias floresta, esbarravam nas árvores, alijavam-se da carga e fugiam para
e explorar cuidadosamente as vizinhanças. a mata. Gastamos tanto tempo para pegá-los e de novo amarrar-lhes
Esta fábrica de farinha era muito grande. Para preparar a farinha, os fardos, que resolvemos prosseguir com mais precaução e derru-
as raízes da mandioca (Jatropha manihot, Linn.)llõ são a princípio bar os troncos que nos impediam a passagem. Afinal, chegamos a
perfeitamente descascadas; depois, levadas a uma grande roda girante, um pedaço mais desbravado, onde havia grandes charcos, balcedos e
em pouco se reduzem a polpa fina. A massa é colocada em seguida enormes poças dágua, que fomos obrigados a vadear; contingência
em grandes sacos, feitos de taquara ou de embira, que são pendurados desagradável para os que iam a pé, sobretudo para os caçadores euro-
e esticados ao comprido; dêsse modo espremem-se os sacos, expulsando peus, ainda desacostumados a tal modo de viagem. Devido ao atraso
o líquido existente na polpa utG . A parte sólida restante é posta conseqüente a êsses aborrecidos estorvos, já era noite avançada quando
em seguida em grandes tachos, de cobre ou de barro cozido, nos chegamos à fazenda de Tiririca, aonde mandamos na frente um
quais fica completamente sêca pelo calor; porém a espêssa massa, para cavaleiro pedir pouso para noite. O proprietário, capitão-mor, desti-
não queimar, deve ser constantemente mexida por meio de um pau, nou-nos, de início, para nosso alojamento, o engenho de açúcar;
tendo na extremidade, transversalmente, uma tábua. O pó sêco, como, porém, lhe mostrássemos a nossa portaria (passaporte fir-
assim preparado, é chamado "farinha". Quando o tempo estava mado pelo ministro), tornou-se extremamente gentil e convidou-nos
úmido, muitas vêzes secamos os exemplares recentemente preparados para a casa dêle. Não aceitamos, porém, o convite, resolvidos, previa-
sôbre os tachos de mandioca; e embora deixássemos sempre uma mente, a ficar com o nosso pessoal.
pessoa vigiando durante a noite, perdemos alguns espécimes raros Tiririca é um grande engenho de açúcar, aprazivelmente situado.
destruídos pelo fogo. O engenho fica ao pé de uma verde colina, em cima da qual se
O tempo tornou-se muito frio; forte vento soprava sôbre o lito- ergue a casa do dono, rodeada por cêrca de vinte pequenos casebres
ral, o termômetro mal ia a 13° Réaumur ao meio-dia. Essa região, para os criados e os escravos. Enormes canaviais cercam a fazenda;
onde se alternam pântanos, campos, bosques e florestas, forneceu-nos seguem-se, mais além, densas e altas matarias; e bem defronte do
m~ito~ animais ~nteressantes. Nossos caçadores conseguiram, pela engenho existe um trecho inundado e pantanoso de campo, onde
pnme.Ira vez, a pcupemba (Penelope marail, Linn-)117, cuja carne afluem inúmeras aves aquáticas e ribeirinhas, que pudemos matar
é mmto sabor~sa, ~ também os tucanos verdes, ou "araçaris" (Ram- das janelas. Na manhã seguinte, depois de almoçarmos, com o nosso
phastos aracan, Lmn.) 118 , belas aves que dão um curto o-rito de amável hospedeiro espalhamo-nos pelo mato. O Sr. Sellow e eu atra-
duas sílabas. b vessamos os canaviais, e passando por outras pequenas fazendas, cer-
A paisagem, dêsse ponto, era ampla e admirável; um telégrafo cadas de laranjais, penetramos numa daquelas florestas virgens, que
se correspondia daí com o de Saquarema, que se divisava ao longe. durante a minha estada no Brasil sempre me proporcionaram as mais
Pitanga era a princípio um convento, como o parece provar, entre gratas emoções. Na orla da mata, altaneiros troncos de árvores
mortas traziam a marca do fogo, por meio do qual se havia desbravado
(*) Cf. Gilii Saggio di Storia americana, tomo li, p. 304 e ss., tab. 5.
- -- - a região. A mata era uma escura selva formada por velhas .árvor~s
Corrections à edição francesa (vide o prefácio desta 2.• ed.) o autor identifica a mencionada de porte colossal, tais como Mimosa, ]acaranda, Bombax, Bzgnonza
planta com a palmeira descrita por Martins sob o nome de Diplothemium campestre.
A obra de MARTIUs Genera et species Palmarum, etc., de que há menção na nota, e o pau-brasil (Caesalpinia brasiliensis) 119 , sôbre que como sempre
veio a lume em 1824. viviam, ou em que se enroscavam, Cactus, Bromelia, Epidendrum,
(ll5) Na edição alemã In avo lê-se "Mahinot", por evidente lapsus.
(ll6) Ct. 0. PINTO, Rev. Mus. Paul., XIX, p. H-15 (1935) . Passiflora, Bauhinia, Banisteria e outras trepadeiras, cujas raízes se
~117) Penelope marail Gmelin (= P . jacupeba Spix) é espécie amazônico-guianense
que nao ocorre a leste do Brasil. Nos Beitr(Jge retifica Wled o engano, aplicando prendem ao solo, enquanto as fôlhas e as flôres se expandem nos cimos
à ave de que se ocupa o seu verdadeiro nome, P enelope super cü i aris Illinger. Não
obstante, a ave este-brasileira é hoje considerada raça particular, sob a denominação
de P. supercüiaris jacupemba Spix. (119) Caesalpinia echinata Lam. A árvore existia em abundância nas matas
_ (IIS) Os "araçarls ", de que há no Brasil uma dezena de espécies, formam o do Brasil oriental e setentrional, do Amazonas a São Paulo. Tem ainda grande
genero PteroglosBU8, bem distinto do dos verdadeiros "tucanos", Ramphastos. E' exata emprêgo na Indústria tintorial, como verifiquei no Rio Jucurucu (sul da Bahia), onde,
a determinação da espécie, como se pode verificar pela descrição em Beitr., IV, p. 288. em 1933, pude ver grandes lotes destinados à exportação.
58 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 59

das mais altas comas, motivo pelo qual só podem ser examinadas troncos, em companhia do bonito pica-pau de topête amarelo-pálido
abatendo-se um dêsses gigantescos reis da floresta, cuja madeira, de (Picus flavescens)1 23, do de penacho vermelho (Charpentier à huppe
extrema dureza, desafia o gume mais afiado. et cou rouge, Azara)1 24 e de Picus lineatus 12 õ. Caçamos, às vêzes .
Entre as trepadeiras, é muito interessante a Bauhinia, cujos for- em quantidade grande, os periquitos de rabo cuneiforme, aí cham~do~
tes caules lenhosos crescem sempre em arcos de círculo alternados; "tiribas"+126. Ao entardecer, tive a sorte de obter o pavó, ou Pze a
a_ concavidade de cada arco é como que artificialmente escavada pelo gorge ensanglantée de Azara. E' um belo pássaro negro, do tamanho
onzel curvo de um escultor, e no lado oposto convexo há um espinho de uma gralha, tendo a parte anterior do pescoço de um vermelho
curto e rombo 120. Essa planta original, que fàcilmente se confunde vivo127. O Sr. Sellow não encontrou muitas plantas novas; mas achou,
com uma obra de arte, trepa ao tôpo das mais altas árvores. A fôlha em grande porção, a Alstroemeria ligtu, Linn., de belas flôres ver-
é pequena e bilobada; mas nunca vi a flor, se bem seja a planta melhas raiadas de branco. Caçou também uma cobra, que, embora
bastante comum. O aroma desprendido por muitas dessas trepadeiras muito comum aí, é uma das espécies mais formosas do grupo. E'
é forte e variável; o cipó-cravo tem cheiro muito agradável seme- conhecida na região por "cobra coral", ou "corais"; mas não se deve
lhante ao do cravo; outras, ao contrário, como observou La Con- confundi-la com a "Coraes" descrita por Lacépede, Daudin e outros••.
damine•, viajando pelo Rio Amazonas, cheiram a alho. Muitas dão O nome da cobra coral é de todo justo; o mais vivo escarlate alterna-
longos ramos para baixo, que se enraízam; o que estorva o caminho se, no corpo liso, com anéis pretos e branco-esverdeados, de modo que
do viaj~nte, ~brigando-o a cortá-los com o facão antes de poder o inofensivo réptil pode ser comparado a uma enfiada vermelha de
prossegmr. Ha galhos pendurados que, quando os agita o vento, dão, contas coloridas128. Conservei-a muitas vêzes em álcool; porém nunca
freqüentemente, rudes pancadas na cabeça do transeunte. Em geral,
a vegetação é tão luxuriante nesses climas, que veriws em cada velha (*) O papagaio conhecido na maior parte da costa 01~ental por tiriba, parece-me
ser uma espécie ainda não descrita, que eu denominei PBlttacus cruentatus. E' do
árvore um verdadeiro jardim botânico, muitas vêzes difícil de atin- tamanho de um tordo, tem um longo rabo cunelforme e . 8 polegadas e 11 linhas de
gir, e formado de plantas certamente na maior parte desconhecidas. comprimento; plumagem verde: o alto e a parte postenor da cabeça são castanho-
acinzentados; as bochechas e o mento verdes; entre o ôlho _e o ouvido, pardo-avermelhado;
Matamos aí muitos pássaros bonitos. O surucuá de barriga amarela atrás do ouvido, no lado do pescoço, uma mancha alaranJada; face anter!or do pescoço
azul celeste; na barriga e uropygium, uma mancha vermelho-sanguínea. PBlttacus erythro-
(Trogon viridis, Linn.) era muito comum; seu canto, de notas repe- gaster do Museu de Berlim.
tidas e cad_a ~e,z mais bai~as, ouvia-se em tôda parte121. Cedo apren- (**) (Suplem.) A que aqui chamo "cobra coral" é uma Elaps e não, como
anteriormente supus Coluber fulvius de Linneu (cf. Merrem, "Versuch elnes Systems der
demos a 1m1ta-los, e ass1m podíamos fàcilmente atrair o pássaro, Amphibien", pág. u4, e "Verbandl. der Kaiserl. Leopold. Caro!. Acad. ", tomo 10, pág. 105,
q?~ pousava nos ramos baixos, perto de nós, onde o matávamos sem onde eu apresento uma figura dêste belfsslmo réptil).
d1hculdade. Igualmente abundantes eram as subideiras (Dendroco-
laptes122 de Illiger), de que matamos muitas, quando martelavam nos (123) == Celeus flavescens (Gmelin). Cf. O. PINTO, Rev. Mus. Paul., XIX, P·
(124) "Carplntero gorro y cuelo roxos" de Azara. Phloeoceastes ro bus tus (LI cb -
166, com estampa.
(*) Cf. De La Condamine, Vot~aue, etc. p. 74. tenstein) da atual nomenclatura. Cf. O. PINTO, op. cit., p. 188.
(120) O matuto conhece estas trepadeiras (várias espécies do gênero Bauhinia (125) Ceophloeus lineatus (Linn.). As aves do Rio de Janeiro devem pertencer
Legum-Cesalpin.) pela expressiva denominação genérica de "cipó-escada". Chamam-nas' à raça típica desta espécie, a qual na Bahia é representada por uma outra, C. I.
também, às vêzes, atento o feitio bilobado das fôlbas, "cipó unha de boi" ou "unha improcerus Bangs & Penard, de menor tamanho. Cf. O. PINTO, Rev. Mm. Paul.,
de vaca". XVIII, 2.• parte, p. 59.
(126) Neste lugar descreve efetivamente Wled ~m~ espécie nova para a ClenCia .. .
. . (121) . Exata aqui a identificação da espécie, sendo difícil compreender como nos ornitológica. Sua descrição in-extenstt aparece nos _Bettrlige (IV, pp. 183-88)_, depol~ de
Be~trlige, fm e!a confundida com Trogon tliolacem Gmelln, exclusivo às Guianas e
adJacências. Nao obstante, é admirável de precisão a referência de Wled ao "surucuá" ter sido figurada por Temminck nas Planches Colortées (PI. 888). Tem habitat limitado
de que há no Brasil numerosas espécies, estreitamente semelhantes assim no canto' à faixa oriental compreendida entre Rio de J~neiro e a Ba,?~a (parte" sui), mas é
como nos hábitos. Trogon tliridis Linn. é, contudo, sinônimo de T;. strigilatus Llnn:, assaz comum nos lugares onde ocorre. Na Balua chamam-na fura-mato e sua atual
correspondendo êste _à fêmea e aquêle ao macho de uma mesma espécie. Como é apelação científica é Pyrrhura cru.entata (Wied).
regra e_ntr~ os trogonldas, os machos, cuja plumagem verde-metálica os torna uma (127) E' 0 "pavó" (no original "pavô") da lfngua vulgar, P11roderus scutatus
das ma1s lindas de nossas aves, contrastam fortemente com as fêmeas que têm côr (Shaw) da literatura ornitológica. Grande pássaro frugfvoro, que vive exclusivamente
sombria, acinzentada. O nome preciso da ave referida por Wied é Tr~gon strigüatm na floresta densa e pode ser encontrado desde do nordeste da Argentina até o sul
melanopterm Sirvalns. Cf. Oliv. Pinto, Papéis Avulsos do Dept. de Zoologia IX da Bahia (Cf. O. PINTO, Rev. Mus. Paul., XIX, p. 333).
p. 130 (1950). ' . (128) A espécie de que se ocupa Wled era até então desconhecida da ciência, na
(122) Dá Wied, para correspondente do têrmo em alemão, Spechtpirole Isto é qual Ingressou com o nome de Elaps corallinus, dado pelo seu próprio descobridor.
em tradução justa-lit~ral, "pica-pau-melro". Em ver_dade Dendrocolaptes é o gênero-ti~ (N. Acta Acad. Leopold. Caro!., X, p. 108, tab. IV, 1820). Outra é a descrita por
de uma ~as~ ~aml!ta de pássaros .. neotróplcos, CUJOS hábitos e organização lembram Llnneu e privativa da América Setentrional. Curioso observar que ao príncipe-zoólogo
antes a~ . sub1detras (famflla Certhtidae) ~o Velbo Mundo, que os verdadeiros pica-paus escapa;a a temlbllidade de sua espécie, venenosa como tôdas as pertinentes ao grande
(fam. Ptetdae). Representados por grande numero de espécies no Brasil, alguns freqUentam gênero Micrurm Wagler (Elaps Schnelder), em que o Brasil conta nada menos de 13
os campos, mas a grande maioria vive na espessura da mata, onde se alimentam espécies, segundo a "Lista" de Afrânio do Amaral (Mem. Inst. Butantan, IV, 1929, p.
71 e ss.). Conforme verificaram Stejneger e Barbour, (Micrurus Wagl. 1924), cujo
de larvas e l~etos, que catam hàb!lmente, esgravatando com o bico assovelado, e às tipo é M. spixii Wagl., por monotipla, prevalece sôbre Elaps Schneider (1801), gênero
vêzes lo~gufss1mo, as frinchas das cascas das árvores, os velhos paus melo apodrecidos, politfplco que, embora anterior em data, só teve o tipo ulteriormente fixado por
as touceuas de gravatás eplfftlcos. etc. À diferença dos pica-paus não dão batidas
Flemmlng (1822), em espécie estranha ao grupo das "corais" (Cf. AIIURAL, Rev. Mm.
ou marteladas no lenho com o bico, que é relativamente fraco e ' para Isso não se
presta. Na Amazônia são conhecidos genericamente por "arapaçus". Paul., XIV, p. 7 e ss.).
60 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 61

consegui fixar a bela côr vermelho vivo. No sistema de Linneu, essa tinha nem uma coisa nem outra, e acrescentou que ia ainda ver
espécie de cobra é, sem dúvida, a descrita com o nome de Coluber se nos podia dar água. Mandamos então alguns ~o~ nossos camaradas
fulv~us, segundo espécimes que perderam, no álcool, os esplêndidos explorar as vizinhanças . e comprar o _q_ue pr~Cisavamos em outras
matizes. fazendas. No dia segumte, de manhazmha, Já estava carregada a
À tarde, nosso hospedeiro convidou-nos a cear. Durante o repasto, nossa tropa e mandamo-la à frente; nós, porém, seguimos a cavalo até
as mulheres ~a casa, de. acôrdo com o costume brasileiro, não apare- à casa do Sr. Capitão, mandando dizer-lhe que queríamos apresentar
ceram, mas ficaram espiando, pelas frestas das portas e das janelas, as nossas despedidas. Quando êle apareceu, agradecemos-lhe, com a
os estranhos hóspedes; escravos negros dos dois sexos serviram a maior polidez, a gentileza do tratamento, e acrescentamos que tería~os
mesa. Como Mawe e Koster já deram circunstanciada descrição ,._ o cuidado de informar o Príncipe Regente, no Rio, sôbre a maneira
dêsse e de análogos costumes brasileiros, não preciso deter-me no por que tinham sido satisfeitas as amáveis ~~tenções do Govê~no,
a~s~nto. D~rante a refeição procuramos levar a conversação para manifestadas nos nossos documentos; ao que VISivelmente confundido,
var~as questoes referentes ao país; mas nosso hospedeiro, tão obse- embora rosnando de raiva, berrou: "Que tenho eu com o Príncipe
qmoso sob outros aspectos, pareceu-nos não poder, ou não querer Regente!"
dar qualquer informação a respeito. ' Prosseguindo a jornada, em breve alcançamos um charco rodeado
No dia seguinte, que era domingo, fomos cedinho à missa. Par- de densos matagais, à beira do qual é muito comum o "quero-quero",
timos após o ofício divino. O calor era intenso; refrescamo-nos, ou pavoncinho brasileiro (Vanellus cayennensis)•. Essa bela ave
por. isso, em camin~o, com ponche frio e excelentes laranjas, que, em tem aquêle nome porque à vista de homens ou de outros sêres estranhos
mmtos lugares, obtivemos grátis. Essa magnífica fruta pode ser chu- começam a bradar "quero! quero! quero!", com o que amedronta
pada, em grande quantidade, sem prejuízo para a saúde, mesmo tôdas as outras aves. Encontra-se em todos os pastos, campos e pân-
qu~ndo se . está a~ogueado; diz-se, porém, que não é saudável de
tanos do Brasil. E' também comum neste lugar a grande andorinha
nOite. Mmto mawr precaução é necessária com o côco e outras de coleira branca"'"' 131.
frutas refrescantes. Como a distância de Tiririca a Parati é apenas
(*) E' esta a ave a. que se refere MAWE (Travels inter. Braz., pág. 80), qua.n?o
de três léguas, avançamos através de pântanos e areais cobertos de diz ter matado bonitos "Lapwings", com um esporão vermelbo em cada asa e mmto
mata e chegamos cedo à fazenda, que vimos à distância, num campo, barulhentos. . .
(* *) A andorinha. ai encontrada. (Hirundo collaris) é uma. bomta. espéCie nova.,
e ond.e, dado o p:ecedente do último hospedeiro, deveríamos encontrar do tamanho do nosso Cypselus da Alemanha.. A plumagem é negro-acastanhada., tõda
ela lustrada. de verde; rodeando o pescoço, há um anel esbranquiçado. As pena.~ da.
acolhimento cordial. Fôra ou.trora um convento e possuía uma igreja cauda têm o ra.que terminando em espinho, cujo comprimento excede a uma linha;
n<?va e ~astante g.ran?e, próXImo da qual se erguiam vários casarões. os tarsos não são emplumados; os dedos, muito fortes e unido~, possuem .unhas agudas e
recurvas, próprias para trepar nas roci1a.s. Aci1el essa espéc1e, pela pnmelra. vez, nos
VImos a~, pela pnmerra vez, uma doença que é muito comum no sul rochedos próximos do Rio de Janeiro.
(Suplem.) Segundo o sistema. ornitológico apresentado pelo Sr. !EMMINCK na
do Brasil entre os negros e pode ser chamada de pés inchados129. nova edição de seu Manuel d'Ornithologie (prém. part. pág. XXXIX) Htrundo collar•s
:Estes começam por se cobrir de uma crosta dura e grossa como na é JJm Cypselus. Como ela só tem três dedos para diante e um para trás, eu não
a separei das andorinhas. Hirundo peloogia Linn. apresenta. exatamente a mesma
elefantíase. ' disposição. H. collaris vive nos montes rochosos do Rio de Janeiro e alhures, mesmo
em regiões planas, pôsto que haja. rochedos nas proxl?lldades, como por exemplo nas
Pedi~?s ao proprietário para passar a noite em sua casa; mas, lagoas de Maricá, Saquarema e outras, em tôrno de CUJaS margens voe)a.. Em contraste
ao co~ltrano ~os outros lavradores brasileiros, que até então só nos com esta grande andorinha, acha-se no Rio de Janeiro uma outra e~pécle mU;Ito pequena,
que tenho por ainda não descrita, motivo pelo qual. dou a segmr,. resumidamente, os
IJ?-ereCia~ elogws, deu-nos uma varanda13 0 miserável junto às estreba- seus caracteres. Hirundo minuta: 4 polegadas e 8 linhas de compriment.o, 8 polegadas
e 4 linhas de envergadura; bico negro; pés bruno-escuros; dedo médiO quase duas
nas, CUJa coberta nos abrigava da chuva, mas que nos deixava comple- linhas mais comprido do que os restantes; calcanhares implumes; dorso dos pés
tamente expostos ao tempo de todos os lados. Retirou-se à nossa escutelado; partes superiores inteiramente pretas, lustradas de azul-ferrête; CS:uda leve-
mente bifurcada. e sem brilbo, como também as asas; ventre, garganta. e peito alvos:
chegada, provando, assim, que os nossos amigos de Tiririca, apresen- coberteiras inferiores da cauda e crlsso bruno-pretas, às vêzes com algum hnlbo esverdeado,
rebordo dianteiro das asas um pouco escamado de branco; juvenis com a fronte
tando-o como homem hospitaleiro, tinham-lhe prestado imerecida e o baixo dorso mesclados de pardacento. Nldlfica abundantemente nos edifícios da. cidade.
homenagem. Mandamos pedir-lhe um pouco de arroz e de milho
(181) Trata-se de Streptoprocne zonaris (Shaw), uma das duas espécies conhecidas
para os animais, mas êle negou tudo, sob o pretexto de que não pelas denominações vulgares de "andorinha-coleira", "taperussu", "andorlnhão", etc. Por
exemplares fornecidos por Wled, foi ela pouco depois ( 1823) representada a côres por
Temmlnck. na PI. 195 do seu famoso Nouveau Récueil de Planches Coloriées, com o
(12_9) Afecção provàvelmt;nte do grupo dos micetomas. 1tstes têm como causa 0 nome de Hirundo collaris. Já era. todavia conhecida da. ciência, através de Sha.w (1796),
~esenvolVlmento, dentrl? dos teCidos, de determinados cogumelos parasitas, cujo número, cuja denominação por isso prevalece. No tomo III Beitriige, há informes complementares
Já bastante elevado, amda cada dia cresce, com o descobrimento de novas espécies. sõbre a ave dos quais o mais interessante é o que se refere à sua existência, por
.. (ISO) ;•vara_nda", t.êrmo empregado aqui no seu sentido de "alpendre ", "puxado" aquêle temp~. nas pedras do aqueduto ("Arcos da Carioca") da cidade do Rio. Outro
ou . t~lhe1ro , ma1s legitimo do que o de sala. de refeições, que veio entretanto a taperussu, do mesmo porte e encontradiço também nos Estados do. sul, é Streptoprocne
adqmnr, atualmente, em certos meios, especialmente entre os paulistas do Interior. biscutata Sclater, com uma nódoa. branca na nuca e outra no peito, em vez de colar
62 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 63

O calor estava, agora, mais abafadiço do que nunca; nem a mais todos os índios têm a fisionomia peculiar à raça, que foi descrita
tênue aragem perpassava, ao passo que a areia escura e sêca refletia mais detidamente a propósito da nossa visita a S. Lourenço; entre-
os raios do sol, aumentando a ardência atmosférica. tanto, ela é aqui ainda mais característica. As roupas e a linguagem
Na mata atravessada pelo nosso caminho, os caçadores mataram eram as das classes baixas portuguêsas, e somente em parte conserva-
uma bonita espécie de maracanã (Psittacus guianensis, Linn.)13 2, vam o conhecimento da língua original. Tinham a presunção de
que se encontra aí em bandos incontáveis. Chegamos, além da flo- querer passar por portuguêses e olhavam com desprêzo os irmãos
resta, a um lugar onde numerosos índios de S. Pedro ocupavam-se ainda selvagens das florestas, a quem denominavam "caboclos" ou
em melhorar a estrada: era para nós um quadro novo e interessante. "tapuias". As mulheres enrolavam os compridos cabelos, negros
Depois de transpormos alguns morros, apareceu-nos subitamente a como carvão, num coque no alto da cabeça, como as portuguêsas.
lagoa de Araruama• 133, que tem seis léguas de comprimento e, além Penduradas nos cantos das palhoças, acham-se as rêdes de dormir
disso, muito larga; comunica-se com o mar, légua e meia ao norte da família. Vêem-se também nelas muitas vasilhas de barro cinzento.
de Cabo Frio, e abunda em peixe. O sal é extraído, diz-se, em Os homens são em geral bons caçadores e habituados ao uso da
alguns pontos da margem. Matas e umas poucas habitações orlavam espingarda; os meninos têm ótima pontaria com os pequenos arcos
a praia oposta, e, à distância, sôbre pequena elevação, erguia-se a feitos da madeira do airi, chamados "bodoques" 135 • f.ste arco tem duas
igreja da vila de S. Pedro. Depois de têrmos andado a cavalo em volta cordas separadas por dois pedacinhos de madeira; no meio, as cordas
do lago, chegamos à venda da vila, onde encontrei os burros descar- se unem por intermédio de uma espécie de trançado onde se coloca
regados, e esperei pelos caçadores, que vinham fatigados do calor e a bola de barro ("pelota") ou uma pequena pedra redonda. A corda e o
da longa viagem a pé. Chegaram logo, trazendo muitos animais projetil são esticados para trás pelo polegar e o indicador da mão
interessantes, que mataram em caminho. direita, soltando-se depois repentinamente, para arremessar o projetil.
S. Pedro dos fndios 134 é um aldeamento indígena ("aldeia"), que Já o Barão de Langsdorff havia mencionado tal tipo de arco, visto
parece terem os jesuítas primeiramente formado com os goitacás••. por êle em Sta. Catarina; encontramo-lo em todo êsse litoral, e,
Há aqui, como era de esperar, uma bonita igreja, além de várias ruas, no Rio Doce, até os adultos o empregam contra os Botocudos, quando
mas as residências são simples casebres de barro, tôdas elas, bem não têm armas de fogo. São os índios extraordinàriamente destros
como a maior parte das habitações esparsas pelas cercanias, ocupadas nessa maneira de caçar, podendo abater um pequeno pássaro a grande
por índios. Tinham êstes um capitão-mor, (equivale a comandante distância; e o que é mais, até borboletas pousadas nas flôres, como
ou alcaide de sua própria raça), mas que não possuía nenhum privi- Langsdorff relata. Azara, na sua descrição do Paraguai•, conta que
légio além do título. Afora o padre, há poucos portuguêseS. Quase naquele país êles arremessam, com tais arcos, vários projéteis ao mesmo
tempo (êste instrumento está representado na fig. I da l3.a estampa).
(*) Esta lagoa é também chamada "lraruama" ou "Aruama ".
Koster, na sua viagem pela "capitania" de Pernambuco, descreve
(**) A Corografia bra8ílica, tomo 11, p. 45, diz o seguinte sõbre a origem dêste os índios mansos com precisão, porém faz dêles juízo bastante desfa-
aldeamento: Neste local os três Irmãos Corrêas, Gonçalo, Manoel e Duarte com o vorável; é possível, contudo, que estejam lá numa etapa inferior de
capitão Miguel Ayres Maldonado e muitos outros, em Abril de 1629, sob 'salvador
Corrêa de Sá, resolveram libertar dos tndlos Goltacás um vasto trato de terra civilização. Devo também observar que parte das acusações sôbre a
que lhes tinha sido dado de presente desde AgOsto de 1558. '
rudeza e o freqüente mau caráter dêsses índios se deve descontar
completo. São aves da famllla dos Apódidas (ant. Clpsélidas), grupo multo diverso
do tratamento errado e opressivo que outrora lhes dispensaram os
com o segmento terminal da asa (mão) multo mais longo do que nas verdadelr~ europeus, os quais, muitas vêzes, nem reconheciam nêles criaturas
andorinhas (Hirundfnidas), com que, não obstante, dada a semelhança de aspecto e
de hábitos, passam ordlnàriamente confundidas pelo povo. A disposição dos dedos a humanas, associando, aos apelidos de caboclos e tapuias, a idéia de
que fêz Wied referência em nota suplementar, varia multo nos representantes da familla animais, criados apenas para serem maltratados e tiranizados.
podendo ser dianteiros d!>is, três, ou mesmo todos quatro. Hirundo pela8(Jia Llnn.,'
1766 (= Chaetura pela(JtCa Llnn., 1758) é também um Apódida. Hirundo minuta Em linhas gerais, porém, deve reconhecer-se que Koster lhes des-
Wled (descr. na nota suplem.) corresponde a Hirundo cyanoleuca Vielllot, 1817 espécie creve corretamente o caráter; porque ainda mostram invariável ten·
tfpica do gênero Pygochelidon Baird. '
(132) E' o "Araguaf" de alguns Estado do Brasil, ou Aratinga leucophthalma dência para a vida indolente e desregrada. Gostam de bebidas fortes
(Müller) dos ornitologistas.
(183) Segundo THEODORo SHtPAio (Tupi na Geoor. Nac., 3.• ed., p. 228) o nome e detestam o trabalho, não têm firmeza em suas palavras e são pou-
"lraruama ", citado por Wied nesta nota, era o nome primitivo da lagoa e significa cos os exemplos, entre êles, de caracteres dignos de nota. Não que
" comedouro ou viveiro de lontras" (e não de arara8, como sugere a atual apelação),
etimologia por todos os pontos aceitável.
(134) Atual São Pedro da Aldeia, na margem setentrional da Lagoa Araruama
e não longe de Cabo Frio. A crer em Joaquim Norberto (Mem. Hist. das Aldêas dos (*) AzARA, Voyaues, etc., vol. li, p. 67.
Indios da Prov. do Rio de Janeiro) o aldeamento só teria sido fundado em data posterior
(16 de maio de 1617) à dada por A. de Casal. Cf. A. Moreira Pinto, Apontam. para (135) No original "Bodoc". Edição princeps da presente obra em alemão.
o Diccion. Geogr. do Brasa, 111, p. 161.
- ~-.....------~---~-----

64 VIAGEM AO BRASIL

tenham inteligência apoucada; compreendem ràpidamente o que lhes


ensinam, sendo além disso espertos e astuciosos. Um traço notável de
seu caráter é o orgulho indomável e a forte atração pelas suas matas.
Muitos dêles ainda não se libertaram das velhas crenças, e os padres
se queixam de que são maus cristãos. A profissão eclesiástica lhes
foi aberta, porém bem poucos a abraçaram. Havia em Minas Gerais
um padre índio, pertencente a uma das tribos mais selvagens. Era
um homem geralmente estimado e viveu muitos anos em sua paró-
quia; de repente, entretanto, desapareceu; descobriu-se que jogara
fora as vestes clericais e correra, nu, ao encontro dos irmãos das selvas,
entre os quais teve várias mulheres, depois de parecer, anos a fio,
fervoroso crente das doutrinas que pregara. Os negros que vivem
no Brasil são bastante diferentes dêsses índios; têm mais capacidade
e perseverança para aprender tôdas as artes e ciências; alguns chega-
ram mesmo a tornar-se homens muito notáveis•.
Enquanto os índios têm o suficiente para comer, não é fácil per-
suadi-los a trabalhar: preferem passar o tempo em danças e bebe-
deiras. As danças atualmente em voga foram tomadas aos portu-
guêses; delas, a mais querida é o batuque 136. Ao som da viola (gui-
tarra), tomam os dançadores, uns diante dos outros, diversas posições
indecorosas, batem palmas, estalam a língua • •, e não se esquecem do
famoso cauí• • • , que é feito, agora, apenas de farinha de mandioca,
milho ou batatas. As raízes são raspadas, cortadas em pedaços, cozidas
ao fogo e depois mastigadas; tomada à bôca a massa com os dedos,
a massa é posta numa vasilha, onde fermenta com adição de água,
convertendo-se numa beberagem algo nutritiva e enebriante, de gôsto
ácido e muito semelhante ao sôro de leite.
E' a libação favorita, que, em geral, se toma quente. O modo
de vida seguido por êsses índios ainda não se diferencia do dos antigos
habitantes do litoral. Os portuguêses adotaram muitas coisas dêles e,
entre outras, a preparação da farinha de mandioca. Usam no comêço
duas espécies de farinha; uma grossa, chamada "uy-entam" e outra
mais fina, de nome "uy-pu"• •••, e ainda hoje, embora civilizados,
êsses índios conhecem muito bem o nome "uy". Já naqueles pri-

(* ) Veja-se o 1. 0 volume, pág. 94 das " Beitrii.ge zur Naturgeschicbte " de Blumenbacb,
tanto para o que se refere à capa cidade intelectual dos negros, como para o que diz
respeito ao modo de vida e ao apêgo dos povos rudes à sua terra natal.
(** ) Cf. EscHWEGE, JournaJ, von Bra1ilien, 1. 0 caderno, pág. 59.
( *** ) SIMÃO DE VASOONCELLOS refere em suas NoticiCUI curiosas do Brasil, págs.
86 e 87, todos os tipos de cauf prepa rados naquele tempo pelos fndios do litoral;
a bebida era guardada em "talhas " que denominavam " igaçabas". Dêle enumeram-se
32 variedades, tais como o de "acaiá ", "aipi " (chamado também "cauí caraçu " e "cauí
macacbera " ), de " pacoba" (Pacoüy), milho ("Abatiüy"), ananás ("Manavy"), êste
mais forte e que fàcilmente embriaga, o de batata ("Jetiuy"), jenipapo, beiju ou
mandioca ("Tepiocuy"), mel de abelha selvagem, açúcar ("garapa"), caju, etc. Os
últimos são os mais estimados. Veja-se também sôbre o " caui " J EAN DE L t av, p. 12S.
( **** ) J EAN DE LÉRY, Voyage, etc., p. 116.

(136) Grafado por Wied "Baducca ".


DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 65

meiros tempos, preparavam o mingau engrossando o caldo de carne


com farinha de mandioca. Os portuguêses também adotaram isso.
Durante as refeições, colocavam do lado uma porção de farinha de
mandioca sêca, e iam-na jogando em punhados para a bôca com tal
agilidade, que não perdiam o mínimo grão. ~sse costume ainda
se observa entre os descendentes, bem como entre os lavradores por-
tuguêses*137. Os antigos Tupinambás distinguiam uma excelente
espécie de mandioca, a que davam o nome de "aipi" e que, assada na
brasa ou cozinhada em água • • , ainda hoje é largamente usada,
ora com aquêle nome, ora com o de mandioca-doce 138 • Como êstes,
outros costumes ainda hoje sobrevivem.
Embora professem a fé cristã, muitos só vão à igreja para salvar
as aparências, e assim mesmo poucas vêzes; são, além disso, supersti-
ciosos e cheios de crendices. Koster• • • chegou mesmo a encontrar em
Pernambuco maracás• • • • , numa casa indígena; prova de que em parte
ainda estão presos aos costumes dos antepassados. Contudo, à pro-
porção que se fizerem mais civilizados, a originalidade dêsse povo
e as últimas sobrevivências dos antigos costumes se irão desvane-
cendo, de modo que dêles não se encontrará futuramente nenhum
vestígio e só serão conhecidos através das descrições de Hans Staden
e de Léry.
Conversamos longamente com os habitantes de S. Pedro, que
aproveitavam a frescura da tarde à porta de suas choupanas. O capi-
tão-mor, velho indígena desconfiado, e com êle todos os moradores
do lugar, não pôde esconder a suspeita de que éramos espiões inglê-
ses; mesmo depois de lhe têrmos mostrado a nossa portaria139 não
ficou de todo satisfeito. Os inglêses são no Brasil muito malquistos;
e todos os europeus do norte, com cabelos louros e pele branca, são
tidos como pertencentes à sua nacionalidade.
Como as circunvizinhanças parecessem oferecer abundante mate-
rial para as nossas pesquisas, permanecemos aí vários dias. Os caça-
dores trouxeram-nos, por exemplo, alguns micos (Simia fatuellus,

(* ) lbid. p. 118 e 119.


(** ) lbid. p. 119.
(*** ) Koster's travels, etc. , p. 314.
( **** ) H a ns Staden chama-os Tamaracás.

(137) Para certos pontos do país, menos influenciados pela renovação dos costumes,
poder-se-á, ainda hoje, renovar a interessante observação registrada por Wied. A curiosa
usança presenciei-a, pelo menos eu, na Bahia, entre pessoas idosas, especialmente do
sexo feminino.
(188) E' sabido que no norte do país a mandioca doce, chamada também "mandioca
mansa ", "aipim " (Bahia), "macachera" (Nordeste) , ou simplesmente "ma ndioca " (São
Paulo e sul do Brasil), é de largo uso na alimentação, como substitutivo do pão, a
que certas variedades nada ficam a dever em aroma e sabor, mormente se servidas
ainda quentes e condimentadas com sal e manteiga.
(139) Wied escreve sempre textualmente " Portaria ".
DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 67
66 VIAGEM AO BRASIL

vanas especies, de grandes flôres amarelas ou brancas, motivo pelo


Lin~.. o . "sauí d: chifre") 140 e ~ma preguiça de coleira negra •1u qual uma é conhecida por ipê-amarelo, enquanto a outra, que fornece,
espeCle amda mmto pouco conhecida, que fomos encontrar, posterior- talvez, a madeira mais durável para construção naval, se chama ipê-
mente, em grande número, nos distritos do sul, mas não vimos nenhu- tabaco, porque do cerne, quando é partido, sai um pó esverdeado;
ma no norte. Sendo domingo o dia seguinte, todos os habitantes das o piquiá, cujo fruto é às vêzes comido pelo homem, e constitui ali-
redondezas afl~íram para a mi~sa. Fomos também à igreja, ante a mento comum dos macacos14 3; do mesmo modo, a pitomba 144 , o óleo
qu:l se este_ndia uma longa aléia de palmas ressequidas, fincadas no pardo (Laurus) 14 5 e o ipê-una (Bignonia) 146 , a mais dura de tôdas.
c!t~?· que tmha servido ~ara ~m festival passado. Um tal Sr. "capi-
Sendo esta elástica e ao mesmo tempo muito leve, os índios usam-na,
tao Carvalho: que tamb:m. foi, mostrou-se muito atencioso para co- às vêzes, na confecção dos arcos. Além disso, encontram-se aí o imbiú,
nos~o. _Possma na~ proximidades uma "roça" e em Cabo Frio, não
o jaquá, o grubu, a grumbari e a maçaranduba 147 , que apresenta, sob
mmto distante da vila, ,um~ c.asa, que nos ~fereceu insistentemente para a casca, um suco leitoso, com o qual os indígenas fazem o visgo; a
ho~pedagem, _quando la esuvessemos. Aqm em S. Pedro foi êle o nosso
graúna148, a "sergeira" (uma Cassia ou Mimosa de fôlhas caducas),
gma e convidou-nos repetidas vêzes a conhecer-lhe a casa das vizi-
árvore das mais belas e frondosas, de lenho bastante leve, capaz de
nhanças o que foi aceito pelo Sr. Sellow. Durante a missa observamos substituir a tília e o álamo, e usada no fabrico de canoas. Aí existe
muitos índios bruno-escuros, com as suas fisionomias características igualmente uma árvore chamada jarraticupitaia149, de casca aromática,
o que constituiu para nós, estranhos, espetáculo bastante curioso: usada como remédio pelos índios; o jacarandá1 50 ou bois de rase
A tarde, dançaram na casa do capitão-mor: o cauí andou em roda
(Mimosa), de um belo castanho-escuro, madeira dura, pesada, preciosa
e êles _mostrara~-se extremamente alegres. O padre estêve presente, para os ebanistas, e possuindo um ligeiro, mas agradável, perfume de
mas na~ parecia tratarem-no com _muito respeito, exceto na igreja. rosas; a parte branca externa da madeira não é utilizada, mas ape-
A VlSlta que ~ nosso companheiro bot~nico fêz à casa do Capitão nas o cerne; cuirana1 5 1 (Cerbera ou Gardenia), madeira muito
Carvalho, proporciOnou-nos alguns conhecimentos sôbre os interessan- leve com que se fazem pratos e colheres, e cuja casca produz um
tes espécimes das grandes florestas próximas de S. Pedro. Nelas
há u_~a ~norme abundância das melhores madeiras de lei e de plantas se destacam no verde da mata, como gigantescos ramalhetes coloridos, de belissimo efeito.
medic_mais. O_ sr. Car~alho fôra acusado de exportar essas preciosas Têm flôres amarelas T. chrysotricha Mart .. T. araliacea D. C., T. pedicellata Bur & Sch.,
etc.; roxas T. impetiginosa Mart. " Ipê-tabaco " ou " lpê-açu " é, segundo Lllfgren, nome
madei:as, que sao propnedade da Coroa, e prêso por ordem do govêrno; que mais prbpriamente se a plica à espécie T. pedicellata Bur & Sch. Da mesma familia
postenormente, provada a inocência, puseram-no em liberdade. · é o "ipê branco" (Zevhera tuberculosa Bur).
(143) Há vários " piqulás " ou "piquis", tlpicamente todos do gênero Caryocar
. O pau-brasil (Caesalpinia brasiliensis, Linn.), tão celebrado e conhe- (fam. Cariocaraceas). C. brasiliense Camb. é comum nos Estados do norte, até São Paulo.
Cido na Europa, é aí muito comum; também o ipê (Bignonia)142 de Dos frutos de uma espécie faz-se, principalmente em Mato Grosso, um licor do mais
requintado paladar.
(144) Wied escreve "Pitoma" (fam. Sapindáceas) . A pitombeira (Sapindus esculentus
_ (*) . A preguiça de coleira Bradvpus torquatus Illiger é uma espécie nova ainda Cambess) é planta hoje cultivada; produz fruto de polpa açucarada e comestivel,
nao descr1ta.. Difere muito pouco do "ai", em tamanho e forma; a côr, porém: é u'a não obstante a toxiclez de suas sementes e de sua casca.
mescla de Cinzento e avermelhado; a cabeça pende mais para o avermelhado e é (145) Haverá provàvelmente engano do a utor ao referir às Lauráceas o seu "óleo
misturada de branco. Na parte superior do pescoço bá uma larga mancha d~ pêlo pardo". Ora por êsse nome, ora pelo · nome de "cabreúva", são conhecidas plantas do
comprido e negro. Essa espécie tem nos pés três dedos como o "ai" e não dois, gênero llfyrocarpum (faro. Leguminosas, tribo Papilionáceas), e mais particularmente
como diz llllger no seu P•·odromus. a espécie llf. trondosus Fr. Ali.
(146) "Ipê prêto" ou "Ipê-una" são nomes também usuais para o "ipê-roxo "
,(140) E' quase i'!extricã:vel a confusão em que vivia a zoologia dos nossos "macacos- (Tecoma impetiginosa Mart.).
prego ao tempo de W1ed, remando ainda hoje muita obscuridade no tocante à matéria (147 ) "Imbiú" está provàvelmente por "imbaúba" (Cecropia); "jaquá" poderá
Torna-se ~~:ssim impossivel_ dizer com absoluta precisão de qual de nossos simios s~ estar por "jaca" (Artocarpus integrifolia Llnn.); "grubu" ?; "grumbari " ou "grumarié",
ocupa aqw o autor. Nao é, todavia, de Cebus tatuellus (Linn.), espécie guianense segundo Melo Morais, uma árvore (familia?) de madeira amarela, semelhante ao buxo,
que no Brasil poder:á ocorrer apenas na Amazônia setentrional. Tôdas as probabllidad~ em estrutura; "maçaranduba" (Mimusops elata Fr. Aliem.), grande árvore da familla
falam, pelo con~ráno, em favor de Cebu~ niuritus Goldfuss, 1809 (= Cebus cirri/er E. das Sapotáceas, ocorrente desde o Amazonas até São Paulo.
Geoffr.)\ conhecido en_tre o povo por "m1co de topete ", opinião que tem em seu apoio (148) "Baraúna ", "guaraúna " ou "graúna " (Melanoxylon brauna Schott .. Legumin.,
a autor!dade de_ Damel ~lllot (Rev. ot the Primates, 11, pp. 68 e I09). Não fala Cesalpin.), uma das nossas maiores árvores (Rio, Minas Gerais)cle cerne prêto-arroxeado,
contr_a _1sso a c1rcunstâ~C1a de haver o autor, nos Beitrage, tratado c. tatuellus e durlssimo. "Sergueira ", aparentemente indeterminável.
C. c•rnfer em tit~los d1stintos. O macaco figurado com o nome de C. cirriter nas
Abbildungen é ma1s provável que _pertença a C. varieuatus Geoffr. (149) No mesmo caso de "sergueira" (v. nota supra).
(141) Bradypus torquatus Ilhg. caracteriza-se de maneira inconfundivel pela grande (150) Há enorme confusão no emprêgo dêste nome vulgar, denominando-se "jaca·
m~ncha preta da nuca, e':ll contraste . com a côr clara, quase uniforme, do restante do randá", ora várias Leguminosas dos gêneros Dalbergia e Machaerium, ora algumas
pelo. Ocorre no Brasil onental, do RIO para o norte, havendo eu próprio conseguido um Biunoniáceas (gênero Jacaranda). As últimas são no sul mais conhecidas por "carobas"
couro dela em Pernambuco (1939), enquanto que o Museu Paulista recebera há anos dois e " carobinhas". O a que se refere Wied é, ao que parece, o "jacarandá prêto" (duas
e~emplare~ de I_ta~una _( Bahia). _Comp~eende-se mal que Wied a dess~ como e;pécie espécies, pelo menos, recebem êste nome vulgar: Machaerium incorruptibile Fr. Aliem.
nao descnta, pOis Já Ilhger a havia batizado em 1811. e Jlf. legaJe Bentb.), famosa pelo seu emprêgo nas obras de marcenaria antigas.
. ~142) Os verd8:,deiros " ipês" .ou "paus-d'arco" pertencem ao gênero Tecoma (fam. (151) Estará por "coirana"? E' possivel; mas as plantas correntemente chamadas
B1gnornáceas) ; há deles grande numero de espécies, algumas ainda mal estudadas ou por êste nome são, quando muito, arbustos (Cestrum, familia Solanáceas) e dificilmente
P~lo menos impossiveis de identificar precisamente, pela simples designação vu'lgar. poderão ser a mencionada por Wled.
Sao geralmente árvores de grande porte e lenho durissimo, que, durante a florescência
68 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 69
suco leitoso; a peroba 1 5 2 , dura e sólida madeira para construção naval, um forte. Uma enseada ("lagoa") entra pela terra firme, formando
que é usada pelo govêrno e declarada propriedade real; canela (Lau- um semicírculo, em cujas margens se assenta a cidade de Cabo Frio.
rus) , muito aromática, cheirando a canela; caubi (Mimosa), majole, Esta cidade, embora pequena e mal calçada, possui diversas casas de
sepepira, putumuju, aqui no Rio de Janeiro chamada araribá, e outras bonita e asseada aparência. A língua de terra, em que está construída,
espécies 15 3. Da mesma maneira, aí se encontram plantas medicinais é paludosa perto da lagoa e arenosa ao longo do mar, medrando aqui
em abundância: mencionarei somente algumas como a "herva moura arbustos de várias espécies. Descobrimos algumas plantas novas; entre
do sertão"+1 54 , que tem gôsto de alho; o Costus arabicus, empregado elas duas andrômedas herbáceas*, uma de flôres amarelo-pálido e outra
nas moléstias venéreas; a ipecacuanha preta (Ipecacuanha officinalis, de flôres róseas. Tôda a região circunjacente é cortada de lagos e
Arruda, que é, sem dúvida, a raiz preta do ]ournal von Brasilien de pântanos, e por isso dizem ser sujeita a febres; entretanto, os habi-
Eschwege, cad. l, com gravura); a ipecacuanha branca (Viola· ipeca- tantes afirmam que os fortes ventos do mar purificam grandemente a
cuanha, Linn., ou Pomba lia ipecacuanha, Vandelli), a "buta" ** , que atmosfera.
dizem substituir o chá, etcJ55 Os habitantes do lugar vivem da exportação de certos produtos,
Depois de têrmos caçado bastante, com os índios, nas cercanias como a farinha e o açúcar. ~les são objeto de um comércio com a
de S. Pedro, deixamo-los durante o dia e seguimos para Cabo Frio, costa, feito por algumas "lanchas". Essa região, bem como a próxima
cêrca de duas léguas de distância. Um atraso causado, em caminho, do Rio de Janeiro, era outrora ocupada pelas poderosas tribos dos
por um dos animais, deu-nos a oportunidade de matar uma "mara- Tupinambás e dos T amoios, que, no tempo de Léry, estavam aliadas
canã", ave descrita com o nome de Psittacus macavuanna 15 6; bandos aos franceses contra os portuguêses. Salema atacou-as em 1572, em
inteiros habitam essas florestas, e se abatem sôbre os milharais Cabo Frio, e infligiu-lhes memorável derrota, após a qual se retiraram
próximos das moradas indígenas, causando, muitas vêzes, grandes para o interior. Em conseqüência, os portuguêses se instalaram no
estragos. lugar. Na última metade do século XVII, um pequeno número
Já era tarde avançada quando atravessamos a lagoa em direção dêles vivia aí, fundada que tinha sido a aldeia de S. Pedro. Segundo a
à vila de Cabo Frio, e fomos recebidos pelo Capitão Carvalho em sua History of Brazil de Southey, havia perto um forte, sem guarnição.
casa. Cabo Frio é o conhecido promontório já por mim referido; Convidados por um capitão, que reside em S. Pedro, a visitar
formam-no altas montanhas rochosas, frente às quais ficam algumas o seu engenho de açúcar, embarcamos na manhã de um domingo em
ilhas; numa destas, próxima da costa, dentro de uma angra ergue-se companhia do nosso hospedeiro, o sr. Carvalho, e de um padre. Como
de costume, "esteiras" de palha forravam o fundo das canoas para nos
(*) (Suplem.) " Herva moura do sertão ", Canella axillaris Nees von Esenbeck: sentarmos. Os Tupinambás e outras tribos aborígines usavam embar-
C. floribus a xilla ribus nuta ntibus decandrls. O Prof. Nees v. Esenbeck dará. uma descrição
mais completa dessa planta nas publicações da Kaiserl. Leopold. Caro!. Acad. cações dêsse tipo, que os portuguêses depois adotaram. São feitas de
( **) Não pude acbar, par a determinação da familia a que pertence, nem flôres
nem frutos desta planta aproveitâvel, que será. talvez um Convolv olus. um único tronco de árvore, e extremamente leves; os índios manejam-
n as com admirável destreza. Variam muito de tamanho: umas são tão
(15 2) A spi dosperma peroba Fr. Allemã o (= A. polyneuron Müll.? ), dita "peroba estreitas, que quem vai dentro precisa muito cuidado ao mexer-se, para
rosa" , da fa m. das Apocin âceas é ârvore alterosa, muito abu ndante outrora nas ma tas
do Interior de S. Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Pa rece ter os dias contados, tamanho não virá-las; outras, ao contrário, são de troncos de tamanha grossura,
é o consumo de que é objeto a sua utilissima madeira e o esgotamento quase completo
das últimas reservas. que oferecem segurança mesmo no mar, desde que não muito agitado.
(153) " Caübi"?; "majole ", provàvelmente por "monjolo" (Pi thecolobium, sp.); O canoeiro encarregado da direção fica em pé, e equilibra-se tão bem,
"sepepira ", ou " sucupira" (Bowdichia virgilioides H. B. K. e outras, da fam. Leguminosas,
subfam. Mimosas) , tida outrora como a mellior madeira para a construção de navios; que os seus movimentos não acarretam a mais leve oscilação. Os
"putumuju ", "ara ribá " ou "araroba " (Centrolobiunt robustunt Ma rt. e afins, fam. Legum.,
Papilionáceas ) . remos têm uma pá oblonga na extremidade e são manejados, a mão
(154 ) Em vez de " herva moura " (ou "moira "), lê-se no original " Herva moeira". livre, nas canoas pequenas, bastando dois remadores hábeis para impul-
Trata-se de uma solaná.cea, de espécie diflcil de precisar.
(1 55) Costus arabicus Aubl. entra na la rga e confusa sin onlmia das espécies indígenas sioná-las com extraordinária rapidez.
do gênero Costus (fam. Zingiberá.ceas) vulgarmente conhecidas por cana do brejo, c.
do ma to, c. da l n d i a, j acuanga etc., a lguns dos quais são nomes comuns a plantas de A lagoa era pouco profunda, e tão transparente, que podíamos ver
outras fa mllias, com que urge evitar confusão. nitidamente a areia branca do fundo, com a sua vegetação coralina;
" lpecacua nha" (ou ma is comumente " poaia " nos Estados do sul ) é nome usual de
vâ rias Rubiá.ceas de propriedades eméticas, a mais conhecida das quais é Psychotria em alguns pontos, chegamos mesmo a encalhar. Nas lagoas abun-
ipecacuanha M. Ar. g (= Cephael i s ipecacuanha Rich.); no sul do Brasil o vulgo
aplica também o mesmo nome, a vârlas Polygaláceas de anâlogas propriedades (Polygala
an gulata D. C., P. cor nuta Ma rt., etc.) . As "abútuas" ou 'butuá.s " constituiem numeroso (* ) O professor Scbrader de Glittlngen, a cuja bondade devo a maior parte das
grupo de plantas da fa mllia M enispermáceas (gêneros Abutua, Cissampelos, etc.), quase determi na ções de pla ntas cita das neste livro, reconheceu como novas essas duas pla ntas,
tôdas, como a " caa peba ", fa mosas pelos empregos na medicina popula r e oficial. e pertencentes a espécies até agora não descritas daquele gênero.
(156) Como jâ ficou dito, a espécie aqui referida por êsse nome é Ara maracana (Suplem.) Sôbre estas duas novas espécies de Andr6meda veja-se a noticia dada
Vielllot, cabendo a uma ave guianense o nome que Wled IIIe supôs. pelo Prof. Schrader no fac. 72 dos "Anzeigen de Gõttigen ".
70 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 71
dam gaivotas, andorinhas-do-mar, garças brancas e maçaricos. Duas sas doenças•. A maior parte das "fazendas" tem igreja, ou um
espécies de corvos marir:hos são, também, bastante comuns aí: u~a grande aposento arranjado de modo que nêle se possa dizer missa,
é o mergulhão pardo-acmzentado• 157 , e a outra uma assaz pareCida aos sábados e domingos. Os viajantes devem assistir às missas; porque,
com o corvo marinho europeu•• 15B; ambas pescam nessas águas e che- se assim o fizerem, lograrão muito melhor conceito por parte dos
gam bem próximo das casas da cidade. . moradores. Sempre nos trataram com gentileza e atenção quando
A fazenda do capitão, cercada pelas cabanas dos negros, fica apra- respeitamos êsse costume, mostrando manifesta frieza e aversão, quando
zivelmente situada numa colina. Vêem-se em tôrno montanhas cober- não fomos à igreja.
tas de mata e encostas silvestres, formando amável contraste com os Depois da missa, voltamos com o proprietário para a cidade, onde
canaviais verde-claros. A esquerda, numerosas manchas d'água e gra- vimos o que é ainda uma raridade nessa parte do país, isto é, o
ciosas moradas alegravam a paisagem, emoldurada, nos últimos planos, genuíno coqueiro (Cocos nucifera, Linn.). Essa bela árvore é muito
pelas montanhas azuis. comum para o norte, como observaríamos no decorrer da viagem;
Percorremos o engenho, que nos pareceu bem instalado. Para porém é bastante rara nas regiões do sul. Chama-se, na costa oriental,
engrossar e purificar o caldo da cana, com que se faz a aguardente, "côco da Bahia".
junta-se-lhe forte lixívia. Obtém-se esta jogando água quente sôbre Numa fazenda das proximidades de Cabo Frio, havia, segundo me
as cinzas de uma espécie de Polygonum, denominada "cataya" na língua afirmaram, duas tamareiras (Phoenix dactylifera, Linn.) que deram
aborígine, mas entre os portuguêses conhecida por "erva de bicho" 159 • frutos; uma, entretanto, fôra derrubada, e a outra deixara de dar100.
Essa planta tem sabor muito amargo e apimentado, e é usada em diver- Começamos a caçar e a fazer excursões por todos os lados, e
tomamos, com êsse intuito, os serviços de dois novos caçadores, práticos
( * ) E' talvez o "Petit Fou de Cayenne". BUFFON, pl. 973 (Pelecanus parvus).
(Suplem.) Apesar de certos pontos de divergência com a descrição de Buffon, da região, um de nome João, outro -Inácio. Em breve conseguiram
considero ser êsse o "Petit Fou de Cayenne", figurado na Pl. enlum. n.• 978. As para nós vários animais, especialmente macacos berradores ou "gua·
principais discordâncias entre a descriçã<! de Buffon e a ave brasil~ira por mim
observada estão no tamanho e na coioraçao. Buffon dá para o comprimento de sua ribas", provàvelmente da espécie descrita com o nome de Stentor,
ave apenas 1 'h pé, ou sejam 18 polegadas, ao p~SS? que_ a por mim observ::'da mede ou Mycetes ursinus, e cuja voz poderosa se ouve freqüentemente nessas
de comprimento 28 polegadas; além disso, e_sta última nao é _Preta, m_as Sim bruno-
acinzentada. A divergência no tamanho fàcilmente se expllcana na hipótese de ter florestas. Caracteriza-se pelo grande órgão vocal, pela grande caixa
Buffon tomado as suas medidas numa ave empalhada ou numa pele, ao mesmo tempo
que a dHerença de côr entre ambas não é bastante grande P::'ra separar . uma de outra. vocal que Humboldt, servindo-se de uma outra espécie do mesmo
Esta ave vive principalmente na parte sul da bala do R10 de JaneirO, vendo-se à gênero, figurou na 4.a prancha de suas "Beobachtungen aus der
tardinha voltarem do mar os seus bandos, dispostos em forma de ângulo, tal como
fazem os grous e gansos selvagens, e avançando céleres, quase rastejantes à superflcie. Zoologie".
(** ) (Suplem.) este corvo marinho, sem dúvida o mesmo representado por BUFFON Em virtude da densa barba do macho, o "guariba" é conhecido,
na Pl. enl. N.• 974, tem grande semelhança com o nosso Carbo graculus em pl~magel!'
juvenil, razão pela qual o Sr. TEMMINCK, na nova edição de seu Manuel d'Ormtholou•e nessa costa, por "barbado"; em São Paulo chamam-no "bugio"161 •
os considera uma mesma espécie. Restará todavia explicar ainda algumas pequenas
divergências descritivas. A ave européia consta ter a lris pardo-acinzentada, ao passo Além dêsses macacos, obtivemos também dos que têm dois topetes
que na brasileira ela é, nos indivlduos idosos, de um lindo azul; dá-se àquela de no alto da cabeça (Simia fatuellus, Linn.) e o pequeno "sahui"
28 a 24 polegadas de comprimento, enquanto que a maior das últimas que pude medir
tinha 26 polegadas e 8 linhas. Nunca vi mudanças na plumagem da ave brasileira. vermelho (Simia rosalia, Linn.), que não são raros nesta zona, mas que
Essas divergências fazem-me pensar que a espécie sul-americana deve ser separada
da nossa. desaparecem mais para o norte 1 6 2 .
(157) Era de todo procedente a suposição. largamente discutida pelo autor em ( *) Diz-se que, no Rio S. Francisco, essa planta é usada com vantagem na moléstia
nota suplementar, de ser o mergulhão de nossas costas, mais vulgarmente conhecido cllamada "ó largo". Consiste esta, de acôrdo com o médico húngaro que ali residia e
por "atobá", o "Petit Fou de Cayenne" de Buffon e Daubenton. Seu primeiro batismo descrevera as moléstias locais, numa dilatação do reto causada pelo esgotamento. Neste
cientifico foi dado por Boddaert (1788), quando ao criar denominações para as aves caso, a planta é fervida em água; deixa-se o decocto esfriar e depois se aplica em
figuradas por Daubenton nas suas célebres "Planches Enluminées", deu-lhe o nome de clisteres, como também em banhos.
Pelecanus leucogaster (Pl. 978), hoje mudado em Bula leucooaster leucooaster, feita .a
retificação genérica e a sua restrição à raça guiano-braslleira. E' ave ainda hoJe patologia indlgena, conforme se depreende da referência que invariàvelmente lhe fizeram
comum em nosso litoral sul-atlântico, inclusive nas balas de Guanabara e de Santos. velhos autores. Sôbre o assunto consulte-se a substanciosa slntese elaborada pelo douto
Cf. LUDERWALDT & PINTO DA FONSECA, Rev. Mus. Paul., XIII, p. 471 (1923). prof. Fernando São Paulo em seu precioso livro "Linguagem Médica Popular do Brasil"
(158) Refere-se Wied à ave comumente conhecida por "biguá", nome tran~portado (Rio, 1936, vol. 11, p. 48).
para a nomenclatura técnica por Vieillot que, conhecendo-o através da descrição de (160) E' sabido que a tamareira, como algumas outras palmáceas, é diécica, não
Azara, propôs chamá-lo Hydrocorax vigua. Hoje acorda-se em ver o biguá na ave a podendo, consegulntemente, frutificar quando não haja em próxima vizinhança plantas
que Humboldt, em 1805, deu o nome de Pelecanus olivaceus, hoje convertido em de sexualidade diferente.
Phalacrocorax olivaceus olivaceus (Humb.), feitas as necessárias retificações. . (161) Cf. nota da pág. 51. O "bugio ruivo " (Alouatta fusca E . Geoff.) tem
(159) O infuso de "cataiá", "cataia" ou "herva de bicho" (Polygonum ant•· larga distribuição, ocorrendo não só em tôda floresta este-brasileira, do Rio à Bahia,
haemm·rhoidale Mart.), sob a forma de ti sana ou de clisteres, além do seu emprêgo como ainda na Amazônia. Wied descreve-o à pág. 48 do 11 vol. dos "Beitrage" e
na refinação do açúcar, gozou efetivamente da reputação de heróico medicamento durante figura-o também em boa estampa nas "Abbildungen ".
algumas epidemias que assolaram o Brasil nos séculos XVIII e XIX. A doença a que (162) Sôbre o "mico de topete" já houve referênci a páginas antes (cf. nota,
refere Wied em nota era também denominada "maculo", "doença do bicho", etc. Grassou pág. 66). Parecido com êle, há na alta Amazônia um macaquinho, Cebuella pygmaea
outrora epidêmicamente em muitos pontos do Brasil, ocupando lugar destacado na (Spix), conhecido localmente por "mico-leãozinho ''.
72 VIAGEM AO BRASIL

Na beira das lagoas e pauis, principalmente perto dos mangues


(Rhizophora, Conocarpus e Avicennia) 163, descobrimos grande número
de buracos cavados na terra. Servem de refúgio a caranguejos chama-
dos aqui "guaiamu"16 4, e que não devem confundir com outra
espécie, encontrada na areia da praia, conhecida por "siri", ambas
as espécies foram mencionadas por Marcgrave. O guaiamu é maior
do que o siri; apresenta côr de ardósia suja, tendendo um pouco para
o plúmbeo, e sem manchas 165 • E' difícil de caçar, porque, ao menor
ruído, se esconde na toca. Adotei, por isso, para o apanhar, o chumbo
de caça. Constitui um alimento básico entre os brasileiros, cuja
indolência é muitas vêzes tão grande, que, tornando-se o peixe escasso,
vivem apenas do guaiamu, regime que achamos miserável. Vimos
freqüentemente na areia, entre as moitas, duas espécies de lagarto;
a maior delas, Lacerta ameiva de Daudin, tem o dorso verde e os
flancos manchados>IH 66. Também obtive, aí, a pele de uma gigan-
tesca serpente, a Boa constrictor1 6 7 • Daudin, erradamente, indica a
Africa como o único lugar nativo dêss'e réptil; quando é a mais
comum das espécies brasileiras do gênero Boa. Na costa oriental, os

(*) (Suplem.) E' esta a Lacerta litterata dos modernos naturalistas. Foi dada uma
descrição dela pelo Dr. KuHL em seus B eitrügen zur Zoologie (p. 116). Raramente
encontrei variações no colorido do animal brasileiro, de que se ocupa o referido autor
na página 88 do citado trabalho. Os individuos novos têm às vêzes a parte anterior
do dorso ponteada de escuro, ao passo que os mais idosos têm-na em geral imaculada
e uma bela côr verde-clara; os lados do pescoço são marcados com duas ou três
riscas longitudinais pardo-escuras; os flancos são verdes e enfeitados de cada lado
do ventre com séries perpendiculares de manchas arredondadas amarelas, rodeadas de
prêto. As figuras das estampas 90 e 88 de Seba, citadas por Kuhl, se é que pertecem
a êsse animal, estão millto mal feitas. Sloane parece ter representado o nosso lagarto
na Tab. 278, fig. 3.

(163) Nos manguezais vivem plantas de várias famllias diferentes, a que à estreita
adaptação ao mesmo habitat dá configuração e disposições fisiológicas análogas. Fazem
parte desta associação vegetal, entre outros, o "mangue vermelho" (Rhizophora mangle
Linn., fam. Rhizophoráceas), o "mangue branco" (Laguncularia racemosa Gaertn., fam.
Combretáceas) e o "mangue amarelo", às vêzes chamado também "m. branco", "siriba"
ou "siriuba" (várias espécies do gênero A vicennia, fam. Verbenáceas). Os do gênero
Conocarpus (fam. Combretáceas) são de habitat tropical e parecem estranhos aos Estados
meridionais. Vide a respeito o estudo de H. LuDERWALDT na Rev. Museu Paulista, XI, 309.
(164) Cardisoma guanhu mi Latr. O " guaiamu" é muito comum nos fundos das
baias e nos estuários lodosos dos rios, onde não de raro cava as suas tocas em terra
firme e a apreciável distância do limite atingido pelas altas marés.
No mangue prôpriamente dito é substituido pelo "caranguejo", (Oedipleura cordata
(Linn.), ordinAriamente muito mais procurado hoje pelos praieiros, como recurso alimentar.
(165) Os "siris" crustáceos de configuração e aspecto muito diverso dos acima
referidos, pertencem a várias espécies, bem distintas. O "siri de mangue" ou "siri-açu"
(Callinectes exasperatus Gerst.) tem hábitos análogos aos do caranguejo e é por igual millto
procurado pelos mariscadores. Outra espécie bastante apreciada é o "siri branco"
(Callinectes danai Smith) peculiar aos fundos arenosos e limpos. O "caxangá" ou "puã"
(Callinects sapidus Ratbb.) freqüenta os mesmos sitios que o precedente, mas é tido em
pouco aprêço.
Siris e caranguejos são seguros ou fisgados diretamente pelo pescador, enquanto
que os guaiamus, muito mais dificeis de capturar, como refere Wied, são caçados em
armadilhas, ditas ratoeiras.
(166) Ameiva ameiv a (Linn.), lagarto verde, fissilingüe, herbivoro, conhecido
ordinAriamente por "calango" ou "calangro". Existe, representado por duas variedades
geográficas (cf. Amaral, M em. Inst. Butantan, XI, 1987, p. 161) muito pouco diferenciadas,
desde o Amazonas até os Estados do Sul, onde freqüenta os terrenos secos cobertos
de capoeira rala. A longa descrição encontrada nos Beitrtige (1, págs. 170·184) é
completada por uma bela figura colorida, em Abbildunuen.
(167) E' a jibóia comum, ou Constrictor constrictor (Linn.) na nomenclatura atual.
~-- --- -- - --- _............_~ --~--------

DO RIO DE JANEIRO A CABO FRIO 73

representantes do referido gênero são conhecidos, na sua maioria, pelo


nome de "jibóia".
Prometeu-nos o capitão Carvalho remeter para o Rio de Janeiro,
a grande coleção já feita por nós, e que crescera consideràvelmente em
Cabo Frio, principalmente em aves aquáticas e ribeirinhas. Cedo,
porém, tivemos razões para desconfiar das importunas amabilidades
dêsse homem; vimos que êle agia por extremo egoísmo, que chegou
ao ponto de levar-nos a dar-lhe um atestado dos importantes serviços
por êle prestados. Fomos igualmente infelizes nas nossas relações com
o farmacêutico da localidade, personagem que, a princípio, parecia
tomar grande interêsse pelas nossas atividades, e a quem, por isso,
ensinamos alguma coisa. Logo verificamos, no entanto, que não
tinha a cabeça muito certa, e, embora tivéssemos a princípio paciência
com as suas imbecilidades, fomos por fim obrigados a tratá-lo de
maneira mais severa, quando êle começou a prejudicar-nos com intrigas
na vila; motivo por que, como soubemos mais tarde, a polícia o puniu
com alguns dias de prisão.

.
IV

VIAGEM DE CABO FRIO A VILA


DE SÃO SALVADOR DOS CAMPOS
DOS GOITACAS

Campos Novos. - Rio e Vila de S. João. - Rio


das Ostras. - Fazenda de Tapebuçu. - Rio e Vila de
Macaé. - Paulista. - Curral de Batuba. - Barra do
Furado. - Rio Bragança. - Abadia de S. Bento. - Vila
de S. Salvador, à margem do Paraíba.

A 7 de Setembro, atravessamos com a bagagem a "lagoa", pró-


ximo à vila, e reunimos os burros, que, durante a nossa estada, foram
pastar numa solitária "fazenda" da outra margem. A 8, acompa-
nhados pelo sr. Carvalho, deixamos os arredores de Cabo Frio e avan-
çamos vagarosamente pela beira da lagoa; porém, quando a estrada
enveredou pela mata, alguns dos animais fugiram. Fomos, por isso,
obrigados a varejar a floresta em tôdas as direções, .e só depois de um
trabalho insano conseguimos capturá-los. Logo após, a'b passarmos num
valado, a tropa, que ficara muito bravia com o longo estágio na boa
pastagem de Cabo Frio, ocasionou-nos dissabor ainda mais sério. Caval-
gava devagar, à frente da tropa, por êsse valo, quando ouvi, subita-
mente, atrás de mim, os burros todos em disparada, com as grandes
caixas de madeira que carregavam. A bêsta que eu montava disparou
também imediatamente, e com tal fúria que não houve possibilidade
de refreá-la. Puxei-a para um lado, a fim de que os caixões, levados
pelos animais em disparada, não me quebrassem as pernas e os joe-
lhos, vendo no mesmo momento tôda a tropa dispersar-se pela flo-
resta; quatro ou cinco dêles jogaram fora a carga, arrancaram e
arre?entaram os arreios. Paramos ofegantes e cansados, sem sabermos
preosar. ~ causa real dêsse tragicômico desastre- Em seguida, bate-
mos a vtzmha floresta em tôdas as direções, e só passado muito tempo
76 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 77

conseguimos, por fim, reunir os animais dispersos, graças ao auxílio causaram-nos mais um contratempo, atolando-se, por diversas vêzes, em
dos nossos hábeis "tropeiros". Alguns portuguêses, que caçavam veados lamaçais; fomos também atormentados pela picada de vespas vene-
nessa mata, e procuravam um cão perdido, puseram-nos na boa pista. nosas, chamadas marimbondos•. A ferroada produz uma inchação
O veado dessa zona é de duas espécies diferentes, que Azara descreveu e ao mesmo tempo dor intensa, embora passageira. A linda Bougain-
con; os nomes de "guazupita" e "guazubira" e que Mawe• chama villea brasiliensis173 adornava-se de flôres vermelhas, e bignônias, cober-
erroneamente ~a_llow Deer16 8. Koster diz mesmo, a respeito de tas de uma profusão de grandes flôres douradas, enfeitavam os cumes
u~a dessas e~peoes de veado, que matara um antílope* •, embora se sombrios das árvores soberanas.
saiba que ammais desta última espécie não se encontram no Novo Vimos, num vasto campo pantanoso, o jabiru (Ciconia· ameri-
Continente•• • 169 • Ao todo, há, no Brasil, quatro espécies de veados, cana, ou Tantalus loculator) Linn.)•• 174 e as garças de várias espécies,
que Azara descreveu, ~m primeiro lugar;_ e parece~ espalhar-se por sobretudo as garças brancas de neve, andando garbosamente••• 17 ó . O
grande parte da Amenca do Sul. A mais comum e o veado mateiro gado, aí, entra pela água e come as ervas que crescem nos charcos.
d~s portug~êses, veado vermelho, ou "guazupita", de que existe uma Uma grande cobra, de seis ou oito pés de comprimento, a "cipó"
Ótima descnção do autor acima 170 referido. ~sse animal se encontra verde (Coluber bicarinatus) 17 6, passou por nós, no alto capinzal, com
em tôdas as florestas e matagais, e é freqüentemente comido, se bem a rapidez de uma flecha; e um bando de maracanãs (Psittacus Maca-
que a carne seja sêca e dura. vuanna, Linn.) 177 pousou nas moitas da orla do campo. Um cavaleiro,
, Depoi~ de têrmos ~comodado a nossa tropa tão bem quanto pos- com quem cruzamos, deu-nos a boa notícia de que os caçadores, que
Sivel, contmuamos a VIagem através de florestas de árvores altas e mandáramos na frente, já tinham reunido uma porção de belos pás-
esgui~s, _entremeadas constantemente de trechos escampos, com brejos saros. Enveredamos ainda mais pela floresta, e refrigeramo-nos com
e_ camçais, onde vive:n grandes quantidades de garças, marrecas, maça- laranjas silvestres ("laranjas da terra") .... que são insípidas .. •••.
ncos e outras espécies análogas. Por tôda a parte ouvia-se o grito Suas flôres exalam um aroma delicioso, atraindo grande número de beija-
do q~ero-quero 171 , e, na mata, ecoava freqüentemente a voz alta flôres. Deixando a floresta, entramos num campo aberto, onde, numa
e estndente da araponga. Várias espécies arbustivas de Eugenia suave eminência, ficava a grande fazenda de Campos Novos, ou antes,
estavam carr~gadas dos frutos negros, maduros e muito gostosos, do Fazenda do Rei. Perto da casa do proprietário, um capitão, os case-
tamanho m~Is ou menos de pequenas cerejas 1 72. Cavalgamos por bres dos negros se dispõem num quadrado formando uma aldeola.
florestas maJestosas ~e árvores de casca esbranquiçada ou avermelhada, Essa fazenda, ou ao menos a igreja nela existente, foi construída
que desperta~ admiraçã? pelo seu porte altaneiro e ereto, enquanto, pelos jesuítas.
em plano subpce~te, mi~osas e ju~tícias floridas espalham delicioso ( * ) MAwE, pág, 134, cbama-as, erradamente, Jlfirabunde.
P<;rfume. Descobnmos ai grandes mnhos de térmitas, de oito ou dez ( ** ) (Suplem.) Isso significa que ambas as aves são confundidas no Brasil sob
o nome de " Jabiru ".
pes de altura, o que é prova bastante de sua idade. Os cargueiros ( *** ) (Suplem.) Vivem no Brasil duas garças inteiramente alvas, a pequena e
a grande. Azara cbama àquela " petit beron blanc à manteau" (vol. IV, p. 200) e a
esta "grand heron blanc à manteau " ( P. 201). A primeira é multo parecida com a
( *) J. Mawe's travels, etc. p. 80. "garzetta" européia, embora diferente, a última é a Ardea l euce do Museu de Berlim.
(** ) KOSTER's travels, etc. p. I36. (****) (Suplem.) A presença de "laranjas da terra" nessa mata era meramente
casual, e decorria do fato de ter sido o lugar sede de uma "fazenda • , cujas rui nas
(***) (Suplem.) A não existência de antílopes no Novo Mundo tem sido ultima- ainda em parte se podiam ver.
ment.e .~ontestada. pelos Srs. Lea~ e Blalnville; apesar disso, não deveremos abandonar ( ***** ) As laranjas, para serem boas, devem ser enxertadas, mesmo no Brasil; se
a OJ?Imao até aqm ger~lmente ace1ta, antes que venha ser definitivamente provada a exis- crescem selvàticamente, o fruto perde a doçura e até se torna amargo.
tência de um verdadeirO antilope na América.
(173) No original aparece Buginv illaea, por lapso evidente. Ja houve mençjio
(168) Nome inglês do "gamo" (Cervus dama Linn.) espécie privativa da metade anteriormente a estas belas árvores.
ocld ental do Velho Mundo. (174) Como se depreende da nota suplementar aposta pelo autor, há aqui refe·
(169) Essa passagem foi mais tarde (Wied, Quelques corrections etc) retificada rência a duas aves distintas, havendo a que Wied denomina Ciconia americana passando
pelo autor, que substituiu. "Novo Mundo" por América Meridional. (v. ~ nota 60). a chamar-se à luz da critica moderna Euxenura mauuari (Gmelin), enquanto que
(170) Mazama amer.cana . (Erxleben, 1779) (sin. Cer vus rutus Illig.). Os nossos Tantalus loculator corresponde a Mycteria americana (Linn.); a primeira é geralmente
veados foram ~studados em conJunto por Miranda Ribeiro (Rev. Mus. Paul. XI, p. 208 conhecida por "tabuiaiâ", ou "jaburu-moleque ", a outra por "cabeça sêca ", "cabeça de
e ss.), que neles reconheceu sete espécies. As referidas por Wied são 0 "veado pedra", "passarão " etc.
~atelro" • .,<Mazama am:;ricana (~rxl.), ~amado tam~ém "guatapará ", "guaçu-plta", (175) Pelo explicado por Wled em sua nota, as garças brancas a que se refere
suacu-ete , etc., e o veado catmguelro ' (Mazama stmplicicornis (llliger ) ) conhecido são a garça branca grande, de bico verdoengo, Casmerodius albus euretta (Gmel.), e a
ainda por "virá~, "birá", "virote", etc. O primeiro, relativamente grande' (cêrca de pequena, de bico negro, L eucophoyx thula thula (Molina), ambas muito comuns, tanto
1,50 m de compr1me!'to total) e tem o pêlo ruivo-pardacento; o segundo, muito menor no litoral maritimo, como nas margens dos rios e lagoas do interior.
(I metro de compnmento total, em média) apresenta côr mais clara balo-acinzenta da (176) A espécie em questão (cf. Wled, Beitr. I, p. 284 e fig. color. em Abbild.)
sem mescla de rmvo. Ambos têm vasta dispersão em tôda porção cisa'ndina da Améric~ corresponde a Chironius carinatus Linné, "1758, em que as escamas aparentam aspecto
d o Sul, equatorial e temperada. diverso conforme a fase do desenvolvimento. Cf. Amaral, Mem. Inst. Butantã, IV, p.
(171 ) Cf. nota (89) à pág. 45. 84 e X, p. 107.
(172) Refere·se cer~mente o autor às " jabuticabeiras" (Myrciaria cauli flora Berg. ( 177) Há engano na atribuição do nome técnico, como já foi observado em nota
e outras), mlrtáceas mmto encontradiças nas matas do Brasil meridional e oriental. anterior; trata-se, com tôda probabilidade, de Ara maracana (Vleill.).
78 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 79

Porque tivéssemos de esperar por um animal que ficara atrás, pequenas casas de barro às paredes das casas e dos ~uartos, como ~e
passamos aí vários dias, empregando-os em excursões pelas adjacências. pode ver na maioria das construções da costa onental do BrasiL
Um caçador italiano, filho de Nápoles, apareceu-nos na venda e mostrou- Considero-a idêntica à espécie que constrói as casas nas árvores.
nos a pele de um macaco, que vive em certa zona das grandes A nossa partida, a paisagem em frente era muito apr~zível. ~eque­
florestas e é conhecido, entre os habitantes, por "mono". Procura- nas eminências, cobertas de mata, cercavam a planíCie verdepnte;
mos êsse animal por muito tempo, mas em vão; posteriormente, porém, moitas de um raro e lindo verde vivo lembravam-nos as côres da
fomos mais bem sucedidos, e eu descobri tratar-se de uma espécie do nossa primavera da Europa. Consistiam de uma variedade de Gar-
gênero A teles•. E' o maior macaco da região que atravessávamos 17 8; denia, aí chamada "coirana", que é uma espécie provàvelmente não
os caçadores usam-lhe a pele para proteger da chuva o gatilho da descrita até agora, e que cresce até formar uma árvore, cuja madeira
espingarda. é usada para vários fins. Devido à considerável distância do mar,
As matas próximas de Campos Novos, embora só a uma certa as florestas abundam em macacos e caça variada.
distância da fazenda, estavam cheias dessas criaturas. Os nossos caça- A soberba e imponente floresta primitiva, "mato virgem", que
dores tinham matado muitos guaribas, ou "barbados"179 • Falando se estende, quase sem interrupção, de Campos Novos ao rio S. João,
dêstes singulares animais, o viajante inglês que por aqui andara tem- numa distância de quatro léguas, e em cujos frescos e umbrosos reces-
pos atrás e que não parece grande zoólogo, diz, cômicamente: "Des- sos penetramos, merece mencionar-se aqui .. Cedo atingimos ui? lugar
crevem-nos como grandes macacos barbados, que, dormindo, roncam pantanoso e pitoresco, cercado de coqueiros novos e touceiras de
tão alto a ponto de assustar o viandante"**. Nos pântanos vizinhos, helicônias. Formam êstes a mataria baixa, acima da qual se altanam,
descobrimos os bonitos ovos rosados do caracol que Mawe figurou imponentes, frondosas e sombrias, as grandes árvores. Eram comuns
com o nome de Helix ampullacea•••, suspensos, em cachos, aos juncos os "surucuás" (Trogon viridis, Linn.) de côr verde, azul e amarela,
e às gramíneas. :esse caracol é muito comum em todos os charcos secos cantando nos galhos sob a espessura das folhagens 181 • Imitamos-lhes
do Brasil. A concha é de um pardo-oliváceo escuro. Em tôdas as o canto e em pouco matamos vários, machos e fêmeas. E' uma das
florestas até então atravessadas, encontramos também, muito freqüen- aves mais freqüentes nesses lugares. A floresta prosseguiu cada vez
temente, o grande caracol-da-terra, que Mawe representou como varie- mais exuberante, e novas e magníficas flôres não regatearam trabalho
dade da Helix ovalis. Tem uma côr amarelo-alaranjada pálida; a ao nosso botânico. Vimos cipós entrelaçados da maneira mais sin-
concha, porém, é geralmente de um leve amarelo-acastanhado. Vimos gular, notadamente lindas Banisteria 182 , na sua maioria de flôres aJIIa-
aí, nos galhos dos arbustos, as casas de uma espécie de vespa (Pelo- relas, troncos de formas curiosas e, não raro, majestosos e imponentes
paeus lunatus, Fabr. S. Piez, p. 203) 1 80, feitas de terra e do tamanho coqueirais, ornamentos das florestas de que nenhuma desc~ção con-
e forma de uma pêra. Quebrando-as, vêem-se cinco, seis ou sete larvas, segue dar uma idéia justa. Sôbre nós, entre as ramagen~, VIam-se as
ou insetos adultos, espalhados na massa. Essa espécie tem estreita belas flôres das bromélias. Vozes inéditas de pássaros exCitaram-nos o
afinidade com a que descreve Azara • • • •, se não é a mesma. Prende interêsse, enquanto que a branca Procnias (araponga) era particular-
(*) A teles hypoxanthus, de membros compridos e uma cauda longa e grossa;
mente comum.
pêlo cinzento-amarelado; raiz da cauda, muitas vêzes, vermelho-amarelada; cara côr de O percurso pelo solo arenoso era fatigante, mas o_ cenário esplê~­
carne, com manchas e pontos escuros; comprimento total, da ponta do nariz à extremi-
dade da cauda, 46 polegadas e 8 linhas. O polegar da mão ou pé dianteiro é, dido da floresta pagava-nos generosamente as. canseiras. Descobr~,
apenas, um pequeno rudimento: o que distingue essa espécie da arachnoides do sr. no tronco oblíquo de uma árvore, uma cob~a cor de chumbo, de seis
Geoffroy, na qual os polegares são completamente ausentes.
(**) J. MAWE's Travels, etc., p. 188. ou sete pés de comprimento, que descreverei com o nome de Coluber
(***) (Suplem.) O caracol representado por Mawe deve ser considerado variedade plumbeus*183. Deixou-nos passar a todos sem se mover.
de H elix ampullacea.
(****) AZARA, V oyages, etc., vol. I, p. 173.
(*) o comprimento dêsse animal era de 6 pés, 1 polegada e 4 linhas; tinha 224
(178) O "mono" (Brachyteles arachnoides (Geoffr.)), conhecido também vulgarmente divisões no ventre, e 79 pares de escamas na cauda. As partes superiores eram côr de
por "miriqul" ou "burlqui ", ocorre ainda com relativa freqüência nas grandes matas de chumbo escuro; as inferiores, de um bonito branco-amarelado, brilhante como porcelana.
leste, onde é o gigante dos macacos; colecionei-o, pelo menos, nas matas do Rio Gongogi,
(este Bahia), anos atrás. O polegar, de que em regra não há nenhum vestígio, em (181) Cf. Nota 118. .•
certos espécimens pode apresentar-se sob forma rudimentar, fato que, indevidamente (182) Gênero de Malpighiáceas trepadeiras, a que pertence, por exemplo. o "caap1
interpretado, fizera, a principio, considerar a êstes espécie diversa, sob a denominação ou "timbó branco" do Amazonas.
de Ateies hypoxanthus Kubl. Wled descreve-o minuciosamente às páginas 82-45 do (183) Essa cobra, de que o Principe Informa alhures (Beitrage, I, p. 817) não
vol. 11 dos Beitrlige. haver encontrado mais do que o exemplar acima referido, outra não é senão a vulgar-
(179) Cf. nota 161. mente conhecida por "cobra preta", uboiru", "'limpa mato", ou, mais comumente, "mussu-
(180) Impossivel indicar com precisão o inseto em causa; mas, em qualquer hipótese rana ". A espécie, aliás já descrita antes de Wied por Daudln (Hist. Nat. Rept.,
trata-se de um himenóptero de vida solitária pertencente à família dos esfécidas, a VI, p. 330, pl. LXXVIII, I803), com o nome de Coluber cloelia, tornou-se hoje muito
biologia de alguns de cujos membros foi estudada por H. Fabre (Souvenirs entomologiques, conhecida, graças ao notável regime alimentar, constituído quase exclusivamente de outras
1879-91 ), Peckham (Vasps, Social INid Solitary, 1905) e outros. cobras, à maior parte das vêzes peçonhentas, circunstância que a torna eminentemente
80 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 81

Mandei que um dos meus caçadores a matasse, mas só com gran- costa e encontramos-nos numa bela eminência rochosa cheia de coquei-
de dificuldade conseguimos convencer o negro, carregador das plan- ros, que entrava pelo mar; perto, um riacho, chamado Rio das Ostras,
tas colecionadas, a transportar êsse grande réptil, inteiramente ino- desemboca no oceano. Andamos uns cem passos ao longo do riacho, e
fensivo, que amarramos com um pano à extremidade de uma vara descarregamos a tropa, para que o atravessasse. A água dêsse riacho é
comprida, apoiada ao ombro. Após ter vencido bom percurso, o negro clara, e as margens aprazíveis; numerosos ramos entrelaçados pendiam
sentiu um leve movimento da carga, e ficou tão apavorado, que a sôbre êle, encimadas pelos coqueiros esbeltos. Aí reside uma só famí-
atirou fora e fugiu. Um pouco além, encontramos os caçadores, que lia, composta de um português casado com uma índia. O homem
mandáramos na frente, sentados ao pé de uma velha árvore. Tinham pertence à milícia e é canoeiro. Parecia muito descontente com a
caçado algumas belas aves: vários tucanos, araçaris (Rhamphastos sua situação, porque o duplo encargo era bastante trabalhoso. Seria
aracari, Linn.), surucuás (Trogon), e o pequeno sauí vermelho (Simia extremamente fácil construir ali uma pequena ponte, o que evitaria,
rosalia, Linn.). aos viajantes, consideráveis perdas de tempo; porque, pouco depois
À tarde, chegamos ao rio S. João, que deságua no mar, perto da de ter tido o grande trabalho de carregar pela manhã, em São João,
vila aí existente. Tem trezentos a quatrocentos passos de largura, e tôda uma tropa, é-se obrigado, daí a duas léguas, a descarregá-la
é atravessado em canoas; os animais passaram-no a vau mais acima. de novo.
Desembarcamos na outra margem, na Vila da Barra de S. João, lugar Do outro lado do rio, encontramos, vazios, alguns casebres de
pequeno, com algumas ruas e construções sofríveis, segundo a moda do barro, cobertos com fôlhas de coqueiro, onde nos abrigamos de uma
país. Tem uma igreja, obra dos jesuítas, isolada num rochedo da praia. pancada de chuva. Antes de se alcançar novamente a praia por
Barra de S. João é um dêsses lugares onde se examinam os viajantes êsse caminho, atravessam-se algumas colinas quase que só cobertas por
e as mercadorias provenientes de Minas Gerais, por causa do contra- uma espécie de Bambusa de 30 a 40 pés de altura, chamado taqua-
bando de pedras preciosas para o exterior. No rio, até certo ponto ruçu. Os colmos formidáveis, que chegam a ter 6 polegadas de
navegável, havia cinco ou seis brigues ancorados- Um ferreiro inglês, diâmetro, sobem a grande altura, arqueando-se suavemente em cima;
aí estabelecido, contou-nos que navios inglêses já aportaram àquele as fôlhas são penadas e nos ramos existem espinhos curtos e fortes,
lugar solitário, e que, por isso, ia pedir o emprêgo de vice-cônsul. que os tornam uma barreira intransponível. Essa variedade de bambu
Dei-lhe para consertar uma porção de espingardas de caça, tendo o forma touceiras inextricáveis, onde a multidão de fôlhas sêcas e de
cônsul em expectativa se desobrigado a nosso inteiro contento. Os bainhas ressequidas produz, com a mais leve aragem, um sussurro
naturalistas em trânsito, no Brasil, sentem muito a falta de bons armei- peculiar. E' extremamente benfazeja ao caçador; porque, cortando-a
ros para o reparo das armas de fogo; porque é muito raro encontrar-se pelos nós, encontra-se, nos colmos mais novos, um líquido de agradável
quem possa fazer mesmo o trabalho mais simples nesse gênero. Cul- frescura, embora de gôsto adocicado e enjoativo, que atenua logo a
tivam perto de S. João grandes quantidades de arroz e mandioca; sêde mais ardente. Essa notável planta prefere os lugares monta-
e dizem que os terrenos são muito férteis, sobretudo rio acima; até nhosos e secos; por isso, é sobretudo abundante na capitania de
a areia, quando bem irrigada, produz com abundância. Minas Gerais, onde se fazem copos com os colmos.
Da língua de terra arenosa entre o rio e o mar, onde se ergue a Continuamos pelo litoral e descobrimos, próximo de habitações
vila, seguimos o litoral para o norte. Numa planura cheia de arbustos dispersas, outra planta útil, a Agave foetúia 1 B4 • As fôlhas, rijas e
de várias espécies, cresciam em abundância certa Amaryllis de flôres de bordos lisos, de 8 ou 10 pés de comprimento, formam sebes espês-
escarlates, Baniste1·ia de flôres amarelas e lindas variedades de murta. sas, do meio das quais sai um grosso caule de trinta pés de altura,
Tínhamos, à esquerda, uma altaneira montanha solitária, o Monte de carregado na ponta de flôres verde-amareladas, o que dá ao panorama
São João, diante do qual avança para o oceano uma planície coberta uma aparência original. A medula do caule, denominada "pita",
de pujantes florestas e, depois, de brejos. substitui a cortiça para o colecionador de insetos. Na praia também
Após passarmos através de algumas plantações de mandioca, recen- crescem palmeiras anãs, bromélias e outras plantas, enfezadas pelo
temente iniciadas, como o provavam os troncos carbonizados por aí vento e formando touceiras impenetráveis. Alcançamos, a seguir, a
dispersos, tomamos uma larga estrada de areia escura em direção à fazenda de Tapebuçu, situada numa colina próxima do mar, onde
fomos recebidos cortêsmente pelo proprietário, alferes da milícia. A
útil na luta contra estas últimas. Pseudoboa cloelia (Daudln), tal como é tecnicamente
conhecida atualmente, ocorre de modo geral em todo o Brasil, e em vários países limítrofes. posição dessa fazenda é muito agradável; logo por detrás erguem-se
A respeito consulte-se o belo capitulo a ela consagrado por Vital Brasil em seu bem conhe-
cido livro La D éf ense contre l ' Ophidisme (2.• ediç. São Paulo, 1914) . A curiosa evolução
cromática a que estão sujeitos os indivíduos desta espécie foi estudada por Amaral, em (1 8 4) O nome botânico carece de exatidão; estará quase certa mente por F oure>·oya
R ev. do M u s. Paulista, XV, pp. 105-9 (1927). qiqantea Vent., que é a • piteira " comum.
82 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 83

veneráveis florestas, dela separadas apenas por um lago, no qual as tampa perfeita e deixam cair as grandes sementes comestíveis•. Os
árvores se espelham encantadoramente. A eminência em que se acha macacos, e sobretudo as grandes araras vermelhas e azuis (Psittacus
a casa olha para uma vasta planície, coberta por impenetrável mata, macao e ararauna, Linn-)186, apreciam-nas muito. E' bastante difí--
de cujo meio se ergue a Serra de Iriri, serra isolada e digna de nota, cil, sem as asas dos papagaios ou a agilidade para trepar dos macacos,
de quatro ou cinco picos cônicos, também cobertos pela mataria; colhêr os frutos dessa árvore, tão altos ficam; em geral, abate-se
mais à esquerda, para o sul, fica, solitário, o monte de S. João. Em a própria árvore. Os índios se valem da ajuda das trepadeiras ou
nossa estampa 15 representa-se êste lugar, vendo-se a fazenda no pri- cipós, o que sem dúvida facilita muito a s~bida. Em outras excu:s~:s,
meiro plano e pouco além a lagoa. examinamos as flôres de uma bela palmetra, que, segundo a op1mao
As terras pertencentes à propriedade têm uma légua de compri- do Sr. Sellow, deve pertencer a um novo gênero. Seus lindos cachos
mento e são parcialmente plantadas de mandioca e arroz; também de flôres amarelas caem com inclinação suave, as espatas são gran-
se cultiva algum café. Na lagoa o peixe é abundante. Perto das des, em forma de canoa, e notàvelmente belas, assim como as pal-
habitações ficam laranjais, cujo esplêndido aroma atrai numerosos beija- mas penadas: ao cortar a árvore, vê-se que a madeira é muito dura;
flôres. Nossos caçadores encontraram, nos matos vizinhos, fartura desde, porém, que se atinge a medula porosa, ela cai imediatamente.
de caça; mataram papagaios, maracanãs, tucanos, pavós, e outras belas A 16 de Setembro, despedimo-nos da família do nosso bondoso
aves; também enriquecemos muito o nosso herbário. Encontrei di- hospedeiro e continuamos a viagem para Macaé. A chuva e o vento
versas espécies de coqueiros; entre outras, o airi, com cachos escureciam o amplo panorama da região, onde, sombria, a Serra de
de frutos maduros, e a palmeira espinhosa do charco, "tucum", Iriri se elevava sôbre as florestas pardacentas, e o morro de S. João
de estipe de cêrca de quinze palmos de comprido, que, assim como se delineava ao longe. O caminho de Tapebuçu ao rio Macaé segue
o pecíolo das fôlhas, se reveste de espinhos finos e acerados. Mawe por vasto areal na extensão de 4 léguas, quase sempre ao longo da
cita essa planta •, mas atribui-lhe fôlhas lanceoladas e dentadas, quando praia litorânea; aqui e ali, pequenos rochedos entravam pelo mar,
ela tem frondes penadas, com folíolos pontudos, macios e de bordos nos quais descobrimos conchas e musgos em não muito grande varie-
inteiriços. Arruda • • descreve-a melhor, porém não examinou a dade. Soprava um vento forte e as vagas espumejantes quebravam-se
flor; de acôrdo com a op1mao do Sr. Sellow, parece fora furiosamente nas fragas - Da praia arenosa sobe uma série de morros,
de dúvida que não pertence ao gênero Cocos1 85 • Seus usos já foram onde bonitas árvores e arbustos, enfezados pelos ventos, parecem
suficientemente explanados por Marcgrave, Mawe e Koster. Os ver- cortados: entre êles, vimos pés de maracujá com flôres grandes e
des folíolos (pinnulae) possuem fibras muito fortes; quebrada a fôlha, brancas, e o Cactus quadrangular, também de vistosas flôres níveas.
tira-se a casca superior verde, libertando-se as fibras; estas são tor- Estávamos agora na primavera dêsses climas; todos nós, até aí,
cidas e formam fios verdes e finos, muito resistentes, com que se tínhamos achado a temperatura geralmente fresca, e nunca mais quente
fazem ótimas rêdes de pesca. Essa palmeira cresce aí em abundância, que a dos cálidos dias de verão na Alemanha. A última milha da nos-
e dá pequenos côcos, duros e pretos, que contêm uma semente comes- sa viagem foi feita através de espêssa e alta floresta, na qual caçamos
tível. De uma outra espécie, tiram-se as fôlhas ainda dobradas, quando tucanos, araçaris e o pequeno cuco prêto (Cuculus tenebrosus)1 81 •
começam a se abrir no tope, arrancam-se-lhes a bainha e separam-se Numerosas espécies de árvores estavam desfolhadas, porque, embora
umas das outras, reunidas que são por um líquido viscoso, para
depois empregá-las na cobertura das casas, ou em trabalhos de trança- (*) V. M énagérie du Muséum d ' histoire naturelle, 5eme cahier, onde êste fruto é
Encontramos, nessas florestas sombrias, uma grande quantidade de representado na estampa do AGOUTI.
árvores majestosas. O ipê achava-se carregado de grandes flôres ama- (186) Houve durante muito tempo grande instabilidade na nomenclatura de nossas
relo-vivo, e uma outra Bignonia, de grandes flôres brancas, crescia araras vermelhas, aliás fáceis de confundir pelo observador desprevenido. Uma, todavia,
ocorre apenas nos Estados irrigados pela bacia amazônica; possui coberteiras externas
nos brejos. Bem acima das copas dos gigantes da mata, ergue-se a da asa amarelas, sem mescla de verde e coincide com a espécie descrita por Linneu, sob
o nome de Psittacus macao. A outra, embora ocorra na área da primeira, distribui-se
imponente sapucaia (Lecythis Ollaria, Linn.); possui fôlhas peque- principalmente pelo Brasil central e meridional, reconbecendo-se pelas suas asas tingidas
nas e enormes frutos pendentes, em forma de pote, que abrem uma externamente de verde, de permeio com o amarelo; corresponde ela à u araracanga"
de Marcgrave e é a mencionada por Wied. G. R. Gray batizou-a com o nome de
Ara chlm·optera, e êste é o seu exato nome científico.
(*) J. Mawe's Travels, etc., p. 127. Quanto à arara azul (Ara ararauna Linn.), dita "canindé", já ela não mais
existia nas vizinhanças do litoral à época em que o percorreu o nosso viajante. Todavia.
(**) Cf. ARRUDA, citado por Koster no apêndice, pág. 484. nos Beitrtige (IV, p. 154), informa-nos ter tido noticia dela no sertão da Bahia, através
dos camacãs de Jibóia.
(18~) Há várias palmeiras conhecidas por "tucum" ou "ticum". A referida por (187) Chelidoptera tenebrosa (Pallas) ou "andorinba-do-mato", comum nas margens
Wied deve ser Astrocarvum vulqare Mart., que fornece fibra tenacíssima e, por assim dos grandes rios do sertão. Não pertence à fam!lia, e muito menos ao gênero, dos
dizer, imputreclvel. cucos, mas sim à dos Bucônidas, de que o "joão-bôbo" é o exemplo mais conhecido.
84 VIAGEM AO BRASIL '
DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACAS 85

nessa região a maior parte delas guarde a folhagem durante o inverno, Nos alagadiços e matas percorridos, piscavam muitos insetos lumi-
as mais delicadas, entretanto, costumam perdê-la. Na sua maioria, nosos; entre êles, o Elater noctilucus, já citado por Azara *189, com dois
começavam agora a brotar, mostrando na ponta dos galhos, cobertos claros pontos luminosos verdes no tórax.
de folhagem verde-escura, as fôlhas tenras, amareladas ou verde-amare- Os bacuraus (Caprimulgus), cujo alto grito é pelos portuguêses
ladas, algumas vêzes tingidas de vermelho claro ou escuro, constituindo comparado à frase João corta pao, eram vistos ali em grande quanti-
belo e original ornamento. Outras se cobriam de flôres, e outras, dade, voando baixo nas trilhas sombrias da floresta, e muitas vêzes
ainda, de flôres e frutos ao mesmo tempo. Assim, a fusão da prima- pousavam no chão, pouco adiante de nossos pés 190 . Fizeram-nos lem-
vera com o outono, nessas encantadoras florestas tropicais, oferece brar do pio da coruja (Strix aluco, Linn.) das florestas européias, à
ao viajante nórdico o mais interessante dos espetáculos. Completa- hora do crepúsculo.
mente molhados da chuva, chegamos à vila de Macaé, à beira do Continuando o mau tempo, permanecemos em Barreto durante
rio do mesmo nome. f:ste, que não é dos menores, deságua aí no o dia 18 de Setembro e aumentamos nossas coleções com alguns
oceano, depois de atravessar a serra de Iriri, no seu curso de cêrca pássaros interessantes. De uma feita, quando procurava surpreender
de quinze léguas. Léry•, no livro de sua viagem, menciona êsse lugar, o cuco descrito por Azara com o nome de "chochi"**1 91 , e que eu
que os primitivos habitantes chamavam "Mag-hé". A êsse tempo, tentara caçar inutilmente, apareceu, de súbito, sôbre a minha cabeça,
habitavam-no selvagens, que estavam em guerra com os "Uetacas", ou um soberbo casal do milhano prêto e branco, de rabo em forma de
Goitacás, do Paraíba. garfo (Falco furcatus, Linn.), cuja plumagem de deslumbrante alvura
A pequena vila de S. João de Macaé se estende entre capoeiras, contrastava admirávelmente com as nuvens escuras 1 9 2 • Atirei imedia-
às margens do rio, que forma, na foz, uma curva em tôrno de uma tamente num dêles, escondi-me, e em pouco consegui abater o segundo,
ponta saliente de terra. As casas, acachapadas, são, em geral, limpas indenizando-me, assim, da perda do cuco.
e bonitas, feitas de barro, com paus a pique, muitas vêzes rebocadas Ficamos contentes em deixar Barreto, porque dois botequins, ou
e caiadas de branco. Possuem quintais cercados de troncos de coqueiros, vendas, meteram a nossa gente em sérias brigas. A viagem para o
onde se criam cabras, porcos e tôda espécie de aves domésticas. norte, ao longo da praia, é fatigante, em parte na areia sôlta; por
Os moradores fazem algum negócio com o produto das plantações, isso, já era tarde do dia quando atingimos o lugar de destino. Encon-
constituído de farinha, feijão, milho, arroz e um pouco de açúcar. tramos, a caminho, J:>onitos cercados de mimosas fechando os quintais
Exportam, também, madeiras; daí se verem, geralmente, ancorados, de algumas habitações, e também alguns coqueiros cultivados (Co-
alguns navios costeiros, sumacas ou lanchas. Dizem que, rio acima, cos nucifera), carregados de frutos, grande raridade nessa região. Pas-
para o interior, vivem os índios "Gorulhos", ou Guarulhos, em samos através de plantações de mandioca, onde os pés se erguiam den-
aldeias. A "Corografia Brasílica" cita essa tribo com o nome de tre os troncos derrubados e semicarbonizados, e o chão era regular-
"Guaru", e esclarece que, na serra dos órgãos, ainda existiam alguns mente revolvido em tôrno das raízes, como se faz com as batatas. Atin-
remanescentes dela, conhecidos por "Sacurus", inteiramente civilizados, gimos depois trechos pantanosos, vestidos de altaneiras bignônias de
os quais, talvez, tenham já hoje desaparecido. Diz-se que ainda são alvas flôres e de árvores imponentes.
encontrados, entre outros pontos, na freguesia de Nossa Senhora das
Neves••. Depois de passarmos alguns dias nesse lugar, devido ao (*) AZARA, voyages, etc., vol. I, p. 211.
tempo chuvoso, e de conseguirmos sementes de bonitas espécies de (**) AzARA, voyages, etc., vol. IV, p. 33.
bignônias188 e de outras plantas leguminosas partimos num domingo, (189) Pyrophorus noctilucus (Linn.), da atual nomenclatura.
porém de tarde, atrasados por causa de uns burros que fugiram. (190) Informa Wied (Beitr., IJJ, p. 318) que a espécie em causa era o comu-
Apanhamos um aguaceiro, novamente, durante légua e meia de níssimo bacurau Nyctidromus albicollis (Gmelin), muito a propósito chamado nos Estados
do sul "curingu ", ou "curiango " .
viagem, através de capoeiras e florestas, ao longo da praia litorânea, (191) O "cl10chi" de Azara não é outro senão o nosso bem conhecido "saci" ou
até à fazenda de Barreto, onde chegamos à noite e nos alojamos "sem-fim" (Tapera naevia (Linn.)). tão intrigante pela singular faculdade de, quando
canta solitário em algum galho, dar impressão sempre errada do local em que se encontra.
numa casa vazia. A biologia dessa curiosa ave, estudada recentemente por H. Sick (Rev. Brasil. Biol. XIII,
p. 145), é cheia de particularidades interessantes. avultando entre elas o hábito de depositar
os ovos nos grandes ninhos de vários pássaros da famflia dos Furnarlidas, de que o "joâo-
(*) J. DE LÉRY, Voyage, etc., p. 49. teneném" é exemplo bastante conhecido.
(**) V. Corografia brasílica, 11, p. 45. (192) E', com efeito, inapagável a impressão produzida pelo "gavião tesoura"
(Elanoides forficatus (Linn.)), quando contemplado em seu vôo magistral. Vide as refe-
(188) As bignônias (no sentido extensivo de planta da famflia Bignoniaceae) são rências que lhe fiz no meu trabalho sôbre as aves da Bahia (Rev. Mus. Paul., XIX, p. 104).
mencionadas ordinàriamente no texto de Wied sob o nome de "Trompeten" (= trombêtas), Falco forficatus é nome dado por Linneu na 10.• ediç. de Systema Naturae (1758);
"Trompetenbamuem", etc. Vê-se assim que êle não empregava o têrmo "Leguminosas " na 12.• edição (1766) aparece mudado em F. furcatus, que gozou ele preferência até
(" Schotengewachse ") na mesma acepção botânica dos tempos atuais. as modernas convenções de nomenclatura.
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As ruínas de um edifício, outrora considerável, aí existentes, bem À tarde, nossa caravana alcançou a praia, onde as ruínas de uma
como a aparência geral dos arredores, levaram-nos a concluir que êsses velha capela, na região arenosa, deserta e melancólica, casavam-se
lugares, antigamente, foram muito mais prósperos. Tivemo~ também harmoniosamente com o estrondo e o rugido dos vagalhões furiosos.
aqui a oportunidade de observar uma incrível quantidade de urubus Mato baixo e mofino se estendia para a floresta, atestando a violên-
(Vultur aura> Linn.), rodeando uma carniça, e tão pouco ariscos, que cia dos ventos reinantes. Por pequena língua de terra, entre o oceano
dividiam amigàvelmente os despojos com um grande cão, sem o mínimo agitado e uma comprida lagoa, continuamos a jornada até depois do
cuidado pela nossa presença1 93. Vimos, também novamente, grandes anoitecer, quando chegamos à morada solitária de um pastor, chamada
bandos de papagaios rabilongos (maracanãs e periquitos), que, em Paulista, onde não havia nada para nos saciar a fome, a não ser um
enorme algazarra, faziam as mais variadas evoluções no espaço. Todos pouco de farinha de mandioca, e algum milho para os animais.
os papagaios caçados tinham os bicos sujos de azul por certos frutos, Tínhamo-nos, felizmente, provido em Barreto com um pouco de carne
maduros então. Em alguns pontos da floresta, onde as árvores eram sêca e de feijão 196. Como a casa fôsse regularmente espaçosa, aí perma-
muito altas, matamos tucanos; e vimos, freqüentemente, à espreita, necemos o dia seguinte, para nos refazermos das fadigas.
nos mais altos galhos secos das árvores, solitárias aves de rapina, sobre- Bandos do papa-ostras brasileiro"' 197 (Haematopus) andavam pela
tudo o gavião côr de chumbo (Falco plumbeus> Linn-)194, que se costa; caçamos muitos. Nas matas vizinhas, em que as palmeiras
arremessa sôbre a prêsa num vôo impetuoso e destemido. são numerosas, matamos várias pequenas corujas, da espécie que os
Entre outras árvores observadas, estava a conhecida por "tento" *195 nativos chamam caburé"'"' 1 98, a qual não deve, porém, ser confundida
pelos portuguêses. Tem folhagem veludosa e verde-escura e dá gran- com a espécie mencionada, com o mesmo nome, por Marcgrave 1 9 9 •
des vagens com bonitas favas vermelho-carregado, que os por- Abatemos o palmito, muito comum aí, para lhe tirarmos a medula.
tuguêses usam como tentos nos jogos de cartas. Não pude observar Essa árvore é uma das mais elegantes da família dos coqueiros; o
a flor. Nos matagais arenosos dêsses lugares há muitas plantas estipe é um fuste alto, esbelto e anelado, no tope do qual uma coma
interessantes. pequena, de oito ou dez palmas penadas, verde-brilhante, ondula no
Descobrimos, nos charcos, uma árvore de oito ou dez pés de altura, espaço; sob essa bela copa, no estipe cinzento-prateado, existe uma
de grandes flôres brancas, que parece aparentada à Bonnetia palus- tumefação da côr verde-brilhante das fôlhas, que contém as fôlhas
tris .. ; uma bela espécie de Evolvulus• u; uma pequena Cassia de novas, ainda enroladas: dentro destas, ficam as tenras flôres por desa-
flôres amarelas"' .. "'; uma graciosa trepadeira florida Asclepiadea•••••
de lindas flôres branco-róseas; uma nova Andromeda"'"'"'"'"'"', de flôres (*) Esta ave, que os primeiros naturalistas não chegaram a conhecer, observei-a
vermelho-escuras, e as duas espécies do mesmo gênero já encontradas eu em grande quantidade na costa brasileira, dando pa ra distingui-la o nome de Haema-
topus brasiliensis. E' menor do que a espécie européia, mas tem o bico mais comprido.
em Cabo Frio; e muitas outras plantas. O Sr. TEMMINCK, a quem dei a conhecê-la, chamou-a na nova edição de seu "Manuel
d'Ornithologie " Haematopus palliatus (sec. part., pág. 582).
(**) Strix f errttginea ; 6 polegadas e 7 linhas de comprimento; côr vermelho-ferru·
(*~ E' a Onnosia coccinea, JACKS, nas T1·ansactions of the Linnean Society.
Pertence a genero novo, e foi encontrada, pela primeira vez, em Guiné. Não é citada gem, com diversas manchas amarelo-claro nas espáduas, e asas de grandes penas;
em Wllldenow. grande mancha branca na parte inferior da garganta; rabo côr de ferrugem, sem
(*~) (Suplem.) Wikstroemia fruticosa ScHRADER, op. cit., pág. 710. Acha-se manchas; ventre de um brilhante amarelo-ferruginoso, com estrias longitudinais brancas
em companhia desta planta, uma outra muito parecida, a Kiseria stricta do Prof. Nees e castanhas; i ris amarelo-escura. Essa coruja, que não tem orelhas, parece ser o
von Esenbeck: "Classis Linneana Polyandria Polygynia; Fam. nat. Guttiferarum. Corolla "caburé" de Azara.
pente petala, petalas integris. Calyx quinque-partitus, bracteatus Anthera e erectae liberae.
Germen triloculare, septis simpli cibus. loculis monospermis ". (196) No original "Feigões" ("feijões").
(***) Espécie nova, ainda não descrita por Persoon, nem por Willdenow, Ruiz (197) "Papa-ostras" é a tradução que melhor cabe ao "Austerfresser" dos alemães,
e Pavon. (Suplem .) Evolvulus phylicoides, ScHRADER, op. cit., pág. 707. a que os portuguêses dão, em sua terra, os nomes de "pêga-do-mar ", "passa-rios ",
( ****) (Suplem.) E' a Oassia uniflora Spr. "gavita", etc. A ave européia (Haematopus ostralegus (Linn.)) muito se parece com a
(*****) (Suplem.) Echites variegata ScHRADER, op. cit., pág. 707. nossa, que é, todavia, espécie distinta (H. palliatus Temm.) e vulgarmente conhecida
(******) Andromeda nova com flôres vermelho vivo. por "baiagu" ou "piru-piru ".
(Suplem.) Andromeda coccinea ScHRADER, op. cit., pág. 709. (198) "Orelhas" (ou "martinetes"), têrmo aqui usado na descrição da ave, são os
penachos laterais que algumas corujas possuem a ornar-lhes o alto da cabeça.
(198) E' singu lar que se tratasse do urubu campeiro, ou de cabeça vermelha, como (199) Conquanto o nome se aplique aqui a ave diversa, o primeiro naturalista
vemos confirmado em Beitrlige, Il , p. 65. a descrever o nosso "caburé" foi Marcgrave (1688); Brlsson .reproduziu a noticia em sua
(194) I ctinia plumbea (Gmelin ), conhecido vulgarmente por "gavião pomba" (nome grande Ornithologie (1760), a qual, por sua vez, serviu de base à Strix brasiliana de
comum a outras espécies) ou "sovi". Como o '·gavião-tesoura" , era. noutros tempos. Gmelln (1788). A ave, cujo nome atual é Glaucidium brasilianum, é muito comum em
visto com freqüência nas fazendas, pela época do vôo dos içás ( egundo me informou nossas matas, a cuja orla pode ser vista a cantar, (a voz do caburé lembra muito de
verbalmente o meu amigo Sr. Pio Lourenço, de Araraquara); hoje, porém, é em regra perto a do surucuá), mesmo durante o dia. Apresenta-se ora com plumagem pardacenta,
apenas encontradiço nos sertões mais distantes e menos povoados. Cf. O. PINTO, Rev. ora côr de ferrugem, donde tê-la descrito Wled duas vêzes nos Beitrãge, sob os nomes
Mus. Paul., XX, pp. 23 e 58. de Stri.x terruginea (vol. 111, p. 284) e S. passerinoides (p. 289). Outro tanto não
(195) Há várias leguminosas de sementes vermelhas conhecidas pelo nome de " tentos ", acontece, porém, com a sua Stri.x minutissima (p. 242), que provou ser uma boa espécie,
e como tais usadas. Uma das mais vulgares. a que chamam também de "c>trolina". é muito mais rara, e diferente da primeira pelo seu tamanho ainda mais exiguo. A propósito
Adenanthera pavonina (L.), Importada da Asia; na Bahia é mais conhecido o "ôlho dêste assunto, veja-se o que ficou dito nos meus "Comentários" (coment. 599) à edição
de pombo " ou "jequiriti " (Abrus precatorius Linn.), de sementes bem menores. brasileira da Historia Naturalis Brasiliae de Marcgrave (Museu Paulista edlt., 1942).
88 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 89

brochar; somente as flôres já desenvolvidas libertam-se da cáp- De Paulista, acompanhamos as dunas. Extensos paludes e lagoas,
sula verde. cobertos de caniçais, onde pastavam bois e cavalos, por vêzes em grande
Cortada do caule, essa tumefação ou cápsula, contendo as fôlhas número, afundados até o ventre, entravam pelo continente. Havia
no~as, mostram .um t;niolo t.ão macio, que se pode comer cru; quando aí, em grande número, maçaricos (Vanellus cayennensis), garças, gai-
cozido, porém, e mmto mais saboroso. Achamos·lhe a madeira muito votas, andorinhas-do-mar e marrecas; os maçaricos, chamados quero-
dura e deu-nos grande trabalho cortar a árvore com o facão. Nas quero, que já .citamos mais de uma vez como importunos para
várzeas, a palmeira tucum estava também florida; bem assim, nos o caçador, voam-lhe em redor da cabeça quando êste se aproxima dos
areais escampos, uma bonita espécie nova de Stachytarpheta• e um ninhos, da mesma maneira que as espécies européias2oa. Nas dunas
belo Cactus globoso, semelhante ao mamillaris, que apresenta na as capoeiras consistem geralmente de bromélias e cactos esbeltos, de
superfície uma penugem branca, envolvendo as pequenas flôres ver- permeio com outras plantas frondosas. As flôres brancas desabrocha-
melho-escuras. O sr. Sellow considerou-o espécie nova. vam na haste erecta dos cactos, cujos ramos são quadrangulares, penta
~ossas coleçõe~ ornitológicas não cresceram muito aí; porque des- e hexagonais; pareciam, porém, pertencer a uma só espécie, ou no
cobnmos pouca coisa nova, exceto algumas aves palustres. Nos matos máximo a duas, porque essas originais plantas espinhosas variam
baixos, e~ tôda essa costa, ouve-se o "sabiá-da-praia" (Turdus or- muito, de acôrdo com a idade, no número de ângulos. Os cactos
phoe~s, Lmn.)200 , que, de par col? uma plumagem nada vistosa, possui são sobretudo perigosos para os burros e cavalos em viagem; com
voz tao bela, qu.e deve ser considerado como dos primeiros pássaros efeito, se um espinho se crava no casco ou numa junta, o animal
cantores do BrasiL Nas casas, o pequeno "gecko" esbranquiçado••2o1 pode ficar estropiado. Descobrimos, na areia, a Turnera ulmifolia;
que sobe e desce pelas paredes perpendiculares, era muito comum; nos charcos, duas espécies de Nymphaea de flôres brancas, a indica
do mesmo modo, a lagartixa de coleira preta •• •202, ambos freqüen- e uma outra chamada erosa pelo Sr. Sellow, de flôres enormes; ade-
tes em tôdas as regiões que atravessei. Encontramos muito poucas mais, uma alta Alisma de flôres níveas, também nova, provàvelmente,
conchas na praia; e, nos brejos, viam-se aqui também, prêsas aos e de fôlhas estreitas e alongadas. Não era fácil alcançar essa bonita
galhos dos arbustos, as casas de barro da vespa já mencionada (Pelo- planta no fundo lamaçal; o Sr. Sellow afundou-se até considerável
paeus lunatus, Fabr.), em forma de pêra, e pontudas embaixo. altura, na água negra e lodosa; e não me foi menos penoso perseguir
ali algumas aves aquáticas.
(* ) (Suplem.) Stachytarpheta cracifolio., ScHRADER, op. cit., pág. 709. Essa vasta planura, coberta de matagal, é habitada por manadas de
(**? E', com tôda probabilidade, o Gecko spinicauda de DAUDIN, Histoire Naturelle
des Repbles, tomo IV, p. 115. bois, en.tregues a si próprias, mesmo à distância de vinte ou vinte e
(***~ Stellio torquat~s: parece aparentado ou idêntico ao Stellio quetz-1)aleo de cinco milhas de qualquer morada humana. Uma ou duas vêzes no
DAUDIN, H1st. Nat. des Repbles, I, p. 26. Essa espécie é de côr muito variável. Quando
nova, aprese_!lta, .no dorso, grandes estrias escuras, que desaparecem quando envelhece: ano, conduzem-nas os donos, proprietários das fazendas próximas, a
tor~a-se, então, cmzento-prateada, laivada de púrpura e cúpreo; tem, às vêzes, manchas um curral, ou recinto cercado de estacas, onde são contadas e mar-
ma1s claras: entretanto, o característico da espécie permanece sempre: uma mancha
esc~ra um pouco longa no lado do pescoço, adiante da espádua, assim como três cadas. Fizemos pouso essa noite no chamado Curral de Ubatuba 204 , a
estn":s _escuras, correndo e~ direção perpendicular sôbre as pálpebras cerradas. Tôdas as
descnçoes d_? quetz-1)aleo sao insuficientes; contudo, não pode ser confundido. A espécie cinco léguas de Paulista, numa espaçosa cabana de barro, situada
de colar preto é conhecida, na costa oriental, por lagarto. para dentro da cêrca. A região circunvizinha é uma vasta planície,
(200) M.irnus gilvus antelius Oberholser. Duas aves inteiramente diversas têm no que excede o alcance da vista. A água se acumula freqüentemente
nor~e do Bras1l o nome ~e "sabiá-da-praia ". Não são túrdidas, como os verdadeiros nas baixadas pouco profundas, ·formando lagoas, cobertas de capinzais
sab1ás . mas pertencem à VIZinha famllia dos mlmldas; tampouco a ave referida agora
por _Wu~d c~Jr.respoJ?de ~ .Turdm orphoeus Linn., que é peculiar às Antilhas. Sua determi- rasteiros, de que se alimentam as manadas de gado. Se alguém se
naçao c1ent1f1ca f01 rebf1cada no vol. III dos Beitrage (p. 658) onde a ave é identificada aproxima dêsses animais, levantam a cabeça, cheiram o ar e fogem a
com acê~o_. à que Lichtenstein tinha acabado de descrever, sob a denominação d~
Turdm bvidus. Essa todavia foi, por infelicidade, reconhecida hltimarnente inválida galope, com as caudas erguidas. E' sem dúvida admirável que êsse
por ~omonlrnia, perdendo a espécie o clássico nome de Mirnus lividus Licilt. pelo de M. útil animal pela extraordinária atividade e o cuidado dos europeus,
ant!!l•us Oberholser. Relativamente comum em tôda a faixa costeira do leste brasileiro
ao mver _o do se~ companheiro Mirnus saturninus (Licbt.), de que aliás existem várias raças' já se encontre na maior parte do globo. No norte, o boi pasta nas
com habttat distmto. '
. (201) A "laga_rtixa" doméstica, particularmente comum nos Estados do norte
frígidas florestas de bétula; na zona temperada, nos nossos aprazíveis
(Herntdactylus 1>W:bouta JoNNÉS, I818), é espécie estranha à nomeada por Daudin, corno
o r~conheceu dep01s o próprio Wied, ao descrevê-la sob a denominação do Gecko incanescens
(Bettr., I, p. IOI). (203) Sôbre êste pormenor da biologia do "quero-quero" veja-se a nota que inseri
na Rev. Mm. Paul., torno XX, ps. 12 e 42.
(202) Tropidurus torquatus torquatus (Wied) é mais um exemplo das inúmeras
~escobertas zoológicas ~e Wied, que dêle. nos dá u~ll: bela estampa em suas Abbildungen; (204) "Coral de Batuba" no original alemão. Ubatuba. topônimo que no Estado
este lagarto, encontrad1ço em todo Bras!) este-mendwnal. é na região nordestina substi- de São Paulo corresponde a importante pôrto de mar, significava na lingua dos indios.
tuído por uma subespécie P!i-rticular, Tr. t. hispidus, descoberta por Spix (Lacert. Bras. sem sombra de dúvida. abundância de ubás, ou seja a mesma planta várias vêzes referida
Spec. Nov. p. I2, tab. I5, f1g. 2). por Wied e hoje mais conhecida por "cana brava".
90 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 91

vales relvosos? entre m~tas sombrias de faias; nos trópicos, sob palmei- coropó 207, caçou o íbis de faces peladas e côr de carne, que Azara
ras e banane1ras; nas llhas dos mares do Sul, debaixo das Melaleuca descreve com o nome de Curucau raséU 08 ; outros mataram duas
Metrosideros e Casuarina. Indispensável ao homem civilizado o boi' espécies de gavião, das quais uma era uma bela espécie nova de mi-
multiplicando-se por tôda parte, engrandece-lhe a riquez~ e ~ lhafre'u2o9 com um disco facial à maneira do nosso Falco cyaneus, e
prosperidade- a outra Falco busarellus 21 o, de corpo côr de ferrugem e cabeça branco-
Ao cair da tarde, todos os caçadores dispersos se reuniram em amarelada. Descobri, nos arredores da casa, com os ovos, o ninho do
volta do _fogo aleg_re da cozinha, esperando cada um de nós pagar-se bem-te-vi (Lanius pitangua, Linn.) 211 , em forma de forno, fechado
da~ canseuas ~ saCiar a fome; infelizmente, porém, as provisões nunca em cima.
est1veram ma1S escassas do que então. Era, entretanto, inadmissí- Ao norte de Ubatuba, a planície se entremeia de extensas lagoas,
vel que um grupo de caçadores morresse de fome entre manadas de pouso de inumeráveis patos, garças e outras aves aquáticas e palustres;
gado bravio. Dirigimo-nos, por isso, à planície, colocamo-nos numa as espécies peculiares à região podem estudar-se nesse lugar, com par-
lon~a fila e tentamos matar um~ vitela; mas a noite surpreendeu-nos ticular facilidade. Disseram-nos que aí encontraríamos o belo e róseo
mmto depressa, ~ gado era mmto arisco, e cactos solitários, espalha- colhereiro (Platalea ajaja, Linn.) 212 e de fato o vimos, nesse dia,
dos no_ areal, fenam nossos pés. Fomos, assim, obrigados a desistir pela primeira vez. Cêrca de trinta dêles repousavam juntos, num
e a ad1ar, para a manhã seguinte, a caça imposta pela necessidade. local pantanoso, e logo nos chamaram a atenção como uma grande
Na casa ~riste e arruinada, onde a chuva entrava pelo teto, pouco mancha côr-de-rosa. Os caçadores se aproximaram devagar e mes-
repouso :1vemos nas rêdes que armamos, porque uma infinidade de mo rastejantes, quando mais perto; mas em vão; as tímidas aves
pulgas nao no_s deu trégua, além de uma multidão de bichos-de-pé levantaram vôo imediatamente e passaram, num esplêndido cortejo,
(pulgas da are1a, Pulex penetrans) 205 , dos quais, no dia seguinte, tira- sôbre as cabeças dos outros caçadores, que descarregaram, infelizmente
mos um número incrível dos pés. :f;sse inseto, sobretudo comum sem resultado, as espingardas de dois canos. Conseguimos apenas
em tôdas as casas vazias das regiões arenosas, penetra entre a pele enfeitar nossos chapéus com as lindas penas róseas das asas, que
e a carne da planta do pé e dos artelhos, e muitas vêzes mesmo sob (*) D. F. DE AzARA, Voyages, etc., vol. IV, p. 222.
as unhas dos ded?s. Dizer-se, como se ouve algumas vêzes, que êle ( **) Falco palustris: 19 polegadas e 8 linhas de comprimento: a cabeça é rodeada
por um disco igual ao da coruja, mistura de branco-amarelado e castanho-escuro; sôbre
penetra no própno músculo, é exagêro: localiza-se sempre entre a o ôlho, uma estria esbranquiçada; partes inferiores, vermelho-amarelado claro com listas
pele e a carne, apenas. Violenta comichão torna-lhe logo sensível a castanho-escuras longitudinais; garganta, castanho-escuro; coxas e uropfgio, vermelho-
ferrugem; tôdas as partes superiores, castanho-<!scuro; penas da asa e do rabo,
presenç~, ,tran~formando-se, depois, em leve dor: é aconselhável, por- cinzentas com listas castanho-escuras transversais.
tanto, t1ra-lo 1mediatamente com uma agulha, sem lesar-lhe o corpo, (207) Os coropós, assim como os coroados e os puris, são por alguns autores consi-
9ue é co~o. uma vesíc_ula cheia de ovos•. Para evitar a inflamação, derados descendentes dos goitacás, com que, pelo menos, apresentavam indiscutível e
próximo parentesco. Estudou-os, entre outros, Eschwege, que os pôde observar ainda em
e_ bom fnccwnar a p1cada com pó de tabaco ou unguentum basi- 1818, no Rio Pomba, em Minas Gerais.
lzcum206, vendido pelos farmacêuticos brasileiros. (208) Informa Wied nos Beitrãge (IV, pág. 699) que essa pernalta, nos dias de
hoje correntemente conhecida por "tapicuru ", tinha então na região por êle visitada o
Manhã, chuvosa e pardac~nta seguiu-se a essa noite desagradável; nome vulgar de carão ( "Caron "), hoje usual para ave diversa.
A espécie, através da descrição de Azara, recebeu de Llchtenstein (1823), o nome
e nossos estomago~ cedo n_os flzeram lembrar da caçada que iniciamos de Ibis infuscatus; Spix, pouco depois (1824), descreveu por sua vez a ave brasileira
sem suces~o no d1a antenor. Mandamos aos caçadores que montas- sob a denominação de Ibis nudifrons. Provado modernamente serem ambas raças
distintas de uma mesma espécie, e feita a correção do nome genérico, a ave referida
sem e sa1sse~ _pelo ca~po, ond~ e~palharam o g~do bravio, que por Wied passou a chamar-se Phimosus infuscatus nudrifrons (Spix). Ct. O. PINTO,
Rev. Mus. Paul., XX, p. 45.
correu em pamco em t_odas as d1reçoes. Nossos ammais, em geral, (209) Circus brasiliensis (Gmelln, 1788). Concordes estão os ornitologistas em
galopavam be_m; P?r. hm~ os caçadores Tomás e João conseguiram ver no presente gavião o "Caracara" de Marcgrave; a essa conclusão, contrariando a
velha suposição de que a ave marcgraviana fôsse o bem conhecido "carancho" (também
mat~r um b01 .. Fo1 1med1atamente esquartejado; saciamos o pessoal vulgarmente chamado "cará-<:ará"), chegara há poucos anos Schneider (Journ. für. Ornithol.,
Berlin, LXXXVI, pp. 94-95), à vista do original do desenho de Marcgrave. Falco
esfa1ma?o o m_a1s_ depressa possív:l e logo nos separamos para caçar. palustris Wied, nome também sob o qual o exemplar colecionado pelo nosso viajante
Há mmtas cunos1dades ormtológ1cas nessa região. Francisco, o índio foi belamente figurado por Temminck e Laugier (Nouv. Réc. Pl. color., n.o 22) e a
seguir redescrito nos Beitrtiue (Ill, p. 230), entra, por conseqüência, na sinonfmla de
Falco brasiliensis Gmelln, da mesma maneira que Falco buttoni Gmelln, 1788 e Aquila
maculosa Vieillot, 1807, origem das combinações Circus buttoni e Circus naculosus,
(*) Ct. OL. SwARTZ, em Sw. Vetensk. acad. n11a Handlingar, t. IX, para 1788, p,
40 e ss., com gravura. ambas ainda freqüentemente usadas na literatura ornitológica para o presente gavião.
tsse rapineiro tem larga distribuição na América do Sul (da Venezuela ao Estreito
de Magalhães) e, no Brasil, é não raro chamado pelo vulgo "Gavião do mangue".
. (205) Atualmente Tu nua penetrans (Linn.). Sôbre o bicho-de-pé, consulte-se 0 eru- (210) Busarellus nigricollis (Latham). Grande e belo gavião, de plumagem côr de
dito estudo de Arthur Neiva, em Estudos da Língua Nacional, Cia. Edlt. Nac. "Brasiliana" ferrugem, comum perto dos pantanais e lagoas, particularmente na Amazônia, onde o
vol. 178 (1940), p. 230 e ss. ' ' conhecem por "gavião belo" e "gavião padre".
(206) Velha fórmula em cuja composição entrâ o breu, pez negro, cêra de abelhas (211) Cf. nota 73.
e azeite de oliva. (212) Ajaia ajaja (Linn.); "colbereiro" da nomenclatura vulgar.
92 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 93

encontramos no charco. Garças, tapicurus• 21 3, patos, maçaricos e voaram em nuvens ao nosso primeiro tiro; esta última é a espécie
biguás animavam o. amplo cenário. As lagoas eram divididas por de pato mais comum em tôdas as regiões brasileiras que visitei 21 6bis
molhes cobertas de mato, constantemente procuradas por aves de Aproximava-se o crepúsculo, quando o nosso guia, um negro, nos
rapina, das quais caçamos algumas. Nas margens de uma delas, vi conduziu pela água a uma ilha pantanosa. Disse que o senhor dêle
a anhinga (Plotus anhinga, Linn) 214 ; que persegui em vão. Não viria com uma canoa para nos transportar através da lagoa Feia; não
correspondia êsse lugar ao seu verdadeiro habitat, que são os rios, onde apareceu, entretanto, nesse dia. Como o tempo ameaçasse aguacei-
depois conseguimos matá-la freqüentemente. A cinco ou seis léguas de ro, alguns dos nossos propuseram cavalgássemos de volta até a uma
Ubatuba, há um lugar chamado Barra do Furado, onde a lagoa Feia se pequena cabana, cêrca de meia légua distante, onde tínhamos encon-
lança ao mar, como está corretamente registrado no mapa de trado cinco ou seis soldados, aí de guarda para evitar os contrabandos
Arrowsmith • •. de diamantes vindos de Minas. Tornamos a êsse pôsto; os soldados
Arranjamos, desde logo, os meios de despachar, para o pouso acenderam-nos um bom fogo, deram-nos farinha de mandioca e carne
combinado, a bagagem e alguns dos caçadores que ficaram para trás, sêca, e palestraram conosco o resto da noite. De tez geralmente escura,
numa grande canoa pertencente a um morador solitário do lugar. E usam calças e camisas brancas de algodão, o pescoço descoberto e os
continuamos a jornada pelas dunas, próximo da furiosa rebentação pés descalços; e, como todos os brasileiros, trazem ao pescoço um
das ondas, divertindo-nos com o espetáculo dos numerosos maçari- rosário. Uma espingarda sem baioneta é sua única arma. Durante
cos (Charadrius), batuíras e baiagus (Haematopus), comendo uma o dia, pescam nas lagoas, de que tiram todo o sustento, fora da carne
porção de pequenos insetos 21 5 cada vez que uma vaga recuava. Passa- sêca e da farinha que recebem. Perto da cabana, estendem cordas de
mos por duas humildes cabanas de pescadores, onde nos indicaram couro entrançado, em que penduram o peixe para a secagem. A cabana
o caminho, orlado, do lado da terra, por amplos pantanais, onde pas- é disposta como um corpo de guarda, com diversos quartos, rêdes
tavam inúmeros bois e cavalos. Era verdadeiramente espantosa a para dormir e trastes de madeira.
multidão de marrecos e aves palustres que aí encontramos. Grandes Só na manhã seguinte apareceu a canoa com os caçadores, que
bandos escuros da Anas viduata 21 6 da espécie de espáduas verdes, foram surpreendidos pela noite, quando entretidos com os bandos de
dita assobiadeira, que AzARA descreveu com o nome de "ipecutiri"•• •, patos. Começamos então a atravessar a "lagoa", e, assim que desembar-
camos, os caçadores se dispersaram. Entre outras aves, matar.a m
(*) Entre as espécies brasileiras da familia dos pernaltas de bico falciforme, desta- o íbis de cara vermelha ("carão") 2 17, e o caracará (Falco braszlzen-
ca-se o "guará" (Tantalus ruber, Linn.) pela côr vermelho-vivo da plumagem.
Não encontrei essa linda ave em nenhum ponto da costa, e a Corografia B1·asílica afirma sis21B, bonita espécie de gavião. Quando reunidos na margem norte
que não existe mais na Ponta de Guaratiba, um pouco ao sul do Rio de Janeiro, da lagoa tivemos um desagradável contratempo; as mulas, que esta-
onde, outrora, era tão comum. Hans Staden diz que os tupinambás daquela região
usavam as magnfficas penas vermelhas para enfeite. vam pastando, foram atraídas para longe por cavalos, e nós passamos
(**) A Lagoa Feia divide-se em duas partes, ligadas por um canal; a sua confi- o dia inteiro debaixo de chuvas torrenciais, até que, ao anoitecer,
guração não está rigorosamente Inscrita em meu mapa, porque apenas a atravessei e
não lhe pude abranger tôda a superffcie. De acôrdo com a Corogratía Brasílica (t. 11, apareceu um pescador e nos conduziu à sua cabana, onde esperamos
p. 49) a parte norte tem cêrca de seis léguas de comprimento de este a oeste, e
perto de quatro léguas de largura; a parte sul, cinco léguas de comprimento e uma pelos animais desgarrados. Alcançamos, através de uma pequena
e meia de largura. Peixe abundante, água doce. A extensa superffcie é geralmente capoeira, a margem do rio Bragança21 9, que corre da lagoa Feia.
agitada pelo vento e, por isso, quase sempre perigosa para canoas; não dá calado a
embarcações maiores. A Barra do Furado seca nos perfodos em que o nfvel da água Aí existiam duas miseráveis cabanas de pescadores (que vêem repre-
baixa. Tôda e sa região é recortada, ao longo da costa, de numerosos lagos, muitos dos sentadas n~ vinheta dêste capítulo) onde tivemos recepção muito .cor-
quais omitidos no mapa. Com tal abundância d'água e a fertilidade do solo, cedo se
tornaria uma das zonas mais produtivas do pais, caso a habitasse um povo mais ativo dial. Eram constituídas, simplesmente, de um teto de sapé apoiado
e laborioso.
(***) D. F. AzARA, VO'I}ages, etc., vol. IV, p. 345.
(2 16 bis) A espécie a que o autor aqui se refere é Nettion bmsiliense (Gmelin) , cuja
(218) Por "tapicurus" são vulgarmente conhecidos todos os nossos ibfdidas de côr freqüência ainda hoje não desmente a observação registrada. Cf. Rev. Mus. Paul.,
preta ("schwartze Ibisse ", no original alemão), assim como "biguá" é o nome popular XX, pp. 23 e 47.
do corvo marinho ("Cormorane") lndfgena (Phalacrocorax olivaceus Humboldt). Quanto (217) " Carã o", como haveremos de ver mais adiante. aparece no livro de WIED
ao "guará " (Gum·a rubra (Linn)), de há muito desapereceu das costas meridionais do como nome de várias aves ribeirinhas ou palustres. A espécie a que se reporta o autor neste
Brasil. lugar, é Phimosus intuscatus nudifrons (Spix), uma das que o sertanejo chama "tapicuru".
(214) Anhinga anhinga (Linn.) Chamada também "biguá-tlnga", "cara r á", "miuá ", V. nota 208.
etc., é relativamente comum em quase todos os rios do sertão. (218) " Cnracará" ou "carancho". Polyborus plancus plancus (Miller, 1777 ) . um
(215) O têrmo "Insecten ", encontrado no original, corresponde à sua acepção dos nossos gaviões mais comuns nas zonas habitadas, onde não raro aparece disputando
primitiva e lata, abrangendo dêste modo também os crustáceos, que, com os vermes e a carniça com os urubus. Querendo ver-se na ave brasileira uma subespécie diferente
moluscos, são a prêsa habitual das pernaltas referidas por Wled. da da Terra do Fogo (pátria tfpica da espécie), dever-se-á chamá-la Polyborus plancus
caracara Spix, pois que, como vimos em nota anterior (n.• 209), Falco brasiliensis Gmelin
(216) São nomes vulgares dado a esta bem conhecida marreca "i rerê " e " marreca
viúva ", o primeiro Imitativo da voz, e o segundo alusivo ao colorido peculiar da cabeça, corresponde a outro rapineiro.
branca na metade anterior e preta no resto. (219) No original vem "Barganza ".
94 VIAGEM AO BRASIL DE CABO FRIO A CAMPOS DOS GOITACÁS 95

ao chão, e tinham duas pequenas divisões interiores. Nem tôda a pelos campos parcialmente inundados até grande altura, para desco-
nossa numerosa comitiva pôde passar a noite abrigada, mas apenas os brir, não sem perigo, a melhor trilha, a qual, entretanto, era tão
europeus, desacostumados ao sereno do Brasil. Sentamo-nos em esteiras, fatigante para os animais, que tínhamos tôda a razão de temer
com as duas famílias dos pescadores, em roda; a fogueira ficava no a perda de parte da bagagem. Contudo, atravessamos sem acidente
meio; e comemos peixe cozido com farinha de mandioca. os alagadiços, debaixo de chuvas copiosas.
As amabilidades dessa boa gente suavizaram o desconfôrto e Vencemos o último trecho das águas em canoas, perto da solitária
fizeram-nos, de certo modo, esquecer a dureza da cama. A dona da igreja de Sto. Amaro, e agora a nossa tropa começou a avançar por
cabana em que me alojei era uma criatura loquaz e jovial, de tez imensas planícies verdejantes. Tôda essa região plana forma as pla-
descorada, vestida muito ligeiramente e trazendo sempre à bôca um nícies dos Goitacás 221 , que se estendem até o Paraíba, e donde a
cachimbo, como a maioria das mulheres das classes baixas do Brasil. vila de S. Salvador tirou o nome adicional "dos Campos dos Goita-
Os brasileiros fumam, de preferência, cigarros feitos de papel, colo- cás". Encontra-se, nos capinzais dessas paragens, bem como em tôdas
cando-os atrás da orelha. Essa maneira de fumar não foi levada ao as campinas da costa oriental do Brasil, a Sida carpinifolia 222 de caule
Brasil pelos europeus, mas veio dos Tupinambás e de outras tribos lenhoso arbustiforme e de flor amarela: viceja luxuriantemente e
do litoral. Costumavam êstes enrolar certas fôlhas aromáticas numa serve muitas vêzes de morada a uma espécie de inambu, a que dão,
fôlha maior, acendendo-as na ponta •. Os cachimbos usados pelos aí, o nome de "perdiz"* 22 3. Tal espécie, ainda muito pouco conhe-
pescadores, como em todo o Brasil, particularmente pelos negros e cida, assemelha-se, na côr, à nossa codorniz, sendo, porém, um pouco
outras pessoas das classes mais humildes, constam de um pequeno reci- maior; mas oferece ao perdigueiro uma caça tão boa quanto a nossa
piente de barro cozido escuro, e de um tubo fino e liso, feito da haste perdiz, como tive ocasião de convencer-me por diversas vêzes. Depois
de uma espécie de feto, que cresce a considerável altura ("samambaia"), de cavalgarmos até ao anoitecer através dessa região, muito boa
a Mertensia dichotoma. Entretanto, prefere-se geralmente, entre tôdas para pastagem, e onde se viam grandes rebanhos de gado, chega-
as classes do povo brasileiro, tomar rapé a fumar; com efeito, o escravo mos, por fim, à grande Abadia de S. Bento, onde esperávamos encon-
mais indigente possui a sua caixa de rapé, de fôlha de Flandres ou trar o repouso e as acomodações que desde muito tempo não tínhamos.
de chifre; em geral uma simples peça de côrno de boi, tampada :Esse convento, pertencente à Abadia de S. Bento do Rio de Janeiro,
com uma rôlha de cortiça. possui terras e bens valiosos. O edifício é vasto, tem uma bonita igreja,
Mal raiara o dia nas cabanas apinhadas, e já os pescadores diziam dois pátios e um pequeno jardim interno, com canteiros cercados
as suas preces com grande fervor, depois do que banharam as crianças de pedras e plantados de balsaminas, tuberosas, etc. Num dos pátios
em água morna, prática usual entre os portuguêses, e, segundo pare- se erguem altos coqueiros carregados de frutos (Cocos nucifera) Linn.).
cia, impacientemente aguardada pela miuçalha. Em seguida, esten- O convento tem cinqüenta escravos, as choças dos quais ficam num
deram esteiras diante das cabanas, trouxeram peixe cozido e senta- grande largo, em cujo meio se levanta, do pedestal, um grande cru-
mo-nos todos no chão para comer. Logo que nos reconfortamos, os zeiro. Além disso, há um grande engenho de açúcar e muitas ben-
pescadores prepararam o barco para conduzir os nossos animais a feitorias. :Esse rico convento possui também muitos cavalos e bois,
vau, através do rio Bragança, que, nas proximidades das cabanas, e vários currais e fazendas nas cercanias. Recebe mesmo dízimas de
é tapado de caniçais. Milhares de aves aquáticas, sobretudo garças22o, açúcar de diversas propriedades das vizinhanças.
biguás, frangas d'água, mergulhões e outras, tinham aí os ninhos; ali O Sr. José Inácio de S. Mafaldas, eclesiástico que estava à
aparece, por vêzes, o lindo colhereiro côr-de-rosa. Entre os pescadores testa do estabelecimento, recebeu-nos muito hospitaleiramente. De-
que conduziram a nossa tropa, destacava-se particularmente um velho ram-nos quartos com boas camas nas compridas e frias galerias do
de longas barbas e de sabre ao lado. Um homem mais môço, montado convento, onde, das largas janelas, mesmo aí sem vidraças, se contem-
num pequeno cavalo, prometeu mostrar-nos o caminho através dos
campos alagados. Vestia-se de modo original: usava um gorro de (*) O sr. Temmlnck descreve essa ave com o nome de Tinamus maculosus. (Vide
Hist. Nat. Gén. des Pigeons e d es Gallinacées, tom. 111, p. 557.
pano, um pequeno jaleco, calções indo apenas até os joelhos e espo-
ras nos pés nus. De muito bom gênio e amável, ia sempre na frente (221) Lê-se no original "Goaytacases".
(222) O gênero Sida (fam. Malváceas) conta muitas espécies conhecidas vulgar-
mente por "vassouras ", "vassourinhas" (norte) "guaxumas " ou "guanxumas".
( *) JEAN DE LÉRY, Voyage, etc., p. 189. (228) Contudo, não se trata aqui da ave grande hoje conhecida em todo o Brasil
pelo nome de " perdiz" (Rhynchotus rutescens (Temm.)), • nhapupé" dos tupis da costa,
(220) Através de Beitrãge (IV, p. 629), sabemos que no rio Bragança foi colecio- mas sim de uma espécie bem menor (Nothura maculosa (Temm.)), vulgarmente chamada
nado o único exemplar de lindo socõzlnho vermelho (lxobrychus exilis erythromelas "codorna ". E', todavia, muito singular não tenha Wied feito sequer menção Inequívoca
(Vieillot)) conseguidos por Wied em tõda a viagem. à primeira, em todo seu relatório de viagem.
96 VIAGEM AO BRASIL

plava bela paisagem da extensa planície. No andar inferior do edi-


fício ficavam a cozinha e o engenho de farinha de mandioca, no qual
era fácil secar nossas coleções. Tiveram, ao mesmo tempo, a delica-
deza de descaroçar o algodão de que necessitávamos; para êsse fim é
de uso generalizado a máquina que o barão de Langsdorff estampou
na descrição de sua viagem, a propósito da estada em Santa Catarina. v
Aproveitamos do melhor modo o tempo aí gasto, divertindo-nos em
caçar patos, de que existem multidões incalculáveis nos grandes charcos
e "lagoas". ESTADA NA VILA DE S. SALVADOR
Prosseguindo a viagem, tivemos por guia um mulato, que trazia
um punhal numa botoeira, um sabre de lado, e esporas nos pés des- E VISITA AOS PURIS EM S. FIDÉLIS
calços, segundo o costume local. Conduziu-nos pela grande planície,
onde as casas eram cada vez mais numerosas, e os rastos dos carros
Vila de S. Salvador - ]ornada a S. Fidélis - Os
indicavam que nos íamos aproximando de uma zona mais populosa.
índios Coroados - Os Puris.
Vimos, à beira da estrada, sebes de Agave e Mimosa; atrás destas,
bananeiras e laranjeiras em flor; perto das residências, cafeeiros carre-
gados de flôres brancas de leite. Que esJ?lêndida vegetação! As
habitações e as fazendas surgiam mais e mais numerosas. Ao longo
de todo o caminho, o viajante encontra vendas, cujos proprietários
cumprimentam delicadamente os transeuntes, convidando-os a entrar, As planícies, que se estendem ao sul do rio Paraíba, eram outrora
portanto, a esvaziar os bolsos. Ainda ia alto o sol, quando chegamos habitadas pelas tribos selvagens e guerreiras dos "Uetacas"• ou "Goi-
à Vila de S. Salvador, situada na margem sul do belo rio Paraíba, tacás"225, que Vasconcellos coloca entre os Tapuias, porque falavam
numa região fértil e aprazível, vestida de vegetação de múltiplos matizes. uma língua diferente dos dialetos da língua geral2 26 • Dividiam-se
Nosso amável hospedeiro de S. Bento nos indicara, para a estada em três tribos, Goitacá açu, Goitacá jacorito e Goitacá mopi .. ,
na cidade, a sua própria casa, onde vimos os primeiros jornais, que mantinham perpétua hostilidade ent~e si. e ,contra os. vizinhos.
desde a nossa partida do Rio. Trazia a importante notícia da der- Contràriamente ao costume das outras tnbos mdigenas, deixavam o
rota do exército francês em Belle Alliance 224 , recebida com grande cabelo crescer e usavam-no sôlto; distinguiam-se de todos os seus irmãos
satisfação pelos habitantes da vila. pela tez mais clara, compleição mais robusta e maior fer~idade, al~m
de pelejarem mais bravamente em campo aberto. A esse resp71to,
tivemos algumas informações na biografia do Padre José de ~chieta,
onde, entre outras coisas, lemos: "Era esta sorte de gente a mais feroz
e desumana que havia por tôda costa, em corpos eram agigantados de
grandes fôrças, destros em arco, inimigos de tôdas as nações, etc:"·
Ainda mais: "O distrito que habitavam era pequeno dentro dos ter-
mos dos Rios Paraíba e Macaé, etc." 227 • Segundo o relato de Southey,

(*) JEAN DE L ta v, V oy1I17e, etc., p . 45.


(**) S. DE VASCONCELLOS, No tícias, etc., p. 39.

(225) O autor aqui, como em tôda a obra, escreve "Goaytacazes".


(226) Na classificação de Von den Stein, posterior à de Martins e anterior à de
Ehrenreicb os Goitacás formam um grupo étnico autônomo, à maneira dos Tupis e
dos J ês. ' Quanto ao têrmo tapuias, é noção assente que êle não e ncerra nenhum
conceito etnográfico preciso, sendo originário da Jfngua dos tupis, e servindo para
designar indistintamente todos os índios de _raça diversa d~ dêstes últimos e. porta~:~to
seus inimigos. Cf. RoooLFO GARCIA, cap. sobre a Etnografia na Intr. ao D1cc. Htst.
{22 4) Belle-Alliance, nome pelo qual os a lemães designam a batalha de Wa terloo, Geogr. e Etn. do Brasil, I, p. 250 (1922).
fica situada entre esta última localidade e Genappe, na Bélgica. Como é sabido, ali (227) Os trechos aspeados aparecem traduzidos no texto do original alemão. Vêm
foi Napoleão derrotado, em I8 de Junho de 1815, pelos exércitos aliados, sob o comando entretanto fielmente transcritos em nota marginal, de onde foram, tais quais ali se
de Welllngton e de Blücbet . acham, transferidos agora para o texto da presente tradução.
98 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 99

o padre João de Almeida •, horrorizado, encontrou entre êles, na habitantes, gente opulenta, possuidora de vastos engenhos perto do
floresta, um esqueleto humano inteiro e articulado. De acôrdo ainda rio, em alguns dos quais se ocupam cento e cinqüenta escravos ou mais:
com o mesmo autor, construíam as choças em forma de pombal, sus- além da aguardente, produzem-se, em cada um dêsses estabelecimentos,
pendendo·as sôbre um só moirão; tinham por leito um montão de anualmente, quatro a cinco mil arrôbas de açúcar.
fôlhas, e não bebiam água da chuva ou das cascatas, mas a que se Projetam-se aperfeiçoamentos no processo de fabricação e o em-
coletava em buracos cavados na areia • •. ' prêgo, para êsse fim, de máquinas a vapor. O engenho do Capitão
Essas três tribos guerreavam em tôdas as frentes, entre si, contra Neto Fiz, que se mostrou muito amável para conosco, possui vastos
os europeus e contra os índios da costa, mas foi sobretudo a colônia canaviais, além de duas outras fazendas no Muriaé. Nessa região, no
portuguêsa d~ ~spírito Santo que lhes sofreu os ataques. No ano de Paraíba e no Muriaé, já em 1801 havia duzentos e oitenta engenhos, dos
1630 foram senamente derrotados•• •. Daí por diante, eliminaram- quais oitenta e nove grandes e muito lucrativos•.
nos pouco a pouco, ou os submeteram e amansaram, donde resultou a Vê-se bastante luxo na cidade, especialmente no trajar, coisa
colo~lização do. Paraíba, q~e é atualmente a zona mais próspera entre em que os portuguêses despendem muito dinheiro. O asseio é geral
o. Rw de Janeiro e_ a Bahia. Tôda a região é ocupada por fazendas entre êsse povo, mesmo nas classes baixas, pelo menos entre os filhos
disper~as. e pla?~açoe~; e, na .margem sul do rio Paraíba, que corta do país. Visitando-se, porém, o interior, ou vilas menores, nota-se
e~sa fertll plamCie, cerca de oito léguas do mar, fica uma importante quase sempre que os colonos conservam os antigos costumes, não demons-
vila, que decerto merece o nome de cidade. trando a menor idéia de melhorar de condição. Vêem-se aí pes-
.A Vila S. Salvador dos Campos dos Goitacás tem de 4 a 5.000 soas abastadas, que enviam à capital, todo ano, várias tropas carre-
habitantes; a população de todo o distrito é calculada em 24.000 almas. gadas de gêneros, e talvez umas mil ou mil e quinhentas cabeças de
E'. ~e ordinário .chamada simplesmente Campos, sendo razoàvelmente gado para venda, mas cujos casebres, apesar disso, são piores do que os
edificada e possumdo ruas regulares e calçadas na sua maior parte, bem dos mais pobres camponeses germânicos; baixos, de um só pavimento,
como belos edifícios, alguns dos quais de vários andares. Balcões, feitos de barro e até mesmo sem caiação. Tôda a economia domés-
fechados com r?tulas de. madeira, à antiga moda portuguêsa, são ainda tica e maneira de viver estão no mesmo nível; mas poucas vêzes se
comuns. PróXImo do no há uma praça, onde fica o edifício público vê desasseio nos trajes. E' pequena a criação de gado na região do
em que ~e reúnem as autoridades municipais, e no qual, além disso, Paraíba, embora as suas planícies sejam tão próprias para isso. Criam-
está a pns~o. Há na c!dade sete. igrejas, cinco boticas e um hospital, se aí alguns muares; não são, porém, fortes e bonitos como os de
com capa~Idad.:_ para, cerca de vmte doentes. O lazareto é dirigido Minas Gerais e Rio Grande. Os carneiros e as cabras são pequenos,
por. um Cirurg~ao, alem do que consta haver no lugar médicos muito e os porcos não crescem tão bem como em outras zonas. Visitei os
mais competentes que em outras partes da costa, onde, muitas vêzes, Campos dos Goitacás, não para colhêr dados estatísticos a respeito da
se procura em vão um profissional digno de confiança. região (o leitor procurará outras obras para êsse fim), mas para
A_ situação da cidade é bastante aprazível; acompanha em longa conhecer o que houvesse de notável no povo ou nos produtos naturais.
e:'tensao a margem . do belo Paraíba. e of~rece lindo panorama, espe- Assim que consegui o meu objetivo, abreviei a minha permanência,
cialmente q~ando VIsta da estr~da, no abaixo. A paisagem ribeirinha e apressei-me em visitar, o que representava para nós a raridade de
é ~empre am,mada; uma quantidade de gente, na sua maioria de côr, maior interêsse, uma tribo de tapuias ainda em estado selvagem, existente
ag1t~-se contmuamente, e~treg:ue a~ co~ércio .e a outras ocupações. nas vizinhanças, junto ao Paraíba.
Pratica-se, em Campos, ativo mtercamb10 de diversas mercadorias· a O coronel Manuel Carvalho dos Santos, comandante do distrito
região, de Paraí?a acima produz, nesse particular, grande quantidaçle de S. Salvador e do regimento da milícia, recebera-nos mui polidamen-
de açucar; e existem grandes engenhos JUnto ao pequeno rio Muriaé, te; quando lhe comunicamos o nosso desejo de visitar a missão de
que desemboca na margem norte do Paraíba, oposta a S. Salvador. S. Fidélis, Paraíba acima, teve a gentileza de dar-nos um oficial e um
Café, algodão e outros produtos agrícolas dão otimamente; até ver- soldado como guias. Preparamo-nos prontamente para essa interes-
duras européias se encontram nos mercados. O principal produto, sante excursão, e partimos de S. Salvador a 7 de Outubro, deixando
entretanto, é o açúcar e a aguardente dêle destilada. Há, entre os ali a bagagem.
O Paraíba nasce na capitania de Minas Gerais, corre entre a serra
( *) Biografia do Padre João de Almeida. dos órgãos e a da Mantiqueira, em direção leste, estando já regis-
( **) SoUTHEY' s, Historv ot Brazil, vol. 11, p. 665,
(***) lbld., p. 666. (*) Coro grafia Bradlica, t. 11, p. 47.
100 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 101

trado no pequeno mapa que o Sr. Mawe fêz da sua viagem ao Tejuco. De forma globulosa, e feito de lanugens, é fechado em cima, e tem
Recebe diversos cursos d'água menores, o Paraibuna, o rio Pomba e uma entrada estreita. No Brasil há maior número de pássaros ·q ue
outros, e continua o trajeto através de florestas virgens, entre mar- constroem ninhos assim fechados do que entre nós, provàvelmente
gens pedregosas, até que por fim penetra, já próximo da foz, nas pla- porque são mais numerosos os inimigos dos filhotes.
nícies dos índios Goitacás. Aí, tôda a região é cultivada e movimen- As montanhas começam algumas léguas além de S. Salvador;
tada; entretanto, para além dessas planuras, as margens do Paraíba uma vez transpostos os canaviais, contemplamos à distância as alta-
são ainda habitadas por aborígines, só em parte civilizados e neiras florestas. Viam-se, nessas matas, manchas vermelhas, forma-
estabelecidos. das pela folhagem nova da sapucaia, que é de côr rósea quando brota
Nosso caminho seguia, a princípio, ao longo do rio, cujas mar- na plimavera. Estava-se, justamente, na mais favorável estação do
gens eram cobertas de capoeiras de belas mimosas, bignônias e outras ano para as excursões, porque em tôda a parte as fôlhas tenras
árvores análogas. Erguiam-se, perto da vila, altos coqueiros solitários: apareciam na mais encantadora diversidade de tons; a fragrante vege-
vinham, depois, campos e matagais, entre "fazendas" isoladas. Cedo tação cobria todo o panorama, e a suave temperatura era-nos sumamen-
perdemos de vista o rio, de que se afastou o caminho. Vimos, freqüen- te aprazível, a nós, homéns do norte, não acostumados aos grandes
temente, nos campos, em companhia do anum prêto (Crotophaga ani, calores. Depois de caminharmos cêrca de três léguas, atingimos de
Linn.) e do cuco pintado (Cuculus guira, Linn.), um "anum branco" novo as margens do Paraíba, que eram, nesse ponto, de admirável
dos portuguêses, que é muito semelhante ao primeiro na forma e na beleza. Três ilhas, parcialmente cobertas por imponentes árvores se-
maneira de viver. Essa ave, a que Azara dá o nome de "piririgua", culares, interrompiam-lhe a superfície. O rio, de largura não inferior
havia pouco tempo que era conhecida nas cercanias de Campos, dizen- à do Reno, corre com rapidez, e em suas margens se intercalam coli-
do-se que descera, nos últimos anos, dos planaltos de Minas às baixadas nas verdejantes, cobertas de florestas e cerrados, e vêem-se grandes
da costa. fazendas, cujos telhados vermelhos contrastam agradàvelmente · com a
folhagem verde, enquanto as choças dos negros formam pequenas
Por muitas vêzes admiramos a beleza e a fertilidade dêsses rin-
aldeias em tôrno delas (a vinheta que precede êste capítulo represen-
cões. Sucedem-se, à beira do rio, as grandes fazendas: vastos cana-
ta uma das menores destas casas). Os vales, entre essas colinas mar-
viais se alternam, nas alegres planícies, com extensas campinas. Bois
ginais, estão cheios de brejos aos quais uma espécie alta de bignoniá-
e cavalos, corpulentos e belos, além de alguns burros, pastam em
cea empresta, muitas vêzes, a triste aparência de mata ressequida.
grandes quantidades. Nos arredores de várias casas, num campo, admi-
Tronco e ramos são de côr cinzenta brilhante, e a escura folhagem
ramos uma dessas colossais figueiras 22 B, na expressão dos portuguêses,
verde-escura dá-lhe um sombrio aspecto de coisa morta, sobretudo
presente dos maiores que a Natureza ofereceu aos países cálidos; a
porque se adensa em bosques espessos; a flor, entretanto, é bonita,
sombr~ dessa árvore magnífica refaz o viajante que repousa sob as
copas mcrivelmente amplas, de brilhante matiz verde-escuro. As figuei- grande e branca. Há muitas outras plantas formosas; entre elas, uma
ras de todos os países quentes têm, em geral, troncos muito grossos, Cleome* arborescente, completamente carregada de enormes tufos de
galhos extremamente fortes e uma ramaria prodigiosa. Vi, no Brasil, lindas flôres brancas e côr-de-rosa 230 . Ladeavam o caminho bignônias
muitas, realmente gigantescas; nenhuma, porém, igualava as dimensões amarelo-vivas e brancas, e nas moitas das margens erguiam-se os tufos
do tronco da famosa dragoeira de Orotava, que tinha, de acôrdo da Allamanda cathartica, Linn.23 1 , de grandes . flôres amarelo-vivas.
com a medição de Humboldt, quarenta e cinco pés de circunferência. Quando estávamos, mais ou menos, a meio caminho, nosso guia
Nos ramos superiores da figueira mencionada, descobrimos o curioso levou-nos a uma fazenda vizinha, cujo dono, um capitão, nos con-
ninho do pequenino "bico-chato", verde e de barriga amarela Todus229. vidou mui hospitaleiramente a jantar. Em frente à casa dêle, que,
situada em suave eminência, domina belíssimo trecho do rio, havia
uma dessas lindas bignoniáceas, a chamada "ipê amarelo" 232, coberta de
(228) Várias espécies de figueiras bravas, dos gêneros Ficus, e Urostigma (fam.
Moráceas), F. benjamina Linn., U. doliarium Miq .• U, enor·me, etc., no norte do Brasil
(Bahia, etc.) mais conhecidas por "gameleiras", graças ao emprêgo que de sua madeira (*) (Suplem.) Cteome arborea ScHRADER, op. cit., p. 707.
bra_nca e leve, se fazia no fabrico de gamelas (usadas como tabuleiros, tachos, o~
bacms de banho). (230) Várias espécies do gênero Cleome (fam. Capparidáceas) têm vasta d;stribuição
(229) Conforme se lê à página 967 do tomo UI dos Beitrüge, o passarinho a no Brasil oriental, onde são ordinàriamente conhecidas por "massambês" ou "mus ambês",
que, por informações fornecidas pelos naturais, atribui Wied o ninho em questão, é "mussambés", etc.
o pequeno tirânida Todirostrmn poliooephaium (Wied), e pécie conhecida. em certos Estados (231) Planta sobejamente conhecida, muito usada nas sebes e jardins, pelo efeito
do Brasil em que ocorre, pelo nome de "tirri ", "relógio" e "teque-teque", e cuja descoberta ornamental de suas belas flôres caliciformes, de intensa côr amarela.
e primeira descrição a ciência lhe deve. Euler, que pôde descrever o ninho do pássaro (282) O "ipê-amarelo", também chamado "pau-d'arco" e "ipê-tabaco" (Tecoma
por observação própria (cf. Rev. Mus. Paul., IV, p. 40), confirma a suposição do zeloso chrysotricha Martius), é dos principais ornamentos da mata e floresce de agôsto a
e probo ornitologista germânico. outubro nos Estados do sul.
102 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 103
grandes flôres desta côr, que despontam antes das fôlhas; a madeira e alguns rolaram por ela abaixo. Contudo, passamos sem novidade
é muito forte e bastánte empregada. A tarde, continuamos a viagem, a profunda e rápida corrente, embora ficássemos completamente enchar-
mas fomos apanhados por violenta tempestade, que tornou penoso cados. Logo penetramos numa densa floresta, à margem do rio, que
o caminho antes aprazível. Da beira do rio subimos escarpada mon- prosseguiu, durante Íégua e meia, até S. Fidélis. Era, então, noite
tanha, o Morro do Gambá, cavalgamos-lhe pelo dorso dentro de fechada e a trilha, muito estreita, passando, muitas vêzes, sôbre a
espêssa mataria, e, quando a deixamos, vimos embaixo, surpresos, um própria barranca íngreme do rio, era inóspita e obstruída pela galharia
magnífico trecho do rio. Entre os picos silvestres, altaneiros e alcan- sêca e as árvores tombadas. O soldado, que conhecia bem o caminho,
tilados, destacava-se o cume rochoso do Morro da Sapateira, de. forma cavalgava adiante, e constantemente apeava, com o nosso pessoal, para
particularmente curios!l; e o contraste que fazia com as colinas verdes remover os obstáculos, o que nos obrigou, muitas vêzes, a afastar os
e risonhas, onde os habitantes ergueram as alegres moradas, aumen- cavalos a boa distância. Chegamos, por fim, a uma brusca e profunda
tava o encanto da paisagem. Bem sob os nossos pés, debaixo de uma ribanceira, atravessada por estreita ponte constituída por três troncos
rocha a pique, ficava uma pequena planura à beira do rio, onde de árvores. Puseram nela uma série de travessas, para garantir marcha
algumas casas ensombradas por coqueiros formavam um cenário enc~n­ mais firme aos animais; apesar disso, escorregaram em várias ocasiões;
tador. A trilha estreita seguia ao longo do abrupto despenhadeiro e alguns quase caíram. Com um pouco de paciência, conseguimos,
até considerável altura, para de novo descer ao vale, onde o viajante felizmente, superar mais essa dificuldade. Nas sombras da floresta,
se regalava, em cada fazenda, com o delicioso perfume dos laranjais. esvoaçavam inúmeros insetos luminosos, gritavam os curiangos (Capri-
Chegamos a um brejo, cheio de caniços e da Bignonia cinzenta mulgus), grandes cigarras se ouviam a extraordinária distância, e a
de flôres brancas, cuja altura chegava a vinte ou trinta pés. Nos estranha toada de um exército de rãs ressoava nas trevas notur-
galhos da última, inúmeras garças noturnas (Ardea nycticorax)• 233 nas da brenha solitária. Alcançamos, afinal, um campo à . beira
tinham construído os seus ninhos. Essa garça é muito parecida com a do rio, e achamo-nos de repente no meio das malocas dos ín-
Nycticorax da Alemanha, sendo apenas um pouco menor; parece,_ por dios Coroados de S. Fidélis. Nosso guia se dirigiu imediatamente
isso, ser a mesma ave. Vimos, em cada ninho, os adultos e os filho- à casa do padre, chamado João, e mandou pedir-lhe, por um dos
tes olhando-nos como a estranhos, inquisidoramente; nossos caçadores escravos, pouso para a noite; esbarramos, porém, numa recusa peremp-
mataram várias, mas não se aventuraram ao charco um tanto profundo, tória, e foram inúteis tôdas as tentativas para demovê-lo. Não fôsse
para a colheita. Informaram-nos que quantidade de jacarés (Croco- a gentileza do capitão, em cuja casa nos haviam tratado tão bem ao
dilus) costumam viver nesses lodaçais, mas não vimos nenhum. meio-dia, e certamente teríamos passado a noite ao relento. Encontra-
Após atravessarmos agradável região cheia de aspectos variados, mos abrigo na casa vazia dêsse gentil-homem, na qual armamos as
atingimos a fazenda do Colégio, já ao anoitecer; seguimos, porém, rêdes e dormimos com todo o confôrto.
antes que ficasse completamente escuro, até o pequeno rio do Colégio, S. Fidélis, situada nas belas margens do Paraíba, que tem aí gran-
que éramos obrigados a transpor. Os cavalos e burros tiveram q~e de largura, é u'a missão ou aldeia de índios Coroados e Coropós,
deslizar por forte rampa, que a chuva tornara de todo escorregadia, e fôra fundada, havia cêrca de trinta anos, por alguns frades capuchi-
nhos vindos da Itália. Eram, a êsse tempo, quatro missionários, um
( * ) (Suplem.) A garça noturna do Brasil tem todos os caracterlsticos da ave dos quais ainda vive aí como padre; outro reside na sua missão de
alemã, a própria côr dos pés, do bico e da !ris sendo a mesma; acha-se apenas uma
pequena diferença no tamanho, a ave européia medindo 20 polegadas de comprimento, Aldeia da Pedra, sete ou oito léguas rio acima; os dois restantes morre-
ao passo que a brasileira alcança 24 polegadas e 10 linhas. Essa diferença de porte ram. Os habitantes indígenas pertencem às tribos dos Coroados,
não constitui nenhuma base suficiente para fazer delas duas espécies distintas, tanto
mais quanto a mesma garça noturna ocorre também na América do Norte. Coropós e Puris, esta ainda selvagem e vagueante pelas vastas solidões
situadas entre o mar e a margem norte do Paraíba, projetando-se,
(283) A garça noturna sul-americana, depois de ter sido tratada pela generalidade para oeste, até o rio Pomba, em Minas Gerais•. Vivem atualmente
dos omitologistas da segunda metade do século passado como espécie autônoma, voltou
modernamente a ser considerada simples raça ou subespécie da ave européia, sob o em paz, defronte de S. Fidélis, mas, rio acima, em Aldeia da Pedra,
nome de Nycticorax nycticorax hoactli (Gmelin). Isso comprova a agudeza admirável estiveram, havia pouco tempo, em guerra com os Coroados. Na reali-
do senso sistemático de Wied, a quem a dúvida sôbre como proceder nesse ponto
diflcil faria ainda, em seus Beitraue (IV, p. 646), antepor uma interrogação ao nome dade, o principal retiro dessas duas tribos fica em Minas Gerais, donde
que a seu juizo melhor à ave competia. Convém a propósito lembrar a existência no
Brasil de outra garça noturna, Nyctanassa violacea cayennensis (Gmelin), vulgarmente se estendem à região mencionada, ao longo do Paraíba e do litoral.
.. dorminhoco ", "tamatião ", "sabacu ", cujos hábitos e aspecto são muito semelhantes aos
da anteriormente citada, mas da qual fàcilmente se distingue por ter o alto da cabeça
inteiramente prêto. Wied teve também a oportunidade de encontrar esta espécie, que (*) A Corouratia Brasílica não descreve acuradamente a situação dos Puris
vem descrita em Beitrtiue (IV, p. 652), com a necessária minúcia, mas sem indicação no baixo Paralba; com efeito, declara que êsses selvagens se acham a! reunidos em
de nome popular. diversas aldeias, o que não é verdade.
104 VIAGEM AO BRASIL ESTADA A VILA DE SÃO SALVADOR 105

Na margem direita ou sul se encontram os Coroados, e, em S. Fidélis, A diferença de linguagem entre as diversas tribos de aborígines
também alguns Coropós presentemente civilizados, isto é, fixados. do Brasil é assunto digno de investigação. Quase tôdas as tribos
A zona dêstes acompanha a margem sul do Paraíba até o rio dos tapuias têm dialetos peculiares, e da semelhança de certas palavras
Pomba; aí na margem esquerda do último rio, se acham ainda em em várias línguas alguns inferiram que elas derivam de nações
estado selvagem, mas já constroem choças melhores que as dos Puris, européias; mas sem razão, provàvelmente. Papa e mama têm, sem
com quem estão em guerra e por quem se diz que são temidos. O Sr. dúvida, entre os Cambevas ou Omaguas•, a mesma significação que
Freyreiss visitou-os na sua primeira viagem a Minas, não os encontrando entre nós, e a palavra ja, segundo se diz, na língua Coropó quer
mais de todo selvagens, mas, ainda assim, em condições mais primitivas dizer também sim, como em alemão. Afora, porém, essas coincidên-
que os irmãos do Paraíba • 234 • Esses aborígines, como disse, já cias fortuitas e insignificantes, não há menor identidade entre essas
estão quase to~os fixados; isto é, os Coropós inteiramente, e os Co- línguas e as da Europa. As armas originais dos Coroados, e às quais
roados na mawr parte; mal começaram, no entanto, a abandonar ainda estão fortemente presos, são o arco e a flecha, que só diferem
os costumes e maneiras selvagens; de fato, um mês apenas antes das dos Puris em algumas pequenas particularidades. Empregam, geral-
da nossa chegada, os Coroados de Aldeia da Pedra mataram, numa de mente, nas flechas, penas das lindas araras vermelhas (Psittacus ma-
suas excursões, um Puri, e festejaram ruidosamente o acontecimento cao, Linn.)2 35 , que se encontram, subindo o Paraíba, na "Aldeia da
d~~ante vários dias sucessivos. Entretanto, essas três tribos foram a prin- Pedra". A semelhança de tôdas as tribos que lhe são aparentadas, pos-
CipiO aparentadas, como o atesta a semelhança das línguas••. Cul- suem admirável destreza no uso dessa arma, e levam grande parte do
tivam mandioca, milho, batatas, abóboras, etc. São caçadores desde tempo caçando nas grandes florestas, que principiam não longe das
a infância e hábeis no manejo dos reforçados arcos e flechas. malocas. Afirma-se, na Corografia Brasílica••, que em cada morada
Ainda bem não alvorecera, e já nos dirigíamos às choças construí- se::npre residem várias famílias de Coroados, o que devo reduzir a
das pelos missionários para os Coroados e os Coropós. Achamos êsse duas. Outrora, êsse povo enterrava os chefes mortos em posição sen-
povo ainda bastante puro, de tez moreno-escura, fisionomia rigorosa- tada, dentro de grandes vasos de barro, a que chamavam camucis, e ba-
mente nacional, compleição robusta e cabelos negros como o carvão. nhava-se tôda manhã, ao alvorecer; presentemente, porém, êsses cos-
As moradas são boas e espaçosas, feitas de paus e barro, e as cober- tumes foram abandonados.
turas são de fôlhas de palmeira ou de bambu, como as dos portu- Como fôsse domingo o dia seguinte ao da nossa chegada a S.
guêses. Armam nelas as rêdes de dormir e encostam, num canto da Fidélis, assistimos, pela manhã, à missa na igreja do mosteiro, onde se
parede, o arco e a flecha. O resto dos rudimentares utensílios domés- reuniram os habitantes dos arredores, por pura curiosidade, para admi-
ticos compõe-se de panelas, pratos ou tigelas ("cuias"), feitas por êles rarem os estranhos visitantes. Padre João fêz uma longa prédica, de
mesmos de cabaças e da cueira (Crescentia cujete, Linn.), cêstos ("pa- que não entendi uma palavra. Visitamos, depois, o mosteiro desabi-
nacui_Is"~ de palma_:; entrançadas e muitos outros objetos. O traje é tado, a observar-lhe as curiosidades. A igreja é grande, clara e espa-
consutmdo de calçoes e uma camisa branca de algodão; aos domingos, çosa, e foi pintada pelo padre Vitória, morto havia apenas dois meses.
porém, vestem-se melhor e assim não se distinguem da classe baixa Esse missionário promovera zelosamente o bem-estar dos índios; que
portuguêsa; todavia, mesmo então, vêem-se, freqüentemente, homens lhe respeitavam muito a memória, ao passo que não pareciam amigos
sem chapéus e descalços- As mulheres, ao contrário, são mais ele- do padre atual. De fato, expulsaram-no certa vez, alegando que não
gantes, usam às vêzes um véu e gostam de atavios. Todos falam por- lhes podia dar instrução, porque era pior do que êles. A pintura
tuguês, mas geralmente empregam entre si a língua nacional. As línguas interior da igreja não se podia, decerto, chamar de bela, mas era
dos Coroados e Coropós são em extremo parecidas, e ambos, na sua tolerável e constituía um grande ornamento nesse lugar remoto e
maior parte, compreendem os Puris. Nosso jovem coropó, Francisco, quase deserto, surpreendendo agradàvelmente o forasteiro. Os nomes
falava tôdas elas. dos quatro missionários estavam inscritos atrás do altar; viam-se, dos
lados, vários quadros votivos, entre os quais uma pintura represen-
( *) Cf. EscHWEGE, Journal von Brasilien, cap. I, p. 119.
tando um negro, cujo braço ficara prêso entre os cilindros de uma
(**) A Corogratia diz que os Coroados são descendentes dos antigos Goitacás
(vol. II, p. 53), o que parece improvável, de vez que os últimos usam cabelos compridos (* ) Vide Viagem de DE LA CoNDAMINE, p. 54. Me mo entre os nova-zelandenses
enquanto os Coroados dos primeiros tempos tiravam o nome do costume de cortá-los eU: nossos antlpodas, as crianças chamam o pai de )Jah-pah. Vide DAW COLJ.J:<'s, Account
uma pequena coroa. ot the ~,:>gltsh Colony in New South Wales. London. 1798, IV, p. 5 35.
( ) Cf. Corografia brasllica, t. 11, pág. 54.
(~34)_ D~ "Viage!l' ao interi~r do Brasil", nos anos de 1814-1815, de G. W. Freyrelss,
até entao médita, publtcou traduçao a Rev. do Inst. Histórico e Geográfico de S. Paulo (235) Já anteriormente vimos que a arara a que o autor se refere é Ara chlorop-
{vol. XI, 1906, págs. 158-228), da lavra de A. Lofgren. Cf. nota 6, anter. tera Gray {Cf. Nota 186).
106 VIAGEM AO BRASIL ESTADA A VILA DE SÃO SALVADOR 107

moenda de cana, que parou imediatamente, quando o negro, na ram do rio, e nas quais existem numerosas fazendas. Em alguns
sua angústia, invocou um santo•. Acidentes assim acontecem comu- lugares, essas matas imensas e românticas vão longe, acompanhando o
mente aos negros, porque são muito imprudentes. O convento não rio, e se estendem, sem interrupção, pelo interior adentro. Do cume
é grande, porém possui razoável número de aposentos claros e alegres, sobranceiro das montanhas, divisam-se, embaixo, vales umbrosos inter-
e uma tôrre baixa. O trabalho de subir-lhe a escadaria meio arruina- ceptando o êrmo agreste, compactamente coberto pelos altaneiros gigan-
da, foi pago pelo aprazível panorama do belo e romântico vale. tes da floresta, e cujo silêncio só de raro em raro é quebrado pelas
(Nossa prancha representa essa igreja e uma parte da aldeia de São passadas do Puri saqueador e solitário. Para trás da fazenda, subimos
Fidélis, com as matas adjacentes). a um outeiro rochoso, donde contemplamos o mais deslumbrante e
Seria muito fácil, ao padre João, dar-nos, no dia imediato, bons ao mesmo tempo solene dos panoramas dessas imensas solidões. Mal
quartos no espaçoso mosteiro; mas a sua indelicadeza foi tamanha, nos reuníramos à numerosa comitiva parada ao pé do outeiro, quando
que se recusou mesmo a ceder-nos algumas provisões. Quando, pela vimos, de um lado, selvagens saindo de um pequeno vale e dirigindo-se
manhã, conheceu dos têrmos favoráveis em que estavam vazados os a nós. Sendo os primeiros que víamos, nossa alegria foi tão grande
nossos passaportes, achou melhor mostrar-se mais polido, e ofereceu- quanto a nossa curiosidade. Fomos-lhes ao encontro e, surpresos
nos um carneiro do seu rebanho, que compramos para o almôço. Ten- pela novidade da cena, estacamos antes dêles. Cinco homens e três
do-nos procurado depois da missa, com êle fizemos as pazes, o que pôs ou quatro mulheres, com os filhos, aceitaram o convite para se chega-
fim às animosidades. Todos os habitantes de S. Fidélis souberam da rem a nós. Eram todos baixos, não tendo mais de cinco pés e cinco
história da nossa chegada e manifestaram, em voz alta, a sua desapro- polegadas de altura; em geral, homens como mulheres, eram robustos
vação à conduta do padre- e de membros musculosos•. Estavam completamente nus, exceto
O ponto mais importante do nosso programa era, agora, o conhe- uns poucos que usavam lenços em tôrno da cintura, ou calções curtos,
cer os selvagens Puris nas florestas. Passamos, portanto, para a outra obtidos dos portuguêses. Alguns traziam a cabeça tôda rapada; outros
margem do Paraíba, onde tivemos amigável recepção na fazenda de tinham os cabelos naturais, grossos e negros como o carvão, cortados
um senhor "furriel". Nosso hospedeiro chegou até a mandar o irmão sôbre os olhos e caindo dos lados sôbre o pescoço; alguns tinham
à florest~ em busca dos Puris, para lhes informar da chegada de alguns cortado rente a barba e as sobrancelhas. Tinham, geralmente, pouca
estrange1ros que os queriam visitar. ~sse convite aos selvagens foi barba; esta, em muitos, formava apenas um ralo círculo em volta
u~ grande sacrifício que fêz para nos obsequiar, porque não só
da bôca e descia cêrca de três polegadas abaixo do queixo• •.
nao . lhe trouxeram nenhuma vantagem, como o prejudicaram Alguns traziam, na testa e nas faces, manchas vermelhas e redondas
con_s1deràvelmente. Quando bem acolhidos, fixam-se próximo às plan- pintadas com urucu (Bixa orellana, Linn.); no peito e nos braços,
taçoes e lhes consomem o produto, como se fôssem feitas para o seu ao contrário, usavam listas azuis, feitas com o suco do fruto chamado
benefício, chegando mesmo, muitas vêzes, a roubar camisas e calções jenipapo (Genipa americana, Linn.). São essas as duas côres empre-
dos negros que vão trabalhar nas matas circunvizinhas. gadas por todos os "tappuias". Em redor do pescoço, ou à tiracolo,
usavam fios de grãos negros e duros, no meio dos quais, na frente,
Havia pouco tempo que essa horda de Puris++ se tinha estabelecido se viam numerosas prêsas de macacos, onças, gato e outros animais
perto de.~- Fidélis e,_ no entanto, supõe-se pertença aos que exerce- selvagens. Alguns traziam dêsses colares, sem dentes. A figura 5
ram host1hdades no litoral, nas cercanias de Muribeca. Tanto isso é
da prancha 12 representa um dêsses colares, e a figura 6 um outro
verdade, que, logo depois da sua chegada, receberam, em S. Fidélis,
ornato análogo, que parece feito da casca de certas excrescências vege-
notícias sôbre um assassinato cometido por gente dela, na costa, o que
tais, provàvelmente dos espinhos de algum arbusto++•. Os homens carre-
prova que êles mantêm comunicação direta através das florestas; diz-
se até que se comunicam constantemente entre a costa e Minas•••. (*) Entre as tribos da costa oriental que eu vi, considero os Puris a de mais
Essa fazenda fica aprazivelmente situada à margem do Paraíba, baixa estatura. O sr. Freyreiss afirma que, em Minas Gerais, são êles mais corpulentos
Q~e os Coroados. Não vi essa observação confirmada em S. Fidélis, porque os Coroados
que é, aí, em muitos pontos, tão largo quanto o Reno. Sombrias, sao, ai, na maior parte das vêzes, mais altos e robustos.
densas, altas florestas se alternam com verdejantes colinas, que se abei- (**) Muitos escritores erraram por completo, dizendo imberbes os americanos,
embora tenham, geralmente, a barba fina e rala. Uma tribo de nativos, caracterizada
por ter barba mais forte, diz-se que habitou em Sipotuba; os portuguêses, por Isso,
chamavam-nos de "Barbados".
(*) KoSTEB conta fatos semelhantes à página 848.
é (***) ~sse ornato consiste em objetos castanho-escuros, ocos e alongados. cuja forma
(**) O nome Puris ou "Purys" é explicado por v. EscHWEGE em seu Journa.l perfeitamente semelhante à de um Dentalium donde se supôs fõssem de origem animal,
von Brasilien, cap. I, p. 108. até q':'e um exame mais acurado mostrou q~e eram feitos de uma crosta ou casca,
(***) São mais numerosos em Minas: pensou-se em removê-los e escravizá-los para sem duvida Invólucro de certos espinhos. Diz-se que também se encontram nas "Caxoeiras"
que se civilizassem, mas a tentativa falhou por completo. do Paraíba.
108 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 109

gavam longos arcos e flechas, que, como tudo o que produzem, trocaram, oblíquos; nariz curto e largo, dentes muito brancos. Alguns, porém,
a nosso pedido, por ninharias. eram de compleição mais delicada, pequeno nariz aquilino e olhos muito
Recebemos da maneira mais amigável essa gente curiosa. Dois vivos, de expressão às vêzes agradável, mas em geral grave, sombria e
dêles tinham passado a meninice entre os portuguêses, e falavam um desconfiada, obscurecida pela fronte abaulada.
pouco a sua língua, donde serem, muitas vêzes, de grande utilidade Um dos homens se destacava pela sua fisionomia de Calmuck. Tinha
para as fazendas. Demos-lhes facas, rosários, pequenos espelhos e uma grande cabeça redonda e os cabelos cortados a uma polegada de
distribuímos algumas garrafas de aguardente de cana, o que os tornou altura; corpo muito musculoso e entroncado; pescoço curto e gros-
extremamente alegres e comunicativos. Dissemos-lhes da nossa in- so; cara chata e larga; olhos oblíquos, maiores do que os comuns entre
tenção de visitá-los nas florestas, na manhã seguinte, se nos recebes- os Calmucks, muito negros, arregalados e ferozes; sobrancelhas pretas,
sem b~m : e, à nossa, p~omessa de levar-lhes, ainda, outros presentes, espêssas e muito arqueadas; nariz pequeno, mas de narinas dilatadas;
despediram-se contentiSSimos, e, em altos gritos e cantando, correram lábios relativamente grossos. ~sse indivíduo, que, segundo afirmaram
para as selvas. nossos homens, nunca fôra visto antes no lugar, pareceu-nos tão for-
Na manhã seguinte, mal deixáramos a casa e já avistávamos os midável, que todos nós, sem exceção, confessamos que não gostaríamos
de encontrá-lo, sozinhos e desarmados, num local solitário. Eschwege
índios saindo da mata. Fomos depressa ao encontro dêles, oferecemos-
lhes aguardente e os acompanhamos à floresta. Quando cavalgáva- dá como traço dos Puris a pequena estatura dos indivíduos do sexo
masculino; devo confessar que nenhuma diferença nesse particular
mos em volta dos canaviais da fazenda, encontramos tôda a horda
observei entre êles e os das outras tribos. Os Puris são geralmente muito
dos Puris descansando na relva. Aquêle grupo de gente nua e escura
baixos •, e, a êsse respeito, tôdas as tribos brasileiras são inferiores aos
constituía um espetáculo dos mais interessantes e singulares. Homens,
europeus e mesmo aos negros.
mulheres e crianças se misturavam, observando-nos com olhares
c~riosos: mas tímidos. Todos se tinham enfeitado do melhor modo pos- Todos os homens traziam nas mãos as suas armas, longos arcos e
Sivel; somente poucas mulheres usavam um pano em roda da cintura flechas. Algumas tribos sul-americanas, especialmente as do Maranhão,
ou do peito; a maioria estava completamente despida. Alguns usam lanças curtas de madeira dura, enfeitadas de penas; outras, como
homens se ornavam com um pedaço de pele do macaco por êles cha- as do Paraguai, Mato Grosso, Cuiabá e Guiana, bem assim as tribos
mado "mono" 236 , enrolado na testa; observamos também alguns tupis da costa oriental do Brasil, utilizavam pequenos cacêtes de
que .us~vam os cab~los cortados muito rente. As mulheres carregavam madeira dura, e até hoje ainda não os puseram completamente de lado;
os filhmho.s em faixas feitas de esteira, prêsas ao ombro direito; ou- a principal arma, porém, de tôdas as nações aborígines americanas, é o
tras os traziam nas costas, suspensos por faixas largas que passavam pela grande arco, ao lado da flecha comprida. Apenas algumas tribos que
habitam as planícies da América do Sul, os Pampas de Buenos Aires e
testa. ~s~a é a manei~a. pela qual geralmente transportam os cêstos
de provisoes, quando VIapm. Alguns homens e mulheres estavam mui- alguns rincões do Paraguai, e que vivem montados a cavalo quase todo
to pintados; tinham uma mancha vermelha na testa e nas faces o tempo e carregam uma longa lança como arma principal, usam, à
enquanto outros listavam o rosto de vermelho; outros, ainda, usa: semelhança da maior parte das tribos africanas, arco e flechas pe-
varo listas pretas ao longo do corpo, além de barras transversais pin- quenos• • . Não assim os tapuias da costa oriental; suas únicas ar-
talgadas; e muitos dos pequeninos estavam completamente mos- mas são arcos e flechas enormes, que, à maneira dos Paiaguás do Pa-
queados,. coin:o leopardos, com pequenas pintas negras. A pintura pa- raguai • • •, não levam num carcaz, porém na mão, devido ao grande
rece arbitrána e depender do gôsto individual. Algumas das môças comprimento. O arco dos Puris (fig. 1 da prancha 12) e dos Coroados
tem seis pés e meio, e até mais. E' liso, feito com madeira pardo-
usavam uma espécie de faixa em tôrno da cabeça; e as mulheres, em
escura, resistente e flexível da palmeira airi, e a corda é de fibras de
ge~al, amarr~m fortemente, em redor dos punhos e dos quadris, uma
gravatá (Bromelia). As flechas dos Puris têm, muitas vêzes, mais de
fatxa de estopa ou corda, para, dizem, torná-los menores e mais ele-
seis pés de comprido, são fabricadas de um bambu forte e nodoso
gantes.
("taquara"), que dá nas matas sêcas, e enfeitadas na extremidade inferior
· - Os homens eram, de modo geral, entroncados, baixotes e, não raro, de lindas penas azuis ou vermelhas, ou com as do mutum (Crax alector,
bastante musculo~os; c~beça grande e redonda; rosto largo, maçãs
quase sempre mmto salientes; olhos negros, pequenos e algumas vêzes (*) Cf. E CHWEGE, Journal von Brasilien, cap. I , p. 162.
(**) AzARA, Voyages, etc., vol. 11.
(236 ) Cf. nota 178 . ( ***) Ibid., p. 145.
110 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 111

Linn.), 237 , ou da jacutinga (Penelope leucoptera)238. As dos Coroados se o tempo é mau, os escuros moradores procuram proteção comprimin-
são feitas de outro caniço, sem nós. As flechas de tôdas essas várias do-se em roda do fogo e acocorando-se nas cinzas: fora daí, o homem
tribos são de diferentes tipos, caracterizados pelas pontas. O primeiro se estende à vontade na rêde, enquanto a mulher cuida do fogo e assa
(pr. 12, fig. 2) é a flecha propriamente de guerra. A ponta é do bambu a carne, que êles espetam num pau pontudo.
grosso mencionado anteriormente com o nome de "taquaruçu" (Bam- O fogo, que os Puris denominam "poté", é uma necessidade pri-
busa?) muito aguçado na extremidade. O segundo tipo (pr. 12, fig. 3) mordial para tôdas as tribos brasileiras: nunca o deixam extinguir-se
tem uma longa ponta de airi, com uma série de dentes de um lado. O e o alimentam durante tôda a noite, porque, doutro modo, devido à
terceiro, (pr. 12, fig. 4), de ponta rombuda, é utilizado para matar pe- falta de agasalho, seriam muito castigados pelo frio; e porque, tam-
quenos animais. Descrevê-las-ei adiante com mais pormenores, uma vez bém, traz a importante vantagem de afugentar as feras de perto das
que são geralmente idênticas em todos os tapuias da costa oriental. Ne- malocas. Os índios abandonam tais moradas, sem saudades, quando a
nhuma das tribos que visitei, nessa parte do litoral, envenena as flechas; região circunvizinha não mais lhes garante alimento sufici~nte; des-
porque a ignorância dêsses povos, ainda no mais baixo estádio da civi- locam-se, então, para outros lugares, onde encontrem mawr abun-
lização, não lhes permitiu, felizmente, conhecer essa arte; muito menos dância de macacos, porcos, veados, cutias e outras raças.
descobrimos, entre êles, qualquer indício das unhas envenenadas dos Os Puris deviam ter caçado grande número de macacos berradores
polegares dos Ottomacks do Orenoco•, ou do tubo que os índios aí ou barbados (Mycetes, Illiger), nessas circunjacências, e, de fato ofere-
faziam de enormes hastes de capim, ou das "esgravatanas" das tribos ceram-nos diversos pedaços mal assados dêsses animais; um dêles era u~a
do rio Amazonas • •. cabeça, outro um peito com os braços, mas sem a cabeça. Era, com efetto,
Saciada a curiosidade, pedimos aos selvagens nos conduzissem às repugnante! Sobretudo porque assavam a caça com a pele, que ficava,
suas choças. Tôda a horda partiu e acompanhamo-la a cavalo. O ca- assim, esturricada e preta. Dilaceram com os fortes dentes branc~s, êsses
minho conduzia a um vale que atravessava os canaviais; continuou, tenros petiscos mal assados. Dizem que devoram, da mesma n:;tanetra, por
depois, por uma trilha estreita, até que, afinal, no mais espêsso da vingança, carne humana; quanto, porém, a comer os própnos pare~tes
floresta, encontramos algumas choças, denominadas "cuari" na língua falecidos, como derradeiro tributo de afeição, de acôrdo com o refendo
dos Puris. São, não há dúvida, das mais primitivas do mundo por alguns antigos escritores•, não se encontra nenhum_ traço dêsse
(estão figuradas na prancha 3). A rêde de dormir, tecida de embira costume, pelo menos nos nossos tempos, entre os taputas da costa
(fibra cortical tirada de uma espécie de Cecropia) fica suspensa entre dois oriental. Os portuguêses do Paraíba afirmam, sem discrepância, que os
troncos de árvores, aos quais, em cima, está amarrada transversalmente, Puris comem a carne dos inimigos mortos, e, realmente, parece haver
com cipó, uma viga, contra a qual dispõem obllquamente, do lado alguma verdade nessa afirmativa, como veremos depois; mas jamais
do vento, grandes palmas, forradas embaixo com fôlhas de Heliconia ou no-lo confessaram. Quando lhes fizemos perguntas a respeito, respon-
de patioba e, quando perto das plantações, de bananeiras. Próximo deram-nos que só os Botocudos tinham êsse costume. Mawe conta q'!e os
a uma pequena fogueira, vêem-se, no chão, cuias feitas com os frutos da índios de Cantagalo comem os pássaros sem depená-los. Nunca v1 um
Crescentia cujete, ou umas poucas cabaças, uma pequena vela, várias miu- selvagem fazer isso; tiram, mesmo, com todo o cuidado, as vísceras, e com
dezas, bambus para flechas e pontas de flecha, algumas penas certeza quiseram se divertir à custa do viajante inglês... .
e provisões, tais como banana e outras frutas. Os arcos e as flechas Logo que chegamos às choças, começamos a troca de objetos.
ficam encostados numa árvore, e cachorros esqueléticos lançam-se, Presenteamos as mulheres com rosários, por que tinham predileção,
latindo estrepitosamente, sôbre o estrangeiro que se aproxima da embora arrancassem a cruz, e se rissem dêsse emblema sagrado da Igreja
mata. As choças são pequenas e tão expostas de todos os lados, que Católica; mostram, também, grande preferência por gorros de lã
vermelha; facas e lenços vermelhos, trocando prontamente os arcos
(*) A. HUMBOLDT, Anaichten der Natur, pp. 45 e 154.
(**) DE LA CoNDAMINE, V 011aue, etc., p. 65. e as flechas por êsses artigos; as mulheres são ávidas por espelhos, mas
não dão valor às tesouras. Obtivemos dêles, por troca, muitos arcos e
. (237) _Grax ale~tor Llnn. é espécie .~eculiar à região amazônico-guianense; a
aqUJ .em apreço d~nom1na-se c;ax blumenbachu Splx (= C. rubrirostris Spix), ou "mutum flechas, e diversos cêstos grandes. E êstes são feitos de fôlhas verdes
de. b•co ~er';l'elho , e é peculiar à grande mata costeira do Brasil médio-oriental. C!. de palmeira entrelaçadas; embaixo, na parte que se aplica às
W•ed, Bettrtiue, etc., I, pág. 845.
(238) No decurso de sua viagem terá o autor muitas oportunidades de referir- costas, têm um fundo trançado, e, dos lados, uma borda alta feita da
à "jacutlnga", Pipile jacutinua (Splx), bela ave galinácea, outrora multo abundante
nas matas virgens de todo o Brasil meridional, mormente na orla dos grandes rios mesma maneira, sendo geralmente abertos em cima. Carregam-nos,
Todavia, limitando-se a dar-lhe o nome cientifico de Penelope leucoptera pena é
que houvesse omitido a descrição necessária ao aproveitamento do último r{a Nomen-
clatura zoológica, dando ensejo a que Splx viesse a descrever a ave poucos anos depois (*) SoUTHEY's, History ot Brazil, vol. I, p. 879.
(1825), sob nova denominação. (**) J. MAWE's Travell, etc., p. 124.
112 VIAGEM AO BRASIL

como já observáramos, do mesmo modo que as crianças, aplicando-os


às costas por meio de uma faixa passando pela testa, e algumas vêzes
por meio de uma tira passando pelos ombros (na fig. 7 da pr. 12 está
representado um dêsses cêstos).
Todos os selvagens costumam, freqüentemente, oferecer à venda
grandes bolas de cêra, que juntam quando colhem mel silvestre. Uti-
lizam essa cêra escura na confecção dos arcos e flechas, e também para
velas, que vendem aos portuguêses. Os tapuias fazem essas velas, que
queimam muito bem, enrolando um pavio de algodão em tôrno de um
fino pau de cêra e, logo depois, rolando todo êle com fôrça. Dão grande
valor às facas, que penduram ao pescoço por um cordão, deixando-as
pendentes nas costas; consistem, em geral, apenas de uma peça de ferro,
que êles afiam constantemente nas pedras, conservando-as muito cor-
tantes. Se lhes dão uma faca, geralmente tiram fora o cabo e fazem
outra de acôrdo com o próprio gôsto, colocando a lâmina entre dois
pedaços de pau e ligando-os solidamente com um cordão.
Terminado o nosso comércio, tornamos a montar e fomos a outras
malocas, situadas mais para dentro da floresta; o caminho era fatigante,
estreito, atravancado de raízes, cheio de altos e baixos. Alguns sel-
vagens vieram na garupa dos nossos cavalos, e uma tropa inteira de
índios Coroados de S. Fidélis acompanhou-nos a pé. Num pequeno
vale solitário, no meio da mata, encontramos a casa de um português,
que mora entre os Puris. Daí, o caminho seguia em subida suave,
e logo chegamos às choças de numerosos selvagens, onde fomos de novo
atacados por uma quantidade de cães esqueléticos. Diz-se que os Puris
receberam êsses animais, a que dão o nome de "joare", dos europeus,
e eu os encontrei entre tôdas as tribos nativas da costa oriental•.
Havia, nas malocas, grande número de mulheres e crianças; viam-
se, em algumas, várias rêdes de dormir, se bem que houvesse, geralmente,
apenas uma em cada choça. Um Puri, ao ofertar-lhe eu uma faca,
desarmou a sua rêde e entregou-ma (ela está representada na fig. 7
da prancha 13); outros tiravam da testa as tiras de pele de macaco, os
colares do pescoço, e assim por diante. O Sr. Freyreiss entrou em nego-
ciação com um dos Puris para a compra de um filho, oferecendo-lhe
diversos artigos. As mulheres consultaram-se alto, no tom cantante que
lhes é peculiar, algumas com gestos de desaprovação; a maioria das
palavras terminavam em a e eram arrastadas, do que resultava forte
e singular vozerio. Era evidente que elas não se queriam desfazer do
menino; mas o chefe da família, um homem idoso, grave e de bom
aspecto, disse umas poucas palavras cheias de ênfase e ficou, depois,
durante algum tempo, olhando para o chão, perdido em pensamentos :
ofereceram-lhe, sucessivamente, uma camisa, duas facas, um lenço, uns
fios de contas de vidro colorido e alguns pequenos espelhos: não pôde

( *) Humboldt encontrou, na América Espanhola , muito cães sem pêlo; nós,


porém, não vimos nenhum dêstes nesse litoral.
ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 113
resistir a tentação: entrou na floresta e em pouco voltava, trazendo pela
mão um menino, que era, porém, mal conformado e tinha um ventre
muito dilatado, não sendo, por isso, aceito; trouxe logo um segundo,
que se aceitou. Foi inacreditável a indiferença com que o menino soube
do seu destino. Não mudou de fisionomia, nem mesmo se despediu dos
amigos, mas, ao contrário, montou alegremente atrás do Sr. Freyreiss.
Essa empedernida indiferença em tôdas as circunstâncias, alegres ou
tristes, se encontra na totalidade das tribos americanas. Alegria e tris-
teza não os impressionam muito; raras vêzes riem, e é pouco comum
falarem alto. A comida é-lhes o desejo mais premente; seus estômagos
precisam estar sempre cheios; comem, por isso, com rapidez fora do
comum, olhares ávidos, a atenção inteiramente voltada para o alimento.
Em compensação diz-se que suportam a fome por muito tempo. Dei-
xam-se geralmente atrair pelos canaviais das fazendas, em cujas
cercanias acampam: e podeis vê-los, sentados aos grupos, chupando
cana durante quase todo um dia. Cortam, também, grande quantidade
de canas e carregam para a mata. O caldo de cana é apreciado não
só pelos tapuias, como por tôdas as classes baixas do Brasil, entre as
quais o costume de chupar cana é geral. Koster• diz o mesmo de
Pernambuco.
Acabadas as trocas na floresta, tornamos a montar; com um Puri
na garupa de cada um dos cavalos, voltamos para a fazenda. A
horda inteira, de homens e mulheres, em pouco chegava aí, e todos
pediam de comer. Enquanto voltávamos, o selvagem que eu trazia à
garupa tirou o meu lenço do bôlso. Surpreendi-o no momento em que
o procurava esconder, e perguntei-lhe se queria dar um arco por êle, o
que logo aceitou : mas, depois, esgueirou-se ràpidamente entre a
multidão e não deu mais sinal de si. Alguns homens tinham bebido
muita aguardente e ficaram embriagados. Com bons modos nos livra-
ríamos dêles fàcilmente; os colonos, porém, de acôrdo com o critério
errado de considerá-los animais, ameaçam-nos logo com o chicote, o
que naturalmente lhes excita a cólera, acarretando a má vontade, o
ódio e a violência. Estavam, por isso, de todo encantados conosco,
estrangeiros, porque os tratávamos com brandura e delicadeza; também
se aperceberam de pronto, pelos nossos cabelos claros, de que perten-
cíamos a outra nação. Chamam, aliás, a gente branca, indistintamente,
"raion".
Como não pudéssemos obter, na fazenda, farinha para todo
aquêle povo, procuramos outros meios de atender às ruidosas recla-
mações dos seus estômagos. O dono da casa deu-nos um pequeno
leitão, de que lhes fizemos presente, dizendo que o matassem; dêsse
modo, tivemos oportunidade de observar com que selvagem crueza
preparam os animais para comer. O leitão pastava perto de uma

(*) KOST:EII, Travels, etc., p. 8.5.


ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 115
114 VIAGEM AO BRASIL

casa; um Puri avançou de mansinho e flechou-o muito alto, sob Os selvagens do Brasil acreditam em vários entes po?erosos, o_ maior ?os
a espinha; o animal fugiu berrando, com a flecha cravada. O selvagem, quais identificam ao trovão: so~ o nome .de tupa ou tupa. ~mtas
tribos concordam na denommaçao dada a esse ente sobrenatural, e, o
então, pegou uma segunda flecha e fincou-a na espádua do animal a
correr e depois o agarrou. Enquanto isso, uma mulher acendera o fogo. que é mais, algumas tribos Tapuias co?co:dam até com as Tup~s, ou
Quando todos nós nos aproximamos, feriram de novo o animal, no pes- índios que falam a língua geral. Os Puns dao~lhe o nome de Tupa; que
coço, para matá-lo, e em seguida no tórax. Entretanto, ainda não Azara faz derivar da língua dos Guaranis; ma1s uma prova de ahmdade
estava morto; grunhia e sangrava profusamente: sem fazer caso dos desta nação com as tribos da costa o.riental. Não se. v~em ídolos entre os
berros, puseram-no vivo ao fogo para chamuscar-lhe o pêlo, rindo-se tapuias, nem mesmo os maracás, mstrumento mag~co e protetor dos
gostosamente dos grunhidos que êsses sofrimentos lhe arrancavam. Só Tupinambás. Somente no rio Amaz~nas se tem , enc~n~rado algum~s
depois que os nossos protestos contra a barbaridade se tomaram cada imagens que parecem ter certa relaçao com a fe rehg~osa dos habi-
vez mais impacientes, foi que um dêles avançou e enterrou uma faca no tantes•. A maior parte dos índios da América do Sul guarda, també~,
peito do to~turado animal; no mesmo momento lhe rasparam o pêlo uma confusa idéia a respeito de um dilúvio universal, além de vána~
e o esquarteJaram• . Devido ao pequeno tamanho do leitão, muitos não tradições, como, entre outros, acentuou Simão de Vasconcellos nas Notz-
conseguiram um pedaço, e voltaram resmungando para a mata. Mal cias curiosas do Brasil• •.
se tinham ido, quando chegou, para êles, um saco de farinha de S. Fidélis, Não aceitamos o convite do nosso gentil hospedeiro para passar
que lhes mandamos ao encalço. a noite em sua casa, e voltamos no mesmo dia, atravessando o Paraíba,
A crua insensibilidade, como me mostraram êsse e muitos outros para S. Fidélis. Os índios Coroados do lugar estavam. muito des~on­
exemplos, é um traço predominante do caráter dos selvagens. E' uma tentes conosco, porque, como diziam, déramos tanta coisa ao~ Pu:is e
conseqüência necessária do modo de vida; pois é o mesmo que nada a êles; compramos, por isso, para de certo modo satisfaze-los,
tomam o leão e o tigre sedentos de sangue. Além disso, são-lhe peculi- alguns arcos e flechas. Visitamos, em seguida, o padre João. O Paraíba
ares o instinto de vingança, um certo grau de inveja, e um indomável passa-lhe em frente às jan~las da re~idê?cia, d~nde se a~arca uma
amor à liberdade e à vida nômade. Têm, em geral, muitas mulheres; vista magnífica do rio, o mawr da capitama do Rio de J'-':nei~o, e qu~,
alguns possuem quatro ou cinco, pôsto que as possam sustentar. De depois da cachoeira ou queda que fica acima de S. F1déhs, se diZ
modo geral, não as maltratam, mas o marido considera a mulher como ter setenta e duas ilhas: corre êle entre a serra dos órgãos e a serra
sua propriedade; tem que fazer o que êle ordena, e por isso anda car- da Mantiqueira. O rio estava,. ent_ão, na extrema va~ante; mas na
regada como uma bêsta de carga, enquanto, ao lado, êle apenas leva as estação chuvosa, dezembro e pneiro, transborda e munda grande
armas na mão. extensão das margens.
A língua dos Puris é diferente da da maior parte das outras tribos; Dêsse lugar parte uma estrada que, pelas montanhas, se dirige
guarda, porém, afini?ade com as dos Coroados e Coropós. Alguns a Cantagalo; outra vai para Minas Gerais. Cantagalo, fundada por
autores, entre os quais Azara, tendem a negar qualquer idéia religiosa alguns paulistas que andavam em busca do ouro, permaneceu durante
a essas tribos americanas; mas o assêrto parece pouco fundado, de vez muito tempo oculta nas florestas, até que, por fim, foi descoberta graças
que o mesmo Azara encontrou, entre alguns índios do Paraguai, noções ao canto de um galo, donde o nome. Quando os jesu~tas se e~tabelecer~~
que sem dúvida provêm de uma religião ainda rudimentar. O tradutor no Brasil, dizem que uma raça muito clara de índws habitava as VIZI-
de seu livro, o Sr. Walckenaer, fêz em vários lugares essa observação••. nhanças de Cantagalo•••. Os jesuítas aí descobriram areias auríferas,
Entre tôdas as tribos dos tapuias que visitei, descobri provas evidentes
de uma crença religiosa; estou, por isso, convicto de que não há um só
que os índios lhes levavam ao Paraíba, em embrul~os d:
papel, ~ela qual
pagavam ninharias. Nossa despedida do padre Joao foi mais amistosa do
povo na face da terra destituído por completo de idéias religiosas•••. que o primeiro encontro; todavia, muito mais cordial foi a que fizemos ao
bom velho que nos tratara com tanta benevolência: Tomamos a ~tra­
(*) Nem aqui, nem posteriormente encontrei, entre os selvagens, qualquer confir- vessar o Paraíba a caminho da fazenda do Sr. Furnel, e de novo vimos
mação do que o sr. Freyreiss diz na pág. 208 do primeiro volume do Journal von os Puris dirigindo-se ao engenho para chupar cana. O rapaz que o Sr.
BriUilien de EscHWEGE, a saber, que os selvagens nunca comem a carne dos animais que
êles próprios matam. Freyreiss comprara na véspera foi conduzido até êles, para se ver a
(** ) AZARA, VOflaoes, vol. 11, p. 34, em nota.
( ***) O fato de que o padre de São João Batista diz não ha ver encontrado
qualquer idéia religiosa entre os Coroados nada prova, pois que sendo êles considerados (* ) SoUTHEY' s H is tory of Brazil , vol. I , p. 620.
semelhantes a os Puris ainda bra vos, devem certa mente se comportar como êstes. Conclui-se
a ssim qu~ êles temem, sob o nome de Tupã, um ser sobrenatural e onipotente. Cf. ( ** ) SIMÃO DE VASCONCELLOS, op. cit., p. 47.
EscHWEGE s Journal, parte I onde, na página 165, a primeira palavra da lista de nomes (*** ) V. a descrição de Ca nta-Galo em J. MAwE, T r avels, etc., cap. IX, P· 120.
é a contestação do que se diz na página 106.
~. -- - ..
._. - --- .

116 VIAGEM AO BRASIL ESTADA NA VILA DE SÃO SALVADOR 117

impressão que causaria aos parentes; mas, para nosso espanto, nenhum Na manhã seguinte, depois que os nossos cavalos foram reunidos
se dignou lançar-lhe sequer um olhar; nem êste olhou para os pais e no campo, continuamos a viagem, e alcança_mos, pelo ~eio-dia, o Muriaé,
os parentes, sentando-se entre êles com perfeita indiferença. Não encon- que não é largo, mas é profundo e ráp1do, e se d~z causar ~andes
trei tamanha apatia em nenhuma outra tribo; parece, contudo, que estragos nas estações das chuvas: Nasce na serra do P:co, na regrao dos
ela só existe em relação aos filhos mais ou menos adultos, porque não Puris, e é navegável, como nos mformaram, na extensao de sete léguas.
lhes falta ternura pelas crianças menores. Enquanto um rapazinho não Há, nas margens, grandes fazendas, em que se produz muito
pode procurar a própria subsistência, é absoluta propriedade do pai; açúcar. Uma pequena canoa levou-nos pela corrente, e, à tarde, atin-
logo, porém, que fique de certo modo apto a fazê-lo, o pai deixa, por gimos um lugar donde se vê, graciosamente situada, estendendo-se na
assim dizer, de preocupar-se com êle. margem oposta, a vila de S. Salvador. Encontramos, nas cercanias,
Alguns Puris passaram por nós com as mulheres enormemente a aldeia de S. Antônio, antigo povoado indígena. estabelecido pelos je-
carregadas. As cargas consistiam nos filhos e em cêstos de fôlhas de pal- suítas com os índios Guarulhos, mas que, atualmente, não conta mais
meira, cheios de bananas, laranjas, côcos de sapucaia, bambu para "caboclos" entre os habitantes.
pontas de lança, cordas de algodão e alguns artigos de enfeite. O ma-
rido carregava um filho; suas três mulheres os outros, mais os cêstos
(a estampa 2 representa uma horda de Puris em viagem pela mata).
Despedimo-nos do nosso hospedeiro e dos índios e descemos a
margem esquerda do Paraíba, que achamos tão pitoresca e cultivada
quanto a margem direita. Vimos aí grandes fazendas cercadas de árvores
lindíssimas, entre as quais a sapucaia, com a tenra folhagem côr-de-rosa
em pleno brotamento, e carregada de belas e grandes flôres lilás de forma
admirável. Paramos perto da casa do Sr. Morais. ~sse inteligente agri-
cultor fizera algumas preparações de história natural, que nos ofereceu.
Ordenou, também, lhe selassem imediatamente o cavalo para nos acom-
panhar. Durante a nossa parada aí, algumas famílias de Puris vieram
acampar próximo da casa. São muito apegados a êsse digno homem,
que os trata de maneira sinceramente bondosa. Sem olhar para os
pn~juízos que lhe capsam, permite-lhes saquear as laranjeiras e as bana-
neiras, bem como os canaviais, do que, muitas vêzes, lhe vêm conside-
ráveis prejuízos. ~sse homem, que lhes granjeou a estima e o apêgo,
e que sabe como proceder com êles, foi mais bem sucedido do que qual-
quer outro em amansá-los e reuni-los em aldeias ou povoados. Acom-
panhou-nos pelas estradas montanhosas ao longo do rio, onde tivemos,
por várias ocasiões, que passar por lugares perigosos e ribanceiras
íngremes; penetramos, em seguida, numa sombria e majestosa floresta,
onde voejavam lindíssimas borboletas. Nesse lugar, vimos no rio,
junto à margem, uma ilhota tôda cercada de rochas escarpadas, na qual
havia algumas velhas árvores, repletas de ninhos, em forma de saco,
do guache (Cassicus haemorrhous). Canaviais, arrozais, cafezais (êstes
raramente), e algumas plantações de milho sucediam-se. A corrente
espelhante do Paraíba era recortada de encantadoras ilhas, umas
cultivadas, outras cobertas de mato. À tarde, chegamos a uma pla-
nura perto do rio, onde havia importante fazenda entre verdes pasta-
gens, na qual fomos bem recebidos e onde, por isso, resolvemos passar
a noite. Do outro lado do vale se elevavam altaneiras montanhas,
entre elas o morro da Sapateira, alta cadeia de vários picos.
VI

VIAGEM DA VILA DE S. SALVADOR


AO RIO ESPíRITO SANTO

Muribeca - As hostilidades dos Puris - Quartel


das Barreiras - Itapemirim - Vila Nova de Benevente,
à margem do Iritiba - Guaraparim.

A nossa chegada à vila tivemos a alegria de ver confirmada a notícia


da vitória de Belle-Alliance 239, com o qual também exultaram todos os
moradores do lugar. Começamos, em pouco, a fazer os preparativos
necessários para o prosseguimento da viagem, em direção norte, ao longo
do litoral; contratamos mais dois caçadores, além de um soldado, como
guia ; e tendo-nos despedido do coronel Carvalho dos Santos, coman-
dante, que fôra tão cortês, e de outros amáveis moradores de S. Sal-
vador, deixamos a vila a 20 de novembro e avançamos pela margem do
Paraíba, rumo à foz. A cidade acompanha até bom pedaço a beira do
rio, oferecendo uma bela paisagem. A massa de casas ergue-se imediata-
mente acima do rio; erguem-se, acima delas, coqueiros solitários, e o
magnífico fundo de cena {: formado pelas montanhas azuis longínquas.
A superfície reluzente do rio, que tem aí razoável largura, é cortada
em tôdas as direções pelas canoas remadas por negros, e as margens
são guarnecidas de capoeiras, pequenos capinzais e moradas pitorescas.
Um pintor poderia, desse lugar, fazer um lindo quadro da cidade e
e arredores. Nossa jornada, nesse dia, foi muito penosa; não só porque
o longo repouso tornara os animais indóceis, como por têrmos passado
por muitas fazendas em cujas cêrcas havia aberturas feitas pelo gado,
dando azo a que os burros por elas se transviassem. Vimos, nas cercanias,
gado vacum muito bonito; de fato, êsses úteis animais são, em todo o
Brasil, grandes, musculosos, bem proporcionados e de boa aparência.
Os couros de Buenos Aires, Montevidéu, Rio Grande e outras províncias
(239) Como vimos anteriormente (nota 224), designam o alemães por êsse nome
a batalha de Waterloo, vitoriosa para as armas prussianas.
120 VIAGEM AO BRASIL

das Américas portuguêsa e espanhola são famosos pelo grande tamanho.


Os bois, além disso, têm chifres muito maiores que os da Europa. Inú-
meros cavalos se criam igualmente nessas paragens.
A região é pitoresca e aprazível; ademais, encontramos algum
material novo de história natural, entre êles o lindo martim-pescador
azulado (Alcedo alcyon, Linn.) 24 o, de que consegui muitos. Cêrca de
meio-dia, chegamos à casa de um tenente, em cuja ausência fomos
bem recebidos pela mulher. Quando, de manhã, nos preparávamos
para partir, o tenente, que chegara durante a noite, mandou selar o
seu cavalo e acompanhou-nos à vila de S. João da Barra. O tempo
estava extremamente cálido: nas rasas poças da mata, já quase sêcas,
viam-se inumeráveis borboletas brancas e amarelas, que as buscam em
procura de umidade. Essa multidão de borboletas nos lugares úmidos
é seguro indício da proximidade da estação quente: vêem-se, então,
nuvens delas esvoaçando nas vizinhanças da água.
A vista do Paraíba era interrompida pelas capoeiras. O solo are-
noso provava que estávamos muito perto do mar. Lindas aves vieram
aumentar as nossas coleções, sobretudo martins-pescadores (Alcedo); e
quando atingíamos a margem do rio, tivemos ocasião de experimentar
um gênero de caça inteiramente novo para nós, a do jacaré, ou "al-
ligator" dêsses rincões Crocodilus sclerops241 • Vive êsse anfíbio•

(240) Refere-se Wied ao ma ior rios nossos martins-pescadores, M egaceryl e torquata


(LtNN. 1776), o único em que o colorido predominante da plumagem é azul ardosiado,
e não verde. Corresponde a Alcedo cyanea Vieillot (1818), e por êsse nome é descrito
por Wied à pág. 5 do volume IV dos Beitrage. A ave a que deu Linneu o nome de
Alcedo alcyon muito a êle se assemelha; é porém espécie diversa, peculiar à América
Setentrional e Antilhas.
(241) Pelos estudos modernos (cf. FR. SIEBENROCK, em Denks. Akad. Wien. math-
naturw. Kl., LXXVI, p. 29), verifica-se que o " jacaré " encontrado por Wied durante todo
percurso de sua viagem e ainda em Beitrage (vol. I, pág. 69 a 98) descrito como
Crocodilus sclerops, corresponde à forma descrita por Daudin, com o nome de Caiman
latirostris.
Muito se tem trabalhado e escrito sôbre as espécies de jacarés ocorrentes no Brasil,
assunto que entre nós foi objeto, anos atrás, de uma revisão por parte de H. LUEOERWALDT
(Rev. Mus. Paul., XIV, 1926, p. 887) e que, pela sua Importância, merece deter o
comentador por alguns momentos. Segundo K. P. Schmldt, autor de estudo mais moderno
e completo sôbre a matéria, os jacarés brasileiros até hoje conhecidos compreendem seis
espécies, repartidas em dois gêneros, conforme o resumo que dou a seguir, indicados
os nomes vulgares e a distribuição peculiar a cada uma.
Paleosuchus trigonatus (Schnelder): Venezuela, Guianas, Peru, Amazonas (Rio
Negro), Pará (Rio Tocantins).
Paleosuchus palpebrosus (Cuvier): Venezuela, Guianas, Amazonas (Rio Branco),
Pará (Rio Tapajós), Mat()-Grosso (alto Paraguai).
Caiman niger Spix, vu1g. "jacaré-açu ", "jacaré-una": Peru, Equador, Amazonas
(Rio Negro, Rio Madeira), Pará (Marajó e outras ilhas do delta).
Caiman latirostris (Daudin), vulg. "jacaré de papo amarelo", "ururau": leste
do Brasil (de Pernambuco ao Rio Grande do Sul}, alto Rio Paraná, baixo Paraguai.
Caim.an yacare (Daudin), vulg. " jacaretinga " confundido pela generalidade
dos autores com C. sclerops: alto Paraguai, alto Parnaíba.
Caiman sclerops (Schnelder): C. crocodilus, Linn. = Venezuela, Guianas,
Pará, Amazonas.
Persistem, contudo, muitos pontos obscuros, que ao futuro cabe esclarecer. Avulta
particularmente entre êles i). distribuição da espécie que o autor separou sob o nome
de C. yacare (Daudin). Com efeito, a sua presença em dois pontos tão distanciados
como o alto Paraguai e o alto Parnalba, induz à suposição de que ela deve existir
igualmente em tôda faixa intermédia do sertão brasileiro, fato que parece atestado pelas
informações dos naturais, que afirmam a presença nos rios do Brasil este-meridional de
DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 121
em todos os rios do Brasil, máxime nos de pouca correnteza,
nos lugares pantanosos e nos remansos. ~stes se reconhcem logo
pela presença de plantas aquáticas de grandes fôlhas, tais como a Nym-
phaea, a Pontederia e outras, que emergem do fundo e estendem hori-
zontalmente as fôlhas na superfície. Entre elas é que o jacaré
deve ser procurado; aí o observador experimentado lhe descobre a
cabeça, que, espreitando a prêsa, sai fora d'água. Também se encon-
tram, por vêzes, no meio dos rios, especialmente nos ribeirões quase
estagnados, ou remansosos. Cobrem as margens do Paraíba bosques
de uma árvore de dezoito a vinte pés de altura, de caule esguio e grandes
fôlhas pubescentes e cordiformes (provàvelmente um Croton) .. , parenta
muito próxima do Tridesmys (Monoecia). Pode-se, por entre êles,
aproximar cautelosamente da margem e ver o jacaré com a cabeça acima
da superfície, aquecendo-se ao sol, aguardando a prêsa. A princípio,
quando nos acercávamos do rio sem pensar nêles, e sem conservar
o necessário silêncio, ouvíamos apenas o barulho que faziam ao
mergulhar; agora, porém, que nos aproximávamos cautelosamente para
descobrir donde vinha o ruído, certificamo-nos de que era produ-
zido pelos jacarés. Com a minha espingarda de dois canos, empre-
gando carga média, feri um dêsses animais no pescoço; êle ergueu-se,
virou de costas e afundou. Embora estivesse certo de ter-
lhe infligido um ferimento mortal, não tinha meios de içá-lo do
fundo da água; atiramos, da mesma maneira, em pouco tempo, em
três ou quatro outros, sem podermos apanhar nenhum. Não tínhamos
ido longe, quando ouvimos uns tiros adiante de nós e descobrimos,
cavalgando para lá, que os dois caçadores, que mandáramos na frente,
em pé numa ponte sôbre uma corrente remansosa, tinham ferido duas
vêzes um jacaré no pescoço, matando-o. Como houvesse, perto, algu-
mas cabanas de pescadores, conseguimos um homem com uma canoa
e um longo forcado de ferro com três dentes, com o qual sondou o
fundo, fisgou o animal e trouxe-o à tona.
O comprimento dêsse jacaré era de cêrca de 6 pés; côr cinzento-
esverdeada, com listas transversais escuras, especialmente na cauda;
ventre de um amarelo brilhante homogêneo. Ficamos muito con-
tentes por ter obtido o belo animal, ainda novo para nós; car-
regamos com êle um dos burros, do qual espalhava-se em tôrno um
cheiro almiscarado extremamente desagradável. O jacaré da costa
oriental do Brasil é muito inferior ao gigantesco crocodilo do Velho
Mundo, e mesmo aos existentes nos países da América do Sul mais
(*). !'arece duvidoso que o jacaré descrito por AZARA seja o Crocodilus scl erops:
sua Qdescr~çao é multo vaga e, além disso, registra côr muito diferente. Cf. Essais sur
l es ua,~rup edes du Paraguay, etc., vol. 11, p . 880.
( ) (Suplem.) Croton gnophaloides ScHRADER, op. cit., pâ g. 708.

dua~, espéci~~· que di.stingl;Jem pelos nomes de "jacaretinga ", C. yacar~, e "papo-amarelo "
DU ururau • C. lahrostns. Note-se de passagem, que o têrmo " jacar etinga", como é
regra enhe os nomes ':ulgares, varia de aplicação conforme a zona, bastando para
provâ-lo lembrar que W1ed o registra como usua l para a espécie por êle colecionada.
122 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 123

próximos do equador. Humboldt viu o corpo dêstes últimos coberto porém, mais conhecida alhures por tatu-comum ou tatu-v_erda~eir<?,
243 . Separamos os _dOis an~ma1s
de vá:ias aves•; até a cabeça de um dêles, fôra espantosamente 0 qual, assado, constitui ótimo prato•
escolhida como pouso pelo grande e esguio flamengo. Os jacarés são durante a noite, pondo um num saco e outro num sóhdo cubiculo.
muito comuns no Paraíba, e os negros comem-nos algumas vêzes. Con- Quando nos dispusemos a comê-los no dia seguinte pela manhã, o
tam-se muitas histórias fabulosas a respeito da sua voracidade, mas a primeiro tinha atravessado o saco, furado a grossa parede de barro
espécie aqui mencionada, que tem no máximo 8 a 9 pés de compri- da casa e escapado. .
mento, não é temível, embora alguns pescadores mostrem cicatrizes Permanecemos dois dias em S. João para preparar nosso Jacaré,
nos pés, dizendo-as causadas pelas dentadas dêsse animal; e de nenhum 0 que nos ocupou um dia inteiro. Após terminarmos essa operação,
modo é provável que pudesse, como nos contaram, atacar e devorar retomamos a viagem. O juiz nos cedera quatro grandes canoas
um cachorro, que atravessava o rio a nado. Na corrente quase estag- e os canoeiros para o transporte da bagagem pelo Paraíba.
nada, perto da ponte acim_a referida, eram êles tão numerosos, que O vento agitava tanto a superfície do rio, que canoas pequenas corre-
sempre pudemos contar vános ao mesmo tempo; como, porém, atirás- riam o risco de virar. Ouvíamos constantemente o rumor do oceano,
semos em alguns a grande distância, tornaram-se ariscos e não obti- quando, longe, rio abaixo, remávamos em redor de uma ilha cobert,a
vemos mais nenhum espécime além do já descrito. Próximo da cor- de linda vegetação. Aí, entre outras, medrava uma bela Cleome herba-
rente, no chão aren~so, vimos moitas de Eugenia pedunculata, bonito cea, com cachos de grandes flôres br~nco-amareladas, de e.stames pur-
arbusto bem conhecido, que dá o fruto vermelho, carnudo, quadran- purinos; uma malvácea, de doze a qumze pés ~e altura, flor~s grandes
gular e saboroso, conhecido no país por pitanga. Cresce isolado amarelo-pálidas e fôlhas cordiformes .. ; a amnga244 , espéc1e notáv~l
no _pedúnculo, e todo o arbusto se carrega dêle; achamo-lo, nessa de A rum de caule comprido (A rum liniferum, Arruda)• • •, frutos ova1s
ocasião, mui~o fresco. Os cajueiros (Anacardium occidentale, Linn.) e flor esbranquiçada. . _
estavam flondos. Perto dêles, num pasto, vimos um bonito carneiro A seguir, atravessamos o segundo braço do no, remando, entao,
de quatro chifres. por um pequeno canal, entre duas ilhas, cujas águas, ensombradas
Chegamos, por fim, à vila de S. João da Barra, próximo da desem- de todos os lados pelas florestas altaneiras, são quase estagnadas,
bocadura do Paraíba, no oceano. Graças à interferência do tenente motivo pelo qual cheias de jacarés. Enquanto a canoa avançava
nosso companheiro, a casa da Câmara, edifício destinado à residência devagar, não tirávamos os olhos dêles. As raízes descobertas e arq~ea­
d~ oficial da coroa, foi-nos cedida. E' um espaçoso edifício com das do Conocarpus e da Avicennia, emergindo dos troncos a constde-
Óti_mos qu~r~os e u~ quint~l plantado com laranjeiras e pés de rável altura, formavam na margem estranho emaranhado. Vimos, entre
goiaba (Pszdzum pyrzferum, Lmn.), alguns dos quais em flor. S. João essas raízes, por vêzes, sôbre velhos tro?cos de. árvores e pedras da
da Barra é uma localidade que não se pode comparar a S. Salva- margem, jacarés aquecendo-se ao sol. Mmha espmg~rda estava. sempre
dor, pois que só tem uma igreja, ruas sem calçamento, casas de um carregada para êles, mas não tive nenhuma .o portumdade de attr~~- ~
só andar, construídas de paus e barro. Mas, por outro lado o rio canoa muitas vêzes balançava, e, antes que retomasse o eqmhbno
é nave~áv~ p~r n~vios de regular tamanho, brigues e sumacas, e tem necessário a uma boa pontaria, o animal mergulhava de novo. _Na
com:umcaçao Imediata com o oceano. Tôdas as embarcações com saída do canal, observamos, nas praias da~ ilhas, mu_itos dos mart~ns­
d_estm~ ~ S. Sal~ador _ passam por êsse lugar, embora o braço do pescadores azulados (Alcedo alcyon, Lmn.) 245 ; vtam-se, tamt;>em,
no proximo da vila seJa raso, e o canal, propriamente, fique do outro grande número de aves muito parecidas com o nosso corvo-mannho
lado_ de. algum~s ilhas_. • o~ habitantes são, sobretudo, pescadores e
mannheiros, CUJa subsistenCia é garantida pelo comércio, com S. Sal- (*) Essa espécie é o "Tatou noir " de AzARA. V. Essais sur l es Quadr. du Para(ltt(YJ,
etc., t . IJ, p. 175.
vador, dos produtos da região. Nossos caçadores, que vieram na ( **) Koster em apêndice observa que Arruda, em sua descrição das plan~s
frente, e encontramos na vila, tinham caçado diversos animais entre de Pernambuco, chama esta erva' de "Guachuma do mangue " (Hibiscus parnambucenns).
os quais, também, um casal de tatus (Dasypus) vivos. .f'.sses c~riosos (***) Arruda In loc. clt.
(Suplem.) Caladium liniter u m Nees de Esenbeck: C. caulescens .• erectum,
animais são muito comuns no Brasil, existindo várias espécies. A que follls sagittatls Iobls acutls spadlce spatbam cucullatum ovato-lanceolatam aequante, caule
conseguíramos apanhar viva se chamava, aí, "tatu-peba"242, sendo, attenuato. Ani~ua Piso, Bra's., p. 108. Parece ser diverso de Caladium arborescens, Ventenat.

(2U) Dasvpus novemcintus Llnnaeus. O "tatu-verdadeiro ", também multo comu-


(* ) A nsichten der Natur, p. Ul. mente chamado "tatu-galinha ", foi descrito por Wled (Beitréiue, li, p. ~ 81), com o nome
de Dasvpus longicandotus.
(242) Por "tatu-peba" conhece o povo, conforme as regiões diversos tatus · uma (2U) A planta é multo abundante nas margens do Amazonàs, onde constitui o
delas é o " tatu-peludo ", Euphractus sexcinctus setorus (Wied) , qu~ 0 nosso viajan'te fria refúgio predileto das " ciganas " (Opisthocomus hoazin Mueller) . V . a nota 827.
encontrar em abundância na região dos campos gerais (cf. BeitrOge 11 pág 520-29)
mas passado em silêncio na sua descrição de Viagem. ' ' · ' (U5) Cf. nota 240.
124 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SA TO 125

(Garbo cormoranus), mas eram bem ariscas 24 6. Impossibilitados de tapuias, que algumas vêzes infestam essas paragens, quando, p~ra
fazer outros achados importantes aí, tivemos que nos contentar com meu não pequeno espanto, vi de súbito, em frente de mim,
o de duas espécies de Fucus, já encontradas perto do Rio de Janei- dois homens escuros e nus. Tomei-os por selvagens no primeiro
ro•, ao mesmo tempo que numa longa e estreita lagoa, atrás das momento, e preparava a espingarda de dois canos para me defender
dunas, tivemos também a boa sorte de matar um dos corvos marinhos de qualquer ataque, quando percebi que eram caçadores de
que mergulhavam. Ao norte dêsse lugar, a costa, a certa distância lagartos. Os colonos, que vivem esparsos nessas solidões, gostam
da praia, é atapetada por muitas variedades de arbustos, entre os muito da carne da grande espécie de lagarto (L.acerta teguixin, Linny 47
quais os mais freqüentes são a pitangueira (Eugenia pedunculata), denominado "teiú" na língua geral dos índws da costa. ;or 1ss~,
de frutos saborosos, uma nova espécie de Sophora de flôres amare- partem muitas vêzes, entre ~ataga~s e florestas,. em ~usca desses am-
las.,.., o Cactus hexagonal, e muitas outras espécies dês te gênero, mais, levando um par de caes tremados para esse fim. Qu~ndo os
enfezadas pelo vento. Acompanhado pelos Srs. Freyreiss e Sellow, cães se aproximam de um lagarto, êste se lança com a rapidez de
segui adiante da tropa, chegando antes da noite à fazenda Mandin- uma flecha para a toca subterrânea, que lhe serve de morada, donde
ga, que fica isolada na praia oceânica. Nossa gente, detida num é arrancado e morto pelos caçadores. Sendo grande o calor, êsses
estreito canal, só chegou na manhã seguinte. Aí encontramos o homens, cuja pele do corpo inteira fica tão tisnada pelo sol que
correio, que vai do Rio até à Vila de Vitória, sem prosseguir mais podem passar por tapuias, desnudam-se completamente. Carregavai?
para o norte, e recebemos cartas, que nos ocuparam agradàvelmente machados e dois lagartos de mais ou menos quatro pés de. compn-
a noite. mento, inclusive a longa cauda. f.sses caçadores, que conheciam bem
De Mandinga continuamos para o norte, ao longo da costa, mar- a região, asseguraram-nos que estaríamos, em menos ~e uma hora, . na
chando pelo amplo areal constantemente molhado pelo mar. O fazenda de Muribeca, onde pretendíamos passar a n01te. Com efeito,
caminho pela areia é bom e suave para o cavaleiro, mas os burros em breve passávamos a cêrca que lhe servia de limite. Na escura e
e os cavalos, desacostumados à vista e ao rumor das ondas escachoantes, imponente mata virgem achamos bonitas plantas, e o soberbo Convol-
detestam muitas vêzes essa via cômoda. A passagem de uma tropa vulus de flôres azul-celeste enlaçava-se nos arbustos, até grande altura.
pela areia branca e lisa, à beira do oceano azul, é um lindo quadro, O pio forte e grave do "juó"*, em três ou quatro notas, é ouvido,
vista de longe; porque, a não ser que a costa forme uma grande nessas matas imensas, em tôdas horas do dia e mesmo à meia-noite 248 •
reentrância, pode-se vê-la a tamanha distância, que os animais se redu- A carne dessa ave é tão saborosa quanto a das outras espécies do gênero,
zem a pequenos pontos. Na língua de terra saliente, onde o litoral às quais se dá, usualmente, o nome de "tinamus" ou "inambus".
suporta o mais violento embate da ressaca, encontram-se pedras perfu- Depois de atravessada a floresta, encontramo-nos em extensas
radas do modo mais extraordinário pela água. Algumas espécies de plantações recentes; de uma elevação, onde se viam troncos por terra
batuíras e maçaricos animam a costa, onde só existem umas poucas
(*) Tinamus noctivagus, espécie nova, ainda não descrita de "tinamu" ou "inam-
conchas e sargaços (Fucus). Depois de têrmos caminhado algumas bu ". E' menor que a "macuca" (Tinamus brasiliensis, Lath.) treze polelfadas e cinco
léguas por essa praia, uma picada levou-nos a algumas lagoas, rodea- linhas; partes superiores cinzent~scuras e pardo-avermelhadas; dorso .ma1s. para casta-
nho-pardacento; alto da cabeça, cinzento-azulado, com manchas; parte mfeno~ do dorso
das de eminências silvestres. Tôda a nossa tropa estava com e uropigio, pardo-avermelhado, ferruginoso; ademais, todo o. dors? apresenta estnas. escura~
transversais; mento e garganta, esbranquiçados; p~rte mfenor do pescoço, cmzenta.
uma sêde ardente; apeamos, por isso, para nos saciar, mas, com peito pardo-amarelado vivo; ventre de côr mais páhda.
grande aborrecimento nosso, verificamos que as marés tornavam salobra
(247) Tupinambis teguixin (Linn., I758), descrito nos Beitrüge (I, _Pál?s. 155. a 170)
a água dessas lagoas; e dois casebres de barro, a que recorremos o nome de Teius monitor Merrem. E' o maior de nossos lagartos, atmgmdo cerca de
para mitigar a sêde, estavam abandonados; entretanto, as pitangas, um metro de comprimento; pratica regime carnívoro, e é muito comum nas matas
do este baiano como a mim próprio foi dado observar (cf. Rev. Mus. Paul., XIX, p. 17).
que medravam em abundância nos arredores, atenuaram, até certo (248) E'' o "jaó" dos nossos Estados meridionais e o "zabelê" dos baianos e
ponto, a nossa decepção. Uma trilha, vindo da costa, cedo nos con- nordestinos. A Wied deve-se efetivamente, a primeira descrição dessa esplêndida ave,
cuja área de distribuição abr;nge todo o Brasil oriental, desde o .Piauí ao Rio Grande
duziu, através de espessos bosques, a uma grande floresta. Caval- do Sul. Como pertença a gênero diverso do dos macucos (Tmamus) o seu nome
técnico atual é precisamente CryptureUus noctivagus noctivagus (W~~d), por Isso q~e
gava adiante da tropa, observando as belas plantas, e pensando nos ::'tual'!'ente se têm como subespécie as populações do este-se~entnao (as da Bah1a
mclusJve) e da Amazônia, sob os nomes de C. n. zabele (Sp1x) e ç. n ...e.rvt~rOP'}!B
<!!'elzeln), respectivamente. Pelo mesmo nome "jaó", ou pela sua. vanante JUÓ .• sao
(*) Fucus lendigerus, Linn. é uma espécie intermediária entre Fucus incisifolitts amda designadas no Brasil central duas raças de uma outra espéCie bem caractenzada,
e latifolius. Touro. Hist. Fuc. Crypturellus undulatus (Temminck). Uma de habitat mais ~cide_ntal ~C. u. undul.atus
(**) (Suplem.) Sophora littoralis, SCHRADEB, op. cit., pág. 709. Tem.), ocorre em todo Mato Grosso em cujas ma tas é de ordmáno mmto comum amda
hoje; a outra (C. u. vermiculatus' Tem.), encontra-se em Goiás, estendendo-se para o
(246) Refere-se o autor ao chamado "biguá" (Phalacroco1·ax olivaceus, olivaceus norte até o Maranhão e ao sul até o oeste de São Paulo. Tôdas se lncl~em entre
Humb.), vigoroso palmfpede lctlófago muito comum nos estuários e nas margens lodosas o que de ~elhor temos em caça plumada; assemelham-~e fielmente nos hábitos, e só
das balas do litoral. educado ouv1do sabe distinguir os cantos das duas espéc1es tratadas.
DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 127
126 VIAGEM AO BRASIL

E' sem dúvida desagradável tê-los tão perto;. mas deve ser le~­
em tôdas as direções, divisamos um quadro encantador da majestosa
solidão, às margens do Itabapuana, que, como uma fita de prata, brado que os colonos, pelo mau tratamento que d1spensa~a~ a~ habi-
vai coleando entre as selvas umbrosas, e corta uma planície verdejante, tantes aborígines, logo no comêço, foram o~ causadores pnne1pa1~ dessa
em cujo meio se localiza a grande fazenda de Muribeca, cercada de hostilidade. Nos primeiros tempos, a av1dez de lucros. e a sede de
vastas plantações. Em todo o redor, florestas imensas limitam o ouro aboliram todos os sentimentos humanos dos colomzad?res euro-
horizonte. Uma porção de negros, que trabalham nas plantações, olha- peus; consideravam-se animais êsses homens pardos ~ n_us, cnado~ ape-
ram com espanto para a nossa tropa, saindo da mata como uma apa- nas para trabalhar, como o demonstra a controvers1a, no do s;w
próprio clero da América espanhola, sôbre se os selvagens deVlam ou
rição do outro mundo.
Atingimos, primeiro, Gutinguti, que, juntamente com Muribeca,
não ser considerados homens como os europeus, ?e
que fal~ Az.ara,
no segundo volume de suas Viagen~. Que os ~~ns comam, as vezes,
forma a fazenda de Muribeca; pertenceu, outrora, ao lado de um os corpos dos inimigos mort<:s, conhrma~-n? vanas testemunhas de~sa
trecho da região de nove léguas de comprimento, aos jesuítas, que parte do país. O padre Joao, de S. F1déhs, assegurou-nos que, Via-
fizeram essas construções; é propriedade, agora, de quatro indiví- jando certa vez para o rio Itapemirim, encontrou na selva o corpo
duos associados. Existem aí, ainda, trezentos escravos negros, entre de um negro, morto pelos Puris, sem braços nem pe~nas, em volta d_o
os quais, porém, não há mais de cinqüenta capazes, sob a direção de qual havia uma porção de urubus. Acell:tuamos a~rma qu_e os P~r!s
um feitor, português de nascimento, que nos recebeu com muita jamais nos confessaram comer carne humana; depms _rodav1a dos 1do:
amabilidade. O trabalho é bastante árduo para os escravos; consiste neos testemunhos aduzidos, essa negativa carece de peso. Nosso Pun
principalmente em derrubar as matas. Plantam-se mandioca, milho, contou-nos, também, que a sua tribo finca num pau a cabeça dos
algodão e um pouco de café. O Itabapuana, rio pequeno, corre perto inimigos abatidos, dançando em tôrn~. Mesmo entre os Coroados ~e
de Gutinguti, e, quando enche, inunda os campos. A Corografia Minas Gerais, conforme o Sr. Freyre1ss, prevalece o costume ~e por
Brasílica chama-o errôneamente de Rerigtiba •, que é de fato, o Rene- um braço ou um pé dos inimi~os dentro de um vaso de caUl, que
vente; nasce na serra do Pico, não longe das fontes do Muriaé. é em seguida bebido pelos conv1vas. . , .
As grandes florestas das cercanias de Muribeca são habitadas por Durante a nossa estada em Muribeca, fizemos d1versos acresCI~OS
Puris nômades, que, nessas paragens e na extensão de um dia de às coleções de história natural. Não obst_ante as chuvas frequen-
jornada para o norte, se mantêm hostis. Supõe-se, não sem razão, tes, nossos caçadores aproveitaram bem as est1a_das- Nas grand~s matas
serem os mesmos que vivem amistosamente com os colonos de perto e alagadiços das margens do Itabapuana, faz mnho o pato alm1scarado
de S. Fidélis. Havia pouco, em agôsto, mês que precedera o da nossa (A nas moschata, Linn.)249, que ainda ~ão tínhamos encontrado.. Essa
visita, atacaram os rebanhos da fazenda, à margem do Itabapuana•• linda ave, que é comum ver-se domesticada na Europa, caractenz~-s~
e mataram, de maldade, trinta bois e um cavalo. Um rapazote pelas carúnculas nuas e vermelho-anegradas em redor dos olhos e ~o b1co:
negro, que tomava conta do gado, foi isolado dos companheiros arma- a plumagem é tôda negra, mais ou menos lustrada de verde e purpura,
dos, feito prisioneiro, morto, e, segundo afirmam, assado e devorado. os encontros das asas são, nas aves velhas, brancos como a neve, e pretos
Acham que êles separaram os braços, as pernas e a carne do tronco, nas novas. O macho velho é muito grande e pesado, e tem a carne
levando-os consigo; porque, pouco depois, encontraram no local a um pouco dura; os novos, porém, constituem bom prato, sendo, por
cabeça e o tronco descarnado do negrinho; porém os selvagens tinham- isso, bem-vindos ao caçador.
se internado precipitadamente pela mata. Reconheceram-se, tam- Nós, europeus, sentíamos muita dificuldade em caçar nesse~ lu_ga-
bém, as mãos e os pés, assados e roídos, e dizem que até se viam res pantanosos e silvestres, à beira do rio; mas os caçadores mdw~,
as marcas dos dentes. O feitor, que está sujeito a êsses ataques dos seminus, penetravam com muito mais facilidade nas brenhas. Tres
selvagens, tomou-se de profundo ódio, acentuando, repetidamente, que escravos negros também se ofereceram para caçar conosco; demos-
mataria de bom grado o nosso jovem Puri. "E' inconcebível", acres- lhes espingardas, pólvora e chumbo, e tôda tarde traziam certo núm~ro
centou, "que o govêrno ainda não tenha adotado medidas efetivas de animais, que eram então divididos. Entre êss~s figurava~ pn~­
para exterminar êsses brutos; se avançarmos, por pouco que seja, cipalmente garças, íbis, patos (Anas. moschata e vtduata), o Ipecu~l­
rio acima, encontraremos fatalmente seus "ranchos". ri" de Azara, ou pato de espáduas verdes, a garça real, bela espéc1e

(249) Cairina moschata (Linn.), vulgarmente "pato-do-m~to " •. "pato-bravp". ou


(* ) V. Corografia braeílica, t. 11, p. 61 . simplesmente "pato", é ainda bastante comum em certos rios do l!;ltenor do Bras1l. Foi
(**) ltsse rio aparece em diversos mapas com o nome de Comapuam; alguns 0 que verifiquei, pelo menos, em Goiás, no rio das Almas, nao longe de J araguá.
ha bitantes, ocasionalmente, o denominam Campapoana; mas o nome verdadeiro é o dado Cf. Rev. Mm. Paul., XX, p. t7.
no texto.
128 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 129

até agora mal descrita, de corpo branco-amarelado e lindo bico característicos: a cabeça e os quatro pés, negros; o corpo, cinzento-
azul*, as garças brancas grande e pequena, ambas de deslumbrante acastanhado pálido; o comprido rabo, amarelo-avermelhado. Diversos
plumagem ~ranca,_ e muitos mais 25 0. O Itabapuana, do mesmo modo, carregavam os filhotes nas costas, e cedo descobrimos que se domesti-
deu-nos vánas randades. Num passeio rio acima os Srs. Freyreiss e cavam com facilidade. Entre as aves figurava uma interessante e
Sellow se divertiram com o espetáculo de um grande bando de lontras bonita espécie de pica-pau, que eu denomino Picus melanopterus* 254 .
(Lutra brasiliensis) 251 , caçando na água, adiante dêles, sem o menor A plumagem é branca, exceto as asas, o dorso e parte do rabo, que
su~al ?e alarma. A lontra brasileira difere da dos nossos rios europeus, são pretos; os olhos são rodeados de pele glabra alaranjada.
pnnCipalmente por ter o rabo um pouco achatado, como Azara obser- Em Campos, tínhamos contratado dois caçadores, que foram man-
v~; caráter êste inexi~ten~e nos espécimes empalhados e, por isso, esque- dados à barra do Itabapuana, onde tentariam a sorte, para depois
Cido ~as obras de h1stóna natural. O pêlo é muito macio e bonito. se encontrarem conosco em Muribeca. Como o prazo que lhes déra-
Nos n~s principais do interior _d? Brasil, no S. Francisco, por exem- mos se expirara havia muito, e tivessem levado as nossas melhores
plo, atmge um tamanho prodigiOso: é aí denominada "ariranha" espingardas de caça, estávamos seriamente apreensivos com a possibi-
e nã~ lontra. Conseguimos uma dessas grandes lontras da seguint~ lidade de terem fugido. Por isso, mandamos muito em silêncio uma
~a.neua. Informa;am-nos que avantajado animal, com mãos de homem, canoa com o nosso pessoal rio abaixo, até à foz, onde os caçadores
JaZia, m?rto, na agua. Fomos ao lugar para ver que estranha cria- foram surpreendidos sem nada fazer; tiradas as espingardas, deixamo-
tura sena essa, e topamos com uma lontra colossal de cinco a seis los que fôssem embora tratar da vida.
pés de comprimento, que de fato estava morta, U:as inda bastante A viagem de Itabapuana para o norte exige alguma precaução,
fr~sca para ser aproveitada ~as nossas coleções. Não pudemos desco- porque o viajante tem que atravessar um trecho de seis a oito légu~s,
bnr a causa da morte do b1cho, de vez que não parecia haver lesão até o rio Itapemirim, em que os Puris sempre se têm mostrado host1s.
externa. Como já tivessem cometido vários assassinatos terríveis nesse distrito,
Encontraram-se também jacarés, Itabapuana acima. Nas matas achou-se conveniente estabelecer um pôsto militar, chamado Quar-
reboavam os berros do macaco roncador (Mycetes ursinus)252, seme- tel ou Destacamento das Barreiras. O feitor de Muribeca resolveu
lhant~s a_os sons de um tambor, e a voz forte e rouquenha do sauí-açu acompanhar-nos a êsse pôsto. Seguimos através de grandes matas vir-
(Callzthnx personatus, Geoffroy)253, aqui muito comum. Os caça- gens, alternadas com extensões arenosas e descampadas onde desco-
dores mataram, em pouco tempo, quatro a cinco dêsses belos maca- brimos muitos rastos de antas (Tapirus americanus) 255 e veados. Afinal,
cos; porque, ao darem com um bando, disparavam ràpidamente e perto de uma alta cruz de madeira, alcançamos a praia lisa, da qual se
carregava~ d~ nov~, enquanto um o~ mais dêles procuravam impedir avistava uma leve enseada, terminando ao longe numa língua de terra,
q~e os ammais fugissem pela galhana. O saí-açu ainda não foi des- onde se erguia o quartel, no litoral montanhoso. Como essas para-
cnto em nenhuma obra de história natural. Tem os seguintes belos gens fôssem infestadas pelos selvagens, estávamos bem armados, le em
caso de ataque teríamos vinte cargas prontas para a defesa. Vários
(*) Ardea pileata, Latham; ou "Ie Heron blanc à calotte noire".
vol. .1
9 p. 192. Buffon, Sonnini, dos nossos tinham mesmo feito cartuchos, que podiam tornar a carregar
o mais ràpidamente possível. Os soldados pertencentes ao pôsto vêm
(250) Afor~ o "ipecutiri" de Azara (Nettion brasüien,is GmeHn) e o grande ato geralmente ter com os viajantes, quando percebem, à distância, uma
<9: ~sc(~ata (Lmn.)), .as outras aves aqui especificadas por Wied 'são: a "mar~eca
vmva. end.;ocygna v1duata (Linn.)), a "garça branca" (Casmerodius albus e retta tropa avançando pela areia branca; destarte, depois de têrmos vencido
~~~ehn~~· a .farça branca pequena" (Leucophoyx thula thula (Molina)) e a "garça 11real"
do' t~f:ri~~~ P• et:otus (Boddaert)), espécie peculiar às margens lodosas' de rios e lagoas uma légua ao longo da costa, topamos com uma patrulha de seis
(~51) Pela descrição dada resu~i~amente aqui e com muito mais desenvolvimento
homens, a maior parte negros e mulatos, que o oficial do pôsto mandara
nos Be•trtige (t: II, p. 320 e ss), verifica-se que a espécie referida por Wied é efet·- vir ao nosso encontro.
vamente a "ariranha", (Pteno_ura brasil!ensis, (Zimm.)), que nos Estados meridionais
concorre com a. lontra prõpnamente dita, Lutta paranensis Rengger espécie multo Cêrca de meio-dia, chegava nossa tropa ao quartel, onde fomos
menor e de hábitos notadamente noturnos. ' muito hospitaleiramente recebidos pelo alferes comandante. í.sse pôsto
(252) Cf. nota 104.
. (25~). Call~ceb!fS personatus (E. Geoffroy). O saá, ou saf-açu (no original "Saüassú") (*) (Suplem.) AzARA, no vol. IV, pág. n, descreveu êste pica-pau sob o nome
d~via existir P!"Imibvamente. em tôda m~ta costeira do este brasileiro, do norte de de "Charpentier blanc et noir", porém, sua descrição é multo curta e superficial, de
Sao Paulo a Minas e Esp.fnto Santo; hoJe parece antes raro. O Museu Paulista dêle modo que para torná-la clara seria necessário fazer-lhe muitos acréscimos.
possu.i um. exemplar, coleciOnado em VIla Colatina no ano de 1906 por E G rb A
espécie fm uma ~a~ "descobert~" que. a !:!ilhagem do Museu de' Lisboa· pr~pi~~u a " . (254) Leuconerpes candidus (Otto, 1796). Espécie bem conhecida pelos nomes de
E. Geoffroy St. HIIa~re, p_or ocasiao da mvasao napoleônica ; sua descrição data de 1812 , Pica-pau branco", ou "birro", e cuja primeira descrição, feita por Azara, tinha já servido
já sendo portanto conhecida ao tempo em que Wied escreveu 0 relato de sua .,.
viagem. ,.,.ande de base a Picus candidus Otto, publicado em 1772, na edição alemã da História Natural
de Buffon. Tornou-se, depois, o tipo do gênero L euconerpes Swainson.
A êle se deve, contudo, a primeira noticia sôbre o animal vivo e em seu habitat
natural. Cf. Beitrtige, li p. 107.
(255) Tapirus terrestris (Linn. 1758) , com a retificação atual da nomenclatura, à
luz das regras de prioridade.
DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 131
130 VIAGEM AO BRASIL

da mata são astuciosos e destros, e sabem perteitamente . de todos


militar é constituído de um oficial e vinte praças armadas de carabina, os pont~s fracos dos colonos portuguêses, cuja língua mUitos dêles
sem baioneta. Numa eminência, sobranceiras ao mar, construíram
duas casas de barro e plantaram um pouco de mandioca e de milho, falam um pouco.
No dia da nossa chegada ao pôsto, percorremos as matas. e os
para a subsistência dos soldados. A costa sobe, nesse ponto, em ribancei- alagadiços vizinhos, acompanhados e guiados pelos sol~ados. Toda a
ras de argila, altas e perpendiculares barreiras, em cujo tôpo fica o nossa prêsa consistiu em algumas marrecas (An_as vzd~ata) e n~m
quartel; dêste se descortina, por isso, um amplo panorama do oceano, interessante pássaro novo para nós, pe_rtence~te a famiha das c~tzn-
para o norte e para o sul do litoral, onde as tropas dos viajantes são +256 Nadando próximo à costa, CUJaS pra1as procuram na pnma-
vistas a grande distância. '
~~:a, ~iam-se as grandes tartarugas marinh_as soerguendo lenta~ente,
Na terra, as construções do destacamento são compactamente cer- acima d'água, as cabeçorras redondas._ A n01te, desencadeou-se viOlenta
cadas por sombria floresta secular, em que já se havia começado a fazer tempestade e choveu a cântaros; razao por que o teto esburacado do
roç~dos. Em agôsto, dois meses, portanto, antes da nossa chegada, os nosso abrigo de pouco nos valeu.
Puns se aventuraram a atacar o pôsto. Vieram com o propósito de No escuro dia que se seguiu, tivemos o desagradável contrat:mpo
saquear as plantações dos soldados; e lançaram-se à emprêsa, abrigados de encontrar completamente desleixada, sem pontes nem cammhos
pelas árvores e pelas moitas; um soldado e dois cães ficaram feridos; transitáveis, a única rota ao longo da cost~. Perto dos casebres do
mas os Puris perderam três homens, mortos ou feridos, que foram "quartel", há um lugar onde estivemos a piq~e. de perder ~lguns dos
levados pelos companheiros. Desde então, o pôsto tem estado tran- nossos melhores burros- Tendo ainda que viapr quatro leguas _p~lo
qüilo, e os selvagens não apareceram mais nesse pedaço da costa. O distrito assolado pelos Puris, entre os rios Itabapuana e ltapem1nm,
quartel conserva como troféus as setas tomadas aos tapuias. tomamos a precaução de caminhar em grupo comp_acto, e avanç~mos
O oficial comandante mantém uma guarda permanente de três lentamente, sob escolta, através de uma pl~íCle arenosa, hrme
homens na embocadura do rio Itabapuana. Esse destacamento se e perfeitamente horizontal, acompanhando as mgremes encostas do
e~tabelece aí por prazo indeterminado, e já tem dado serviço durante litoral formadas de argila branca, amarela ou castanho-avermelha-
cerca de um ano; bem penoso deve ser, sem dúvida, morar nesses da••, 'e de camadas de arenito ferruginoso. • ·-
ermos, em que até as provisões são miseráveis, e onde só há case- As barrancas e a parte alta da costa são em toda a reg1ao coberta
bres de barro, cobertos de fôlhas de palmeira. A casa do oficial é, de florestas, em que ninguém se aventura a penetrar, po~ causa _dos
na ve~dade, espaçosa, contém vários quartos, mobiliados com trastes de selvagens; do nosso lado, nada tínhamos que recear, possUiamos vmte
maderra; mas o teto está tão arruinado, que deixa entrar a chuva. peças prontas para recebê-los, e, no entanto, a n~ssa gente c_on~em­
A construção do pôsto foi resolvida depois do massacre de seis pes- plou horrorizada o local onde os selvagens espostejaram as se~s mfe-
soas em lugar próximo da praia. Seis anos atrás, mais ou menos, lizes vítimas. Em poucas horas chegamos, num trecho barxo • da
sete pessoas voltavam de ltapemirim, a cuja igreja tinham ido, quando costa, à povoação de Siri, agora i?-teiramente ab~n?onada. ~m agosto
foram atacadas pelos Puris, salvando-se, de todo o grupo, apenas um último os Puris ou outros tapUiaS, atacaram subitamente esse lugar,
homem. Uma rapariga, que fugira ao primeiro assalto, foi perseguida matara~ três p~ssoas na primeira casa, e espalharam tal pavor, qw;
e cruelmente assassinada. Encontraram-se depois os corpos, com os todos os habitantes fugiram sem demora; ~penas duas casas, para la
braç?s e as pe_rnas arrancados, e o tronco descarnado. Logo em de uma pequena lagoa, estavam ainda habitadas, porque seus mora-
seguida, os Puns c_al?turaram um soldado nas cercanias e igualmente dores, bem armados, se consideravam em segura~ç~. Os selvagens
? mataram. O ofiCial comandante do Quartel das Barreiras deu-nos carregaram todos os utensílios de ferro e as provis.oes que puderam
mteressantes informações a respeito dos Puris. Assegurou-nos que, encontrar, retirando-se depois para a mata. Após esse assalto, o sar-
presente~ente, êsses s~lv~gens desejavam viver em boa paz com os
(* ) Procnias melanocephalus; cabeça negra, !ris vermelho-cinâbrio; tôdas as ~a[tes
portugueses;. o que co~n~I?e exatamente com os desejos manifestados superiores são da côr verde do pintarroxo; as Inferiores, verde-!lmarelado, com a xas
ao ~r. Morais, de S. Fidehs. Tal sol~ção seri~ muito vantajosa para transversais mais escuras; 8 polegadas e sete linhas de compru~~e'?to.
(**) De acôrdo com a anâllse do professor Hausmann de Gottmgen, esse

f
.. 6 .1"
ss1
o litoral; porque, achando-se os habitantes d1spersos, estão constan- que é um componente fundamental de grande parte da costa do Brasil, es~. e~dre ~
Utomargas duras, de que é também exemplo " Wunder-Erde " da Saxônia. omc e e
temente expostos aos cruéis ataques dêsses desalmados bárbaros e todos os caracterlstlcos com a lltomarga.
a região corre perigo de tornar-se deserta, a menos que sejam to:Ua-
(256) Como se conclui da nota acrescentada pelo autor, trata-se do " ~orocochó "
d~s. outras medidas. Os selvagens, senhores das florestas, surgem de (Ampelion melanocephalus (Wied) ) , ave encontradlça nas matas densas do Bra~ oriental,
sublto ora num or~ noutro ponto! _e somem tão depressa quanto desde a Bahia até São Paulo. Pela minha viagem ao Rio Jucurucu, vi-o ce a vez em
numeroso bando, numa ârvore de cujos frutos estavam a regalar-se.
aparecem, como se vm no ataque a S1n; conhecem os menores recantos
132 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 133
gento-mor de ltapemirim, com cinqüenta homens armados, fêz uma quase transbordou: aliás, tem sempre correnteza maior que o Itaba-
"entrada" na mataria em busca dos Puris. Descobriu um largo caminho, puana. As montanhas donde desce se vêem a grande distância, com
bom para os cavaleiros, que levava a alguns ranchos e, daí, mais para os picos nitidamente recortados: conhecem-se por Serra de !tape-
o interior; não encontrou, porém, nenhum índio, e em breve teve de mirim. São famosas pelos trabalhos de faiscação de ouro, outrora
regressar, por falta de provisões. estabelecidos nas cercanias, no lugar chamado Minas de Castelo 260 ,
Para lá da lagoa de Siri, nas casas acima referidas, os quatro cinco dias de jornada rio acima. O distrito era, entretanto, tão asso-
soldados despediram-se de nós. Afastamo-nos do mar e entramos numa lado pelos tapuias que os poucos colonos portuguêses o abandonaram
bela mata, topando aqui e ali plantações. Estas também se acham há cêrca de trinta anos atrás, e foram morar na vila e arredores. A
sujeitas aos ataques dos selvagens, mas os moradores estão suficien- região do alto Itapemirim é habitada pelas hordas bravias dos tapuias,
temente armados. À proporção que avançávamos, a floresta se tor- sobretudo pelos Puris e, como os mineiros asseveram, por outra tribo
nava cada vez mais bela, fechada e altaneira; os troncos compridos e selvagem, que apelidam de Maracás. O massacre de Siri é atribuído
esguios formavam uma sombria trama, de modo que o caminho, coberto a êstes últimos. Os Botocudos, porém, que são os verdadeiros tiranos
de todos os lados, parecia um túnel estreito e escuro. Vimos muitos dêsses ermos, ainda fazem grandes incursões rio abaixo. Conta-se
gaviões, sobretudo o Falco plumbeus) Linn. 257, bastante comum nessas que, pouco depois de terem ouvido os moradores de uma fazenda
paragens, pousados nas cumeadas da galharia sêca de sobranceiras situada à margem do rio Muriaé, um barulho e um clamor intenso
árvores seculares, à espreita da prêsa. O milhafre branco de rabo vindos da floresta próxima, alguns Puris feridos apareceram e pedi-
bifurcado (Falco furcatus) Linn.) 258, uma das mais belas aves de rapina ram proteção aos portuguêses, dizendo que os botocudos haviam ata-
dessa região, planava constantemente acima da selva magnífica. Tería- cado e matado muitos de sua gente. Por todos êsses fatos, é evidente
mos gostado imensamente de caçar aí, não fôsse a multidão importuna que essas florestas estão cheias de selvagens independentes e hostis.
de mosquitos: rostos e mãos ficaram imediatamente cobertos de picadas, Acusam os tapuias de terem assassinado quarenta e três colonos portu-
e os cavalos e burros eram torturados pelas mutucas•259. Cedo atin- guêses do Itapemirim, no espaço de quinze anos. Apesar de tudo,
gimos terrenos escampos, onde os charcos e as lagoas estavam cheios abriu-se uma estrada através dessas perigosas solidões, indo de Minas
de marrecos, gaivotas e garças- Ao meio-dia, mais ou menos, chegamos de Castelo à fronteira de Minas Gerais, num percurso de perto de
ao rio Itapemirim, em cuja margem sul fica a vila do mesmo nome. vinte e duas léguas.
Está a sete léguas de Muribeca••, num local recentemente edificado, O capitão-mor do distrito recebeu-nos amàvelmente, após lhe
e possui algumas boas construções, não podendo, porém, ser conside- têrmos apresentado os passaportes; mandou para nossa casa
rada mais que uma vila. Os habitantes são ou agricultores pobres, abundantes provisões, lenha, água e outras necessidades, razão por
cujas plantações ficam nas vizinhanças, ou pescadores, além de poucos que lhe fomos agradecer pessoalmente, em sua fazenda. Esta casa
artífices. O capitão comandante, ou capitão-mor, do distrito de Ita- de campo fica à beira do rio, rodeada de belas pastagens, onde se via
p~mirim resi~e geralmente na própria fazenda, que não é longe da
grande quantidade de gado.
VIla; nesta vive um sargento-mor da milícia. O rio, no qual se viam
alguns pequenos brigues ancorados, é muito estreito, mas comporta Deixamos êsse lugar depois de alguns dias de permanência. À
certo comércio de produtos das plantações, como açúcar, algodão, pequena distância da vila, atravessamos o rio, perto do local em que
arroz, ~lho e madeira das florestas. Um temporal, que desabou na desemboca no mar. Nos alagadiços da região, encontramos freqüente-
serra, vew mostrar-nos quão rápida e perigosamente sobem as águas mente a ]atropha urens26I, muito mais dolorosa para os pés dos nos-
na zona tórrida; porque o rio se tornou logo tão caudaloso, que sos caçadores que as urtigas (Urtica) mais causticantes, por isso que
os seus pêlos picam mesmo através das roupas. Nas baixadas pan-
( *) SouTHEY, op. cit., escreve "mutuça ". V oi. I, p. 618. tanosas e à margem dos rios, ao longo de tôda a costa, o lindo tié 262
(**) Já LÉRv, à pág. 45 de sua viagem, cita esta região com o nome de Tapemirim. côr-de-sangue (Tanagra brasilia) Linn.) é muito comum; pelo contrá-
(257) Cf. nota I94. rio, nas montanhas e nas grandes florestas do interior, encontra-se bem
(258) Cf. nota 192 . mais raramente. Na foz do Itapemirim, vimos bandos enormes de
. (259) As mutucas são môscas. picantes e hematófagas, subordinadas à numerosa
famil1a dos Tabânidas, de que mais de 2. 000 espécies já foram descritas nos dois
hemisférios. De seu estudo foi pio!leiro e!ltre nós Adolfo Lutz, que sôbre eia publicou (260) Com o nome de Castelo é hoje ponto terminal de ramal férreo e dista
em I909 extenso trabalho na conhecida reV1sta alemã Zoologische Jahrbucher (suplem. X, 38 quHôm. de Cachoeira do Itapemlrbn.
fase. 4), de que os dados a lume nas Memória& do Instituto Oswaldo Cruz do Rio
de Janeiro ~ão a natural contlnuaçã_o. Com relaçfio especialmente às espécies encon- (26I) Vulgarmente "cansanção". E' a mais violenta das plantas urticantes indígenas
tradas no R10 de Janeiro e no Espinto Santo, publicou o mesmo autor em colaboração e muito comum nos Estados setentrionais.
com Artur Neiva, importante trabalho (cf. Mem. Inst. Osw. Cruz, I, n.o' 1, p. 28, 1909). (262) No original "Tijé".
134 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 135

uma espécie de gaivota (Larus), assim como inúmeras andorinhas-do- e cujas flôres pendem de hastes que, a certa altura, se ar9ueiam p_ara
mar (Sterna). Batuíras (Charadrius) e maçaricos (Tringa) animavam baixo, e depois, na ponta, novamente se voltam para Cima; mUitas
o litoral, onde encontramos, na areia, em grande quantidade, pequeno flôres, de bainhas escarlates, cobrem a parte recurva elo pedúnculo,
curiango (Caprimulgus)• 2 63 e, na mata próxima, uma espécie maior que também possui belo matiz. :tsse esplêndido arbusto forma um
dêsse mesmo gênero. De acôrdo com Marcgrave, os brasileiros, nas verdadeiro caramanchão. A praia, nesse trecho, deu-nos algumas con-
circunjacências de Pernambuco, chamam êsses pássaros de "ibijau" 264 ; chas bivalvas e caracóis.
entretanto, no trecho litorâneo que visitei, são conhecidos por "ba- Passamos, perto ele Agá, pela povoação ele Piúma, ou Ipiúma,
curau". O calor era intenso e tínhamos muita sêde, que o nosso jovem onde um riacho do mesmo nome, navegável apenas por canoas, desá-
Puri ensinou a mitigar de maneira infalível. Arrancam-se as duras gua no mar. Existe, nesse lugar, uma ponte de madeira ele trezentos
fôlhas centrais das bromélias em cujos cantos se coleciona a água da passos de comprimento, assentada no ponto de maior ~argura do
chuva e do orvalho; e êsse néctar é sorvido levando-se ràpidamente riacho verdadeira raridade nessas paragens. As margens sao cobertas
a fôlha à bôca. de vegetação densa, e a água escura, côr de café, como a maioria
Nos pontos salientes da costa, encontramos nesse dia colinas pedre- dos córregos da mata e dos pequenos rios da região. Humboldt obser-
gosas, onde se erguiam numerosos coqueiros silvestres, cujas soberbas vou o mesmo com o Atabapo, o Temi, o Tuamini, o Guainia (rio
palmas ondeavam à fresca viração. O papa-ostras (Haematopus) era Negro) e outros rios. Na sua opinião, tiram esta côr s~rpreendente ~e
comum em tôda parte, bem como as batuíras e os maçaricos. Numa uma solução de hidrogênio carbonado, da exuberânCia de vegetaçao
bela floresta secular, divertimo-nos imensamente ouvindo os cantos for- dos trópicos e da grande quantidade de matéria vegetal impregnando
tes de vários pássaros, aos quais, ao cair da tarde, se veio juntar o o leito em que correm•.
de uma coruja; papagaios vozeavam em alarido, e o doce chamado Quando atravessávamos a ponte, os índios apareceram, de rosto_s
do juó (Tinamus) sobressaía no tumultuoso concêrto, repercutindo bruno-escuros característicos, curiosos de verem os estranhos. Um man-
longe, pelas solidões imensas. Alojamo-nos, nessa noite, na fazenda nheiro espanhol aí estabelecido fêz as vêzes de hospedeiro, dirigiu-se
de Agá, onde se cultiva mandioca, algodão e café. Matas extensas, imediatamente a nós em várias línguas, que manejava em parte, falou-
repletas de tôda espécie de animais ferozes, acompanhavam as planta- nos de todos os países que visitara, e mostrou-se convicto de q:'e
ções do lado do continente. Na noite anterior, uma grande onça éramos inglêses. Nos vales e mesmo em lugares elevados e secos, sao
("yaguarété") Felis onca, Linn. matara uma égua pertencente ao pro- comuns as touceiras de uma espécie alentada de cana, alta de dezes-
prietário, cujos caçadores, seguidos de seus cães, a procuraram em vão seis a dezoito pés, e de cujo caule UJ:? ~ouco compri~ido sai um
nas selvas vizinhas. Perto da fazenda, alta montanha arredondada e formoso leque de fôlhas lanceoladas e mte1ras; estas ma1s ou menos
solitária, chamada Morro de Agá, levanta-se dentre as florestas cir- se implantam num ponto único, subindo do meio delas uma lon_ga
cunjacentes. Formam-na rochas e precipícios nus e escarpados, e é haste, a que as flôres estão prêsas como pequenos pendões- Essa bomta
rodeada de elevadas colinas; do cimo deve-se descortinar magnífico espécie de cana é aí conhecida por "ubá", e mais para o norte, no
panorama. Próximo das habitações, descobri um pequeno charco, Rio Grande de Belmonte, por "cana brava" 266 , servindo aos selvagens
onde, pelo crepúsculo, ouvi, espantado, o notável coaxar de uma rã para a confecção de flechas. As touceiras formam massas impenetrá-
até então desconhecida para mim: soava exatamente como o martelo veis e cobrem regiões inteiras.
do funileiro ou do caldeireiro; apenas o som era mais profundo e Num pequeno vale aprazível encontr~mos um cerrado de árvores
cheio. Só muito depois conheci melhor êsse animal que os portuguêses imponentes e frondosas, tais como Cecropza, Cocos, Melastoma; entre
apelidam de "ferreiro" 265 devido ao coaxar. Outra curiosidade foi elas corre o escuro riacho Iriri, atravessado por uma pitoresca
uma densa moita de certa variedade de Heliconia, que ainda não vira; ponte feita de troncos. Tucanos e maitacas (Psittacus menstruus,
( *) Talvez aquêle a que VIEILLOT deu o nome de Caprimul{lua popetué em sua
(*) A nsichten der Natur, I, p. 298.
" Histoire naturelle des oiseaux de l'Amerique Septentr., vol. I, tab. 24".

(263 ) Nos Beitrage (III, p. 881 ) êste curiango é descrito como Capri mu lgus semitor- (266) Não tenho dúvida de que a esta grande gramínea, multo comum nas mar-
quatus Gmelln. Trata-se, não obstante, de uma subespécie particular, hoje corretamente gens dos rios da costa a tlântica, se deve a freqüência com que se encontra a palavra
nomeada Lurocalis semitorquatus nattereri (Temm.) . "ubatuba" na toponlmia indígena. A "cana brava" (G1/nerium parviflorum Nees d ' Esenb.)
recebe ainda hoje Inúmeras aplicações por parte das populações praieiras do norte, e
(264) "Ibiyau " no texto alemão. especialmente do Recôncavo baiano. Afora o emprêgo do raque das inflorescênclas como
(265) A espécie, com o nome de Hyla faber, vem minuciosamente descrita por vara de pescar, de seu côlmo fazem-se tira s longas, resistentes e flexlveis , usadas à
Wied em Beitrtige, vol. I, p. 519 e ss. Posteriormente, E. GoELDI observou-lhe os curiosos guisa de vime na construção de balaios, cestas e armadilhas de pesca, das quais é
hábitos de nidilicação, publicando a respeito importante artigo, nos Proceedings of I particularmente característica a que denominam " munzuá" , figurada no relatório da
Zoologi cal Society de Londres (1895, p. 89). excursão que fiz àquela zona. ct. Re1J. Mua. Paul., XIX, p. 25 e estampa.
136 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 137

Linn.) 2 67 eram comuns, e foram abatidos pelos nossos caçadores. Os comércio, e aquêles navi~s ape~as se . ab;i~ava~ do. v~nt? desfa-
macacos pulavam tão àgilmente entre os galhos das árvores, que era vorável. Os jesuítas reumram ai, a pnnCipl~, seis mil mdws, fun-
impossível atingi-los. No ôco de um velho tronco descobrimos uma dando a maior aldeia dessa costa. A mawna, entretanto, abando-
gigantesca aranha caranguejeira 268 , que tencionávamos capturar depois nou-a por causa do duro trabalho exigido pela coroa, e devido à
de nos têrmos alojado, coisa, porém, que não pudemos pôr em prática. maneira tirânica por que eram tratados; espalharam-s~ po~ outras
Cavalgamos por uma região montanhosa, com matas e campos alter- paragens, de modo que tod~ di~trito ?e VIla No~a, mclumdo ~s
nados, e chegamos, à tarde, a uma última elevação, à beira do rio colonos portuguêses, não possm mais de Oitocentos t:_abitantes, dos q~ats
Benevente, donde súbito descortinamos formoso panorama. Ao pé de cêrca de seiscentos são índios. Embora a populaçao tenha decrescido
uma colina, na margem norte, víamos uma povoação, a Vila Nova tanto o comércio aumentou desde então. Com efeito, as exportações,
de Benevente; à direita, o espelho azul do oceano, e, à esquerda, o há apenas vinte anos atrás, não excediam de 100.000 réis, ao, passo que
rio Benevente, que se espraia como um lago; em derredor, soberbas atualmente subiram a 2.000 cruzados, só para o total de açucar expor-
e sombrias matas e, atrás destas, montanhas rochosas fechando o tado. Outrora, os selvagens livres perseguiram terrivelmente essa colô-
horizonte. nia de Iritiba, máxime os Goitacás e as tribos dos tapuias, dêstes
Vila Nova de Benevente foi fundada, à margem do rio Iritiba, ou sobretudo os Puris e os Maracás; o padre, porém, assegurou-nos que
melhor, Reritigba* 269 , pelos jesuítas, que aí reuniram grande número essas hordas selvagens nunca mais apareceram, desde que se começou
de índios convertidos. A igreja dêles e o convento contíguo ainda a celebrar, anualmente, em honra ao Espírito Santo, uma grande festa,
existem; êste, que nos serviu de pouso, é utilizado atualmente como com procissões e cerimônias religiosas.
casa da Câmara. Fica numa eminência sobranceira à vila, de cuja Vila Nova, propriamente, é um lugar pequeno, com algumas boas
sacada, no lado norte, se avista deliciosa paisagem. O sol mergu- casas, mas anima-se aos domingos, porque os moradores dos arredores
lhava no oceano azul-escuro que se estendia à nossa frente, transfor- vão aí assistir à missa. O capitão da milícia, que comanda êsse
mando-lhe a imensa superfície num mar de fogo. Os sinos bateram distrito, pertence ao regimento d~ E~pírito ~ant~,. cujo chefe é o ~oro­
a Ave-Maria, e, escutando-os, todos se descobriram para fazer as suas nel Falcão, comandante da Capitama. Vew visitar-.nos no dommgo
orações. Reinava o silêncio na vasta planície, apenas a voz do Tina- e, COJDO lhe pedíssemos bons caçadores, teve a gentileza de mandar-
mus210 e de outros animais da mata quebravam a solene quietude da nos alguns homens conhecedores da região; além dêsses, cont~ata­
cena noturna. mos um índio que era ótimo caçador. ~sses .homens conseg~Iram
Vimos diversos pequenos brigues ancorados no pôrto de Vila Nova, vários animais interessantes, entre os quais muitos macacos sai-açu,
o que nos levou a pensar, errôneamente, num grande comércio local: cuja alta voz se ouve freqüentemente nas margens do rio. Dois dos
cedo, porém, convencemo-nos do nosso engano. Há muito pouco caçadores encontraram, na floresta, uma grande cobra venenosa. Es-
tava imóvel num ôco de árvore, onde era difícil capturá-la; por isso,
. (*)_No mapa .de Faden, o rio é chamado "Iritibu", no de Arrowsmith, "Iritiba": um dêles subiu a uma árvore baixa e daí matou-a. Essa bonita cobra
a VIla nao está registrada em nenhum dêsses mapas.
é denominada "surucucu" na região, e atinge 8 a 9 pés de comprimento
. (267) Pionus menstruus (Linné. I766). Em que pese a Incerteza de alguns ornito- e considerável grossura; tem a côr amarelo-avermelhada, com um
logistas~ como Salvador! (Catal. Birds of the Brit. Mus., XX, p. 822), a clareza de
descriçao de Wied em Beitrtioe (IV, p. 237 e ss.) não deixa dúvida sôbre a identidade rosário de manchas losangonais no dorso. A forma dos escudos, das
da espécie, que outra não é senão a batizada Psittacus menstruus por Llnné com
b~se nas descrições de Brlsson (I760) e Edwards (I764). São dela, inequlvoca~ente, escamas e do rabo mostra que se trata da grande víbo~a das florestas
nao só o tamanho menor ("die Kleine Maitakka "), como também as características de Caiena e Surinan, descrita, se bem que um pouco mcorretamente,
sumariadas na diagnose pelo príncipe, entre as quais a côr azul..:eleste da cabeça, pescoço
e peito ("Kopf, Hals and Brusthimmelblau"), e ainda a tinta amarelada, ou vermelha, por Daudin, sob o nome de Lachesis* 21 I. Sua picada é muito. temida,
da base da maxila superior ("Sei te der oberen Schnabelwurzel oft geblich oder auch
helbroth "). Ornitologista consumado, soube muito bem Wied distingui-Ia da espécie dizendo-se que as pessoas mordidas morrem em menos de seis horas.
maior ("die grosse Maitakka"), de cabeça verde e bico pardo-amarelado (sem vermelho),
que ~orçosamen.te . encontrara também com freqüência no decurso da viagem, e aparece (*) Marcgrave menciona êsse réptil co~ o ,no!ne de "c~~ucucu"; nos últimos ~empos
descnta em Bettrtioe (IV, p. 245) sob o nome que lhe dera Splx de Psittacus flavirostris só o Conselheiro Merrem, um dos nossos mais distmtos repbhólogos, descreveu e figur<~u
posterior todavia a Psittacus maximiliani Kuhl, I820. ' uma pele Incompleta dêste animal nos " Annaeen da Wetterauischen Gesellschaft fur
(268) Cf. nota 84. Naturgescbichte ".
(26~) Em Reritiba, qu~ na llngua dos tupis significa ostreira, viveu seus últimos
dias ~ ab faleceu (em 9 de Julho de I597) o padre José de Anchieta, motivo pelo qual (27I) A suposição de Wied é de todo procedente, constituído hoje .o surucucu (no
n anbg~ Benevente passou a chamar-se Anchieta, em homenagem ao grande missionário. original " Curucucu ") a única espécie (L. ntuta, (Linn.)) •. do gênero Laches•s Daud., caindo
Cf. Cap~strano de Abreu, in "0 Jornal" (do Rio de Janeiro) de SI de agôsto de I927 em sua sinonímia Lachesis •·hombeata Wied, I 825, Bettr., I, p. 449. ,
(transcrito nas Cartas etc. do Pe. J. de Anchieta, S. J ., ecl. pa troc. pela Acad. Brasil. Também, das nossas cobras venenosas nenhuma se lhe avantaja em tamanho. .E
d e Letras, e anotada por Antônio de Alcântara Machado, I988). ovípara, ao contrário do que acontece com as serpentes do gênero Bothrops Wagl.,_ CUJaS
• (270) Re~ere-se aqui Wied, sem a menor dúvida, ao tantas vêzes citado jaó (que numerosas espécies, como a "jararaca", 0 "jaracuçu ", o "urutu ", etc.. sao ovovtvtparas.
e 1e sempre ouvir~ chamar "juó", como se diz ainda em certos rincões), ou "zabelê", Cf. AFRÂNIO no AMARAL, Rev. Mus. Paul., XV, p. 43 (I927); idem, In Cartas, etc.112de
CNJpturellus nocttvaous (Wied). Padre Anchieta, Rio de Janeiro, I93S, ediç. da Acad. Bras. de Letras, P· 135 (nota )·
138 VIAGEM AO BRASIL DE S. SALVADOR AO RIO ESPÍRITO SANTO 139

Seguindo de Iritiba, chegamos primeiro ao rio Guaraparim. Cam- casa de situação um pouco alta, onde apareceram imediata-
pos alagadiços e lamaçais se sucedem próximo à praia litorânea, alter- mente diversas p~ssoas, olhando com grande admiração para o
nando com pequenas moitas, ao lado dos quais, às vêzes se juntam, nosso índio pun, e acompanhando-lhe todos os movimentos.
para deleitar o viandante, trechos de mata virgem. Ouvíamos conti- Fomos bem recebidos nessa casa, que era espaçosa e tinha um amplo
nuamente o rugido do oceano, cujo litoral montanhoso era coberto aposento, onde em pouco um fogo vivo secava-nos as roupas, comple-
de matas. As ramarias tapavam o caminho escuro; orlavam-no árvo- tamente encharcadas pela chuva. Perto de Miaipé, fica a vila de Gua-
res majestosas e seculares, que tinham os troncos cobertos de um raparim275, aonde se vai ter por um caminho sôbre montes rochosos,
mundo de plantas, e os galhos, de fungos e liquens; coqueiros novos, que entram pelo mar. Próximo da vila, um braço de mar, de água
embaixo, se entrelaçavam com trepadeiras, cuja tenra folhagem, de salgada, corre para o interior; é chamado Guaraparim, e muitas vêzes
lindos matizes vermelhos e verde-brilhante, despontava; ao passo que, se fala dêle como de um rio-
muito acima de nossas cabeças, o penacho das comas de velhas pal- A vila tem cêrca de I . 600 habitantes, sendo, portanto, um tanto
meiras ondeavam no espaço, e os estipes se curvavam, estalando, para maior que a Vila Nova de Benevente: o distrito inteiro contém mais
a frente e para trás. Em certo ponto, encontrei um bosque admirá- ou menos três mil almas. As ruas não são pavimentadas, tendo ape-
vel, composto exclusivamente de palmeiras airi. Arvores novas e nas medíocres calçadas junto das casas, que são pequenas e quase
vigorosas dessa espécie, de 20 a 30 pés de altura, erguem os caules tôdas de um só andar. O lugar é, de modo geral, pobre; na vizinhança,
eretos e pardo-escuros, rodeados de anéis de espinhos; as belas palmas porém, existem grandes fazendas. Uma delas, com quatrocentos escravos
protegem o chão úmido do sol abrasador do meio-dia; enquanto outras negros, é denominada Fazenda de Campos, e outra, com duzentos negros,
mais novas, ainda sem caule formado, constituem a vegetação rasteira, Engenho Velho. Quando o último proprietário daquela morreu, sobre-
sôbre a qual se abatem, como colunas partidas, velhas pa!J;neiras sêcas veio uma desordem geral: os escravos se revoltaram e cessaram o tra-
e mortas. Em cima dessas árvores, votadas à destruição, trabalha balho. Um padre informou aos herdeiros em Portugal, do estado de
o solitário pica-pau de topête amarelo (Picus flavescens, Linn.), ou a ruína da propriedade, e ofereceu-se para restaurar a ordem, se lhe
bonita espécie de cabeça e pescoço vermelhos (Picus robustus)• 2 1 2 • dessem uma parte na fazenda. Assim se combinou; mas os cabeças
Perto de nós, a flor da Heliconia côr de fogo enfeitava as moitas dos escravos mataram-no na cama, armaram-se e formaram, nessas flo-
baixas, nas quais se enroscava um lindo Convolvulus de admiráveis flô- restas, uma república negra, que não foi fácil submeter. Tomaram
res azuis campanuliformes. Nessa magnífica floresta, as trepadeiras posse da fazenda, viviam livres sem trabalhar muito, e caçavam no
lenhosas mostram-se em tôda a originalidade, com formas e curvaturas mato. Ao mesmo tempo, os escravos da fazenda Engenho Velho tam-
singulares. Contemplávamos embevecidos êsse êrmo sublime, animado bém se libertaram, e uma companhia de soldados nada pôde
somente pelos tucanos, pelos pavós (Pie à gorge ensanglantée, Azara)27a, contra êles. :Esses negros se ocupam, sobretudo, em colhêr alguns
papagaios e outras aves. Nossos caçadores agiam em tôdas as direções dos principais produtos das matas, como sejam o odorífero bál-
e encheram as bôlsas de caça. Alcançamos, além dessa floresta, a samo do Peru, o óleo de copaíba e outro de espécie diferente.
povoação de Obu, constituída de algumas cabanas de pescadores, a :Este último se extrai de uma grande árvore, o "pau de óleo" 276 . Faz-se
duas léguas de Vila Nova. Essas habitações, à sombra de florestas nela uma incisão, e, quando a seiva escorre, enche-se o corte com
ou de densos cerrados, são geralmente mais pitorescas do que algodão, que se impregna da matéria resinosa: é crença geral que a
as situadas em lugares escampos. Uma povoação (vila sem igreja) incisão deve ser feita na lua cheia, e o óleo colhido no quarto min-
denominada Miaipé 274, ocupada por sessenta ou oitenta famílias guante. Os negros ou índios, que extraem êsse produto, vendem-no
de pescadores, abrigou a nossa tropa pelo escurecer. Alojamo-nos numa dentro da casca de pequenos côcos silvestres, cuja abertura, em cima,
é tapada com cêra. O bálsamo é tão sutil, que no tempo quente
(* ) ~sse nome foi dado pelos naturalistas de Berlim, depois que Azara descreveu
a ave no 4.• vol. de suas Viagens, p. 6, onde o chama de "Charpentler à huppe et se escapa através da casca espêssa. Atribuem-lhe, na região nativa,
cou rouges". maiores virtudes do que as que possui realmente•.
(272) (Celeu& flavescens Gmelln), de que há no Brasil pelo menos três raças e ( *) Vide MURHAY, Apparatus medicaminum, vol. IV, p. 52.
(Phloeoceastes robustus (Lichtenstein)), são os nomes atuais das espécies citadas. Cf.
Ouv. PINTO, R ev. !Jfus. Paul., XIX, p. 166 (1985). (275) Fica essa pitoresca localidade, que conheço por t ê-la visitado em missão
(278) O "pavó " (Pyroderus scutatus scutatus (Shaw)), de plumagem negra com um naturallstica pelos fins de 1942 (10 a 20 de outubro), numa concavidade do litoral
escudo vermelho no peito, é um grande pássaro fruglvoro, da famllla dos Cotlngldas, a cêrca de 70 quilômetros ao sul de Vitória, muitos de cujos moradores a procuram
encontradiço em tôdas as matas do Brasil este-meridional, do Rio Grande do Sul à Bahia. em suas vileglaturas. O significado etimológico de Guaraparim (que hoje pronun-
Possui voz cavernosa e caracterlstica, que dá ao ouvinte a impressão das batidas ciam Guarapari), seria armadilha (ou laço) para guarás (garças, provàvelmente) o que
de um monjolo, trabalhando ao longe (Cf. 0Liv. PINTo, Rev . Mus. Paul ., XIX, p. 288). é indicio de que devia ser bastante freqüentada pelas aves em que~tão. . ..
(274) " MiaYpé " no texto original. Povoação marítima, situada 6 quilôm. ao sul de (276) Várias Cesalpináceas do gênero Copaifera (C. officinaZ.s, Ltn., langsdorffu
Guaraparim. Desf. etc.) têm na llngua vulgar os nomes de "pau-de-óleo", "copalba", etc.
140 VIAGEM AO BRASIL

Os rebeldes negros das duas fazendas acima referidas recebem os


forasteiros de maneira amigável, e, nesse particular, são muito dife-
rentes dos escravos fugidos de Minas Gerais e outros lugares, que
se chamam "gaiambolos", devido às suas aldeias ("quilombos"), nas
florestas- Atacam êstes os viajantes, saqueiam e muitas vêzes matam; VII
razão pela qual existem aí caçadores de gaiambolos, chamados "capi-
tães do mato"*, cuja única tarefa é caçar os negros em seus refúgios,
ou matá-los.
O capitão da milícia de Guaraparim recebeu-nos polidamente e ESTADA NA CAPITANIA E VIAGEM
indicou-nos uma casa para passarmos a noite. No dia seguinte atraves- AO RIO DOCE
samos o rio, não longe da vila. Serpeia êle, pitorescamente, entre
mangues (Conocarpus) de um verde suave, e é limitado, à distância,
por verdejantes colinas: na margem norte há uma vila habitada por pes- Vila Velha do Espírito Santo - Cidade d~ Vitória
cadores. Cavalgamos através de grandes charcos, cheios de moitas Barra de ]ucu - Araçatiba - Coroaba - Vtla J.fova
da linda Rhexia de flôres violetas, e por belas colinas silvestres cober- de Almeida - Quartel do Riacho - Rio Doce - Lmha-
tas de airi e outros coqueiros, muitos dos quais foram motivo de res - Os Botocudos, invetera·dos inimigos.
insaciável curiosidade para nós; depois, passamos um grande canavial
de ubá, ou cana de fôlhas em leque, perto de Perocão, e atravessamos
um riacho por uma ponte de madeira. Seguimos a praia até à Ponta
da Fruta, onde várias casas, à sombra de pequeno bosque, formam
uma aldeia dispersa, cujos habitantes, descendentes de negros portu-
guêses, receberam-nos bem. Tiram parca subsistência das plantações o rio Espírito Santo27B, que ao lançar-se no_ ma_r é bast~nte caud_a-
e da pesca. Próximo da Ponta da Fruta, vimos, numa montanha dis- loso, nasce nas montanhas, nas fronteiras da cap1tama de Mmas Ger~1s,
tante, o convento de Nossa Senhora da Penha, perto da Vila de Espí- desce em diferentes rumos através das pujantes florestas dos tapmas,
rito Santo, para chegarmos à qual tínhamos de viajar cinco léguas. em que Pu ris e Botocudos. ':agueiam, e vem sair ao pé de uma dessas
Sucediam-se florestas, campos, cerrados e extensos caniçais brejosos. serras mais altas, que se d1ngem para a costa, e da qual o M~mte de
Viam-se nestes númerosas garças brancas e outras, e muitas plantas Mestre Alvaro se diz ser o ponto mais elevado. Os estabeleCimentos
novas e belas despertavam a atenção do forasteiro. Na relva, na mar- portuguêses na desembocadura dêsse belo rio são ~mito ant~gos; foram
gem arenosa de uma lagoa, descobri a cobra cipó verde** 277 , que deve severamente castigados pelas guerras con:
os, tapmas,_ e. parttcularm~nt;
o nome à sua forma esguia e flexível. E' de um verde-oliváceo escuro, com as três tribos dos "Uetacás", ou G01tacas, que Vlvtam no Paratba
amarela embaixo, cresce até 5 ou 6 pés, e, embora completamente Na última metade do século XVII, a região do Espírito Santo não
inofensiva, os brasileiros a matam onde quer que a encontrem, porque continha mais que quinhentos portuguêses e quatro aldeias indígenas,...·
antipatizam com tôdas as serpentes. Encontrei aí o esqueleto exemplar Presentemente, encontramos na margem sul do rio, não longe d~ fo,z
notàvelmente grande dessa espécie. numa linda baía, a Vila Velha do Espírito Santo, pequena e mtsera-
Não longe do pequeno rio Jucu, sôbre o qual passa comprida vel vila aberta, construída quase tôda numa pra\a. Numa. ~a~ extre-
ponte arruinada, que é preciso atravessar com precaução, encontramos, midades fica a igreja, e na outra, a casa da Camara (edlf~c10. real,
na costa, uma aldeia de pescadores; continuamos, em seguida, atra- ou câmara municipal). Numa alta colina coberta de vegetaçao, JUnto
vés de bela floresta secular e, por fim, atingimos a vila do Espírito
(*) Na história da vida do Padre Anchieta diz-se, a êsse respeito, entre outras
Santo, à beira do rio do mesmo nome. coisas: "Por êsse tempo, ano 1~54 pouco mais ou men'!s, movera~ guerra. os
moradores desta Capitania do Esplrlto Santo contra uma naçao de gentios pernlciOs~,
( *) Em Pernambuco tem o nome de "capitães do campo ". Cf. KosrER, Travels, bárbara, cruel e terrlvel por nome Goitacá, cujas noticias quero dar aqui brevemente, etc. ·
etc., p. 399. .. ....~ (**) Southey's History ot Brazil, vol. I, pág. 667.
(** ) Coluber bicarinatus, provàvelmente espécie nova: o seu principal característico
é um rosário de escamas careniformes de cada lado do dorso. Escudos ventrais ~~~; (278) Chama aqui Wied de Rio Espírito SaJ?tO ~ bala de Vitória; como êle
pares de escamas caudais, 137. próprio teve depois ocasião de explicar, nisso mats nao fêz que_ seguir o exempJo
(277) Parece útil acrescentar que as cobras-cipó verdes (Philodryas schottii, aestivus, dos naturais do pais, pois passando no lugar multo às pressas, na~ tlve~a .tempo .e
oltersi, etc.), se bem que pràticamente inofensivas, são serpentes opistóglifas, cujos dentes, explorar-lhe devidamente os arredores. Cf. Wied, Quelques correcttons mdtspensabl 1
embora minúsculos, podem infligir, em quem as segure imprudentemente, ferimento super- etc. (v. a nota 60 dêstes comentários).
ficial, mas ainda assim bastante dolorido e seguido de inflamação persistente.
142 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 143
à vila, ergue-se o famoso convento de Nossà Senhora da Penha, um dos pequeno rio Jucu, cêrca de quatro léguas de ~itória. Essa casa per-
mais ricos do Brasil, dependente da abadia de S. Bento do Rio de tencia ao coronel Falcão, comandante do reg1mento da milícia do
Janeiro. Consta que possui uma imagem milagrosa de Maria, razão distrito e um dos maiores lavradores dessa parte do país.
por que o procuram numerosos peregrinos. Na época de nossa visita Ti~emos de novo notícias da Europa, porque existe um serviço
só havia dois eclesiásticos no lugar. de correio, por terra, do Rio de Janeiro até à cidade em questão,
E' bem penoso subir a íngreme elevação para gozar o indescrití- não continuando, porém, para o norte. Enquanto líamos as gratas e
vel e amplo panorama que daí se descortina; domina-se a imensa super- tão desejadas notícias do lar, uma multidão de gente de tôdas as côres
fície oceânica, e, do lado da terra, vêem-se belas cadeias de montanhas, envolveu-nos, fazendo os mais estranhos comentários a respeito dos
com vários picos e vales intermediários, donde surge pitorescamente nossos países e do motivo da nossa extraor~iná:ia visita: aí, també~,
o largo rio. A vila é formada de baixos casebres de barro e decai como em tôda parte, fomos tomados por mgleses. Voltando à VIla
a olhos vistos, desde que se fundou a vila de Vitória, na margem norte, Velha, encontramos, entre o nosso pessoal, alguns doentes de febre;
à meia légua de distância. Esta é um lugarejo gracioso, e foi esta se espalha tão ràpidamente, que em poucos dias a maioria estava
elevada à categoria de cidade depois de minha partida. Espírito Santo atacada. O mal era atribuído à água: mas, sem dúvida, é também
fôra outrora um govêrno subordinado, mas posteriormente fôra ele- causado pelo clima e pelas provisões 279 • Cedo, entretanto, curamos
~ado a capit~nia. A cidade de Nossa Senhora da Vitória é um lugar nossa gente com quina, e, assim que pudemos, dirigimo-nos à morada
hmpo e bomto, com bons edifícios construídos no velho estilo portu- de Barra de Jucu, onde o ar marinho, fresco e extremamente puro,
guês, com balcões e rótulas de madeira, ruas calçadas, uma câmara em breve completava o restabelecimento dos pacientes. Fizemos, então,
municipal razoàvelmente grande, e o convento dos jesuítas, ocupado arranjos para passar vários meses nesse novo abrigo, onde pretendía-
pelo governador, que tem, à sua disposição, uma companhia de tropa mos permanecer durante a estação chuvosa. Nossos caçadores percor-
regular. reram as florestas próximas e distantes.
~lém de v.ários conventos, há uma igreja, quatro capelas e um Barra de Jucu é uma pequena aldeia de pescadores à beira do rio
hospital. A Cidade é, entretanto, um tanto morta, e os visitantes, Jucu, que aí desemboca no mar, depois de um percurso cheio de
sendo raros, são objeto de grande curiosidade. O comércio marítimo coleios através das florestas, desde as grandes fazendas de Coroaba e
não é desprezível; por isso, diversas embarcações estão sempre aí Araçatiba. O peixe é abundante, e perto das margens há muitos
ancoradas, e fragatas podem aportar à cidade. As fazendas vizinhas lugares de agreste pitoresco. As casas dos pescadores de Barra de
produzem muito açúcar, farinha de mandioca, arroz, bananas e outros Jucu ficam mais ou menos dispersas; no meio delas, próximo da ponte
artigos, que são exportados ao longo da costa. Vários fortes protegem sôbre o rio, está a casa do coronel Falcão. ~sse opulento lavrador
a entrada do belo rio Espírito Santo: um, logo na foz; o segundo, possui várias outras fazendas nos arredores, a maior das quais, Araça-
construído de pedra, um pouco acima, com oito canhões de ferro; tiba, se acha a quatro léguas de distância. O coronel estava acostu-
e ainda um pouco mais acima, numa colina entre o último e a cidade mado a passar os verões em Barra de Jucu, para tomar banhos de
um terceiro fort~ com dezesse.t~ a dezoito canhões, alguns dos quai~ mar, de modo que lhe foi muito desagradável o fato de o governador
de bronze. A Cidade está edificada, um tanto desigualmente, sôbre ter-nos dado a casa dêle para nossa residência, fato, porém, que só
colinas aprazíveis, e o rio, que lhe passa atrás, corre entre altas encostas, soubemos depois. Veio, apesar disso, alojando-se em outra casa, na
em parte roc~~sas e em mui~os lugares nuas e cobertas de líquens. vizinhança, que se preparou para recebê-lo, até que se pudesse mudar
A bela superficie do grande no é semeada de numerosas ilhas verde- para aquela que ocupávamos.
jantes, e a vista, aonde quer que lhe siga o curso através da região, As mais interessantes excursões aí realizadas, para conhecermos
encontra sempre um pouso ameno em altaneiras e fragrantes monta- a zona circunjacente, levaram-nos, primeiro, imediatamente depois da
nhas vestidas pela mataria. ponte sôbre o rio Jucu, a uma bela mata virgem, que se estende em
À nossa chegada, alojamo·nos na Vila Velha do Espírito Santo,
porque aí tínhamos boa pastagem para os animais. Partimos, em (279) Dispensam comentário as suposições referentes à origem do impaludismo,
endemla que ainda hoje é o flagelo dos nossos rios do litoral e do sertão; nenhuma
seguida, em grandes canoas, para a cidade de Vitória, não sem certo noção se tinha então sôbre o papel fundamental dos mosquitos pernilongos (são respon-
perigo, devido ao forte vento que soprava do mar, e à largura do rio. sáveis numerosas espécies da famllla dos Cullcidas e subfamllia das Anofelinas) na
transmissão da moléstia, ocasionada, como se sabe, pela presença, no sangue, de proto-
O governador, a quem fomos cumprimentar, recebeu-nos com tôdas zoários do gênero Plasmodium, cuja descoberta, em 1880, se deve a Laveran. Como
a multiplicação dos mosqnitos depende da existência da água, onde vivem (a principio
as aparências de cortesia. Pedimos-lhe pouso na região, por perto da como larvas e depois como ninfas) até o momento de atingirem o estado adulto,
cidade, e êle destinou-nos uma boa casa em Barra do Jucu, na foz do explica-se Imediatamente a relação, verificada desde a antigWdade, entre a doença e
o melo físico.
144 VIAGEM AO BRASIL

direção à Vila Velha do Espírito Santo. Encontramos uma bonita


espécie de "sauim" 28o, até então desconhecida para nós (lacchus leu- ...:.
cocephalus, Geoffroy), em pequenos bandos, especialmente gulosos dos "'....
côcos de certo coqueiro silvestre; o porco espinho de rabo pre- t;'l
ênsil (o "Couy" de Azara) 281, e outros animais. Entre os pássaros, o
mais comum nessa floresta era a linda e azul Nectarinia cyanea (Cer-
thia cyanea, Linn.) 282 ; as seguintes espécies de dançadores 283 Pipm
pareola, erythrocephala e leucocilla; ainda uma pequena espécie até ~

aqui não descrita, que denominarei strigilata'* 2 B4 , uma linda espécie


"'<.>c
nova de saíra (Tanagra elegans)'*'* 2B5 e uma admirável espécie de ~"'
(*) Pipra strigilata: menor que a Pipra er·ythrocephala; alto da cabeça, verme-
~
"'c
lho-escuro; parte superior do corpo, verde-oliva; parte inferior, esbranquiçado com ,;:

-J
raias castanho-avermelhadas.
(**) Tanagra elegans: cabeça, amarelo-escura; dorso, negro com raias amarelas; <"l
garganta e peito, azul-esverdeado brilhante; lados e ventre, verde.
C'l
~
"'c
(280) No original lê-se "Sahui" e "Sahuim"; hoje a pronúncia mais usada no
norte é "sagili" ou mais prôpriamente sagüim ".
"'
"'
11

Callithrix leucocephala (Et. Geoffr., 1812). O gênero Callithrix Erxleben, 1777, 'i:
<:::
tendo como titulo Sintia jacchus Linn., por direito de prioridade, prevalece sôbre Hapale '-'
<:::
Illiger, 1811 e Jacchus Isld. Geoffr. :ele compreende muito dos macaquinhos vulgarmente

-
-<::
denominados sagüis não sendo deslocadas aqui algumas notas sôbre as espécies encon- <.>
<:::
tradas na região médio-Qriental brasileira. Callithrix l eucocephala (Geoffr.) reconhece-se ~
pela sua cabeça perfeitamente branca em tôda a metade anterior, em contraste com a
outra metade, que é preta, inclusive as orelhas e os tufos de longos pêlos que as ornam:
em C. penicillata (Geoff.) existente um pouco mais ao norte (Minas, sul da Bahia), só 6
~
a testa e as bochechas são brancas; C. flaviceps Thomas, também do Espírito Santo,
é muito destacado pela côr ferruglnea caracterlstica do alto da cabeça; C. jacchus (Linn.), .;
que é o sagüi comum na faixa litorânea do Brasil este-setentrional, desde o Recôncavo c
~
da Bahla, e o primeiro descrito pela ciência, tem porte bem menor e se caracteriza
pelos longos pincéis de pêlos das orelhas, brancos, e não pretos como em leucocephala, ~
cuja fronte e rosto alvos também não possui. ~
(281) Sob o nome de Hystrix insidiosa "Licht.", vem êste animal bem descrito c
IX)
por Wied no vol. II (pág. 484) dos Beitrage Naturges. Bras. e estampado nas Abbildungen.
E' assim posslvel identificá-lo ao ouriç<K!aixeiro comum, Coendou villosus (Fred. Cuvier),
um dos em que os espinhos se acham de permeio com pêlos abundantes, longos e ~
"'c
macios. Em Coendou prehensilis (Linn.), espécie bem maior e peculiar ao Brasil central,
o revestimento cutâneo é constituldo quase exclusivamente de espinhos, aparentemente sem
pêlos de permeio. -~...
(282) Cf. nota 58.
(283) Consoante o uso dos autores inglêses e alemães, chama-Qs Wied de "Manakin"
~
que significa "manequim" e foi primitivamente aplicado a uma espécie (Pipra manacus
Linn.), vulgarmente chamada "rendeira", e caracterizada pela presença, no queixo, de ~
"'c
penas com uma tal ou qual aparência da barba humana. Os nomes atuais das três
formas, aqui assinaladas pelo autor, são, respectivamente: Chiroxiphia pareola pareola
(Linn.), Pipra erythrocephala rubrocapilla Temm. e Pipra pipra cephaleucos Thunberg. Tôdas
ocorrem ainda hoje nas matas do Esplrito Santo e leste da Bahla, embora possam já
ser tidas como raras.
ê"'
<:::
(284) Por diferença apenas de um ano, perdeu Wied a prioridade na descrição
desta espécie, para a qual HABN (1821) já havia proposto o nome de Pipra •·egulus. "'
A conformação tôda especial das rêmlges secundárias dos indivlduos do sexo masculino, "'c
~
cujo raque anormalmente reforçado e espêsso parece relacionar-se com o seu emprêgo
nos combates que travam os machos uns com os outros, no perlodo nupcial, induziu
~
Bonaparte a fazê-la tipo de um gênero especial, sob o expressivo nome de Machaeropterus, <:::
hoje universalmente adotado. Machaeropterus regulus (Hahn), além da raça brasileira,
encontradiça nas matas de leste, entre Bahia e Rio de Janeiro, conta com mais duas
variedades, aparentemente estranhas ao Brasil. ~
~
(285) Tangara cyanoventris (Vieill.) da atual nomenclatura. Como já foi adver-
tido (nota 57), não se devem confundir os "tangarás" da atual linguagem vulgar E-
..."'
(fam. Pipridae), como também são chamados os "dançadores", com as apelações cientificas
Tanagra e Tangara (fam. Thraupidae), que se aplicam respectivamente aos gaturamos
e às safras, mais de acôrdo talvez com o sentido da palavra "tangará" entre os lndios
da costa (cf. Marcgrave, Hist. Nat. Bras., p. 214).
Tanagra elegans P. L. S. MUller (1766), que corresponde ao "Tangara de Cayenne"
de Daubenton, já havia recebido de Linneu o nome de Tanagra chlorotica; é, porém,
ave diversa da referida por Wied e inclui-se entre os vulgarmente chamados "gaturamos "
VIAGEM AO RIO DOCE 145

saí (Procnias cyanotropus)• 286 , cuja plumagem muda de côr con-


forme a luz. Podíamos estar sempre certos de encontrar as peque-
nas e bonitas tangarás numa certa árvore, as bagas pretas da qual
constituíam o seu alimento predileto. Há, também, veados nessa
mata; para caçá-los o coronel Falcão trouxe os seus cães de caça de
Araçatiba. Para matar, porém, animais raros e de grande porte, que
evitam a vizinhança do homem, procuramos as extensas florestas
seculares, distantes cêrca de duas a três léguas, nos arredores da
fazenda de Araçatibà.
Era muito agradável o caminho até lá; primeiro passávamos
através de grandes ' várzeas arenosas, repletas de plantas palustres as
mais diversas; subíamos depois morros, onde tufos de palmeiras novas
e outras belas árvores ofereciam sombra densa. Uma espécie de
gramínea parecida com o junco cobre os lugares escampos, em que o
pequeno tentilhão côr brilhante de aço (Fringilla nitens. Linn.) 2 8 7 é
muito comum. Cavalgando por uma trilha estreita na mata, topei
com uma grande cobra enrolada, que não arredou do caminho. Meu
cavalo estremeceu, e por isso saquei da pistola carregada e matei-a.
Examinando-a, vimos que era uma espécie inócua, e soubemos ser conhe-
cida na região por caninana. De mais a mais pertence ao gênero
ColuberU 288. Não foi sem muita persuasão que o negro do coronel
Falcão, que nos acompanhou, consentiu em carregá-la nas costas. A
imponente selva de Araçatiba era um êrmo solene; por tôda parte os
(*) Procnias cyanotropus: visto contra a luz, todo o pássaro é de um esplêndido
azulado; protegido da luz, é de um brilhante verde-claro; asas e garganta, negras; parte
inferior do corpo, branco. No Museu de Berlim recebeu o nome de Procnias vent.·alis.
(**) Esta espécie é, com tôda verossimilhança, a cobra variável de Merrem. Cf. a
B eytraege zu•· NatUI·gesclticlite de1· Ampltibien, 2.0 fac., pág. 51, estampa XII.

(São Paulo) ou "gurinhatás" (Bahia). Nos Beit.·(Jge (tomo UI, pág. 464) reconhece
Wied a confusão, descrevendo o pássaro com o nome de Tanagra citrinella, proposto antes
por Temminck, que dêle deu uma magnlfica figura na bem conhecida coleção de suas
"Pianches coloriées". Verificou-se ulteriormente que já Vieillot o tinha descrito (1819),
como Tanagra C1Janoventris, aceito pela nomenclatura, no que tange à apelação especifica.
E' passarinho pertencente ao brilhante e numeroso gênero das salras ", tecnicamente
conhecido por Tangara Brisson (= Calospiza Gray). Ocorre nas matas do Brasil oriental,
da Bahia a São Paulo, inclusive o leste de Minas.
(286) Em B eitrage (vol. Ill, pág. 385) já renuncia Wled o nome que aqui lhe
propõe; o pássaro ali aparece com a denominação de Pro cnias ventralis, proposto por
llliger, mas inédito até então. Ambas as apelações caem, todavia, em face de nome
mais antigo, Hi1·undo vil·idis, proposto por IIHger, em 1811, para a fêmea, cuja plumagem
peculiar, verde em vez de azul, fê-la ser considerada, a principio, ave distinta. Procnias
virtdis (lllig.), de que no Brasil ocorre também só a raça tlplca, é formosa ave, ainda
muito comum à margem dos rios e 1·egatos do interior, e especialmente no Brasil central.
(287) Denominação clentlfica inexata, que decorre da confusão (feita primeiro
por Gmelin, Syst. Nat., li, pág. 909) do nosso passarinho. o muito conhecido . " tsiu" ou
"serrador", com ave africana, de plumagem semelhante. Nos Beitrtige (vol. 111, p. 597)
aparece retificado em Fringilla splendens Vleillot, que não obstante teve que ceder lugar
a Tanagra jacarina Linn., nome mais antigo. A descrição lineana baseia-se em "Jacarini"
de Marcgrave que é, para a ornitologia, o verdadeiro descobridor da espécie, hoje
chamada Volatinia jacarina (Linn.), feita a correção do nome genérico.
(288) Coluber pullatus Linn., tipo, depois do gênero Spilotes, Wagler. Em Beitriige
(1, pg. 271-277) vem ela descrita com o nome de Coluber varia-bilis Merrem. 1790, que
corresp~lDde justamente à forma tlpica da espécie, onde A. do Amaral (Memor. Inst.
Butanta, IV, 1929, pg. 275-298) distingue mais duas raças geográficas. Com o nome
de C. poecilostoma descreve ainda Wied na referida obra a chamada "papa-pinto", para
a qual registrou os apelidos vulgares de "caninana de papo amarelo" e "c. de papo
vermelho"· Estas supostas variedades foram estampadas a côres em Abbildungen.
146 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 147
papagaios esvoaçavam com alarido, e a vozeria dos macacos saí-açu e a cavalo, deixamos Barra de Jucu a 19 de Dezembro; o restante
se ouvia em todo o redor. Trepadeiras, ou cipós, das espécies mais belas de nossa tropa, que permanecera atrás, dirigiu-se para Coroaba a fim
e variadas, entrelaçavam-se nos troncos gigantescos, formando impene- de aí trabalhar. Poderíamos ter feito a mesma viagem por mar, em
trável mat~ria: as esplêndidas flôres das plantas carnudas, os pen- muito menor prazo; mas viajar ao longo da costa em embarcações
dentes festoes dos fetos, enrolados nas árvores, vicejavam luxuriante- pequenas e incômodas, e com tempo tempestuoso, não é muito
mente; em tôda parte, coqueirinhos novos adornavam o mato baixo, agradável.
sobretudo nos pontos úmidos; aqui e ali, a Cecropia peltata2B9, de Seguimos para Pedra d'Agua, casa solitária sôbre uma elevação
caule anelado cinzento-prateado, formava moitas distintas. Dessa majes- à margem do rio, com o fim de transportar as nossas quatro monta-
t?sa penumbra passamos inesperadamente para um trecho escampo, e rias e dois burros de carga através do rio Espírito Santo. Frente a
t~v~mos grata surprêsa quando, de súbito, descortinamos o grande edi- nós, no tôpo da serra situada da outra banda, vimos o notável
f~cw branco da. fazenda de Araçatiba, com as suas duas tôrres pequenas, rochedo de Jucutucoara, situado não longe de Vila de Vitória. Pa-
s~tuada numa lmda planura verde, ao pé do altaneiro Morro de Araça- recido com o "Dent de Jaman do Pays de Vaud", chama a atenção
tlba, montanha rochosa coberta de mata. Essa propriedade tem quatro- de longe; está colocado em tranqüilas e verdejantes eminências, par-
centos escravos negros, e plantações muito extensas nas cercanias cialmente vestidas de pequenas matas. Diante dêle, mais perto do rio,
especialmente de açúcar. Os filhos do coronel vivem em outras fazen~ fica a aprazível fazenda "Rumão", em frente da qual a Ilha das Pombas
das, não longe daí. ergue-se sôbre a superfície espelhante do rio. (Na estampa 4, há
Araçatiba foi a maior fazenda que encontrei durante a minha uma vista panorâmica dêsse lugar). Era muito agradável, das alturas
~iag;m. O edifício possui extensa fachada de dois pavimentos, e uma dessa margem, o panorama do belo rio, onde algumas lanchas e canoas
IgreJa; as choças dos negros, como o engenho de açúcar e as casas de pesca velejavam corrente abaixo. Pretendíamos atravessar logo,
de trabalho, ficam ao pé de uma colina, perto da residência. A mas por infelicidade nenhuma canoa apareceu para nos transportar;
?m~ légua mais ou menos, num pitoresco local à margem do rio Jucu, por isso, pedimos abrigo ao idoso morador de Pedra d'Agua e passamos
mteiramente cercada de grandiosas florestas virgens, situa-se uma a noite numa pequena cabana, que mal nos protegeu do vento e da
s~g~mda fazenda, chamada Coroaba, que pertence a outro proprie- chuva; entretanto, a boa vontade do nosso hospedeiro compensou a
t~no. C: governador começara a construir uma igreja em Sto. Agos- falta de confôrto. Ao cair da noite, o gado que pastava começou a
tmho, nao longe de Coroaba, razão por que estava residindo nesse reunir-se; observamos no meio dêle um curioso carneiro, que nos
lugar. Existe aí um pôsto militar de guarda contra os selvagens; nessa disseram ter resultado do cruzamento de um carneiro com uma cabra.
época, os soldados estavam ocupados em abrir uma estrada até Minas O animal se assemelhava muito à mãe; era gordo, corpulento e arre-
Gerais,_ para ~nde já viajara um oficial, por ordem do governador, a fim dondado, tinha pêlo macio de cabra e os chifres virados um pouco mais
de abnr cammho através das matas. O govêrno estabelecera em Sto. para fora • . Os cordeirinhos, que os meninos apanharam, mostravam
Agostinho cêr~a de qua~enta famílias, que vieram das Açôres, sobre- freqüentemente, no umbigo ainda mal cicatrizado, uma porção de larvas,
tudo ~a Terceira e S. Miguel, e a!gumas poucas de Faial. Essa gente, para matar as quais esfregavam mercúrio no lugar. Essas lar~as são
que v1ve em grande pobreza, queixa-se amargamente de miséria; fize- um mal bastante comum nos países quentes; onde quer que hap uma
ram-lhe magníficas promessas, que não foram cumpridas. ferida, as môscas estão prontas para desovar. Existe no Brasil outro
Ficaríamos muito satisfeitos se nos instalássemos em Coroaba mas inseto que deposita os ovos no tecido muscular ou debaixo da pele,
a in;t~ossibili~ade de encontrar aí acomodações para nossa nuru'erosa até do próprio homem; depois da picada dêste animal sobrevém
comitiva obngou-nos a permanecer em Barra do Jucu. uma pequena dor local, o lugar começa a inchar, até o momento em
Muitas coisa~ de_ que tínl_lam?s grande necessidade e que esperá- que os naturais, perfeitamente conhecedores desta nociva praga, extraem
vamos ter na Capitama (tambem simplesmente assim chamada a região uma pequena larva branca e alongada, cicatrizando-se depois a ferida.
do Espírito Santo) foram enviadas para Caravelas, fato que nos trouxe Azara refere-se provàvelmente ao mesmo inseto• •, acreditando que
não pequeno t~an~tôrn_o. A fim de remediá-lo, o Sr. Freyreiss e eu êle já penetra na pele como larva, o que não concorda com a nossa
resolvemos partir Imediatamente para Caravelas e lá acertar as coisas. experiência29o.
Levemente equipados, e acompanhados de alguns homens bem armados (* ) V. BUFFON, Supplement, t. V, p. 4 (ediç. in·l2).
( ** ) AZARA, Voyages, etc., vol. I, p. 217.
(289) São muito numerosas as espécies de " imbaúba " (Cecropia) encontradas em (290) Wled retere-se Inequivocamente ao " berne ", larva de uma môsca silvestre,
nossas matas de leste, sendo assaz problemático que nos lugares aqui descritos ocorresse (Dermatobia Cflaniventris, Macquart), da famllla dos ÉStridas. Só modernamente. gra~s
apenas a que recebeu o nome referido por Wied. aos esforços de investigadores estrangeiros e especialmente brasileiros, a curiosa biologia
148 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 149

As canoas chegaram na manhã seguinte e então atravessamos do ataque dos inimigos 29 2 • Tentei aproximar-me de um ninho dêsse
o rio, que tem perto de mil passos de largura. Prosseguimos por um pássaro, mas fui impedido pelas vespas, que apareceram imediata-
vale, que se estende coleando logo por baixo das alturas em que está mente. Nos cerrados que margeiam a costa, habitam famílias pobres
Jucutucoara; vimos bem próxima a casa alvejante de uma fazenda e esparsas, que vivem da pesca e da colheita de suas plantações. São
pertencente a um sr. Pinto. Cruzamos o pequeno rio Muruim ou Pas- em geral negros, mulatos e outras gentes de côr. Há muito poucos
sagem, sôbre o qual passa uma ponte de madeira, geralmente fechada brancos entre êles; queixam-se logo ao forasteiro de pobreza e indi-
por uma porteira; e depois de cavalgarmos através de lodaçais cobertos gência, que só podem provir da preguiça e da falta de iniciativa, porque
de mangues (Rhizophora, Conocarpus e Avicennia), alcançamos a o solo é fértil. Pobres demais para comprar escravos, e demasiado
costa. Olhando para trás, distinguimos mais claramente a cadeia indolentes para o trabalho, preferem morrer de fome.
de montanhas de Espírito Santo, que o viandante não pode dominar Continuando para o norte, alcançamos um trecho onde moravam,
enquanto se acha colocado entre os pontos extremos de suas eminên- não crioulos ou mulatos, mas índios civilizados. As habitações se
cias. A três léguas de Capitania, conseguimos pouso para a noite na espalhavam por uma sombria floresta de magníficas árvores-gigantes;
pequena povoação de Praia Mole. trilhas escuras vão serpenteando de uma choça a outra; nos regatos
Aí, numa verde planície, um pouquinho acima do nível do mar, cristalinos, em que se espelha a bela vegetação, vêem-se meninos pardo-
encontram-se esparsas várias habitações. Numa delas, encontramos escuros, nus e com a cabeleira negra como carvão, pescando e brin-
amigável acolhimento; e como todos os habitantes tivessem muito cando. Descobrimos pássaros lindos nessa mata deliciosa; o "jacamar"
gôsto pela música, fomos, à tardinha, agradàvelmente entretidos com auriverde (Galbula magna) 29 3 pousava nos ramos rasteiros vizinhos da
música e danças. O filho no hospedeiro, que era muito hábil na água, à espreita de insetos; e vozes desconhecidas ressoavam na soli-
fabricação de guitarras (violas), tocava, e o resto da meninada dançava dão. Depois de quatro léguas de viagem, saímos da selva e contem-
o batuque 291 , entregando-se a estranhas contorções do corpo, batendo plamos, à frente, numa eminência sobranceira ao mar, a Vila
palmas e estalando dois dedos de cada mão alternadamente, imitando Nova de Almeida.
as castanholas dos espanhóis. Embora os portuguêses tenham grande Vila Nova é uma grande aldeia de índios civilizados, fundada
talento natural para a música, não se vê, pelo Brasil, outro instrumento pelos jesuítas: possui uma grande igreja de pedra e contém, em todo
senão a viola. Se o amor à música e à dança é geral entre o povo, o distrito, de 9 léguas de circunferência, cêrca de l 200 almas. Os mo-
também o é a hospitalidade, pelo menos na maioria dos lugares. Encon- radores da vila são principalmente índios, havendo também portuguê-
tramo-la aí; com efeito, nossos hospedeiros fizeram tudo para nos ses e negros. Muitos, tendo casas aí, só voltam das roças aos sábados
agradar e o tempo, assim, passou suavemente. e aos feriados. No convento dos jesuítas, que serve atualmente de
Deixando Praia Mole, chegamos cedo, na manhã seguinte, ao residência ao padre, ainda existem algumas velhas obras dessa ordem,
povoado de Carapebuçu. Dêsse lugar em diante, ao longo do litoral, se o que é uma raridade, porque as bibliotecas de todos os outros conven-
estendiam florestas, orlando as enseadas e cobrindo as pontas de terra. tos, deixadas ao abandono, se destruíram ou dispersaram. Aí, outrora,
Nessas matas, agora que o estio justamente começava, viam-se esvoa- os jesuítas ensinavam na língua geral; diz-se que a capela dêles, dos
çando inúmeras borboletas das espécies mais diversas, sobretudo Reis Magos, foi muito bonita. O lugar é morto, e não parece popu-
Nymphales. Aí observamos o notável ninho saciforme de um pequeno loso; também se vê muita pobreza. Os índios tiram a subsistência das
pássaro do gênero Todus) que sempre constrói próximo a casas de certa plantações de mandioca e milho; exportam, igualmente, um pouco de
espécie de vespa ("marimbondo"), com o fim, dizem, de se pôr a coberto lenha e de artigos de cerâmica, e mantêm uma pesca nada desprezí-

do inseto pôde ser completamente aclarada, verificando-se que, no tocante ao meio de (292) E' essa a mais antiga observação que conheço do curioso hábito que têm
propagação, a verdade estava antes com Azara. Com efeito, a môsca berneira não muitos representantes do gênero Todirostrum Lesson (na época em que escrevia Wied
põe diretamente os seus ovos na pele do futuro hospedeiro das larvas, mas deposita-{)s, ainda não desdobrado de Todus Linn., restrito às Antilhas), vulgarmente " teque-teque",
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ferreirinho ", "relógio", etc. Tive, por minha vez, ocasião de confirmar o fato, a prin-
em massa compacta, sôbre o corpo de outras môscas (como a môsca das estrebarias, cípio nas proximidades de Tapera (Pernambuco), em Todirostrum cinereum cearae
(Stonwxys calcitrans, Geoffr.) ). as quais se tornam assim simples porta doras das larvas, Cory. e depois em várias emergências. Estudando a Coleção Carlos Estêvão (cf.
prontas a abandonar na primeira oportunidade o veiculo transitório, por um hospedador Papéis Avulsos do Depto. de Zoologia, XI, pg. 191), registrei-{) em T. chTflsocrotaphum
adequado. ~ste é as mais das vêzes um animal bovino; mas pode ser também illi{le•·i Caban. & Heine, e vi-{) depois consignado independentemente por Assis Iglésias,
um eqüino ou porcino, sem falar no próprio homem, como no-lo refere Wied, e é no belo livro das suas reminiscências de viagem pelos sertões nordestinos, a que deu
fato de observação relativamente freqüente (Cf. Ouv. PINTO, Rev. Mus. Paul., XX, pág. 13). o titulo de "Caatingas e Chapadões", pp. 18~ e 187 (Edit. Nacional, vol. 271 da
São muito numerosas as contribuições bibliográficas sôbre a matéria, cuja impor- " Brasiliana ") . Na observação de Wied, como se conclui do que nos informam. os seus
tância científica e econômica salta aos ollíos, merecendo consulta, entre outras, as Beitraue (vol. III, pg. 967), a espécie em causa é Todirostrum poliocephalttm (W1ed), por
seguintes: ARTHUR NEIVA, Mem. Inst. Oswaldo flruz, 1914, p. 206; A. NEIVA & FLoaftNcro êle descoberta.
GoMEs, Collectanea dos Trab. do Inst. Butantan, vol. li, p. 3; En. NAvARRO DE ANDRADE, (293) Galbula rufoviridis Cabanis (confundida em "Beitl·aue", IV, p. 486, c'?m
Arch. do Inst. Biolouico, li, p. 58. G. vi1·idis Latham, espécie amazônica), vulgarmente "beija·flor do mato virgem", ".be!Ja·
(291) No original "Baduca". flor dágua ", "cuitelão ", etc. Comum onde quer que haja água fresca e ambiente rustlco.
150 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 151

vel no mar e no rio Saí-anha294, ou dos Reis Magos, que passa além As florestas percorridas pelo Saí-anha, que se chamava Apiaputang
da aldeia. O Sr. Sellow, que posteriormente visitou êsse lugar, teve na antiga linguagem aborígine, seriam habitadas por Coroados e Puris.
oportunidade de conhecer a curiosa maneira de pescar com os ramos Também ouvimos falar de outra tribo, denominada "Xipotós", que
da árvore chamada "tingui", que Condamine refere como praticada no afirmam viver na região rio acima, entre o rio Doce e o Saí-anha; mas
rio Amazonas•. Cortam ramos de tingui, esmagam-nos e fazem molhos essas declarações a respeito dos nomes das diferentes tribos indígenas
com êles, jogando-os à água, sobretudo nos trechos em que há pouca não merecem confiança. Mais além, do Saí-anha ao Mucuri, o litoral
correnteza; algumas vêzes, represam o rio com êsses molhos, a fim de é quase que exclusivamente habitado por famílias esparsas de índios.
barrar o caminho ao peixe, que, intoxicando-se com o sumo misturado Falam apenas a língua portuguêsa e trocaram o arco e a flecha pela
à água, vem à tona e morre, ou pode ser fàcilmente apanhado à espingarda; até as moradas diferem muito pouco das dos colonizadores
mão. As plantas que produzem êsse efeito são espécies do gênero portuguêses; ocupam-se principalmente da lavoura . e da pesca do
Paullinia, e a ]acquinia obovata, arbusto de grãos vermelhos e fôlhas mar. Ao norte do Saí-anha, tôda a costa é coberta de densas flo-
de forma oval, que medra nas pequenas matas litorâneas, sendo, por restas. Em poucas horas se atinge o rio Piraquê-açu 297 (rio-do-peixe-
isso, denominada "tingui da praia"295. grande), como originàriamente os índios o denominavam. Aí, na barra
Em Vila Nova, ouvimos falar muito de um animal marinho, nunca ou foz, existe uma povoação chamada Aldeia Velha; e, um pouco
visto antes aí, e que uns índios mataram na praia havia pouco, a acima no rio, uma grande aldeia fundada pelos jesuítas, que reuni-
tiros de espingarda. Era grande, e dizia-se possuir pés parecidos com ram, nesse lugar, considerável número de índios. Alimentam-se sobre-
mãos humanas. Extraíra-se dêle grande quantidade de gordura. A tudo de peixes e mariscos; daí haver ainda, nas margens do rio,
cabeça e os pés foram enviados ao governador. Tôdas as nossas tenta- grandes montões de conchas. í.stes, segundo algumas pessoas, teriam
tivas para obter informações mais pormenorizadas sôbre êsse animal origem diferente, mas diversos autores• confirmam a asserção de serem
foram inúteis, mesmo porque partiram e cozinharam o esqueleto, e os índios grandes comedores de ostras, e as circunstâncias explicam
em parte o enterraram. De tudo o que soubemos, entretanto, parece suficientemente o fato; não há dúvida, portanto, que êsses acúmulos
que se tratava de uma foca ou de um "manati"296. de conchas derivam dos repastos dos antigos habitantes da zona.
Consta que, quando, posteriormente, vários colonos portuguêses se
(*) Viagem de CONDAMINE, p. U6. VASCONCELLOS também a menciona em SUas
"Memórias curiosas sôbre os tndios"; segundo êle, os lndios pescavam com fôlhas de fixaram no Piraquê-açu, os jesuítas levaram embora os índios que aí
"japical", com "cipó" (chamado " tlmbó putryara ") ou "tingui " também dito "tiniuiri ";
além disso, com o fruto "curaruapé ", com as raizes do "mangue", etc., p. 76. Vide
viviam, a fim de afastá-los dos portuguêses.
ainda, sôbre êste assunto: Blumenbach, em notas à Viagem ao Rio Berbice (ano 1671 ) Atingimos Vila Velha à tardinha. Depois de dobrarmos uma ponta
de ANDR. VAN BERKEL, p. 180, e também Krusenstern, I, p. 180.
de terra que entrava pelo mar, encontramo-nos de repente junto a
(294) No original "Saüanha" (= Saianha). um belo e vasto rio, que surgia das margens cobertas de florestas para
(295) O "tingui da praia" chamado também "barbasco" (Jacquinia armillaris Jacq.
fam. Teophrastáceas) é um dos muitos "tinguis " de que se serviam os nossos lndlos para se lançar ao oceano. Vila Velha consiste em seis ou sete cabanas
intoxicar o peixe. Os "ti mbós", usados para o mesmo fim, compreendem série numerosa cobertas de palha, num pequeno vale plano; dentre tôdas, apenas uma
de vegetais ictiotóxicos filiados a dlterentes famflias botânicas, e abundam particularmente
nas matas amazônicas; pertencem às Leguminosas papilonáceas o " timbó de Galena" casa é de aparência um tanto melhor, então ocupada pelo comandante
(Tephrosia toxicaria, Sw.), o "timbó legitimo " (Lonchocarpus nicou Aubl.) o " timbó
vermelho" ou "t. urucu ", além de muitos outros, na sua maioria do gênero Lo'nchocarpus; do distrito, tenente da guarnição de Espírito Santo. Fomos aí rece-
às Sapindáceas, várias espécies do gênero Paullinia (P. pinnata, Lin., P. urandiflora bidos com a maior gentileza em casa do Sr. tenente; os moradores
St. Hilaire), etc.; às Compostas os "conamis " (Olibadiun~ biocarpum Mart., Ol. surinamens~
Lln.), nome aliás comum a outras plantas venenosas, como Phyllanthus conami Aubl., exultaram com a oportunidade de falar a sêres humanos; con-
uma Euforbiácea. H asemann, citado por A. Neiva & B. Pena (Mem. Inst. Oswaldo Cruz,
VIII, p. 105), em artigo inserto no vol. VII dos Ann. ot the Oarneuie Museum (1911 ), sideram êsse pôsto, onde o oficial é mantido por alguns anos, como
trata longamente dos diferentes processos de tinguiagem.
(296) A presença de extremidades semelhantes a mãos humanas compromete a
uma espécie de exílio. O oficial aí estabelecido na época da nossa visita,
Wpótese de estar aqui em jôgo um Sirênio, corno o "peixe-boi", parecendo tratar-se antes queixava-se muito de falta de distração e de confôrto; eram mes-
de um Pinlpede, a menos que tenha havido êrro nas informações colhidas pelo viajante mo obrigados a dispensar, nesse lugar isolado, muitas utilidades neces-
naturalista. Que pin [pede? Seja como fôr, o peixe-boi, a que os tupis da costa oriental
chamavam "goaragoá", era nos primeiros tempos provàvelmente comum em todos os grandes sárias. Dificilmente se obtinham provisões, exceto farinha de man-
rios da vertente oriental do Brasil. O padre FERNÃO CARDIM (Tratados da Terra e Gente
do Brasil, ed. de J. Leite, Rio de Janeiro, 1925, p. 79 e ss.), deu-nos dêle longa e dioca e peixe. Os habitantes de Aldeia Velha são pescadores pobres;
pitoresca descrição, ao passo que a sua ocorrência na BaWa é testemunhada por Gabriel
Soares e no Esp[rito Santo por Anchieta; sua existência ainda em nossos dias no
contudo, o peixe é abundante no rio, que possui boa barra, de modo
alto Rio Doce foi-me verbalmente asseverada por Pinto da Fonseca, bastante conhecedor que as lanchas podem singrar até longe, rio adentro.
da fauna daquela região. Admite-se geralmente que a espécie seja a mesma do
Amazonas (Trichecus inunuuis (Pelzeln)); faltam-me entretanto elementos, para afirmá-lo
com segurança. ( *) SoUTHEY's, etc., vol. I, p. 86.
A prevalência de Trichecu.s Linn ., 1758, sôbre Manatus Linn., 1766, foi decidida
pela Comissão lntern. de Nomenclat. Zoológica (opinião 112; cf. Mem. I nst. Butantã,
v. p. 264). (297) No original, Pirakaa.ssu.
152 V I A G E 1\1 AO BR ASI L

Não havendo no lugar nada que nos pudesse deter mais, despedi-
mo-nos do nosso amável hospedeiro no dia seguinte, e atravessamos
o rio. A corrente era muito profunda, larga e rápida, e um dos
burros de montaria por pouco não se afogou, o que teria sido uma
perda irreparável nessas paragens. Um índio môço, do comandante
que manejava destramente a nossa canoa balançada pelas ondas, foi-
nos de muita valia. Nos lugares rasos, próximo das margens, vimos
gaivotas e andorinhas do mar, e numerosos bandos de Rynchops nigra
(Linn.)29B, bem conhecida pelo curioso bico. Além do rio viam-se
matas extensas, onde se espalhavam as plantações dos índios; culti-
vam principalmente milho, mandioca e "baga" (Ricinus), de cuja
semente extraem óleo. De novo entramos numa espêssa e bela floresta,
onde lindíssimas borboletas enxameavam sôbre flôres variegadas, e o
rugido do oceano ressoava em nossos ouvidos. A voz da jacupemba
(Penelope marail, Linn.)299, ave da mata pertencente ao grupo do
faisão, chamou a atenção dos nossos caçadores; sendo, porém, muito
arisca, não matamos nenhuma. Cedo alcançamos novamente a costa
e prosseguimos por mais quatro léguas, até que chegamos, pela tardi-
nha, ao pôsto militar do Quartel do Riacho. O litoral forma muitas
enseadas nesse trecho, o que dá ao caminho monótona uniformidade,
pois, mal se vence um promontório, e já outro aparece à distância.
Encontramos aí diversas espécies de sargaços ( Fucus), arremessados à
costa pelo mar, mas somente poucas conchas. A andorinha de colo-
rido azul-ferrête (Hirundo violacea)aoo nidificava em alguns grupos
de rochedos marítimos. Nesse trecho costeiro, vêem-se habitações iso-
ladas de índios, a grande distância uma das outras, esparsas entre as
capoeiras. Alguns habitantes se aventuram ao mar em canoa, em busca
de peixe. Um pequeno córrego, cujo fundo era tão mole que os
animais nêle se atolavam profundamente, deteve-nos muito tempo;
dois dos nossos tropeiros, Mariano e Filipe, despindo-se, procuraram,
com os animais de sela, e por fim, encontraram, um lugar mais firme,
por onde todos nós passamos sem acidente, embora um pouco molha-
dos. Ainda não havia escurecido quando chegamos ao quartel.
Quartel do Riacho é um pôsto militar, composto de um oficial e
seis praças, que tem por fim transmitir ordens e manter-se em comu-
nicação com a zona à margem do rio Doce. Na praia há duas casas,
uma das quais ocupada pelas famílias de alguns dos soldados, que tiram
o sustento das plantações próximas. O oficial subalterno que aí
comandava era um homem inteligente, e deu-nos informações muito

(298) Vulgarmente " talha-mar ", devido ao há bito de, quando pesca, voa r rente
à superflcie das águas, imergindo nela a parte de baixo do bico, que é muito mais
longa do que a superior, e comprimida lateralmente em lâmina cortante. As populações
extra-amazônicas da espécie são consideradas forma particular, ob a denominação de
Rhynchops nigra intercedens Saund.
(299) O nome da e pécie (Penelope sttper ciliari-s Temm.) , hoje conhecida apenas
por "jacu ", já foi retificado em nota anterior.
(300) E' a andorinha doméstica grande, PrO(J'M chalybea Linn ., determinação aliás
retificada pelo autor nos Beitrage (vol. UI, p. 354).
VIAGEM AO RIO DOCE 153
interessantes. Dêle soubemos maiores minúcias a respeito da guerra,
travada nas matas do rio Doce, com a tribo hostil dos Botocudos,
justamente quando atingíamos as fronteiras dessa nação. O próprio
oficial fôra atingido por uma flecha no ombro, quando servia num dos
postos do rio Doce; mas já estava completamente curado da peri-
gosa ferida. A tribo dos Botocudos (assim chamada pelos europeus)
vagueia nas florestas, à beira do rio Doce, até às nascentes dêste na
Capitania de Minas Gerais.
tsses selvagens se distinguem pelo costume de comer carne huma-
na e pelo espírito guerreiro: têm oferecido, até agora, obstinada resis-
tência aos portuguêses. Se algumas vêzes se mostraram amigáveis
em certo lugar, cometeram excessos e hostilidades em outro; daí nunca
ter havido um entendimento duradouro com êles. Muitos anos atrás,
existia um pôsto militar ("destacamento") de sete soldados a oito
ou dez léguas rio Doce acima, no local onde hoje se ergue a povoação
de Linhares; êsse pôsto estava guarnecido com uma peça de canhão
para proteger a projetada estrada nova para Minas. A peça, a prin-
cípio, manteve os selvagens à distância, mas, à proporção que foram
conhecendo melhor os europeus e suas armas, os temores desapare-
ceram. De uma feita assaltaram repentinamente o quartel, mataram
um dos soldados, e teriam também massacrado os outros, se êstes
não tivessem fugido e escapado pelo rio, tomando uma canoa, que
aconteceu justamente vir chegando com a salvação. Não podendo
alcançá-los, os selvagens encheram o canhão de pedras e retiraram-se
para as selvas.
Depois dêsse fato, o último mm1stro de Estado, conde Linhares,
declarou-lhes guerra formal, numa proclamação bem conhecida; orde-
nou que os postos militares já estabelecidos à margem do rio Doce
fôssem reforçados e que se instalassem outros, a fim de proteger os
estabelecimentos dos europeus e as comunicações com Minas através
do rio. Desde então não se deu trégua aos Botocudos, que passa-
ram a ser exterminados onde quer que se encontrassem, sem olhar
idade ou sexo; e só de vez em quando, em determinadas ocasiões,
crianças muito pequenas foram poupadas e criadas. Essa guerra de
extermínio foi mantida com a maior perseverança e crueldade, pois
acreditavam firmemente que êles matavam e devoravam todos os ini-
migos que lhes caíam nas mãos- Quando mais tarde se soube que
em alguns lugares, no rio Doce, simularam di~posições pacíficas, batendo
palmas, e depois mataram traiçoeiramente, com os formidáveis arcos,
os portuguêses que dêles se acercaram confiantes nas maneiras ami-
gáveis, extinguiram-se tôdas as esperanças de descobrir-se sentimentos
de humanidade entre êsses selvagens. Que, porém, essa opinião, depri-
mente para a dignidade da natureza humana, foi levada muito longe,
e que a incorrigibilidade dêsse povo provém tanto da maneira como
foram tratados, quanto da rudeza nativa, prova-o exuberantemente
154 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 155
o benéfico resultado da conduta humana e moderada do governador mos grande proveito da experiência dos nossos jovens índios, que se
Conde dos Arcos, na capitania da Bahia, para com os Botocudos meteram pelas moitas com alguns vasos e colheram a água de dentro
r:si_dentes à marçem do Rio Grande de Belmonte. E' justamente 0 das fôlhas das bromélias. Essa água, pouco depois das chuvas, é
viaJante, que deixa o teatro dessa guerra desumana no rio Doce limpa e clara; agora, porém, que havia muito tempo que não chovia,
que~ mais se impressiona e mais a fundo pode refletir, quando: estava negra e suja; encontramos até ovos de rã e girinos. Coamo-la
depOis de algumas semanas, chega ao distrito do Rio Grande de Bel- num pano, juntamos suco de limão, aguardente e açúcar, e destarte
monte, e aí vê que os habitantes, em virtude da paz concluída três tivemos um esplêndido refrêsco. Nos pés de bromélia achávamos fre-
ou _quatr? ~nos atrás, vivem com êsses homens tão selvagens do modo qüentemente uma pequena rã amarelada•soi que, à maneira de mui-
mais, a:~mgavel, o . que assegura aos primeiros o sossêgo desejado, e tos animais dêsse gênero, desovam em terra; também encontramos,
aos ulti~lOs as mawres vantagens além da segurança. muitas vêzes, aí as suas pequenas larvas pretas. Não deve surpre-
A fi~ de explorar a ~otável região do rio Doce, de que ouvíra- ender o fato de, nessas regiões, répteis terrestres criarem os filhotes
mos :nmtos pormenores mteressantes. na Capitania, partimos pela em cima de árvores, de vez que, tão ricas são de fenômenos extraor-
manha bem cedo do Quartel do Riacho, acompanhados por dois dinários, em algumas delas até o próprio homem vive sôbre árvores,
soldados: e. atra~essamos ? ~iacho,_ donde se origina o nome do pôsto, como disso são exemplo os Guaraúnas, de quem o Sr. von Humboldt
e em cu~a Imed_Iata proximi~ade ficam as malocas. Daí partimos para dá interessante notícia.
uma fatigante JOrnada de Oito léguas pelo areal, sob o intenso calor Depois de repousarmos um pouco, prosseguimos a jornada até
de dezembro. tarde da noite, e por fim nos encontramos, ao luar, numa região
O solo é constituído de areia grossa misturada a quartzos e arenosa, plana e descampada, perto da foz do rio Doce. Os dois sol-
pequ_enos seixos, fatigante em extremo tanto para o homem como para dados, que tomáramos como guias, perderam o rumo, e fomos obrigados,
o ~mmal. Um tanto para o interior, as areias são cobertas de mato cansados como estávamos, a esperar longo tempo, até que descobris-
baixo, sobretudo ?e coqueiros anões•; mais atrás se erguem espêssas sem o caminho certo, que nos levou ao Quartel da Regência. Trata-se
~lorestas, nas quais, não longe da praia, fica o Quartel dos Combo- de um pôsto militar de cinco soldados, estabelecido na embocadura
IOS, o~de permanecem três soldados de guarda às comunicações. do rio Doce, incumbido de transmitir ordens ao longo do litoral,
, AI encontram?s rastros das colossais "tartarugas" marinhas, que transportar viajantes através do rio e vigiar as comunicações com a
vem à costa depositar os ovos em buracos cavados na areia. Em mui- povoação de Linhares. Passamos a noite na casa regularmente espa-
tos lugares se viam dispersos restos dêsses animais, tais como cara- çosa dos soldados, em que havia diversos quartos com trastes de madeira,
paças ; :squeletos, n?s quais causou-nos admiração o grande tamanho e um tronco••. Essa gente passa muito mal; peixe, farinha de man-
?os. cranws; descobn um que não pesava menos de três libras. Os dioca, feijão prêto e, por vêzes, um pouco de carne sêca, constituem
I~diOs comem a carne dessas tartarugas, delas extraindo grande quan- a sua única alimentação. São todos de côr, crioulos, índios, mamelucos
tlda?e de gordura; buscam, também, cuidadosamente, os ovos, dos ou mulatos. Mal raiara a manhã, e a curiosidade nos impelia a sair
quais se encontram muitas vêzes, num buraco, 12 a 16 dúzias. São e a contemplar o rio Doce, o maior rio entre o Rio de Janeio e a Bahia.
redon~os, brancos, revestidos de casca flexível e coriácea, contêm uma Nessa época, tôda a caudal rolava impávida e majestosamente para o
albumi,na clara como. água e uma gema de lindo amarelo, que têm oceano; a imensa massa d'água corria num leito que nos pareceu duas
bom gosto, embora saiba um pouco a peixe. Encontramo-nos com al- vêzes mais largo do que o Reno no ponto de maior largura. Poucos
gumas famílias de índios levando para casa cêstos inteiramente cheios dês- dias depois, entretanto, tinha diminuído alguma coisa. Só nos meses
ses ovos. O tamanho das tartarugas do mar pode ser avaliado pelas chuvosos, principalmente em Dezembro, é que fica tão volumoso; em
carapaças q~e e_ncontramos aí, com 5 pés de comprimento. outras épocas, especialmente após estiagens muito longas, vêem-se sur-
Ao meiO-dia~ quando o calor se tornou opressivo, nossa tropa gir por tôda parte do leito bancos de areia, de que, todavia, não se
estava por de~ais_ fatigada; não tínhamos água para saciar a sêde
ardente dos amma1s, ~ nem mesmo a dos companheiros que iam a pé, (*) Espécie nova e ainda não descrita da rã pequena, Hyla luteola, de tom
alagados d~ suor. Fizemos alto e procuramos abrigo à sombra do amarelado pálido, com uma estria mais escura através dos olhos.
(**) " Tronco " é um castigo militar. Consiste numa prancha comprida, colocada
ma~agal baixo; mas aí, também, o chão estava tão quente que foi em pé sôbre um dos bordos, na qual há cortada uma série de furos redondos, destinados
a prender a cabeça dos delinqüentes. A prancha fecha em volta do pescoço, e o homem
m~n.to pequeno o refrigério; nossos pés, entretanto, descansaram, e é obrigado a permanecer no chão a fio comprido. V. von EscHWEGE, Journal oon
aliviamos os animais, alijando-lhes a carga. Nessa emergência, tira- Brasilien, I, p. 128.

(301) Descrita em pormenor em Beitraue (I, pp. 585-8), depois de figurada nas
(*) Mais adiante há uma enumeração das diferentes espécies de palmeiras. Abbildunuen.
156 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 157

observava agora nenhum vestígio. A foz, por isso, nunca é nave- restas; mas, devido à agitação do rio, ocasionada por violenta ve~­
gável; as grandes embarcações não podem entrar por causa dos bai- tania, a 25 de dezembro, os soldados aconselharam-nos a transfenr
xios e dos bancos de areia; nem mesmo lanchas, a não ser quando a partida para o dia imediato. A manhã seguinte estêve cálida e
as águas estão na maior cheia. O rio Doce nasce na capitania de serena, de modo que embarcamos, ao amanhecer, numa comprida
Minas Gerais, formado pela junção do rio Piranga com o Ribeirão canoa conduzida por seis soldados. Nossa comitiva se compunha de nove
do Carmo: pois é depois dessa confluência que recebe o nome de Rio pessoas, tôdas bem armadas. Para subir o :io Do~e na cheia, são ne-
Doce*. Atravessa uma vasta região plana e forma muitas peque- cessários quatro homens pelo menos, que ImpulsiOnam a canoa por
nas cachoeiras, três das quais, sucedendo-se com pequeno intervalo, meio de longas varas. Como há por tôda parte lugares rasos, que
são conhecidas por Escadinhas. As margens do belo rio são cobertas surgem como bancos de areia no período da sêca, as varas sempre
de espêssas florestas, refúgio de grande número dos mais diversos podem alcançar-lhes o fundo, mesmo quando as águas estão muito
animais. Aí se encontram, comumente, a anta (Tapirus america- altas; e, em circunstâncias favoráveis, é possível atingir Linhares em
nus), duas espécies de porco selvagem (Dicotyles, Cuvier), "pecari" ou um dia, mas não antes da noite.
"caitetu" e o "porco de queixada branca" (taitetu e tagnicati de O tempo estava lindo, e depois de nos acostumarmos ao balanço
Azara)3° 2 , duas espécies de veados (o gazupita e o guazubira de Azara), da estreita canoa, causado pelos soldados andando para trás e para
e mais de sete espécies de felinos, entre as quais a onça pintada a frente a fim de impulsioná-la, achamos a excursão muito agradável.
(yaguarété, Azara) e o tigre negro (yaguarété noir, Azara) são as Em plena manhã, a vasta superfície do rio cintilava ao sol; as mar-
maiores e as mais perigosassoa. Contudo, o rude selvagem Botocudo, gens distantes estavam tão densamente vestidas de selvas umbrosas,
habitante aborígine dessas paragens, é mais formidável que tôdas as que, em todo o percurso vencido, não havia espaço livre onde se
feras, e o terror dessas matas impenetráveis. A região é escassamente pudesse erguer uma casa. Ilhas numerosas, de vários tamanhos e for-
povoada, de modo que ainda não há vias de comunicação, exceto ao mas, recortavam o espelho das águas; eram cobertas de velhas árvores
longo do rio. E' verdade que, poucas semanas antes, se abrira na de frondes luxuriantes. Cada qual tem nome próprio, e, segundo
floresta uma picada (trilha) acompanhando a margem sul, mas estava dizem, aumentam de número à proporção que se sobe. Na cheia, a
longe de ficar pronta e só podia ser utilizada, por causa dos selvagens, água do rio Doce é turva e amarelada, e produz febres no consen~o
pelas pessoas bem armadas. O ministro de Estado Conde de Linhares geral dos habitantes .. O peixe é abundante, e mesmo o espadarte (Przs-
teve a atenção particularmente dirigida para essa bela e fértil zona. tis serra) sobe muito além de Linhares, até à lagoa de Juparanã, onde
Estabeleceu novos postos militares e construiu a povoação atual- é freqüentemente pescado.
mente, devido a êle, chamada Linhares, oito a dez léguas rio acima, Vinham das florestas os berros de numerosos macacos, sobretudo dos
no local onde se fundara o primeiro quartel. Mandou desertores e barbados (Mycetes ursinus), e dos saí-açus (Callithrix pers.onatus,
outros criminosos para povoar a nova colônia, que teria certamente Geoffroy, etc.)304. Vimos aí, pela primeira vez em estado. selvagem,
prosperado em curto prazo, não fôsse a morte arrebatar tão cedo o as magníficas araras (Psittacus macao, Linn.) 305 , um dos mawres orn~­
ativo ministro. Desde então, a zona ficou inteiramente ao abandono, mentos das florestas brasileiras; ouvimos-lhes os gritos altos e estri-
e, a não ser que se adotem medidas enérgicas, estará de todo deserta dentes, e as admiramos a esvoaçar, esplêndidas, por sôbre as cimas
dentro em pouco.
das altaneiras sapucaias. Podíamos reconhecê-las à distâ?cia pelos
Estávamos impacientes por subir o belo rio Doce, a fim de, se rabos compridos, e a brilhante plumagem vermelha refulgta deslum-
possível, conhecermos o teatro da guerra com os Botocudos nas flo-
brantemente sob os raios do sol. Periquitos, maracanãs, maitacas,
( *) Cf. v. EscHWEGE, Journal von Brasilien, I, p. 52. tiribas, curicas, camutangas, jandaias e outras espécies de papagaios
voavam aos bandos, em algazarra, de uma margem a outra, enquanto
(302) Nos porcos do mato brasileiros são reconhecidas ainda hoje duas espécies, o grande e majestoso pato almiscarado (Anas mos~hata.' Linn)~ 06
pertencentes ambas ao gênero Tayassu Flscher, I814 (com prioridade sôbre Dicotyles
Cuvier, I8I7): o "queixada", Tayassu pecari (Link, I795) (= Dicotyles labiatus Cuvler, pousava no ramo de uma Cecropia, na orla da mata, a beira do no.
I8I7), e o " ca itetu" ou "catêto", Tayassu tajacu (Linn., I758) <= Dicotyles to1·quatus O talha-mar (Rhynchops nigra, Linn.)307 permanecia imóvel, de pescoço
Cuvier) . O primeiro, maior e muito mais temível, reconhece-se pela sua maxila inferior
branca, e o segundo pela faixa ou coleira esbranquiçada que circunda a parte baixa
do pescoço.
(303) A " onça preta ", a que entre nós aplica m comumente a denominação de (804) Já ,houve ocasião de referir a êstes dois s ímios. Cf. notas I04 e 258,
todo imprópria de tigre, é uma simples variedade melltnlca da " onça pintada" (Felis respectivamente.
onca Linn.), reconhecendo-se sempre perceptivelmente sôbre o fundo negro as manchas (305) Ara chloroptera Gray. V. nota 186.
características da espécie. Distinguem os sertanistas e caçadores, sob nomes diversos,
certo número de variedade de onç.a; zoologicamente formam porém tôdas, como o (806) V. nota 249.
próprio Wied (Beitr. 11, p. 854) não tardaria a reconhecer, uma só espécie. (807) V. nota 298.
158 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 159

encolhido, nos bancos de areia (coroas); tucanos e surucuás (Trogon ferir os ouvidos vozes surpreendentes de pássaros. Embaixo, junto à
viridis} Linn.)sos emitiam os altos gritos. f.sses animais selvagens e os água, havia algumas flôres esplêndidas, ainda novas para nós, entre
Botocudos, agora, aliás muito mais raros, são os únicos habitantes das as quais uma Convolvulus (ou planta aparentada) de flôr branca notà-
margens do rio. Escasseiam os colonos; apenas em dois lugares se velmente grande, e uma leguminosa da classe Diadelphia 31 1 , com gran-
estabeleceram algumas pessoas, suficientemente armadas para a defe- des flôres de um amarelo vivo, enlaçando-se às moitas num denso
sa. Carregam sempre as espingardas, quando vão às plantações; entrançado. Um jacaré, que se aquecia tranqüilamente ao sol, fugiu
e os que não têm armas de fogo possuem, pelo menos, um bodoque, com ao ruído dos remos. A s.a estampa da nossa edição in-4to representa a
que atiram pelotas ou pedras. Só de vez em quando, e passageiramente, viagem nesse estreito canal e dá precisa idéia de sua natureza luxu-
descem os Botocudos até essa baixa porção do rio. riante e majestosa. Breve chegamos a uma porção de ilhas, onde os ha-
Ao meio-dia, atingimos a ilhota denominada Carapuça (gorro), bitantes de Linhares fizeram plantações; porque somente nessas ilhas
devido à forma. Aí descansou o nosso pessoal fatigado; e achamos ficam a salvo dos selvagens, que não possuem canoas e não podem,
de todo impossível chegar a Linhares no mesmo dia. Para nos defen- em conseqüência, atravessar o rio, exceto quando a sua largura e a
dermos da rápida correnteza do rio, subimos até um estreito canal, profundidade são insignificantes. O guarda-mor reside na Ilha do Boi,
entre uma ilha e a margem, onde esvoaçavam inúmeras aves belas, e o padre de Linhares na Ilha do Bom Jesus. A meio-dia estávamos
especialmente papagaios, entre os quais as magníficas araras produziam à vista de Linhares, e saltamos na margem norte, depois de têrmos,
singular e admirável efeito, quando o sol poente lhes iluminava a com grande esfôrço, feito caminho contra a rápida caudal, no que duas
plumagem vermelha. As margens dessas ilhas e do canal são, na maior varas se partiram.
parte, revestidas pelas densas touceiras das altas ubás, a haste cuja Quando chegamos a Linhares dirigimo-nos à casa do "alferes"
inflorescência é empregada nas flechas pelos Botocudos. Quando a Cardoso da Rosa, que comandava êsse pôsto do rio Doce. Aconteceu
noite se aproximava, os soldados indagaram o que seria melhor, dor- estar ausente, na fazenda de Bom Jardim, situada noutra parte da
mir na Ilha Comprida ou numa das outras. A primeira foi rejeitada, povoação do lado oposto do rio. Fomos convidados logo a ir até
porque apenas a separa da margem estreito e raso canal, e não esta- lá depois da nossa chegada; atravessamos a larga e veloz corrente
ríamos livres de uma incursão dos selvagens. Fomos, por isso, para numa leve canoa, admiràvelmente dirigida por dois negros da fazenda,
a Ilha de Gambim, onde outrora os governadores costumavam passar e tivemos amável e calorosa recepção em casa do tenente João Filipe
a noite, durante as visitas à colônia do rio D.oce. O atual governador Calmon, onde se reunira jovial sociedade. Também nos encontramos
não continuou essas visitas, e encontramos o matagal da costa tão com o alferes, a quem cumprimentamos e demos parte do objetivo da
viçoso e denso, que um dos meus caçadores teve que abrir caminho nossa viagem. Percorremos a fazenda cujo proprietário foi o pri-
com o facão, antes que pudéssemos saltar em terra. Acendeu-se logo meiro a montar um engenho de açúcar no rio Doce. As plantações de
grande e alegre fogueira em lugar desbravado, donde voaram uma cana-de-açúcar, anoz, etc., estavam exuberantes; a mandioca, entre-
grande corujasoo e um pato almiscarado, temeroso dos inesperados tanto, não dá tão bem nessas paragens. O Sr. Calmon prestou grandes
hóspedes. As picadas dos mosquitos nos importunaram um pouco, serviços à região por sua inteligência e operosidade, encorajando a
mas dormimos tranqüilamente até a manhã. população, pelo exemplo, a cultivar a terra. Com dezessete escravos
Deixamos a ilha muito cedo, subimos o rio passando por diversas (pelo menos êsse era o número de então), desbravou considerável tre-
ilhas, até um canal entre a Ilha Comprida e a margem norte. A cor- cho da floresta, e provou, pelo florescente estado das plantações, serem
renteza não era aí tão forte, mas encontramos muitos troncos e galhos as margens do rio férteis em extremo, e próprias para tôda espécie
caídos, que precisamos remover antes de prosseguir. Os cerrados e as de cultura. Aí passamos um dia bastante agradável (28 de dezembro),
grandes árvores, que orlam êsse canal, oferecem o mais variegado e esforçando-se ambos, o alferes e o tenente, por nos serem amáveis.
magnífico dos espetáculos. Várias espécies de palmeiras, sobretudo o Linhares é ainda um povoado insignificante, apesar do trabalho
elegante "côco de palmito", conhecido em outras partes por "jissara"aio, desenvolvido, como foi dito acima, pelo ministro Conde de Linhares
de caule alto e delgado e pequena copa de fôlhas penadas verde- para o seu progresso. Por ordem dêste, construíram-se os edifícios
brilhantes, adornam essas florestas sombrias, de cujos recessos vêm numa praça situada em área aberta na mata, perto da beira do rio
(808) V. nota 121.
. (811) No sistema fito-taxinômico sexual de Linneu a classe Diadelphia forma um
(809) Graças aos Beitrtiue (III, p. 275) ficamos sabendo que se tratava do corujão conJunto heterogêneo .de quatro ordens, das quais a última, caracterizada pelo androceu
de orelhas, ou " jacurutu ", Bubo viruinianus nacurutu (VIeillot) e que dêle já havia de dez estames reumdos em dois feixes ordlnàriamente desiguais, é de tôdas a mais
Wied conseguido um exemplar no Rio Itabapuana. vas~ . e _compreende a grande maioria das Leguminosas Papllonáceas das modernas
(810) V. a nota 869. classificaçoes.
160 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 161

e sôbre íngreme ribanceira de argila. As casas são pequenas, baixas, caçadores atirar de rifle numa delas, à distância de oitenta passos,
cobertas de fôlhas de palmeira ou de uricana, feitas de barro e não e a bala varou-a de lado a lado, ademais sem esvaziá-la. Entretanto
rebocadas. Ainda não tem igreja, sendo as missas oficiadas numa em experiências ulteriores, viu-se que um tiro mais forte, disparad~
casinhola. No meio da praça formada pelos edifícios, há uma cruz de a sessenta passos, jogava-a ao chão sem vará-la, e que ela constituía,
madeira, para cuja feitura se desgalhou simplesmente o cimo de uma portanto, defesa bastante contra flechas. Na Capitania e em outros
grande e bela sapucaia, pregando-se-lhe uma viga transversal. Os mora- lugares são feitas de sêda; por isso, muito mais leves, embora muito
dores estabeleceram as plantações, parte na mata circunjacente, parte mais caras. Na última refrega, próximo a Linhares, um Botocudo
nas ilhas fluviais. O tenente Calmon foi, entretanto, o primeiro, e é extremamente forte disparou, de perto e com tremenda energia, uma
ainda a única pessoa que abriu uma fazenda e possui um engenho. flecha contra um soldado. A flecha penetrou a cota, mas o dono só
Quando quis fixar-se na margem oposta a Linhares, levou ficou ferido levemente, de lado; contudo, mesmo quando a flecha
trinta ou quarenta homens armados e atacou um magote de Boto- é detida, sempre causa um choque violento.
cudos, que tinha resolvido disputar-lhe o terreno. Um dos selva- últimamente, abriu-se um caminho da fazenda de Bom Jardim
gens foi morto; mas cedo se compreendeu que essa horda, que somava ao Quartel do Riacho; êsse caminho passa por uma lagoa, deno-
150 arcos, não podia ser expulsa apenas pela fôrça, e adotou-se outra minada Lagoa dos índios•. Aí existe um segundo pôsto, chamado
maneira; foram ameaçados pela retaguarda e, por êsse estratagema, Quartel d' Aguiar. Residem no lugar algumas famílias indígenas,
compelidos à retirada. Desde então, nunca mais o incomodaram e oito soldados índios exercem a vigilância. Os índios civilizados
durante os três anos que aí residia. Se houvesse algum comércio portam-se como bons soldados contra os irmãos das selvas. tstes lhes
local, as diversas e valiosas variedades de madeira, que essas flores- votam ódio mortal, e dizem que os procuram atingir em primeiro
tas produzem em abundância, merecer-lhe-iam tanta atenção quanto lugar, porque os consideram traidores do povo. A certa distância
o fértil solo da fazenda. E' verdade que a peroba, excelente madeira além de Linhares, fica, na mata, o "quartel segundo de Linhares"
de lei para construção naval, é considerada propriedade da coroa; (a própria aldeia sendo considerada o primeiro), com vinte e três
mas o Sr. Calmon obteve permissão para construir belas e grandes soldados: na margem sul do rio Doce, estabeleceram-se dois quartéis
canoas de mar, que envia à Capitania e a outros lugares, carregadas para cima de Bom Jardim. O quartel de Ana dia possui doze sol-
com os produtos da fazenda e com muitos tipos preciosos de ma- dados; e o do Pôrto de Souza, que é o mais avançado, vinte homens.
deira, já freqüentemente mencionados. Há, em Linhares, oito gibões dos descritos acima, quatro em Pôrto
de Souza, e um em Anadia; os homens que os utilizam são obrigados
A fim de proteger tôda essa colônia dos ataques e crueldades dos a empenhar-se no primeiro ataque, em caso de ação.
Botocudos, estabeleceram-se, em diferentes direções, oito postos no
interior das florestas, os quais ao mesmo tempo se destinam a pro- O oficial comandante de Linhares tem uma tarefa muito penosa,
teger as ligações comerciais com Minas Gerais, ultimamente tentadas porque está obrigado, sem respeitar calor ou chuva, a visitar mensal-
~ente todos os postos, o que representa uma jornada de noventa
pelo rio acima. De fato, já tinham descid;, dessa província, soldados
em número suficiente, bem armados e providos de uma couraça defen- leguas. O Sr. alferes Cardoso da Rosa, que havia muito servia no
siva, chamada "gibão d'armas". Essas couraças, de que todos os postos lugar, manda os soldados dos quartéis patrulhar as florestas, para
possuem algumas, constituem proteção indispensável contra as flechas, a s_eg~rança d~s habitantes. Se encontram selvagens, dão alarma com
que o~ selvagens arremessam com grande fôrça. São largas, feitas ?Ois tiros se!?mdos, sinal a que acorrem todos em condições de mane-
de tendo de algodão e espêssamente acolchoados com várias camadas Jar uma espmgarda. Mas os selvagens atacam muitas vêzes as roças,
de paina; têm uma gola alta e dura, que protege o pescoço, e mangas e destarte Já mataram muitos habitantes de Linhares. Um fato dessa
curtas que cobrem a parte superior do braço; descem até os joe- o:dem aco~teceu bem recentemente em agôsto de 1816, no segundo
po~to de L_I~hares, onde, entretanto, um resoluto mineiro (nativo de
lhos, mas são incômodas por causa do pêso, sobretudo nas épocas de
calor. A vinheta dêste capítulo, na edição in-4to., mostra um par Mmas), ohoal subalterno, chefiou a defesa e repeliu os selvagens.
de soldados munidos dêsse protetor. A flecha mais forte, mesmo A população atual de Linhares compõe-se principalmente de sol-
quando disparada de perto, não penetra fàcilmente essa cota, e de d~dos, um al~eres, um cirurgião, um padre, e alguns colonos, que
nenhum modo tem fôrça bastante para produzir um ferimento sério. VIvem da agncultura. O padre, protegido, como nos disseram, do
E' verdade que a população tem nela confiança demasiada, porque
nos. asseguraram que mesmo uma bala não a consegue atravessar. pelos ~)to Dj>ols que estive em Llnhares, três soldados foram assassinados, nesse caminho,
norizadao d~u f~~~- em Abril de 1816 ; mais adiante se encontrará noticia mais porme-
A hm de convencer-me da verdade do asserto, mandei um dos meus
162 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM AO RIO DOCE 163

governador Rubim, da Capitania, assumiu na colônia poderes que alguns Botocudos apareceram de súbito diante do segundo quartel
lhe não pertenciam, interferindo em todos os negócios, mesmo nos de Linhares, à beira do canal, e mataram um soldado a flecha. O
que não diziam respeito aos seus deveres oficiais; era muito temido, fato se deu poucos dias antes da nossa chegada, mas o cadáver não
porque vivia, alternadamente, aí e na Vila de Vitória, junto caiu, dessa vez, nas mãos dos Botocudos. Devido a essas circuns-
ao governador. tâncias e à estreiteza do canal, os colonos do rio Doce preferem a
Essa colônia, que se poderia tornar fàcilmente um dos pontos mais noite quando vão pescar no lago. ltste, cercado de margens monta-
importantes da costa oriental, era, ao tempo em que aí estive, diri· nhosas, tem perto de sete léguas de comprimento, de sudeste a noro-
gi_d~ de_ maneira cruel e errônea. Assim, as pessoas que quisessem este, meia légua de largura e de dezesseis a dezoito léguas de circunfe-
VIaJar unham de pedir permissão; não se permitia a nenhuma família rência. A profundidade é desigual, mas chega, em muitos pontos, a oito
consumir mais que uma garrafa de aguardente em três meses; e e doze toesas. Essa grande massa d'água é formada por um pequeno
muitas outras restrições análogas. O povoado, provàvelmente, teria rio312 e diversas correntes que se lançam no lago, vindos de NNO.
desaparecido, se não tivesse logo recebido socorro; com efeito, terei Desemboca, próximo a Linhares, através do canal referido, no rio
ocasião, na seqüência dessas viagens, de contar o que lhe aconteceu Doce, avolumando-se consideràvelmente quando os fortes ventos do
depois. sul lhe dificultam o escoamento através do mesmo canal. O fundo e
A estada no rio Doce foi, sem dúvida, uma das etapas mais as margens do lago são de areia fina, encontrando-se, aqui e ali, are-
interessantes das minhas viagens pelo Brasil; porque, à margem dêsse nitos ferruginosos. A cêrca de cinco léguas da entrada, fica uma pe-
rio, de cenários tão soberbos e tão notável do ponto de vista das quena ilhota de granito, que, devido à distância da margem, não
r~quezas naturais, tem o naturalista muito com que se ocupar e expe-
é visitada pelos selvagens, e oferece, por isso, seguro abrigo aos
nmentar as mais variadas e agradáveis emoções. Todavia, os frutos de pescadores".
nossa_s pesq_uisas teri;tm ~ido muito maiores, caso pudéssemos percorrer, Já em 1662, os Aimorés (Botocudos), Puris e Patachós foram men-
sem 1mped1mento e pengo, essas florestas ainda inexploradas. Dizem cionados por Vasconcellos entre as tribos tapuias do rio Doce; e embora
não ser fácil encontrarem-se paisagens mais deleitosas do que, por sejam os primeiros os verdadeiros senhores dessas paragens, os outros
exemplo, a da Lagoa de Juparanã•, extenso lago não longe de Linha- incursionam algumas vêzes até aí. O mesmo narrador também observa,
res, em comunicação com a margem norte do rio por meio de estreito com tôda razão, que alguns dos Aimorés ou Botocudos são quase
canal. ltsse belo lago é mencionado por muitos escritores antigos. tão brancos quanto os portuguêses. A desgraçada guerra sustentada
Sebastião Fernandes Tourinho, o primeiro a subir o rio Doce, em contra os Botocudos no rio Doce torna impossível conhecer de perto
1572, diz que topou um lago a oeste, que é com certeza essa lagoa; e estudar, nessa região, êsse notável povo; quem quiser vê-los aí,
apenas não coincide a direção do riacho que deságua no rio, nem a deve preparar-se para uma flechada. Porém mais ao norte, à mar-
cachoeira, além de que as distâncias são também diferentes. Consulte-se gem do Rio Grande de Belmonte, os habitantes vivem em paz com
a êsse respeito SIMÃo DE VAscoNCELLOS e a História do Brasil de êles, e, por isso, deixo tôdas as minhas observações sôbre essa interes-
SouTHEY. sante tribo de aborígines para o momento da minha visita a essa
O Sr. Freyreiss, que tornou a visitar Linhares alguns meses mai~ parte do país.
tarde, enviou-me a seguinte descrição de sua visita a essa lagoa, Linhares é ótimo lugar para o amante da caça: pois, quando
que reproduzo textualmente: "Um canal, que raras vêzes ultrapassa alvorece, os macacos se chegam tanto às casas, que se não precisa
sessenta p~s de largura, porém profundo, e de cêrca de légua e meia sair à procura dêles: os papagaios se reúnem em grandes bandos, e
de compnmento, conduz ao grande lago, onde o peixe é abundante. as magníficas araras são atraídas, na estação mais fria, por certas
As margens . do canal são ainda habitadas pelos Botocudos, outrora frutas. Estas grandes e lindas aves constroem os ninhos, todos os
chamados Aimorés, que possuem, mais ou menos a meio canal uma anos, na mesma árvore, desde que encontrem, ocos, um galho forte
passagem feita de cipós q_ue os portuguêses chamam impropria~ente ou tronco. São freqüentemente éaçadas; a carne é comida; as penas
de ponte. Essa ponte f01 cortada pelos portuguêses há vários anos das asas se usam para escrever, e, pelos selvagens, para enfeitar as
atrás, e os . selvagens não . procuraram repará-la; iludidos por êsse flechas, ou como adôrno. Na quietude, raramente perturbada, dêsses
fato, os habitantes estavam Imprudentemente tranqüilos, senão quando
(812) O rio a que aqui se faz referência deve ser o São José, tributário
do ângulo oeste-setentrional da lagoa. Visitei-o em setembro de 19U, atraldo pelo
( *) A palavra " Juparanã ", ou inelhor, "Juparaná" não provém da linguagem que se dizia de sua riqueza faunistica; todavia, multo pouco encontrei capaz de
d_os . ~ Botocudos ", q~e habitam es~ par~gel!_s. mas da "llngua geral " ; e "Paraná" lembrar essa época passada. Cf. A 1·quivos de Zoologia do Est. de S. Paulo, tomo IV,
SigmfiCa mar. ou mmta água. Essa lagoa nao está registrada no mapa de Arrowsmith. pp. 819-20 (1U45).
Faden menCionou-a pelo nome exato, mas não a colocou no verdadeiro local.
164 VIAGEM AO BRASIL

ermos não é difícil voltar para casa, à tardinha, com a canoa cheia
de caça; mas é preciso, em tôdas as excursões, estar sempre de guar-
da contra os selvagens. A experiência faz dos soldados de Linhares
bons conhecedores da maneira de perseguir um selvagem na floresta,
mas todos confessam que os Botocudos são caçadores muito mais
hábeis, e muito melhor conhecedores da mata do que êles; daí a grande VIII
precaução exigida por essa atividade e essas expedições às selvas. Em
geral, os mineiros (ou habitantes de Minas Gerais) são considerados
os melhores caçadores de selvagens, porque estão familiarizados com VIAGEM DO RIO DOCE A CARAVELAS,
êsse modo de vida e com as guerrilhas nas florestas, sendo, além
disso, um povo audaz e impetuoso. Em Linhares, a última entrada AO RIO ALCOBAÇA, E AO MORRO
importante contra os Botocudos, no último mês de agôsto, foi
chefiada pelo Guarda-Mor, que era um mineiro, banido de Minas
DA ARARA, DE VOLTA AO MUCURI
para aí; presentearam-nos com algumas armas e ornamentos dos
Botocudos, chegando mesmo a nos oferecerem uma criancinha, que Quartel de ]uparanã da Praia. - Rio e Barra do
fôra criada em Bom Jardim, depois que a mãe morrera em refrega. S. Mateus. - Mucuri. - Vila Viçosa. - Caravelas.
Satisfeito o fim de nossa visita a Linhares, despedimo-nos e conti- Ponte do Gentio, no ri_o Alcobaça. - Estada neste último.
nuamos viagem para o norte, ao longo da costa. Embarcamos numa
grande e cômoda canoa, que o tenente Calmon nos emprestou; e o
obsequioso proprietário teve a gentileza de acompanhar-nos. Na jor-
nada rio abaixo, visitamos o guarda-mor na Ilha do Boi, onde fêz
belas plantações de milho e mandioca. Percebemos logo, em sua casa,
que era mineiro, porque se alimentava mais de milho do que de farinha Depois de passarmos a noite com os nossos amigos no Quartel
de mandioca, o que constitui hábito característico dos habitantes de Regência, a muito custo, na manhã seguinte, a 30 de dezembro,
dessa província. Para reduzir o milho a farinha, fazem uso de um embarcamos os burros numa grande canoa, para passar o rio. Atra-
pilão, denominado "preguiça". O sr. Mawe deu uma figura dêle, vessamo-la nós em seguida, e à tarde, acompanhados pelos dois cava-
na descrição de sua viagem ao Tejuco•. Nossa canoa, muito segura lheiros de Linhares, fizemos a cavalo duas léguas ao longo da costa are-
e cômoda, provida de um tôldo, e bem suprida de provisões, levou-nos nosa e deserta, chegando ao Quartel de Monsarás, ou Juparanã da Praia,
em quatro horas à barra do rio Doce, à Regência, distância que nos onde servem sete soldados. Próximo a êsse quartel, existe uma longa
tinha tomado um dia e meio, quando subimos a corrente. e estreita lagoa, conhecida por Lagoa de Juparanã da Praia para
distinguir da muito maior, que fica perto de Linhares. No tempo
da cheia, a lagoa se comunica com o mar, nesse trecho da costa,
por um largo canal, que pode ser percorrido em canoas; então, porém,
estava sêco, e os animais carregados puderam atravessá-lo sem molhar
as patas. O quartel fica na praia, junto ao mar; logo por detrás
se estende a lagoa e, além, densas florestas, onde pudemos distinguir
grande número de palmeiras. Os soldados fizeram plan~ações f!-a.s
vizinhanças, de mandioca, milho e mesmo ótimas melanCias, suflcl-
entes para o seu próprio sustento. Possuem, além disso, algumas canoas,
e completam a alimentação caçando e pescando.
Encontramo-nos aí com um velho muito curioso, chamado Simão,
que, de longa data, morava quase segregado numa casinha . per~o do
quartel, sem nenhum receio dos selvagens. Embora mmto 1dos~,
ainda gozava de excepcional vigor e lucidez de espírito, sendo :_sti-
(*) J. MAWE's, Travels, etc., p. lU, com a gravura em cobre, sob o nome de "Sloth". mado por todos os vizinhos. ~le mesmo cuidava de suas plantaçoes,
166 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 167

era caçador e pescador consumado, e conhecia, em mmue1as, a região modo, deixar de passar os poucos lugares em que ela pode ser achada, e,
em derredor. Visitamo-lo diversas vêzes no pequeno eremitério, e por isso, um guia bem prático do caminho é de todo indispensável.
encontramo-lo, com as suas restritas necessidades, não só absolutamente Infelizmente, nenhum dos dois soldados tinha feito antes essa jornada.
satisfeito da vida, como, além disso, tão bem humorado e contente, Perdemos o primeiro lugar de aguada, chamado Cacimba de S. João,
que contagiava a todos com a sua alegria. Fêz-nos presente da pele mas encontramos o segundo, que é uma lagoa, num pequeno vale baixo,
de um grande tamanduá (Myrmecophaga jubata> Linn.) 31 \ aí deno- denominado Peringa, ao lado da estrada, quando, ao meio-dia, nos dis-
minado "tamanduá cavalo", morto por êle havia pouco. Em Mon- persamos em tôdas as direções, em busca de água: nós e os animais
sarás conseguimos outras raridades para as coleções de história natu- gozamos aí de algum refrigério. À tardinha, no local em que paramos,
ral; por exemplo, o Scarabaeus hercules31 4, o besouro· maior do Brasil, a procura foi infrutífera; não se encontrou nenhuma, e, por isso, não
que um soldado apanhou e nos trouxe vivo. Ulteriormente, um homem pudemos fazer uso das provisões, muito sêcas para serem comidas sem
trouxe, de uma vez, quatro a cinco cabeças dêsse raro escaravelho; água. Nosso único recurso, para matar a fome, foi comer um pouco
perguntando-lhe a causa da lamentável mutilação, soubemos que, em de farinha sêca de milho e os ovos de tartaruga, providencialmente
muitos lugares, as senhoras usam essas cabeças enfiadas em volta colhidos pelos soldados, os quais cozinhamos em água do mar. En-
do pescoço, como adôrno. quanto o pessoal se ocupava em procurar um pouco d'água e em apa-
A fim de obtermos a necessária escolta através dos ermos que nhar paus lançados na praia, descobrimos - que maravilha! -, a
se estendem até S. Mateus, dezoito léguas de extensão, pedimos ao curta distância da nossa fogueira, uma gigantesca tartaruga marinha
alferes, nosso companheiro, que nos cedesse dois soldados, como os (Testudo mydas> Linn.), que ia justamente pôr os ovos. Nada poderia
documentos, que recebêramos do ministro, Conde d'Aguiar, nos auto- ser mais bem-vindo à nossa esfaimada companhia; o animal parecia
rizava a solicitar. Tínhamos mostrado êsses documentos ao governa- ter aparecido expressamente para nos oferecer uma ceia. Nossa pre-
dor em Capitania, e lhe pedíramos assegurar-nos o pessoal indispen- sença não a incomodou; pudemos tocá-la e mesmo levantá-la, o que,
sável à consecução da nossa viagem. Neste ínterim, recebemos uma porém, exigiu a fôrça conjunta de quatro homens. Apesar de tôdas
carta dêle para o alferes de Linhares, autorizando-lhe a ceder-nos um as exclamações de surprêsa e das deliberações sôbre o que faríamos,
soldado. Considerando, no entanto, a extensão e a insegurança do a criatura não deu sinal de inquietação, a não ser uma espécie de
caminho até S. Mateus, ao próprio oficial pareceu muito temerário sôpro, mais ou menos como o ruído feito pelos patos quando alguém
expor um único homem ao perigo de voltar sozinho; as nossas ponde- se aproxima dos filhotes . Continuou a trabalhar como começara,
rações acabaram de convencê-lo, e conseguimos dois soldados para a cavando na areia, com os membros posteriores em forma de nadadeira,
escolta. Soubemos, depois, que o governador, muito injustamente, um buraco cilíndrico de oito a doze polegadas de largura; jogou
o punira com longa prisão: e lamentamos sinceramente ter acarre- a areia para os dois lados, muito regular e àgilmente, como se mar·
tado, a êsse digno homem, tão imerecido e severo tratamento. casse compasso, e começou imediatamente a pôr os ovos.
Tendo-nos despedido dos gentis amigos que nos acompanharam Um dos soldados deitou-se a fio comprido perto dessa fornecedora
assim tão longe, vencemos, no mesmo dia, seis a sete léguas ao longo da nossa cozinha, e foi retirando os ovos do buraco tão depressa a
do monótono litoral. Os dois soldados, um negro e um índio, paravam tartaruga os ia pondo; e assim reunimos 100 ovos em cêrca de dez
muitas vêzes para desencavar, n a areia, ovos de tartaruga, com que minutos. Pensamos em incorporar o belo animal às nossas coleções;
enchiam as mochilas. Embora isso nos desagradasse, porque as para- mas o grande pêso da tartaruga, que exigiria um burro só para
das nos atrasavam, tivemos, à noite, tôda razão para nos congratu- carregá-la, e a dificuldade de transporte de uma carga tão desajeitada,
lar com o fato. O trecho do rio Doce a S. Mateus, como já obser- levou-nos a poupar-lhe a vida, e a contentar-nos com os ovos. A
vamos antes, é uma solidão melancólica, na maior parte da qual nem vinheta do oitavo capítulo r~presenta com exatidão ~sta cena original.
mesmo água fresca se encontra; não se deve, portanto, de nenhum E-sses enormes animais, a midas e a tartaruga de concha mole
( 818) Myrmecophaua tridactyla Linn. (1758), nome vigente. Hoje, no Brasil, é
(Testudo mydas e coriacea), e bem assim a Testudo caretta ou Cau-
quase que exclusivamente conhecido por "tamanduá-bandeira". Multo encontradlço nos ane315, depositam os ovos, na areia, nos meses mais quentes do ano,
campos de Goiás e Mato Grosso. Incapaz de agredir, é temlbilisslmo na defesa, graças
às garras enormes e à vigorosa musculatura dos membros. Vem a talho referir, em apolo _( 81 5) As espécies aqui registrad as por Wied, apa recem usua lmente na litera tura
dessa asserção, o trlstissimo exemplo de um sertanejo, que conheci pela minha viagem zoológiCa_ atual com os seguintes nomes: Chelone mydas (Linn .), D ennatochely s <== Sphar-
ao Rio das Almas (Estado de Goiás), completamente aleijado, em conseqüência do rns) corwcea (Linn.), Caretta (Thalassochelys ) carett a (Linn.).
que me explicou, em lacônica resposta: "unha de tamanduá ". (V . Rev. do Museu _ Nos Beitrtiue (vol. 1, pp. 15 a 27) elas foram descritas com os nomes de, respec-
Paulista, XX , 1986). As referências a tamanduás feitas por Wled em seu relatório tlvamen~e, Caret~a ~esculenta, Sphargis mer c-urialis e Chelone i mbricata, devidos _
a Merrem.
de Viagem correspondem à presente espécie; não obstante, obteve êie no Mucurl (cf. Das tres, a pnme1ra e a última possuem carapaça ossifi cada, com revestimento de
Beitr ., 11, p. 589) um exemplar de • t a manduá-eolête", Taman du a t etradactyla Llnn. sub~tânc ia _córne.!' caracteristica; a segunda, que de tôdas é a mais ra ra e a que atinge
(814) Dynastes herculea da nomenclatura hodierna. ma10res d1mensoes, possui carapaça membranosa, sem revestimento de placas córneas.
168 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 169
sobretudo nesse trecho deserto da costa, entre o Riacho e o Mucuri; também a nós, europeus. Encontramos, do outro lado, um casebre
para êsse fim, dão à praia ao crepúsculo, arrastam-se pesadamente pela em ruínas, onde houvera um "quartel" (pôsto militar), próximo do
costa arenosa, cavam um buraco onde põem os ovos, enchem-no de qual existia muito boa água fresca.
areia, calcam-na e, uma ou duas horas depois do ocaso, voltam para Alguns índios tinham pernoitado no lugar, provàvelmente em
o mar. Foi êsse o caso da tartaruga que tão generosamente nos busca de ovos de tartaruga e de peixe, de que há fartura em Barra
supriu; quando tornamos à praia algumas horas após, tinha-se ido; Sêca; também se estendem, pelos arredores, "campos" extensos (tre-
tapara o buraco, e o largo rasto, deixado na areia, mostrava que vol- chos abertos, despidos de vegetação), muito bons para criação de gado.
tara para o seu meio natural. Uma só tartaruga dessa espécie pode As choças dos índios (ranchos) feitas de fôlhas de palmeira, ainda
fornecer, com os ovos, abundante repasto a todo um bando; porque, podiam ser vistas. ~? meio-dia, desc~brir~:ws uma caverna, na qual
segundo parece, a midas chega a pôr, de uma vez, dez a doze dúzias, havia uma queda d agua fresca e cnstahna, descoberta que, nesse
e a de concha mole, de dezoito a vinte. ~sses ovos constituem muito momento, era para nós de valor inestimável. A tarde e a noite passamos
bom alimento, e são, por isso, àvidamente procurados no litoral deser- de novo na costa deserta: a Remirea littoralis311 formava alguns pon-
to, pelos índios, como pelos brancos nas cercanias da colônia. tos verdes no areal; mas as palmeiras anãs eram numerosas, e mais
Nossa frugal ceia logo terminou; acendemos, a seguir, várias fo- para o interior, e:gu~am:se grande~ flo~estas ... Nada, além • do
gueirinhas entre os bosques de palmeiras anãs, a fim de afugentar rasto de feras na are1a, md1cava que seres v1vos V1s1tassem, por vezes,
as feras de perto dos burros. Na manhã seguinte, descobrimos na essas paragens. Mal tínhamos água para beber, e, conseqüentemente,
areia pegadas recentes de um grande felino que estivera rondando muito pouco para comer. Com a aproximação da noite, uma sólida
pelos arredores, durante a noite. O velho Simão assegurou-nos que e segura choça de fôlhas de coqueiro, para cuja construção todos nós
a onça preta, ou tigre negro (Felis brasiliensis) 31 6, chamado por Azara trabalhamos, estava pronta. Esperávamos descansar das fadigas do
"Yaguarété noir", não é rara nessas paragens: os portuguêses a conhe- dia; mas nuvens de mosquitos nos atormentaram tanto, que nem se
cem por "tigre" ou "onça preta"; Koster•, em sua viagem, também pôde pensar em dormir. Desgraçadamente, não pudemos fugir dêles
se refere a êsse formidável carnívoro, porém, o apelida Felis discolor, para o ar livre, devido ao pesado aguaceiro que caiu. Na manhã
- nome impróprio, porque só tem realmente uma côr. Parece mais
correto dar-lhe um nome de acôrdo com o país de origem, porque se
seguinte, descobrimos que os burros tinham voltado, em busca ?e
água, para a cascata onde saciaram a sêde no dia anterior, pelo melO-
encontra exclusivamente no Brasil; mesmo Azara nos informa que dia; e perdemos doze horas até conseguir recambiá-los; felizmen~e
o não viu no Paraguai. Pensamos ter ouvido os urros dêsses animais; os animais de sela não foram tão longe; por isso, recapturamo-los ma1s
mas o nosso sono não foi interrompido, e retomamos a viagem, cedo, cedo e cavalgamos na frente.
na manhã seguinte. A tardinha, chegamos à barra do S. Mateus, rio de tamanho ~egul~r,
A 1.0 de janeiro, dia em que nossa terra fica geralmente amor- de margens aprazíveis cobertas de mangues (Conocarpus e Avtcennza)
talhada em gêlo e neve, já às sete horas tínhamos uma ardente soa- e, mais além, de florestas. Duas lanchas (barcos pequenos) estavam
lheira, e, ao meio-dia, o calor era demasiado e intolerável. Na tarde ancoradas à margem sul; na margem norte fica a povoação chamada
anterior, quando a sêde nos afligia tanto, havíamos parado, sem o Barra de S. Mateus, constituída de vinte e cinco casas. O rio desce
saber, perto de água muito fresca; pois mal tínhamos uma hora de de florestas seculares, infestadas de tapuias, e forma diversas cachoei-
marcha a cavalo, e atingíamos Barra Sêca, saída de uma lagoa para o rinhas, sendo navegável, por sumacas, cêrca de nove léguas para o
mar. Em certas épocas é tão rasa que quase se interrompe, e se pode, interior. As margens são o trecho mais fértil da "comarca", porque,
junto à praia, atravessar a pé enxuto. Ao tempo, entretanto, o nível ao que parece, as formigas não fazem aí tanto estrago; nas florestas,
d'água estava alto, e fomos obrigados a vadear o profundo e veloz há abundância de jacarandá, vinhático, putumujt..t, sergueira e outras
canal, o que nos atrasou bastante. Descarregamos todos os animais; madeiras úteis.
os índios e os negros, habituados à água, despiram-se e, depois de Recebe o S. Mateus uma porção de pequenos rios, dos quais o
transportarem, na cabeça, as caixas para o lado oposto, levaram-nos Rio de Santa Ana, o Rio Prêto, ou Mariricu, e o S. Domingos
(*) KosTER's, Travels, etc., p. 102.
são os mais importantes. Estava, então, profundo, porque era a
época da cheia e talvez por isso ninguém daria atenção aos nossos
(816) Até então, estava o autor convencido de que a onça preta constituía um.a chamados e tiros, para que nos viessem buscar em canoa. Perambu-
espécie particular, diferente da onça pintada, pelo que lhe propusera o nome de Fel•s
brasiliensis; mas, ao tratar do assunto nos Beitrtige (vol. 11, p. 858) , já não tinha
dúvida de que a primeira é simples variedade melânica da última, opinião de há (317) Remirea marítima Aubl., ciperãcea comum em multas praias da costa atlân-
muito partilha da por todos os zoologistas (vide a nota 308 ) . tica e outrora usada na medicina caseira.
170 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 171

lamos muito tempo entre as pequenas matas e pela areia, e sentíamo- tos de chumbo velho e ferro, adaptou-lhe um gatilho de espingarda,
nos quase resignados à penosa contingência de passar a noite onde nos colocou-o na picada estreita por onde os selvagens costumavam vir em
achávamos, quando uma canoa, conduzida por dois escravos negros, coluna, puseram um pedaço de pau atravessado na trilha, ligando-o
veio e nos tomou. Nossa "tropa" só chegou tarde da noite; estavam, ao gatilho por meio de um cordão. Os tapuias apareceram pelo
porém, os dela, mais preparados para acampar, porque tinham alimento, crepúsculo e pisaram o pedaço de pau, como se esperava. Quando a
fogo e cobertores, e havia uma linda queda d'água, perto da costa, para gente da fazenda correu ao local para ver o resultado, encontraram
lhes aplacar a sêde. o canhão arrebentado e trinta índios mortos e mutilados, alguns ainda
Na pequena povoação de Barra de S. Mateus, alojamo-nos em no lugar, outros espalhados pela mata. Dizem que os gritos dos fugi-
uma venda, cujo dono era intitulado Capitão Regente. Nossos do- tivos se ouviam a grande distância em redor. Depois dêsse 'horrível
cumentos, e as recomendações do ministro, garantiam-nos, em tôda massacre, parece que a "fazenda" nunca mais foi incomodada pelos
parte, muito boa recepção. Segundo Arrowsmith, a "barra" do rio selvagens.
S. Mateus fica a 18°15'; segundo outros, a 18°50'; havendo mesmo No rio S. Mateus, cujo nome brasileiro original é Cricaré, encon-
diferenças maiores. A última posição parece a mais certa, de vez que tra-se um animal raro, que até agora só foi encontrado em muito
no lugar em que ficaria o S. Mateus por aquêle mapa, o Mucuri deve poucos rios da costa oriental. Trata-se do manati, ou "peixe-boi" dos
lançar-se no oceano. Aproximadamente oito léguas rio acima, ergue- portuguêses. A história natural dêsse curioso bicho é ainda obscura
se a vila de S. Ma teus, cuja situação não deve ser muito salubre, em muitos pontos; é bastante freqüente no rio em questão, dizendo-
devido aos pântanos vizinhos- Tem cêrca de 100 casas, possuindo o se que algumas vêzes sai para o mar e se dirige, ao longo do litoral,
distrito perto de 3 000 habitantes, incluindo brancos e gente de côr. para outros rios; assim, por exemplo, já foi capturado no Alcobaça.
Apesar de ser uma das vilas mais novas da região de Pôrto Seguro, Em S. Mateus, o refúgio preferido do manati é uma lagoa densa-
acha-se em situação próspera. Os habitantes cultivam grande quanti- mente coberta de caniços e gramíneas outras. Não é sem dificuldade
dade de mandioca, exportando, anualmente, 60. 000 alqueires de que pode ser caçado. O caçador, num pequeno barco, rema atenta e
farinha; bem como toras de madeira provenientes das florestas vizinhas. silenciosamente entre os caniços e o capinzal; se vê o bicho com o
Somente oito léguas, subindo o rio, além da cidade de S. Mateus, se dorso acima d'água, como acontece habitualmente quando está pas-
encontram terras cultivadas; isto é, no quartel de Galveias, último tando, aproxima-se com cautela e arremessa-lhe um arpão ligado a
pôsto militar estabelecido contra os selvagens. Cêrca de meia légua uma corda318. O manati fornece grande quantidade de gordura e a
rio acima, fica a povoação de Santa Ana, formada por, mais ou me- carne é apreciada. O osso timpânico do ouvido é tido como remédio
nos, vinte famílias de índios, somando setenta pessoas. Um Botocudo poderoso pelo povo ignorante, e comprado a alto preço. Embora
foi morto em Santa Ana pouco depois de nossa partida. Era um fizesse, constantemente, grandes promessas, durante a minha estada
homem idoso e usava grandes batoques de madeira nas orelhas e no de três a quatro meses na região, com o intuito de obter um dêsses
lábio inferior. O Sr. Freyreiss, que de novo visitou o lugar em animais, falharam as minhas esperanças, e fui obrigado a conten-
fevereiro, trouxe o crânio dêsse selvagem, que está agora em poder do tar-me em ver, ao voltar do Brasil, os manatis empalhados do gabi-
professor Sparrmann. nete de História Natural de Lisboa.
Nas matas à margem do rio S. Mateus, os índios não civilizados Além dêsse curioso animal, o rio S. Mateus tem abundância de
("tapuias" ou gentios) são muito numerosos, e vivem em constante peixes. Muitas espécies de um gênero chamado "piau", sobretudo a
guerra com os brancos. Ainda durante o último ano mataram dezes- que, pelo de que se alimenta, é conhecida por "piau-de-capim"3I9
sete pessoas. A margem norte é freqüentada pelos Patachós, Cumana- se encontra, no tempo da cheia, principalmente nos campos inun-
chós, Machacalis (os portuguêses os conhecem por Machacaris, mas dados. Por aí remam, em canoas pequenas e leves, os índios civili-
êles não sabem pronunciar bem o r) e outras tribos, até Pôrto
Seguro. Os Botocudos são também numerosos, dizendo-se que domi- (318) O "peixe-boi" (Trichechus inunguis (Pelzeln, ex Natterer MS.)) já foi referido
no Rio Doce, páginas atrás (nota 296). Atualmente é muito problemático que ainda ocorra
nam principalmente a margem sul; são temidos pelas outras tribos, em qualq_?er dos rios da costa oriental do Brasil. No próprio Amazonas, onde foi
e considerados inimigos por tôdas, que, dada a inferioridade de nú- outro_ra tão abund~~;nte, é já hoje bem diflcil caçá-lo; não virá longe o dia em que a
espécie se possa_ tnstemente dizer extinta de todo, a menos que venha em seu socorro
mero, fazem causa comum contra êles. As plantações de uma fazenda adequ~da proteçao. Sôhre os hábitos e os modos de eaptura dês e animal, encontra-se
minuCioso relato em José Verlssimo, " Pesca na Amazônia" (Fr. Alves edit., 1895, p. 48 e ss.).
situada rio acima eram comumente pilhadas pelos selvagens, até que o
. (319) A ~spécie é de identificação diflc 11. Deve todavia incluir-se no gênero Lepo-
proprietário imaginou um meio curioso de livrar-se dos aborígines hos- r~nus (da faml~a. Tet~?gonopteridae, ord. Caracii{ormes), cujos numerosos representantes
s~ ch~mados p1ahas ou "piavas" no sul, e " piaus" no norte e centro do Brasil.
tis. Carregou um canhão de ferro, que havia na fazenda, com fragmen- São peixes de escama e bastante reputados como alimento.
172 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 173
zados, flechando o peixe referido. Encontra-se em muitos lugares, e vestem-se à moda natal, e executam as danças nacionais. Pode obser-
entre os índios, essa espécie de caça ao peixe. O arco usado tem var-se isso, por exemplo, no Rio de Janeiro, num lugar próximo da
de dois e meio a três pés de comprimento, do tamanho do arco cidade, reservado para êsse fim.
denominado bodoque, empregado para arremessar pelotas; a flecha, Na fazenda das ltaúnas, encontramos um jovem Puri, que fôra
de cêrca de três pés de comprimento, é de taquara, tendo a ponta de criado pelo ouvidor; já falava português, e diziam ser muito dócil.
pau ou ferro, com uma farpa de cada lado. As poucas palavras que lhe sabíamos da língua nativa, conquis-
.. . Aproximadamente a meia légua de S. Mateus, o pequeno rio Gua- taram-nos logo a sua confiança. Lamentamos não ter conosco o nosso
pnttba desemboca no mar. Costuma-se embarcar nêle e subir três puri de S. Fidélis, que ficara atrás, à margem do Jucu. Itaúnas
léguas até a fazenda das Itaúnas, que pertence ao ouvidor da co- é uma fazenda de criação, com um curral ou cercado para o gado, e
marca de ~ôrto Seguro, o Sr. Marcelino da Cunha. As margens do uma miserável choupana para negros e índios que tomam conta dos
pequeno no, então caudaloso, são vestidas de vegetação densa; perto animais. O proprietário reunira, aí, algumas famílias de índios, para,
do mar ela é. formada principalmente pelos mangues, cuja casca se com o tempo, formarem uma colônia; destinavam-se, a princípio, a
usa para curtrr couros. A água é barrenta, como a da maioria dos proteger a costa contra os tapuias e Itaúnas e, por isso, conside~ado
pequenos córregos da mata, no Brasil, e o peixe é abundante; quando um quartel. Alguns índios, que por acaso iam pelo mesmo cammho
passávamos, alguns pescadores tinham justamente pescado uma canoa nosso, acompanharam-nos para o norte, vindos de Itaúnas. Le-
cheia. Saltamos numa roça deserta e parecendo abandonada, onde vavam as espingardas de caça, e conheciam perfeitamente a região.
esplêndidos ananases (Bromelia) medravam selvagens, grandes, suma- Passamos entre duas pequenas correntes, o riacho Doce e o rio das Ostras,
rentos e cheirosos. Abacaxis bons de comer não se encontram no ambas insignificantes, mas que, saindo dum pitoresco cenário de ver-
Brasil em estado selvagem, mas são fartamente cultivados nos sítios, dejante floresta encimada de belas palmeiras, formavam romântica
vingando tão vigorosamente como plantas silvestres. Utiliza-se também paisagem.
êsse fruto para a fabricação de aguardente; para o mesmo fim é em- Atingimos, pouco além, um local onde tapuias hostis foram vistos
pregado ainda o fruto do cajueiro (Anacardium). Esta árvore cresce em muitas vêzes. O lugar se chama "os Lençóis", porque, numa ponte
todos os trechos arenosos da costa oriental do Brasil. Assemelha-se à nossa rochosa, trechos de areia branca refulgente se intercalam com a relva
macieira; possui ramos vigorosos e as fôlhas se dispõem isoladamente, parecendo assim, do mar, que brancos lençóis foram aí estendidos.
dando, por isso, muita pouca sombra; a flor é pequena, de uma viva Os Patachós, habitantes dessas paragens, havia muito viviam pacifi-
c~r avermelhada; o fruto escuro e reniforme cresce ligado a um pe- camente, quando um dos seus foi morto, razão por que recomeçaram
dunculo carnudo, do tamanho e forma de uma pêra. Come-se esta as hostilidades. Perto do rio das Ostras, encontramos acidentalmente,
parte do fruto, de sabor um tanto ácido e adstringente. A castanha32o na praia, próximo do mar, um jacaré de cêrca de cinco pés de com-
é assada, ficando então muito boa, mas deve ser primeiro descascada. primento, que com certeza tencionava ir, por terra, de um rio a outro,
O suco da parte carnuda, sendo diurético, é bastante eficaz nas doenças sendo por nós surpreendido durante o percurso; tinha, à direita, o
venéreas e na hidropisia . penhasco rochoso, o mar à esquerda, e, impossibilitado de arredar cami-
. A jornada, à tardinha, tornou-se extremamente agradável, porque nho, ficou imóvel. Depois de muito instigado com uma vara, tentou
derxamos de ser atormentados pelos mosquitos, que muitas vêzes nos morder, mas pôde ser atacado sem perigo. ~sse animal, tão ativo
estragaram as mais belas tardes. Matas imponentes e sombrias for- e ágil quando novo, parece lerdo na velhice, arrastando-se vagarosa-
mavam grupos pitorescos nas margens, e o brilhante plenilúnio, em todo mente sôbre o chão. Depois de viajarmos cêrca de duas léguas, chegamos
o esplendor, veio completar o encantamento do quadro. Aproximan- ao ribeirão Barra Nova, onde há uma pequena povoação de algumas
do-nos da fazenda, ouvimos, distantes, os tambores dos negros. Os casas, construída numa eminência de moderada altura, porém íngreme.
escravos negros. procu~am cons~rvar os costumes do seu país tanto Paramos aí para descansar durante as horas de maior calor; e alcan-
quanto lhes seja possrvel; assim, por exemplo, encontram-se entre çamos, no lusco-fusco da tardinha, a foz do Mucuri, rio não muito
êJes todos os instrumentos de música referidos pelos viajantes da Africa, grande, que vem de densas florestas; os mangues marginais fazem-no
desempe~hand? o tambor papel predominante. Onde quer que muitos muito aprazível.
negros vivam JUntos numa fazenda, celebram as suas festas, pintam-se A vila de S. José do Pôr to Alegre, comumente denominada de
(320) No original "d.en _schwartzen Kern" . O têrmo "castanha", conquanto 0
M ucuri, está situada na margem. norte do rio, perto da foz. E' um lugar ·
saibamos usado <;Iesde _os pnme1ros tempos da colonização portuguêsa, através de Gabriel pequeno, constituído de trinta a quarenta casas, no meio das quais se
Soares e de Card1m, nao aparece n«? texto do principe de Wied. No interior de São Paulo, ergue uma capelinha, e forma um quadrilátero, aberto do lado pró-
ouvi dizer que a castanha de CaJu é popularmente conhecida pelo nome de "careta".
174 VIAGEM AO BRASIL
DO RIO DOCE A CARAVELAS 175
ximo ao oce~no. As casas são pequenas e quase tôdas cobertas de
palha; ~arneiros; P?rcos e ca.bras criam-se no largo que fica no centro. batizara muitos dêles. A aldeia há muito tempo não existe, tendo o
Os habita_?tes, mdws a mawr parte, são pobres e não comerciam; chefe morrido; mas, no local em que estêve situada, bananeiras e outras
algumas vezes, entretanto, exportam um pouco de farinha de mandioca plantas crescem em estado .selvagem, s.endo agora ~tili~adas p~los ín~ios
não h.a~endo, ~orém, engenhos de açúcar à margem do rio; apena~ nas suas excursões. Depois de uma JOrnada de cmquenta dias, o ca-
o ~scr~vao da v~la vende um pouco de aguardente e outros artigos de pitão" atingiu o litoral, e aí descobriu que seguira o curso do Mucuri,
pnmexra necessidade. Também existe aí um padre, e dois dos habi- e não do S. Mateus, como havia suposto. A viagem esbarrou em
tant~s exercem, alternadamente, a função de juiz, como em quase tôdas grandes obstáculos. Muitas vêzes as provisões faltara~; não ha~ia
as vilas do Brasil. animais para caçar e a pesca era pouco fru.tuosa. Ma~ttgavam, ~ntao,
raízes e frutos, ou arranjavam-se com palmito e mel silvestre, ate que
O padre Vigário Mendes, sacerdote do lugar, é, na zona, a umca
um acaso feliz lhes pusesse algum animal no caminho. Por felicidade,
pessoa que possui uma fazenda de tamanho razoável. E' dono de
não encontraram os Botocudos que vivem nas altas paragens dessa flo-
a.lgumas vacas, que lhe suprem de leite, verdadeira raridade nesse
resta, mas toparam-lhes, muitas vêzes, os ranchos abandonados, e che-
htoral. . <? Sr. Mendes, a quem fomos particularmente recomendados
garam mesmo a pensar que eram espreitados por êles. Os numerosos
p~lo. mimstro ~onde da Barca, recebeu-nos muito gentilmente. O
soldados-índios foram muito úteis ao capitão, como caçadores e como
mmistro possm aí, às margens do Mucuri, consideráveis trechos de
guardas contra os selvagens; porque entre o pessoal havia capuchos ~
terra, tendo-se tomado medidas para protegê-los dos selvagens.
outros, e até um botocudo, que fôra criado pelos portuguêses. Esti-
. Nas matas ~a região abundam os mais valiosos tipos de madeira. veram a pique de perder tôda a bagagem nas quedas do Mucuri, quatro
A fim de aproveitá-las, pretendeu-se instalar uma serraria· e um cons- dias de viagem rio acima. Construíram uma jangada de troncos de
trutor da Tur~ngia, de nome Kramer, foi contratado par; isso. Quase árvores para transportar as armas, as provisões, as ro':pas, etc., mas a
t?das. as ~~d~1ra~ da ~os ta oriental aí se encontram: jacarandá, oiti- jangada foi carregada pela correnteza, e tôda a carga JOgada fora dela
oca•. Jeqmtiba, vmhático, cedro, ~aixeta: ipê, p~roba, putumuju, pau- ao roçar pelos arbustos das margens; só com grande dificuldade, con-
brasll, etc. Como, porém, a reg1ao estivesse amda totalmente domi- seguiram pescar as armas de fogo.
nada p:los Patac?ós e ~el.as feras, e, por isso, até então não se pudesse Nos últimos dias dessa intrépida e perigosa viagem através da mata,
con~trmr a serrana, o mmistro ordenou ao sr. José Marcelino da Cunha, os viajantes ficaram reduzidos à fome absoluta; já estavam quase
o~v1dor da comarca de Pôrto Seguro, que fôsse para ali, reunisse 0 exaustos, quando atingiram inesperadamente, abandonada, a última
numero de braços necessários para abrir uma fazenda fizesse as plantação que existe à margem do rio, e pert~nce a Morr? d:Arar~,
plantações requeridas pelo sustento dos moradores e es~ravos, e os cêrca de dois dias de jornada da vila de Mucun. O bando mtetro ati-
pro~e~esse contra os ataques dos tapuias. Sucedeu, casualmente, que o rou-se vorazmente às raízes cruas de mandioca, entre as quais, desgra-
capttao Bento Lourenço Vaz de Abreu Lima, habitante de Minas Novas, çadamente, havia uma grande porção de "mandioca brava", espécie
que penetrara, ~as fronteiras da capitania de Minas Gerais, até às mar- venenosa•. Vômitos violentos, que foram a conseqüência, enfraque-
gens do Mucun, através das matas, tinha alcançado o litoral justa- ceram ainda mais os desencorajados aventureiros, quando alguns .dos
mente nesse mom~n.to. Seu aparecimento inesperado na vila de Pôrto caçadores tiveram a boa sorte de matar uma. gran?e anta (Tapm!'s
Alegre levou o mmtstro a dar outra ordem ao ouvidor; a de fornecer americanus), que forneceu a todos substanoal alimento. No ~1a
a êsse empreended?r mineiro o pessoal necessário para a construção de seguinte alcançaram a meta da corajosa emprêsa, e .entraram ~a vila
uma. estrada. transttável através das florestas, seguindo a rota tomada de Mucuri, entre as aclamações festivas dos habttantes. T~nha-se
por. ele. Ttve. o prazer de encontrar êsse homem interessante, e de agora decidido abrir uma estrada através. dessas florestas, segum~o a
ouvir-lhe, de v1va voz, os pormenores. da aud~z e perigosa emprêsa. picada do capitão; só esperavam, para 1sso, a chegada do ou~tdor.
Ocupando-se em procurar pedras precwsas, e VIvendo constantemente Para a derrubada, aos poucos, foram chegando, de S. ~ateus, Vtç?sa,
na ~ata, r:solveu varar por êsses sombrios e intrincados ermos, descendo Pôrto Seguro, Trancoso, e outros pontos da costa onental, mmtos
? no qu~ ele pensava ser o S.. Ma teus. Durante vários anos foi abrindo, homens, na maior parte índios, enviados com êsse objetivo.
as pró~nas expensas, uma picada através das matas; e quando o tra- Entre as montanhas de Minas Gerais e a costa oriental fracamente
balh? tmha tomado certo ~vanço, empreendeu a viagem a pé com vinte povoada, estendem-se ermos imensos, onde perambulam muitas hordas
e dois soldados e volu~tá~ws armados: Enco~t~ou a aldeia do capitão das tribos selvagens de aborígines, que, com tôda certeza, ainda per-
Tomé, famoso ~hefe. mdw que reumra abongmes de diversas tribos
nas florestas do mtenor, no alto Mucuri; nesse lugar já anteriormente (*) Até o suco dessa espécie de mandioca é nocivo e mata animais, como por
exemplo carneiros, conforme nos conta KoSTER (p. 870).
176 VIAGEM AO BRASIL

manecerão muito tempo insubmissas aos portuguêses. Tomaram-se


medidas para a construção, em diferentes rumos, de estradas através
dessas brenhas, a fim de facilitar o transporte dos produtos de Minas para
o litoral mais pobre e escassamente povoado, e garantir-lhe comunica-
ção mais rápida com as principais cidades e o mar. Constituindo os rios
as comunicações mais curtas, resolveu-se fazer as estradas ao longo
dêles. Uma foi aberta à margem do Mucuri, outra do Rio Grande de
Belmonte, uma terceira do Ilhéus, e duas mais estão sendo feitas à beira
do Espírito Santo e do Itapemirim, para Minas.
As florestas próximas do Mucuri são principalmente habitadas
pelos Patachós. Só acidentalmente andam os Botocudos por êsse trecho
da costa. Não obstante, encontram-se ainda nessas solidões muitas
outras ramificações dos tapuias; nos limites de Minas, os Maconis, os
Malalis e outros vivem em povoados fixos. Os Capuchos, os Cumanachos,
Machacalis e Panhamis também perambulam por essas matas. Parece que
as últimas quatro tribos se aliaram com os Patachós, para que assim
unidos possam fazer frente aos Botocudos, mais numerosos. A julgar
pelas semelhanças de linguagem, maneiras e costumes, as referidas tribos
parecem ter entre si estreita afinidade. Há vinte anos atrás, o capitão
Bento Lourenço batizou muitos dos Maconis e dos outros quando estêve
entre êles. Alguns, atualmente, se estabeleceram à margem do Mucuri,
porém outros vivem, segundo se afirma, mais para o norte, junto ao rio
Belmonte. Essa tribo tem, no rio Doce, a fama de ser extremamente feroz,
se bem a não mereça, de acôrdo com outras versões. Os Malalis, tribo,
agora, muito pequena, habitam o alto rio Doce, perto do destacamento
de Peçanha, tendo-se estabelecido aí, sob a proteção dos Portuguêses,
a fim de se defenderem dos Botocudos inimigos. As línguas das duas
tribos em questão, das quais se encontrarão exemplos no apêndice ao
segundo volume destas descrições de viagem, diferem grandemente das
demais tribos. Como disse, as cinco tribos aliadas possuem afinidades
nas maneiras e costumes. Fazem habitualmente um orifício no lábio
inferior, metendo por êle pequeno pedaço de bambu curto e fino, uma
de cujas extremidades pintam de vermelho com urucu. Usam curtos
os cabelos no pescoço e sôbre os olhos; alguns usam-nos rente em
quase tôda a cabeça. A maneira de todos os tapuias, pintam o corpo
de vermelho e prêto. Todos êles acreditam que o trovão seja a voz
de um ser poderoso, a quem chamam Tupã, palavra comum a muitas
tribos, entre as quais a dos Puris, e que é usada mesmo pelas tribos
tupis no litoral. Parentes próximos nunca se casam, mas, afora isso,
não seguem regras, obedecendo inteiramente às próprias inclinações.
As mulheres jovens consideram a pintura do corpo como o melhor
meio de agradar os homens moços, razão por que trazem geralmente
consigo um pouco de urucu•. Os Patachós, à margem do Mucuri,
(*) Além das tribos aqui enumeradas, a Oorografia Bradlica, t. II, p. H,
menciona outras como habitantes dessas paragens, cujos nomes, porém, nunca ouvi
na costa oriental.
DO RIO DOCE A CARAVELAS 177
têm-se mostrado, até agora, hostis; não havia muito, tinham assassi-
nado um índio à porta da própria casa, na fazenda do Sr. João Antônio.
Decorridos dez dias, prosseguimos a viagem. Quando deixamos
o Mucuri, a noite estava agradável e fresca e a lua-cheia refulgia
deslumbrantemente; o suave e acariciante clarão refletia-se na lumino-
sa superfície do mar sereno, compensando-nos da monotonia do cami-
nho ao longo do litoral, arenoso e plano. Enquanto isso o grande
bacurau •a 21 esvoaçava sôbre nossas cabeças, mas, infelizmente, a uma
altura a que não alcançava a espingarda de caça.
A cinco léguas do Mucuri fica o rio Peruípe; antes de se atingir
a ponta formada pela costa, a estrada se dirige para Vila Viçosa. Aí
perdemos o caminho, e fomos parar na bôca do Peruípe, onde encon-
tramos, esparsas, cabanas de pescadores. Tivemos que voltar. Era
1.. pleno dia, quando, saindo das capoeiras, entramos num campo verde-
jante à margem do rio, e vimos, sob um encantador coqueiral, a Vila
""
I: Viçosa, formada por cêrca de 100 casas. Um edifício branco, desta-
cando-se, pelo tamanho, das construções acachapadas circunjacentes,
""
1:;
c se reconhecia logo como sendo a Casa da Câmara, ou Edifício Real;
1,)

<::! dirigimo-nos para lá, e encontramos o ouvidor em companhia de dois


;:
capitães navais, José da Trinidade e Silveira José Manoel de Araújo,
..""
1>0
;:
que, conforme se disse, foram contratados pelo govêrno para fazer um
levantamento astronômico dêsse litoral e organizar uma carta. O sé-
t"" qüito do ouvidor era o mais misturado possível; pois, além de alguns
~
<I> portuguêses e escravos negros, incluía dez ou doze jovens botocudos de
"'<:l
., Belmonte, e um rapaz Machacali .
c O aspecto dos Botocudos causou-nos indescritível espanto; nunca
:.:>
c víramos antes sêres tão estranhos e feios. Tinham o rosto enorme-
<I>
mente desfigurado por grandes pedaços de . pau, que trazem no lábio
c
..::: inferior e nos lobos das orelhas: destarte, o lábio inferior fica muito
.E
z projetado para a frente, e as orelhas de alguns pendem como asas
largas sôbre os ombros; os corpos bronzeados estavam completamente
~~ sujos. Já eram muito íntimos do ouvidor, que os tinha sempre em
casa, a fim de lhes conquistar cada vez mais a confiança. Dispunha
de algumas pessoas que falavam a língua dos Botocudos, e deixou-nos

(*) Essa ave é urna e§pécie ainda não descrita do gênero, denominada por mim
Caprimulgus aethereus, porque sobe a grande altura no espaço, planando como um
gavião. Tem 22 polegadas de comprimento; plumagem côr de ferrugem, com manchas
pardo-escuras e anegradas. As pequenas coberteiras superiores da asa formam uma
mancha pardo-escura. Uma Usta transversal castanho-escura limita no baixo do peito.

(821) Nyctibius aethereus (Wied). Ao prlncipe de Wied cabe efetivamente a desco-


berta dêste "urutau ", que êle todavia confunde nos Beitrtige (vol. I li, p. 80S) com a
espécie descrita por Spix sob o nome de Caprimulgus longicaudatus. Depois de Nyctibiua
grandis (Gmelin), que ocorre também na mesma zona, e fAcilmente se diferencia pela
sua plumagem, cinzenta muito mais clara, é a maior espécie do gênero, a cujos represen-
tantes o povo aplica ainda, conforme os lugares, os nomes de "mãe da lua", "chor!'
lua", etc. Traço notável da biologia de tôdas as espécies de Nyctibius é o seu admi-
rável mimetismo protetor, referido por todos os observadores familiarizados com os. seus
hábitos e confirmado por mim, anos atrás, em curiosas circunstâncias, quando em viagem
de exploração ornitológica no rio Jucurucu. Cf. Rev. Mus. Paul., XVII, 2.• parte, pág. 182.
178 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 179

ouvir amostras do canto dos · selvagens, parecido com um uivo desar- parece gostar de água salgada, porque viceja melhor na areia varrida
ticulado. Muitos dêles tinham tido varíola havia pouco; ainda esta· pelo vaivém das ondas•. O espessamento existente na base do tronco
~am completamente c_obertos de cicatrizes e crostas, que, somando-se dessa espécie, quando nova, fá-la fàcilmente reconhecível. Navegan-
a grande magreza trazida pela doença, aumentavam ainda mais a feal- do-se para Caravelas, os olhos se comprazem, muitas vêzes, com a
dade natural. encantadora vista de altaneiros coqueirais, sob cuja sombra densa surgem
as pitorescas habitações campesinas. Tôda a costa coberta de man-
. A varíola introduzida na região pelos europeus, é extremamente
gues (Conocarpus e Avicennia), cuja casca é de grande uso em curtume,
pengosa para os índios; muitas tribos foram totalmente exterminadas
sendo exportada, com êsse objetivo, para o Rio de Janeiro. Um cur-
por ela. Vários dos serviçais do ouvidor morreram em Caravelas·
tidor desta cidade mantém uma porção de escravos, em Caravelas, só
muitos, porém, restabeleceram-se, segundo me garantiram a poder d~
para tirar e secar carregamentos inteiros de casca de mangue. Uma
aguardente, que lhes foi administrada em grandes doses. 'Os selvagens
grande embarcação veleja constantemente de um ponto para outro,
têm ~norme pavor dessa doença. Contaram-me um caso terrível a
transportando a casca, e é, por isso, denominada casqueiro. _ Há diver-
r:speito d~ ~ru:ldade_ de um colono. Para vingar-se dos tapuias, seus
sas espécies de mangues; para curtume, porém, prefere-se a casca do
VIZmhos e Inimigos, dizem que levou para as florestas roupas usadas por
mangue vermelho (Conocarpus racemosa), o qual difere muito, pela
pessoas mortas de varíola, tendo perecido numerosos selvagens em con-
menor altura e pela fôlha larga e oval, do mangue branco (Avicennia
seqüência dêsse procedimento desumano.
tomentosa), que tem fôlha estreita e alongada, carrega-se de uma cápsula
.. Quando o ouvidor partiu para o Mucuri, embarcamos a fim de oval de sementes lanuginosas, do tamanho de uma pequena ameixa, e
VlSltar Ca:avelas e o rio Alcobaça. A canoa foi deslizando, rio abaixo, é mais alto e esguioa2a.
entre as lu:~das margens verdejantes do Peruípe, e, no ponto em que A tardinha, a viagem tornou-se extremamente agradável; saía-
a leste o no se lança no mar: seguiu por um amplo braço, que vai mos de um canal para outro, pois que entre Viçosa e Caravelas há
ter a Caravelas.. . Altos . c~queiros se erguiam perto da Vila, empres- um verdadeiro labirinto, formado por uma multidão de ilhas de man-
tando bela e ongi,nal f~Iça<:> a? ,ranorama. O leite ou água que existe gues. Bandos de papagaios vozeavam nas capoeiras, mas eram to·
dentro do fr~to e mmto msipido e de mau gôsto nos côcos velhos dos da espécie da curica••a 24 . Vimos garças brancas sôbre as curiosas
que chegam a Europa; aí, porém, são colhidos antes de completa- raízes dos mangues, que, brotando muito alto do tronco, inclinando-se
me~t; _maduros, quand_o a água tem agradável sabor agridoce e é sôbre a água e enraizando-se na terra, formavam perfeitas arcadas em
mmtiSSimo fresca e refngerante. Preparam-se, na região, numerosos e várias direções. Uma pequena espécie de ostra se encontra em abun-
excelentes pratos com êsse admirável presente da natureza· assim
p~r e;emplo,. ralam o côco e o cozinham com feijão prêto, o' que lh~ (*) Encontramos confirmação dêsse fato nas Viagens de HUMBOLDT, vol. I.
?a go~to mmto bo~ 322 ; tamb~m ~azem dêle, com aÇúcar e outros (**) Psittacus ochrocephalus, Llnn ., ou amazonicus, Latbam. Cf. LE V AILLANT,
"Hist. natur. dos Perroquets", pl. 110.
~ngredientes, doces Ótimos, que mfehzmente não suportam uma viagem (Suplem.) Segundo o consenso dos naturallstas, a "curica" não é Psittacus ochro·
a Europa. _lJm coqueiro, às vêzes, carrega-se de cem côcos ao mesmo cephalus Llnn., mas sim Psittacus aestivus (v. Kubl, Comp. Psitt., no tomo 10 das
Verbandl. der K. L. C. Akad.); devemos, contudo, notar que as descrições de Linneu
tempo, _avahados em cêrca de cinco a seis táleres, de modo que uma são Imprecisas, podendo fàcilmente se aplicar às duas aves. Psittacua aestivus (LB
VAILLANT, pl. 110) não varia em seu pais natal, além do que nunca lhe encontrei
plantaçao de trezentos a quatrocentos coqueiros dá uma renda conside- nos encontros das asas penas vermelhas, como em Ps. ochrocephalus. À vista disso.
ráv~l. Uma árvore perfeita é vendida por 4 000 réis, ou um "Carolin", neste primeiro tomo da descrição de viagem, deve-se ler sempre aestivus em vez de
ochrocephalus.
mais ~u menos.. O lenho do coqueiro é também útil, porque é duro
e flexivel; por Isso, o tronco não se quebra fàcilmente num vendaval (323) Há desacêrto na nomenclatura dos mangues dada aqui pelo viajante, pois
mas se encurva e parte com estrépito. As raízes se estendem horizon: o vermelho corresponde a Rhizophora manule (fam. Rizoforáceas). Avicennia tomentosa
(fam. Verbenáceas), tem, segundo DECKER, Aspectos Biol. da Fl. Bras., p. 248, os
talmente n~ terra, for_mando espêsso emaranhado. De Peruípe para nomes vulgares de "mangue slriúba" e "guaplru", enquanto Avicennia nitida é chamado
~ sul, ao Rio d_e Janeiro, o genuín<:> coqueiro (Cocos nucifera) Linn.) "mangue amarelo".
(824) Pela nota aposta à margem, é-se levado a supor que o autor então identificava
e de extre~a Iandade; mas de VIçosa para o norte, sobretudo em acertadamente a "curica" com Psittacus anutzonicus Llnn. Entretanto, quer no Suple-
mento, quer em Beitrlige (Vol. IV, p. 205) a opinião de Wied se mostra em divergência
Belmonte, Porto Seguro, Caravelas, Ilhéus, Bahia, etc., é muito comum· com o que fôra concluldo pela critica ulterior.
conhece-se por "côco da Bahia" em tôda a costa oriental. A árvor~ Com efeito, a "curica" vem já em Marcgrave e a ela corresponde Anutzona anutzo·
nica Llnn., espécie cuja larga distribuição abrangia tôda a América do Sul setentr~onal
e oriental , desde a Colômbia ao Estado de São Paulo. A. ochrocephala Gmehn é
papagaio mais estritamente amazônico e só ocorre na porção mais setentrional da área
(322) No Recôncavo da Bahia, cuja culinária é f od · da primeira. Por conseguinte, onde no texto se escreve Psittacus ochrocephalus, devemos
o leite de côco ainda boje largamente no r d !lmosa ~m t o Brasil,. en~ra ler sempre Psittacus anutzonicwr e não Psittacus aestivus. Vide o nosso comentário
o chamado " feijão-de-leite ", a que Wied pa~i~~~!~me~~ mais apreCiados pratos regiOnais; sôbre o assunto (559) na edição brasileira do livro de Marcgrave, História Natural do
de moquecas e quejandos acepipes, merece bem os :a~~s re~~~e, a~u~o s:c~ia;~:.mento Brasil (Museu Paulista, edit., 1942).
180 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 181

dância na casca dessas árvores, bem como, também em grande quan- trara no solo durante uma tempestade; do mesmo modo que outras
tidade, o caranguejo multicor chamado "aratu"•325, pessoas presentes, ficou muito pouco satisfeito com a nossa opinião,
de que era, sem dúvida, um instrumento feito e perdido pelos selvagens.
Violenta tempestade, acompanhada de chuvas torrenciais, surpre·
O maravilhoso tem grandes encantos para as pessoas incultas.
endeu-nos aí, e continuou até nossa chegada a Caravelas, que atin-
gimos já pela noite, e onde nos alojamos na Câmara, residência do Cruzamos, em Pindoba, um pequeno córrego, em cavalos empres-
ouvidor. Caravelas é a maior vila da comarca de Pôrto Seguro. tados pelos proprietários das fazendas vizinhas, e marchamos por
Possui ruas retas cruzando-se perpendicularmente, cinco ou seis prin- ermos agrestes, onde florestas, cerrados e charnecas se sucediam. Nas
cipais e diversas outras menores; tôdas, porém, sem calçamento e fazendas esparsas se viam amplos alpendres, nos quais se prepara-
cheias de capim. A maior igreja fica num local aberto, perto da vam grandes quantidades de farinha de mandioca, produto principal
casa da Câmara. As casas da vila são bem construídas, mas geralmente da região. Abertos de todos os lados, são constituídos simplesmente
de um só andar. Caravelas mantém animado comércio dos produtos de uma cobertura de palha ou fôlhas de palmeira, suportada por for-
da região, sobretudo farinha de mandioca, um pouco de algodão, etc. tes moirões, resguardando muitos tachos grandes para secar farinha,
Exporta, às vêzes, 54. 500 alqueires de farinha por ano, o que, avalian- murados em volta.
do o alqueire pelo preço moderado de cinco patacas ou florins, repre- Numa secular floresta de árvores altaneiras e majestosas, fomos
senta cêrca de 272. 500 florins. ~sse comércio traz ao lugar conside- surpreendidos pelo estranho concêrto de uma espécie de pássaro a~é
ráv~l número de navios de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Capi- então desconhecida para nós. Em tôda a mata ressoava o seu assob10
tama e outros pontos da costa oriental. Vêem-se aí, algumas vêzes, agudo e singular, composto de cinco ou ~eis notas penetrantes._ tsses
ao mesmo tempo, trinta a quarenta pequenas embarcações ancoradas; barulhentos habitantes da floresta se reumam em bandos, e, assim que
também são fre~.]üentes as oportunidades de mandar, pelo casqueiro, um começava a cantar, todos os demais se juntavam em côro. Nossos
cartas para o Rw. Os de Pernambuco destinam-se principalmente ao caçadores, presos da mais viva curiosidade, enveredaram logo pelas
transporte de farinha de mandioca, porque êste importante produto capoeiras, mas, apesar do número, deu-lhes grande trabalho matar alguns
é escasso nessa parte do país, onde, por vêzes, a fome surge nos perío- dêsses gritões. O pássaro é do tamanho de um melro•, e de um
dos de sêca, como Koster observou • •. cinzento-sujo muito pouco agradável à vista326 . Os portuguêses da
Tencionando, depois de nossa viagem ao Mucuri, onde decidimos costa o conhecem por "sebastião", e em Minas Gerais é chamado "sa-
passar algum tempo, voltar a êste lugar, nêle permanecemos, então, biá do mato virgem". Chegamos, ao fim da mata, à casa da Senhora
apenas três dias, e seguimos logo para o Alcobaça, que corre entre flo- Isabel, dona de grandes plantações de mandioca, senhora muito cari-
restas seculares, ao norte de Caravelas. Às suas margens fica a fazen- dosa e estimada, por isso, em tôdas as circunjacências. Como tivesse
da do ministro Conde da Barca, chamada Ponte do Gentio, que a fama de poder curar diversos males, era visitada por muita gente
desejávamos visitar. De Caravelas viajamos de canoa durante umas pobre e doente, que ela curava, ou mandava embora com present~s e
horas, rio acima, e depois continuamos por terra. À tardinha, chega- mantimentos. Foi-nos muito hospitaleira, e deu-nos, quando a deixa-
mos à pequena fazenda de Pindoba, onde fomos, nessa noite, mui
hospitaleiramente alojados pelo dono, Sr. Cardoso. A região é deserta (* ) Muscicapa voci{erans: dez polegadas de comprimento: partes superl_ores . cin-
zento-escuras, em alguns pontos com um tom pardacento ou amarelado; partes mfeno!es
e coberta de florestas ainda inexploradas, vendo-se, apenas, aqui e ali, de côr cinzenta mais clara; com o peito e a garganta um pouco mais escuros; aqm_ e
uma morada ou plantação. Encaminhando-se o assunto da nossa pales- ali, a ponta das penas das partes inferiores é um pouco amarelada. No Museu Zoológico
de Berlim lhe deram o nome de Mu$cicapa ampelina.
tra com o Sr. Cardoso para a região e suas curiosidades naturais,
mandou êle que trouxessem uma pedra, descoberta debaixo da terra; (826) Antes de Wied, a ave era já conhecida das matas da Guiana Fra~cesa,
era um arenito bruto, cortado em forma de machadinha. Entretanto, até onde estende a sua vasta distribuição; fôra descrita primeiramente por Fr. Le Va1llant
Hist. Nat. Ois. Nottv. et Rares de l'Amérique et des Indes, (1801) com o nome de
nosso hospedeiro afirmou ser um corisco (raio), o qual caíra e pene- "Cotinga cendré", mudado depois sucessivamente em Ampelis cin_erea (nom_e . inválido
por tê-lo usado anteriormente Latham, para ave diversa) e A. cmeracea VIeiilot (em
I817 e 1822 respectivamente), de acôrdo com as normas da nomenclatura Lineana. Cor-
( *) Mi.RCGRAVE se refere ao caranguejo chamado "aratu" pelos brasileiros, à pág. 185. responde a Mttscicapa plumbea de Lichtenstein (1823) e, depois (Catai. das Avu do
Brasil, 2.• parte, p. 28, nota 2) que consegui reabilitar para a espécie o n<;>me proposto
( ** ) V. KoSTER, Travels, etc., p. 135. aqui pelo nosso viajante, é hoje têcnicamente denominado Lipattuus voct{erans.
O canto (?) do "bastião", chamado ainda "tropeiro", é uma das vozes mais
. (325) Penso ref_erir-se Wied à esp~cle ~oniopsis ct·uentatus, notável pelo seu vistoso impre sivas das grandes matas úmidas do Brasil centro-oriental e amazôn!co·. Tive
colondo vermelho e CUJa presença parece mvanável nos lugares em que existe o mangue ver- já ensejo de externar a viva emoção que me produziu o ouvi-la pela pnme1ra vez,
melho, com o qual estaria em curiosa associação. Outras espécies, dos gêneros Grapsm nas matas do Gongogi, quando por ali estive a serviço do Museu Paulista, há mais de
Arattts, etc., recebem ainda o mesmo nome de "aratu", sujeito, como o comum do; quatro lustros. Cf. Rev. Mtts. Paul., XIX, p. 13 (1985) . Deve ser o mesmo pássaro
nomes populares, a aplicação muito extensiva. que Roquette Pinto, na Rond6nia, diz ser chamado "poaieiro ", no norte de Mato Grosso.
182 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARA VELAS 183
mos, um leitãozinho e um pato grande; pois, segundo nos assegurou, esteiras de palha e descansam a cabeça num pequeno travesseiro redon-
em Ponte do Gentio, nada encontraríamos para matar a fome. do. Vimo-los comer arroz à típica moda chinesa, com dois pauzinhos.
Alcançamos em po~co o rio Alcobaça, que é aí muito estreito, Alegraram-se muito com a nossa visita; contaram-nos, em péssimo por-
onde embarcamos. Subimo-lo durante duas horas, no frescor da tar- tuguês, coisas do seu caro país, e como lá tinham muito mais confôrto
dinha, passando pela fazenda do Sr. Munis Cordeiro; e atingimos, do que no Brasil. Abriram também as malas, onde guardavam sofríveis
em seguida, a fazenda do ministro, situada na margem norte. A porcelanas chinesas e de grande número de leques de ,diversas varie-
água do rio, em que há abundância de peixe e muitos jacarés, é escura. dades, que trazem para vender. As casas da fazenda, incluindo o enge-
As margens são inteiramente cobertas de densos cerrados e florestas; nho de farinha de mandioca, ficam numa pequena depressão do ter-
a aninga (Arum liniferum, Arruda) 327 viceja na água. Ponte do Gentio reno, perto do rio, entre duas elevações. Subindo a que está mais para
é _u~a fazenda c?m certa extensão de terra anexa, comprada pelo leste, na qual se ergue a povoação, pode dominar-se grande extensão
mmistro aos herdeiros do capitão-mor João da Silva Santos; foi, outrora, da zona circunjacente; tanto quanto a vista pode alcançar, tudo, até
muito prósp:ra. O an~e_:ior proprietário era um homem empreendedor, o horizonte longínquo, é coberto, sem interrupção, de matas sombrias;
que em vanas exped1çoes contra os selvagens mostrara não lhes ter exceto na margem direita do rio, onde se vêem, em alguns pontos,
mêdo ; e que, entretanto, na sua fazenda, vivera sempre em paz com habitações humanas.
êles. Foi o primeiro q.ue subiu o _rio Belmonte até Minas Novas. Depois Atravessamos as florestas vizinhas com os nossos caçadores e alguns
que morreu, a propnedade arrumou-se por falta dos necessários cuida- mamelucos indolentes, que aí viviam. Caçamos várias espécies de
dos. Em vez de manter-se a paz com os selvagens, provocaram-nos. animais; entre outras, pela primeira vez, a preguiça comum (Brady-
Um negro matou na floresta um índio da tribo dos Patachós; os sel- pus tridactylus, Linn.), pois até então só víramos a preguiça de coleira
vagens se encolerizaram e, por vingança, atacaram os negros numa das preta (Bradypus torquatus., Illigeri)328.
roças, matando-os a flechadas. Isso aumentou a desordem, acarretando a
desval_orização da propriedade; o ministro comprou-a por preço muito Nesse local, quase tivemos a desgraça de perder o sr. Freyreiss.
reduzido. Esforçam-se atualmente para restaurar a paz com os silví- Certa manhã, foi-se embora sozinho, com a espingarda de caça, e não
colas e melhorar o estado da fazenda. Aí estão residindo algumas voltou à hora costumeira do jantar. Caiu a tarde; fazia-se cada vez mais
~amílias ?e índios, alé~ de seis famílias de "Ilhores" (habitantes das escuro, e continuávamos a esperá-lo em vão. Nossos temores aumen-
~!h~s ~çores), . n?ve chmeses, escravos negros e um português, como tavam de momento a momento; mandei, por isso, que parte do pes-
feito~ (administrador). Os chineses foram trazidos, pelo govêrno, soal atirasse repetidamente, para dar-lhe aviso; por fim, ouvimos a
ao Rw de Janeiro, para que lá cultivassem chá; depois, mandaram amortecida resposta de um tiro, à grande distância. Ordenei imedia-
algun~ para _Caravelas e outros para aí, a fim de prestarem serviço tamente aos índios acorressem, com archotes acesos, ou antes tições,
como JOrnaleiros; são, porém, muito indolentes, e só executam trabalho ao ponto donde proviera o som ouvido. Felizmente, encontraram o com-
extrema~ente leve. Vivem conjuntamente numa casinhola; um dêles panheiro perdido, voltando com êle à meia-noite. Chegou extenuado,
se fêz cnstão e casou-se com uma índia. Conservaram os costumes do e contou-nos a perigosa aventura. Havia êle avançado demais por
seu país natal; celebram-lhe as festas, apreciam tôda espécie de caça uma picada pouco transitável da floresta, quando, de súbito, ela ter-
plumada, e parece não serem muito exigentes na escolha do alimento. minou; não obstante, prosseguiu e, ao p ensar n a volta, perdera por
Guardam o maior asseio e ordem em seu rancho de palha. As camas, completo o caminho. Levou o resto do dia a procurá-lo, marcando
por ex:mplo, são guarnecidas de finos cortinados brancos, dispostos com as árvores para saber por onde passara; mas foi tudo inútil. Afinal,
bom gosto, e suspensos, dos lados, a lindos ganchos de cobre. Essas
belas camas contrastam de maneira estranha com o miserável casebre (828) Brady pus t ridactylus Linn. e B. tor quatus Ill iger são as preguiças que ocor-
de p alha em que estão colocadas. Os chineses dormem em delicadas rem no Brasil médio-oriental.
Em ambas a s extremidades possuem três dedos com longa s unhas ganchosas; mas,
enquanto a primeira, muito mais comum e de á rea de dispersão notàvelmente mais vasta
(numerosas raças geográficas distribuídas do Rio Grande do Sul a Colômbia), tem todo
!327) . " A~i~ga-açu " é nome habitualmente usado para disting uir esta espécie. o pêlo de colorido pràticamente uniforme, pardo-acinzentado, a última se reconhece
Montncha~dta ln ntera ~Ar:uda) , entre outras . a ráceas indígenas, mais ou menos com a primeira vista pela larga mancha negra, sagitiforme e nitidamente destacada.. na
ela pa reCidas n ~ apa rencia _e ha!Jtta t ,_ gen ên ca rnente ch a ma das a ningas. Cresce em parte mais anterior da linha média do dorso. Em Beitr(ige (II , pp. ~00-7), insenu o
densas aglOJ_neraçoes n_a _POrçao ma1s baixa ~ lo~os~ de muitos dos rios que deságua m autor um minucioso estudo de Oken sôbre os crânios das duas espécies. Sôbre os
n~ costa onental_ brasileira, e fornece ma t.erml t extil pa ra o fa brico de cordoalha gros- nábltos singulares da espécie vulgar, há Interessantes observações de LODERWALDT, publi-
seira. Uma espécie do mes ~o gênero! Montnchardia ar borescens (Linné), dita " anlnga-uba ", cada s na Rev. do Museu Paulista (tomo X, pp. 795 e 812 e tomo XIV, pp. 39_5 e 396 ):
f?rma nas !"argens dos ri?S amazon!cos os conhecidos a ninga!s, morada predileta das A " preguiça real " (didactylus (Linn .)), " unau " dos tratadistas europeus,. nao possm
Ciganas (Optstlwcomus hoazm (Müller)) , que dela tira m o seu sust ento. (Cf. E. Goe!di, mais do que dois dedos funcionai s nas extremidades anteriores ; é mmto maior e
Bol . M useu Paraense, 1, 1895, pg. 167-1 84) . privativa da Am azônia e Guianas.
184 VIAGEM AO BRASIL

escalou uma montanha, na esperança de que, aumentando o campo


visual, pudesse descobrir a trilha, e só viu, entretanto, de todos os
lados, imensas florestas ininterruptas. Chegou, em seguida, a um
regato, que foi acompanhando na esperança de atingir o Alcobaça e
de caminhar pelo curso dêste até encontrar o caminho de volta à
fazenda; mas as esperanças de novo se malograram, porque o regato
logo depois se perdia num charco, terminando. A situação, nesse
ponto, tornou-se a mais alarmante possível. Extenuado pela fome,
afogueado pela enorme caminhada, encharcado pela água do riacho,
deixou-se cair, incapaz de continuar. Mas o crepúsculo se aproximava;
reuniu tôdas as energias, e construiu pequena choça de fôlhas de pal-
meiras. Aí os mosquitos o vieram atormentar terrivelmente; nem
podia ter sossêgo por causa dos selvagens e dos animais ferozes, tanto
mais quanto lhe faltava o indispensável para acender uma fogueira
que os afastasse. Resolveu esperar pela manhã, a qual, no entanto,
não lhe oferecia melhores perspectivas, de vez que não contava desco-
brir o caminho perdido, a não ser por acaso; e estava, além do mais,
tão mal fornecido de pólvora e balas, que a caça não o poderia sustentar
por muito tempo. Foi nessas angustiosas contingências que ouviu,
por fim - e quem poderá descrever com que alegria? - o nosso tiro de
Ponte do Gentio. Ergueu-se de alma nova, respondeu com dois tiros,
que, devido à atenção que púnhamos em perscrutar o silêncio da
noite, foram felizmente ouvidos por nós. Estivesse êle um pouco mais
longe, ou atrás de uma elevação, e não teria ouvido o nosso tiro, nem
nós os dêle; ser-nos-ia impossível encontrá-lo, e a sua sorte, nessas
brenhas medonhas, talvez fôsse trágica, pois que, na manhã seguinte,
pretendia procurar o caminho de volta justamente no rumo oposto
ao da fazenda329.
:f:.sse fato deve servir de exemplo para mostrar a necessidade da
maior cautela a todos quantos penetram sozinhos nessas selvas imen-
sas, sem as conhecerem um pouco, ou possuírem a extraordinária ha-
bilidade dos índios em retomar o caminho. O feitor de Ponte do
Gentio, português bem experimentado em caçar nessas paragens, per-
deu-se duma feita, vagando na mata durante sete dias; achava-se,
porém, munido de uma boa espingarda, pólvora e chumbo, de modo
que pôde satisfazer as mais urgentes necessidades e alcançou, por fim,
uma plantação à margem do Alcobaça. Dois índios, mandados pelo
ouvidor a seguir-lhe as pegadas e achá-lo, chegaram pouco depois dêle.
E' errado pensar que, nessas florestas, o alimento se encontra em
tôda parte. Apesar dos inúmeros animais que as habitam, pode-se, às

(329) Fato absolutamente semelhante deu-se com o autor destas linhas há alguns
anos (setembro de 1942), durante uma excursão naturalistica ao Estado do Espírito
Santo; com a diferença, porém, que a volta ao acampamento, à margem do Rio São José,
só se deu no terceiro dia após a partida . Do estado de espírito em que ficaram os
companheiros, poderá dizer o meu amigo e distinto colega Professor Benedito Soares
Monteiro, como tendo sido um dêles, nessa jornada aventurosa.
DO RIO DOCE A CARA YELAS 185

vêzes, vtapr dias seguidos sem descobrir um ser vivo; também aqui
a experiência mostra que os animais sempre vivem mais próximo
das habitações humanas, do que no interior das grandes florestas.
Nossas coleções receberam alguns acréscimos interessantes; porém
os insetos, sobretudo as borboletas, sofreram muitos estragos das formi-
guinhas vermelhas. Só conseguimos salvá-los aspergindo-lhes rapé. Dei-
xamos Ponte do Gentio a 25 de Janeiro, e voltamos para a casa da
Senhora Isabel, onde encontramos o pessoal ocupado em preparar
farinha de mandioca. Tivemos a atenção prêsa por um tucano (Ram-
phastos dicolorus Linn.)aao, domesticado: suas maneiras cômicas, o todo
desgracioso e o bico enorme nos divertiram muito. Devorava, com
incrível avidez, tudo que alcançasse e fôsse comível, sem excetuar
a carne. Ofereceram-no-lo de presente, mas declinamos, porque essa
ave não resiste ao nosso clima. Obtém-se aqui grande quantidade de
mel de uma espécie de abelha amarela, sem ferrão. Penduram ao
teto, para isso, pedaços de galhos ocos de árvore, tapados com barro
nos extremos, e tendo, no meio, um buraquinho redondo destinado à
entrada das abelhas. O mel é muito aromático, mas de modo algum
tão doce quanto o europeu. Mel com água, aí usado, é um refrêsco
muito agradável.
No dia seguinte, voltamos a Pindoba e, à tardinha, chegamos de
novo a Caravelas. Resolvemos nossos negócios em dois dias e embar-
camos novamente para Viçosa, numa linda noite de luar. Milhares
de vaga-lumes (Lampyris, Elater), e talvez ainda outros insetos lumino-
sos, luziam entre as moitas da margem. Quando chegamos à casa
da Câmara de Viçosa, os botocudos do ouvidor ainda aí estavam.
Mais que essa desagradável companhia, incomodou-nos o uivo con-
tínuo de um cão mordido por uma cobra venenosa. Deram-lhe o
suco do cardo santo (Argemone mexicana)33 1 , um cardo de flôres
amarelas, muito comum em tôda parte•; mas o animal morreu. Su-
põe-se, aí, erradamente, existir no Brasil um número de cobras peço-
nhentas maior do que a real. A exceção de algumas poucas e nomea-
damente das grandes espécies de Boa> os próprios habitantes da terra
afirmam que as cobras são, na maioria, venenosas. Há, certamente,

(*) Sem dúvida alguma. AzARA alude a essa planta, quando, nas suas Voyage1,
vol. I, p. 132, fala da cura de uma certa febre.

(380) Como já foi antes anotado, trata-se do "tucano-de·bico-prêto", Ramphastos


vitellinus ariel Vigors, da vigente nomenclatura. V. a nota 98.
(881) Não têm conta as plantas a que o vulgo atribula, ou mesmo ainda hoje
atribui, virtudes curativas, nos acidentes ofidicos. Desnecessário ~izer que estas apre·
goadas virtudes slo nada menos que Imaginárias e resultantes da observação falha do
povo, que, de modo geral. não sabe distinguir entre as cobras inofensivas e as serpentes
peçonhentas. Como o próprio fumo, o "cardo santo", chamado ainda "papolla ou dormi·
deira espinhosa", é uma papaverácea rica em principios tóxicos, cujos efeitos só podem
logicamente contribuir para o agravamento dos acidentes que deveria combater. Sôbre
esta interessante matéria, leia-se VITAL BRAZIL, La Detense contre l'Ophidi8me, 2.• ed,
1914, p. 225 e ss.
186 VIAGEM AO BRASIL DO RIO DOCE A CARAVELAS 187

algumas_ espécies venenosas, como, por exemplo, a víbora verde•aa2 com paus; passa, depois, entre capoeiras e densas flores'tas. Ainda
e . a J~ra~aca, ambas do gênero Trigonocephalusaaa; muito estava muito em comêço, simples picada, não muito larga; além disso,
mais ter~Iveis, porém, sã? a cascavel (Crotalus horridus)334 e o "surucucu" aqui e ali, troncos imensos de árvores a atravancavam. As léguas eram
(Lachests mutus, _Daudm, ou ~rotalus mutus, Linn.); a última, princi- medidas com um cordel e gravadas nos troncos das árvores, descascando-
palmente, que atmge sete a Oito pés de comprimento, se encontra em as e entalhando-os. Em alguns pontos da mata, ainda hoje encontramos
todos os pontos do Brasil335 . A serpente de chocalho, chamada pelos de pé os ranchos em que a turma de mineiros tinha pernoitado.
~ortuguêses "cobra casc~vel", ha~ita so~ente os lugares secos e altos; A altura da última plantação à beira do Mucuri, pertencente ao
e bastante_ comum em Mmas Gera1s e no mterior da capitania da Bahia. Sr. João Antônio, a estrada dos mineiros se aproximava da margem
J?e VIçosa voltamos ao Mucuri, mas não demoramos muito tempo e das casas nela construídas. Chegamos em companhia do Sr. Padre
na vila, p_orque o ouvidor já estava no lugar em que trabalhavam Vigário Mendes e do escrivão de Mucuri; e aí encontramos o Capi-
na fundaçao d,a nova fazenda de Morro d'Arara. O Sr. Freyreiss resol- tão Bento Lourenço, que nos recebeu, mais a sua gente, com uma
ve~ voltar, desse ponto, com a nossa tropa para a Capitania. Pre- salva de tiros, da eminência em que se erguia a sua morada- E' uso
fen subir o Mu~uri até às obras da mata, e passar alguns meses nessas geral, no Brasil, entre as corporações de homens armados, e especial-
florestas. ArranJamos a nossa bagagem e passamos ainda uns dois dias mente nos postos militares, quando forasteiros os vão visitar nos
em M~c~~i. Daqui fizemos algumas excursões a cavalo, uma para ermos do sertão, dar, em regozijo, tiros de espingardas, com cargas maio-
ver o 1~11c~o da nova estrada, que o Capitão Bento Lourenço, com res que as usuais. Passamos algumas horas agradáveis em compa-
seus romeiros e outros trabalhadores, já tinha começado e de que nhia do honesto capitão e do amável dono da fazenda, Sr. João An-
c~nstruíra três léguas. A estrada sai logo por trás das casas de tônio, e em seguida tornamos por água, à vila. Na manhã de 3 de
Porto Alegre e percorre, a princípio, terrenos pantanosos e terras des- Fevereiro, cada um de nós tomou rumo diferente. O Sr. Freyreiss
campadas (campos), cobertas de capim, onde se viam pontes tôscas feitas atravessou o Mucuri, de volta à Capitania3 36; e eu, com duas canoas,
segui rio acima. Já a considerável distância, saudamo-nos com tiros de
(*) (Suplem.) Cophias bilineatus, uma espécie bonita e até hoje não descrita espingarda e pistola, e logo nos perdemos de vista. O local escolhido
O exemplar que me trouxeram media 22 polegadas e 8 linhas de comprimento incluída: para a fazenda e a serraria do ministro, Conde da Barca, fica a
ai a cauda de 3 P?legadas e 8 linhas, ou seja cêrca de ';4 (sic) do co~primento
tota~. Placas ventrais 2IO, pares de escamas caudais 66. Forma geral esguia cabeça cêrca de dia e meio de viagem, subindo o Mucuri, e chama-se Morro
cord1forme, co~ duas grandes plaC!'s superciliares e recoberta, como 0 corpo, de 'escamas
pequenas! estreitas, alongadas, pontiagudas e carenadas. Ao lado das placas ventrais corre d'Arara, devido ao grande número de araras (Psittacus macao, Linn.) 337
uma séne de gra~des escaml!-s romboidais, quase lisas e só uma pequena depressão que ali se encontram. Indo para lá, achava-me agora em companhia do
em ~eu bordo supenor; ânus simples, recoberto por uma escama semilunar indivisa· cauda
terrmn_ada por un~a ponta aguda e córnea, de côr bruno-avermelhada e de I Ünha de escrivão de Belmonte, Capitão Simplício da Silveira, que foi de grande
compnmento. Todas as partes superiores coloridas de verde-claro muito brando e préstimo quando se tentou fazer um acôrdo com os Botocudos do rio Bel-
azulado, . marcadas de cada lado por uma linha amarelo-palha, sem brilho e formada
P~!l; séne das grandes e~camas marginais do abdômen; no alto do dorso duas séries monte. ~le e um jovem índio Menien•, que o acompanhava, falavam
d•s_tlntas de manchas, dispostas freqüentemente aos pares e sempre circundadas de
preto. . Ao longo de cada lado da cabeça, partindo do ôlho, cuja pupila é vertical a língua dêsses selvagens.
~ma h~ta amarelo-ferruglnea, ladeada e pintalgada de prêto; no occiput duas listas seme: As margens do Mucuri, cobertas de espêssas matarias, apresentam,
n antes • bor_?os das ma~ilas. guarnecidos de placas de viva côr amarelo-esverdeado margi-
l addas. de preto; parte mfenor da cabeça e garganta de intensa coloração amarelo-claro; devido aos freqüentes coleios do rio, que é em geral estreito, grande
a O mfenor do pescoço amarelo-claro vivo; ventre e lado inferior da cauda branco-
amarelados, os esc_udos. ven~rais com a base um tanto azul-esverdeada; lado superior da diversidade de pitorescas perspectivas. Tínhamos de fazer grande es-
C!L~eça e da porçao áianteira . do corpo finamente pontiadas e marmorizada de prêto; fôrço para impelir nossa canoa contra a corrente, então volumosa e
so dre .a cauda uma lista longitudinal azulada, sem brill10. Chamada no Brasil "cobra
ver e ou "surucucu de patioba ". rápida, trabalho dos mais fatigantes, pois o sol do meio-dia projetava
os raios ardentes sôbre nossas cabeças, e a madeira da canoa esquen-
(~32) Bothrops büineata (Wied), vulgarmente "jararaquinha verde" ou "surucucu
de patwba". ' tou tanto que mal suportávamos segurá-la. Os martins-pescadores ver-
• (338) Wied refere a Trigonocephalus as serpentes atualmente incluídas em Bothrops des, de ventre côr de ferrugem (A/cedo bicolor, Linn.)338, e a linda
O gen~ro Trtgonoce-phalus ?ppel (I8II) abrangia inicialmente espécies distribuídas hoj~
nos ge~eros Lachests Daudm (I808) e Bothrops Wagler (I824); com a designação há
anos fe1ta por A. _AlURAL (Cf. Rev. Mus. Paul., XIV, p. 87), da espécie ammodytes (- (*) Os "Meniens", que vivem em lmonte, são restos de:;enerados dos lndios
Crotalu~ mu~us • Lmn.), para seu genótipo êle se torna definitivamente sinônimo d-;;
Lachests, CUJa ~nica espécl~ é o _"~urucucu-pico-de-jaca", ou L. muta (Linn.). "Camacan", de que mais adiante daremos notícia.
(8~4) A '!nica espécie bra.s•le1ra do gênero Crotalus é C. terrificus Laurentius,
I768, hoJe por tôd~ parte conhecida pelo nome lusitano de "cascavel". Cf. Amaral In (336) Como se vê, Capitania é o nome ~elo qual, acompanhando hábito de então,
Mem. lnst. Butanta, X, I987, p. I6I. ' designa sempre Wied o atual Estado do Espírito Santo.
od (835) 9 "suru~ucu", que. é, ef_etivamente, a maior das nossas serpentes venenosas, (337) Vide o que ficou anteriormente sôbre as araras encontradas por Wied
P e avantaJar-se amda às d;mensoes dadas por Wied (até 8 60 m de comprimento (nota I85).
segundo A. Amaral); existe em todo o leste e norte do Brasil desde Minas e Espíriu; (388) Chloroceryle inda (Linn.) da atual nomenclatura. visto a prioridade de
?anto até _o A~azonas, estendendo-se ainda até a América C~ntral. Cf. a nota 850 Alcedo inda Linn., I766, sôbre o seu sinônimo ..4.. bicolor Gmelin, 1788.
mserta mais adiante. '
DO RIO DOCE A CARAVELAS 189
188 VIAGEM AO BRASIL

andorinha verde-branca (Hirundo leucoptera)339 são aí muito abun- de uma árvore próxima à fogueira, que êle parecia _contem~lar com
dantes; estas últimas pousam nos galhos secos e nos arbustos aquá- curiosidade. Nossos destemidos canoeiros índios, semmus, dertaram-s;
ticos, ou esvoaçam sôbre êles; em terra, só se encontram perto das logo, sem se cobrir, e alguns à distância da fogu;ira, no chão úml-
margens dos rios. Pousados nos velhos troncos debruçados sôbre a do, adormecendo profundamente. Nós, ~o contráno, embrulh,amo-nos
água, e nas rochas, vimos grande número de uma espécie de morcêgo nos grossos cobertores, num leito arranJado com ramos de arvore e
cinzento•3 40, que procura os lugares frescos durante o dia; distingue-se palmas de coqueiro.
pelo focinho proeminente. Matamos, numa árvore marginal, o belo Na manhã seguinte, durante o preparo do almôço, um bando de
pombo conhecido na costa leste por "pomba trocaz" e, perto da Bahia, araras pousou perto de nós, em grande ala~ido. Mariano, ~m dos
por "pomba verdadeira", trata-se da Columba speciosa .. dos natu- nossos, levantou-se dum pulo, pegou da ~spmgarda e aprox1m?u:se
ralistas341. cautelosamente. O estampido ecoou maJes~osa~ente pelas s.oh~oes
À tarde, atingimos a última plantação, pertencente ao Sr. João da mata, e 0 caçador voltou alegre, com a pnmetra dessas esplend1das
Antônio, onde, alguns dias antes, o Capitão Bento Lourenço nos sau- aves que conseguimos matar nessa viagem.
dara com uma salva de tiros; tinha êle seguido, então, com a sua Depois do jantar, embarcamos de novo, ~altando, à tardinha,
gente, mais para dentro da floresta . Como caísse o crepúsculo, saltamos num banco de areia, no qual fizemos uma fogue1ra. Enquanto ~repa­
na densa mataria e acendemos as fogueiras. A noite estava muito quente rávamos a arara para a coleção, vimos uma grande canoa che~a ~e
e linda, mas, como é comum nos países tropicais, extremamente úmida. gente rumando em nossa direção. Era o Sr .. Charles_ Frazer, mgles
Muitas vozes de aves, como as do caburé34 2, do chora-lua343, do bacurau possuidor de um estabelecimento ;m Comechat1ba, r:o htoral, perto de
(Caprimulgus) e da capueira (Perdix guianensis)3 44 , só se ouvem ao Pôrto Seguro, com sua gente. Tmha o mesmo_ dest1~0 que nós. P~s­
escurecer, quando vêm animar êsses vastos e solenes ermos. O caburé, samos a noite nesse lugar e, pela manhã, part1mos JUntos. Ao melO-
em particular, chegou-se muito perto de nós; sua voz tremida vinha dia, alcançamos na margem norte do Mucuri a entrada de um canal
estreito e sombrio de cêrca de dez a doze passos de largura. :esse canal
( *) V espertilio naso, espécie nova, com um focinho muito alongado, quase igual natural, antes int;ansitável por causa da ramaria coi?pactamente entre-
a uma tromba, e projetando-se como um apêndice sôbre o maxilar superior. Comprimento
total, duas polegadas e quatro linhas. A membrana da asa é multo peluda; orelha laçada sôbre êle, fôra desbravado, havia alg~ns d1as, por ordem do
estreita e muito pontuda; pêlo da parte superior do corpo, pardo-acinzentado escuro; ouvidor. Constitui a entrada para um bomto lago, bastante gran-
da parte inferior mais pálido, cinzento-amarelado.
(**) TEMMINCK, Histoire Naturelle des Pigeons et des Gallinacées, vol. I, p. 208.
de, chamado Lagoa da Arara, inteiramente cercado de mo~tanhas
cobertas de mata. Fôra justamente a um quarto de légua ao_m~ da
(1783),
(3 39) Hirundo leucoptera Gmelin (1788), nome precedido por H. albivent e1· Boddaert
ambos baseados na Hirondelle à ventre blanc de Cay~nne de DAUBENTON. lagoa que o ouvidor começar~ a edif~ca7 ~ propriedade do mm1stro,
Iridoprocne albivente1·, Bodd., como é chamada na moderna ornitologi a , ocorre d esde em Morro da Arara; já se unha pnnop1ado a derrubar a mata, ~
havia algumas cabanas construídas. O ouvidor recebeu-nos com amab~­
o nordeste da Argentina (Misiones), até a Colômbia e as Gu!anas.
(840) Rhynchisctts (= Rhychonycteris) naso (W!ed). Há no Museu Zoológico
de São Paulo exemplares dêste interessante morcêgo, colecionados no rio Doce, rio lidade, e eu me pus logo a arranjar as coisas para permanecer uns dots
Juruá, Mangabeira (Pernambuco) e Cidade da Barra (Bahia). Spix julgou ver nêle
duas espécies. Propôs para elas o gênero Poboscidea e descreveu-as sob os nomes de Pr. meses nessas brenhas solitárias.
saxatilis e Pr. rivalis, alusivos aos hábitos curiosos do animal, que é encontrado, ora
nas paredes lisas de rochedos a prumo, ora sôbre o leito dos rios, debaixo das pontes,
ou pendentes dos velhos troncos de árvores caldas.
DoosoN (Catai. Chiroptera Brit. Mus. p. 868) chama a atenção para o mimetismo
que, nas últimas circunstâncias, dificulta a visibiUdade dêstes pequenos morcegos, que
ordinàriamente se reúnem em colônia de número variável de indivlduos.
(341 ) E' a mais bela de nossas pombas silvestres; muito fácil de reconhecer entre
as CO!Jgêneres pela sua plumagem, ornamentada de linhas transversais semilunares que
lhe dao aspecto escamoso. Em minhas peregrinações ornitológicas, só me recordo tê-la
encontrado abundantemente no sul de Goiás, na região do Rio das Almas; ocorre porém,
aqui e ali, nos nossos sertões, desde o Amazonas até o extremo sul do Brasil. Conhecem-na
ainda em certos lugares por "piraú" e "rôla pedrês ".
(342) Sem ser prOpriamente diurno como a " coruja buraqueira " (Sp eotyto cunicula-
ria (Molina)), o "caburé" (Glattcidium brasüianum (Gmel.)) pode ser ouvido a cantar
mesmo durante o dia (donde o nome de "caburé do sol", de que também goza), divergindo
neste particular da generalidade das corujas. Sua voz lembra de perto a dos " surucuás"
e, imitada com sofrlvel exatidão, pode trazer a ave a poucos passos do observador.
Com êle é comum acorrerem então inúmeros passarinhos alarmados pela presença do
rapineiro, motivo pelo qual os colecionadores lançam freqüentemente mão do fácil
estratagema.
(843) O mesmo que "urutau " e "mãe-da-lua", Nyctibitts aether eus (Wied).
(844) Odontophorus cap~ira (Spix) é o nome da espécie existente nos Estados de
leste e sul do Brasil, onde também é chamada "uru".
IX

ESTADA EM MORRO D'ARARA, MUCURI,


VIÇOSA E CARAVELAS, ATÉ A PARTIDA
PARA BELMONTE
(De 5 de fevereiro a 23 de julho de 1816)

Descrição da estada em Morro d'Arara. - Caçadas.


Os mundéus. - Estada em Mucuri, Viçosa e Caravelas.

Para se fazer idéia do nosso modo de vida em Morro da Arara,


imagine-se uma floresta êrma em que um bando de homens constitua
um pôsto avançado solitário, suficientemente providos, pela natureza,
com o indispensável à vida, graças à abundância de caça, peixe e água
potável; mas, ao mesmo tempo, devido ao afastamento dos lugares
povoados, entregues inteiramente aos próprios recursos, e adstritos a
ficar em guarda constante contra os selvagens da floresta, que os
rodeiam de todos os lados.
Patachós, e talvez também Botocudos, rondavam-nos diàriamente,
à espreita dos nossos movimentos; andávamos, por isso, sempre arma-
dos; éramos de cinqüenta a sessenta homens capazes. Já se tinha
derrubado a mata da encosta de uma montanha, à beira da lagoa
amontoando-se umas sôbre as outras as árvores caídas.
Tôdas as manhãs vinte e quatro índios, muito úteis para êsse mister,
saíam para o trabalho; alguns levavam machados, outros um
instrumento em forma de segadeira ("foice"), prêso a um cabo
comprido; os primeiros derrubavam as árvores, os segundos, o bosque
e os arbustos novos. Quando uma grande árvore caía, arrastava ao solo
muitas outras menores; porque tôdas essas árvores são cerradamente
entrelaçadas de cipós fortes e lenhosos; muitos troncos, quebrados por
outros, permaneciam erectos como colunas colossais; plantas espinho-
sas, sobretudo caules da palmeira airi, que são cobertos de espinhos,
juncavam o chão, tornando essas derrubadas completamente impene-
192 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 193

tráveis. O ouvidor havia mandado construir cinco a seis cabanas perto animais pequenos, no seu vaivém costumeiro à beira do rio, procuram
da lagoa, cobertas com fôlhas de "uricana". Quatro dos nossos índios, uma passagem e, encontrando a abertura na tapada, pisavam no chão
que, à semelhança da maioria dos conterrâneos, são ótimos caçadores, constituído de gravetos entrelaçados; as pesadas toras de madeira vêm
e ainda melhores pescadores e canoeiros, eram mandados, tôdas as abaixo e matam o animal. E' comum fazerem, em linha, trinta,
manhãs, caçar e pescar o dia inteiro, e examinar os nossos mundéus, quarenta ou mais dêsses mundéus, onde a caça cai diàriamente. En-
ou armadilhas para animais, voltando sempre, à tardinha, com muita contramos, com freqüência, sobretudo nas noites escuras, cinco, seis
caça e abundância de peixe, principalmente piabanhas, traíras, piaus, ou mais animais de cada vez. E' preciso, porém, revistar as armadilhas
robalos e outras espécies. Logo que a nossa gente se reunia ao escure- uma ou duas vêzes por dia; porque, nos grandes calores, a caça
cer, não havia mais razão para temermos um ataque franco dos selvagens. apanhada apodrece depressa.
Contra uma surprêsa noturna, que êles não empreenderiam fàcilmente Por ordem do ouvidor armaram-se, em dois lugares próximos do
na treva, mas de preferência nas noites de luar, estávamos garantidos Morro da Arara, mundéus dêsse tipo: era o nosso principal meio de
pela vigilância dos nossos cães. Um grande cão pertencente ao ouvidor subsistência, pois, embora o povo da terra se sustente principalmente de
distiguia-se dos demais; parecia farejar os selvagens quando rondavam peixe, nós, europeus, sempre preferimos _c arne fresca. A p~ca (Coelo-
pela montanha, além da lagoa. Enfurecia-se nesses momentos, latindo genys paca)345, a cutia (Dasyprocta agutt)3 46, a macuca (Ttnamus bra-
sem parar na direção do local suspeito. Os Patachós, com tôda a certe· siliensis)347 e o tatu comum (Tatou noir, Azara), cuja carne é branca,
za, nos observavam dos sombrios esconderijos, não sem espanto e macia e saborosa, eram particularmente bem-vindos à nossa mesa. Um
de~agrado, e os caçadores precisavam de grande cautela para não se dia tínhamos ido examinar as armadilhas e atravessávamos a lagoa,
de1xarem apanhar desprevenidos. Ouvimos, muitas vêzes, êsses aborí- qu~ndo o índio que dirigia a minha canoa nos mostrou, de
gines imitar a voz da coruja, da capueira, e outras aves, sobretudo repente, uma anta nadando no lago e querendo alcançar a margem.
noturnas; porém nossos índios, igualmente hábeis nessa arte, nunca Atiramos de certa distância, mas a maioria dos tiros se perdeu, até
confundiam a imitação com o natural. Uma pessoa incauta se sen- que, por fim, o disforme animal foi ferido, porém ao de leve, porque ?
tiria, talvez, tentada a seguir a voz do pássaro, até que as flechas chumbo não conseguiu varar a pele grossa. Fomos à margem e segm-
dos tapuias lhe mostrassem o engano. Quando a nossa gente dan- mos o rasto sangrento, mas logo o perdemos de todo, devido ao gran-
çava o batuque nas noites de luar, tocando a viola (guitarra) e acom- de perigo que raspou o meu índio. Passou êle muito perto de uma
panhando sempre com palmas, estas eram repetidas pelos selvagens jararaca•34S de cinco pés de comprido, escondida entre as fôlhas
do outro lado da lagoa. O ouvidor, que não perdia ocasião de sêcas. Ela ergueu-se, mostrando os dentes formidáveis, e ia mordê-lo,
lhes tentar a amizade, fêz freqüentes esforços, durante a nossa estada,
(*) A "jararaca", referida em nossas viagens atuais, foi Introduzida nos sistemas
para os atrair, gritando-lhes: Schmanih (camarada! ou capitão) Neí sob o nome de Vipera atrox; ela, porém, difere da vlbo~a, pelas fossetas que se encontram
(grande chefe!) etc. porém em vão; não obstante, os índios, que mandá- nas bocbecbas de tôdas as serpentes venenosas da América do Sul que tive a oportunidade
de encontrar. Nos anais da "Gessellscbaft naturforschen der Freunde zu Berlln", ano
vamos à inspeção, notavam muitas vêzes, pelas pegadas, que os selva- terceiro p. 85 há uma descrição da "jararaca" da autoria de H. H. Tilesius, se é
que êss'e nome' em Sta. Catarina significa a mesma coisa que no Continente. A "jara-
gens se acercavam da derrubada durante a noite, explorando tôdas racuçu" é apenas um Individuo velho e muito grande da mesma espécie, diferindo
as circunjacências do acampamento. Uma noitinha, como esperásse- um pouco na côr, naturalmente, dos espécimes mais novos.
mos ser subitamente atacados, por causa da extraordinária agitação dos (845) Cuniculus paca (Linné) da atual nomenclatura. , . .
cães, estivemos em guarda constante, e aquêles que precisavam apa- (346) Conhecem-se hoje no Brasil nada menos de uma IJ!ela duzia de cubas, na
sua maioria da região amazônica; na era de Wled, porém, a unlca . espécie reconhecida
nhar água, combustível, ou fazer qualquer outra coisa na mata iam pela ciência era Dasyprocta aguti (Linn., 1766) , baseada em "Agub" de Marcgra':e e
sempre bem armados. portanto tipicamente este-brasileira. De qualquer modo, a ela deve referir-se o anrmal
mencionado pelo zoólogo. .
Nossas coleções receberam grandes acréscimos em Morro da Arara, (847) Tinamus solitarius Vleillot é o nome que cabe a esta 1!-ve, conheCid.a. or!l
por "macuco" (Brasil meridional), ora por "macuca" (Bahia). . Tmamus . brastltens>B
so·b retudo de quadrúpedes, graças aos mundéus. Os índios são extre- Latham deriva de Perdix brasiliensis Brlsson, equivalente a T•namus ma30r Gmelln,
espécie ' gulano-amazônlca, estranha ao Brasil oriental. Tinamus solitari~ estende-se
mamente hábeis no arranjo dessas armadilhas. Escolhem, para isso, ainda hoje ao nordeste, onde é representada por uma subespécie particular, Ttnamus sollta-
de preferência, um lugar na mata, próximo da margem de um rio. rius pernambucensis Berla, que corresponde precisamente ao "macucagua" de Marcgrave.
Aí levantam um comprido cercado de galhos verdes, formando ângulo (848) Bothrops jararaca (Wied, 1824), Isis, li, p. 1103, pl. VI. Largo contingent~
forneceu Wied à sistemática das serpentes solenóglifas (de dentes caniculados) brasi-
reto com a margem, e podendo ter de dois e meio a três pés de leiras, que, por aquêle tempo, estava ainda em plena elaboração. Seja como fôr
há a distinguir-se entre a "jararaca" propriamente dita, Bothrops jararaca (Wied)
altura. Em cada quinze ou vinte passos, deixam uma pequena aber- e outra espécie, notàvelmente parecida, B. atrox (Linn .), que ora se conhece pelo
mesmo nome, ora pelo de "caiçaca" (nordeste do Brasil ). Amb~s . ocorrem na
tura, sôbre a qual três toras de madeira, compridas e pesadas, são região oriental; mas a espécie em jôgo no caso presente é !!- prt!fleiTa, havel!do
colocadas obliquamente, escoradas com pequenos pedaços de pau. Os depois (Isis, li , p. 1103, pl. 6; Beltr. 1, p. 470 e ss.) o própno Wted reconheCido

-
194 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 195

quando, com um tiro feliz, a abati e salvei o apavorado caçador. Os guimos sempre caça abundante. De manhã, a qualquer hora que saís-
índios, e_ mesmo os caçadores portuguêses, vão sempre descalços à semos dos nossos ranchos, ouvíamos a voz, parecida com o som de um
caça_; pois calçados e meias são, no país, artigos muito caros para os tambor, dos barbados (Mycetes), e o ronco forte do guigó• 352, o~tro
habitantes, e, conseqüentemente, usados apenas nos dias de festa. macaco ainda não descrito; as araras, voando em algazarra sobre
Estão, assim, mais expostos às picadas das cobras, que muitas vêzes as cabanas, aos pares, três ou cinco, juntavam-se ao rumoroso
se escondem entre as fôlhas sêcas; contudo, mesmo nessas circuns- concêrto, que ressoava pela mata; e assim nos envolviam os bandos
tâncias, são os acidentes mais raros do que se poderia pensar. O horror de papagaios, de chauás, maitacas, jurus (Psittacus pulverulentus,
pelas serpentes sentido entre os habitantes é excessivo: o vulgo con- Linn.)ssa, curicas e várias outras espécies.
serva diversas, e por vêzes ridículas, crendices a êsse respeito: assim, Nosso pessoal trabalhava ainda na terminação das c_oberturas_ dos
por exemplo, . acredita~ que haja cobras de duas cabeças349; que ranchos. Os dois maiores, em que eu morava em companhia do ouvidor,
algumas se deixam atrair pela luz ou pelo fogo3 50, e que as espécies dos dois capitães navais e do moleiro alemão Kramer, tinham paredes
venenosas cospem fora o veneno, quando vão beber. de barro e as coberturas completas. Estas são usualmente feitas de
. Alguns dias mais tarde, consegui outra, completamente inofen- fôlhas de uricana, palmeira de caule pequeno e flexível, cujas belas
siva, mas de beleza notável, em cuja pele se sucediam anéis verme- e grandes fôlhas penadas (folia abrupt~ pinnata) i~plantam-se por
lhos, pretos e esverdeados; assemelha-se um pouco, no aspecto, à meio de pecíolos delgados; faz-se um feixe com vánas delas; ~s pe-
cobra coral ("cobras corais"), da qual, entretanto, é muito diferente•345. cíolos, muito compridos, são depois enrolados num sarrafo de madei~a_de
Nessas matas êrmas, era a caça o nosso mais agradável, útil e, coqueiro, e amarrados, debaixo, com um "cipó verdadeiro" (Bauhmza),
na realidade, único passatempo; e embora os perigos da floresta nos bastante grande para prender os feixes uns aos outr_os. As ri~as, com
enleassem bastante, obrigando-nos a adotar como regra nunca sair as palmas assim amarradas, são supe~postas de maneira q,ue dOis terços
senão em companhia suficientemente numerosa, mesmo assim, conse- da largura fiquem cobertos. Em seguida, cobre-se a cumeeira com outras
fôlhas, sobretudo com os compridos leques do coqueiro, a fim de torná-la
. (*) Coluber formosns, espécie não descrita; 32 polegadas e ~ linhas de comprido, absolutamente à prova de água. Essa cobertura, que aí sabem fazer
lnclumdo a cal;'da, que tem 7 polegadas;. 202 a 203 escudos ventrais e 65 a 66 pares de
e~camas caudats; ?beça de um alaranJado brilhante; !ris, vermelhão; 76 dentes na muito bem, é leve e sólida; deve-se, entretanto, fazer com que a fumaça
boca; a metade dtan~elra do corpo possui faixas transversais alternadamente pretas e a atravesse de quando em vez, porque, doutro modo, os insetos destrui-
a'.!_larelo-~~verdead'! páhdo; a traseira, alternando-se, listas pretas e largas listas de verme-
lhao. E um ammal de beleza Incomparável. riam as fôlhas sêcas dentro de um ano.
Construía-se, então, um rancho espaçoso para a oficina do fer-
tratar-se de _uma serpente até então não descrita, e perfeitamente distinta daquela
CUJO no~e fora dado por Lineu. Bothrops lanceolatus (Lacépede), que vemos amiúde reiro; porquanto, em virtude da dureza das diferentes madeiras ser-
usa~o. J_á. P_ara uma, já para outra das duas espécies referidas, é hoje considerado
estnto smommo da B. att·ox (Linn.). radas e trabalhadas, os instrumentos precisavam freqüentemente de
Com referência ao "jararacuçu ", que, como no-Jo informa a nota marainal supunha consêrto. O ferreiro, filho da região, era um morador de Alcobaça,
Wled_ ser apenas a própria " jararaca " depois de velha, ficou depois prov';..do 'constituir
espécie perfeitamente à parte, a que J. B. Lacerda denominou Bothrops jararacussu. a quem o ouvidor, querendo punir por certa falta, fizera prender
Cf. A. AMARAL, Rev. Mus. Paul., IV, p. 37; Mem. Inst. Butantan, XI, pp. 2I7-229.
(349) C~bras de duas cabeças, no sentido anatômico do têrmo, não aparecem (*) Callithrix melanochir, 85 polegadas e 10 linhas <!;e comprimento, incluindo a
~orno fato mmto :aro na teratologia dos offdios; é fácil verificá-lo pelos artigos, assaz cauda, que tem 21 polegadas e 10 Unhas; pêlo longo, .espesso e macl~; a face e as
mteressantes, publicados entre nós, por AFRANIO AMAILU., na Reviata ào Museu Paulista quatro mãos pretas; o pêlo é uma mescla de esbranqwçado. e enegre<;tdo, de modo a
(V oi. :XV, p. _!)5-101; 1927) e P. E. VANZOLINI, nos Papéis Avulsos ào Departamento de parecer cinzento; dorso castanho-avermelhado; rabo esbranqmçado, mmtas vêzes quase
Zoo_louw de Sao _Pa'!_lo (vol. VIII, 1947, pp. 278-293). A essas, contudo, não é que se branco, e, outras, amarelado.
aplica a expressao cobra de duas cabeças ", usada pelo povo e referida por Wled ·
o. que .o ~ulgo _conhe~e por tal, não são cobras no sentido zoológico do têrmo, ma; (352) Callicebus melanochir (Wied). Tive ocasião de observar repetidas v~~es o
Sim amma1s mmto diferentes, pertencentes, ora à classe dos lagartos (Amphisbaena) extraordinário concêrto entoado pelos "guigós" (Wied escreve "Gigó") nas matas vtzmhas
ora ao grupo dos anfíbios ápodes (Cecilia, Siphonops, etc.); nêles as duas extremidade~ do rio Gongogi; nenhum exemplar pude ali <!<?lecionar, e_ntretanto. . •
d? corpo serpentlforme são, à primeira vista, muito semelhantes: sugerindo a absurda A descrição, que neste momento nos dá Wted, de mais esta espécie por ele desco,-
hipótese de serem ambas verdadeiras cabeças. berta é perfeitamente válida perante as regras da nomenclatura e possivelmente precedera
(8~0) ~xiste, efetivamente, arraigada nos sertanejos do norte, a idéia, aliás farta- a publicada no mesmo ano (1820) por Kuhl, a quem o nome da espécie vive creditado.
mente a~rovettada pela literatura da ficção, de que certas cobras investem à noite contra Estaria êste exemplo no mesmo caso de Lipaugus vociterans (Wied), nome que me
a_s fogu~Iras, como que pr?curando ~ todo o transe espalhar os tições e apagá-los; tal coube reivindicar em favor do nosso insigne viajante-naturalista.. .
sm_gulandade parec~, todavia, ser atnbuida exclusivamente ao "surucucu" (Lachesis muta (853) "Chauá". ou "chauã", denominação popular onomatopa1ca da espécie Amazona
(Lmn.)), que, por Isso, é também conhecido pelo nome de "surucucu de fogo ". Do fato rhodocorvtha (Salvad.), que ainda hoje é papagaio relativamente comum nas matas
nunca pude CC!lhêr nenhuma observação fidedigna; mas, por mais estranho e paradoxal costeiras do médio leste brasileiro (vide nota 81); "maitaca", nome comum às duas
q~e se nos afigure, conta o testemunho de Spix e Martius, que narram havê-lo presen- espécies este-brasileiras do gênero Pionus; "jura", "jeruaçu", ou "moleiro", _são outras
Ciado no sertao de Minas, quando em. viagem de Tejuco para o têrmo de Vilas Novas. tantas denominações vulgares do maior dos papagaios indígenas, Amazona fannosa, (~od­
Ct. J. B. SPtx e C.. ~- P. ~arms, Vuzuem pelo Brasil, trad. brasil. edit. pelo Instituto daert, 1783), ou Psittacus pulverulentus Gmelin, 1788. O colorido particular dêste último,
Hlst. e Geogr. Brasileiro, R1o de Janeiro, 1938, vol. 11, p. 161. dando a Impressão de que o verde da plumagem tivesse sido empoado . de polvilho,
(351) Pseudoboa (= Oxyrlwpus p . p.) tonnosa (Wied 1820). A espécie uma das (dito no caso pruina), dá razão à maioria dos apelativos há pouco . refendos. Tôdas
que o vulgo denomina "coral falsa", foi contemporâneamente' descrita por Wied' nas Nova estas espécies foram por mim observadas e colecionadas no sul da Bahia, anos atrás (cf.
Ata Acad. Leop. Carol., X, p. I09. Pinto, Rev. do Mtts. Paulista, XIX, 1935, pág. 123 e segs.).
196 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 197

em casa durante a noite, mandando-o para aí trabalhar_ Enquanto os de patiobao Um negro mostra um macaco morto por êle, e os mineiros
trabalhadores levantavam as palhoças, os lenhadores desbravavam o e os soldados se vão reunindo aos poucos.
local em que se tinha resolvido fazer a serraria. O ouvidor deixou-nos, O capitão ainda desta vez voltou conosco para casa, deixando-nos no
com boa parte do seu pessoal, e permaneceu algum tempo em Caravelas; dia seguinte para se juntar à turma. Desejamos-lhe sucesso na pros-
nossa sociedade diminuiu bastante, mas logo recebeu grande refôrço. secução da árdua emprêsa, então cheia de perigos, pois ia encetar um
O capitão Bento Lourenço avançara tanto a nova estrada, com os trabalho exaustivo nos profundos recessos da floresta, próximo à estação
mineiros, que já se aproximava do nosso retiro. Os "picadores" chuvosa, geradora de muitas doenças. Morro da Arara nos parecia
(gente que segue adiante, marcando nas árvores a direção a ser agora quase deserto; quando, à tardinha, tôda a nossa gente voltava
seguida pelos lenhadores) chegaram um dia mais cedo, e anunciaram a do trabalho, não éramos mais de vinte e nove pessoas.
vinda da turma. Na outra tarde, aparoe ceu o capitão com oitenta ou Nosso sucesso na caça não diminuiu por isso; pois se armaram
noventa homens, alojando-se conosco. No pequeno espaço que ocupá- novos mundéus, que renderam muito. Para se ter uma idéia da abun-
vamos se reunia, agora, grande número de pessoas; os sons da viola, dância da caça nessas matas virgens, é indispensável dar, aqui, uma
o canto e o batuque entravam pela noite: eno'fmes fogueiras ilumi- lista dos animais mortos ou capturados nos mundéus, nesse período de
navam as derrubadas próximas, na escura floresta, e os clarões ver- cinco semanas35õ:
melhos iluminavam o vasto espelho da lagoa. A extensão da estrada,
Antas . . . . . . . . . . . .Tapirus americanus .. o. . ... . o. . . oo. . . 3
de M ucuri a êsse ponto, é de cêrca de 7 ou 8 léguas. Os mineiros des- Guazupita, Azara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
cobriram, perto do Morro da Arara, outra grande lagoa, abundante Veados · · · · · · · · · · { Gazubira... . .. . . . . ooo. o. ... . .... .. . o. . 2
em peixe, e na qual havia inúmeros jacarés; tiveram de ladear o lago Porcos-do-mato . . . Dicotyles labiatus, Cu v. . . . . . . . . . . . . . . . 11
e atravessar pantanais, motivo pelo qual o trabalho se atrasou muito. J
Barbados (Mycetes) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Os homens de várias raças existentes na turma do capitão deram à
nossa sociedade feição pitoresca e original. Além de nós, alemães e por- Macacos . _.. _. _.. L~~~;~s d~. ~~~~~i~. ~.ã~. ~.~s~~~t~···~'..· .' .' .' .' .' .' 1~
tuguêses, tínhamos negros, mulatos, índios do litoral, um botocudo, um Coatis 858
• • ••• • • • • Nasua .. . .. . .. ... .. .... ... . .... ... . . .. 10
malali, alguns maconis, e capuchos, todos soldados de Minas Gerais. Tamanduás ..... . Myrmecophaga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
Lontras ......... . Lutra brasiliensis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
O capitão e sua gente passaram uns dias em Morro da Arara, espe- Iraras""' . . . .. . . . . . Mustela . .. . . . . .. . . .......... . . . . . . ... 4
rando que o nosso ferreiro lhes consertasse os instrumentos e os fechos Mbaracajás Felis pardalis . o • • • • • • • • • 4• • • • • • • • • • • • •

das espingardas. Fêz a sua turma trabalhar diàriamente; a estrada


atravessou as derrubadas no espigão das montanhas, tendo-se aberto (*) (Suplem.) Denominei êste macaco Cebus robustus; o Dr. Kuhl deu uma noticia
uma trilha, ou picada, dos nossos alojamentos à nova estrada, que provisória dê! e em seus "Beitrãgen zur Zoologie ".
depois usamos nas caçadas. A 22 de fevereiro, o pessoal do capitão (855) A determinação e nomenclatura das numerosas espécies mencionadas na
deixou-nos para prosseguir o trabalho através da floresta. Alguns lista, algumas das quais já foram alvo de comentários, deixa de ser aqui objeto de
reparos, para os quais não tardará a se oferecer melhor oportunidade.
dentre nós os seguimos até certa distância pela estrada nova, dentro (856) Mazama simplicicorni8 (Illlger, 1811), vulgarmente "guaçu-virá", "vlrote",
da mata. Aí repousamos à sombra de veneráveis árvores seculares, "catlngueiro ", etc.
(857) Cebus robustus Kuhl, 1820, Beitr. Zool. Anat., p. 85 (sin. Cebus cucullatus
e nos regalamos com as bebidas refrigerantes dos mineiros. Uma cena Spix, 1828; Cebus subcristatus Gray, 1865). Coube-me, anos atrás (Pap. Avulsos do
D epartamento d e Zoologia, I, 1941, p. 111) reivindicar os direitos da presente espécie,
de que a nossa 6.a estampa dá idéia muito clara. Estamos todos sentados que Elliot (A Review of Primates, li, 1913, p. 64) e outros incluíram errOneamente na
em círculo, enquanto o capitão Bento Lourenço, distinguindo-se dos sinonímia de Cebus varieuatus. No Rio Doce (Estado de Minas Gerais) onde a encontrei
com grande freqüência, é ela conhecida com o nome de "mico topetudo". Com o
demais pelo grande chapéu de castor cinzento, prepara, numa cuia, a nome Impróprio de Cebus tatuellus Geoff., espécie amazônica, encontramos em Beitrtiue
bebida chamada "jacuba". As espingardas se acham encostadas aos (I, p. 76 e ss.) a noticia de outros micos encontrados pelo nosso viajante na região da
Serra dos úrgãos e em Cabo Frio, mas sõbre os quais o relatório da Viagem silencia;
troncos das árvores, tendo algumas os fechos protegidos da umidade correspondem êles a Cebus nigritus Goldfuss, de que a. cirrifer E. Geoffr. é um sinOnimo
usado ainda multo comumente.
com fôlhas de patioba. Alguns índios ainda mourejam em derrubar (858) Nasua nasua solitaria Schinz, 1821. A tendência atual é reunir em Nasua
as árvores, guardados por soldados índios, sentados nas provisões empa- 1W8Ua (Linn., 1766) todos os coatls encontrados no Brasil, e tratar como subespécies
as respectivas populações suficientemente diferenciadas. A região do Mucurl corresponde
cotadas ("muqueca" ou farinha de mandioca embrulhada)354 em fôlhas aos limites setentrionais atribuídos à área geográfica da subespécie supracitada, a qual,
mais ao norte, da Bahla ao Maranhão, é substituída pela forma tfplca da espécie.
Nasua sociali s Wied (Beitrüge, li, p. 288 ) é simples sinônimo, traduzindo o hábito que
(354) Difícil penetrar no sentido da expressão fechada no parêntese por Wied têm os Indivíduos novos de se reunirem em bandos mais ou menos numerosos (cf. C.
sabendo-se que "muqueca" (êle escreve "Mukãcke") significa, na Bahia certo mlllh~ da Cunha Vieira, Arquivos de Zoolog. do Estado de São Paulo, VII, 19~5. p. 447).
com qu~ é de praxe preparar os alimento_:;, particularmente o peixe, inolho que se (859) Causa reparo seja essa a única referência feita por Wied à !rara, Tayra
cara ctenza prmCJpalmente pelo largo emprego do limão e mais ainda da pimenta barbara (Linn.) , ou " papa-mel ", um dos carnívoros mais comuns nas matas do Brasil,
(de preferência a chamada " malagueta "). como no-lo informaria mais tarde (Beitrüge, li, p. 217) o próprio príncipe.
198 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 199
Gatos pintados ... Felis trigrina?•... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 Da classe dos insetos, obtivemos, em quantidade, o Cerambix longi-
Gatos mouriscos .. Felis yaguarundi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
Tatus .......•... Dasypus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 manus364, e da dos répteis, a tartaruga do mato ou jabuti (Testudo
Pacas ........... . Coelogenys paca ...................... 19 tabulata)365, etc.
Cu tias .......... . Dasyprocta aguti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 Após uma ausência ele cêrca de três semanas, o ouvidor voltou
com algumas canoas e muita gente. Deu-nos a triste notícia ele que
AVES COMESTíVEIS os selvagens, a 28 ele fevereiro, tinham matado cinco homens, mulheres
Mutum ........ . Crax alector, Linn. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
e crianças, a uma légua aproximada da Vila ele Port'Alegre, na nova
Jacutingas ...... . Penelope leucoptera . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 estrada do capitão Bento Lourenço. Algumas pessoas, apercebendo-se
Jacupembas ..... . Penelope marail, Linn. . . . . . . . . . . . . . . . . 2 do grande e compacto bando dos tapuias, esconderam-se precipitada-
Macucas ........ . Magoua, Buffon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 mente no mais espêsso da mata, tendo a felicidade de escapar. Um
Chororão ....... . Tinamus variegatus, Latham . . . . . . . . . . 6 homem de Mucuri, que trabalhava nas próprias plantações, na mata
Patos ........... . A nas moschata, Linn. . . . . . . . . . . . . . . . . 4
próxima ao local, ouviu os gritos lacerantes das desgraçadas vítimas;
Ao todo, 181 quadrúpedes e 30 grandes aves comestíveis. Com êle e o filho, já homem, tomaram logo das espingardas e correram
os macacos caçados, muitos filhotes também caíram em nossas mãos; em socorro dos infelizes; antes, porém, de chegar à cena de massacre,
não conseguimos, porém, conservar vivas por muito tempo essas frágeis o pai descarregou a arma, em conseqüência do que os selvagens fugiram
criaturinhas, provàvelmente porque não tínhamos alimento apropriado imediatamente. Deram com as vítimas banhadas em sangue, sem sinais
para elas. de vida, traspassadas por muitas flechas e cobertas de pequenas feridas,
Além de provisões para nossa cozinha, as caçadas forneciam-me feitas com a ponta das flechas; uma criança, que se escondera atrás
materiais para investigações de história natural, e o tempo, assim, de uma moita, passando despercebida, contou os pormenores do lúgubre
passava ràpidamente nessa solidão. Entre os animais encontrados, acontecimento- Como os selvagens não se retirassem depois do ataque,
menciono, apenas, algumas espécies até agora não descritas; assim, rondando pelas cercanias das plantações do Mucuri, foram estas aban-
a cotinga purpúrea • •3°1, o sabiá-cica • • *36 2, papagaio de voz notà- donadas pelos proprietários, que se refugiaram na vila. O ouvidor
velmente bem modulada, a maitaca de cabeça vermelha••••sss, etc. deu ordens imediatas para uma expedição, reunindo, para isso, gente
armada de S. Mateus, Vila Verde, Pôrto Seguro e outros lugares, após
(*) (Suplem.) :e:sse gato constitui uma espécie ainda não descrita, a que dou o que voltou ao Morro da Arara. Daqui, com dez ou quinze homens,
o nome de Felis macroura; dei dela uma nota prévia na tradução do "Regne Animal" retomou a estrada nova, permanecendo dois dias na floresta, nive-
de Cuvier, feita pelo Dr. Schlnz.
(**) Ampelis atro-purpurea; 7 polegadas e 9 linhas de comprimento; a plumagem lando um curso d'água para a serraria do ministro. Os dois oficiais de
d!JS pássaros velhos é purpúreo-anegrado, tendendo, no alto da cabeça, para o vermelho
vivo; penas das asas, brancas. A plumagem dos pássaros novos é cinzenta, com asas marinha, que vieram com êle, empreenderam, rio acima, a fim de
de penas brancas. levantar o mapa do percurso, uma viagem de dois dias, até a cachoeira;
(***) Psittacus cyanogaste1·: linda plumagem verde-escura; uma mancha azul
cobalto no ventre; rabo um pouco comprido; essa espécie, devido à voz, é freqüentemente aí encontraram o capitão Bento Lourenço, cujos trabalhos já tinham
criada nas casas.
(****) Psittacus mitratus; incluindo a cauda curta, 7 polegadas e 8 linhas de alcançado êsse ponto. O ouvidor deixou Morro da Arara no dia 9,
comprido; linda côr verde brilhante, com asas de penas azul-escuras; olhos e cabeça, voltando para a vila. Levou-nos os homens e as armas de que necessitava,
até ao pescoço, escarlates.
para enfrentar os selvagens; mas a expedição não deu resultado, porque
(860) Fez.is wiedii Schinz, 1821. Como veremos adiante no próprio texto da não encontraram os precavidos tapuias.
obra (p. 425), a descrição dêste novo felino foi fornecida pelo príncipe de Wied ao
tradutor alemão do Reino Animal de Cuvier, onde efetivamente aparece, impondo para Fiquei, então, de novo, em companhia só do feitor da fazenda,
o animal nova denominação, e reduzindo Felis macroura Wied à condição de nomen
nudum, inaproveitável à luz do Código Intern. de Nomencl. Zoológica. dos meus dois criados alemães, de cinco negros e seis ou sete índios,
(361) Xtpholerw. atro-purpurea (Wied), como atualmente se chama, é mais uma que iriam aos poucos, adiantando o serviço. Como os nossos mun-
espécie cuja descoberta se deve ao Príncipe. Ocorre comumente ainda hoje no Espírito
Santo e nas matas de leste da Bahia, inclusive as do Recôncavo; parece, porém, problemática déus não capturassem muita caça nas noites de lua, resolvemos cons-
a sua existência atual no Estado do Rio de Janeiro e em Pernambuco que assinalam os
limites conhecidos de sua primitiva área de distribuição. ' truir outros; fizemo-los em cima da montanha, do outro lado da
~362)_ O "sabi~-cica" ("~abiasicca", no original) ou "araçua-í-ava", nomes indígenas.
ou Tnclana malacl"tacea (Sp1x) da nomenclatura clentifica, é ave encontradiça do sul
da Bahia ao Rio Grande do Sui. Psittacus cyarr,ogaster Vieillot (1817), conquanto anterior (364) Acrocinus longimanus Linn., dito "arlequim da mata", "arlequim de Caiena",
ao de Spix, é nome prejudicado pela sua aplicação anterior a ave diversa, por Shaw (1811). grande e bonito besouro da famllia dos longicórneos ou "serradores" (Ceramblcidas)
(863) Pionopsitta pileata (Scop.) apelidada então na zona "maitaca da cabeça notá_!el pelo dimorfismo sexual que dá aos machos enormes patas anteriores, em despro-
vermelha", como informa textualmente Wied em Beitrage (vol. 111, p. 247), onde reconhece porçao com as demais.
ter sido a espécie já descrita sob o nome de Psittacus pileatus Scopoli (1769). Hoje é (365) Na Bahia o jabuti é comumente designado pela denominação de "cágado do
conhecida vulgarmente por "periquito rei", "cuiú-euiú ", "caturra" (Rio Grande do Sui). mato", tal como nos tempos em que por lá andara o nosso viajante naturalista (cf.
"Baitaca" ou "maitaca", em nossos dias, parecem nomes privativos às formas do Beitriige, I, p. 51 e ss.). E' ainda bastante comum nas matas do Rio Gongogi. onde
gênero Pionus. me recordo de ter visto, caçados na chamada serra do Palhão, muitos avantajados espécimes.
200 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 201

estrada nova. Prepararam-se trinta armadilhas e três fojos. Embora deram dessa quina, com os quais o capitão se curou, foram descas-
os Patachós nos prejudicassem muito, levando, por diversas vêzes, os cados muito grossos, e ainda frescos, de modo que não podiam
animais capturados, e escangalhando a cobertura dos fojos, ainda assim ser reduzidos a pó. Cortamo-los, por isso, em pedacinhos, e fizemos
conseguimos alguma caça, até que o local foi perturbado pelos um forte decocto, que bebemos. Os portuguêses, acostumados ao clima,
madeireiros, vindos da vila para construir canoas. As árvores abatidas beneficiam-se do remédio; porém nós, alemães, achamos que êle
eram a oiticica •, o jequitibá e o cedro, que, ao lado da sergueira, apenas adia o acesso, o qual volta, depois, com redobrada violênci~.
são o que há de melhor para construção de canoas. Como a falta de alimentação conveniente se tornasse cada vez ma1s
O mês de março chegou e, com êle, a estação fria, que começa sentida nessas precárias circunstâncias, e eu visse que não recobraria
com chuvas abundantessss. Fazia, às vêzes, forte calor pela manhã, a saúde continuando a sustentar-me de feijão prêto, carne gorda ou
interrompido ao meio-dia por violentas tempestades, que ocasional- salgada, a que estávamos reduzidos, resolvi transportar-me para a_ vila,
mente se prolongavam durante um ou dois dias, chovendo a cântaros. o que fiz no dia I O de março. Os fortes ventos que varrem o h tora I
Com um tempo assim, nossa morada solitária, num pequeno e sombrio nesse período, são mais benfazejos à saúde do que o ar abafado e
vale, dentro da mata, tornou-se extremamente melancólica; da mataria úmido das matas. A descida do Mucuri foi muito agradável, pois não
encharcada subiam vapôres como nuvens espêssas, envolvendo-nos de choveu. As provisões também escasseavam na vila, pois, na verdade,
tal modo, que mal se podia divisar a mata fronteira embora tão pró- nela reina, geralmente, muita pobreza; a população não tinha senão fari-
xima de nós. .tsse tempo variável e úmido causou muitas doenças; nha de mandioca, feijão e, às vêzes, um pouco de peixe. Nós, doentes,
febres e dores de cabeça tornaram-se freqüentes, e mesmo os índios, tivemos entretanto a sorte de obter alimento conveniente, comprando
filhos da terra, não ficaram delas isentos, a ponto de ser preciso mandar alguns frangos. De vez que não parecíamos melhorar com a quina bra-
vários dêles para a vila. Nós, estrangeiros, sofremos, com especialidade; sileira, mandamos um mensageiro à Vila de S. Mateus, o qual nos
estávamos desprovidos dos remédios necessários, sobretudo de quina, de trouxe um pouco da quina legítima do Peru. Esta, de fato, deu logo
todo indispensável aos viajantes nesses climas cálidos. cabo do mal; mas decorreram várias semanas antes de podermos
A febre também atingiu os da turma do capitão Lourenço, recuperar de todo as fôrças.
co~ maior violência; êle mesmo estava muito doente e enfraquecido. Em começos de maio, o Sr. Freyreiss, com o resto da nossa gente,
De1tando-se no chão molhado da mata, com falta de bebidas fortes, não apareceu no IVIucuri. Tinha feito uma curta estada em Linhares, ??
tendo para tomar senão água, e dada a absoluta carência de remédios rio Doce, encontrando êsse povoado muito diferente de quando ? VlSl-
apropriados, muita gente ficou tão abatida, que houve necessidade de tamos. Os botocudos, mais destemidos e ferozes do que nunca, tmham
mandá-la para a vila. Até êle próprio veio para Morro da Arara, onde o aparecido, de novo, numa grande horda. Na margem sul do rio, perto
tratamos por algum tempo, deixando-o ir mais ou menos restabelecido. do quartel d'Aguiar, próximo da Lagoa dos índios, mataram três soldados
De minha parte, ao perceber que a febre não me largaria, recorri à fibras. Ao ser quebrada, a casca inteira parece ser fo~mada ~e uma só substância,
quina que existe nativa no Rio Mucuri••as 7 • Os pedaços que me que é, externamente, vermelho-escuro, brilhante ~ mu!to resmosa; mternamente,. vermelho-
pálido sem brilho e muito pouco resinosa. E mais pesacla do que a água. o gõsto
é des~gradàvelmente amargo, mais adstringente do que o da quina v<;rmelha; o pó
(*) (Suplem.) Essa árvore foi descrita por Arruda, com o nome de Plerauina assemelha-se ao da rub. tinct., com a única diferença de que o da quma tende Pl!-ra
umbrosissima ( cf. o apêndice de KOSTER, Travels). 0
violeta, e o da rub. tinct. é pardo; não pode ser comparado com o da qwna
(**) Consiste es a casca de pedaços de quatro a seis polegadas de comprimento, vermelha. O decocto é pardo-avermelhado escuro; misturado _com uma infusão de
um~ ~ me~a a duas de largura, e meia (mais ou menos) de espessura. Os pedaços, na noz de galha dá um precipitado cinzento-avermelhado pard?, tao forte como o das
maiOria, sao curvos, de modo que o lado de dentro forma um canal de meia a uma outras espécies de quina; com cloreto de estanho, o precipitado, mais abundante e
P_?legada de largura e de um sexto a um quarto de polegada de profundidade. Externamente, espêsso, torna-se pardo-violáceo avermelhado; . com um decocto de casca de ca r~alho
sao pardo-avermelhados escuros, com manchas de vermelho claro; internamente, é de não há precipitado, mas uma mistura dos dms; com acetato de chumbo, o. precipitado
cõr _mal~ clara e de aparência Ienhosa. O lado externo é rugoso, nervado e sulcado é de um pardo-claro sujo, tendendo para o avermelhado; o tártaro emético dá uma
Iongitudmaimente, tendo, ademais, aqui e ali, fissuras transversais, tal como a casca ligeira tonalidade de fígado, o sulfato de _ferro um clnz:nto-escuro-azulado. e o sulfato
de A_ngu~tura. Ainda nesse lado se vêem pontos mais altos do que o resto da superfície, de cobre um precipitado vermelho-pardo-aCJnzentad<!_. Na? se p~em estabelecer dados
de cor Cinzenta e vermelho-dara, como que pertencente a uma formação exterior; trata-se, ~atlsfatórios para 0 uso interno dessa quina, pois nao le~e!, com esse Intuito, quantidade
provàvelmente, de um Hquen que se desenvolve sõbre a casca. Partindo-se nota-se suficiente para o dr. Bernstein, que é o autor da descr1çao precedente. S_eu uso pa~ece
que é quebradiço e um pouco brilhante, não havendo traços de tecido lenhos~ ou de mais vantajoso na raqueza do estômago do que o das outras espécies de quma.
Não pude empregá-la nas febres intermitentes. Sõbre êste assunto V. também v.
(866) E' sabido que em tõda a faixa costeira do Brasil este-setentrional, ao contrário EscWEGE, Journal von Brasilien, cap. Il, p. 36.
do que acontece com os Estados do Sul e o interior do pais, a estação chuvosa coincide (367) Wied não fornece qualquer dado botânico em que se possa apoiar qualquer
paradoxalmente com os meses mais frios do ano, Iniciando-se ordinàriamente em abril tentativa de determinação do vegetal a que se refere. Tal determinação é tanto mais
ou meados de março, e prolongando-se até julho ou agõsto. A observação de Wled, difícil quanto se sabe que no Brasil o nome de "quina" é aplicado, com epítetos. vários,
concordante aliás com o que pude eu próprio observar em minha viagem ao Rio a um sem número de plantas mais ou menos comprovadamente febrífugas e antlperiódicas;
Jucurucu (cf. Rev. Mus. Paul., XIX, p. 87), demonstra que a zona em que tal fato se não obstante, elas. na sua maioria. pertencem à mesma familia da quina do Peru. a
observa estende-se, pelo menos, até o sul extremo da Bahia em vez de ter o seu limite saber, as Rubiáceas, onde se Incluem nos gêneros Ladenbergia, Remijia, Coutarea, etc.,
m~ridional na região do Recôncavo, como é corrente supor (cf. H. MoruzE, Diccion. em algum dos quais é de tôda probabilidade situar-se a planta a que o autor se reporta.
H1.8t. Geogr. e Etn. do Brasil, introd. geral, vol. I, p. 112).
202 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 203

e, segundo se afirmava, os devoraram. Enviou-se contra êles, de Li- O maior serviço que o rei poderia prestar aos súditos, no Brasil,
n~ares, u~a entrada com tôda a gente que se pôde reunir (cêrca de seria a distribuição de médicos e cirurgiões competentes pelos dife-
tnnta e Oito pessoas); porém esbarraram com tamanho número de selva- rentes pontos do país, e o estabelecimento de boas escolas públicas,
gens, que acharam mais prudente bater em retirada. Em uma só das a fim de, gradualmente, dissipar a rude ignorância e a cega superstição,
"tocaias"• havia perto de quarenta homens armados de arco. f.ste que acarretam e espalham entre o vulgo tantas misérias e males. Tais
desfecho da emprêsa levou o pânico a Linhares, cujos habitantes, con- escolas são de todo inexistentes. Padres arrogantes, a que tanto falta
tou-nos o Sr. Freyreiss, fugiam aos grupos de quatro e de oito, com mêdo a energia quanto a vocação para o ensino e a educação do povo, têm,
de serem devorados pelos ferozes selvagens. A fazenda do tenente pelo contrário, contribuído ativamente para recalcar a razão sadia
Calmon ficou em situação muito crítica e perigosa. O guarda-mor, e o exercício do raciocínio, e impedir o progresso intelectual. Apesar
que estava em Linhares como prisioneiro, escapou-se para S. Mateus, de tôda a rusticidade, o vulgo possui, em alto grau, amor próprio e
o comandante do quartel de Pôrto de Souza desertou com seis soldados, orgulho, de par com uma ignorância completa da situação do resto
etc., de modo que a colônia, situada numa região das mais férteis, estaria do mundo; o que se deve atribuir, sobretudo, ao pernicioso sistema,
fadada a desaparecer, se o govêrno não adotasse medidas adequadas. seguido outrora por Portugal, de inteira exclusão do Brasil do inter-
. Depois de passar umas semanas em Mucuri com o Sr. Freyreiss, câmbio internacional. Um estrangeiro é aí encarado com espanto,
a fim de me restabelecer completamente, partimos para Vila Viçosa, ou com algo de semi-humano. Deplorando êsse obscurantismo, o amigo
onde nos acomodamos na casa da Câmara, e donde excursionamos pelos da humanidade deve rejubilar-se com as esperanças que o presente
arredores. govêrno, mais esclarecido, permite alimentar.
Vila Viçosa é um povoado aprazivelmente situado entre coqueiros. O rio Peruípe, regularmente largo, forma, antes de desaguar no
Mantém algum comércio de farinha de mandioca, que é exportada oceano, dois braços, dos quais a Barra Velha se considera situada a
pela costa.. Diz-se que, no último ano, a quantidade exportada atingiu 18° de latitude. Para cima, as margens são desabitadas, tendo-se aí
9 000 alqueires, no valor de 9 000 cruzados. Diversos habitantes possuem estabelecido, contra os tapuias, o quartel de Caparica. Diante da
pequenas lanchas, nas quais exportam, por mar, o produto de suas foz há bancos de areia, que tornam a navegação insegura. Durante a
lavouras. Aí vive um carpinteiro naval alemão; trouxe-o o navio nossa permanência no lugar, uma lancha carregada de farinha nau-
i~~lês, que naufragou, e ~tualmente exerce a sua profissão. Veio logo fragou no rio, morrendo quatro homens. As célebres ilhas rochosas
VlSltar-nos; porém, só mmto mal fala ainda a sua língua nativa. Con- denominadas Abrolhos, terror dos navegantes, ficam próximo, entre
sideram-no inglês no lugar. Caravelas e Viçosa, a poucas milhas da costa; pescadores dirigem-se
Os donos das lanchas são os moradores mais ricos e importantes. para lá, demorando vários dias ou mesmo semanas, e conseguindo
Entre ê!es, o. Sr. Bernardo da Mota distingue-se pelo bom coração muito peixe e tartarugas. As ilhas são cobertas de mato rasteiro, onde
e pela mtegridade. Conhecedor de muitas doenças regionais, pos- muitas aves marinhas fazem os ninhos, especialmente as "grapirás"
sumdo bastante experiência, adquirida gradualmente, esforçou-se em (Halieus fortificatus)368.
ser útil aos conterrâneos enfermos, aconselhando-os e dando-lhes bons
remédios. No clima quente do Brasil, os habitantes estão sujeitos a
Nas cercanias de Viçosa há matas de primeira ordem, êsse tempo a
parcialmente inundadas pelas chuvas freqüentes. Árvores altaneiras
nu~erosos males, sobretudo a várias enfermidades de pele e a febres espalhavam sombras amenas; entre elas, sobretudo, numerosos
p~:siste~tes, que, trata~as convenientemente por médicos ou cirur- coqueiros, cujas espécies conhecidas pelos habitantes se vêem na lista
giO~s, sao, decerto,. mmto pouco perigosas, mas das quais morrem anexa. Conhecem-se, na região à margem do Mucuri e do Peruípe,
mmtas pessoas, devido à falta da assistência necessária, ou ao trata- as seguintes espécies de palmeiras, tôdas elas tendo os caracteres externos
~ento i~próprio. O Sr. da Mota tentou, em Viçosa, atenuar êsse do gênero Cocos,; mas não se pode estatuir definitivamente que a
mconvemente tanto quanto possível; embora não tenha conhecimentos êle pertençam, sem exceção, porque não tivemos oportunidade de
médicos profundos, a experiência ensinou-lhe muitos tratamentos exce-
lentes e práticos; e dada a modéstia com que procede, adotando tudo de
(368) A espécie referida pelo viajante corresponde à Fregata nuzonificens rothschildi
bom e útil que lhe comunicam, seus conhecimentos e o alcance dos seus Math. da hodierna nomenclatura. Ela e as suas congêneres são ainda ordlnàriamente
benefícios vão-se continuamente dilatando. mencionadas nos livros didáticos com o nome de "!regata", por influência dos autores
europeus, franceses em particular. Tal denojllnação é, entretanto, inteiramente estranha
à lingua de nosso povo, que, em compensaçao, conhece a ave por número avultado de
apelações, va'"!áveis para cada região, como "joão-grande" (Rio. São Paulo), "alcatraz"
(* ) Tocaias são lugares que os selvagens preparam no mais esconso das florestas, (sul do Bras1l), "tesourão", "pássaro-do-sul" (Recôncavo), etc., sem falar no nome
ond<; se e_scondem à espreita dos Inimigos. Em geral, possuem várias em diferentes indígena "grapirá", ainda usual em alguns lugares. Em Fernando de Noron.ha e
loca1s: ad1ante, trataremos delas mais pormenorizadamente. Trindade ocorrem espécies Intimamente aparentadas com a que freqUenta o nosso htoral.
ESTADA EM MUCURI E VIÇOSA 205
204 VIAGEM AO BRASIL

examinar as flôres de tôdas. A êsse respeito, os botânicos nos poderão, empenachadas, arqueando-se como plui?as de ~ves_truz. S_?b a copa,
com exame mais acurado, dar melhores informações. 0 caule cinzento-prateado mostra uma mtumescenCia de tres a quatro
pés de comprimento, contendo as fôlhas novas e as flôre~, que formam
A. Espécies de palmeiras sem espinhos. como que uma medula, comestível, e chamada palmito. Entre a
L Côco-oA-BAHIA (Cocos nucifera, Linn.)369 não dá em estado parte lenhosa do caule e a intumescência verde contendo a medula,. cresce
selvagem, porém é muito comumente cultivado no litoral do Mucuri, e pende 0 cacho de flôres amarelas. O cacho de frutos é pequeno,
isto é, de 18° para o norte, até Bahia e Pernambuco; para o sul é constituído de coquinhos pretos, que mal chegam ao tamanho de uma
muito raro. Caracterizam-se, quando novos, por um espessamento na avelã.
base do caule, junto ao solo. 7. Côco-nE-GURmi (o Pissandó dos índios). Palmeira anã, que
2. Côco-oE-IMBURI; de fôlhas estreitas de regular comprimento, dá na areia das praias: de fôlhas lisas, porém arqueadas como plumas;
branco-prateadas embaixo, de um verde brilhante em cima; produzem as pinnulae são, muitas vêzes, um pouco enrolad~s para o la_do de dentro
cachos de coquinhos muito duros, que só os selvagens comem. e, ao mesmo tempo, duplas. Próximo ao solo ha um_ espadice, contendo
3. Côco-oE-PINDOBA •; não tem caule, brotando, apenas, do solo, coquinhos, que, na origem, é algo pontuda e revestida por uma polpa
belas fôlhas compridas; rente ao chão há um cacho de côcos comestíveis. doce, vermelho-amarelada, comida na região.
4. Côco-DE-PATI; tem um caule alto e grosso, vastas, pujantes e 8. Côco-nE-PIASSABA ou PIAÇABA: uma das mais úteis, notá-
colossais frondes, e majestosa aparência; o cacho de frutos é muito veis, e, ao mesmo tempo, belas das espécies; o fruto é do tamanho
grande, constituído de numerosos e duros coquinhos. e forma do N.o 5, e um pouco pontudo. Começa a aparecer nas pro-
5. Côco INDAIÁ-AÇU; de caule alto e forte, lindas e largas palmas, ximidades de Pôrto Seguro, tornando-se cada vez mais freqü,ente daí
e rachis lenhoso e rijo; as pinnulae são muito lisas, de bordos não den- para 0 norte, e sendo mais abundante na comarca d; Ilheu.s. Seu
teados, pontudas, de um verde-escuro brilhante em cima, embaixo de estipe é alto e forte, as pinnulae algo destacadas das folhas, todas as
um brilhante verde-claro. Dá um grande cacho de frutos, de nume- frondes , porém, subindo ~rectas, e ~ão pendentes como nas outras
rosos côcos comestíveis de cinco polegadas de comprido. O cacho é tão espécies; daí ter essa cunosa pa_lmena semelha~.ça com uma p~uma
grande que um homem o não pode carregar. E' uma árvore de porte turca de penas de garça. A bamba, quando seca, reduz-se a flb_ras
majestoso, a mais bela das palmeiras da região; havia, na Lagoa da lenhosas, finas e muito compridas, com que se fazem cordas para navios.
Arara, algumas grandes e imponentes árvores dessa espécie. O duro côco é trabalhado para a confecção de rosários.
6. Côco-nE-PALMITO, no Rio Doce, e mais ao sul; para o norte 9. Côco-nE-ARICURI ou ARACUÍ: palmeira de quinze a dezoito
às margens do Mucuri, conhecido por "côco-de-jissara". Os mais pés de altura, crescendo na areia das prai~s, ~as vizi~hanças. de Alce-
elegantes de todos. Caule muito alto e esguio; coma pequena, for- baça e Belmonte, tendo três, quatro ou ma1s fo~a~, CUJOS pecwlos mo~­
mada de oito ou dez lindas fôlhas verde-brilhantes, luxuriantemente tram, na origem, de ambos os lados, excrescenCias rombas e aculei-
(*) Nas diversas variedades de palmeiras acima enumeradas, os nomes acrescentados formes. Quando as frondes caem, ficam os pedúnculos: tornando-se
à palavra "côco" são, em sua maioria, os reais nomes antigos, provindos da llngua êstes em hastes curtas e muito ásperas- As frondes, elegantemente
dos Tupinambás e outras tribos Tupis aparentadas. Assim, por exemplo, um famoso
chefe indlgena era chamado Pindobuçu ou grande palmeira Pindoba. Vide SouTHEY's, arqueadas são verde-brilhantes e lisas. O cacho é formado de nume-
rosos frut~s drupáceos, redondos e do tamanho de uma ameixa gr~nde,
Histon;, etc. vol. I, p. 289, e outros trechos.
(369) Wied escreve invariàvelmente "Côcos", em lugar de "côco": "Côcos da revestido de uma saborosa polpa alaranjada. Fazem-se, com as folhas,
Bahia", " Côcos-de-lmburl ", etc. Essa grafia imprópria denuncia o pouco trato do
viajante com a nossa llngua e cumpria retificá-la na presente tradução. Se o chamado chapéus leves.
"côco-da-Bahia" ou "côcCKla-praia", como é mais ordinàriamente conhecido no
Nordeste, existia no Brasil antes do descobrimento, fazendo parte da flora indlgena, ou
se é planta exótica para aqui importada, é assunto ainda hoje muHo debatido. A opinião B. Espécies com espinhos verdadeiros.
mais corrente, já adotada por MARTIUS (Cf. Viagem pelo Brasil, ed. bras., 11, p. 89)
é a de que seja originário das Ilhas do Pacifico ou do Oceano indico, onde êle existe, 10. Côco-nE-Ami-AÇU: a grande palmeira airi. (conhec~da, em
ao lado de outras palmeiras estreitamente afins (cf. A. J. SAMPAIO, Pllytoueouraphia do alguns pontos de_ Minas Gerais, {1br "brejeúba"), CUJO só estlpe tem
Brasil, São Paulo, Cia. Edit. Nac., 1934, p. 199).
Quanto às inúmeras espécies que o autor menciona pelos seus nomes vulgares, nem 20 a 30 pés de altura, de côr pardo-escura e totalmente co?e~to de
sempre é fácil identificá-las com satisfatória precisão; não obstante, feita esta ressalva,
e advertindo que alguns nomes vulgares se aplicam freqüentemente a mais de uma espécie,
espinhos do mesmo tom, dispostos em anéis. O cacho é con~t1tmdo de
enquanto que denominações técnicas podem estar também antiquadas, apresento a coquinhos trigueiros, muito duros, ovais, um pouco acummados, ~o
seguir uma tentativa de sua determinação: "imburl", "imbiri", "pati", ou simplesmente tamanho de uma ameixa. Nos lugares em que é abundante, a pal:ne1ra
"blrl", Diplothemium caudescens MARTIUS; " pindoba ", Attalea compta MART.; "indaiá-açu "
ou "lndaiá ", Attalea indaya Drude; " palmito-doce ", Euterpe edulis Mart. e "jissara " forma capoeiras impenetráveis; medra nos matos en.?'utos ... Nao se
ou "jussara", Euterpe oleracea Mart.; "piassava" ou "plaçaba", Attalea funi{era Mart.;
"aricuri ", Cocos scllizophylla Mart.; "airi-açu" ou "ai ri", Astrocarymn ayri Mart.; encontra mais ao norte; não a observei mesmo nas circunv1zmhanças
"tucum" ou "ticum ", Bactris acanthocarpa, l\!art.
206 VIAGEM AO BRASIL ESTADA EM ~IUCURI E VIÇOSA 207
de Pôrto Seguro. Por isso, enquanto os Puris, os Patachós e os Bo- e nas cercanias de Caravelas: cresce nas árvores a boa altura e distingue-se
tocudos do Rio Doce fazem os arcos do lenho dessa árvore, as tribos pelo crescimento dicotômico. A haste lisa, bruna e luzidia, é esvaziada
que vivem mais para o norte, inclusive os Botocudos do Rio Grande da medula pelos negros, e usada nos cachimbos, com o nome de "canudo
de Belmonte e os Patachós do Rio do Prado, empregam, nesse mister, de samambaia".
o pau d'arco (Bignonia). As florestas dos arredores de Viçosa não nos interessaram apenas
11. Côco-oE-AIRI-MIRIM (pronunciado miri), de caule esguio e sob o aspecto botânico, mas também zoológico. A estação fria, obri-
espinhoso, e fôlhas rentes ao solo e ao longo do caule; o fruto é gando as aves da mata a arribar, em grande número, do interior para
pequeno, comido pelas crianças. o litoral, permitiu aos nossos caçadores matar inúmeros papagaios,
12. Côco-oE-TUCUM: tem um caule de quinze pés de comprido, sobretudo maitacas (Psittacus menstruus, Linn.)3 71 , tucanos, etc., que nos
crescendo nos charcos; ao passo que o airi prefere os lugares secos. servira:n de alimento. A carne do papagaio dá um caldo muito forte,
Caule e fôlhas espinhosos. O fruto é um coquinho prêto contendo mas não tive nenhuma confirmação do asserto de Southey •, de que
uma amêndoa comestível. Quebrando-se as pinnulae, aparecem deli- é usada como remédio. A linda cotinga negro-purpúrea (Ampelis atro-
cados fios verdes, muito resistentes, que são trançados sob a forma de purpurea) era freqüente nessas florestas; o belo e azul quiruá, ou
barbantes e assim usados na confecção de belas rêdes verdes de pescar crejoá (Ampelis catinga, Linn.)372, que se distingue, pela esplên-
e para outros fins. dida plumagem azul, de todos os pássaros do Brasil, era no Mucuri
Apesar de todos os caracteres diferenciais que essas várias espécies menos comum, bem como uma nova espécie de papagaio** 373 , etc. A
de palmeiras apresentam aos olhos do botânico, a maiotia possui uma incomparável plumagem do quiruá é empregada pelas freiras da Bahia
forma comum; as do gênero Cocos, de caule esguio, em algumas mais na confecção de lindas flôres feitas de penas. Entre os pássaros menores,
grosso em cima, noutras embaixo, e em outras, ainda, de diâmetro podemos apontar a Nectarinia cyanea (Certhia cyanea, Linn.) e a
todo igual, na maioria delas inclinado, provido de anéis salientes e spiza3 14 , às quais se dá o nome genérico de "saí". Conseguimos, tam-
com a parte mais alta anelada ou escamosa; as fôlhas são penadas, como bém, belas serpentes, como sejam vários espécimes de jararacas e
penas de avestruz, bela e graciosamente arqueadas, com pinnulae crêspas uma pele de jibóia (Boa constrictor de Daudin)•u, que não existe
ou um tanto encaracoladas, em algumas, noutras, erectas; são crêspas na África como afirmam alguns autores, mas é, no Brasil, a espécie
e prateadas no imburi; graciosamente recurvas, qual uma pluma, na mais comum do gênero.
jiçara; altaneiras, fortes, largas, projetadas em tôdas as direções e pen- A 11 de Junho deixamos Viçosa e partimos para Caravelas, onde
dentes para o solo na bela e imponente indaiá; subindo verticalmente a esperei pela chegada do Casqueiro do Rio de Janeiro.
grande altura na piaçaba, etc.
Resulta, do que ficou dito, que a região pela qual viajei é muito (*) SoUTHEY's History of B.-azil, vol. I, p. 627.
(**) Cinco polegadas e nove linhas de comprido; cauda curta; verde,. o peito,
mais pobre de variedades de ·p almeiras do que as do continente sul- o ventre e os lados tendendo ao azul; dorso côr escura de café; uroplgto quase
americano situadas mais perto do equador, nas quais Humboldt inteiramente negro; as duas penas medianas da cauda, ve~des, as inferiores averme-
lhadas, as outras de um lindo vermelho com largas extremtdades negras. No !du.seu
encontrou grande multiplicidade dessas magníficas plantas, de que nos de Berlim, essa ave es~ classificada. sob o nome de Psittacus tnelanotus. O pnnctpal
característico da espécie, só nítido, porém, no espécime fresco, é a orla cutânea do
dá encantadora descrição nos seus admiráveis "Quadros da Natureza"•. ôlho glabra e côr de vermelhão.
( ***) No livro de Seba, encontram-se as seguintes figuras de Boa constrictor,
Relacionados com as palmeiras, nos altos pontos dos Andes do Peru, que é fácil de identificar pelas suas manchas alongadas de ponta romba e truncada:
existem os fetos arborescentes (Filix), que se não encontram na costa tomo I, tab. 36, fig. 5 (de que parecem variantes tab. 53, fig. 1 e tab. 62, fi~. 1);
tomo li , tab. 101 (da qual parecem variedades tab. 100, fig. 1, tab. 104 e tab. 108, ftg. 3).
oriental brasileira, embora, errôneamente, alguns trabalhos modernos
sôbre esta região os registem aí 370 . Em compensação, as espécies baixas (371) Vide a nota 267.
(U72) Cotinga ntaculata (Müller), nome atual.
dessa família são numerosas e várias, tanto no solo como sôbre o tronco Houve engano do autor em reconhecer o pássaro bai":no em Am~elis cotinga L~nn.,
das árvores. Entre elas, a Mertensia dichotoma é comum no Mucuri espécie baseada na "Cotinga" de Brisson, ave da Amazôma. Ampelts ntaculata Müller
(1776), com base na estampa 188 de Daubenton, tem em sua sinonímia ilmpelis cincta
Kuhl, 1820, de uso clássico, até pouco tempo atrás.
(*) Ansichten der Natur, p. 243. A ave é longe ~e ser comum; durante minha permanência na Cachoeira Grande
do Rio Jucurucu não' consegui colecioná-la, nem mesmo avistá-la; vi-a .. porém, ao des~er
(870) Se Wied houvesse conhecido as matas da cordilheira marítima nos Estados o rio, no lugar chamado Ponte do Gentio (nome que aparece repetidamente nos rws
meridionais verificaria a improcedência, de sua tão categórica contestação. Os grandes da região). .
fetos arborescentes são elementos ali eminentemente característicos, contando-se em número (873) A espécie, Touit wiedi (Allen) da nomenclatura hodierna, vem descr!ta. n?s
avultado as suas espécies; a "samambaia real" ou "samambaiaçu" (Diksonia sellowiana) Beitriige, com o nome de Psittacus mel<:mOtus "Licht ", tornado inválido pela extsteneta
é particularmente notável pelo seu caule robusto, liso e ereto que não raro atinge de um homônimo anterior (Shaw, 1798). Deve ser hoje rara, não tendo sido por mim
a 6 metros de altura, enquanto que outras samambaias, como Alsophila corcovaden8i8, encontrada durante a viagem ao· sul da Bahia, onde, entretanto, pude conseguir numerosos
assinala-se pelo seu caule longo e flexuoso, sempre revestido pelas porções basais das espécimes de Touit surda (Kubl), sua próxima parenta. Larga deveria ter sido, todavia,
"sapitica", etc., foi já referido às notas 58 e 282; a segunda Chlorophanes spiza sua primitiva distribuição, visto que ia até o sul de S. Paulo (lguape). ,
au.xiliaris Zimmer. (874) A primeira é C11anerp es cyanea cyanea (Linn.), vulgarmente "sal", "safra ,
"sapitica ", etc., foi já referido às notas 58 e 282; a segunda Chloroph.anes sptza
axillCl'Tis Zimmer.


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VIAGEM DE CARAVELAS AO RIO


GRANDE DE BELMONTE

Rio e Vila de Alcobaça. - Rio e Vila do Prado. -


Os Patachós. - Os Machacalis. - Comechatiba. - Rio
do Frade. - Trancoso. - Pôrto Seguro. - Santa Cruz.
- Mogiquiçaba. - Belmonte.

Após uma espera de quatro semanas em Caravelas, o tão dese-


jado Casqueiro chegou, afinal. Trouxe-nos do Rio de Janeiro muitas
coisas de que estávamos necessitados, e recebeu as nossas coleções,
enviadas a amigos nossos da capital. O capitão Bento Lourenço
também chegara a C!ttavelas, logo depois de ter concluído a estrada.
Dirigia·se ao Rio, onde, como subseqüentemente nos contou, recebeu
uma comenda como prêmio dos seus esforços, além da patente de
coronel e do encargo de inspetor da estrada de Mucuri. Terminados os
nossos negócios, encetei viagem para o norte, ao longo da costa, ao
passo que o Sr. Freyreiss e sua gente ficaram no Mucuri.
Parti de Caravelas na manhã de 23 de Julho. Embora o período
mais frio dêsses climas já tivesse começado, o calor, no dia referido,
estava abafante. Os habitantes da região eram atacados freqüente-
mente de tosses, resfriados e dores de cabeça; pois o ,que chamam de
inverno tem, sôbre seus organismos acostumados ao calor, a mesma
influência que a primeira geada de novembro ou dezembro exerce
sôbre nós. Muitas pessoas morreram em Caravelas de doenças causadas
pelas mudanças de temperatura, ao passo que nós, estrangeiros, as
suportamos melhor. A planura escampa em que está situada Caravelas
é cercada de matas e cerrados pantanosos, onde se acham espalhadas as
roças dos moradores. Essas matas são muito mais aprazíveis na estação
bela do ano do que na de então; pois me pareceram muito mais bonitas
quando as visitei de novo, no comêço da primavera, no mês de
novembro.
210 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 211

O canto alegre do sabiá (Turdus rufiventris)315 vinha da sombra A tardinha, alcançamos uma rápida corrente, denominada Barra
espêssa dos coqueiros, entre os quais encontrei, acidentalmente, um que Velha, porque é a velha ou primitiva bôca do rio Alcobaça, que atin-
deitara raízes no tronco escavado de uma grande árvore e já crescera gimos logo depois. Essas pequenas correntes do litoral constituem,
a considerável altura. Vai-se a cavalo por essa floresta até à foz do rio muitas vêzes, sérios obstáculos ao viajante, podendo detê-los durante
Caravelas, onde uma dúzia, mais ou menos, de cabanas de pescadores seis ou oito horas. Chegamos à Barra Velha no pior tempo; estava
forma uma pequena povoação. Da barra, ou embocadura do rio, muito caudalosa e veloz, não nos restando senão descarregar os animais
que é espaçoso e navegável, segue-se o plano arenoso da praia, contra e fazer alto. Mais atrás, dentro do cerrado, viviam algumas pessoas,
a qual o oceano, agitado pelo vento, arremessa, com estrondo, as vagas circunstância essa que só fomos conhecer posteriormente. Sentados
espumejantes. Do lado da terra, a praia é orlada por densos balcedos, por detrás do tronco tombado de uma árvore antiga, que de certo modo
enfezados pela ventania; formam-nos árvores e arbustos, de fôlhas nos protegia da cortante viração marinha, a qual lançava sôbre
verde-escuras, assemelhando-se às do loureiro, algo leitosa, sumarentas nós a areia fina da praia, logo acendemos uma viva fogueira, em cujo
e rijas; bem como as duas variedades de Clusia, de lindas flôres brancas derredor nos deitamos nos cobertores e capotes. Aí vimos uma das
e róseas, que dão em abundância por tôda a praia litorânea. Aí, como belas fragatas (Pelecanus aquilus, Linn., Halieus, Illig.)380 , que se
em tôda a costa oriental, se encontra freqüentemente o arbusto conheci- mostram na costa brasileira, voando a grande altura, em bandos de
do por "almécega" (Icica, Amyris, Aublet)3 7 6, que é em tôdas suas partes quatro, cinco ou mais ainda. Após uma pobre ceia, passamos a noite
muito aromático. Do mesmo exsuda uma goma extraordinàriamente nesse triste local, muito pouco defendidos, pelos capotes, do vento
cheirosa, de usos vários, sobretudo como pez ou resina para navios e áspero. Por isso, saudamos alegremente a alvorada do dia, que nos
como bálsamo e remédio para feridas. Grande parte dos cerrados da convidou a continuar a viagem; mas só às dez horas a maré baixou
costa arenosa é constituída pelas duas espécies de coqueiros de guriri e bastante para permitir que os animais passassem a nado; a bagagem foi
de aricuri3 77 , muito comuns no litoral, e já mencionados a propósito transportada na cabeça, pelo pessoal.
da nossa estada no Mucuri. A primeira estava então em flor e carregada Dêsse ponto, alcançamos em pouco tempo a foz do Alcobaça; bas-
de frutos verdes; a outra é mais bonita, atinge 15 a 20 pés de altura tante larga. Próximo ao oceano, as margens são cobertas de densos
onde o vento não sopre com demasiada violência; na costa, porém, é manguezais, porém logo depois substituídos por florestas imponentes
menor. Os belos frutos redondos e côr de laranja têm gôsto adocicado, e sombrias. Não longe da foz, na margem norte, ergue-se a Vila de
mas dizem não serem saudáveis. Na areia firme e plana, além do Alcobaça, numa branca planície arenosa, atapetada de capim rasteiro,
alcance da arrebentação das vagas, rasteja uma linda campanulácea pur- mimosas rastejantes, Plumbago de flôres alvas, e das belas flôres róseas
púrea (lpomoea littoralis) 318, de caule pardo-escuro semelhante a uma da Vinca rosea. Alcobaça tem cêrca de duzentas casas e novecentos
corda, e fôlhas grossas, leitosas, oval-arredondadas; encontrei-a em quase habitantes; a maior parte dos edifícios são cobertos de telha, e a
todo o litoral, onde se prende na areia. O mesmo acontece com duas es- igreja é de pedra. Faz-se aí, como em tôda a costa, algum comércio
pécies de flôres amarelas da classe Diadelphia, uma, rastejante, espalhan- de farinha de mandioca, de que se exportam anualmente, segundo se
do-se pelo solo, nova espécie de Sophora; outra, a Guilandina· bonduc, diz, perto de quarenta mil alqueires, para as principais vilas do litoral,
Linn., -com muitas vêzes 3 a 4 pés de altura e uma cápsula curta, larga, e para todos os lugares em que a referida planta não dá tão bem.
espinhosa, muito áspera. Entre essas plantas, o duro capim da praia Algumas lanchas se empregam no transporte do produto, trazendo de
(Remirea littoralis)319 medra abundantemente por tôda a parte. volta outros artigos da Bahia. :tsses pequenos barcos vão longe rio
acima, isto é, até a plantação do Sr. M unis Cordeiro, um dos moradores
· (875) T urdus •·u{iventris Vieillot, 1818, ou "sabiá de barriga vermelha " (aliás côr mais importantes de Alcobaça, cujo excelente caráter lhe granjeou
de canela) , "sabiá-<:Oea", etc., da nomenclatura vulgar, é ainda hoje bastante comum nos
lugares habita dos, sendo mesmo visto com grande freqü ência nos quinta is e jardins merecida reputação entre os conterrâneos.
arborizados do Rio de Janeiro, t ido como pá tria típi ca da espécie (Cf. nota 109).
(876 ) " Alm écega da pra ia", Amyris brasUiensis Spreng., ou I cica maríti ma Ca za r. O rio Alcobaça, denominado "Tanien", ou "ltanien" (ltanhaém)
(fam. das Burseráceas). no primitivo idioma brasílico, é abundante de peixe; dizem que até
(377) Convém não confundir o " aricuri " (Cocos schizophylla Mart.) com o " licuri "
ou "ouricuri ", outra palmeira (Cocos coronata Mart.) que mais tarde o autor iria
"manatis" 381 foram nêle capturados; a barra tem leito arenoso, com
encontrar em sua viagem de Conquista à Bahia. Não obstante, o que informa sôbre os 12 a 14 palmos d'água de profundidade, podendo ser transposta por
caracteres do fruto caberia muito bem aos da última. O primeiro é também chamado
"licurioba " no Recôncavo e adjacências.
(378) " Salsa da pra ia··. "bata ta da pra ia •· ou a in da "gitira na ., (l pomaea 7>es-c<l']Jrae (380) E ' a " grapirá " ou "joão grande ", já referido pelo a utor, páginas atrás
Sweet. ), planta rasteira comum em tôdas a praias a renosa s do Brasil orienta l, e (v. nota 868) .
fácil ue reconhecer pelas suas flôres campanullform es e roxas. (881) Nome pelo qual, os europeus, de ordinário, conhecem o " peixe-boi " (Trichechus
(379 ) Remirea mm·itimao Aubl., fa m. das Ciperáceas (Cf. a nota 31 7). inungui s (Pelz.)) e seus afins (cf. nota 318).
212 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 213
sumacas pesadamente carregadas. Os seus sertões, ou sejam as seculares pois estávamos justamente na época da baixa. Do outro lado, perto
florestas de ambas as margens, são habitadas pelas tribos selvagens dos do rio do Prado, também havia manguezais, ficando a vila na margem
Patachós e Machacaris, a que já nos referimos por diversas vêzes, e as norte, num plano arenoso um pouco elevado- Estendidos na areia da
quais, nessas paragens e mais ao norte, visitam pacificamente as moradas margem, tivemos de esperar muito tempo, antes que alguns moradores
dos brancos, oferecendo, em ocasiões, cêra ou caça, em troca de outros se lembrassem de vir buscar-nos numa canoa. Deram-nos um pouso
produtos. Não os pudemos ver então, porque se tinham internado suportável, na casa da Câmara.
na mata. Nas florestas do Alcobaça são abundantes as madeiras de A vila do Prado, a princípio formada de índios, é menor que a
lei e as plantas úteis; o pau-brasil, por exemplo, e, sobretudo, grande de Alcobaça; com efeito, conta apenas de 50 a 60 casas e 600 habi-
quantidade de jacarandá e vinhático, extraídos pelos índios civilizados, tantes. As casas são em parte construídas em fila, em parte espalhadas
que formaram o núcleo original da vila, mas substituídos, atualmente, num branco terraplano arenoso. A Vinca rosea885 cobre êsse solo
na maior parte, por brancos e negros. Alcobaça é lugar salubre, de ardente, onde os nossos burros só encontraram escasso e ruim sustento.
atmosfera constantemente purificada pela viração marinha; entretanto, O lugarejo é ainda mais desprovido de recursos do que Alcobaça. Umas
durante grande parte do ano, os ventos e as tempestades são muito poucas lanchas mantêm pequeno comércio costeiro de farinha de
desagradáveis. A 5 léguas ao norte do Alcobaça, o Rio do Prado desem- mandioca, de que se exportam, anualmente, 8000 alqueires, ao lado
boca no mar; outrora os aborígines da região chamavam-no de algum açúcar e outros produtos das ma'tas e das plantações. O rio
Jucurucu""382 • O caminho até lá, pela costa, seguia a praia compacta é de razoável largura, abundante em peixe, a barra não é má para
e plana, onde o oceano se quebrava com fúria, encrespado pelo vento a navegação, pois deixa entrar sumacas carregadas. Por ordem do
impetuoso. Nos densos bosques de palmeiras guriri e aricuri, que se govêrno, o nosso compatriota Sr. Feldner, major-engenheiro, partindo
prolongavam pelo litoral, sobranceadas por árvores mais altas do gênero de Vila do Prado, penetrou nas florestas em direção noroeste, a fim de
do loureiro, era muito freqüente uma pequena espécie de Penelope, abrir uma estrada para Minas Gerais. Entrou em contenda com o
que parece estreitamente aparentada com a "parraqua" (Penelope par- ouvidor, Marcelino da Cunha, que lhe não deu apoio, e, como depen-
raqua, Temminck) 383 . E' conhecida por aracuã •U38 4 na costa oriental, desse inteiramente das providências dêste, o empreendimento falhou
sendo muito procurada como ótima carne pelos caçadores; em tamanho por completo. O major Feldner foi obrigado a passar algum tempo
como em gôsto se assemelha bastante aos nossos faisões. Meu cão, numa ilha: aí caiu doente, e passou tantas privações com o seu pes-
caçando constantemente pelos matos, encontrou muitas dessas aves, soal, que chegaram a matar um cachorro para saciarem a fome. Um
que sempre alçavam vôo aos pares, numa grande vozeria; não era botocudo manso, chamado Simão, curou-o de uma febre violenta com
fácil baleá-las, de vez que as moitas, cheias de plantas espinhosas, eram uma xícara de mel, que conseguiu para êle. Depois de tomá-lo, come-
muito intrincadas. çou a suar fortemente, o que deu cabo do mal.
Ao meio-dia, chegamos a uma outra Barra Velha, antiga bôca do As roças dos moradores de Prado ficam esparsas nas matas à
rio do Prado, que os nossos animais puderam passar a vau carregados, beira do Jucurucu. Essas brenhas abrigam grande número de ani-
mais bons de caçar, belas variedades de madeiras, e frutos silvestres.
(*) A Corografia Brasílica escreve Jucuntcu mas os habitantes da região pronunciam,
sem discrepância, sucurucu.
O pau-brasil é abundante; os sapateiros usam-no para tingir o couro
(**) À primeira vista, a "aracuan" parece ser a mesma "parraqua"; mas é, de prêto; juntando-se porém cinza a essa tinta, ela se torna averme-
sem dúvida. uma espécie diferente, pois é sempre multo menor, e tem a côr da lhada (roxa). Entre as aves que animam as florestas, perto da vila,
plumagem também algo diversa. Parece ser o Phasianus garrulus de Humboldt.
(Suplem.) Imagino agora que a aracuã (" Aracuang") possa ser também diferente a aracuã acima mencionada é muito comum; os habitantes caçam
de Phasianus garrulus de Humboldt, embora aceite considerá-las Idênticas; penso porém
que deve ser separada da "parraqua". Matamos muitas dessas aves e nunca observamos tucanos e papagaios em grande quantidade, comendo-os nas festas como
nelas nenhuma diferença na côr, apresentando-se-lhes o abdômen invariAvelmente branco;
penso, por Isso, que o Sr. Temminck erra quando acba que êste penélope de barriga
petiscos, pois que, em geral, a farinha de mandioca, o feijão prêto,
branca é o jovem da "parraqua". a carne sêca e, algumas vêzes, um pouco de peixe constituem a atimen-
tação constante dos brasileiros, a que o viajante tem que se acostu-
(382) A pronúncia brasileira é de fato Jucurucu (cf. OLIV. PINTo, Rev. Mus. Paul.,
XIX, p. 82 e 33), embora soasse "Sucurucu" aos ouvidos germânicos do autor, que mar. A maior praga nativa da região é o "bicho de pé" (Pulex
invariAvelmente grafa o nome desta última maneira. penetrans), muitíssimo comum na areia litorânea; são abundantes mes-
(383) Ortalis motmot (Linn.) (= Phasiantu parraqua Lath.) é espécie guianense-
amazônica, conhecida no Pará por "aracuã-da-eabeça-vermelba ". mo nas casas, sendo necessário, por isso, examinar freqüentemente
(884) Coube a Spix reconhecer a Individualidade desta espécie, a que êle chamou os pés.
Penelope aracuan. Pertence hoje ao gênero Ortalis, tendo ficado Penelope privativo dos
jacus. Mais para o norte (Piauí, Maranhão, etc.) vive uma outra, muitas vêzes confundida
com a prim ei ra, O. superciliaoris (Gray) ( = O. spixi Hellmayr). Veja-se a uota 117 (385) ProvAvelmente a "caspanga-de-flôres-eôr-de-rosa ", de Caminhoá (Botan., p.
supra e O. PINTO, Rev. Mus. Paul., XIX, pp. 57-60. 2670), Plumbago rosea Linn.
214 VIAGEM AO BRASIL DE CARA VELAS A BEL:\lO~TE 215

Caindo um aguaceiro, e tendo, além disso, fugido um dos burros, rapem tôda a cabeça e deixem só um pequeno tufo adiante e outro
fui obrigado a permanecer dois dias nesse lugar arenoso e triste. No atrás. Há os que furam o lábio inferior e a orelha, metendo um
segundo dia, porém, fui amplamente recompensado por êsse contra· pequeno pedaço de bambu na abertura. Os homens, à maneira de
tempo, porque apareceu na vila um bando dos selvagens que eu tanto tôdas as tribos da costa oriental, trazem as facas penduradas a um
queria conhecer. Eram da tribo dos Patachós, da qual eu não tinha cordel amarrado ao pescoço; os rosários que lhes dão, penduram-nos
visto nenhum até então, e haviam chegado poucos dias antes das do mesmo modo. A pele tem o tom natural pardo-avermelhado, não
florestas, para as plantações. Entraram na vila completamente nus, sendo pintada. Conservam o curiosíssimo costume de arregaçar o
sopesando as armas, e foram imediatamente envolvidos por um magote prepúcio com um ramo de cipó, o que dá ao órgão aparência
de gente. Traziam para vender grandes bolas de cêra, tendo nós conse· muito singular. As armas são, no essencial, as mesmas que as dos outros
guido uma porção de arcos e flechas, em troca de facas e lenços selvagens; os arcos, entretanto, são maiores que os das demais tribos;
vermelhos. medi um dêles, e achei 8 pés, 9 polegadas e meia, medida inglêsa;
são feitas com o lenho do airi ou do pau d'arco (Bignonia). As fle-
.Esses selvagens não têm nenhuma aparência extraordinária, não
chas, que costumam levar para a caça, são um pouco curtas; mas,
são nem pintados nem desfigurados; alguns são baixos, a maioria é
provàvelmente, fazem as de guerra mais compridas, de acôrdo com o
de estatura meã, um tanto delgados, de caras largas e ossudas, e feições
costume das outras tribos. Essas flechas têm a cauda guarnecida de
grosseiras. Uns poucos, somente, traziam, amarrados em volta do
penas de arara, mutum, ou de aves de rapina; a ponta é feita
pescoço, lenços que lhes deram em ocasiões anteriores; o chefe, que não
de taquaruçu ou de ubá; mas em parte alguma encontrei, entre as
apresentava nada de notável (os portuguêses o chamavam de capitão),
várias tribos aborígines, a corda do arco feita de tripa ou nervo de
uma carapuça de lã vermelha e calções azuis, obtidos algures. animais, como Lindley errôneamente assevera •. Cada homem leva às
Comida era o principal desejo dêles; deram-lhes um pouco de fari· costas, pendurado ao pescoço, bôlsa ou saco feito de "embira" (entre
nha e côcos, que êles abriam mui destramente, com uma macha- casca), o qual serve para carregar diversas miudezas. As mulheres,
dinha, arrancando, em seguida, da casca dura, com os dentes pode- tanto como os homens, não se pintam, e andam inteiramente nuas.
rosos, a polpa branca. A avidez com que comiam era notável. Em As choças dêsses selvagens são de construção diferente da dos Puris,
nossa estampa 7.a estão representados dois dêstes selvagens; o "capi- relatada antes. Galhos finos de árvores e estacas fincadas no solo
tão" está ocupado em abrir um côco. Alguns dêles tinham muito tino são encurvadas na extremidade superior, amarrados uns aos outros,
para comerciar. Queriam, sobretudo, facas e machadinhas, sendo que e cobertos de fôlhas de coqueiro ou de patioba. Essas palhoças são
um, entretanto, logo adquiriu um lenço vermelho e o amarrou em muito acachapadas e baixas; cada uma tem, perto, uma espécie de
volta do pescoço. Um côco fixado na extremidade de um pau foi fogão, constituída de quatro forquilhas fincadas na terra, sôbre as
pôsto à distância de quarenta passos, tendo-se-lhes pedido atirar nesse quais descansam quatro varas, que são cruzadas por outras, colocadas
alvo, o que nunca falharam. Não havendo ninguém que pudesse bastante juntas, de modo a permitir assar ou cozer a caça. N a vinheta
conversar com êles, demoraram-se pouco, voltando às moradas. Para dêste capítulo acham-se elas representadas. Os Patachós lembram, em
conhecê-los melhor, subi o rio Prado, a 30 de julho, até ao lugar muitos pontos, os Machacaris ou Machacalis; as línguas têm alguma
onde ficavam as choças dos selvagens; mas não os encontrei, porque afinidade, embora difiram enormemente a vários respeitos.
já se tinham retirado para mais longe.
Parece que ambas as tribos se aliaram contra os Botocudos, e
Tanto os Patachós como os Machacaris vivem nas florestas da que tratam os prisioneiros como escravos, pois, no Prado, uma menina
região, às margens do Jucurucu. Os últimos sempre se mostraram botocuda foi, há pouco tempo, oferecida à venda. Não tem nenhum
mais inclinados à paz com os brancos do que os primeiros, que somente fundamento a suspeita de que os Patachós comem carne humana.
chegaram a um acôrdo amigável havia três anos. Pouco antes disso, O caráter de tôdas essas tribos selvagens é, decerto, muito semelhante
porém, surpreenderam na floresta alguns habitantes de Prado, ferindo nos traços essenciais, se bem cada uma tenha as suas peculiaridades;
o escrivão e matando várias pessoas. Os Machacaris amigos foram assim, os Patachós são, entre tôdas, os mais desconfiados e reservados;
depois chamados como medianeiros da paz com os Patachós. o olhar é sempre frio e carrancudo, sendo muito raro permitirem que
No aspecto externo, os Patachós assemelham-se aos Puris e aos Ma- os filhos se criem entre os brancos, como as outras tribos o fazem
chacaris, com a diferença de que são mais altos que os primeiros; prontamente. Vagueiam pelas matas, e as suas hordas surgem, alterna-
como os últimos, não desfiguram os rostos, usando os cabelos natu-
ralmente soltos, apenas cortados no pescoço e na testa, embora alguns (*) LINDL EY, Narrative, etc., p. 22 .
• - •- -~ - - -- ___._ - -- -Y-=-----------'"'- ~-- - -

216 VIAGEM AO BRASIL

damente, no Alcobaça, no Prado, em Comechatiba, Trancoso, etc.


Chegando a qualquer lugar, os moradores lhes dão algo para comer,
trocando com êles miudezas por cêra e outros produtos da mata, após
o que voltam às brenhas.
Satisfeito com a oportunidade de conhecer êsse ramo dos habi-
tantes aborígines, deixei Vila do Prado e corri ao encalço da minha
gente e dos burros de carga, que tinham partido antes de mim.
Depois de Prado, o litoral toma para o norte feição diversa. Erguem-
se, do lado do mar, altos paredões de argila vermelha, e de outras
côres, em camadas sôbre arenitos ferruginosos diversamente coloridos;
as elevações costeiras são cobertas de mata, e vales numerosos abrem-se
para o oceano. f.stes são atapetados por florestas virgens, verde-escuras
e umbrosas, refúgio dos Patachós. Por todos êsses vales correm peque-
nos cursos d'água, cujas barras (as embocaduras no mar) na época das
cheias, representam, muitas vêzes, grande contratempo para o viajante.
Outro obstáculo para o viajante, nesse trecho da costa, são os rochedos
que dos altos paredões se projetam diretamente para o mar. Na maré
baixa se pode contorná-los em praia enxuta; na alta, porém, é impos-
sível fazê-lo, porque as vagas se quebram furiosamente contra êles,
lançando a espumarada a grande altura- Uma pessoa que acontecesse
estar a meio caminho entre dois dêsses penedos, embai}5:o da alta
ribanceira da costa, no justo momento de a maré começar a encher, cor-
reria grande perigo, porque seria então impossível escapar à subida
rápida do oceano. É, portanto, necessário que o viandante procure
saber dos habitantes da região as horas propícias. Se perde o momento
favorável, é muitas vêzes obrigado a esperar seis horas pela volta da
vazante; nem h á, em todo êsse litoral, nenhum camin ho senão o refe-
rido, rente ao mar. Entre Prado e Comechatiba, encontram-se tais
penhascos em três lugares; num dêles, passei através das ondas, que
me subiam até à sela; dez minutos mais tarde, teria que esperar seis
horas e procurar um pedaço desimpedido da costa. Mesmo assim, o
escachoar das vagas nos rochedos era terrível; viajantes não familia-
rizados com êsses caminhos, não mais nos aventuramos a meter os ani-
mais por entre os vagalhões, servir.do-nos de dois negros de uma
fazenda vizinha, para irem a cavalo na frente, mostrando-nos o lugar de
passagem. Transposto felizmente êsse lugar, dei-me pressa em sair da Patachós do Rio do Prado. ( Est. 7 ) .
perigosa praia, batida pelo mais terrível dos elementos, e galopei a
tôda a brida. Mais para fora, encontram-se, nos penhascos do mar,
diversas espécies ·de moluscos 386 ; entre outros, duas espécies de ouri-
ços do mar (Echinus), das quais uma serve de alimento aos habitantes
'
mais pobres. A espécie não comestível é brancacenta, cerradamente
coberta de espinhos violetas; a comestível, preta, também coberta de

(886) Hoje dir-se-ia equinoderntes (cf. a nota 14).


- - - - ~~1"t--........-.. _ _ --~---,

DE CARAVELAS A BELMONTE 217


lonl?os espinhos3B7. Em todos êsses rochedos também existem cara-
muJOS que produzem um líquido purpurinoass; são especialmente
abundantes nas vizinhanças de Mucuri, Viçosa, Comechatiba, Rio
do Frade, etc. O Sr. Sellow, numa de suas excursões, teve ocasião
de fazer algumas observações a êsse respeito; Mawe também trata do
assunto•. Diversos colonos moram em alguns dos vales do litoral;
entre êles, o Sr. Calisto, de quem já eu recebera gentilezas em Vila
do Prado. A cavalo, acompanhado de dois homens da minha tropa,
dirigi-me à ponta· de terra denominada Comechatiba, ou, mais exat.a-
mente, na antiga língua indígena, Currubichatiba. A lua-cheia refle-
tia-se, magnífica, no oceano, e iluminava as choças solitárias de alguns
índios praianos, a quem os nossos burros de carga, que iam adiante,
arrancaram ao sono. A curta distância das choças ficava a fazenda de
Caledônia, fundada sete anos atrás pelo inglês Charles Frazer. ~ste
E
~ cavalheiro, que viajara por grande parte do globo, comprara cêrca de
~
;: trinta fortes negros para o cultivo da fazenda. Os índios das cerca-
E
:: nias trabalharam para êle durante uns anos, derrubando a mata dos
i Q:l
lindos morros que acompanham a costa, e cultivando-os todos. Plan-
'
\ c
·;:: tou, no litoral, grande número de coqueiros; a casa de residência era de
c barro, coberta de palha; do mesmo modo, construíram-se muitos ran-
;:

.
c'
::
1>11
chos para os negros, um grande engenho de farinha de mandioca e
um armazém. O engenho, entretanto, achava-se em estado muito
~
C/) precário. E' verdade que ainda havia nêle oito a dez gamelas de barro
c para a secagem da farinha mas, algumas quebradas. A situação
t
'C da propriedade é excelente; colinas verdejantes erguem-se da costa
~
~
e um largo trecho de terra já havia sido desbravado. Parece, contudo,
~
que não souberam disciplinar os negros, pois estavam insubordinados;
..s';5 consumiam os produtos das lavouras e muitas vêzes recusavam-se ao
trabalho de que estavam incumbidos; ao invés disso, iam caçar pelas
~ florestas vizinhas, ou pegar animais ferozes com "mundéus". O Sr.
~ "' Frazer estava então na Bahia, e tinha deixado um português de Vila
\ > do Prado tomando conta da fazenda na sua ausência. O feitor rece-
•, beu-nos à chegada; os negros, que estavam justamente reunidos para
dançar ao ritmo do tambor, vieram imediatamente espiar os forasteiros.
O quarto logo se encheu com os escravos, que eram moços, bem
feitos, e, muitos, altos e robustos; fatigados como estávamos, o feitor

(*) J. MAwE' s Travels, etc., p. 54.

(887) "Pinaúna" (visivelmente uma forma contrata de "pindá-una", nome tupi)


é como chamam, no Recôncavo da Bahia, ao ouriço do mar prêto, Echinometra lucuntur
(Linn.) e, por extensão, também ao verde, Lytechinus varieuatus (Leske); êste comunlssimo
dentro da bala e vivendo livremente nos fundos de areia e lôdo, aquêle nos rochedos
da costa oceânica, encaixado dentro de locas por êle mesmo abertas.
(388) "Tinteiro" ("Tintureiro" seria o nome entre os rio-grandenses do sul, segundo
R. von Ihering, in Dic. dos Anim. do Brasil) é como chamam os pescadores da Bahia
aos moluscos da famüia dos Aplysiidae (ordem OpiBthobranchia, classe Gasteropoda),
de que Aplysia brasiliana Rang. e A. livida Orb., ditas lebres do mar, são encontradiças
no litoral de São Paulo.
- - ~ --

218 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 219

não teve autoridad~ bastante para. nos l~vrar dessas visitas importu- a três du quatro léguas, encontramos outro rio, um pouco maior, o
nas. Aí permaneci uns poucos dias e tiVe oportunidade de visitar Corumbau. Estorvou-nos um tanto a passagem, e mais fatigados fica-
as choças dos Patachós na mata, bem recentemente abandonadas; con- mos com o calor abafante.
duziram-me até lá alguns índios de Comechatiba. O litoral, por vêzes altanado e íngreme, baixo logo depois, era
O litoral forma, nesse trecho, um pôrto seguro e protegido, não de- coberto de matas verde-escuras como as do loureiro. Vimos freqüente-
certo dos ventos, mas do oceano, por arrecifes, e com um bom anco- mente, na praia, a palmeira aricuri, bem como muitas e belas espé-
radouro, tendo ainda a vantagem de a entrada estar referida aos nave- cies novas de capins e outras gramíneas. Os pequenos vales, abertos
gan,te.s por meio de um marc~. As vagas arremessaram à praia inúmeras para o oceano, eram em parte ocupados por lindos e pitorescos lagos
espeCles de sargaços, sertulánas e outros zoófitos, mas poucas de con- ou lagoas, que às vêzes estendiam braços para o mar; estavam geral-
chas. No lusco-iusco da tarde, esvoaçavam numerosos grandes vam- mente cheios de caniços de vária espécie. A maré continuou a encher
piro.s, ou gu~~dirás (Phyllostomus spectrum), que, durante o vôo, até perto do meio-dia; e como o caminho, aqui e ali, fôsse bloqueado
podiam ser faolmente tomados por corujas pequenas. Nossos burros por troncos caídos, éramos obrigados a passar pelas ondas. E assim
f~ram mor~i~os po~ alguns, sangrando profusamente389. Essa propen-
chegamos, sem aci.dente, à desembocadura do Corumbau, que parece
sao da~ esJ?eoes mawres de morcegos, na zona tórrida, a sugar o sangue estar a 17~ de latitude sul: ~a barra dêsse pequeno rio, cujas mar-
de ammais, também se encontra, segundo os habitantes do Brasil, gens férteis devem produZir diversas e belas variedades de madeiras
em tôdas as espécies menores; mas não vi confirmado o asserto de de lei, no entanto inaproveitadas, existem várias ilhas de areia, entre
q_ue atacam os homens da mesma maneira. Os índios do lugar as quais a correnteza formava então grandes vagas. Suas margens are-
viv:m do produto das plantações, da caça e sobretudo da pesca; nosas ou pantanosas forradas de mangues, eram somente freqüentadas,
razao por que, no bom tempo, são vistos freqüentemente em canoas, no ~omento, por garças, alguns maçaricos e gaivotas (Larus), já que
pelo mar. Voltam com grande quantidade de pescado; e, em volta os Aimorés, ou Botocudos, tinham expulsado os habitantes com os
das choças, espalham os cascos, os crânios e os ossos das enormes seus feros ataques. Próximo ao rio, na margem norte, morava, na
tartarugas. época da nossa visita, uma família do Prado, que o ouvidor
mandara para aí, a fim de transportar os viajantes para a
. Ao norte d,e Comechatiba, o mar volta a ser marginado por riban-
outra margem, e que vivia da pesca. Não havendo, porém, segurança
ceiras altas e Ingremes e rochedos, que, num ponto, entram tanto
nessas mata~ despovoada~ e solitárias, abandonaram o pôsto pouco
por êle, que é necessário fazer uma grande volta por cima, onde se
tempo dep01s. Encontrei na sua palhoça um pouco de peixe, parte
passa uma planície chamada Imbassuaba. E' um campo inteiramente
do qual acabado de pescar; e provemo-nos com o resto necessário à
cercado de matas, no qual medravam belos capinzais e várias plantas
refeiçã?, pelo que, entretanto, tivemos de pagar bom preço. O homem
agrestes, novas para nós, e que foram muito bem-vindas às nossas cole-
aproveitou-se da fome estampada na fisionomia dos forasteiros, fati-
ções. Entre outras, descobrimos no solo, em abundância, à sombra
gados do calor do dia, e pediu três vêzes o valor dos víveres.
das árvores, o líquen de rena (Lichen rangiferinus, Linn.). í.ste vege-
Dêsse ponto a região se torna cada vez mais descampada; nas
tal, que é no norte o alimento da utilíssima rena, acha-se profusa-
ardei?tes colinas de areia aparecem numerosos cactos penta e hexa-
mente espalhado. Daí alcançamos de novo e em pouco tempo a costa,
gonai_s, ameaçando as pernas dos burros com agudos espinhos. Légua
e, a uma légua e mei~ de Comechatiba, o riacho Caí, que só se e meia ao norte do Corumbau, o rio Cramimoã desemboca no mar.
~de passar n,a maré baixa. Quando o ati~gi~os, já quase era impos-
Atrave~sa-s~, n~sse tre~~o, vasta planície coberta de capim, de palmei-
sivel atravessa-lo; mas os negros e os mdws da fazenda, conhe-
cedores perfeitos dos caminhos e das águas, passaram-no a vau, levando ras. an~s a~Icun e gunn, belos arbustos, etc., entre os quais uma linda
nossa bagagem na cabeça e nos ombros, até à margem oposta, feliz- C_lzttorza vwleta, de caule lenhoso e ereto. Aqui e ali, surgem alaga-
diços; pa~a o interior, à esquerda, a vista abarca a magnífica e
mente .:em molhá-la. O Caí, s ue. à semelhança de todos os rios
ampl~ p~1sagem das . serras, em direção a Minas Gerais; mais perto,
~a regiao, corre por ~m. a.ie ~.::1 ~ oso e. somi..>rio, é insignificante na
epoca da vazante, porem Impetuoso e agitado na cheia. Para 0 norte, no pr11~euo plano, ve-se alta montanha, perto das quedas do rio Prado,
denommada Morro Pascoal•390 e que serve de ponto de refe-
(389) Mais tarde (cf. Beitrage, li, p. 233 e ss.), pôde Wied verificar que uma (* ) LINDLE Y escreve errôn~amente "Monte Paschoa ". Vide Narrat've o! a
pa rte, pelo menos. dos morcegos em questão pertencia a uma espécie não descrita e to Brazil, p. 22 8 . • V Of)age
de gênero particular, por êle denominada Dumodus rufus. Phyllostomus spectrum 'em
que . pese. a responsabilidade que lbe _confere o nome de " vampiro ", não ocorr; no
Brasil. or1ental, nem é hematótago, senao carnívoro. Cf. Pinto Bol Mus Paraense 1!J (3 90 ) Aliás, Monte Pascoal, como o próprio autor irá corretamente chamá-lo,
Goeld•, X , pp. 339-40 (I948) . ' · · ' · três páginas adiante.
220 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 221
rência aos navios no oceano; pertence à Serra dos Aimorés. A planí. levaram à • capitania de Pôrto Seguro, quando a invadiram em 1560,
cie oferece ao botânico grande entretenimento e ocupação. conforme vemos relatado na History of Brazil de Southey e na Coro-
O sol já se punha quando alcançamos o vilarejo índio de Crami- grafia Brasílica- Também assolaram, então, os estabelecimentos à
moã, que foi construído, por ordem do ouvidor, num morro à mar- margem do rio Ilhéus, ou S. Jorge, até que o governador, Mem de Sá,
gem do rio, servindo mais como destacamento militar, com o nome os rechaçou. Dizem que ainda se acham, em Juacema, pedaços de
de Quartel da Cunha, para segurança da região. tijolos, metais e objetos análogos; são os mais antigos testemunhos
Não foi pequeno o espanto dos índios ante tão desusada e tardia da história do Brasil, porquanto não há, no litoral, monumentos mais
visita de uma tropa carregada a êsse lugar solitário. Logo se jun- antigos que os do tempo da primeira colonização dos europeus. Os
taram em tôrno para conversar conosco, enquanto a nossa gente acen- primitivos habitantes não deixaram, como as nações Tulteca e Asteca,
dia a fogueira numa cabana isolada. Vivem êles de suas plantações, monumentos que prendessem a atenção dos pósteros após milhares de
da pesca no rio e no mar, tirando da floresta estôpa e embira, que anos: pois a memória dos rudes tapuias desaparecerá da terra com o
vendem em Pôrto Seguro. Sendo raras e extremamente caras, na cos- seu corpo desnudo, que seus irmãos confiam à cova, pois é indiferente,
ta, a pólvora e as balas, fazem, em parte, nas caçadas, uso dos arcos para as futuras gerações, se um botocudo ou uma fera tenham vivido,
e das flechas, que vão buscar aos Patachós, nas florestas vizinhas, tro- outrora, nesse ou naquele lugar. Achei em J auacema uma espécie
cando-os por facas. Se bem tenham sido aí colocados pelo ouvidor particular de palmeira, a piaçaba, que será mencionada para diante
com o fim expresso de ajudar os viajantes a passar o rio, não estão com mais freqüência, caracterizando-se pelas fôlhas penadas, largas
satisfeitos com o encargo, e vivem sobretudo nas suas roças situadas e eretas; ainda não a tínhamos visto antes. Poucas plantas estavam
nos arredores. São fortes e robustos, mas tão indolentes, que, com então em flor, mas quando, em Novembro, tornamos a visitar essas
mau tempo, preferem ficar sem víveres nas cabanas a enfrentar qual- paragens, muitas, belas e raras, floresciam; entre as quais um lindo
quer dificuldade no trabalho. Os índios forneceram-nos algum peixe; Epidendrum de inflorescências escarlates. Esta espécie viceja em
também obtivemos uns bolos de farinha de ma,ndioca, de que já tinham tôdas as ribas litorâneas.
prontos uma porção. As várias formas de emprêgo culinário da fari- Dessa altiplanura, o panorama do êrmo litoral e do oceano imen-
nha de mandioca foram-lhes transmitidas pelos ancestrais, os Tupinam- so é sublime, e arrasta o espírito do viandante solitário à contempla-
bás, e outras tribos da língua geral. Nas margens do rio Cramimoã ção embevecida. Os promontórios e saliências da costa vão perder-se
a vegetação é constituída de Rhizophora ou Conocarpus,. Vinha da nos longes enevoados do horizonte azul; as ribanceiras vermelhas e
mata, no frescor da manhã, a algazarra de bandos de papagaios da alcantiladas alternam-se com os vales umbrosos, que, tanto como as
espécies Psittacus amazonicus. Latham, ou ocrocephalus, Linn.a91, aí alturas, são forrados de florestas de matiz verde-escuro; os vagalhões
conhecido por "curica". Esta ave vive nos manguezais das margens onde do oceano raivoso escachoam com rumor profundo e cavo; na distância
fazem os ninhos. indistinta, os olhos contemplam a branca espumarada torvelinhando nas
Uma vez alcançada a margem norte com tôda a "tropa", avan- fragas, e o estrondo trovejante da eterna e compassada ressaca, que
çamos ao longo da costa, pela planície coberta de densos cerrados, a voz de nenhum ser vivo interrompe, reboa majestosamente pelas
limitados à distância por colinas; mas logo encontramos novamente solidões intermináveis. Profunda e solene é a impressão que produz
altas e íngremes ribanceiras de argila e arenito, que foi preciso esca- cena tão sublime, quando pensamos na sua constância e uniformidade
lar, pois as vagas impetuosas tornavam a costa inacessível. Segue-se através de tôdas as vicissitudes do tempo.
por uma trilha escarpada até o cimo dessas barreiras, e entra-se numa
De novo atingimos o mar, e, pelo meio-dia, chegamos a um tre-
planície sêca de campos, denominada Jauacema ou Juacema. Nesse
cho em que as ondas, espadanando-se contra os rochedos, bloqueavam
local, de acôrdo com a tradição dos moradores, houve outrora, nos inteiramente o caminho. Era de todo impossível escalar as alturas com
primórdios da colonização portuguêsa, a grande e populosa vila do os animais carregados; por isso, alijamos a carga e esperamos com
mesmo, ou Insuacome, mas que, à maneira de Sto. Amaro, Pôrto Seguro paciência. Acendeu-se uma fogueira na vizinhança de um pequeno
e outros estabelecimentos, foi destruída pela guerra com uma bár- córrego de águas claras; os cobertores e os couros de boi nos prote-
bara e antropófaga nação dos Abaquirás, ou Abatirás. Essa tradição geram um pouco da fria e cortante viração marinha, e nosso frugal
se baseia, sem dúvida, nas devastações que os Aimorés, ora Botocudos, repasto foi para um caldeirão, a cozinhar no fogo. Matas sombrias
cercavam completamente a pequena campina em que pastavam
(391) Veja-se o que ficou dito sôbre a " curica " (nota 324). os animais; por entre as moitas esgueiravam-se chilrando a
222 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 223

Nectarinia flaveola (Certhia flaveola, Linn.)39 2 e a verde Sylvia tri- Habituado a sempre seguir na dianteira da tropa, ape~i ~a beir~
chas393. O caracará (Falco crotophagus)394 logo apareceu, pousando do rio, profun~o demais para ser atravessado a vau, e detxet ~ am-
no lombo dos nossos animais para catar os insetos. Os burros parecem mal, que p reoa muito fatigado, descansar; êle, porém, estava Impa-
gostar da visita dêsse curioso rapineiro, pois ficam quietos quando ela ciente para chegar às casas do lado oposto, e~cap_ou-se-me e meteu-.se
pousa e lhes anda pelo lombo. Azara a menciona entre as aves do logo a atravessar o rio, levando muitos dos amma1s de carga a ~eg~ur­
Paraguai com o nome de "chimachima". Detivemo-nos nesse ponto lhe 0 exemplo. Encontramos, decerto, abrigo nas cabanas dos mdws;
romântico da costa até que nascesse a lua cheia; os rochedos estavam mas, dada a sua miserabilidade, muito pouco confôrto e descanso após
agora tão descobertos que pudemos contorná-los. Esta costa, desde o a cavalgada noturna. Penduramos em roda as nossas roupas moli:adas,
Prado até o rio do Frade, era considerada muito perigosa por causa ao bafejo da viração que invadia ele todos os !ados as c~banas toscas,
dos selvagens, e ninguém se aventurava a percorrê-la sozinho. Lindley• e em seguida deitamos s~bre os cobertores es_tendtdos na areta. Enqu~nto
diz a mesma coisa; mas, presentemente, a população está em boas íamos curtindo um fno bem regular, vtmos os moradores semmus
relações com os Patachós e não os teme; embora, não sendo total a deitar-se nas rêdes, perto da fogueira, a qual, e_mbora sempre acesa,
confiança, preferia-se sempre viajar em comitiva numerosa. Quando não dava provàvelmente para os aquecer. O cmdado de alimentar o
de novo passei por êsse caminho em novembro do mesmo ano, encontrei, fogo cabia à mulher e ao filho, já crescido, a quem a mã:_ cha~ava
com maré baixa, extensos bancos de areia e rochas calcárias, que avan- de vez em quando para não desleixar o encargo. A manha segumte
çam pelo mar, e cuja formação se deve, segundo tôdas as probabilidades, foi ventosa e fria; embrulhamos as roupas molhadas e rumamos para
principalmente aos coraliários. A superfície delas é dividida por fen- Trancoso. A maré estava então na maior baixa, e o mar tmha
das regulares e paralelas; nas cavidades, feitas pela água, vivem caran- deixado completamente descobertos trechos extensos de bancos rocho-
guejos e outros animais marinhos. :f;sses recifes são em parte atape- sos e planos. Alguns índios, moradores esparsos das p~quenas ~atas
tados por um musgo verde da natureza do Byssus395. Continuando a vizinhas apanhavam moluscos para comer. Comem vánas espéctes de
baixar a maré, contornamos vários penhascos, de todo inacessíveis na mariscos, sobretudo o ounço do mar preto e comesttve1 (E ch znus
' • A ' - )396 ·
cheia, enquanto o vasto espelho do oceano resplendia magnificamente ao Após uma caminhada de três léguas, atingi~os o po~to em que u~
clarão do luar. riacho se lança ao mar; é comumente conheodo por _no de T~ancoso,
Pela meia-noite chegamos à beira do rio do Frade, rio pequeno porém na velha língua aborígine era chamado Itapttanga (filho das
cujo nome provém de um missionário franciscano que nêle se afogou. pedras)397, provàvelmente porque vem de montanhas pedre~osas: corre
A barra é navegável por canoas grandes, que podem fazer dois dias em um vale bastante profundo, rodeado de montanhas de ctmos exten-
de viagem rio acima, e as margens são férteis. Doze léguas a oeste sos e planos. Do lado sul se perceb~m, erguendo-se sôbre o litoral
fica o Monte Pascoal. O ouvidor estabeleceu algumas famílias indí- baixo, as comas de altanados coqueiros bem como o telhado . e a
genas na margem oposta, para o transporte dos viajantes através do cruz do convento de jesuítas de Trancoso. Alguns h?me_ns, melo
rio. Deu-se a êste pôsto o nome de destacamento de Linhares, se adiante, conduziram-nos por um caminho escabroso até a vila, onde
bem que os ocupantes não sejam soldados. As plantações se espa- nos alojamos, por êsse dia, na casa da Câmara. .
lham pelas capoeiras próximas, entre as quais ficam as casas de Trancoso é uma vila índia edificada numa longa praça. No meto
morada, de modo a protegê-los um pouco dos ventos oceânicos. Nessa fica a casa da Câmara, e na ~xtremidade, do lado do mar, a igreja,
ocasião, entretanto, viviam numa palhoça situada na praia, bem mal que foi outrora um convento de jesu~ta~. Dep~is da dissolução da, or-
protegidos dos ventos e intempéries. dem o convento foi demolido e a btbhoteca dtspersada ou destrmda.
(*) Narrative of a voyage to Brazil, p. 228.
Em iSI3, a vila possuía cêrca de 50 casas ~ 500 habitante_s, todos índios,
muitos dos quais de tez bronzeada mmto escura, po1s bem po~cas
.. . (~92) Coereba flaveola chloropyu_a (Cabanais), vulgarmente " mariquita ", "cambacica ",
sebito , etc., é passarinho dos mais comuns nos pomares e jardins, mormente nos famílias de portuguêses aí residem, entre êste~ o padre, o. escnvao e
Estados do norte, onde gosta de nidificar nas trepadeiras que enfeitam os alpendres
e terraços das vivendas campestres.
um mercador. As casas, então, estavam na mawr parte vaztas, porque
. (393) Geothlypis. aequinoctialis vela~a (Vieillot), encontradiço em todo o Brasil os moradores vivem nas roças e se limitam a vir à igreja nos domingos
oriental onde é conhecido pelo nome de "pia-cobra ". A denominação cientifica registrada e dias· santos. Exportam perto de 1 000 alqueires de farinha de man-
por Wied cabe a espécie congênere, peculiar à América do Norte.
(894) Milvauo chimachi ma (Vieillot). Ocorre em todo o Brasil, onde se conhece
por numerosas apelações: "gavlão-earrapateiro ", "caracará-i " (Amazonas) "pinhé" e
" carapinhé " (São Paulo), etc. ' (396) cr. a nota 386.
(895) ~ste têrmo, criado por Linneu para enfeixar uma multidão de vegetais (397) Há engano evidente na etimologia atrlb'!ida por Wied .a o topônhN~· b~t!
criptógamos de organização a mais diversa, carece de qualquer sentido taxlnômico provém de duas raizes tupis, cujo significado pedra (\ta) vermelha (pltanu a) · e já
preciso. O nome é ainda usado para a secreção filamentosa, graças à qual muitos de Todos os Santos, não longe da Ilha de Maré, há um Ilhéu com igua1 nome,
moluscos bivalvos, como os mexilhões (Mytilus), prendem-se aos rochedos. citado por Gabriel Soares (Tratado, cap. XXIV).
DE CARAVELAS A BELMONTE 225
224 VIAGEM AO BRASIL
"caçaroba", e na sistemática por Columba rufina 399 , é visto freqüente-
dioca, um pouco de algodão e diversos produtos da floresta; entre êstes, mente. Arbustos e altos caniçais orlam as margens do pequeno
toras de pau, gamelas (bacias de madeira) e canoas, além de alguma córrego, o de então se cons:ruía u~a lancha. Por trás de T~~ncoso,
embira e estôpa (entrecasca de duas espécies diferentes de árvores). as florestas mais distantes sao habitadas pelos Pata:hós. O se~hor
Em 1813, o valor dêsses vários produtos foi de 539$520 réis. As planta- padre" Inácio, o velho . e di~no sace:dote .local, diSSe-me que esses
ções dos índios estão bem tratadas; cultivam diversas raízes comestí- aborígines aparecem mmtas vezes na VIla; vem se.mpre comt>letamente
veis, tais como batatas, mangaritos (Arum esculentum), cará, aipi ou nus e se êle manda amarrar um lenço em torno da cmtura das
mandioca, etc., e às vêzes vendem êsses produtos. A pesca é também uma muÍhe;es, nunca deixam de arrancá-lo imediatamente. .
das atividades essenciais dêsses índios; no bom ·tempo saem a pescar O caminho do Trancoso a Pôrto Seguro é pouco vanado; nos
mar a fora, nas canoas. Também fazem, no litoral, currais ou gam- cimos aplanados de altas riba1_1ceiras const.ituídas de um.a !ubs~ância
boas, a que nos referimos antes. branco-azulada, vermelha ou vwleta, pareCida com a . argila , veem-se
Cria-se algum gado nas colinas de Trancoso, e o escrivão, sobre- fazendas em que ondeiam ao vento as co~as dos coqueuos. Atr~vessa-se
tudo, possui um grande rebanho; mas a criação tem que aí vencer 0 Rio da Barra por uma ponte de madei~a, que merece I?-ençao como
sérios obstáculos. O campo dá um pasto sêco e nutritivo, com que raridade; e tem-se a todo instante que subir ou descer as nbas abruptas
o gado engorda depressa; entretanto, se não é mandado imediata- da costa, porque os rochedos da praia são in.acessíveis. UI?- dêsses
mente para uma pastagem fresca e úmida, morre todo. A fim de trechos era de tal modo íngreme, que, na desctda, fomos obngados a
afastar êsse perigo, o rebanho é levado de vez em quando ao Rio do descarregar os animais e transportar os c~ixotes separadamente. Em-
Frade. A mudança de pasto deve realizar-se diversas vêzes por ano, baixo, na areia da praia, encontramos mmtas amostras de belas e~pé­
e essa é provàvelmente a razão por que as vacas produzem muito pou- cies de Fucus e algumas conchas. Havia gente procurando o~nços
co leite. Ao visitar de novo êsse lugar, em novembro, uma grande comestíveis nos bancos rochosos descobertos pela maré. DepOis de
onça (Felis onca, Linn.)398 refugiada nas circunjacências, diària- uma marcha de três léguas, saímos de uma pequena mata e achamo-
mente assaltava o gado pertencente aos moradores da vila. Armaram nos à beira do rio Pôrto Seguro, em cuja margem nort7 os telha-
mundéus, e, felizmente, apanharam o filhote da onça; esta, porém, dos vermelhos da parte baixa da vila de Pôrto Seguro, enCim~dos p~r
ainda rondava pelas cercanias, enchendo as noites com as suas rouque- altos coqueiros, ofereciam uma vista amável. A par~e alta ftca mais
nhas lamentações. Pouco depois, os índios colocaram armadilhas de para trás, num elevado espigão, ?ela só s.e v:ndo o. topo do. convento
arma de fogo numa trilha em que ela costumava passar, conseguindo de jesuítas. Atravessei logo o no em direçao à vila e obtive pouso
matá-la. A onça foi logo trazida e eu comprei a pele em Trancoso, na casa da Câmara, na parte alta. . •
parecendo-me que o animal pertencia à variedade conhecida no sertão Pôrto Seguro, a primeira vila em categona da comar~a de Porto
da capitania da Bahia, pelo nome de canguçu e caracterizada pelo Seguro, porém menor do que Caravelas, é lugar pouco. n~portante,
grande número de pequenas manchas. de 420 casas, edificadas em várias partes separadas. A pnnCipal delas
A situação de Trancoso é deveras aprazível: da extremidade da é pequena, constituída de umas poucas ruas. cobertas de mat.o, co~
íngreme eminência, perto da igreja, dominávamos amplo panorama casas quase tôdas acachapadas, de um só .pav.rmento, ~s de d01s pavi-
do plácido espelho azul-escuro e rebrilhante do oceano; o encontro mentos sendo bastante raras. Aí estão a Igrep, o antigo convento de
agora muito nítido, da água verde do mar com a pardacenta do rio jesuítas, residência atualmente do pro~essor de latim, e a casa. da
dava especial encanto ao quadro. Os soberbos penachos dos altos Câmara com a prisão. A maioria dos habi~antes, ent~etanto.._rransfenu-~~
coqueiros ondeavam sôbre as cabanas acachapadas dos índios e, em a outra parte da vila, mais pert~ do no, denommada . o~ Marcos ,
redor, o campo inteiro verdejava. Todos êsses planaltos e carrascais de melhor situação para o comérciO. Essa é a p_arte mais Imp~rtante
são entrecortados de vales profundos, alguns dos quais de considerável da vila; fica no declive e é construída de maneira tortuosa e uregu-
largura; do meio dêles o conjunto parece uma planície ininterrupta; lar consistindo sobretudo de casas baixas, em geral rodeadas de laran-
só de suas bordas se percebem os valados. No fundo dos vales correm jai~ e bananeiras. Nela residem os moradores mais abastados, os do~os
pequenos riachos, que se lançam no Itapitanga. O que fica ao pé da das embarcações empregadas no comércio de Pôrto Seguro. A terceua
elevação de Trancoso é um belo prado cheio de arbustos, em que se (* ) Essa espécie de litomarga já foi referida antes, entre o rio Itabapuana e
vê com abundância a linda pomba aí conhecida por "pucaçu" ou o Itapemirlm.
(399) Columba cayennenBis B!llveatri s Vleillot, I8I8, da atuazl f 0 1I}en;a~:·PatS~·
(398) Panthera onca (Linn., I758)
da atual nomenclatura. Em Beitrãge (11, pp. O. Pinto, R ev. <UJ Mus. Paul., XIX , pp. 28 e 6I (1985); ld. Arq. de oo ogm e •
844-858), há referência a êste caso, de par com Interessantes pormenores sôbre o nosso VII, p. 264 (1949).
maior felino.
226 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 227

parte, chamada Pontinha ou Ponta d' Areia, situa-se junto à foz do a seis semanas no mar; então voltam, cada uma com uma carga de
rio; excetuando algumas vendas, é formada de casas baixas e esparsas, 1 500 a 2 000 peixes salgados, do que a vila exporta, anualmente, de
habitadas por pescadores e marítimos, e ensombradas por coqueiros. 90 a 100 000.' Um pouco é consumido no próprio l~gar, sendo_ o resto
A parte alta é geralmente morta; muitas casas estão mesmo fechadas mandado para a Bahia e outros portos. Ca~a peixe é vendido, em
e em ruínas; pois só nos domingos e dias santos os moradores vão média, por 160 a 200 réis, de modo que o comerciO traz grandes luc~os
para ela, que fica assim bastante animada pela quantidade de pessoas à vila. Entretanto, entre os 2 600 habitantes, que deve ter a .v.Ila,
bem vestidas. Os portuguêses não perdem a missa, todos ansiosos de poucos estão em situação folgada, carecendo a maioria dos req~1Sltos
aparecer nos melhores trajes. Gente que anda quase nua durante a industriais necessários para prosperar. Geral~ente trocam o pe1xe na
semana, mostra-se, aos domingos, vestida com o maior apuro. Aliás, Bahia, e alhures, por vários produtos, co_nsumm?o pessoal~eAnte_ grand~
manda a justiça dizer que o asseio e o apuro no trajar são gerais parte dêle, que constitui, assim, o principal mew de subSIStenCia. J?ai
entre os brasileiros de tôdas as classes. resulta que muitas pessoas são atingidas pelo escorbuto; e o forasteiro,
O convento dos jesuítas, edifício grande e maciço, fica imediata- mal entra na vila, é imediatamente rodeado por um magote de
mente acima do forte declive. Fui aí recebido mui hospitaleiramente gente pobre e doentia. Há muito pouca lavo~ra, e só escasso~ mora-
pelo professor Antônio Joaquim Moreira de Pinho. Das janelas de dores possuem plantações; de modo que a mawr parte da farmha de
sua casa divisamos belo panorama da superfície serena do oceano; mandioca de consumo vem de Santa Cruz. O convento de S. Bento do
acompanhamos com o olhar as embarcações que de nós se afastavam Rio tem uma grande fazenda na vizinhança, dirigida por um ~adr~.
em busca do horizonte remoto, e nossos pensamentos, seguindo-as, pro- Os moradores de Pôrto Seguro gozam da reputaçao de bons mannhei-
curaram a pátria distante. Dominávamos, de ambos os lados, extenso ros e sendo tão ativo o comércio com a Bahia, em nenhum outro
trecho da costa, sôbre a qual o augusto oceano, no seu movimento inces- po~to' do litoral há maiores oportunid.ades d_e ;fajar-se para lá.. ~s
sante e invariável, vinha quebrar surdamente as vagas. Nas sombrias únicas embarcações empregadas nesse trafego sao lanchas garoupe_Iras
divisões do velho edifício, através das quais o vento assobiava, e onde muito velozes, mesmo quando o vento não é_ favorável. Têm dOis pe-
outrora os jesuítas pontificavam, sentimos fundamente as vicissitudes quenos mastros, dos quais a mezena é o maiS curto; o mastr? grande
do ~empo .. As ~elas, dantes animadas de uma vida ativa, estavam agora leva uma larga vela quadrada, a mezena uma _requena e tnangul~r;
vazias, e silenciOsos morcegos pendiam de suas paredes vetustas. Da podem ser dispostas de tal sorte, que o barco smgre ao menor bafeJO,
biblioteca ali existente em outras eras, nem um só traço restava. quando outros de nenhum modo poderiam vel:jar. , . , .
. , O rio do P~rto Seguro, chamado Buranhaém na antiga língu a A primitiva história de Pôrto Seguro registra va_nos e notav:_Is
mdige~a, tem Ótima b~rra, ou embocadura, com leito de pedra, e acontecimentos. Durante a guerra holandesa no ~rasii, Ao lug~r nao
protegida por um arrecife rochoso saliente; é profunda, e muito útil tinha mais de 50 habitantes, havendo nas cercamas tres aldeias de
a? comércio da vila, que não é nada desprezível. E' êste feito por índios. A êsse tempo, somente 40 portuguêses viviam nas margens do
cerca de quarenta das pequenas embarcações de dois mastros denomi- rio Caravelas. Na última metade do século XVII, alguns remane~centes
nadas "lanchas"400 , que saem em busca da garoupa e do mero•, duas dos Tupinambás e Tamoios uniram-se aos seus. i~im_igos, os Au~10rés
espécies de peixe de água salgada4 0I, permanecendo sempre de quatro ou Botocudos, contra os portuguêses. Os Tupmi9ums ~ram ahado.s
dos últimos; mas os inimigos dêstes somavam mmto m~Is, _e des~rm­
( ~) (Suplem.) Não pude descrever nem determinar êsses peixes, porque só
consegui vê-los s!llgados, secos e multo desfigurados. A "garoupa" de Pôrto Seguro
ram Pôrto Seguro, Sto. Amaro e Santa Cruz. No pru~eiro d~stes
é um grande peixe carnivoro de 5 a 6 palmos de comprimento com a parte anterior lugares, conta Southey•, surpreenderam os moradores na missa. DIZem
engrossada, cabeça e olhos grandes, e provido de ossos nos lábios; o corpo adelgaça-se
para a part<: posterior, terminada numa nadadeira caudal longa e bifurcada. Tôdas que, então, Pôrto Segur~ era mai?r. do que atualmente. Um chefe
as escamas sao de um belo e delicado vermelho, com a base porém branca; das guelras
~té a cau~a ~orre uma fita la~ga e amarelada, abaixo da qual se vêem três finas
aliado dos ta pu ias do R1,p S. Antomo, chamado Tateno, . def~ndeu a
hstas longitudmals amarelas; acima da linha amarela mediana há manchas amarelas vila contra os próprios conterrâneos! salvand~-a da mteira ~es­
e Irregulares; ventre branco. Não vi o "mero'', mas é provàvelmente 0 mesmo peixe que
MARCGRAVE descreveu à pág. 169 com êsse nome. truição** . Das aldeias indígenas menciOnadas aCima, n:nhum~ existe
mais a não ser Vila Verde, situada a um pequeno dia de JOrnada
(4_00) Ainda hoje as lanchas de dois mastros são a embarcação usada correntemente
na }lah1a, para o !ransporte de mercadorias entre a capital e os diferentes pontos do rio acima. E' inteiramente constituída de índios; apenas o padre
Reconcav'!, _onde sao construidas de acôrdo com os primitivo processos conservados
pela trad1çao. '
("padre vigário") e o escrivão são portuguêses. A maioria dêles, .entre-
" i40 1) As "garoup~s", pois _que h~ várias espécies brasileiras com êsse nome, e u tanto, vive pelas plantações, vindo somente às casas da aldeia aos
mero , todos da fam}lu_• Serramd'!-", sao. d<_>s mal~res e mais apreciados peixes ósseos
do mar, _chegando o ultimo (Promtcrops ttatara Licht.) a medir cêrca de três metros
de coml?ru~~ento, co~ mais 450 quilos de pêso. Epinephelus guaza (Linn .), dito "garoupa (*) SouTHEY's History o! Brazil, vol. 11, p. 665.
verdadeira , é particu larmente reputado no mercado pela excelente carne. (**) Corogratia Brasílica, etc., t. li, p. 81.
228 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 229
domin~os _e d~as san_tos. Existe aí um convento de jesuítas em ruínas, recife rochoso saliente. Santa Cruz é bem conhecida como o mais
mas CUJa Igreja é amda usada. A vila tem de 40 a 50 casas e cêrca antigo estabelecimento dos portuguêses no Brasil. Pedro Álvares Ca-
d~ 500 habitantes; exporta perto de I 000 alqueires de farinha de man- bral aí desembarcou a 3 de Maio de 1500, sendo amigàvelmente rece-
dwca, e algumas toras de madeira. Um pouco acima, o ouvidor fundou bido pelos habitantes. Celebrou-se a primeira missa, e deu-se à terra
o des~acamento ~e Aguiar, com seis índios, que dizem já exportar 500 o mesmo nome que ainda conserva; ao rio mais próximo, para o sul,
alqueires de farmha de mandioca.
chamou-se Pôrto Seguro, referência ao seu protegido ancoradouro.
V~rios riachos desembocam no Pôrto Seguro, ou Buranhaém, ainda Posteriormente, Santa Cruz tornou-se uma paróquia, que ainda leva
conhecido por rio da Cachoeir~, entre outros o Patatiba. Dessa junção o nome de Freguesia de Nossa Senhora da Bela Cruz. A vila de
até à foz, que se alcança depois de um percurso de aproximadamente Santa Cruz fica na embocadura do rio, na margem sul; a igreja
três léguas, recebe o nome de Ambas as Águas. e parte da vila estão situadas em uma elevação, que se distingue pela
Estivemos algum tempo em Pôrto Seguro, a fim de conhecermos presença de dois coqueiros, como vem representado na estampa s.a.
o lugar e as circunjacências; em seguida, continuamos a viagem para Ao pé da eminência se estende a restante vila, formada de casas acacha-
o norte, ao longo da costa, caminho que é o único, não havendo ne- padas, esparsas entre os laranjais e as bananeiras.
nhum q~e l~ve. p~r~ o interior. Nossa tropa teve de atravessar di- O povo ocupa-se mais com a lavoura que o de Pôrto Seguro, pois
versos nos, ms1gmhcante_s na maré baixa, mas intransponíveis na supre o lugar de farinha de mandioca, exportando-a também para
alt~. ~onhecem-se por nos dos Mangues e Barra de Mutari. Para outros pontos da costa oriental: os moradores, entretanto, têm fama
o mtenor, morros cobertos de sombrias florestas limitavam 0 hori- de muito indolentes, e de trabalhar muito pouco. A pescaria da ga-
zonte; e os coqueiros, erguendo-se acima dêles, indicavam ao longe roupa utiliza algumas embarcações, mas só havia, ao tempo, quatro
as habitações escondidas na mata. ' ' lanchas em serviço- Santa Cruz é, sob todos os pontos de vista, muito
Os moradores dessas paragens falam freqüentemente de um ataque menor que Pôrto Seguro. Dizem que foi outrora muito mais flores-
que, há cêrca de vinte e dois anos atrás, sofreram por parte de dua~ cente, porém os habitantes mais ricos faleceram. O rio Santa
fragatas francesas, cujas trip?Iações desembarcaram para saquear os Cruz nasce à distância de uns poucos dias de viagem, provindo de duas
arredores. Com uma bandeira à frente, uma multidão numerosa e nascentes principais, que se unem e correm para o mar. Essas nascen-
selvagem avançou sôbre Santa Cruz, mas os habitantes acorreram às tes são tão próximas do rio Grande de Belmonte, que, segundo dizem,
~as, postando-se por trás dos arbustos da praia, e um fogo bem diri- um tiro desfechado perto delas se ouve neste último, um pouco acima
gido matou vários. d_os inimigos, ferindo outros; ao que os ladrões da Ilha Grande, da qual falaremos adiante. O rio Grande de Bel-
reembarcaran;t precipitadamente, depois de terem assassinado, por vin- monte, no entanto, dirige-se logo um pouco para o sul. Os Botocudos
gança, um simples tra~seunte, que, sem suspeitar do perigo, seguia vagueiam pelo alto Santa Cruz; mais perto do litoral, porém, o rio
por acaso o mesmo cammho. lhes demarca os limites do território, vivendo os Patachós e os Macha-
Na. foz do Mutari, rasa e arenosa, encontramos um bando da calis na região situada à margem sul. As plantações existentes rio
Anas vzdua~a Linn. 402, bonito pato que tínhamos caçado freqüen- acima foram assoladas, não havia muito, pelos Botocudos, do mesmo
temente mais para o sul, mas não víamos durante muito tempo. Se modo que a vila, em outros tempos, pelos Abatirás e Aimorés ou
b:_m que nos~os caçadores tentassem se aproximar com a maior precaução, Botocudos; e, apenas dois anos antes, o ouvidor tinha achado neces-
n!l? conse,guiram matar nenhuma dessas aves ariscas. Na minha segunda sário estabelecer o destacamento de Aveiros, onde já se encontram algu-
VISita a esses lugares, alguns meses mais tarde, dei, no litoral, com mas plantações. Os arredores de Santa Cruz são muito apropriados
numero:os restos de grandes baleias, indicanqo uma pescaria de largas ao cultivo de vários produtos, mas o pau-brasil não dá em tanta abun-
propo:-çoes. ~andos enormes do abutre prêto (urubu) cobriam os dância como nas cercanias de Pôrto Seguro.
despoJOS, que mfectavam tôda a costa, até longe. Em Santa Cruz, fiz minha tropa atravessar imediatamente o rio,
, O rio d~ ~anta Cruz des~gua n? mar perto de cinco léguas de alojando-me na povoação de Sto. André, situada a pequena distância
~orto Seguro, e um pouco mais estreit? que o anterior, porém possui, da margem norte do rio.
Igualmente, boa e segura barra, protegida da fúria do oceano por um Os moradores dêsse lugar nos receberam hospitaleiramente, e várias
pessoas doentes vieram desde logo visitar-nos; pois todos os
( 402) Dendro~gna_. ,viduata L,lnn., vulgarmente "marreca-vlúva ", "marreca-pladelra" viajantes estrangeiros são aí tomados por médicos. Muitos têm febres,
(R. Gr. do Sul), 1rere , etc. E uma das mais com d
reconhece fàcilmente pela curiosa coloração da cabeça ubs cae notsésas marrecas e se
preta dai para trás. • ran a quase a nuca e
doença muito comum na zona; felizmente, pude fornecer-lhes um
pouco de quina verdadeira. A residência em que nos alojamos nessa
230 VIAGEM AO BRASIL DE CARA VELAS A BELMONTE 231
noite era de situação bastante aprazível. As poucas casas de Sto. tôdas essas costas arenosas e planas do este brasileiro. O curioso ani-
André se espal~am entre pitorescos bosques e moitas de coquei- mal tem corpo azul-acinzentado, patas e ventre branco-amarelados.
ros, sob os quais se estende um chão atapetado de verdura, onde, Enterra-se na areia molhada pelas vagas, para fugir de qualquer
no frescor da tardinha, nossos animais encontraram repouso depois perigo iminente. Se alguém se aproxima, ergue-se, abre as tenazes e,
de cálida jo_rnada pela costa arenosa. Entre as árvores que rodeavam ligeiro como uma flecha, corre de lado para o mar. E' um bom prato,
a c~sa, havra uma enorme gameleira (Ficus), que estendia longe e assado ou cozido; tem igualmente uso medicinal, pois, quando moído,
hor~zontalmente os galhos gigantescos, e suportava, no tronco curto e dizem que o suco dá resultado nas hemorróidas.
multo grosso, uma copa magnífica; as fôlhas ovais e rijas são largas Alcancei o pequeno rio Santo Antônio, cuja bôca, durante a
e verde-escuras, e os galhos contêm um suco leitoso. No tronco e nos baixa-mar, como agora, estava muito rasa, mas não pode ser passada com
ram,o~ dessa árvore _e xistia rica coleção de botânica; porquanto muitas a maré cheia, porque deságua no mar por diversos braços, então percor-
espeoes d~ IjJromelza, um lindo Cactus, trepadeiras, musgos e liquens, ridos por grandes vagas. últimamente, rio acima, os Botocudos exer-
alem de vanas outras plantas sumarentas e folhudas, viviam em socie- ceram hostilidades, matando todos os moradores de uma casa. Um
dade, à sombra dessa ficácea. Mais ao sul, nesse litoral, dão o nome jovem botocudo, criado pela família, avisou-a da aproximação dos con-
de "gameleira" a ~iversas espécies de árvores; porém a gameleira preta terrâneos; mas não lhe deram atenção.
e a branca, mencwnadas por Koster•, parecem ter afinidade com a Além de Sto. Antônio, encontrei na areia grande quantidade de
árvore em . questão. Em alguns lugares, os selvagens usam a madeira carapaças de uma espécie ele ouriço elo mar (Echinus pentaporus), com
da g~m~leua para f~zer fog<?, girando um pedaço em cima de outro. cinco aberturas elípticas• 4 o5 • São extremamente frágeis; encontramo-
O CaJUeiro (Anacardzum occzdentale Linn.) era também muito comum; las misturadas a grande quantidade de conchas comuns. Nesse ponto,
come-se bastante seu fruto agridoce e piriforme; achava-se então em as capoeiras da costa são rodeadas de trechos extensos cobertos pela
plena florescência. ' ' variedade de cana chamada "ubá", de belos leques, sôbre os quais
Enc_o ntrei, em S~o. André, moradores ocupados na confecção de se ergue a longa haste florífera. Cavalos e bois pastavam por aí. Umas
cordas finas, nas quais, logo que terminadas, esfregavam a casca fresca poucas famílias estabeleceram e fundaram uma povoação à margem
e s~.u?arenta da aroeira (Schinus molle), dando-lhes um tom bruno de um riachinho denominado Barra de Guaiú. Dêste ponto, logo
luzidiO e tornando-as muito resistentes à água, pois o suco óleo-resi- depois alcançamos o rio Mogiquiçaba, menor que o Santa Cruz. Na
noso da casca as reveste e penetra completamente; o método só é apli- margem sul, perto da foz, há uma fazenda pertencente ao ouvidor
cado, entretanto, ~s cordas de tucum que, assim preparadas, valem desta comarca onde só existe gado, além de umas cabanas miseráveis.
b_?m preço na Bahia. As cordas de gravatá (Bromelia), ou de algodão, Nela trabalham cêrca de dezoito escravos negros, que, entre outras
sao _esfr~gadas com as fôlhas ~o I?angue (Rhizophora). O suco da coisas, se ocupam em fazer cordoalhas para navios com as fibras
aroeira e também usado pelos mdws nas moléstias dos olhos; porém do côco de piaçaba, palmeira que cresce nessa região, e é muito
só empregam, para tal fim, a seiva esverdeada das plantas novas. comum para o norte. Parece que as fibras provêm das bainhas das
Q~ando melhorou um pouco o tempo desagradável e ventoso, fôlhas; rijas, sêcas e resistentes, têm 4 a 5 pés de comprido, e
despedi-me ~o n~so hos.J:>ed~iro de Sto. André, no intuito de alcançar desprendem-se sozinhas, quando puxadas. Mediante um processo espe-
no mesmo dra _o ri? Mog1qmçaba, que os habitantes da região chamam cial, são trançadas em cordas, muito fortes e à prova d'água, porém
geralmente Misqmçaba. A praia, assim como o rio, é muito bonita um pouco ásperas e de manuseio desagradável; são mandadas para a
na maré baixa, e t~o plana quanto uma eira. Algas e conchas se Bahia em grandes quantidades, onde as empregam a bordo dos navios.
espalhavam_ pela areia compacta, tendo nós encontrado, morto, um O fruto dessa árvore é um côco alongado, pontudo e de côr castanho-
exemplar amda bom d~ ~ndorinha-do-mar azul (Procellaria)403; pere- escura de 3 a 4 polegadas de comprimento, e penso tê-lo visto
cera, c?m cer.~e~~:. nas ultrmas tempestades. A espécie de caranguejo nos museus rotulado com o nome de Cocos lapidea. A palmeira não
denommada Siri 404 pelos portuguêses, aparece em abundância em é encontrada ao sul de Santa Cruz. Não há, fora isso, muita coisa
(*) KosTER's, T1·avels, etc., p. sos. digna de nota na região de Mogiquiçaba; perto como longe, cobrem-na
(L th <40)3) A bespécie vem .nos Beitrüge (IV, p. 846) descrita poro Pachyptila torsteri (*) ProvAvelmente, a espécie figurada por BauaultRE na prancha 149, fig. s,
a am ; em ora a respeito possa haver dúvidas, o exato desta determinação tem e por Bosc, Hist. Natur. des Vers, Vol. 11, pl. 14, fig. 5.
1a seu favor o parecer de autoridades como Murphy (Oceanic Birds of South America
• p. 617). '
t ( 404) Os sir!s de que. várias espécies habitam o litoral marítimo, são crustáceos (405) Dêstes equinoderrnes duas espécies, Encape marginata (Leske) e Melli!Q
per encentes ao genero Callmectes, denominação tirada da agilidade com que nadam testudineaKl., são comuns nas águas litorâneas do Atlântico brasileiro, onde sao
servmdo-se das patas traseiras, achatadas a modo de pá de remo no articulo terminal: chamadas pelos pescadores "corrupio do mar" (São Paulo), "bolacha " (Bahia) etc.
232 VIAGEM AO BRASIL DE CARAVELAS A BELMONTE 233

lares e sem calçamento, cheias de capim, tom~~ o lugar equiva!e~te


densas florestas, e apenas algumas pessoas se encontram estabelecidas
um pouco acima da fazenda do ouvidor. O rio é abundante em
peixe, contribuindo com grande parte da alimentação dos habitantes.
ro~n~:~~~o mais atrasadas aldeias Nessa plamcte arenosa, o umco
está na quantidade de ~oqueiros, que por tôda parte {~~eiam
Encontram-se, rio acima, tapuias bravos, porém não chegam até à em- as habita ões, unindo as cimas altanadas _em u~ bosque far a_ ante.
bocadura; parece que são todos botocudos. fosses coq~eiros são aí notàvelmente produtivos; Julga a populaçao que
Tivemos o prazer de achar leite no Mogiquiçaba, coisa de que rendem tanto por causa dos buracos feitos nos caules, um pouco
havia tanto nos achávamos privados. As vacas da região são bonitas acima do solo.
e gordas, mas não dão tanto nem tão bom leite quanto as nossas da Eu- B 0
pé da vila o importante rio Grande de Belmonte se
ropa, o que provàvelmente se deve ao solo arenoso. Tôdas as tardes os lança e; ~ar; sua barr~ deve ficar a 15°40' de latitude s~l. Nas~e
rebanhos são tangidos para um cercado de forma quadrada, a que cha- nas altas serras de Minas Gerais, mas só recebe o nome de Rw ?rande
mam curral; o bezerro é imediatamente separado da vaca, quando se de Belmonte em Minas Novas, depois da_ junção ~o Araçuai e. o
quer ordenhá-la no dia seguinte. Na cabana onde passamos a noite Je uitinhonha, cujos garimpos de ouro e diamantes Já fo~:m descn~os
morava uma escrava negra macróbia pertencente ao ouvidor; mulhe- efo inglês Mawe. fosse largo ri<;> é cau~aloso por ocasiao d~ chei~,
res assim, no Brasil, são freqüentemente consideradas feiticeiras, ou ~orém a entrada é sempre difíctl e pengosa, havendo, aqm e ah,
bruxas, pelo vulgo. Tinha fechado bem a porta da sua morada, e bancos de areia, que agora, com a vazant:, pod~m ser, vistos, ~as
pareceu em extremo descontente quando lhe tentamos abrir o santuá- ue mesmo durante o período das águas, sao pengosos a n~ve~açao,
rio, a fim de conseguirmos uma fogueira; contudo não era possível ~ndo já se perdido nêles muitas lanchas. Be_lmonte possm , tr:s ~u
que passássemos a noite sem ela, expostos como estávamos à fria e uatro lanchas com que mantém, com a Bahia, algum comerciO _e
cortante viração; a porta da macróbia foi, assim, aberta à fôrça. farinha de ma~dioca, algodão, arroz e madeiras de 1ei. A. export~çao
Uma planície de cinco léguas se estende de Mogiquiçaba ao rio anual de farinha de mandioca é atualmente de cêrca de mil alquerres;
Belmonte. Mais ou menos a meio caminho há um lugar onde um 0
mesmo de arroz, dois mil de milho, e um pouco de ~gua_:dente, ~mbor.a
braço do rio, atualmente sêco, desembocava outrora no mar; é ainda só haja aí duas "engenhocas". As margens do r.I3 sao férteis, pois
denominado Barra Velha, ou seja foz antiga. O caminho litorâneo ue arcialmente inundadas. Havia, ness: ocasiao, no lugar, _u~
segue por areia firme, mas há um atalho mais curto que leva a uma pas- iscocfs que mantinha um comércio de algodao bastante. de~envolvi~o,
tagem de capim baixo, onde, aqui e ali, se viam grupos esparsos de acabara justamente de perder um carregamento quas_e m~eiro, dev1do
palmeiras aricuri e guriri. Minha tropa perdeu o caminho nesse trecho, ao procedimento desleal de um capitão. O po~re vilareJO tira ag?ra
e passamos no meio de buracos, atoleiros e brejos em que a nossa alguma vantagem da comunic.ação feita com ~I~as Novas •. na cap~ta­
nia de Minas Gerais, pelo no e ao longo dele, mas, am~a assi~,
bagagem estêve em perigo de afundar. Livramo-nos, entretanto, me-
mal tem 0 indispensável à vida, sendo qu~ nós, forastei~os, nao
lhor do que seria de esperar, e tornamos à costa, onde as vagas mos-
conseguiríamos nada por dinheiro, se acaso não tiv~ssemos as mais urgen~
travam desusada violência, tendo arremessado à praia e partido em
pedaços uma lancha de Belmonte, cuja tripulação se salvara. tes necessidades satisfeitas graças ao nosso conheCimento com os mora
dores. Entretanto, os mineiros, de tempos a ~empos, .trazem em .~as
Após fatigante e incômoda jornada sob a canícula e pelos areais canoas, para 0 litoral, víveres e outros artigos, tais .como mi o,
estéreis e ardentes, descortinamos com grande alegria, à tardinha, as toucinho, carne ~algada, pólvora, algodão, etc., que supna:n em parte
copas ondeantes dos palmeirais em que a vila de Belmonte fica situada. a vila de Belmonte, e em parte eram mandados para Porto Seguro
E' um lugar pequeno e medíocre, ora em caminho da decadência,
fundado, cinqüenta a sessenta anos atrás, com índios de que restam e Bahia. . . d 'b
As matas do rio Belmonte constituem o pnnCipal recesso ~ tn _o
poucos atualmente. A casa da Câmara, feita de pau e barro, estava a dos Botocudos tantas vêzes referida, e em virtude da qual o no nao
pique de ruir; uma parede caíra por completo, de modo que se devas- podia, antiga~ente, ser navegado sem perigo: E' v~rdade que al~ns
sava todo o interior. A vila forma uma praça com cêrca de 60 casas, aventureiros, em tempos passados, tinham sub1do o !I3 em cano~s feita_s
tendo aproximadamente 600 habitantes; a igreja fica numa das extre- com a madeira de "barriguda" 406 ; poré~ o C~pi~ao-Mor foi 0 pn-
midades. As casas de residência são cabanas acachapadas feitas de meiro que, em 1804, se aventurou a subi-lo ate vila do Fanado, em
barro; a única de alguma apresentação pertence ao "capitão-mor";
a do ouvidor, na qual me deram pouso, não era melhor do que as H d " b 1 da H nome que no norte
(406) Wled escreve "Barrigudo • em(Bvez b e Oh~~/!:) no' sul do pais, e deriva
outras. Quase tôdas as cabanas são cobertas de palha, e as ruas irre- corresponde às plantas chamadas palne1ras om ax, .
da forma enormemente bojuda do tronco de algumas espécieS.
DE CARAVELAS A BELMONTE
235
234 VIAGEM AO BRASIL
T · ós407 de Lo rena. O p l .l·meiro é geralmente apelidado Ca- .
Minas Novas. Fêz êle circunstanciado relatório da expedição, na qual e d os ucal . das d'água encontradas num no
o acompanharam o Capitão Simplício José da Silveira e o escrivão de choeirinha, devtdo às. pequenhasdque A navegação fluvial traz certo
· · h e corre sobre roc e os. ~ ·
Belmonte. Por ordem do conde dos Arcos, governador da capitania VlZI_n o, , qu_ B 1 te· os habitantes, todos pescadores, sao, a
da Bahia, o ouvidor Marcelino da Cunha, depois de tratar os silví- arnmo a vtla de . e _modn ' camponeses do Brasil, muito destros no
semelhança da mawna os
colas de maneira prudente e razoável, concluíra com êles um acôrdo,
manejo das canoas. . T d er
três anos atrás, que pôs fim às hostilidades de ambos os lados. Um Há em Belmonte uma raça peculiar de ír~dios ov~ IZa os conv :
único chefe dessas tribos, chamado J onué, a quem os com patrícios, . . . hecidos por índws Memens, que a SI
devido à sua incansável agressividade, apelidam de Jonué iakiiam (o tidos ao cnsuamsmo, e con C ~ Os remanescentes da antiga
, . rém se chamam amacas. 1
guerreiro), não concordou: êle ronda com sua gente o alto Belmonte, propnos, po ' d t da testemunharam-lhe a origem rea '
'
1mgua, ora em extremo e urpa • . · t'
perto da Cachoeira do Inferno, e alveja as canoas que por lá passam; h b Outrora viveram no aoma, a e
mais ainda, vive em discórdia com os conterrâneos que fizeram a paz que êles mesmos con ecem em. 't . de São Paulo) os recha-
com os portuguêses. No intuito de conquistar os Botocudos, mandaram- que os paulista_s~ (hab~:~;~s m:~t~:p~n;ue escaparam, fugiram. para
lhes facas, machados e outros instrumentos de ferro, com que alcançaram çaram dessa regtao, ma A poucos abandonaram de todo o
o almejado objetivo. O capitão Simplício, sobretudo, foi muito ativo a vila, onde se estabeleceram. os let~mente mansos e em parte
por essa ocasião; pode considerar-se como prova do bom entendimento antigo modo de vida, sendo agora com~e ados como soldados outros
alcançado o já irem os portuguêses compreendendo alguma coisa da cruzados com a raça negra, alguns emp g · · de gen~e velha
1 dores Apenas uma mmona
língua dos referidos selvagens. como pesca d ores e avra · . 1' São hábeis em tra-
ainda entende algumas palavr~s da antiga l~;ua~lha cêstos rêdes de
Afastados, assim, os temores que os silvícolas justificavam, os balhos manuais, e fazem estenas, chapéus . ~ São ta~bém bons
portuguêses começaram a abrir uma estrada para Minas Novas, atra- pescar e rêdes menores p~ra .pegar ca~~n~~]~~ deixaram o arco e as
vés das grandes matas virgens da margem sul do rio. Está hoje caçadores, como todos os mdws, mas
quase acabada, e prestaria grandes serviços se tudo o que se diz em flechas pela espingarda.
seu louvor fôsse verdadeiro. Não se construíram pontes sôbre os pro- f d e meu pessoal e _os
Passei algum tempo em Belmonte, a I,:U e _qu 'd d mUitO
fundos grotões ou gargantas dos pequenos córregos da mata, que em b ra a região nao seJa consl era a
muitos pontos interceptam essa estrada; razão por que os muares animais repousassem, em o~ f .. tes e a população se queixava
carregados não as podem transpor; dizem também que, em vários salubre; febres e catarros _sao r~que~esu~adamente doentio. Os mos-
trechos dessa longa viagem pela mataria incessante, medram ervas de que êste ano de 1816 unha sido e ião destacando-se entre tôdas
venenosas, letais para o gado. Confiante na informação sôbre a exce- quitos representam uma praga nessadr g"f' ' d 0 "408 Dizem que na
, · hecida pelo nome e meu ·
lência da estrada, um mineiro tentou servir-se dela com uma tropa uma espeo~, con _ C 0 intoleráveis no interior das
numerosa carregada de algodão, perdendo, porém, grande parte dos estação cálida, sobretudo, torn~: s:s e:teiras para a praia, na inte~ção
burros; é verdade que se alega dever êle o desastre, até certo ponto, casas, que os morador~s fo_?em c . h ma trégua nos ataques desses
de obter, na fresca vtraçao mann a, u
à própria imprudência; mas o insucesso deteve outros, de modo que
atualmente ninguém utiliza a parte baixa da estrada; a parte alta, insetos importunos.
pelo contrário, está em uso. Tive ocasião de convencer-me pessoal-
mente de que a mesma estrada, a qual em melhor estado seria uti-
líssima à região, não merece os elogios recebidos de muitos, embora
se tenha, depois disso, feito algo para a melhorar. A comunicação se
realiza melhor pelo rio, em canoas, do que pela estrada. Várias delas,
carregadas de produtos, descem anualmente de Minas, levando de " á" é um saco fortemente amarrado, que dois homens
( *) Essa rêde, chama d a puç •
volta, em geral, sal e outros artigos. São precisos perto de vinte dias arrastam pelo fundo do mar.
para chegar às primeiras paragens habitadas de Minas, viagem sempre • -1 ( ome de alguma tribo 1) ·
incômoda, ainda que Mawe a pareça ter imaginado mais fácil. (407) No texto le-se TucatiOS n
. I " vmcu
. do ") ~itos
.
"munçoca
" "carapanã" " pernilongo",
' '
(408) "Fincudo" (no orlgma bematótagos da grande fam 11'ta d os
Para o fim de proteger tais comunicações contra os selvagens ainda etc., são outros tantos nomes v~:;;~~s!~~sm3:qvárias enfermidades pecul\ares a~e Pt~S:
hostis, diversos postos militares foram estabelecidos rio acima, em Culícidas, 8: que perteJ?cemal oJI ~o a febre amarela e a fllariose. As la~as existentes
quentes, tats como o tmp. u s ' explica as conhecidas re aç es.
direção a Minas. São em número de seis: quartel dos Arcos, quartel os membros da famllia cnam-se nfl: ág~a_, o ~ue nota 279, dêstes comentáriOS).
en tre a ditas moléstias e o meto ftstco v. a
do Salto, quartel do Estreito, quartel do Vigia, quartel de S. Miguel
XI

ESTADA NO RIO GRANDE DE BELMONTE


E ENTRE OS BOTOCUDOS

Quartel dos Arcos. - Os Botocudos. - Viagem ao


Quartel do Salto. - Volta ao Quartel dos Arcos. - Com-
bate entre Botocudos. - Viagem a Caravelas. - Os Ma-
chacalis do Rio do Prado.- Volta a Belmonte.

Desejando travar conhecimento com as belas e interessantes


matarias das margens do Belmonte, resolvi passar alguns meses nos
"sertões" e, conforme fôsse, subir o rio até Minas. Aluguei duas canoas
na vila, equipei-as com cinco homens e embarquei minha gente e a
bagagem. A 17 de agôsto, com a maré de enchente, deixei Belmonte,
e segui por um pequeno braço até o rio, que é aí bastante largo e em
parte ocupado por bancos de areia (coroas). Assemelha-se êle em
muitos pontos ao Rio Doce, com a diferença de ser mais estreito, tendo
de quinhentos a seiscentos passos de largura. Florestas e altos canaviais,
da espécie denominada "ubá", ou "cana brava", orlam as margens,
interrompidas aqui e ali por fazendas e plantações. Vimos, nas
bordas dos bancos de areia, o talha-mar (Rhynchops nigra, Linn.) pou-
sado e imóvel; e o grande carão (Numenius carauna, Latham)• 4 o9,
bela ave palustre, passeava gravemente, olhando em volta assustada;
a muito custo conseguimos matar uma dessas aves ariscas.
(*) (Suplem.) Numenius gum·auna e não carauna, como está no texto por êrro
tipográfico. ~ste é o "Carau" de Azara (ed. Sonnini, IV, p. 223); eu o tomaria por
Ardea scolopacea, Linn., ou "Courllris ou Courlan" de Buffon. se êste não tivesse a
unha do dedo médio pectinada, caráter que fa lta à ave brasileira. O Prof. Lichtenstein,
com muito acêrto, identificou-o ao "Guarauna", de Marcgrave (Numenius gigas do
Museu de Berlim) .

(409) Aramus guarauna guarauna (Linné). "Carão", como se terá ocasião de


ver, é nome dado também, às vêzes, com menos propriedade, a outras aves ribeirinhas.
Scolopax guarauna teve essencialmente como base "Guarauna " de Marcgrave (Hist. Natur.
Brasiliae, p. 204), cuja identidade foi decisivamente acertada por Schneider (Jour. für
Ornithologie, LXXXVI, 1988, p. 85), à vista do desenho original. Todavia, durante
muito tempo, a exemplo de Wagler (1827), usou-se o nome Jineano para um lbls semelhante
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 239
238 VIAGEM AO BRASIL
e "bichos" de pé. Os mosquitos também nos atormentaram, e só mesmo
Na fazenda de Ipibura, pertencente aos herdeiros do falecido a fumaça sufocante da fogueira conseguiu atenuar os seus ata9.ues.
capitão-I?or ,de ~elmonte, parei um pouco para tomar alguns víveres f.sses insetos eram de todo intoleráveis na orla da mata, onde vimos,
necessános __a VIagem e, sobretudo, prover-me de aguardente, de igualmente, 0 vampiro (Phyllostomus sp:ctrum)
411
a esvoaçar. Durant:
ta~ta precisa~- nas febres. Essa fazenda possui o único engenho de a noite, tivemos constantemente sob as vistas as canoas com a b~gagem,
açucar da regiao ~o Belmonte; verdade é que ficara parado por muito ficamos, por isso, todos encharcados e tivemos de passar a noite com
tempo, mas parecia estar pronto para trabalhar de novo. Também fa-
bricam aí "á~a _arden~e de cana". As circunjacências de ambas as as roupas molhadas. . _
Na manhã seguinte encontramos nossa canoa grande meiO cheta
~argens ,do. no sao bom tas; altas ubás, de fôlhas dispostas em leque e
d'água, e tôda a bagag~m molhada; mal tínhamos podido c~ns~rvar
mflor~scenc!a semelhante a uma bandeira, ondeavam em compactas
sêcas, nas palhoças, as armas de fogo ~ a pólvora. A água f01 tirada
touceiras; sobre elas, nu~ segund?. plano, uma faixa de esguias Cecropia, mais depressa possível, e, para alegria geral, o sol rompeu _entre as
de caule prateado e chew de aneis; o fundo, de grande pitoresco, era 0
nuvens pejadas, aquecendo-nos e se~ando as nossas pernas melO entor-
formado por fl_orestas densas e sombrias, cuja variegada folhagem verde-
esc~ra s~ erçma atrás em cerradas massas. A própria margem era um
pecidas. Bem humorados, prosseguimos. . .
Assim como, no rio Doce, tínhamos ouvido os gntos dos macacos, e
espesso u~tnnca~o de plantas as mais diversas, onde trepadeiras de sobretudo dos guaribas e saí-açus, também aqui r:_boava~, nas florestas
flores . azms ou cor de vwleta medravam luxuriantemente, entrelaçadas, seculares, os gritos agudos das araras, das anaca~ . (Pslttacus severus,
e bomtas macegas de altas ervas, sobretudo do gênero Cyperus, enchiam Linn.)412 e muitos outros papaga~os. Sôb;e a supe;hoe plan~ dos banc~s
os espaços restantes. de areia, que então, estando batxo o m_vel das aguas, surg_tram no no
. Ao pôr-do-sol saltamos numa coroa, ou banco de areia, perto de entremeado de lindas ilhas, a andonnha-do-mar de btco amarei~
lpibura, onde alguns homens, na sua maioria índios "Meniens" viviam (Sterna flavirostis)'IF4 13 pousava aos pares; e~a plana no espaço e cal
em habitações esparsas. Tive aí a oportunidade de comprar a belíssima perpendicularmente na água, em caça do petxe, e, caso algu~a pessoa
pele de uma onça ultimamente abatida. Ficaria contente se conseguisse se aproxime do ninho, mergulha sôbre ela co~o se lhe qms~sse tras-
ou, pelo menos, pudesse ver o esqueleto do animal, mas o homem que passar 0 crânio4H, intenção que, de fato, os habitantes I?e atnbuem.
a caçara I?e asse.g~rou tê-lo deixado muito longe, na mata, e que eu Ao meio-dia, chegamos à bôca do Obu, peque~o no que de~água
encontr~na o cramo na coroa de _Timicuí, rio acima, lugar de parada
no Belmonte. Subindo-o um pouco, encontra-se as margens dele a
costumeuo. Uns pescadores, que tmham as cabanas em Ipibura, presen- pequena povoação que dêle tirou. o nome, de doz_e a quatorze c~sas,
tearam-nos com ovos de uma tartaruga fluvial, os quais são comple- onde se cultiva e manda para a vtla grande quantidade de mandiOca,
tamente redondos, do tamanho de cerejas grandes, e de casca dura, de arroz e milho, além de alguma cana-de-açúcar. Não existem aí
um branco reluzente; não têm o gôsto desagradável de peixe, dos ovos
das_tarta;ugas do mar, sendo, por isso, muito bons de comer. Começava
(*) (Suplem.) Ela se parece com Ste1-na cayennensi_s, que também não ex.iste
entao a epoca em que se encontram frescos, são enterrados aos montões somente na Guiana, mas é ainda encontrada nas costas brasileiras. Para o sul encomrel-a
em todos os bancos de areia, e os pescadores procuram-nos àvida- desde Espírito Santo, mas talvez vá ainda mais longe. Vive nas cos;ts o:ar m~,
lagoas 0e, mais ao norte, no Interior da própria mata, bancos de are1a os r os, on e
me~teuio. Quando anoiteceu, começou a chover violentamente e nós é a primeira ave a saudar o romper do dia com a sua voz sonora.
fugimos para nos abrigar em umas cabanas de pescadores, velhas e
abandonadas, onde, entretanto, fomos importunados por inúmeras pulgas (411) Objeto de nota anterior (n.• 389).
( I ) "Ararinha " ou " maracanã" são os nomes aplicados hoje à Ara severa Llnn.,
4 2
I" h (*) J;:s~es ovos são da espécie de tartaruga que nós capturamos no Mucuri com conquanto não dela privativos.
No Brasil oriental " anacã " parece nome atualmente em desuso, quer para esta,
; r adueas a~~~bela;a;:~=~"~a~r-~~e~~ ~~l:sp!:~aat~J~ul ct!~~nhecida, caracterizada uer ara outra qualqu~r espécie de psitácida. Na Amazônia, poré?", . continua a ter,
~cessô~iamente esta acepção. mas é sobretudo empregado com referencm a outra a ve,
ao. "tapicuru", e que Vleillot (Nouv. Dict. d'Hist. Nat., nouv. édlt., VIII I9I7 Deroptyus acclpitrinus Linn., também chamado "papagaio de coleira •, pelo seu singular
fOI o. primeiro a descrever, sob a denominação de Numenius chihi. Mere~ pois' d~~~~~~ hábito de eriçar, em tôda volta, as penas ornamentais do pescoço.
o acerto de ~~ed qua~to. ao ~orne especifico da ave a que se refere nesta assa em (4IS) A espécie em questão é Phaethusa simplex (Gmelin), mais geralmente referàda
de s~3:- descr1çao da V1agem ', e bem assim nos Beitraue (IV, p 777). Pcont~do sob nome de Ph. maunirostris (Licht.) . Ocorre tanto '!.o litoral. como n'?.s grana!!
é OJ!lmao cor!ente reconhecer em Ibis uuarauna Llchtenstein 0 !bis ·citado' há ouco' rios 0do interior; no Rio Grande do Sul é conhecida por trinta-~éls grande · A e
e. nao o carao, co_mo dá a entender a nota do pr!ncipe (cf. Hellmayr & Co~over' este-brasileira é hoje considerada raça particular, diversa da de ~tuena e cientlfica~:'i~­
F .elà Mus. Nat. HtSt., XIII, parte I no 2 pág 266) ' denominada P. simplex chloropoda (Vieillot). Sterna cayenns\8, Citada em nota do P
(410) Aos quelônlos de água d~e pref~re o" povo ·dar o nome genérico de cágados mento, corresponde a Sterna maxima Boddaert. ib 1 inh
res.ervando o de tartaruga para as marinhas. Pelos esclarecimentos encontrados e~ ( !4) E' essa uma reação observada em. outra~ aves aquáticas. ou r ;eiató;~~
Bettrtiue (vol. ~· p. 29), chega-se à convicção de que se trata aqui da mesma es écle como o4 " quero-quero" (Belonopterus cayennens.s), obJeto de referpênCll~st noXX 1U8
encontrada ma1s tarde no Rio Belmonte pelo nosso viajante, e objeto de longa ~ota de uma excursão pelo interior de Goiás. (Pinto, Rev. do Museu au .s a, • •
no capitulo referente a êsse rio. Como adiante se verá 0 nome que lhe dera Wl d
de Emys depressa, é antecedido por Emy radiolata Mikan.' e ' pg. I2 e 48).
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS
241
240 VIAGEM AO BRASIL

engenhos de açúcar; os habitantes limitam-se a extrair o caldo da caídos. Dizem que, na época do estio, é êle muito raso, porém, subindo
cana, espremendo-o entre dois rolos, e conseguindo, assim, o xarope as águas, torna-se suficientemente profundo. . ~ .
necessário ao próprio consumo. A embocadura do pequeno rio é Ouvindo 0 ito das araras nas matas adpcentes, nao res1S-
denominada bôca d'obu, e diante dela fica uma ilha, chamada Ilha da .
umos ao desfeJ
fe
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0
b
dar-lhes caça. Desembarcamos alguns caçadores
edidos Um dêles chegou-se cautelosamente
Bôca d'Obu. Mandei abicar as canoas para a bôca dêsse riacho, a fim e dessa vez, omos em sue · . fl
de obter a farinha necessária ao sustento do meu pessoal durante a pros- e' com um tiro, cujo eco reboou majestosamente _pela Imponen~e o-
secução da viagem, e aproveitamos a oportunidade de conhecer a flo- r~sta matou de uma vez duas dessas grandes e hndas aves- h AI,psu~-
resta próxima. Aconteceu que uma canoa carregada de farinha descia res~s viram os caçadores um bando de pequenos sauís ~face us e~t­
o Obu, permitindo-nos apressar o negócio; compramos a que quisemos ~illat~, Geoffr.)416, que, entretanto, pulando como :sqmlos por en :.
e de novo deixamos a margem. Num trecho largo do rio, na ponta os cimos das árvores, desapareceram depressa demaiS para sere~ _pe .
de uma coroa, vimos um bando de patos de uma espécie não ainda 'd Tai·s macaquinhos são muito comuns nas florestas br~sileiras,
segm os. s· . . h d Lmneu417
observada por nós, e que se distingue pela plumagem pardo-ama- uma das espécies mais bem conhecidas é a tmta 1acc. us, ~ • . d '
relada"'415. Quando nos acercamos, levantaram vôo, descrevendo ue 'á se encontra um pouco mais ao norte, nas orcunpcencias, _a
um grande círculo, e logo se reuniram de novo. Perseguimo-los dêsse ~ahi! As esplêndidas araras e outras belas aves. da ~esma famiha
modo durante muito tempo, até que por fim se esconderam por trás adorn~m essas matas umbrosas, formadas das ~aiS v_~na~a:d~lan:~~~
de uma eminência da margem. Mandamos imediatamente um caçador, Um bando de vinte ou mais, tal como o que VImos, 1 umm P
que se aproximou dêles com precaução, matando dois com um tiro, raios esplendentes do sol, pousad~ ?uma árvore d~ u~d:~:;def:z:l;z~~:f~
os quais proporcionaram boa refeição, para a tarde. constitui, decerto, quadro magmhco, de gue s p 1 . ó trela-
Passamos a noitinha pela coroa de Piranga, onde escavamos ovos os ue 0 tenham contemplado. Trepam àgllmente pe os ~1p s en
de tartaruga na areia. Nesse vasto areal, os rastos das onças e das çad~s e expõem orgulhosamente, aos raios do sol, em t?das . a: fa~es
antas, que por aí rondam durante a noite, cruzavam-se em tôdas as os cor os terminados pelos rabos compridos. Eram, entao, VI~ as ~-
direções. Não vimos sêres vivos senão andorinhas-do-mar (Sterna), que, üentfmente na arte baixa, ou à meia altura, de u~a trepadeira e~pl­
na sua solicitude pelos filhotes, caíam, em alarido, sôbre os intrusos. ~hosa (Smilax?), paí denominada "espinho"41.8, de CUJO fruto, que a esse
Aí levantamos umas poucas palhoças de fôlhas de coqueiro, onde pas- tempo amadurecia, gostavam muito, como ficou provado pelo e~~ont~o
samos a noite. Na manhã seguinte, retomamos a rota, estando o tempo freqüente, no papo das que matamos, do seu caroço bra~co. rocJr~~
sereno e agradável. Nunca víramos antes as margens vestidas de fácil matá-las nessa época; ao passo que, em outras estaçoes, p
plantas tão belas e intrincadamente entrelaçadas. Admiramos, sobre- 0
alimento no cimo das árvores mais altas da floresta.
tudo, um esplêndido arbusto, muito vizinho do ipê (Bignonia) e com Encantados com 0 sucesso da nossa primeira caçada de arar~! e~­
grandes flôres vermelho-brilhantes, que fulgem como fogo na treva barcamos e passamos pela Coroa da Palha, ot;tde um córreg~, ;,. I~c ?
densa. Por tôda parte, plantas trepadeiras vestem de um tecido inex- da Palha, deságua no rio; e atingimos, à tardmha, a Coroa e ~m1cm,
tricável os altaneiros troncos seculares; brotavam as fôlhas novas das onde encontramos pouso numas velhas e abandonadas cabanas e pes-
sapucaias, de um róseo delicado; e rente à margem, onde, como cadores. Era aí que eu devia achar o crânio da ?ela e gr~nd~a o~{~
girândolas, as Cecropia estendiam os ramos cobertos de fôlhas pal- (" a araté") cu·a pele havia sido comprada por m1m em lpibU. •
madas, ondulavam sôbre a areia as altas touceiras da cana brava. dirs ~ ois de se) ter abatido a fera, ness; tr~cho da floresta. Dms caça-
Atingimos, perto da embocadura de um riacho, o rio da Salsa ou dores Itravessando a mata com alguns caes, a procura de v~ado e dout~as
Peruaçu, que une o rio Grande ao rio Pardo. Devido a ser a barra caças' defrontaram-se acidentalmente com o animal, não onge 0 r~,
do rio Belmonte pouco favorável à navegação, foi atualmente organi- róximo a um riacho, e, como muitas vêzes acontece, acuaram-na ~
zado um plano para tornar êsse canal navegável por canoas, pela ~ncontro a um tronco de árvore caído obliquamente, onde lhJ des!e
remoção de todos os obstáculos, e sobretudo dos troncos de árvores charam um tiro mortal. Já havia passado as garras num os caes
(*) A nas v iroata, espécie nova, de plumagem amarelo-ferrugenta; tôda a parte
Interna da asa, preta; a primeiras penas da asa têm riscas brancas· penas laterais (416)
d · t nomenclatura (cf. nota 280
CaUithrix penicillata (E. Geoffr. ) - a V}gen eêste saglii no vol. li dos
do corpo com uma estria longitudinal branco-amarelada; comprimento 'total do macbo anterior). Wled aduz interessantes obser~ç~es so re té a foz do Amazonas, ocorre
17 polegadas e 9 linhas. ' "Be!trli~e". (p. 142 e. ss.). A Pl!-rtié~ dgran~osnC::~· o~elhas e de todos os sagliis o
Calllthrtx }acchus (Lmn.), com ptnc s
(4U) D endrocygna bicolor Vieillot, mais comumente referida sob D. fulva Gmelin, mais comumente conhecido.
nome sob o qual a espécie aparece descrita nos B eitrtioe (IV, p. 918), mas invalidado (417) cr. a nota (p. 144) · , lemã
por homonlmia. Entre seus nomes vulgares citam-se "marreca peba" (Amaz.) e (41 ) Lê-se "Espinha" no original, consoante a fonética a .
"marreca caneleira " (R. G. do Sul).
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS
243
242 VIAGEM AO BRASIL
.f . ao asso que outros tinham uma risca
quando um segundo tiro no pescoço a abateu de vez. Encontrei o vermelho-fetTugem um orme •. f .P do dorso Em nenhuma parte
crânio no banco de areia próximo das cabanas, mas, infelizmente, já branco-amarelada na parte, m eno~ão grande .quantidade como nesta
estava muito estragado. Os caninos tinham sido arrancados, para ser- tinha visto êste. belo morcego e~ 'amos deixado na coroa tratando
virem como amuletos, emprestando-lhes a superstição local grandes região. Os d01s homens qu.e avt lh levávamos;
d cozinha ficaram contentísstmos ao verem a caça que es 1 ..
virtudes na cura ou prevenção de várias doenças. A pele dessa onça a : h descoberto muitos animais interessantes pe as VlZl-
era lindamente mosqueada; media mais de cinco pés de comprimento, também tm am h o da cálida fogueira, contamos uns aos outros
sem contar a cauda, e, apesar disso, não era das maiores da espécie. nhanças. ~ora, tno adcoond~ae~nquanto na escura solidão ecoavam as vozes
os aconteomen os • · z )
da capueira, da chora-lua42S e do_ ~achura~. (~a~n~~l:;;o· o rio até
f.sse e os outros grandes felinos, o tigre negro e a suçuarana, ou onça
vermelha (Felis concolor, Linn.) 41 9, não são raros nas florestas do Bel- N dia 21 deixamos de manhazm a, Imicm, s
monte; porém pouco perseguidos, porque não há, nessas paragens, cães
próprios para tal gênero de caçada. Encontram-se comumente, em tôdas
as margens arenosas do rio, os rastos dessas feras; e, durante a noite,
o.
a uma ~~ha
matas virgens
com!
rida chamada Ilha Grande; é ela coberta de densas
est;va então desabitada, encontrando-se apenas as
. . d . d moradores de Belmonte. Es-
ouve-se-lhes muitas vêzes o urro áspero e entrecortado. plantações que ah t~~!:~m f~~~~eod~:Uargem norte desta ilha quando
Atraído pelas muitas pegadas de animais ferozes, resolvi passar o tavam nossas canoas fera que mal
dia seguinte em Timicuí e explorar as matas circunvizinhas em tôdas as n~~í~~~~uen\~~~~~ ~;u~~~~so a~j~:ee~~~~o ~~~~a:toat::;~;cá.v;mos,
para
direções. O tempo estava ótimo, mas não conseguimos caçar nenhum ~eixarque a violenta tempestade passasse, ouvtmos de subtto, p~ru~:~
quadrúpede e, sim, aves de panela, entre as quais um pato almiscarado b rulho de uma vara de porcos-do-mato, que. ug .
(Anas moschata, Linn.), uma jacupemba (Penelope marail, Linn.), uma de nós, o a . - Não obstante o aguaceuo, dOis
arara e cinco capueiras (Perdix guianensis, Latham, ou Perdix dentata, em pânico pela nossa aproxtmaçao. es in ardas se-
Temminck) 420 , que nos proporcionaram uma boa refeição. O único dos nossos canoeiros pulardam lo_go h em ~~:v~:: c~:U u~ gorco ,(Di-
iram o rasto e ao cabo e meia ora . 1r
perdigueiro que ainda me restava foi muito útil na caça às capueiras; gutyl labiatus Cuvier)•424, abatido por êles. Quan~o tam pu a
logo descobriu o bando, que levantou vôo para todos os lados, indo
pousar nas árvores, onde um caçador, tendo boa vista, fàcilmente as ~~ra e~ canoa c~m a sua prêsa, p~rceb.ert:~e~~a nfa~~r~~t~~:~;a~~~~~
os capins altos da margem, que tmedia . , , or acaso
descobre e alveja, como é o caso da nossa galinha silvestre. Um à canoa. Os caçadores estiveram em gran?e pengo, porque so p d em
gambá • 421 que, corrido pela minha cadela, galgou o tronco de não pisaram na cobra escondida no captm; se a uvessem toca o, s
uma árvore, foi por ela derrubado, mas devido ao cheiro desagradável
dúvida que ela lhes teria picado os pés ~escalços. . h Nesse trecho
do bicho, ela apenas o agarrou com as pontas dos dentes, sacudindo-o até · u segutmos cam1n o. '
matá-lo. As araras bem como outros papagaios, deram-nos substan- Logo que a borrasca amamo , m or intervalos, planuras are-
cioso caldo; a carne das primeiras é dura, mas nutritiva e parecida com o rio é vasto e b.elo; ?a margem, sur;:ncÍu;s abandonados de fôlhas de
a de boi. nosas, onde, aqm e ah, ;nco;~r::~ moradores de Belmonte, quando
Quando voltamos da caçada, no lusco-fusco da tardinha, vimos coqueiro, q~e servem e a ng caçar Aí vimos freqüentemente a
uma porção de grandes morcegos esvoaçando sôbre a superfície da sobem 0 no para pescar ou ·
. duas espécies de porcos selvagens ~a
água. Carregamos as espingardas com chumbo fino e tão felizes fomos, (*) (Suplem.) Dúvida tem hav1do entr~ s~ii~utido também pelo Prof. Llchtenstem
que derrubamos alguns. A um exame mais acurado, pareceu-nos agora América do Sul são de fato dlst!ntas, as;:;n rave As duas espécies chamadas por
tratar-se de uma espécie do gênero Noctilio 42 2, uns eram de côr 'iO:ar!eu!Ta'::J::..rl~s "~saJ:t~~lç~:ei~!-sft!:~~f:i~;snt'à 'tm~~~~~açã~ d~a~~~:tz~ê,::
o
delas encontro noticia em todos os esc\ oriental do Brasil por onde viaJei, os de
elas precisamente aquêles n~mes, n~ cos~o-mato verdadeiro", e "cait<;tu"; entre os
(*) (Suplem. ) Deve tratar-se aqui de Didelphys cancrivorus ou marsupialis. "porco de quelxa_?a ~~~nca Jho~~an:,?rcasslm por diante. Marcgrave ~ta ~pen_!l~al~~
Botocudos os de kur e . ., ' dad é que sob a denomlnaçao e . d
(419) "Onça parda" é o nome usado nos Estados meridionais, em vez do têrmo tupi. espécie, o "taltetu", ou "caJtetu ' . verrt ':Jo que a existência dessas duas espéCieS he
{420) As três espécies aqui acompanhadas de nome técnico foram já objeto de caalgoara". Nada pelo! meno~ é d~a~méeric~ do Sul; assim é que, se~nd~Co htest~a~~ ~
referência nas notas, respectivamente, 249 , 117 e 344. porco selvagem na ma or pa e M hão onde se denomma a ucu d
{421) Didelphis marsupialis Linné, 1758. Uma espécie de dificil diferenciação, do missionário Eckart, elas . e~lst';f' no •t a!a~õbr~ a América do Sul falam de uas
11
Diàelphis aurita Wled, 1826 (Beitr., 11, p. 395), ocorre em todo o Brasil meridional, uma espécie me~~r.; A t ~ai~Óa a ~o:~~~~fia Brasilica é que citad tHrê!stórfa"s~atn~~J:
inclusive o extremo sul da Bahia, onde obteve o autor o único exemplar em que baseou a espécies de porun.<o-ma o • ld ã no tocante a assuntos e s al
sua descrição. porém, não deve ser tomado em t?~s t eraJe o uma outra espécie, diferenças que guma
(422) Trata-se de Noctilio leporinus (Linn.), morcêgo grande muito comum na podendo terem passado como . a ri u <!S "d d
vizinhança da costa e dos rios do Interior, conforme convém ao seu regime alimentar, das primeiras apresente por mfluênc1a da I a e.
parcialmente lctiófago. A listra clara ao longo do dorso é Inconstante, não justificando
o reconhecimento de duas espécies com base nesse caráter. Alguns apontamentos sôbre (423) Cf. nota 343.
a biologia da espécie poderão ser encontrados em trabalhos que temos publicado (cf. Rev. (424) Tayassu pecari (Link) . Cf. nota 302.
Mua. Paulista, XIX, p. 31; Bol. Mus. Paraense, X, p. S84).
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 245
244 VIAGEM AO BRASIL

anhinga (Plotus) e o grande pato selvagem (Anas moschata); dêste, sacudiu violentamente a nossa grande canoa coberta. Logo amainou,
sobretudo de manhãzinha, vimos bandos inteiros. A tarde saltamos numa entretanto, e, quando o céu clareou, vimos diante de ~ós a il.h~ da ?a-
coroa ~hamada "as Barreiras", lugar ótimo para caça, quase que o único, choeirinha, onde fica o Quartel dos Arcos. f.sse pos~o militar fora
no baixo Belmonte, em que se encontra o grande macaco cinzento- estabelecido, dois anos e meio antes, pelo Sr. Marcelmo da Cunha,
amarel~do, que aí é conhecido por "miriqui" (Ateles)425. ouvidor da comarca, por ordem do governador, Conde dos Arcos.
A princípio, tinha sido instalado um destacamento de cêrc~ de sessenta
De!x~m~s a coroa antes .do alvorecer do dia 22, e já vencêramos
certa ~IstanCia, quando nos vieram saudar os alegres clarões da manhã. , homens, três dias de viagem rio acima, no lugar denommado Salto;
porém os soldados indígenas, mostrando-se muito desc?~tentes,._foram
A }>a~Ida dos remos e as vozes dos canoeiros, discutindo por causa do
pre~IO que eu prometera ao mais destro dentre êles, punham tôda a transferidos para a ilha da Cachoeirinha, e o capitao Juhao Fr.
regiao em sobressa~to; bandos de patos selvagens, amedrontados pelo Leão, comandante do Quartel de Minas Novas, ocupou ·o pôsto com
?an~l~o, ~oavam diant~ de nós. Já no dia anterior tínhamos divisado, dez a doze homens, que ainda formam o Quartel do Salto. Umas
a , ~IstanCia, uma cadeia de montanhas, que então distinguimos mais poucas cabanas feitas de barro e cobertas de palha erguem-se na .ex~re­
mtidamente~ c~ama-se Serra dos Guaribas e intercepta as grandes flo- midade mais próxima da ilha, cujo mato fOI derrubad? e substitmdo
restas, na direçao de norte a sul; não parecia muito elevada embora por plantações. A outra ponta ainda e.stá coberta de Imponen~es !lo-
não ficasse muito longe de nós. ' restas. Fizeram-se aí plantações de mandioca ~· em vol~a das ~abltaçoes,
. No ponto em que estávamos, as margens do rio começavam a plantaram-se numerosas bananeiras e mamoei~Os (Carzca), CUJOS frutos,
subir gradualmente; montanhas forradas de sombrias florestas surgiam entretanto, muitas vêzes só servem para alimentar os Bot?cudos, a
d~ am_?os os lados; fra~entos de pedras e rochas anunciavam a apro- quem os moradores permitem de bom grado apanhá-los, no mtmt~ de
ximaçao de montanhas mexploradas, e as coroas ou bancos de areia não perturbar o trato pacífico em que vivem com êles. Entre a Ilha
se faziam mais raras, à proporção que o leito d~ rio se tornava mai~ e a margem norte, o rio é estreito, estando a êsse tempo tão raso, q~e
e~treito e a .corre~te mais profunda. O escuro e refulgente espelho do se podia atravessá-lo a vau; o braço do sul é mais largo. O padre Fana,
no era muitas vezes apertado entre montanhas alcantiladas se bem natural de Minas, aí fizera ultimamente, defronte à ilha, grandes plan-
con~inuasse consideràvelmente largo. Ouvimos e vimos, nàs 'margens, tações de milho, mandioca, arroz, algodão, etc.; vive totalmente isolado;
as hndas araras, e encontramos, pela primeira vez, uma ave notabilís- a estrada para Minas passa junto à casa dêle.
sima, a "aniuma", ou anhuma (Palamedea cornuta, Linn.)426, que não O destacamento dos Arcos era constituído por um alferes e vinte
é rara nessa altura do rio. Essa linda ave, do tamanho de um ganso homens; tantos, porém, desertaram, que só dez restavam •. sobretudo
grande, mas de pernas e pescoço maiores, tem na testa um apêndice longo gente de côr, índios ou mulatos. Os soldados passam mu~to mal; o
e delg~do, semelhante a um chifre, de quatro a cinco polegadas de sôldo é pequeno, sendo obri~ados a ob.ter a custa d~ própr_I_~ trabalho
compnmento, e, ao nível da articulação dianteira de cada asa, dois tôda a alimentação, que consiste em fannha de mandwca, feipo e carne
fortes esporões p~mtiagudos. E' arisca, mas logo se trai pela voz forte, sêca. Tôdas as reservas de pólvora e balas mal vão além de duas
9ue, embora mmto sonora e potente, tem modulações algo semelhantes libras· e muito poucas carabinas são utilizáveis; de modo que, em caso
a voz do nosso pombo selvagem (Columba oenas), sendo, porém, acom-
de at~que, estariam em sérias dificuldades. AléiD: disso é ~a. obrigação
panhadas de algumas estranhas no~as guturais; êsse grito ressoava longe
dêsses soldados transportar, rio acima e rio abaixo, o~ VIapntes c~m
pel~ mata e trouxe novo entretemmento para o nosso senso venatório.
Mmtas delas, amedror_ltadas pela batida dos remos, voaram para a sua bagagem e mercadorias; razão por 9~e são, pela maiOr parte, m~nto
flore~ta; voando pareciam-se com o urubu (Vultur aura, Linn.)427.
destros nesse mister e podem ser qualificados de excelentes canoeiros.
O comandante encetara viagem havia pouco, deixando no comando,
A t~rde, chegamos a uma curva do rio, onde fomos apanhados
durante a sua ausência, um oficial subalterno. f.ste último, por qualquer
por ternvel tempestade, com chuvas torrenciais e ventos furiosos, que
irregularidade, havia punido um botocudo, o que por tal modo ofendeu
(425) Sôbre o " miriqui " ou "mono ", cf. nota I78.
a todos da mesma tribo, que ordinàl'iamente vivem em grande número
(426) Anhima cornuta (Linné). A freqüência com que ocorre o nome desta ave nesse lugar, a ponto de se retirarem em massa para as florestas. Quando
em nossa toponlmia é Indicio expressivo de como eram outrora encontradas e do
interêsse que despertavam. Hoje, porém, vivem sõmente em zonas apartadas do sertão
de volta, o alferes encontrou o quartel completamente desertado pe~os
freqilenta'!do os charcos ou margens pantanosas dos rios; onde não a perseguem, nad~ botocudos, e, sabendo a causa da retirada, mandou um rapaz da refenda
tem todavia de arisca, fato que pude eu próprio verificar em Goiás (cf Rev Mm Paul
pá.gs. 23 e 48). · · · ·· tribo, chamado Francisco, que vivia 'em sua companhia, tentar persua·
( 427) Cathartes aura ruficollis Splx, "urubu campeiro ", " urubu de cabeça ver- di-los a voltar.
melha", etc.
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 247
246 VIAGEM AO BRASIL

Os botocudos que habitualmente residem nas cercanias dos quartéis, inferior, arcos e flechas nas mãos. Confesso que o meu susto não foi
formam quatro hordas, tendo cada uma um chefe próprio, a quem pequeno; fôssem êles hostis e seria traspassado pelas flech~s antes .que
os portuguêses chamam capitão. Tinham-se afundado todos na mata os pudesse pressentir. Avancei destemerosamente par~ eles, e todas
e apenas se sabia que um dêles, capitão June, apelidado Kerengnatnuk as palavras da sua linguagem que _me ~correra~ à memóna no .momento
pelos selvagens, estava, com sua gente, a três dias de viagem rio acima, proferi-as. Apertaram-me ao peitO, a maneira dos portugueses, bate-
no S~lto; mas nada se conhecia quanto ao paradeiro dos outros três. ram-me no ombro e pronu.n ciaram, em voz alta,. umas frases ásperas;
~ mi~são ~e Francisco não surtiu desde logo o almejado efeito; por quando viram, então, a minha esping~rda ~e d01s _canos, exclamaram
Isso, mduZI o comandante a enviar atrás dêles jovens botocudos repentinamente, admirados: pun-uruhu (mmtas espmgardas).
que a_cabavam de voltar do Rio de Janeiro, para onde os mandara Algumas mulheres, carregadas de sac?s pesa~os,_ chegaram-se
O OUVIdor. depois, uma atrás da outra, olhando-me com Igual cunosidade e comu-
. Como levasse recomendações para o comandante, fiquei muito bem nicando entre si as impressões. Tanto os homens como as mul~eres
mstalado no quartel. E' verdade que as coisas de primeira necessi- estavam completamente nus; os primeiros eram de estatura media~a,
dade eram escassas nessas solidões, e os únicos alimentos eram farinha fortes, musculosos e bem feitos, se bem que em geral um tanto esguios,
d<; m_andioca: feijão e peixe salgado, de uma espécie pescada em abun- e muito desfigurados pelos grandes botoques de pau metidos nas ore~has
danoa no _no; mas, em compensação, o naturalista viajante, acostu- e nos lábios. Sobraçavam feixes de arcos e de flechas, e alguns traziam
mado a pnvações, encontrava aí ampla ocupação e o mais agradável também vasilhas d'água feitas de taquaruçu. Usavam o cabelo cortado
entr~teniment~. Fazíamos diàriamente excursões de caça às florestas que
rente, deixando somente um tufo redondo no alto da cabeça; o mesmo
conh~avam diretamente . com a marg~m, voltando tão cansados, que
acontecia com as crianças, muitas das quais as mães carregavam nos
mal tmhamos tempo e forças para registar as observações feitas. ombros, ou levavam pela mão.
Um dos meus, chamado Jorge, que entendia um pouco da língua
~proveitei~me da ausência dos botocudos para visitar as choças
dêles, aproximara-se nesse ínterim, começando a conversar, ao que
q_ue unham _deixado pouco tempo antes, as quais ficavam bem longe do se tornaram muito familiares. Perguntaram pelos outros botocudos que
no, nos mais fundos recessos da mata. Consistiam exclusivamente de ouvidor mandara ao Rio, mostrando grande alegria ao saberem que
fôlhas de coqueiro fincadas no solo, de modo que as pontas, encontran- 0
os encontrariam no destacamento. Ficaram tão impacientes, que ~ar­
do-se no tôpo, formavam uma espécie de arcada. Nelas não encontrei tiram logo e depressa. Sentia-me agora bem a~egre por ter _perdid?
nenhum utensílio, exceto pedras grandes e duras, com que costumavam tempo em caminho; pois se os selvagens, que ter~am de p~ssar JUnto. a
quebrar certo côco silvest~e,_ a que denominavam "ororó". Não longe sepultura, nos surpreendessem entregues à escava5ao, ~odenam re~sentlr­
de ux;na dess~s choças existia uma sepultura, que também quisemos se a ponto de corrermos grave perigo• . Resolvi, entao, t:ansfenr para
exammar. Ficava num pequeno lugar desbravado, debaixo de impo- oportunidade mais favorável a execução do meu prop?:Ito; e apenas
nente~ árvores se~ulares, e era coberta com toras grossas e curtas de
havia dado alguns passos, quando o chefe da horda, capitao June, velho
madeira. Removidas estas, encontramos a cova cheia de terra donde
de aspecto rude, mas de boas intenções, me . apareceu _d~ repe?-te. S~u­
tiramos alguns ossos destacados. Um jovem botocudo, chamado Bur- dou-me da mesma maneira que os companheiros; su~ flswnomia, porem,
neta, que mostrara a sepultura, expressou em voz alta o seu descontenta- era ainda mais extraordinária que a dos outros, p01s ~sava, ~as ?relhas
mento, quando atingimos a ossada; a escavação foi suspensa, e voltamos
e no beiço, botoques de quatro polegadas e quatro h~has mglesas de
ao quartel; mas não renunciei à idéia de examinar a cova mais
diâmetro; mostrava-se, também, forte e musculoso, mas Já enrugado pela
detidamente.
idade. Tendo deixado a mulher atrás, carregava às costas dois pesados
. Alguns ?ias mais tarde, voltei ao local, na esperança de conse- sacos e um grande feixe de flechas, bem como c_Vli~os _p ara flechas.
gm: o meu mtento antes da volta dos selvagens. Por isso, além das Arquejava sob a carga, andando com o corpo mmto mchnado _par<l: a
espmgardas, arma~no-nos com uma enxada. Era intenção nossa com- frente, como vem representado na vinheta dêste capítulo. Sua pnmei~a
pletar o exame tao depressa quanto possível, mas na trilha estreita pergunla foi se os seus companh~iros botocudos tinham voltado do Rw
e s_erpenteante, ent~e árvores altaneiras, surgiram muitos pássaros de Janeiro; e a mais viva alegria estampou-se-lhe no semblante, quando
cunosos, que nos detiveram; matamos alguns, e ia justamente apanhar
respondemos pela afirmativa.
um, quan~o m~ surpreendeu o curto, mas áspero som de uma voz rude.
Voltei-me Imediatamente e eis que bem atrás de mim estavam diversos (* ) Segundo os informes depois disso recebidos do Sr. Freyrelss, vindos do Brasil.
as minhas apreensões sõbre as conseqüências de ser surpreendido pelos selvagens f~
botocudosl Nus e tisnados, como os animais da mata, mostravam-se ato de abrir a sepultura, eram Infundadas; pois abrira várias, operação em que
01

com os grandes botoques de pau branco enfiados nas orelhas e no lábio ajudado pelos próprios " Botocudos ".
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 249
248 VIAGEM AO BRASIL

companhia dos selvagens; devem acrescentar-se a grande fôrça muscular


Ao voltar, pouco depois, para o quartel encontrei muitos boto. dêstes e a capacidade de resistir à fadiga. De fato, nossa gente voltava
cudos deitados à vontade em todos os quartos da casa. Alguns estavam sempre absolutamente exausta das caçadas feitas em companhia dos
sen_tados diante da fogueira assando mamão verde; outros comiam botocudos. A fôrça muscular permite-lhes caminhar ràpidamente, tanto
farmha que. o comandant~ lhes dera; grande parte examinava com descendo como subindo montes; penetram nas florestas mais densas
espant~ a mmha gente, CUJO aspecto era para êles bem estranho. Não
e intrincadas; atravessam a vau ou a nado qualquer rio, caso não sejam
escondiam_ a surprêsa diante da pele branca, dos cabelos claros, dos por demasiado rápidos; completamente nus, sem, portanto, o incô-
olho~ azms. Es_quadrinhavam todos os cantos da casa, procurando modo das roupas, jamais suando, levando apenas o arco e as flechas
comi_da, de apetite sempre aguçado; subiam em todos os mamoeiros, na mão, podem abaixar-se com facilidade. A pele endurecida, que não
e aSSim q~e o fruto mostrava, pela_ côr ;erde-amarelada, um princípio de teme espinhos nem ferimentos, permite-lhes insinuarem-se pelas meno-
ama~ureCimento, arrancavam-no Imediatamente; mais ainda, muitos 0
res brechas da vegetação e vencer, assim, grandes extensões num dia.
comiam completamente verde, ou assado na brasa ou cozido. Meus caçadores tiveram provas dessa superioridade física por meio,
Comecei logo a barganhar com os silvícolas, dando-lhes facas, sobretudo, de um botocudo môço, chamado Juquereque • Apren-
428
lenços vermelhos, contas de vidros e outras ninharias, em troca de dera êle a atirar otimamente com a espingarda e era, ao mesmo tempo,
armas, sacos e outros utensílios. Manifestavam decidida preferência de uma perícia fora do comum no manejo do arco. Mandei-o algumas
por tudo q:Ue fôsse de ferro; ~· à _semelhança de todos os tapuias vêzes caçar à mata, em companhia de outros botocudos; por um pouco
da costa onental, penduravam Imediatamente as facas obtidas a um de farinha e aguardente caçavam de bom grado um dia inteiro. Juque-
cor~ão_ amarrado em volta do pescoço. Foi-nos dado assistir à cena reque, principalmente, era muito útil, dada a sua agilidade e aptidão
mult.? mteressante da recepção que fizeram aos conterrâneos e parentes, para todos os exercícios físicos. A princípio, meus caçadores os acom-
a?s JOVens botocudos que estiveram com o ouvidor no Rio, e que panhavam; mas cedo se queixaram de que os botocudos andavam
vmham chegando aos poucos. Receberam-nos com a maior cordialidade· muito depressa e os deixahm caçar sozinhos. Caçamos diàriamente
o _velho capitão _June cantou uma canção alegre, chegando alguns ~ nas cercanias do quartel* 42 9. Quando os selvagens andam por essas para-
afirmar que o VIram deitar lágrimas de contentamento. Tem-se asse-
gurado que os Botocudos costumam, cumprimentando-se, cheirar os (*) (Suplem.) Na própria Ilha Cachoeirinha em que estávamos, não obstante ser
ela muito pequena , achamos numerosos pássaros. O mato rasteiro d~, vizinhança !media~
punhos. ~ns dos outros. O Sr. Sellow, entre outros, diz que observou do edifício era visitado por uma quantidade de "pombas de espelho (Columba ueof/rou,
essa pr:-uca; m_as eu, e~bora tenha estado muito tempo e muitas vêzes Temm.), que vinham catar sementes no chão; apareciam por !gual, nas proximidade~ da
casa a "juriti" (Columba iamaicensis), a "caçaroba" ou "p1cassu" (Columba rutma),
entre eles, e ;Isto fre':luentemente cumprimentarem os recém-vindos, a "rôla" (Col. minuta) e outras espécies dessas simpáticas aves. Nas moitas de arbustos
via-se a " pêga" (Oriolus cayennensis); o " japu " (Cassicus cristatus) e o "guache"
nunca observei ou ouvi falar de qualquer coisa semelhante. (Cassicus haemorrhous) procuravam em ba ndos as árvores frutíferas, ao passo que tôdas
as manhãs os " japuis" (Cassicus p ersicus) expunham-se ao sol, sôbre os galhos secos
O velho capitão e os chefes amigos se alojaram num alpendre das árvores da mata, a fim de se enxugarem do orvalho. Inúmeros beija-flôres zumbiam
abe~to de todos os lados e si~plesmente coberto de palha, que se tinh~ em tôrno das flôres das laranjeiras e dos mamoeiros (Carica), principalmente: Trochilus
mango, auritus, ferrugineus, ater viridissimus _e, mais que qual9uer outro, ~- saph!rinus,
desti~ado ao preparo da fannha de mandioca; aí fizeram uma boa além de muitos mais. Na mata voavam e gntavam em profusao os papagaiOS, Pnttacus
fogueira, perto. da roda de ralar mandioca e do grande fogão para a severus, guianensis, erythrogaster, squamosus, ntenstruus, Dutresnianus, enqu~nto o peri-
quitinbo verde e azul (Psitt. passerinus, Linn.) aparecia em numerosos bandos, JUnt? mesmo
secagem da farm~a, em redor da qual, envolvidos pela fumaça espêssa, das casas. Na densa tranqueira de bambus e de mato, que cercava o contôrno da Ilha, mo-
rava a grande "Batara" de AZARA (vol. 111, p . 419), ave que eu não tinha encont~ado
se sent_a:am nas cmzas, que lhes davam à pele bruna um tom cinzento. em nenhum outro lugar. Ela vive escondida no mais espêsso e sombrio das m01tas,
O capitao !evantou-se muitas vêzes, pedindo, com rude aspereza, um donde de quando em quando sai para empoleirar-se em algum galho e desferir o
seu curioso canto.
machado e ~ndo apanhar lenha; também se animava, de vez em quando,
a nos a~sediar, .ou aos portuguêses, para ganhar farinha, ou sacudia os (428) O autor escreve "Jukeracke". Aqui, como nos casos análogos, as
alterações ortográficas adotadas na presente edição visam a representar em -.:ernác~l_o
mamoeiros a fim de que os frutos caíssem. a prosódia inculcada pela grafia germânica. Assim, escrever-se-á, por exemplo, G1paquem,
Juquereque, etc., em lugar de "Gipakeiu" e Jukerãcke ".
Os Botocudos, tão irreconciliàvelmente hostis no Rio Doce são u
(429) Merece atenção a longa nota introduzida pelo autor em apêndice ao seu
de tal modo pouco temidos no Belmonte, que pessoas já se av~ntu- livro. Nada e terá a acrescentar a essa esplêndida descrição do que era o feérico
espetáculo da pequena ilha onde estacionou o nosso ilustre e simpático viajante; ape!l~s,
rara~ . até _a partir com êles para as grandes florestas em caçadas
d
para lhe assegurar todo o valor de documento e fazer rigorosamente exata a reconstitmçao
e_ vanos. dias , e a d ormir
· nas mesmas ch oças; fatos esses
" ' entretanto mental do quadro descrito, torna-se útil retificar a nomenclatura de algumas aves
ritadas, pondo-a também de acôrdo com a ciência ornitológica de nossos dias, pôsto que
nao d muito comun
. · 9ue a d esconfiança que se lhes
s, pOis ' vota, não' tudo leva a crer tenham sido determinadas por Wied, com a exatidão habitual (cf.
Ouv. PINTO, " Catálogo das Aves do Brasil ", in Rev. Museu Paulista, tomo XXil) ·
P 0 e ser fàCilmente vencida. Mas a desconfiança e o mêdo de
Columba geottroii -- Claravis godefrida (Temm.). .
entregar-se-lhes
. completam en t e a' d"Iscnçao
· - nao- constituem
· todos os Columba jamaicensis - Leptotila verreauxi decipiens (Salvadon).
Columba rutina - Columba cayennensis sylvestris (Viell.).
motivos que tornam os europeus avessos a essas excursões à mata em
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 251
250 VIAGEM AO BRASIL

gens, as araras rareiam, porque são constantemente perseguidas; tinham Os Botocudos, que gostam de estar perto dos europeus. po~ causa ~o
voltado durante a curta ausência dos botocudos, mas encontraram proveito que daí tiram, também aprenderam, por expenenCia .própna,
entã~, formidáveis inimigos em nossas espingardas. Matamos várias des: que nos quartéis os mantimentos são, às ':êzes, parcos, motiVO pelo
sas lmdas aves, que foram duplamente bem-vindas, pois não só as qual alguns dêles fizeram ~lantaçõ~s. Havi.a uma dessas na margem
caçadas n~s circunjacên~ias. re~deram muito pouco, como, por outro norte do rio, defronte do posto. AI se erguiam algumas palhoças, em
lado, os VIveres a nós distnbmdos, no Quartel, eram muitas vêzes tão derredor das quais os selvagens haviam planta?o bananeiras; entre-
escassos, que quase passávamos fome . Além da caça, continuamos tam- tanto, novamente as haviam abandonado, depois de terem enterrado
bém a pe!car; l?g? depois da nossa chegada foram pegados diversos alguns dos seus mortos, sendo que, no retôrno de então, c~egaram .até
espadartes 30 (Przstzs serra), cuja carne achamos muito saborosa. Uma a queimar as choças; mas ainda conserva':am. as ban~neuas, devido
úni~a espécie de peixe, o crumatã, é aí pescado em rêde; porém
às frutas. Para cima do Belmonte, no terntóno de Mmas Novas, há
mult~s a anzol, como o robalo, a piabanha, o piau, o jundiá,
outro lugar em que os Botocudos fizeram plantações; d~í também se
retiraram novamente para as florestas, tendo os Machacans fundado no
o caça? .~~?ualus ?) , o espadarte, o sucurupora (Squalus? ), o surubim, o
camunp1 e vános outros. O crumatã 4 3 2, de carne macia e muito lugar uma aldeia, ou grande "rai?-charia". ~~s~s. ex:mplos mostram
cheia de espinhos, é pescado pelos silvícolas com arco e flecha +433. que os Botocudos já se vão aproximando da CIVIhzaçao, mas provam,
igualmente, que lhes é muito difícil renunciar à vida natural de caça-
( *) Os principais instrumentos de pesca usados em Belmonte são, além da dores errabundos, de vez que abandonam com tanta facilidade as plan-
oamboa, O? curral, a tarrata, grande rêde redonda, que é lançada por uma pessoa;
dlve~os tipo~ pequenos de cêstos; o puçá, feito de paus, ou de bambus, cortados tações feitas por êles mesmos. Somente o aumento da. pop~lação euro-
~m bras_ mmto fm~~· .um pouco !"!hatado e. bojudo, tendo uma abertura na parte péia e a diminuição dos territórios de caça podem mduZI-los a uma
mferlor concava; o Jlquiá, cêsto cõmco e compndo de cipós cortados em tiras, amarradas
separadamente do lado de dentro, por melo de anéis também de cipó· o mu.tUá parecido mudança gradual do modo de vida.
com o prece<;~ente, mas cilíndrico, com uma abertura em cada uma da~ duas ext:emldades, Os Botocudos, vivendo então sob o mesmo teto que nós, foram
e feito. de bras fl~as de ~ana brav!'. Nas aberturas de todos êles, sobretudo nas duas
extrenudades do último tipo mencwnado, . pauzinhos aguçados são dispostos em cone, motivo de grande distração e, muitas vêzes, de cenas interessantes.
de Pt;mtas para dentro, de modo que o peixe pode entrar, mas não pode sair. Usam-se
especialmente para apanhar o camarão de riscas negras e castanho-alaranjadas que Assim, o velho capitão, de quem eu comprara o a_:co e as. flechas,
també!'l encontramos nos córregos do interior da mata. Têm quatro a cinco palm'os de veio um dia pedi-los emprestados, alegando que nao podena caça.r
comprido. Po~sue':" ~ambém rêdes de arrasto, que se estendem por uma área considerável,
ocupando vári!ls mdividuos ao mesmo tempo, colocados em diferentes canoas. Ainda sem êles. Satisfiz-lhe o pedido, mas o tempo aprazado passou e as mi-
devemos mencwnar, entre os instrumentos de pesca, a ciripoia, que os meninos lançam
nhas flechas não apareceram; nem mais as vi nas mãos do selvagem.
Co~umba minuta -:- Columbigallina talpacoti talpacoti (Temmlnck). Pedi-as de maneira amigável, por~m em v~o. Por fim, .soube que ~s
Ono~us cav.ennenstS - Icterus cayanensis tibialis (Swainson).
Cass•.cus cnstatus - Xanthornus decumanus maculosus (Chapman) . escondera na floresta, e só depois de mmto tempo, diante das mi-
Cass~cus haerYfOrrhous - . Cacicus haemorrhous affi nis (Swalnson). nhas severas censuras, apoiadas pelo comandante do q~artel, foi qu~
Cassw.us p ers•cus - Cactcus cela cela (Linn.).
Tro ch~lus ma1_too - Anthracothorax nioricollis nigri coUis (Vleill.). se resolveu a ir buscá-las e trazer-mas. Machadmhas (carapo
Troch~lus auntu~ - Heliothryx auritus auriculatus (Nordm.). na língua dêles) e facas são-lhe de maior valia.. Usam . as pr.i meiras,
Troch~lus f erruo•neus - Glaucis hirsuta hirsuta (Gmel.).
Troch~lus a,te;r.--;- M elanotrochilus fus cus (VIeill.). sobretudo para rachar a madeira dura do pau d arco (Bzgnoma) , com
Trochilus mnd':B~•mus - Polytmus ouainumbi thaumanthias (Linn.).
Tr!lch•lus saphtrtnus - Hylocharis sapphirinus lati rostris (Wied) . que fazem os arcos: barganham os arcos e as flechas por amba~;
Ps•ttacus sev erus - Ara severa (Linn.). todavia, o apetite dêles é tão imperioso que, por um pouco de fan-
Ps~ttacus guianensis -· Aratinga leucophthalma leucophthalma (Müller).
Ps~ttacus erythrogaster - Pyrrhura cruentata (Wied). nha, se desfazem da faca que acabam de obter.
P~ttacus squamosus - Pyrrhura l eucotis (Licht.).
P~ttacus m enstruus - Pionus menstruus (Linn.). A ilha em que estão os edifícios do quartel é, como já dissemos,
P~ttacus Dufres.nianus - Amazona rodocorytha - (Salvadori). desbravada apenas na porção anterior ou mais baixa, onde também
Pnttacus passennus - Forpus crassirostris vi maus (Ridgway).

are <430 ) O autor escreve "Espadartas", em vez de "espadartes ", nome que aliás na angra suspendendo-a por melo das linhas que lhe ficam amarmdas, e serve para
~be ce boJet de pouco uso com relação aos peixes-serra (Pristis), mas que pelo co~trário' caranguej~s e camarões. Essa rêde consiste de um saco prêso a um aro. Finalmente,
avan a ou ra espéc!_e, X i phias .uladius Lln., peixe ósseo, capaz de au'nglr lgualment~ 0
tapasteiro é uma rêde amarrada a uma cruz de madeira, que _é arrastada pelo
ta)adas proporçoes, mas cuJo longo rostro é liso, desguarnecido de dentes. fundo e serve, do mesmo modo, para apanhar caranguejos e camaroes. O pescador,
"Crum(' 31 )" ~etificou-se aqui, para alguns, a grafia dos nomes usada no original: geralmente, entra pela água até o m~lo do corpo, e sempre de costas. Pendura ao
de ten~n ~ Robal ", "J~ndiáb", "Cassão", "Espadarta", " Çucurupora ", " Çurubl ". Deixa-se pescoço a vasilha onde guarda o peixe apanhado.
muito hipotéti~.termlnaçao especifica de cada qual, por Isso que ela só poderia ser (48B) Dos proces os de pesca referidos minuciosamente em nota por Wled, dlflcil-
mente se encontrará um que não seja usado ainda hoje, com o respectivo nome, no
é nom~' 8 !) li~~urlmatã" (e suas varian~es "crumatá", "corumbatá ", "grumatã", etc.), litoral baiano e muito particularmente no Recôncavo. O "musuá" ou "munzuá" apresenta
(ordem d~s C 0 à. leneralldade dos peues pertencentes ao gênero Prochilodus Agassiz agora ali, lnvarlàvelmente, forma característica e diversa da que vem descrita pelo
acham espalhadaraci 1 ormes, fam. dos Tetragonoptéridas), cujas numerosas espécies se autor· ao em vez de cilfndrico tem a forma de um tronco de prisma multo balzo
chner tem com as ~~ri quase todos os rios do litoral atlântico. Prochilodus harti Stelnda- e co~ duas faces laterais reentr~ntes, como se poderá ver na figur~ que dêles publiquei,
referência feitao pop r rWaiedtiplca o Rio Jequitinhonha, pelo que é provável corresponda à anos atrás. Cf. R ev. Mtts. Paul., XIX, pág. 2~.
nesta passagem de seu livro.
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS
253
252 VIAGEM AO BRASIL
t 'lizam como isca Pequenos bandos de melros negros437 voavam
ficam as plantações, que sustentam os soldados bem como os botocudos; os ur~dor dos rochedo~ da margem; e o lindo "tijé-piranga" (Tanagr~
a outra parte, pelo contrário, é coberta de "capueiras"434 e florestas, ~asilia) Linn.)438 era muito freqüente, como nos densos balcedos mar
através das quais não existem picadas, o mesmo acontecendo com as
margens vizinhas do rio. Com exceção da estrada para Minas, na ginais de todos os rios- . . · é d
Subindo-se 0 rio, chega-se a uma curva onde o le1to mte1ro e
margem sul não se encontram, nessas densas florestas, senão as trilhas tal modo obstruído por blocos rochosos, que apenas. u_ma ap~rt~:~
estreitas, que os próprios Botocudos e os animais ferozes fazem. assa em fica no meio para as canoas. A caud~l preCipita-se,. r Pl. a
Por isso, a maioria das nossas excursões de caça foram feitas, em p tg por entre êles e depois cai suavemente sobre as rochas, é esse
parte, em canoa; fazia-se um pedaço do caminho subindo ou des- r;:e~ e~r denominado Cachoeirinha. A :ne~gia da mas~a d'água, atroa-
cendo o rio, saltava-se e penetrava-se na mata. Algumas dessas excur- dora~ cavou nas rochas, de maneira ma1s sm~lar, cavidades redond~!'
sões, sobretudo as rio acima, eram muito agradáveis. O trecho do a1 mas de surpreendente regularidade. 'Eu tmha uma canoa gran •
rio, que dá o nome à região, e se chama Cachoeirinha, merece particular mrne·ada or dois botocudos, Juquereque e Aó, e um dos_ meu_s; m~s
menção. Subindo a corrente, fica de meia hora a três quartos de hora, a cor~ente pera tão veloz que todos êles, reunidos: não p~d::m ~pehr
a remo, da ilha do quartel; descendo, porém, da Cachoeirinha para o a canoa ara tão perto da queda como eu quena. Subm o o no, as
quartel, basta um quarto de hora, dada a rapidez da corrente. O rio
canoas t em e
p d ser puxadas nesse lugar e noutrosé· b
semelhantes, mas,
conhecedores
é aí apertado entre duas grandes montanhas, cobertas de matas inin- descendo são guiadas pelos soldados dos quart lS, on~ 1'
terruptas. Coloridas com os matizes da primavera, estavam agora na d ·-' Quando 0 nível d'água está alto, os barcos es 1zam quase
sua maior beleza, tanto pelas fôlhas novas, verde-acinzentadas, verde- a regia?. 'to ràpi'damente sôbre os quais entretanto, estando
sem pengo e mm ' b · e
escuras, verde-claras, verde-amareladas, bruno-avermelhadas ou róseas, baixo 0 nível, são muitas vêzes perigosos, mesmo para arqueuo~ ~x_p -
como pelas flôres brancas, amarelo-escuras, violetas ou róseas. Ao pé rimentados. Nessas ocasiões, quando, como agor~, aparecem alXlOS,
dessas montanhas, junto ao rio, massas rochosas, algumas muito gran- lu ar lembra um dos cenários pitorescos da Smça.
des e de formas singulares, prenunciam as formações montanhosas de o gCrescem ali muitas espécies interessantes de plantas; entre ouhtrba~,
Minas, que parecem começar aí, porquanto não se encontram tais um arbusto parecido com o salgueuo, · chamad o " e1r_1
· 'b a "• pelos a I-
blocos mais abaixo. · !mente um Croton · tem ramos mu1to res1stentes, os
tantes, provave ) . · 1 ·d d aos barcos
Uma ilhota, próxima da margem, totalmente constituída de blocos que melhor servem aos barqueiros para impnm1r ve_ ~c1 a e •
de pedra, é notável pela quantidade de ninhos de um pássaro, de que uando im elidos por correntes morosas. A Cinba parece ~er o
algumas árvores fortemente encurvadas, tortuosas, estão repletas. O Jnico reprer:entante do gênero do salgueiro Salix, D:a ~osta ~ne~l~al
brasileira; pelo menos, não encontrei uma s? espéCie essa a~ ta,
1
pássaro que constrói, com as fibras de T illandsia) ninhos em forma
de saco, é o "japuí" (Cassicus ou Oriolus persicus) 4 35, de plumagem durante tôda a minha viagem. Aí medra, Igualmente, um ar u~to
negra e amarela, e aparentado com o papa-figo 436. Belmonte foi o com inflorescências brancas••, que d~sprendem um per;~~e P~~~~~
extremo ponto sul em que o encontrei. E' muito sociável; como todos agradável parecido com o cravo da tndta, bem como outra m. a fl.
os do gênero Cassicus) fazem ninhos em forma de saco, que prendem ue are~e ter afinidade com o gênero Scabiosa•••, e CUJ~S o~es
a um ramo fino, e põem dois ovos. Os ninhos nessa época ;óseaf adornam as rochas milenares, nuas e acinzentadas. d Mu~tas btg-
estavam vazios, pois a procriação se dá nos meses de novembro, nônias erguiam as copas acima do rio; estavam carreg~ as e gr~~~
dezembro e janeiro. Os filhotes são procurados pelos pescadores, que des e belas flôres violetas, que aparecem antes das folhas e en a
desabrochavam. é ·
Não se viam aí mamíferos nem pássaros, exceto div;rsas es~ Cies
(434) Têrmo de origem indígena, muito empregado pelos sertanejos, para designar
a vegetação ·baixa, que viça espontâneamente no local em que a mata primitiva fôra de andorinhas, que perseguiam os insetos no ar fresco, sobre as aguas
derrubada ou destruída pelo fogo. Conquanto tendam, ao cabo de anos numerosos,
para a regeneração da mata preexistente, caracterizam-se pela predominância de certas
espécies botânicas, entre as quais, pelo menos em São Paulo, merecem especial referência (*) (Suplem.) Sebastiana riparia ScHRADER, op. ci_t., P · 713.
as mimosáceas grimpantes e ordinàriamente espinhosas ("arranha-gato"). ( **) (Suplem.) Octea angustifolia, ScaRADER, op. ~t., P· 711.
(***) (Suplem.) Schulteria capitata, ScHRADER, op. CJt., P· 708.
(435) Cacicus cela (Lin. 1858), (= Oriolus persicus Lin., 1766). A espécie, que
observei recentemente no litoral pernambucano (Ilha de Itamaracá), parece não mais -t " Gnorimopsar chopi Vieillot,
existir nas matas do sul da Bahia; pelo menos, não a observei quer na zona do (487) Trata-se seguramente do chamado " pâssafo f:~~ 'nos Beitrlige (UI, p. 1208),
Gongogi, quer no Rio Jucurucu. Em compensação, nas margens do Gongogi é abundantfssima apelidado agora por Wied "schwartze Pirole ", e mas r • ..
a outra congênere, chamada também "japuí" ou japuíra " Cacicus haemorrhous (Linn.). "schwartze Trupial". ., (Rh hooelus bresilius breBlhUS
Cf. Rev. Mus. Paul., XIX, p. 292. (438) Dito ainda "tié-sangue ", "sangue-de-bm • etc. amp_to comum no litoral e
(Linn ) ) passarinho de rutilan'te plumagem côr d_e sangue, mw 68
(486) Passarinho europeu (Oriolus galbula Linn.) de famflia (Oriolidae) diversa repetÍdainente referido pelo nosso viajante-naturahsta. Cf. nota ·
da do brasileiro (lcteridae) e às vêzes chamado imperiosamente de melro.
254 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 255

agitadas. Mas entre os blocos de pedra, na areia, observei as pegadas tempo e observada. Buffon deu dessa ave, com o nome de ~amichi,
dos senhores dessas brenhas solitárias, os Botocudos, as quais uma figura mais ou menos boa. . A nossa era ma~ho, e t~nha, na
são das mais nítidas e perfeitas, pois nenhum calçado defor- testa, prêso somente à pele, e por 1sso móvel, um chifre relativamente
mante lhes arrocha os dedos. Visitamos as choças abandonadas que comprido, coisa que as fêmeas também possuem. Os Botocudos, encora-
os viajantes mineiros construíram no lugar, e depois voltamos ao jados pelo nosso rápido sucesso na caça, também fi~eram excursõe~ pe~o
quartel. Nessa excursão, tivemos ainda o prazer de matar um belo miuá interior da mata, voltando com alguns veados, cutias e outros animais,
(Plotus anhinga, Linn-). E' ave muito arisca; para consegui-la, que em geral devoravam imediatamente. Assam a carne (o que cha-
a pessoa deve conhecer o modo de caçá-la e proceder com muita cautela. mam ele "moquiar") e secam ao fogo a que não vão comer logo, a
Deixa-se a canoa ir descendo o rio, acompanhando a margem e tendo fim de conservá-la. Meu ajudante nas caçadas, Aó, abateu, certa vez,
todo o cuidado de não fazer o menor movimento; o caçador tem a vários animais do alto de uma árvore, voltando muito contente; depois
espingarda pronta para atirar e olha fixamente a ave; assim que ela de uma caçada assim bem sucedida, êle sempre repartia amigàvelmente
começa a erguer as asas, deve fazer fogo, porque, depois, não conse- os despojos com os companheiros. .
guirá mais aproximar-se dela. Meus botocudos ficaram absolutamente Muitos Botocudos foram para a floresta com machadmhas empres-
quietos, eu agachei-me na proa e atirei, ao que a ave imediatamente tadas, no intuito de fazer arcos e flechas novas, que substituíssem os
se precipitou no rio, mergulhando sob a canoa; mas Juquereque segu- trocados conosco. O pau-d'arco, ou tapicuru, com que os confec-
rou-a com a maior destreza. cionam, é uma árvore muito alta, de madeira dura e flexível, que em
Quando de novo chegamos ao destacamento, vimos que havia falta agôsto e setembro se cobre de bela folhagem bruno-avermelhada,
de víveres, tendo a pescaria sido muito improdutiva; por isso, manda- mostrando, então, grandes e lindas flôres amareladas. A madeira é
mos imediatamente os caçadores descer o rio em duas canoas, atrás de esbranquiçada, porém o cerne é amarelo como enxôfre, _sendo desta
caça. Foram, dessa vez, mais bem sucedidos que de costume, pois, parte que os silvícolas do Belmonte, e de paragens mais ao nor_te,
ao cabo de trinta e seis horas, à tardinha, os cinco caçadores trouxeram fazem os arcos. Como êsse trabalho é muito penoso, são-lhe mUito
onze porcos-do-mato numa canoa, noutra dez, ao todo vinte e um, avessos, preferindo pedir os nossos arcos emprestados e, o que é mais,
da espécie chamada "queixada branca" (Dicotyles labiatus, Cuvier); alguns tentaram mesmo roubá-los. . . . .
toparam, nessa caçada, com quatorze varas dêsses animais. Isso Como tivesse, então, bastante vagar para subir amda mais o no
pode dar uma idéia da grande quantidade de porcos selvagens que Belmonte, e tomar conhecimento dos produtos zoológicos das flo~es­
habitam as matas virgens do Brasil; os selvagens perseguem-nos; não tas adjacentes, empreendi uma jornada ao Quartel do Salto, que fica,
há nada mais de que mais gostem do que dêsses animais e de macacos. por terra, a 12 léguas, ma_is ou I?enos, cl_o Quartel dos Arcos, mas a
A chegada dos caçadores, com os barcos tão prodigamente carre- três dias de viagem pelo no, e, amda assim, quatro homens, em uma
gados, foi muito bem recebida, não só por nós europeus, esfomeados, canoa não muito carregada, precisam pegar firme, para realizar a
como sobretudo pela horda inteira dos Botocudos, que já pareciam viagem nesse tempo. Minha canoa estava bastante leve e levava quatro
d~vorar os despojos com os olhos ávidos. Tornaram-se logo sôfregos, canoeiros perfeitos conhecedores do rio. Deixei o Quartel elos Arcos
oferecendo imediatamente os seus serviços para chamuscar e preparar pouco antes elo meio-dia; por isso nesse di~, apena~ passamos pela já
os porcos, se lhes déssemos uma parte. Os selvagens são, de fato, de referida Cachoeirinha, ou seja pela parte baixa elo no. As rochas, que
extrema agilidade nessa operação; velhos e moços meteram mãos à aí estreitam a corrente, e por tôda a parte obstruem o leito, sôbre as
obra, sem perda de tempo; acenderam de pronto diversas fogueiras, quais o rio passa espumando, em queda suave, por cêrca de meia
passaram os porcos pela chama, rasparam-lhes ràpidamente o pêlo milha, constituem sérios escolhos para as canoas. Descendo essa queda
chamuscado, tiraram-lhes as entranhas, e lavaram-nos no rio, recebendo, d'água, as canoas perigam por causa da rapidez ela caudal, das
em troca dêsse trabalho, as cabeças e as vísceras. Os soldados ocuparam- pedras salientes e das voltas que OIS canais fazem entre elas.
se depois em trinchar os porcos e dividi-los em pedaços, que punham Antes ele alcançar Cachoeirinha, paramos na margem sul, com
na salga; razão por que tivemos provisões por algum tempo. o fim ele cortar na mata algumas varas compridas de madeira dura e
Além da satisfação de uma necessidade urgente, essa excursão flexível, usadas na propulsão das canoas. Também cortamos longos
rendeu muito material interessante ele história natural. Meu pessoal cipós; trançam-se três ou quatro dessas · fortes trepadeiras lenhosas
. caçou uma anhuma (Palamedea cornuta, Linn.), que não é fácil ele em uma corda ("regueira") 4 so, que é amarrada na proa da canoa para
matar, chegando-se prudentemente ao banco de areia onde ela se achava.
(489) No original " Regeira". O têrmo aplica-se também ao próprio "sulco" por
Como tinha apenas uma asa quebrada, foi deixada viva por algum onde a água se escoa (cf. AULETE, Dic. Contempor.) e deriva, evidentemente, de "rêgo".
256 VIAGEM AO BRASIL

ser posta a reboque. Assim preparados, começamos a fatigante pas·


sagem da Cachoeirinha. Dois canoeiros, que ora entravam na água
até à cintura, ora pulavam de rocha em rocha, e em ocasiões afunda-
vam por entre os blocos de pedra com água pelo pescoço, puxavam
a canoa vazia, que o resto do pessoal empurrava por trás. Enquanto
isso, trepei com a minha espingarda nas rochas da margem, e matei
uma andorinha de espécie nova para mim, de cauda bifurcada e uma
faixa preta na garganta • 44 0; outras espécies, a branca e verde e a
de garganta côr de ferrugem .. 441 , voavam em bandos por tôda parte.
Também nidifica nessas rochas uma espécie de papa-môscas (Musci-
capa), de plumagem em parte ferruginosa e conhecida, no "sertão" da
Bahia, por "gibão de couro"••• 442 • Ela é encontrada em Minas, e
mesmo, embora mais raramente, na costa oriental, pousada sempre em
rochedos ou nos telhados das casas. Nas rochas de Belmonte, é vista
muitas vêzes no alto de um bloco, donde sobe perpendicularmente em
perseguição dos insetos, descendo depois ao primitivo lugar. Tôdas
as plantas que se encontravam nesse lugar, havia pouco tempo, esta-
vam agora completamente floridas, vendo-se ainda diversas bignônias
de flôres róseas ou violetas, que desabrocham antes do aparecimento
das fôlhas, mas cujas inflorescências, infelizmente, cedo haviam mur-
chado e caído.
Quando os canoeiros venceram as quedas da Cachoeirinha, o dia
já ia avançado; resolvemos, por isso, passar a noite num banco de
areia, à beira da corrente, um pouco acima daquelas. f.sse lugar é
chamado Araçàzeiro 44 3. Ainda gozávamos da luz do sol, mas já era
noite fechada na mata virgem em volta; as ásperas notas vesperais das

(*) Hirundo melanoleuca, espécie nova, de rabo bifurcado; parte superior do


corpo negra, parte inferior, branca; uma risca transversal sob a garganta. Comprimento
total, cinco polegadas e quatro linhas e meia.
(**) Hirundo leucoptera e iugularis; esta última, de garganta ferruglneo-clara
e ventre amarelado-pálido, é, provàvelmente, a Hirondelle à ventre jauntitre de Azara.
AZARA, Voyages, Tom. IV. pg. 105.
(***) Muscicapa rupestris, espécie nova; seis polegadas e onze linhas de compri-
mento; tôda a parte superior da plumagem é pardo-acinzenta da escura; a inferior, bem
corno as coberteiras da cauda, vermelho-ferrugínea clara; rectrizes côr de ferrugem, com
as pontas pardo-escuras; coberteiras das asas pardo-escuras, com duas manchas transversais
e Irregulares côr de ferrugem.

{440) Atticora (= Diplochelidon) melanoleuca (Wied). Da espécie, que acabava


de descobrir, forneceu o autor exemplares a Tellliilinck, o qual figurou nas Planches
Coloriées (pl. 209, fig. 2), antes mesmo que sua descrição minuciosa aparecesse nos
Beitrlige (tomo UI, p. 871). Pequena e bela andorinha, pouco comum, que ocorre
no Brasil central (G<IIás, Mato Grosso) e ocorre também na Amazônia, na Venezuela e
nas Gulanas.
(441) Respectivamente Iridoprocne albiventer (Boddaert) e Stelgidopteryx ruficollis
(Vieillot), da nomenclatura atual.
(442) Hirundinea bellicosa (VIeill. 1819), tlrânida relativamente comum nas fazendas
do Interior de São Paulo e encontradlço desde o norte da Argentina e o Paraguai
até os Estados nordestinos. Corresponde a Tyrannus bellicosus Vieillot, nome cunhado
para o "Suirirl roxo obscuro" de Azara, verdadeiro descobridor da espécie, e antecedente
de um ano ao proposto por Wled. Euler observou·lhe os interessantes hábitos, Inclusive
a nldlficação. Cf. Rev. Mus. Paul. IV, p. 48.
(448) O autor escreve "Raçaselro", mas não deve haver dúvida em que tenha
adulterado o nome tomado a tão conhecida planta.
ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 257

araras anunciavam às corujas e às andorinhas noturnas que era agora


chegado o momento de suas atividades. Estando a noite serena e bela,
decidimos passá-la ao relento, junto a uma boa fogueira, eu agasa-
lhado num cobertor grosso, os canoeiros em esteiras de palha; serviu-
me de cama um grande couro sêco de boi. No dia seguinte continua-
mos a viagem. Dêsse ponto para cima, a queda do rio é um pouco
menor, mas o aspecto geral permanece o mesmo. A massa d'água
tinha menos profundidade e era interrompida por grandes blocos de
granito, mais numerosos nas margens, e maiores junto à orla da
mata onde formavam amontoados densos. Por êsses pedaços de rocha,
que dividem o rio em vários canais, podemos avaliar-lhe a descida dos
altos espigões de Minas. Muitos dêsses blocos têm <te mistura certa
quantidade de mica; também se encontra ouro e até mesmo pedras
preciosas em todos os rios da região, sobretudo nos córregos que desá-
guam nêles. A água do Belmonte, que, na época da cheia, é amarela
e suja, estava então limpa e clara, pelo que podíamos, com a maior
facilidade, evitar as pedras que jaziam no fundo.
As vertentes dêsse vale sobem ràpidamente em colinas cobertas
de florestas primitivas, e as grandes massas rochosas surgem em grande
número, estendendo-se mesmo para dentro da mata. Muitas árvores
perdem as fôlhas nesse período, porém a maioria fica sempre verde,
de modo que a floresta estava meio verde, meio cinzenta; para Minas
êsse aspecto é ainda mais nítido; e o que é mais, parece que em
certos lugares as fôlhas caem por completo. As múltiplas variedades
de fôlhas tenras que vinham brotando, começavam a dar à paisagem
vida e beleza novas. O tapicuru (Bignonia) estava completamente
coberto de belas fôlhas pardo-avermelhadas, que despontavam; um
róseo lindíssimo adornava as cimas da sapucaia (Lecythis); a Bou-
gainvillea brasiliensis entrelaçava-se no tôpo das árvores, ainda em parte
desfolhadas, forrando-as tôdas com as flôres róseo-escuras; numero-
sas espécies de bignônias, algumas subindo a grande altura, outras
rastejantes, medravam luxuriantemente, enfeitadas de flôres variegadas,
róseas, violetas, brancas e amarelas. Nessa estação, seria impossível
ao melhor paisagista retratar a infinita multiplicidade de tintas que
matizam as frondes das gigantescas árvores dessas florestas; e,
se o conseguisse, qualquer pessoa que não tivesse admirado êsses rin-
cões, consideraria o trabalho simples devaneio da imaginação. Como
anteriormente, tivemos nesse trecho do rio grande trabalho em avançar
pela maneira acima descrita, entre inúmeras rochas e através de corren-
tezas; e o pessoal que rebocava a canoa chegou muitas vêzes a ficar
com água pelo pescoço, sem deixar, embora, a corda escapar-lhes
das mãos.
Já era grande o calor, e numerosas nuvens de mosquitos atormen-
tavam-nos; dizem, porém, que são muito mais intoleráveis durante
a cheia. Na tardinha do segundo dia, fizemos de novo a nossa foguei-
258 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 259

ra, num plano arenoso c~mtíguo ao rio; a l_ua resplandecia gloriosa- antes rondado pelo local; os rastos ainda estavam bem frescos, e
mente, prometendo-nos ót1~0 tempo para o d1a seguinte. Pela manhã, ocupávamos em examiná-los, quando a nossa atenção foi atraída por
todo o vale, por onde o no corre, estava submerso em espêsso nevoei- um bando de lontras, que, enquanto pescavam, deixavam-se levar rio
r~, que cedo, entretanto, se desfez. Quando a atmosfera clareou, abaixo. Erguiam freqüentemente as cabeças acima d'água, assoprando
v1mos um bando de grandes andorinhas, da família do andorinhão alto; mas, infelizmente, achavam-se além do alcance do nosso fogo.
(Cypselus) e de um~ ~spécie :-té :ntão desconhecida para mim, cuja Essas lontras (Lutra brasiliensis) 446 pegam no rio s:ande quantidade
plumagem negro-fuhgmosa nao tmha nada de notável; devido ao de peixe, cujos restos são largados nas pedras. ASSim, por exempl?,
vôo extremamente rápido, não pudemos conseguir nenhuma444_ nelas encontrei, muitas vêzes, a cabeça e os opérculos de uma espéc1e
. Prossegu~mos a viagem, contornamos grandes penhascos e atin- de Silurus • mostrando, num fundo castanho-amarelado, manchas pretas
gimos, dep01s, uma cachoeira de notáveis proporções. Transpuse- redondas; as lontras parecem de prezar essas partes duras. Muitos
mo-la, entretanto, sem descarregar a canoa, graças ao uso da reguei- outros animais apareceram ainda perto do nosso acampam;nto; as
ra, como havíamos. feito ~om as outras. Alcançamos em pouco um araras gritavam na floresta e grandes morcegos esvoaçaram sobre nos-
lugar em que o no deshza suavemente, sem muita correnteza. Na sas cabeças, no lusco-fusco. E depois as sombras da noite envolveram
marg:m norte há um rochedo alto e saliente, sob o qual existe uma completamente a região, ouviam-se os pios singulares e e~tranhos das
espéc1e de caverna; êsse lugar é conhecido por Lapa dos Mineiros. corujas e dos curiangos. A manhã seguinte t~~bém surgm su~m:rsa
Tal c~ve~na, como transparece do nome, é, a bem dizer, apenas uma em densa neblina, que, entretanto, não era fna, mas apenas umid~ .
reentranCla cober~a pela projeção da rocha, onde os viajantes costu- Logo, porém, poderoso sol tropical rasgava o véu espêsso que cobna
mam passar a nolte, quando o descambar do dia os surpreende nesse o vale, secando-nos de novo.
trecho, dado q_ue o. fogo f_ica aí perfeitamente protegido do vento e Dirigimo-nos, então, para a maior cachoeira que tínhamos de tr~ns­
?a chuva. Ma1_s alem, o no se aperta entre as montanhas marginais, por nessa viagem. Aí era necessário descarrel?ar a canoa numa Ili:a
Fzendo nas be1ras grandes ~locos de pedra. Paramos junto a um rochosa, e todos ajudaram a alçá-la para Cima da rocha, de tres
p~queno córrego; meus canoe1ros saltaram em terra, à procura, segundo pés de altura, operação grandemente dificultada pela água que estua-
d1sseram, de pedras de amolar. As pedras encontradas nesse ribeiro va embaixo. A bagagem inteira foi levada por terra para outra
rel?resent~vam diversas variedades de rochas primitivas existentes em extremidade da ilha; mas gastou-se muito tempo e canseiras sem co?ta
M_ma_s, m1stur~das a muita mica; meu pessoal, de que fazia parte um para transportar a canoa até lá, tirar-lhe a água, tornar a carrega-la
~meuo expenmentado, afirmava que, não raro, também o ouro era e pô-la flutuando.
a1 e~c~nt~ado, e que o aparecimento da pedra indicava com a certeza Enquanto minha gente se ocupava com a canoa, olhei casual-
a ex1s.tene1a do metal. No áspero álveo dessa corrente agreste, que desce mente para a margem oposta e, com grande espanto, vi um corpulento
atraves de br~nhas desabi~a.das, des~obrimos rastos de antas (Tapi- e robusto botocudo, sentado com sossêgo, de pernas cruzadas. Chama-
rus) e de cap1varasH 5, pac1hcos hab1tantes dessas solidões, a quem o va-se Jucaquemet e era bem conhecido do meu pessoal, que, entre-
córr~go garante água clara, mesmo na estação chuvosa, e as matas cir- tanto, não o tinha visto; estêve a ver-nos trabalhar, sem fazer a menor
cunJacentes o melhor refúgio- bulha. Mal se lhe distinguia o vulto bruno-acinzentado entre as ro_chas
Passa~os por outras pequenas quedas ou cachoeiras, que nos cinzentas; essa a razão por que êsses selvagens se podem aproximar
deram mUlto tra~alho para safar a canoa, visto a pouca profundidade fàcilmente sem serem percebidos, e por que os soldados, em outras
da água. A tardmha nos surpreendeu em um trecho apertado do rio; paragens, quando em guerra com êles, precisam de extre~a cautela.
acampamos num plano arenoso_da margem, entre rochas. Duas onças Pedimos-lhe que viesse a nado ao nosso encontro; mas ele nos de_u
vermelhas (onça suçuarana, Felts concolor, Linn.) tinham pouco tempo a entender que a corrente estava demasiado rápida e qu: voltana
ao Quartel do Salto, não muito longe daí, onde nos e_sperana. Tam-
_(444) Cypaelu s Illiger, 1811 , como nome genérico de a ve cedeu luga A
bém vimos na margem norte, alguns botocudos, que Iam à caça com
Scopoh 1777, t1po da atual famllla dos Apódidas a que pertencem os nossr ata P~ um dos soÍdados do quartel; recusaram-se igualmente a vir até nós.
(!ide nota .1.81). A espécie em questão é dec~rto impossivel de precisaros mJerhá
tôda probabilidade de tratar-se de Cypseloides fumigatus Streubel a q 1 ' d d · Passamos por um alto penhasco enegrecido, atravessado de veios de
taperás grandes de ~a ' litoosrâ nea.
. . côr " prêto-fuliginosa uniforme ' é a encontrada ' na f a1xa Ois
( 445) No ongmal Capybara"; Hydrochoerus hydrochaeri8 hydrochaeris (Linn 1766)
<= H . capybara Erxl., 1777). E' a capivara, no mundo atual o maior repres~ntante (* ) Af chamada " roncador " ; ao sul de Capitania, d~-se êsse _nome a outra espécie
da grande ordem dos Roe.d ores; mwtlplicando-se com a fecundidade pecwlar à genera- de peixe. Da primeira, não tive ocasião de ver um espéc1me perfeito.
lidade _dos seus companheiros de grupo zoológico, tornava-se às vêzes fiag 10
plantaçoes próximas dos rios, de que não se afasta. e para as (446) Refere-se Wied à ariranha, já antes mais de uma vez assinalada . Cf. a nota 251.
260 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 261

quartzo amarelo, e em pouco chegamos ao desembarcadouro (pôrto) no intuito de conservar-lhes as boas disposições. Encontrei aí a mulher
do Quartel do Salto. do capitão June, velha que também andava completamente nua, e
Perto dêsse pôsto militar, uma grande cascata torna o rio de todo {icara atrás quando o restante da horda prosseguira para a Cachoei-
inavegável, sendo necessário saltar nesse ponto e prosseguir em terra cinha. Além dessa mulher repugnante, encontramos outros botocudos
por sôbre uma montanha; acima do quartel, embarca-se novamente muito bem conformados, alguns belamente pintados à sua maneira.
em outras canoas. Minha bagagem foi descarregada e transportada Uns conservavam a côr natural do corpo, pintando apenas o rosto,
para o destacamento. O caminho galga uma ribanceira íngreme, onde com o vermelho brilhante do urucu, até ao nível da bôca; outros
se construiu um alpendre para os produtos vindos de Minas, aí desem- pintavam tôda a parte posterior do corpo, deixando unicamente, com
J:>arcados. Em cima, entra-se num mato alto, onde as Bromelia for- a côr natural o rosto, as mãos e os pés. Em capítulo posterior descre-
mam no chão um maciço impenetrável, e uma Begonia, de grandes vemos os vários modos por que se costumam pintar êsses silvícolas.
fôlhas, com cinco a seis pés de altura, medra em abundância•. Ergue-se Apareceu também Jucaquemet; era um dos botocudos mais altos
aí a Bombax ventricosa de Arruda, cujo tronco, de colossal circunfe- que já vira, e usava grandes batoques de pau nas orelhas e no lábio
rência, é mais fino perto da terra e abaixo da copa, porém inchado inferior. Pouco tempo atrás, segundo me contaram, tinha tido violenta
no meio, motivo por que os portuguêses lhe deram o nome de barri- disputa com o capitão Gipaqueiú, chefe de outra horda, chegando
guda447. Há várias espécies dessa Bombax bojuda, tendo uma a casca mesmo a agredi-lo, ao que êste lhe atirara uma flecha, ferindo-o de
lisa, apenas um pouco sulcada, ao passo que noutra o tronco é provido leve no pescoço. :ele nos mostrou a cicatriz. Desde então, Jucaquemet
de espinhos curtos, fortes e rombos; as fôlhas, que se dispõem isola- evitava cuidadosamente a zona por onde vagasse o capitão Gipaqueiú;
damente na copa rala e pouco ramosa, são palmadas. As flôres, de êle estava no Salto, na margem sul do rio, e o outro na margem norte,
côr esbranquiçada, são grandes e belas; assim que murcham, caem e nas cercanias do quartel dos Arcos, ocupado em caçar porcos-do-mato
cobrem o chão sob as árvores. O tronco pujante dessas árvores tem nas grandes florestas. A estrada para Minas passa junto aos edi-
uma medula muito mole e aquosa, na qual se encontram as grandes fícios do destacamento; dêste ponto para cima é transitável e está
larvas de inseto que os Botocudos procuram, assam num espêto de em boas condições; mas, como observamos antes, para baixo, até
pau e devoram àvidamente. Fazendo-se uma incisão na árvore, surge Belmonte, não pode ser usada. Poucos dias antes, uma tropa carre-
um suco ou resina viscosa. Nessa mata, uma pequena trilha solitária gada de algodão havia descido de Minas Novas, levando sal de volta,
conduz aos altos em que vive uma horda de Botocudos; muitos vão artigo que é muito escasso nessa região montanhosa. Alguns mineiros,
freqüentemente ao destacamento, trabalhando por certo tempo, se
que permaneceram no lugar para fins de comércio, muito lastimavam,
lhes dão alimento em paga.
igualmente, o abandono dessa tão gabada estrada no trecho inferior
A distância até o quartel, por terra, é de cêrca de meia légua;
do rio. Quando viajam por ela, dão aos burros, todos os dias, uma
o caminho sobe e desce através da mata, o que constitui sério obs-
mistura de óleo e pólvora, que dizem ser excelente remédio contra os
táculo ao transporte dos gêneros que devem ser todos carregados sôbre
efeitos das más pastagens, encontradas em certos pontos da estrada;
ombros humanos. O quartel do Salto fica à margem do rio, num
trecho mais largo do vale, onde, agora que estava baixo o nível costumam dar, também, um pouco de sal aos animais. Se o caminho
d'água, uma rocha nua e plana emergia, marginando de ambos os lados fôsse, de fato, tão bom quanto se afirmava, poderia manter-se, em
a corrente estreita. As construções são de barro, cobertas com grossas pouco tempo, importante comércio com Minas, de vez que o trans-
e compridas placas de casca de pau d'arco. O comandante, um cabo porte de mercadorias do Salto, elo rio, é feito com muita dificuldade,
(oficial subalterno) e homem de côr, recebeu-me bem, dando-me um e, mais ainda, precisam tôdas ser levadas, com grande trabalho, do
quarto num dos edifícios. Tinha somente dois soldados consigo, o desembarcadouro para o quartel. Poderia, pelo menos, construir-se
resto havia seguido em canoas para Minas; todos os quartos vazios uma boa estrada do Salto ao desembarcadouro, por onde se transpor-
estavam então ocupados pelos botocudos, a quem se permitia habitá-los tassem as mercadorias em carros de bois; mas a tanto não chega a
diligência dos habitantes dêsses sertões- E' de presumir-se que as quei-
(*) O gênero Begonia tem numerosas espécies no Brasil, algumas das quais atingem xas gerais feitas, ultimamente, sôbre as más condições de grande
altura e tamanho consideráveis. parte da estrada, determinarão, afinal, cuidadosa inspeção e completo
(447) O autor escreve "Barrigudo", evidentemente em vez de "barriguda" nome reparo dela.
pelo qual até hoje é conhecida na Bahia a bela árvore que nos Estados do sul conhecemos
por "Pa!neira ~ranca" ou simplesmente "paineira ". Seu nome botânico é Chorisia. speciosa Passei o dia seguinte no Salto, e parti, de manhã cedinho, em ex-
St. Hila1re, o_genero Bombax cabendo a plantas afins, como o "imbirussu" (B. cyathiforme) cur)ão à cachoeira vizinha, cujo rumor pode ser ouvido a grande dis-
e o imprôpnamente chamado "castanheiro do Pará" (B. affinis).
262 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 263

tância•44S. Para descortiná-la, precisei trepar em grandes blocos de caram da porta do meu quarto e quiseram ver a cabeça, que eu,
rocha, irregularmente empilhados uns sôbre os outros. O rio, em entretanto, escondi imediatamente na mala e tratei de mandar o mais
canal muito estreito, precipita-se rugindo e espumando para a bacia cedo possível para a vila de Belmonte. Se bem que os Botocudos,
que lhe fica abaixo, espalhando em redor uma nuvem de vapor e de como então verifiquei, se sentissem menos chocados com o desenter-
espuma pulverizada; pouco depois, forma outra cachoeira sôbre um ramento que os soldados do quartel, não é menos verdade que muitos
grande leito rochoso. Tornei a sentir aí o prazer que experimentara dêles se recusaram a assisti-lo. Satisfeitos os meus propósitos nesse
oito anos antes, contemplando as cataratas, muito maiores ainda, das interessante lugar, voltei ao desembarcadouro e embarquei de novo,
montanhas suíças. Muitas quedas do Belmonte, sobretudo a cachoeira de manhã cedinho, no segundo dia após a minha chegada.
do Inferno, parecem ter, em miniatura, alguma semelhança com a A descida do rio é muito rápida; chega-se em um dia à ilha da
Raudal de Atures e Maipures, de que Humboldt fêz tão interessante Cachoeirinha. Transpusemos, então, sem muita dificuldade, a Ca-
descrição .. , com a única diferença de que não são tão contíguas e choeirinha, ao passo que, subindo, fomos obrigados a alijar a carga.
pegadas como no imenso Orenoco. Entre os blocos rochosos, molhados Nossa canoa era muito grande; fazia, entretanto, muita água, porque,
pela espumarada do Salto, medram belas espécies de arbustos; entre precipitando-se rocha abaixo, a proa mergulhava na água, violenta-
outras, uma linda murta (Myrthus,) de fôlhas pequenas, então em flor. mente agitada pela queda; ficamos, por isso, completamente molha-
A esperança de obter um crânio de botocudo foi outro motivo dos, e um pequeno botocudo, que eu trouxera comigo, chorava, de
que me levou a passar aí mais um dia. No quartel dos Arcos, não mêdo, lágrimas copiosas. Com a mesma felicidade, a canoa desceu
me tinha sido possível um cadáver para êsse fim; agora, porém, fui por todos os outros saltos pequenos. Perto da Lapa dos Mineiros,
mais feliz. A curta distância das casas, dentro da mata, no meio de vimos uns botocudos na margem sul, ocupados em flechar peixes. Um
uma vegetação bela e florida, havia sido enterrado um jovem botocudo, dêles, o que estava mais próximo de nós, logo nos acenou para que
de vinte a trinta anos de idade, um dos mais turbulentos guerreiros o fôssemos buscar e lhe déssemos algo de comer. Desejando vê-lo
da sua tribo. Armados de picaretas, dirigimo-nos à sepultura e reti- mais de perto e fazer negócio com as armas dêle, fiz a canoa dirigir-se
ramos o importante crânio. Notamos, à primeira vista, uma curio- para a margem; impelido, porém, pelo apetite imperioso, não esperou
sidade osteológica: o grande pedaço de pau, usado no lábio inferior, pela nossa chegada, ficou com a água pelo pescoço e veio, então,
não só havia deslocado os incisivos inferiores, como também compri- ora a vau, ora nadando, sustentando as armas acima da cabeça, até uma
mira e apagara, nesse crânio novo, os alvéolos dos dentes, o que geral- massa rochosa, já bem para dentro do rio, onde se pôs a fazer sinais,
mente só acontece com as pessoas muito velhas. Azara, na sua "Viagem indicativos de rude e indomável impaciência. A mais curta dis-
pela América do Sul"•••, observa que os crânios dos americanos se estra- tância, vimos que o botocudo era um homem alto e robusto, traindo
gam muito mais depressa que os dos europeus. Tal asserto não está nos menores gestos a sua natureza selvagem. Abriu a bôca quanto
de acôrdo com o de Oviedo, citado por SouTHEY (Hist. Brazil, I. pôde e berrou; nuncut! (comer), ao que lhe atiramos às goelas,
630), segundo o qual as espadas espanholas não podiam marcar os alguns punhados de farinha; enquanto as engolia vorazmente, um
crânios americanos devido à dureza: provàvelmente, ambas as alega- dos meus, que entendia um pouco da linguagem dêsses silvícolas, pulou
ções são por igual infundadas. em terra, apanhou-lhe as armas e as trouxe para a canoa, em lugar
Embora tomasse o maior cuidado em guardar segrêdo sôbre a seguro, dizendo-nos que o homem era tão selvagem, que devíamos
minha intenção de abrir a sepultura, a notícia em pouco se espalhou estar prevenidos contra êle; ao mesmo tempo, colocou uma faca na
pelo quartel, causando forte sensação entre aquela gente ignara. Impe- extremidade do remo, apresentando-o ao aborígine, que pareceu mui-
lidos pela curiosidade, malgrado um secreto terror, vários se acer- to satisfeito com a roca; após o que nos pusemos ràpidamente ao
largo. O botocudo, cuja fome ainda não se aplacara, não perdeu a
(*) (Suplem.) A Corografia Brasllica, tomo 11, p. 79, refere-se nos seguintes esperança de alcançar-nos; correu um bom pedaço pela margem, atrás
têrmos a essa cachoeira: "Quando atravessa a cordilheira dos Aymorés, estreita-se
por entre dois montes de desigual altura (sendo o da banda do Norte, chamado da canoa, pulando de pedra~m pedra, nadando e vadeando; até
Monte de S. Bruno, o mais alto) e de repente precipita-se num pego, formando uma que, por fim, vendo que a canoa estava muito longe para ser alcan-
bica com mais de vinte braças de altura, cuja evaporação conserva ali uma eterna
nuvem; e a zoada ouve-se às vêzes em distância de quatro léguas". A parte final çada, voltou descontente para a floresta. Pouco depois encontr~mos
da narrativa mostra-se um tanto exagerada. dois outros selvagens, que também falaram conosco e fizeram 1gual
( **) Ansichten der Natur, p. 812.
(***) AZARA, VOflagu, etc., vol. Il, p. 59.
pedido de comida; não estávamos, porém, dispostos a entabular con-
versação com êles, e, o que é mais, não tínhamos tempo a perder.
( 448) O trecho da Corografia Brasilica, traduzido para o alemão no texto de À tardinha, quando a canoa descia a Cachoeirinha, bateu de encontro
Wied, está literalmente transcrito na presente edição.
264 VIAGEM AO BRASIL

a uma rocha e imediatamente estacou. Eu havia desembarcado antes,


e galgava a margem a pé, pois, não sendo bom nadador, não me queria
expor a um banho desagradável. Fiquei muito contente por ser
apenas um expectador distante do choque, que fêz se precipitarem
todos os da canoa uns contra os outros. A água começou a entrar e
o meu pequeno botocudo pôs-se novamente a gritar, angustiado; a
canoa, entretanto, safou-se sem acidentes e atingimos o quartel dos
Arcos antes do ocaso.
A minha chegada à ilha, encontrei um dos meus doente de febre,
o que me obrigou a permanecer uns dias no lugar; provido de boa
quina, curei-o logo. Segui, então, com alguns caçadores, para a Ilha
da Chave, várias léguas rio abaixo, onde, segundo nos informaram,
não só encontraríamos muitas anhumas, como abundância de caça em
geral. Durante a descida matamos algumas araras e encontramos na
margem diversos e belos arbustos floridos; nas cimas densamente entre-
laçadas da floresta, distinguimos, sobretudo, as fôlhas róseas da sapu-
caia e a Petraea volubilis, com os compridos cachos de flôres
azul-ceies tes •.
A tardinha, debaixo de aguaceiro, chegamos ao fim da jornada
e desembarcamos na ilha arenosa. A chuva diminuiu um pouco à
noite, mas um abrigo sêco e sossegado para a dormida estava fora de
cogitação; metemo-nos, completamente encharcados, em umas velhas
e estragadas choças de pescadores, cujas cobertas de fôlhas havia muito
se arruinaram. Tentamos proteger-nos da chuva com cobertores e
couros de boi, fizemos uma fogueira para nos aquecer e secar; mas,
como a chuva caía sem cessar, mal podíamos tê-la acesa e, assim,
esperamos com impaciência pelo fim da incômoda noite. Na manhã
seguinte bem cedo, mandamos gente à floresta, em canoa, a fim de
cortar lenha para a fogueira, e bem assim palmas, varas e cipós, com
que pudéssemos construir uma choça grande e espaçosa. O tempo tor-
nou-se um pouco mais favorável; mas como o nosso trabalho fôsse
freqüentemente interrompido por pancadas d'água, tomou-nos êsse
e mais todo o dia seguinte até acabarmos a construção. Aí ficamos
residindo eu e mais quatro dos nossos, além de um botocudo chamado
"Aó", que me acompanhara para caçar. Ficavam sempre duas pessoas
de guarda na ilha e cozinhando enquanto as demais iam à caça na
floresta .
Um dia, mal tinha a canoa saído para uma dessas excursões,
quando vi os caçadores fazer fogo, voltando imediatamente. Tinham
percebido as quatro patas de um quadrúpede saindo fora d'água,
tomando-as como de um porco morto, mas, em se aproximando, deram
com enorme serpente, que se enroscara, em muitos anéis, numa grande
capivara, matando-a. Descarregaram, de imediato, dois tiros no mons-

( *) (Suplem.) Petraea denticulata, ScHRADER, op. clt., p . 712.


ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 265

tro, e o botocudo mandou-lhe uma flecha; só então abandonou a


prêsa e, não obstante o ferimento, fugiu como se nada houvera. Minha
gente apanhou a capivara ainda perfeitamente fresca, acabada de
morrer, e voltou para me relatar o acontecimento. Desejando muito
obter aquela extraordinária cobra, mandei de novo e imediatamente
os caçadores atrás dela; mas foram inúteis tôdas as tentativas. O tiro
perdera a fôrça na água, e a flecha foi encontrada partida na margem
por onde a serpente a tinha arrastado; ferida ao de leve, retirou-se
para tão longe, que, a meu grande pesar, não pôde ser novamente
encontrada. ·
tsse réptil, a sucuriúba do rio Belmonte, ou "sucuriú", como a
chamam em Minas Gerais, é a maior espécie de cobra do Brasil, pelo
menos das regiões acima mencionadas; estão inçadas de erros as des-
crições que dela fazem os naturalistas. Daudin citou-a com o nome de
Boa anaconda. Encontra-se em tôda a América do Sul, atingindo o
maior tamanho dentre as espécies do gênero, nessa parte do mundo.
Devem-se-lhe tôdas as denominações alusivas ao "habitat" aquático das
cobras Boa, pois ao passo que outras jamais vivem na água, a sucuriú
ou sucuriúba vive constantemente dentro da água ou próximo dela,
sendo, assim, verdadeiro anfíbio, no sentido literal da palavra. Está
longe de ter um belo colorido: o dorso é de um tom prêto-oliváceo,
percorrido longitudinalmente por duas fileiras de manchas pretas
redondas, dispostas aos pares e, em geral, com bastante regularidade.
Nas paragens solitárias, onde não vai o homem, atinge o tamanho
prodigioso de 20 a 30 pés, e até mais, de comprimento449 • Daudin,
na sua História Natural dos Répteis, a supõe africana e tem-na
como sendo a genuína Boa constrictor; esta porém, se é que se
encontra também na Africa, habita todos os rincões do Brasil, onde
é a Boa terrestre mais comum e conhecida em tôda parte por "jibóia" 450 •
O Belmonte é o mais sulino dos rios da costa oriental em que se
encontra a sucuriúba; para o norte, ocorre universalmente. Contam-se
muitas fábulas a respeito do modo de vida dêsses imensos répteis, repe-
tindo-se ainda nos tempos modernos o que disseram os velhos via-
jantes. Os relatos sôbre o sono invernal das referidas cobras não
são também bastante precisos. Diz-se, na verdade, que nas lagoas
dos campos, durante a estação sêca, caem em letargia, mas tal não
acontece nos vales e matas do Brasil, onde a água é sempre abun-
dante e onde não vivem propriamente em pântanos, porém em gran-

(449) Eunectes murinus (Linn., 1758) . As dimensões verificadas com satisfatória


precisão, em exemplares muito raros aliás, não ultrapassam 12 a 18 metros de compri-
mento. O lncoerclvel pavor que Inspiram as sucurls em todo Interior do Brasil,
onde são mais temidas do que as onças, explica o exagêr!l que atribui, não de raro.
dimensões gigantescas, a indivlduos de modestas proporções. Leia-se a êste propósito o
interessante estudo monográfico de A. do Amaral, dado à luz no vol. X (1948) do
Boletim do Museu Paraense (pp. 211-287).
(450) A " jibóia" (Constrictor constrictor (Linn .)) , de fato, é cobra exclusivamente
americana.
266 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 267

des lagos, em lagoas que jamais secam, rios e córregos, de margens ergueu a cabeça acima d'água para tomar fôlego, mas o nosso chumbo
ensombradas pelas florestas seculares. era muito fino e a canoa tinha pêso demais para avançar ràpidamente.
~o dia da malograda caça à cobra, meu pessoal matou muitas Não tínhamos balas, e êsses animais só podem ser alvejados quando
aves mteressantes, entre . as quais uma pequena águia escura, com põem a cabeça fora d'água, perto .da canoa; a po~taria, então, dev: ser
penacho na parte postenor da cabeça, espécie até agora não descri- feita na orelha. O apavorado ammal perdeu mmto sangue, mas amda
t~•41n,45;lém de al~mas . araras e . um grande mutum (Crax alector, assim escapou, o que dificilmente conseguiria, se tivés~emos cães con?s-
Lmn.) , que. nos ~o1 mmto ~em-vmdo à mesa. A águia ia justamente co. A facilidade e desembaraço com que nadam sao-lhes de mmta
?Pr~sar um }u.Pat1 (marsup1al) 453 quando foi atirada. Nela, tudo valia quando fogem aos caçadores. Se ?em que a .anta, gra~de e pesado
m~Icava audaCia e coragem; . os olhos eram vivos e fogosos e as com- animal de seis a sete pés de compnmento, seF protegida por um
pndas pe.nas da parte postenor da cabeça davam-lhe bela aparência. couro muito espêsso, os portuguêses sempre a atiram com chumbo e
Contm~ando o tempo chuvoso a impedir-nos de caçar, e sobre- não a bala. Para isso, necessitam de espingardas de cano longo e
tudo própn~ _rara se perseguirem as anhumas, aproveitei a oportuni- cargas grandes de chumbo grosso; preferem, igualmente, atirar com
d.ade para VlSltar o Quartel dos Arcos, onde, durante a minha ausên- chumbo doze a dezesseis vêzes num animal, a carregar com bala.
Cia, chegara uma nova hord~ de bot~c~dos: cujo ~~efe, Maquienguiang, Para que possam, nas caçadas, matar qualquer espécie de animal,
e~a chamado,. ~elos portugueses, cap1tao G1paque1U (o grande capitão). os brasileiros levam sempre as espingardas carregadas com chumbo, e
Ja era a nmtmha, e achava-me a curta distância do destacamento assim podem matar ora um porco selvagem, ora uma anta, ora uma
quando, po.r acaso, vi num banco de areia um grande casal d~ jacutinga (Penelope). A anta é procurada principalmente por causa
an_tas (Tapzms) 454 • Para tornar mais seguro o êxito da caçada, man- da carne, sendo os cães muito úteis então. E' geralmente encontrada
dei o meu botocudo, Aó, rodear a mata e cortar-lhes a retirada. Isso pela manhã e à tardinha, nos rios, onde gostam de ir tomar banho
deu bom resultado; ao se aperceberem de que lhes tinham impedido para se refrescar. Se o animal é gravemente ferido e perde um pouco
de retroceder, os animais meteram-se na água e tentaram alcançar a as fôrças, os brasileiros muitas vêzes o atacam, a nado, de faca na mão,
margem oposta sendo barrados pela nossa canoa. Uma delas voltando para cravar-lha. Assim justificam o costume do país de levar-se sempre
de novo atingiu o banco de areia e, se não tivesse arrebentado a cord~ um punhal ou faca à cintura, costume que até os padres observam,
do arco, dando-lhe tempo de fugir, teria recebido uma flechada do meu e de que resultam muitos assassínios.
botocudo. Atiramos diversas vêzes na outra, que mergulhou e depois Detido pela infrutífera caçada, só cheguei ao destacamento noite
avançada; e pela manhã cedinho fui acordado pelos botocudos recém-
.<*) Falcotyrannus, espécie nova: macho, vinte e seis polegadas e sete linhas de vindos, impacientes por travar conhecimento com o forasteiro. B.ate-
:;ompr~mento; penas da parte posterior da cabeça alongadas e erectas; partes traseiras
b a cabe~ e do pescoço, lados do pescoço e parte superior do dorso cobertos de penas ram violentamente à porta, que estava fechada, até que eu a abnsse,
rancas e extremidades escuras, superpondo-se de tal jeito que a parte branca fica enchendo-me, então, de manifestações de amizade. O capitão Gipa-
~scondida; partes restantes do dorso castanho-escuras; as maiores coberteiras superiores
das asas ~ pouco mosqueadas de branco; rêmiges com algumas faixas transversais queiú se agradara muito de mim, porque lhe disseram que eu era
e um preto mais carregado ; cauda robusta e larga com qua tro faixas transversais um admirador dos botocudos, e ardia de impaciência para o conhecer
e!~anqulçadas; penas das coxas, pernas. parte inferior do dorso, uroplgio e crissum,
~rtel~uras, com linhas brancas estreitas e transversais; pés emplumados até aos a êle, grande chefe. Era de estatura mediana, porém, forte e musculoso;
usava nas orelhas e no lábio inferior grandes batoques de pau; o
Ç 4~1) Spizaetu.s tyran~us (Wied) é o nome atual do belo gavião prêto descoberto rosto, até à bôca embaixo, estava pintado de vermelho vivo; pin-
1
P~éo VlaJante·naturahsta. E ave da mata, que ocorre em vasta área desde 0 México
~ o extremo sul do Brasil, sem ser todavia comum em qualquer parte De porte tara uma linha negra sob o nariz, de orelha a orelha, deixando, porém,
_em modéesto, em face dos gaviões de penacho maiores, como a Harpia ·rivaliza com ao corpo a côr natural. Mostrava-se sincero e bem intencionado para
e1es, por m, em audácia e valentia. '
(452) Cf. nota 287. com os portuguêses, e nunca houve aí razão de queixa contra o seu
.. (458~, Aos marsupiais menores que os gambás do gênero Didelphis chama 0 ov comportamento. Embora não se distinguisse externamente d~s out:os
~~ gê~~:~ ;'f'aÁ9ulca~ e "Ji·upatls ", correspondendo êstes últimos às espé~ies pertencinte~ membros da tribo, os conterrâneos tinham-no em grande consideraç.ao,
. t á elacd lrus urm_e ster, entre as quais se conta M etachirus myo.turm Wled
obJe o prov ve a observaçao referida no texto. ' o que por vêzes o tornava útil aos próprios portuguêses. De uma fe~a,
b d(454) " Anta" ou "tapir " ; têcnicamente Tapi rus t errestris (Linn 175S)
asea o em .:Ta.piireté" de Marcgrave. E' o maior de todos os mamfter~; terrestres do
nome
por exemplo, quando êstes pela primeira vez entraram em boas r~laç?es
Brasil. A <;~e~c1a . reC?nhece apenas uma espécie indlgena, embora os matutos e caçadores com os Botocudos, um outro chefe apareceu no quartel e ped1ll:, Im-
~creditem d;stmgu1r d:versas, sob as denominações de "anta sapateira", •anta gameleira",
an~ xré , etc. Nao obstante, é plausfvel a existência de várias raças geográficas na portunament,!!, grande quantidade de artigos de ferro. Como ~st~vesse
esp e meana, cuja pátria tlpica é o Pernambuco (cf. TBOMAS, Proc. zool. Soe. Lond.,
1911, p. 155) , conforme se depreende do estudo comparativo dos crânios e do vulto
então reduzida a guarnição do destacamento e numerosos sllviCol~s
acentuadamente diferente entre os espécimes de diversa procedência (cf J AL B u o cercassem, achou·se prudente anuir-lhe aos desejos. Pouco depois
Amer. Mus. Nat. Hist ., XXXV, Ul6, p. 566 ). · • LEN, u •
268 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 269

chegava o capitão Gipaqueiú; os portuguêses queixaram-se do que aí ao fogo, e mastigam-nos. Contém uma medula muito nutritiva, cujo
havia acontecido, ao que êle se internou na mata, obrigando os con- gôsto é exatamente o da n~ssa batata. . .
terrâneos a restituir grande parte dos instrumentos. Abraçou-me várias Atingido o meu propósito e conhecidos os botocudos que haviam
vêzes à moda português~, mas a nossa conversa foi muito curiosa, pois chegado ao quartel, voltei para a ilha da Chave, onde meu pessoal
nenhum de nós entendia o outro; entretanto, o capitão fêz-me logo me aguardava. Numa ilhota vizinha, coberta de mato denso, e ape-
compreender que estava com muita fome e esperava que lhe desse nas separada da terra firme por um raso e insignificante canal, tinham
algo de comer. Satisfazer-lhes o apetite insaciável é sempre a mais descoberto veados, matando um. Era da espécie chamada "guazu-
urgente necessidade dêsses selvagens. pita"455 por Azara •, a mais comum em todo o Brasil. Achamos a
Como eu o tivesse regalado com farinha de mandioca, êle se carne dêsse animal muito diferente do que é no da Europa; está longe
tor~10u ainda mais amável, ~andando buscar à choça da floresta alguns de ter bom sabor, é extremamente magra, sêca e de fibra muito dura,
objetos para trocar. Entre estes se destacava uma buzina curta ("cunts- podendo apenas ser comparada com a carne de um~ va.ca v~lha. C?n-
chun cocann")•, feita com o rabo do tatu grande (Dasypus maximus, tudo, já que a escolha de víveres nesses desertos sertoes e mmto restnta,
"Grand Tatou" ou "Tatou premier" de Azara)••. Os selvagens usam-na qualquer animal comível nos era bem-vindo. Passamos outra semana
para conclamar a população da floresta. na ilha, durante a qual choveu incessantemente; os caçadores, p~rém,
Defron~e do quartel, do outro lado do rio, existe um bananal, já
pagaram-me dos incômodos que isso me causou, obtendo vános e
antes mencwnado como obra de alguns botocudos; havia nêle algu- interessantes acréscimos para minhas coleções. Tôda manhã e tôda
mas palhoças abandonadas, onde tinham sido enterradas duas mulheres. tardinha, no lusco-fusco, ouvia-se invariàvelmente o pio alto e intermi-
~or ~sse tempo, com. a chegada do capitão, queimaram as cabanas, pois
tente de uma grande coruja. Depois de muitas procuras, infrut.íferas,
pmais ocupam habitações que tenham servido de túmulos. Várias conseguimos por fim trazê-la; parece pertencer a uma espécie até
outras, entretanto, tinham servido nesse lugar; a vida e a atividade aqui não descrita••456; obtivemos também o grande urutau alvacento
reinavam na mata umbrosa, pois os recém-vindos não se haviam insta- e pintado (Caprimulgus grandis, Linn.), cujo pia?o forte 457 vai ecoar
lado somente na margem, porém muito mais para dentro da floresta. longe na solidão das florestas, além de outras hndas ~ves, e~tre as
Por tôda parte se viam rapazes de pele trigueira, uns tomando banho quais mencionarei ~ hei ja-flor prêto de cauda branca, amda nao. des-
no rio, outros fazendo arcos e flechas, trepando nas árvores atrás dos crito nas obras de história natural 458 • Caçaram-se também algumas hndas
frutos, fisgando peixe, etc. Os homens se dispersaram para todos os e avantajadas anhumas; elas fazem dêsse lugar o seu sítio predileto;
lados da mataria vizinha, chamando-se uns aos outros, apanhando ouvimos-lhes quase todos os dias o retumbante concêrto, e sua voz
lenha ou ocupando-se em outras tarefas. Formavam o quadro admi- sonora e singular era uma ordem para os meus caçadores pegarem logo
rável de uma república de selvagens construindo uma nova colônia, da espingarda459 .
e não se po.d ia contemplar sem prazer a atividade que reinava entre êles. (*) Essai8 su1· l ' histoire natUI·elle des Quadrupedes du Parauuay, voi. I , p. 82.
Quando ? cap.Itão Gipaquei~ chegou com sua gente ao quartel, (**) Stl·ix pulsatrix, assim chamada por causa da voz, que parece uma pancada,
sem orelhas; macho com I7 polegadas e 4 linhas de comprimento;. 44 polegadas. e 9
cada um trazia d01s paus compndos, como desafio à horda de Juca- linhas de envergadura; a maior parte da plumagem é de uma bela cor pardo-ferrugmosa
levemente acinzentada; uma mancha esbranquiçada na garganta; penas escapulares com
quemet, que esperavam encontrar aí, mas que, conforme dissemos antes, finas marmorizações de um tom mais escuro, bem como as asas e a cauda; penas das
ftca:~ prudentemente no Salto, na margem sul do rio. O capitão Cipa- asas e da cauda com faixas transversais mais escuras e mais claras; tõdas as partes
inferiores são de um amarelo-claro, pendendo, no peito e no ventre, para um ama-
quem permaneceu alguns dias, com o seu povo, nas proximidades do relo-ferruginoso.
quartel, internando-se depois nas florestas da margem norte, à procura (455) Mazama americana (Erxbelen), "veado mateiro" ou "guatapará", da nossa
dos vários frutos que então amadureciam. Isso é costume entre todos linguagem vulgar. .
(456) Pulsatrix pulsatrix (Wied) na nomenclatura atual. Entre as nossas coruJa.s é
os ~elvagens. Conhecem a época exata em que os frutos sazonam, uma das mais imponentes; abunda nas matas do sudestt; da Babl~, tendo eu trazidO,
e nmguém os detém quando é tempo. Era agora a época do cipó, por ocasião de minha viagem àquela zona, exemplares dos no~ Gongog1 e Jucurucu.
(457) Viajando pelo baixo Rio Doce (Estado do Esplnto Santo), pude ouvir a voz
planta trepadeira que êles chamam "atschá"•••. Amarram em feixes singular dessa espécie de mãe-da-lua (Nyctibius grandis (Gmelin)) ao pé mesmo do abarra-
camento mandado construir à margem do rio São José; nenhuma voz de ave, das
os ramos verdes dessa planta, levando-os para as palhoças; assam-nos que conheço, a ela se assemelha, pois é antes um berro cruclan~e, que dir-se-ia lançado
por um grande animal transido de pavor (cf. Pinto, Arq. de Zoologm do Est. de Slloi Paulo,
IV, I945, pg . . 60). E' portanto singular que a tenha Wied procurado reproduz r como
(*) Em vez do rabo de tatu, os Coroados de Minas Gerais, mais civilizados, um piado, ou assobio ("Ptiff"). . (t IV
usam para isso o chifre de boi. Cf. v. EscHWEGE, Journal von Brasilien, fase. 1. (458) Como reconhecia o autor ao referir-se a ela em seus BettrtJ.ge omo . '
(**) D. F. de AZARA, Essai8 sur l ' hi8toire naturelle des Quadrupédes du Paraguay,
pág. 52), esta espécie já fôra anteriormente descrita por Vielllot sob o nome de Trochtlus
etc., vol. li, p. 132. tuscus, feita mais tarde tipo do gênero Melanotrochilus. d
(459) Ell} parte alguma a anhuma parece hoje animal multo co.mum; mas, on e
(***) Es a planta é provàvelmente uma Begonia: trepa alto nos troncos das árvores. porventura ainda existem, a favor de condições particularmente propiCiaS, apresentam-se
270 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 271
A 25 de setembro deixei a ilha e voltei, com todo o pessoal, ao Quando saltamos na margem oposta, encontramos todos os selva-
quartel. Em caminho encontrei um grupo de botocudos, sentado gens reunidos em grupo, e formamos um semicírculo em tôrno dêles.
em redor da fogueira; pertenciam à horda do capitão Gipaqueiú e O combate começava. De início, os guerreiros de ambos os lados sol-
tinham atravessado a vau o rio, raso nesse trecho, estabelecendo-se, tavam gritos curtos e rudes em desafio mútuo, cercando-se como cães
contra o costume, na margem sul. Muitos meninos pularam para a raivosos, ao mesmo tempo que aprontavam os paus. Em seguida, o
canoa, querendo ir conosco até o destacamento. Mal havíamos chegado capitão Jeparaque adiantou-se, passeou entre os homens, olhando som-
e aparecia outro bando de selvagens, vindo da margem sul; era a briamente para diante, de olhos esbugalhados, e cantou, com voz trê-
horda do capitão Jeparaque que eu ainda não tinha visto. Formava mula, uma longa cantiga, que provàvelmente descrevia as afrontas
um quadro estranho tôda aquela gente escura erguendo os arcos recebidas. Dessa maneira os adversários se tornavam cada vez
e as flechas acima da cabeça, passando o rio a vau; ouvia-se de longe mais inflamados; de súbito, dois dêles avançaram, empurraram-se pelo
o barulho feito na água pelo cortejo. peito, obrigando o outro a recuar, e começando, então, a terçar os paus.
Todos os selvagens traziam aos ombros um feixe de varas de seis Um desferiu com tôda a fôrça uma pancada no outro, sem escolher lugar;
a oito pés de comprimento, para o fim de lutar com os capitães êste suportou o primeiro ·ataque séria e calmamente, sem tugir; che-
June e Gipaqueiú e as suas hordas; o último, entretanto, estava gou depois a sua vez, e assim se arrumaram pauladas violentas, cujos
longe, na floresta, e o próprio June, com o seu bando, encontrava-se vestígios por muito tempo ficaram visíveis nos corpos nus, sob a forma
no momento ausente do quartel. Os silvícolas correram, com sofre- de grandes inchaços. Havendo nos paus muitas pontas resultantes dos
guidão, todos os compartimentos das habitações, atrás dos adversários; galhos cortados, o efeito das pancadas nem sempre se limitava às
mas, não os achando, deixaram os paus no quartel, em sinal de inchações, pois o sangue escorria da cabeça de muitos dos comba-
desafio, partindo novamente à tardinha. Estiveram, porém, nos dias tentes. Logo que dois dêles acabavam de malhar-se dessa bela maneira,
subseqüentes, em constante comunicação entre as duas margens, como outros dois se adiantavam; muitas vêzes, diversos pares pelejavam
em geral fazem quando o rio está raso 4 so. A 28, o capitão Jeparaque ao mesmo tempo: mas nunca se agrediam à mão. Quando o duelo
e seu povo vieram mais uma vez; traziam de novo os paus compridos, se tinha prolongado por algum tempo, voltavam a fitar-se com olhar
e perguntaram pelo capitão Gipaqueiú, ainda aqui em vão; contudo, grave, soltando gritos de desafio, até que o heróico entusiasmo os
tendo ficado sempre pelas proximidades, tiveram, por fim, oportu- tomava de novo e punham os paus a funcionar.
nidade de satisfazer o seu desejo de luta. O capitão June, com os Enquanto isso, as mulheres também brigavam valentemente; cho-
três filhos crescidos, e mais o resto de seus homens, aceitou o desafio, rando e berrando, seguravam-se pelos cabelos, esmurravam-se, unha-
aliando-se ao capitão Gipaqueiú. vam-se, arrancavam-se das orelhas e do lábio inferior os batoques
Numa bela manhã de domingo, estando o céu esplêndido e sereno, de pau, espalhando-os como troféus pelo campo de batalha. Se alguma
vimos os botocudos do quartel, alguns com o rosto pintado de prêto, punha por terra a adversária, uma terceira, que estava por detrás,
outros de vermelho, surgir de repente e atravessar o rio a vau, em agarrava-a pelas pernas, derrubando-a também ao chão, e assim se
direção à margem norte, todos com feixes de paus aos ombros- Pouco iam prostrando umas às outras. Os homens não se rebaixavam a
depois, o capitão June e sua horda saíam da mata, aonde uma porção bater nas mulheres do lado contrário, mas apenas as empurravam com
de mulheres e crianças tinham buscado refúgio numas choças grandes. a ponta dos paus, ou davam-lhes pontapés nos flancos, fazendo-as rolar
Mal se soube, no quartel, do próximo combate, uma multidão de umas sôbre as outras. Os gritos e o alarido das mulheres e das
espectadores, entre os quais os soldados, um sacerdote de Minas e crianças, vindos das malocas vizinhas, ainda mais aumentavam o efeito
vários forasteiros, a que me juntei, acorreu ao campo de batalha. Por dêsse impressionante espetáculo.
precaução, cada um levou, sob um casaco, uma pistola ou faca, para o E por êsse modo o combate durou cêrca de uma hora; embora
caso de a briga virar contra nós. todos dessem mostras de cansaço, alguns ainda mostravam coragem e
perseverança, rodeando-se aos gritos de desafio. O capitão Jeparaque,
sempre em soc~edade mais ou m~nos numerosa. Freqüentam sobretudo lugares apar-
tados; mas, nao temem a proximidade do homem, quando não se sentem por êle figura principal do bando ofendido, resistiu até o fim; todos pareciam
molestadas; as im é que, no sul de Goiás, um vilarejo outrora denominado Goiabeira cansados e exaustos, quando êle, ainda não disposto a fazer a paz,
passou a chamar-se Inhumas, pela abundância das ditas aves em suas cercanias e até
mesmo no próprio povoado. A êsse propósito veja-se a noticia Inserta no tomo XX continuou a cantar a trêmula cantiga e a encorajar sua gente a
(págs. 23 e 48) da Rev. do Museu Paulista.
persistir no combate, até que fomos a êle e batemos-lhe no ombro,
(460) E' contuso o registro das datas nesta et~pa de viagem. De qualquer
maneira, não é possivel que o nosso viajante estivesse ainda no Quartel dos Arcos (Ilha dizendo-lhe que era um guerreiro valente, mas já estava em tempo de
da Cacboeirinha) a 28 de setembro, uma vez que nessa data como se verá pouco fazer-se a paz; ao que, por fim, se retirou subitamente do campo,
adiante, aportaria êle na vila de Belmonte. '
272 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 273

voltando para o quartel. O capitão June não mostrou tanta energia; curando resistir contra a violência da corrente, na época da cheia;
sendo velho, não tomou parte no combate, ficando constantemente na por vêzes, afirmam os pescadores, bate no fundo das canoas, parece que
retaguarda. com a cabeça, enquanto come a lama e o Byssus, que habitualmente
Todos nós deixamos então o campo da luta, juncado de batoques aderem ao fundo das embarcações.
de orelha e de paus quebrados, e voltamos para o Quartel. Aí A primavera já ia muito avançada, e ouvíamos freqüentemente,
encontramos os velhos conhecidos Juquereque, Medcã, Aó e outros nas florestas, a voz forte e grave do mutum (Crax alector, Linn.)
lastimàvelmente cobertos de pisaduras; mas não ligavam importân- que ecoava pelas brenhas, facilitando muito a caça dessa grande e bela
cia ~os membros inchados, demonstrando até que ponto pode o homem ave. Ela aparece em maior quantidade na época em que os rios enchem.
castigar-se; chegavam a sentar-se ou a se deitar sôbre as feridas aber- Passamos duas noites nas coroas do rio, o que nos deu a oportuni-
tas, comendo àvidamente a farinha que o comandante lhes deu. Os dade de matar araras e outras lindas aves. Perto de uma dessas
arcos e as flechas dos silvícolas ficaram, durante todo o combate, coroas não longe da bôca do Obu, encontramos numerosos macacos
encostados às arvores vizinhas, sem que lhes tocassem; dizem, entre- (ou "micos"), entre os ·quais uma espécie de peito amarelo, aí conhe-
tanto, que, em tais ocasiões, já aconteceu algumas vêzes largarem os cida por "macaco de bando"*462.
paus e pegarem as armas, motivo por que os portuguêses não gosta- A 28 de setembro alcancei a vila de Belmonte. Parti para o
ram .muito de semelhantes pelejas próximo dêles. Só algum tempo Mucuri logo que terminei os preparativos necessários à viagem; estando
dep.?:s soube da razão do com?ate, de que tinha sido espectador. O o tempo, porém, extremamente desfavorável, tive que arrostar com
cap1tao June, com seu povo, estivera caçando na margem sul do rio, nas muitas dificuldades. Fui obrigado a atravessar a cavalo o Corumbau
terras de Jeparaque, matando alguns porcos-do-mato. f.ste se sentiu e o Caí, então muito cheios, e depois a continuar a jornada, comple-
grandemente insultado; pois os Botocudos sempre respeitam, mais ou tamente encharcado, ao longo do litoral, sob chuvas torrenciais. Alguns
men~s estritamente, os limites das zonas de caça, que, em geral, têm viajantes portuguêses, com quem nos encontramos, informaram-nos
o cmdado de não ultrapassar; tais infrações constituem os motivos que tinham topado com os Patachós no Caí, mas do outro lado do
habit.uais das querelas e guerras. Um único combate igual ao acima rio; não vimos nenhum, o que, nesse lugar solitário, nos foi mui-
descnto ocorrera antes, perto do destacamento dos Arcos; foi, portan- tíssimo agradável.
to, um acas~ muito feliz o que permitiu assistir a êsse espetáculo Após muitas fadigas, sem, contudo, qualquer acidente sério, atin-
durante a mmha curta estada no lugar. Muito raramente os estran- gimos Caravelas e Mucuri, onde passamos três semanas com os Srs.
geiros conseguem testemunhá-lo, embora seja tão importante para os Freyreiss e Sellow, que tinham sido meus companheiros na fase prece-
que querem conhecer perfeitamente os selvagens e o seu caráter. Pouco dente da viagem; e em seguida, voltei a Belmonte. Na ida para lá,
depois da minha partida do Quartel, segundo me informaram, deu-se no no do Prado, ou Jucurucu, tive ocasião de conhecer os Macha-
aí ~~ co~bate ai':da maior, por ocasião da volta do capitão Cipa-
(*) Cebus :tanthosternos, espécie nova: de membros pardo-escuros e fortes e
quem, amigo e aliado do capitão June. cauda redonda, cab~ça grande, barbas pardo·escuras, corpo pardacento, peito e garganta
Como vários negócios exigissem a minha volta ao M ucuri, deixei amarelados; compnmento total 82 polegadas e 8 linhas ; do qual a cauda perfaz 17
polegadas e 7 linhas.
a ilha da Cachoei~inha no. fim de setembro e desci o rio para a vila
de Belmonte. A viag:m fm um pouco demorada, porque, a êsse tempo, (462) Cebus variegatus Et. Geoffr., 1812, da presente nomenclatura. tste macaco
as ~guas es.ta~am baixas; ~ caça, porém, ao lado da observação de participa da grande obscuridade que envolve a zoonfmia das espécies do complexo e
intrincado gênero Cebus Linn.
mmtas cunos1dades naturais, tornou-a agradável e divertida. Nas Cebus xanthosternos Wied (nome geralmente creditado a Kuhl, B eitr. Zool., 1820,
ma~gen~ do ~io, agora ?escobertas, vimos os buracos feitos pelo extra- p, . 35), descrito, ao que parece, de exemplar fornecido pelo nosso ilustre viajante (cf.
Bettr. Naturg. Bras., 11, p. 96), é geralmente tido, a exemplo de Elliot (Monoor. o!
o~dmá~w pei~e q~e LI.?eu ~?am~u Loricaria plecostomus; é conhe- Pnmates, 11, p. 95), como sinônimo de Cebus varieoatus Et. GEOFFROY SAINT-HILAIRE
(Ann. M'!Ls. Hist. Nat. Paris, XIX, 1812, p. 111), espécie baseada num individuo de
cido•. ai, por cach1mb~ ou cach1mbau"; para o norte, nas margens desenvolvimento aparentemente incompleto e sôbre cuja procedência se desse apenas,
do no Ilhéus, é denommado "acari", e Marcgrave, que o observou em vagamente, "vient sans dou te du Brésil ". Opinando·se em contrário, como fêz TaoUESSART
(Catai. Mamm., I, p. 89), deve, a meu ver, aceltar·se o nome de Wied como válido
Pernambuco, descreve·o com o nome de "guacari"461. Quando quer para a espécie que Fato. CUVIER descreveu e figurou em 1820 (Mammalogie, llvr. XIX),
~om os nomes de Cebus monachus F. Cuv. e "Sai à grosse tête ". A slnonlmla desta
descansar, cava na margem buracos de pequena profundidade, pro- ultima com C. :tanthosternos é reconhecida pelo próprio Wied na obra supracitada (Beitr.,
li. p. 96). Ao mesmo macaco se aplica a denominação C. cucullatm Spix. E' uma
da.s espécies m~is variáveis em colorido, e tem·se como distribuída por tôda a faixa
" ( 461? , Não ~ possi-:e!, id!ntificar ~om precisão o peixe em questão, visto · como onental do Brasil, compreendida entre Rio de Janeiro e Bahia. Sôbre o assunto consulte-se
por acans • ou ~ua~ns , sao conhecidos muitos membros do gênero Plecostomus, a Angel Cabrera, "Notas sobre e! gênero Cebus" na Rev. de La Real Acad. de Ciencias
que pertence a mamna dos "cascudos" (fam. dos Loricaríidas). Todavia é provável de Madrid, tomo XVI, p. 221 e ss (1917); 'Oliv. Pinto, Pap. A1>uls. Dept. de Zool.,
tratar·se de Plecostomus punctatus Vai. ' I, p. 11I e ss. (IU1).
274 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 275

caris, já por mim freqüentemente mencionados. Desejava muito ViSi- pelo coaxar forte e estranho das rãs•, pelo assobio melancólico da
tar uma aldeia, que, como disse, foi fundada por êsses selvagens, mãe-da-lua 463 (Caprimulgus grandis, Linn.), e os altos pios das coru-
longe do Prado, rio acima. Subi por isso o rio a partir da fazenda jas nas florestas escuras. Já era assaz tarde da noite quando
onde, no mês de julho, havia esperado em vão pelos Patachós. Era alcancei o destacamento de Vimieiro, onde estão situadas a resi-
muito fácil distinguir, nas margens, as diferentes camadas superpostas dência e as plantações do Senhor Balançueira, juiz da vila do Prado,
de areia; e eu observei que, cêrca de 10 pés abaixo da superfície, num alto espigão que acompanha a margem do rio. O dono da
grande quantidade de água corria daquelas camadas para dentro do casa estava ausente; mas tive, por sua ordem, amigável acolhida e
rio. :tsse vasto acúmulo de água na terra explica fàcilmente o rápido bom pouso para a noite. O som da música e da dança vinha das casas
crescimento dos rios durante a estação chuvosa nos países quentes. dos índios, que aí formavam dez famílias.
Era então novembro, auge da estação chuvosa nessa região, quando O dia seguinte descerrou-me um magnífico panorama de matas.
tôdas as lagoas estão cheias. Até onde alcançava a vista só se viam as cimas verde-escuras e som-
Mais acima, as margens do rio apresentam cenários muito pito- brias das árvores, que se adensavam em matas virgens e impenetráveis,
rescos; destaca-se, entre êstes, certo trecho da margem sul, chamado onde o rude Patachó e o Machacari dividem a soberania com a
Oiteiro (morro); aí se vêem fazendas aprazivelmente situadas em onça e o tigre negro 4 6 4 • Duas planuras, no meio das quais se erguia
graciosas eminências, à sombra de coqueiros. Estando próxima a volta uma eminência, indicavam o lugar em que os dois braços do Jucurucu
do verão, muitas belas árvores e arbustos estavam em flor, tais como (antigo nome indígena do rio do Prado) descem, um vindo do norte
a Visnea, de fôlhas sedosas e brilhantes, ruivo-pardacentas na face e o outro do sul; o primeiro tem o nome de rio do Norte, e o segundo
interior; as Rhexia·, de grandes flôres violetas; a espécie de Melas- o de rio do Sul4 65. Distinguia-se, ao longe, a Serra de João de Leão
toma com fôlhas de um lindo branco-prateado na face inferior; as e a de Sto. André, que pertencem à Serra dos Aimorés, cadeia
Bignonia, com os esplêndidos ramos floridos trepando e entrelaçan- de montanhas situada a quatro dias de viagem do litoral, não longe
do-se nos arbustos, acima dos quais se erguia o jenipapeiro (Genipa da cachoeira do rio, onde dizem que a caça e o peixe são abundantes.
americana), de grandes flôres brancas. O tom verde-escuro natural O Jucurucu cedo começa a estreitar-se, quando se sobe em direção às
das flôres do Brasil estava então atenuado pelos tenros renovos verde- nascentes; prova de que o seu percurso não é muito grande. Não
amarelados ou vermelhos; e sob tôdas as moitas havia uma sombra mais distante do lugar em que então me achava, os dois braços se unem
densa, muito amena nos grandes estios, que os mosquitos, porém, torna- para formar o rio; mais para cima, tôda colonização européia cessa
vam bem menos aprazível ao viajante. Uma bela flor, uma Ama- por completo, pois no rio do Norte não há absolutamente nenhuma,
ryllis branca de estames purpúreos, debruava as margens do rio. e existe apenas uma colônia no do Sul, que fica logo depois da
A superfície do rio tomara agora um tom pardacento, resul- junção dos dois braços. Quando me fartei da bela e romântica paisa-
tante das correntes vindas das florestas, dos pântanos e das monta- gem, dirigi-me para a margem do rio, às habitações dos índios. Entre
?has, e formava uma perfeita câmara escura onde as margens verde- êstes encontrei uma mulher da tribo dos Machacaris, que entendia
Jantes e floridas se refletiam maravilhosamente. Sôbre a superfície perfeitamente a língua dos Patachós, coisa muito rara; porque, sendo
espelhante da água viam-se as ilhas flutuantes de Pontederia; vimos os últimos, de tôdas as tribos aborígines, os mais desconfiados e reser-
nelas a bonita jaçanã (Parra jacana, Linn.), cuja voz alta, semelhante vados, é difícil a uma pessoa, que não pertença à tribo, aprender-lhes
a uma risada, já se ouve a grande distância. Cheguei a um lugar a linguagem. Não longe dali, mais para dentro da mata, existe uma
em que se construía uma lancha; os trabalhadores nos disseram que aldeia de Machacaris, já várias vêzes por mim mencionada, mas onde
as matas do Jucurucu não contêm muita madeira para construção apenas cêrca de quatro famílias dêsse povo vivem juntas numa casa.
naval; encontram:se, decerto, grandes árvores, próprias para fazer Tinha muita vontade de conhecer também essa tribo e, por isso,
canoas, mas, p~ra iSSO, também se podem empregar variedades menos fui até lá com alguns índios. O caminho era muito incômodo, pois
duras de made1ra. Na margem, pequenas enseadas, cheias de capim, tivemos, durante meia légua, de vadear águas e pântanos e de passar
caniç_os e juncos, fechadas por um cercado de bambu, para apresar por cima de muitos , troncos de árvores caídas.
o ~e1xe durante a ~nchente. A cêrca é aberta quando a maré sobe, (* ) Trata-se, provàvelmente, do mesmo sapo que, em Viçosa e outros lugares,
a fim d~ qu_e o pe1xe . entre; f~cha-se depois, e o peixe é apanhado é chamado "sapo marinheiro ".
~a, m~re ~a1xa. A VIagem f01-me muito agradável à noitinha; o (4GS) No original "Mandalua ". Vide a nota 848.
sllen_cw remante n?s erm_os imensos que me envolviam, depois que (464) Jâ houve menção a ê8te animal, simples variedade melânica da onça P!ntada.
(465) Sôbre esta região, a Cachoeira Grande em particular, que tive ocastão de
as c1garras e os gnlos de1xaram de cantar, era apenas interrompido explorar zoolOgicamente, veja-se a Rev. do Mus. Paulista, tomo XIX, pâg. 1 e ss. (1UB5).
276 VIAGEM AO BRASIL ESTADA ENTRE OS BOTOCUDOS 2 ...,-
/ I

Encontrei todos os selvagens morando juntos numa casa espa- A casa dos Machacaris fica num verdadeiro êrmo, onde se ouvem
çosa; fazia dez anos que aí viviam e eram sofrivelmente civilizados. de pertinho os gritos dos macacos e de outros animais da selva;
Alguns mostravam-se cativantes e sociáveis, outros, ao contrário, esqui- tinham derrubado e queimado a mata do lugar e feito as plantações.
vos e reservados; alguns falavam um pouco de português, porém entre Após curta estada, desci o Jucurucu na minha canoa.
êles sempre faziam uso da língua nativa. Possuíam, para uso próprio, No sufocante calor do meio-dia, deliciei-me nas trilhas cheias de
plantações de mandioca e de um pouco de algodão e milho. O ouvidor sombra, que iam ter, sob árvores majestosas e por entre a mataria
lhes havia fornecido um ralo para moer ou ralar as raízes de mandioca; densamente entrelaçada, às habitações dos índios, esparsas e isoladas
mas, de acôrdo com o costume dos ancestrais, tiram da caça grande na margem do rio. Muitos dêsses índios da costa se assalariam aos
parte da subsistência. O arco e a flecha são-lhes ainda as armas habi- lavradores portuguêses, cultivando ao mesmo tempo as próprias lavou-
tuais, se bem que alguns sejam também destros no uso da espingarda. ras; outros, particularmente os moços, se empregam como marinheiros
Os arcos dos Machacaris diferem dos das outras tribos, por terem a bordo dos navios ou lanchas pertencentes à vila.
entalhado na parte anterior um sulco profundo, onde uma flecha Nesse trecho, descortinam-se de novo vistas encantadoras que,
pode ficar pronta de reserva, enquanto a outra é arremessada•; de se fôssem fixadas pelo pincel de um hábil paisagista, poderíamos, com
modo que a segunda flecha, que os outros índios têm que apanhar grande prazer, rememorar de maneira mais viva. Numa velha árvore
no solo, fica à mão para ser atirada. Encontrei aí um belo arco feito reclinada sôbre a água, que aqui encontrei, apresentava-se uma verda-
de pau-d'arco, de tamanho fora do comum, que possuía um gan- deira coleção de botânica. Na ponta medravam Cactus pendulus e
cho na parte superior, muito útil para prender a corda. As flechas des- Phyllanthus, cujos ramos pendiam como cordas; no meio, Caladium
sa tribo, à semelhança dos arcos, são muito bem feitas; a ponta é e Tillandsia vicejavam luxuriantemente entre vários musgos, enquanto
de madeira dura, e a cauda se prolonga bastante além das penas. fetos (Filix) e outras plantas cresciam na base. Nos galhos dessa
Também aí, à feição de tôdas as tribos da costa oriental, se usam os \ árvore curiosa havia uma quantidade de ninhos, em forma de saco,
três tipos de flechas que eu já descrevi quando tratei dos Puris. Vi do guache (Oriolus haemorrhous, Linn.), que, como os seus congê-
igualmente os mesmos sacos pendurados que se observam entre os neres, nidifica sempre em sociedade. Assim, nesses climas tropicais,
Patachós, com quem os Machacaris se parecem em muitas particulari- manifesta-se em tôda parte, e sob tôdas as formas, uma vida ativa.
dades. A compleição é a mesma dos Botocudos, sendo, porém, um Em muitos pontos, pequenos córregos ensombrados deságuam no rio,
pouco mais entroncados. São altos, fortes e espadaúdos. Em geral nas margens dos quais a aninga (ATum liniferum, Arruda) 466 , já men·
não desfiguram muito o corpo; apenas, como os Patachós, amarram cionada, cresce em abu ância. O caule cônico, grosso embaixo e
na frente o "membrum virile" com um cipó. Muitos fazem também adelgaçado em cima, atinge seis a oito pés de altura. Aqui e ali
um pequeno orifício no lábio inferior, onde, por vêzes, usam um peda- surgem fazendas, onde a mata foi derrubada e se cria agora um pouco
cinho de bambu. Deixam o cabelo crescer, cortando-o atrás; e às de gado; vêem-se também, em tôrno das casas, grandes plantações de
vêzes, igualmente, tosam o cabelo como os Patachós. ' D{zem que laranjeiras.
constroem as choças da mesma maneira. As línguas das duas tribos Colhido por violento aguaceiro com trovoadas, voltei à vila, pros-
são, entretanto, diferentes, como se poderá verificar pelos exemplos seguindo depois para Comechatiba. Não havia muito, um grande
que serão anexados a esta descrição de viagem. Fazem causa comum barco fôra lançado à praia nesse lugar, morrendo as seis pessoas que
contra os Botocudos, mais numerosos; mas já tiveram, muitas vêzes, iam a bordo; prova de que essa costa oferece muitos perigos à navega-
disputas e guerras entre si. Obtive dêles armas em troca de facas. ção; não há indicação dêles em nenhuma carta, e só se utilizam peque-
Regalaram-me com o cauim, bebida favorita dos índios em geral, que, nos e leves navios costeiros. O rei está fazendo grande benefício ao
como todos os povos rudes, gostam muito de bebidas fortes. O que país, mandando proceder a um acurado levantamento dêsse litoral.
a raiz da ]atropha manihot fornece aos brasílicos, dá aos guaraúnas Na fazenda de Caledônia fui recebido com a maior hospitalidade
o suco da palmeira Mauritia••, ao ilhéu dos Mares do Sul a awa, pelo Sr. Charles Frazer, aí encontrando, para minha grande alegria,
e ao calmuque o kumiss. jornais da Europa. Fui obrigado a passar uma longa e aborrecida
noite à beira do rio Corumbau, porque a vazante já havia passado.
(*) Rio Belmonte muito acima, em Minas Novas, há uma Ilha, a Ilha do Pão, Chovia sem parar; impossível era construir uma palhoça, pois não
onde os Machacarls, os Panhamls e outras tribos se estabeleceram conjuntamente e fizeram tínhamos nem galhos nem .fôlhas; quando muito, pudemos acender
plantações. As armas dos Machacarls, que eu recebi dêsse lugar, são exatamente iguais
às da mesma tribo no Jucurucu; por outro lado, também encontrei os arcos e as uma fogueira miserável. Na manhã seguinte saímos à procura de
flechas dos Machacaris entre os Botocudos.
( **) Amichten der Natur, p. 27. (466) Vide, a respeito dêste vegetal, a nota 827.
278 VIAGEM AO BRASIL

stns, de que há abundância no rio e na lagoa vizinha. Duas espécies


vivem aí, uma no mar e outra nos rios. Conseguimos uma grande
medusa (Medusa pelagica, Bosc.) que o mar tinha lançado à praia,
e tiramos-lhe dos intestinos um caranguejinho esbranquiçado, ainda
perfeitamente vivo. Vimos aqui grande quantidade de urubus, que
muitas vêzes pousavam todos na mesma árvore; além disso, viam-se
também gaivotas, que voavam em alarido sôbre a bôca do rio, e a
águia-pesqueira (Falco haliaetos, Linn.)• 467 , que planava acima do mar,
faminta, em cata de peixe. Muitas vêzes já havia eu visto essa for-
VIAGEM AO BRASIL
mosa ave de rapina, mas ela sempre se mostrara muito arisca aos nos anos de 1815 a 1817
meus caçadores; todavia, quando cheguei a Belmonte, encontrei-a na
coleção que meu pessoal, tendo ficado atrás, fizera na minha ausência.
Assemelha-se, sob todos os pontos de vista, à águia-pesqueira alemã, e, de
como muitas outras aves, parece contradizer o asserto de que o mundo MAXIMILIANO
vivo da América nada tem em comum com o das demais partes PRÍNCIPE DE WIED-NEUWIED
do globo.
A 28 de dezembro 46S cheguei de novo a Belmonte, e continuei
os preparativos para minha futura viagem para o norte, ao longo do
litoral. Durante a estada de três meses e meio no Belmonte, nossa cole-
ção de história natural recebeu o acréscimo de muitos exemplares *
notáveis, obtidos em parte no sertão rio acima, em parte perto da vila,
numa grande lagoa que chamam de Braço e que, embora de não
muita largura, se estende por várias léguas. Aí vive grande número SEGUNDO TOMO
de aves aquáticas, sobretudo patos, mergulhões, gaivotas, garças, maça-
ricos, cegonhas tuiuiú (aí chamadas "jabirú"), etc. Jamais faltou aos
caçadores caça fresca, ao passo que o povo da vila estava em precisão.
Na lagoa há também abundância de peixe, motivo por que geral-
mente se encontram os habitantes da região ocupados em pescar. A
lagoa é envolvida de todos os lados por um vasto campo de cinco
léguas de extensão, onde se cria grande quantidade de gado. Dizem
que, a princípio, ali havia alguns milhares de cabeças, mas que o
número está agora muito reduzido. Uma grande onça ("yaguareté''),
que então vagueava pela vizinhança, andava assolando os rebanhos, em
geral limitando-se a chupar o sangue da vítima, sem lhe tocar na
carne. Isso constituía sério perigo para o caçador; a população não Com uma carta da costa oriental do Brasil
tinha cães apropriados para descobrir o refúgio do voraz animal, motivo
pelo qual era obrigada a quedar-se inativa, enquanto uma ou duas
cabeças de gado morriam tôdas as noites.
FRANCFORT SóBRE O MENO, 1821
(*) (Suplem.) A águia pesqueira do Brasil assemelha-se perfeitamente com a
européia; um exemplar fêmea, morto por meus caçadores no Rio Belmonte, media 22 Impresso e editado por H. L. BRõNNER
polegadas e 2 linhas de comprimento.
(467) Pandion haliaetus carolinensis (Gmelin), subespécie particular da sua similar
européia. A águia pesqueira não é rara nos grandes rios do Interior do Brasil, ocorrendo-me
a lembrança de tê-la visto nos pantanais próximos de Aquldauana (Mato Grosso) e no
Rio Cuiabá.
(468) E' de crer ocorra aqui novo engano de data, semelhante ao apontado
em nossa nota 460. O mês seria novembro, pois de outra forma é impossivel compreender
que o nosso viajante-naturalista só a 21 de dezembro deixasse a vila de Ilhéus, onde
estêve depois, prosseguindo a sua jornada.
.
91 t I f t
nnc{)

• .
9)
"'- r a f t l t en l NDICE DO TOMO II

PÁGS.
in btn 3'l6ttn •8•5 6i~ •8•7 I. ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS ••••.••.•...•.•..... 283

11. VIAGEM DO RIO GRANDE DE BELMONTE AO RIO DOS lu-lÉUS.


u o :t
O Rio Pardo. - Canavieiras. - Patipe. - Poxi. - Rio Co·
mandatuba. - Rio Una. - O Córrego Araçari. - Meço e
9n 1t J; i m i l i an Oaqui. - Vila Nova de Olivença. - Os índios dêsse lugar. -
Utilização do fruto da piaç.aba. - Vila e R io dos Ilhéus. -
'l' r i • a au !il i c b • !.'Q c u " i r t. Rio Itaípe, Almada. - Os Guerens, descendentes dos antigos
Aimorés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327

111. VIAGEM DE VILA DOS ILHÉUS A SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA, ÚLTIMO


POVOADO RIO ACIMA. PREPARATIVOS PARA A VIAGEM PELO SERTÃO,
ATRAVÉS DAS MATAS.
3 n> e lJ t c t ~ a nb. Viagem para São Pedro, através da mata. - Noite em Ribeirão
dos Quiricos, com a ponte destruída. - São Pedro de Al-
cântara. - Viagem rio abaixo até à vila. - Semana de Natal
e festas. - Regresso a São Pedro. - Preparativos para a longa
viagem através da mata virgem .......... . ........... .... 347

IV. VIAGENS PELAS MATAS VIRGENS, DE SÃo PEDRO DE ALCÂNTARA


À BARRA DA VAREDA, NO SERTÃO.
9it rinrr .'fnrtt btr !::i1filflc t-on !Brn~lint.
Estreito d'Água. - Rio Salgado. - Sequeiro Grande. -
Joaquim dos Santos. - Ribeirão da Içá. - Serra da Suçu-
arana. - Vestígios dos índios Camacãs. - João de Deus.
- Estada no rio da Cachoeira. - Em procura dos Camacãs.
{5Tauffnrt a. 9R. t821 . - Rio Catolé. - Estada neste último. - Berruga. -
Barra da Vareda ........................................ 363

V. ESTADA EM BARRA DA VAREDA E VIAGEM ATt OS CONFINS DA CAPI-


TANIA DE MINAS GERAIS.

Descrição da zona. - Angicos. - Vareda. - Criação do gado


no sertão. - Os vaqueiros. - Tamburil. - Ressaca. - Ilha.
- Pôrto aduaneiro de Minas. - Os Campos Gerais. - Des-
crição de seu aspecto físico e considerações a respeito. -
Caça da ema e da seriema ................................ 391

\
282 VIAGEM AO BRASIL

VI. VIAGEM DAS FRONTEIRAS DE MINAS GERAIS AO ARRAIAL DA CON-


QUISTA.

Vareda. - O trabalho dos vaqueiros. - A caça da onça. -


Arraial da Conquista. - Visita aos Camacãs de Jibóia. -
Algumas palavras sôbre essa tribo .... . . ..... . . . ... .. .. . ... 419
I I
VII. VIAGEM DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA E ESTADA NESSA CIDADE.

O vtrle pitoresco de Uruba. - Cachoeira. - Coronel João


Gonçalves da Costa. - Rio das Contas. - Rio Jiquiriçá. -
Laje, e desagradável incidente ai ocorrido. - Prisão em Na-
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE
zaré das Farinhas. - Rio Jaguaribe. - Ilha de Itaparica. -
Cidade de São Salvador da Baía de Todos os Santos . . . . . . . 439
OS BOTOCUDOS
VIII. REGRESSO Á EUROPA.

Viagem até Lisboa. - Travessia até Falmouth. - Percurso


terrestre pela Inglaterra. - Trajeto até Ostende . . ... . . . . . .. 473

APE.NDICE Entre as tribos indígenas do Brasil, existem ainda hoje algumas


cujos nomes são apenas conhecidos na Europa. Mesmo entre a costa
I. SôBRE A MANEIRA DE SE EMPREENDEREM NO BRASIL VIAGENS RELA-
TIVAS Á HISTÓRIA NATURAL . ... . . . . . . . . . . . • • •• •• • •• • •• ....•. 489
oriental e as montanhas de Minas Gerais, na grande faixa de matas
virgens que se estende do Rio de Janeiro à baía de Todos os Santos,
11. VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS DE QUE SE FAZ MENÇÃO NESTE isto é, entre os paralelos de 13 a 23 graus de latitude sul, vivem
RELATÓRIO DE VIAGEM • ..• . .•. • .• • • .• .•• • ••••.••• . •••••• • • • • 497 diversas hordas errantes de selvagens, sôbre as quais até agora muito
I) Vocabulário dos Botocudos ... ... . ...... ... . .. . . . .... .. 500 pouco sabemos.
Sôbre a língua dos Botocudos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 506 Entre elas se distinguem particularmente os Botocudos por dife-
2) Vocabulário dos Machacaris ..... . ........ . . .... .. . .... 509 renças muito características. Até aqui nenhum viajante forneceu infor-
3) Vocabulário dos Patachós . . ...... .. .. .. ..... . .......... 510 mações precisas sôbre os índios dêsse ramo 4 69. Blumenbach fêz men-
4) Vocabulário dos Malalis .. ... . . . ... . . .. . ... . . ... . . . . .... 511 ção dêles em seu tratado de Generis humani varietate nativa, e Mawe•
5) Vocabulário dos Maconis .. . . . .. ........ .. .. . . . . . . . . . . .. 512 também incidentemente a êles se refere; apenas eram conhecidos nos
6) Vocabulário dos Camacãs civilizados de Belmonte, cha- primeiros tempos pelos nomes de "Aimorés", "Aimborés" ou "Ambu-
mados pelos portuguêses de Meniens .... . . . . . .. ... . .. . .. 513
rés". Mawe, em sua carta, limita-se a indicar de modo geral a região
7) Vocabulário dos Camacãs ou Mongoiós da Capitania da
Bahia . ..... . . . ..... ... . . . . . ... . . ... . ......... ... ... ... 514 por êles habitada como sendo pátria dos índios antropófagos. Como
em Minas Gerais, província onde êle estêve, estava-se em luta aberta
NOTA SÔBRE A CARTA QUE ACOMPANHA A SEGUNDA PARTE DESTA DESCRIÇÃO com os Botocudos, não lhe foi possível observá-los de modo a colhêr
DE VIAGEM • . .... . • ... ...•. . . •.• •.•... . . .... •••• .•.. • ...••. 517
dados precisos.
(*) J. MAWE's Travels in the interior o! Brazil, p. 171.
(469) As observações de Wied representa m, efetivamente, não só um dos primeiros,
como o mais copioso estudo sério sôbre a raça e a lfngua dos lndlgenas universalmente
conhecidos pela alcunha de Botocudos. Após êle, com observações próprias, versaram
o mesmo tema alguns outros autores, entre os quais merece especial referência A.
Salnt-Hilalre (VOflage dans les prov. de Rio de Janeiro et Minas Geraes, Paris, ISSO).
A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Inseriu também duas Interes-
santes contribuições, da lavra de Hermen. A. Barboza d' Almeida (tomo VIII, 1846, P·
451-2) e M. Jomard (XI, 1847, p. 107-18). Com referência particularmente à lfngua,
há na Biblioteca Nacional, segundo Informa C. Loukotka (Rev. Arch. Munic. São Paulo,
LIV, 1989, p. 168), um manuscrito Inédito de Ch. Fr. Hartt, sendo de nossos dias
a contribuição de Simões da Silva (Anais do XX Congr. dos Americanistas, I , p . 6I-84).
que se ocupou dos remanescentes das velhas raças residentes na região do alto Rto
Doce e conhecidos por lndios Crenaques. Aos que movidos pela leitura dêsse magnlflco
capitulo da presente obra tenham lnterêsse em aprofundar-se no estudo do assunto, reço-
mendamos a Bibliografia crítica da Etnologia brasileira de Herbert Baldus, contribuição
preciosa 1ls comemorações culturais que assinalaram o IV Centenário da cidade de São Paulo.
/

284 VIAGEM AO BRASIL "


ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 285

A prinCipiO foram os Aimorés extremamente perigosos para os Tais são as regiões atualmente habitadas pelos índios dêsse ramo.
estabelecimentos ainda fracos dos portuguêses; mais tarde, porém, Southey, m sua "History of Brazil", reuniu tudo quanto deixaram
foram êles vigorosamente repelidos para o interior das matas, onde os jesuítas e outros escritores sôbre sua velha história; vê-se que foram
ainda hojç existem com o nome de Botocudos. Na History of Brazil sempre considerados como os mais ferozes de todos os tapuias, opinião
de Southey e na Corografia Brasílica acham·se descrições das repetidas que ainda hoje firmemente sobrevive.
devastações praticadas por êsses selvagens em vários lugares, parti- A natureza dotou êsses índios de boa compleição, sendo êles mais
cularmente em Pôrto Seguro, Santo Amaro e Ilhéus. Dos Aimorés bem conformados ·e mais belos do que os das demais tribos. Apresen-
que habitavam o rio Ilhéus resta apenas um último vestígio, a saber tam, em geral, estatura mediana, não obstante apresentarem alguns
alguns velhos, conhecidos com o nome de "Guerens" e moradores no porte mais avantajado. São fortes, em regra largos de peito e espa-
rio Itaípe, ou Taípe. Não obstante, os nomes Aimorés e Botocudos daúdos, mas sempre bem proporcionados; mãos e pés delicados. Como
continuam a despertar nos europeus sentimentos de horror e de repulsa, nos outros grupos, têm traços fisionômicos muito s~lien'tes, as maçãs
em virtude da crença de serem antropófagos. O nome de botocudos do rosto grandes, o rost<? às vêzes achatado, mas, ainda assim, não
lhes vem de usarem, no lábio e nas orelhas, uma grande cavilha de de raro bastante regular; olhos, na sua maioria,' pequenos, às vêzes
madeira, à semelhança de batoque, que é como chamam os portuguêses grandes, mas em geral pretos e vivos; lábios e nariz de ordinário
as rôlhas de barril. ~les mesmos a si se chamam engereckmung• grossos. Consta que também alguns existem com olhos azuis, referin-
e têm ?-rande aversão a que os chamem de botocudos. Apesar de do-se a propósito o caso da mulher de um chefe do Belmonte, tida
terem sido expulsos do litoral marítimo, ficou-lhe ainda, como abrigo como de grande beleza pelos seus conterrâneos. Barbot acredita que
seguro e tranqüilo, uma enorme extensão de florestas impenetráveis. entre os Gabilis a maioria das mulheres tem olhos azuis•, o que não
Atualmente ocupam uma área, paralela à costa e dela distante muitos é todavia verossímil.
d.ias de viagem,. entre 15 e 190? graus de latitude sul, ou seja entre o
O nariz é forte, quase sempre direito, levemente arqueado, curto,
r~o Pardo e o no Doce. Mantêm-se em comunicação, entre êsses dois
de narinas mais ou menos dilatadas; há poucos casos em que é muito
nos, ao longo das fronteiras de Minas Gerais; mais para a costa,
porém, acham-se outras tribos, como os Patachós 4 70 e os Machacalis. saliente. Entre êles observam-se, não obstante, como em nós, muitas
Para oeste os botocudos se estendem até os limites da zona habitada e acentuadas diferenças fisionômicas, o que não impede que o tipo fun-
de Minas Gerais; Mawe dilata suas posições mais avançadas até as damental mais ou menos se conserve. A testa inclinada para trás
cabeceiras do rio Doce, perto de São José da Barra Longa. Tanto não representa um seguro caráter distintivo••.
em Minas Gerais como no rio Doce vive-se em guerra contra êles; em A côr elos Botocudos é um bruno avermelhado, ora mais claro, ora
tempos passados, eram os paulistas (habitantes da capitania de São mais escuro; há entre êles indivíduos quase perfeitamente brancos,
Pa_ulo) os seus piores inimigos. No rio Grande de Belmonte, até e até de faces coradas; nunca encontrei, porém, exemplos de côr tão
Mma~ .. ~ovas, acham-se famílias de botocudos vivendo em perfeita escura q4anto dizem certos escritores, mas, pelo contrário, são fre-
tranqUihdade. Cada horda tem o seu chefe (que os portuguêses cha- qüentes os de côr bruno-amarelada. Os cabelos são fortes, pretos como
mam "capitão") que é mais ou menos considerado, de acôrdo com as carvão, duros e lisos; os pêlos do corpo, finos e igualmente rijos;
suas qualidades guerreiras. Mais para o norte, na margem direita na variedade esbranquiçada os cabelos são bruno-enegrecidos. Muitos
do rio Pardo, mantêm disposições hostis; suas sedes principais são, raspam as sobrancelhas e a barba, enquanto outros as deixam cres-
porém, as grandes matas virgens de ambas as margens do rio Doce cidas, ou apenas aparam-nas; as mulheres não toleram nenhum pêlo no
e do Belmonte. Nessas matas erram êles livremente, e não raro corpo. Os dentes são-lhes bem conformados e alvos. Perfuram as
chegam até as proximidades ela costa, pelo rio São Mateus. orelhas e os lábios inferiores introduzindo no orifício um pedaço cilín-

(*) O "e" no comêço das palavras quase não se ouve.


( *) BARBOT, em sua Relation o! the Province o! Guiana, diz dos G;abills: '"~he
eyes of the women for the most part blue ". BAlUUlRE, pelo contrário, nada d1z a respeito.
(470) No .~exto de" Wied o nome desta tri~ aparece aqui, como na maioria das (**) Vide V ATER, na S.• parte, 2.• Abtheilung, de Mithrídates, p. 81.1. Para
v~zes, grafado Pa:ta:cbo sem o acento necessáno às palavras portuguêsas oxítonas. dar idéia da configuração fisionômica dos Botocudos, bá dêles numerosas _figuras na
Nao deve haver duv1da, porém, que a acentuação predominante deva cair na última estampa 17 do meu atlas (edição in 4.•), e também, ultimamente, em S1r WILLIAM
sUaba do vocábulo, como se infere das inúmeras analogias existentes entre nomes
de outras tribos (verbi uratia Cotaxós, Caiapós, Capoxós etc.) e de modo mais decisivo ONSELEY, Travels in various countries of the East; more particular-v Persta, voi.
p. 16 e ss., onde há figura de um botocudo que, pela fisionomia, parece uma ve a
nf·
da grafia " Pa~acbós" ou "Patatascbós ", adotada pelo ~utor, na' epígrafe do vocabulári~ matrona, em que se vê um tanto mal a deformação das orelhas e do lábio inferior,
referente à tnbo, encontrado no final da obra. Ademais, a pronúncia oxftona é a mas com uma cabeleira crêspa, coisa que jamais se observa em qualquer raça pura
adotada P.elos nossos escritores de mais autoridade, como Rodolfo Garcia e outros, donde sul-americana.
ter-se aqu1 como a legitima.

,
A
286 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 287
drico de pau• que vão substituindo por outros cada vez mais grossos, de Gõttingen, o crânio de um jovem botocudo de vinte <Jnos, que é
de modo a adquirirem um aspecto estranho e repulsivo. Como essa uma verdadeira singularidade osteológica. Nessa cab'!ça verifica-se
deformação lhes confere uma característica tão frisante, parece-me que o batoque_não só fizera cair os incisivos inferiores, como ainda de
vantajoso dar informações pormenorizadas sôbre êsse assunto, basean- tal forma comprimira o maxilar, que os alvéolos desapareceram intei-
do-me já nas minhas próprias observações, já no que, a seu ~espeito, ramente e a mandíbula, nesse lugar, tornou-se tão cortante como uma
disseram escritores de fé. faca. Na vinheta que encima êste capítulo está justamente represen-
A vontade do pai é que decide do momento em que a criança tado o crânio a que acabo de me referir, cumprindo-me agra-
deve sofrer a operação e receber a ornamentação peculiar à sua decer ao douto antropólogo Sr. Ritter Blumenbach a curta descrição
tribo; isso acontece de ordinário dos sete aos oito anos, às vêzes até que ilustra aquela gravura, e vem agora em apêndice ao 10.o capítulo
antes. Estiram-se pela ponta o lobo da orelha e o lábio inferior, da 2.a parte da minha "Viagem"*471.
fazendo-se então nêles por meio de um pau duro e pontiagudo, um Saído da pena de tão reputado antropólogo, êsse aditamento
orifício, onde se coloca depois um pequeno pedaço de madeira, que será, por certo, apreciado de todos os naturalistas. Os Botocudos
vai sendo pouco a pouco substituído por outros progressivamente raramente retiram o batoque para comer, do que resulta, forçosamente,
maiores, até que os lobos das orelhas e o lábio inferior adquiram um falta de asseio**. Quando lhe comprávamos os batoques das orelhas,
tamanho descomunal. Como se torna horrível a sua fisionomia com imediatamente penduravam a orla pendente do lobo na parte supe-
semelhantes orelhas e lábio, pode concluir-se do tamanho do batoque rior delas•••. As mulheres adornam-se também com batoques, porém
representado na figura 4 da l3.a estampa de meu atlas. êstes são nelas menores e mais delicados do que nos homens. Em
Não há exagêro nessa figura, porquanto eu medi uma destas placas minha estampa 13, figura 5, vem representado um dêstes batoques
cilíndricas no chefe Querengnatnuque ("Kerengnatnuck"), que vem de mulher, em tamanho natural. A prática dessa repelente defor-
estampada na minha 11.a vinheta da primeira parte, e achei que ela mação é inteiramente estranha aos outros tapuias que habitam a
tinha quatro polegadas e quatro linhas inglêsas de diâmetro, por uma costa oriental, a pQnto de servir entre êles para designar os Boto-
polegada e meia de espessura. O desenho representa-a em seu tama- cudos; assim é que os remanescentes do grupo dos Machacalis, loca-
nho natural- tsses discos são feitos com a madeira da barriguda (Bom- lizados atualmente no alt~ Rio Doce, sob a proteção do quartel de
bax ventricosa), que é mais leve do que a cortiça e muito alva. A côr Peçanha, dão-lhe o nome de Epcoseque ("Epcoseck"), isto é, grande-
branca obtém-se fazendo-se secar cuidadosamente ao fogo, a fim de orelha.
que se evapore tôda a seiva. Apesar de ser a dita madeira muito leve, Em muitos povos nativos da América do Sul existe, todavia, o
ela mantém o lábio pendente nos indivíduos idosos, ao passo que nos uso de furar o lábio inferior; o grupo dos Tupinambás, na costa
moços êle fica horizontal, ou meio levantado. brasileira, trazia no beiço uma pedra verde (nefrite), e Azara descreve
tste extravagante costume dá-nos uma prova evidente da extraor- o mesmo fato nos indígenas do Paraguai. Segundo êste autor os Agui-
dinária extensibilidade da fibra muscular, porquanto o lábio inferior tequidichagas tinham nas orelhas•**• um pedaço redon~ de pau,
adquire a aparência de um estreito anel em tôrno da placa, o mesmo o mesmo acontecen<;lo com os Lengoas, que tinham o hábito de
acontecendo com os lobos das orelhas, que caem quase até os ombros. ' trazer ali um batoque de duas polegadas de diâmetro (a). Essas gentes
O batoque pode ser tirado quantas vêzes o queiram, a orla do lábio usavam também no lábio inferior um pedaço de madeira; mas como
ficando então caída e os dentes inferiores inteiramente a descoberto.
(* ) O Sr. RITTER BLUMENBACH editou ulteriormente o o.• caderno de suas Decades
A abertura cresce incessantemente com o correr dos anos, a ponto de Craniorum, onde aparece o mesmo crânio, acompanhado das explicações a êle referentes.
os lobos das orelhas ou o lábio muitas vêzes se romperem; neste caso (** ) Não havia nenhuma relutância em venderem êsses ornamentos. Fizemos, a
propósito, a observação de que os que conheciam o valor do dinheiro não sabiam
as duas partes são atadas por meio de um cipó, reconstituindo-se assim entretanto o valor individual de cada moeda, aceitando quaisquer que ~e lhes desse
o anel. Nos indivíduos idosos é muito comum terem uma, ou às . uma vez que fôssem redondas. Davam a tôdas as moedas portuguêsas o nome d~
" pataca ", que de fato pertence só a uma, do valor aproximado de um florim
vêzes mesmo as duas orelhas rôtas dessa maneira. Como o batoque (*** ) CooK enco_ntrou êste costume entre os habitantes da Ilha da Páscoa,
Vide a sua Segunda vaagem à volta do Mundo, vol. I, pl. 46, p. 291: "Both men and
dos lábios descansa de encontro aos incisivos inferiores médios, compri- women have very large boles or rather flits In their ears, extendet ' to near three Inches
~indo-os e ~tritando-os, êsses dentes caem ao cabo de algum tempo, dos in Ienght. Tbey sometimes flit over the upper part, and than the Jooks as if tbe
flap was cut off ".
vmte aos tnnta anos de idade, ou senão se deformam e se deslocam. (**** ) ""ZARA, VCJ11a(l eB dans l' Amérique Méridionale, vol. IJ, p. 83; (a) idem
p. 149; (b) Idem p. 11.
Ofereci ao célebre gabinete antropológico do Sr. Ritter Blumenbach,
(471) Julgou-s~ desnecessário ~a~er figurar na presente edição a legenda a que se
(*) Chamam êles ao pau para o lábio tmimat6 (pronunciando-se gni à moda refere o autor. E , de resto, o umco trecho que se toma a liberdade de suprimir,
francesa, meio pelo nariz), e o das orelhas numé (pronunciando-se nu pelo · nariz, e atendendo que aos poucos leitores a quem ela possa interessar será com tôda probabilidade
me muito brevemente). acessível uma das duas edições alemãs do livro. ' ' '
288 VIAGEM AO BRASIL

êste tinha a forma de uma língua, não desfigurava tanto quanto o


dos botocudos. Azara encontrou a mesma praxe entre os Charruas (b)
e La Condamine observou no rio Maranhão selvagens com os lobos
das orelhas pendurados até os ombros, e tão dilatados que o orifício
nêles existente chegava a medir 18 linhas de diâmetro. Em vez de
batoques usavam ali ramalhetes floridos•. Ainda se encontram
hábitos análogos nas índias Ocidentais e nas ilhas do Oceano Pací-
fico••, como por exemplo em Mangea, a sudoeste das Ilhas da
Sociedade• • •. Os habitantes do gôlfo de Príncipe William, na
costa oeste-setentrional da América (1 ), e os de Oonalashka (2) trazem
um pedaço de osso no lábio inferior; La Pérouse figura os habitantes
de Port des Français com um orifício no mesmo órgão, e, segundo
Quandt••••, os Caraíbas e os "Warauen" da Guiana guardam
nos buracos feitos nos lobos das orelhas as agulhas e os alfinêtes.
Os Gamelas do Maranhão usavam batoques no lábio inferior, como
os Botocudos.
De tudo isso se conclui que o costume de praticar aberturas nos
lobos das orelhas e de guarnecê-las de enfeites é muito espalhado nos
selvagens de tôdas as partes do Globo, mas que é entre os Botocudos
que a prática dêste artifíc_io atinge a sua máxima expressão. Assim,
enquanto Azara encontrou aberturas de duas polegadas, eu, no Bel-
monte, observei-as com três polegadas e quatro linhas inglêsas; daí
serem, nos Botocudos, as orelhas e o lábio muito mais deformados.
Se dermos crédito, porém, a Gumilla, haveria um povo que ultrapassa-
ria os próprios Botocudos no que respeita à extravagância da orna-
mentação das orelhas, visto como conta êle ter encontrado, entre os
Guamos do Apure e do Sarare, orelhas tão fendidas, que serviam de
bôlsa • • • • •. A separação de tôda a orla das orelhas, tal qual é observada
• em certos povos da América do N orte• • • • • •, inclui-se igualmente entre
as maiores aberrações a que pode chegar a fantasia dos povos primi-
tivos. A 17.a estampa de meu atlas mostra, com grande exatidão,
muitas fisionomias de Botocudos, podendo ter-se através delas idéia
perfeita da deformação produzida no lábio e nas orelhas, pelos batoques.
Outro meio de ornamentação muito apreciado pelos Botocudos
está na maneira de cortar os cabelos. Todos raspam inteiramente a
parte inferior da cabeça, até três dedos, ou mesmo mais, acima das
orelhas, de modo a deixar apenas no alto do cocoruto um topête, que
os distingue de todos os conterrâneos da costa oriental. Para cortar

(*) DE LA CoNDAMINE, Voyage dans l 'int. de l'Amérique Mérid., etc., p . 82.


(**) BLUMENBACH, De generis humanae varietate nativa.
(***) CooK, última viagem à volta do Mundo, vol. I , pl. li; (1), idem, vol. Il,
pl. 46, 47; (2) idem pl. 48, 49.
(****) Vide QuANDT, Nachrichten von Su1·inam, p. 246.
(*****) Vide GuMILLA, Histoire Naturelle, civile e geographique de l'Orenoque,
t orno I, p. 197.
(******) Vide o mesmo autor, p. 630 e também CARVER. O Principe Maximiliano de Wied-Neuwied no Brasil. A' sua direita
o indio botocudo Guack.
Copia de retrato existente no castelo de Neuwied. - Por gêntil envio de S. A. o
Principe Frederico de Wied Neuwied .

,
ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 289

os cabelos servem-se de um pedaço de taquara, que fendem e aguçam


numa das arestas. Esta espécie de navalha é muito cortante e raspa
perfeitamente o cabelo, mas atualmente está em grande parte substituída
pelas de ferro. Southey, em sua História do Brasil•, fala também
da maneira de cortar o cabelo usada pelos Aimorés, os quais já
des<W os primeiros tempos costumavam raspá-los a tôda volta, deixando
apenas um topête no alto da cabeça. Como já tive ocasião de di!er, usam
raspar inteiramente os pêlos do corpo. E' falso que os índios da América
sejam imberbes, embora vários escritores o afirmem; muitos existem
possuidores de barba regularmente espêssa, mas, de modo geral, pos-
suem apenas um círculo de pêlos finos em tôrno da bôca««« . Há
até entre os Botocudos crianças cujos braços são bastante cabeludos,
como pude ver num' filho de certo chefe do rio Grande de Belmonte;
êles têm, porém, aversão aos pêlos e raspam-nos. Os órgãos sexuais
masculinos parece serem sempre de tamanho moderado nos povos
nativos da América do Sul; dêsse ponto de vista dá-se com êles o
contrário do que acontece com as tribos africanas da raça etiópica,
como no-lo informa Blumenbachll' ••.
Não posso confirmar o que diz Azara sôbre as partes sexuais das
mulheres das tribos do Paraguai; pois eu só poderia dizer sôbre elas
o que acabei de relatar com respeito aos homens•• • •. Os Botocudos
têm o hábito de esconder o membro viril num estôjo de fôlhas tran-
çadas de içara, chamadas por êles giucã e pelos portuguêses taca-
nhoba. A figura 4 da estampa 14 representa um dêsses objetos, em
seu tamanho natural. Há o mesmo costume entre os Camacãs, a
respeito dos quais terei ocasião de ocupar-me mais adiante. Cada vez
que precisa satisfazer as suas necessidades naturais, o botocudo retira
o referido estôjo, que é depois reposto com todo o cuidado.
Ademais, êstes selvagens não mutilam o corpo; usam ainda muito,
porém, pintá-lo. Todavia, em nenhuma tribo da costa oriental vê-se
uma tatuagem artística como as dos "Nucahiver"; o único indício desta
arte, que pude observar, foi uma pequena figura no rosto de um
índio coropó«««««««< 472 • As côres com que se pintavam os Botocudos (e
como êles todos os tapuias do Brasil) são tiradas do fruto do urucu
(Bixa orellana, Linn.), muito espalhado nas matas, e do jenipapo.
O primeiro fornece uma tinta vermelho-amarelada intensa, proveniente

( *) R. SoUTHEY, Hist. of Br azil, vol. I. p. 282.


( ** ) Vide, para confirmação d êsses fatos, BLUMENBACH, De Gen eris humanae
varietate nativa.
(***) V. BLUUENBACH, Op, cit.
( **** ) V. AzARA, V01Jaue, etc., vol. 11, p. 59.
( *****) V. E scHWEGE, J ournal von Brasilien , fase. I , pág. 137.

GUACK, o indio Botocudo que Max de Wied Neuwied levou para (472 ) Wied grata " Coropo " ; mas a palavra, como "pata chó " (v. nota 470), deve
ser aguda. A tribo vivia a sudeste de Minas, na região do rio Pomba <!1!1. do baixo
Alemanha. Paralba, margem esquerda), onde a visita ram Escbwege (Journ. von Brastlten, P· 165)
e pouco depois Martins (Reise in Brasilien, 11, p. 167, tomos I , p. 341 e 11, p. 146,
( Fo tografia de quadro . or igina l ex iste nte no castelo de Neuwied. Envio gentil na e~ção brasileira do Inst. Hist. e Geogr., Rio de Janeiro, 1988), que a encontrou
de S. A. o P r incipe Fr ederico de W led-Neuwied) . reduzida a cêrca de trezentos indivlduos.
290 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 291

da película que envolve as sementes; do último obtém-se pigmento também com um leque de doze, quinze, -ou mesmo mais penas de japu
azul-negro muito duradouro, capaz de permanecer na pele de oito (Cassicus cris.tatus), prêsas com cêra aos cabelos da testa e amarradas
a quatorze dias, e com o qual os índios cristãos do Amazonas desenham com um cordão, o que fazia um bonito contraste com a côr denegrida
em suas vestes figuras de animais, do sol, da lua e das estrêlas •. dos cab~os. A êsses leques de penas, de que a figura 6 da 13.a estampa
Com o urucu, que fàcilmente se apaga, pintam principalmente o rosto, dá a imagem, chamam nucancã ou jequereium-ioqué. Essa velha
da bôca para cima, com o que adquirem um aspecto extremamente usança parece ter desaparecido desde algum tempo, pois no Belmonte
feroz e afogueado. O corpo, em geral, é todo tingido de prêto, com só pude ainda encontrá-la no interior das choças. Outros t:hefes enfei-
exceção apenas da cara, dos antebraços e dos pés, das panturrilhas tam-se simplesmente com duas penas, a maior parte das vêzes de
para baixo; aqui costumam separar, porém, com uma lista vermelha, papagaio, que prendem à testa, com um cordel. Em 1815, num ataque
a parte pintada da que não o é. Outros dividem longitudinalmente contra Linhares, no rio Doce, foi morto um chefe muito paramen-
o corpo em duas metades, uma das quais pintam de negro, deixando tado, que' trazia enfiadas de penas vermelhas de arara nos braços, ante-
a outra em seu estado natural, à maneira da máscara a que se costuma braços, coxas e pernas, e cujo arco era enfeitado em cada ponta com
chamar dia e noite; outros, ainda, limitam-se a pintar o rosto de um feixe de penas alaranjadas, de garganta de tucano (Ramphastos
vermelho-vivo. Não encontrei outras côres, além destas três. Quando dicolorus, Linn.) 47 3. E' raro porém que os Botocudos se enfeitem
pintam o corpo de prêto, é comum enfeitarem a cara vermelha com assim de penas, pois os próprios chefes andam quase sempre nus e
uma listra preta, estendida das orelhas até embaixo do nariz, à pintados como os outros. No rio Grande de Belmonte, onde graças
~aneira de um bigode. Alguns, por fim, têm os dois lados do corpo às suas disposições pacíficas houve ensejo de entreter com êles um
pmtados, desde os ombros até os pés, ficando porém o meio sem certo comércio, foram-lhes fornecidos alguns lenços e outros objetos,
pintura. As côres são moídas na carapaça de uma tartaruga, uten- que entretanto nunca vi em poder dêles. As mulheres têm preferência
sílio que êles transportam freqüentemente com a sua bagagem. Em pelos enfeites e escolhem partiGularmente colares, lenços vermelhos
sua idéia de beleza, o Botocudo ainda não se contenta só com essas e pequenos espelhos; os homens escolhem machados, facas e outros
pinturas; necessita ainda de um colar, feito de sementes, ou de frutos utensílios de ferro. Nenhum gôsto artístico demonstram os Botocudos
pretos. No rio Doce, os colares, a que chamam "pohuit", são feitos nos objetos que fabricam; pelo contrário, outras tribos, como os Cama-
de bagas pretas e duras entre as quais, no meio, são colocados dentes cãs do sertão da capitania da Bahia, fazem trabalhos muito perfeitos.
de macaco ou de carnívoro. Também os Puris, como ainda a maioria Os indígenas do México e do Peru, as nações do rio Maranhão em
dos indígenas brasileiros, fazem uso dêsses enfeites. Na região do Bel- particular, levam sob êsse aspecto enorme vantagem aos botocudos e
monte parece não haver dêstes frutos pretos, visto como são utiliza- demais "tapuias" da costa oriental, pois confeccionam lindos traba-
das pequenas sementes amarelo-pardacentas e lustrosas. As mulheres lhos de penas, que de modo geral se assinalam por uma bela e
e crianças trazem quase sempre dêsses colares, mas os botocudos homens intensa côr vermelha. Vê-se no real gabinete de História Natural de
raramente os usam, não obstante haver eu encontrado alguns, com uma Lisboa uma coleção extremamente interessante de ornamentos raros,
porção dêles presos à testa. No rio Doce, os chefes trazem, não de os quais, pela delicadeza, lembram os dos indígenas das Ilhas San-
raro, pendurados muitos dêsses cordões, em que especialmente se vêem dwich. Como exemplo posso referir, entre outros, a notável cabeça
grande número de dentes de animais. mumificada, que faz parte da coleção de raridades antropológicas do
f.sses selvagens têm por costume, quando se põem em marcha, Senhor Ritter Blumenbach, em Gottingen. Está representada na 4.a
le~ar _consigo muitos pequenos objetos, de que devem fazer uso na estampa das Decades Craniorum, porém sem as penas, ao passo que
pnmexra oportunidade. Cada homem traz pendurado ao pescoço, por na figura 1 da 17.a estampa de nosso atlas, ela aparece em tôda sua
t;m forte cordão, a sua maior preciosidade, uma faca, que muitas vêzes beleza. As mulheres, que em tôdas as partes do mundo têm mais
e ape~as .um pedaço cortante de ferro, ou mesmo uma simples lâmina, vaidade e mais gôsto do que os homens para se enfeitar, levam pouca
que, _a força de ser usaqa, ficou reduzida a
um pequeno fragmento. vantagem aos homens, aqui nessas matas virgens; pintam o corpo
f.ss~ mstrumento é sempre muito cortante, pois não cessam de afiá-lo; com as mesmas côres e do mesmo modo que os homens, trazem no
a fxgu~a 6 da estampa 14 representa um dêles, enrolado num cordel, pescoço os mesmos colares e ainda um fino cordel de tucum. Usam
como e de costume usá-lo. igualmente batoques nas orelhas e no lábio; apenas, é-lhes peculiar o
Os chefes distinguem-se às vêzes por meio de penas de aves prêsas costume de enrolar as pernas, desde os joelhos até os tornozelos, com
à cabeça ou a outras partes do corpo. Antigamente enfeitavam-se fibras de gravatá ou embira, a fim de conservá-las finas.

( *) V. Muaa, Reisen einige1· Missionãre der Gesellschaft J esu , p. 528. (473 ) Sõbre o tucano em questão, vide a nota 98.
292 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 293

Seja como fôr, os tapuias da costa não usam deformar o corpo. estampa 14. Quando são tratados com franqueza e benevolência,
Não há entre êles o costume, que têm os Omaguas ou Gambevas, não raro correspondem com mostras de bondade, e até fidelidade
de comprimir a testa das crianças entre duas tábuas•, para dar a e dedicação. Costumam não esquecer com facilidade um bom trata-
aparência de lua·cheia, nem o de achatar o nariz• •, como contaram mento, como é ·regra acontecer entre os povos cujo natural não foi
dos Tupinambás os velhos viajantes franceses; não mais se encontram ainda corrompido. Nas proximidades de Santa Cruz, à margem do
tais costumes nesses povos, hoje civilizados. As crianças dos Botocudos pequeno córrego Sto. Antônio, 7 a 8 milhas de Belmonte, vivia uma
são por vêzes muito bonitas e já em tenra idade mostram um topê- família, que em sua casa recebia freqüentemente um jovem botocudo,
tezinho na cabeça. e sempre o tratava com a maior amizade. Seus compatriotas penetra-
Nos caracteres morais, os povos indígenas do Brasil assemelham-se vam de quando em quando no lugar, com intenções hostis. Certo
tanto quanto na constituição física. Domina as suas faculdades intelec- dia o môço selvagem aparece dando mostras de grande aflição, fazendo
tuais a sensualidade mais grosseira, o que não impede que sejam entender que era preciso fugir, porque se aproximavam os seus compa-
às vêzes capazes de julgamento sensato e até de uma certa agudeza triotas. Ninguém acreditou nesse aviso; mas, efetivamente, surgiu
de espírito. Os que são levados entre os brancos observam atenta- um bando de botocudos selvagens, que matou a quase todos da casa.
mente tudo quanto vêem, procurando imitar o que lhes parece visível, Contudo, é sempre perigoso sair a passeio nas matas, só com alguns
por meio de gestos tão cômicos, que a ninguém pode escapar o significado dêles, por melhor que nos pareça ser, visto que nenhuma lei os detém,
de suas pantomimas. Aprendem mesmo, fàcilmente, certas habilida- quer interna, quer externa, e um incidente de mínima importância
des artísticas, como a dança e a música. Mas, como não são guiados pode provocar a sua inimizade. Por isso, é sempre mais seguro evitar
por nenhum princípio moral, nem tampouco sujeitos a quaisquer freios a sua companhia. No Rio érande de Belmonte estão convencidos das
sociais, deixam-se levar inteiramente pelos seus sentidos e pelos seus boas disposições dos portuguêses a seu respeito; pode-se lá ir com
instintos, tais como a onça nas matas. Os irreprimíveis ímpetos de suas êles à mata, até para caçar, mas, ainda assim, é necessário certa prudên-
paixões, a vingança e a inveja em particular, são nêles tanto mais cia e cautela.
temíveis, quanto irrompem rápida e subitâneamente. E' também Um dos traços mais característicos dêsses selvagens é a preguiça.
freqüente esperarem uma oportunidade favorável para exercer vin- Indolente por natureza, o botocudo descansa em sua choça, sem nada
gança, dando então plena expansão aos seus desejos de vingança. Nunca fazer, até que surja a necessidaae de alimentar-se- Ainda aqui faz êle
deixam de tirar uma desforra pela menor ofensa, e é uma felicidade valer os seus direitos de mais forte, deixando para as mulheres e filhos
quando não restituem muito mais do que aquilo que receberam. São a maioria dos trabalhos. Não obstante, a indolência dos Botocudos,
da mesma sorte impetuosos nos acessos de cólera. Nas cercanias do não é tão grande como a que Azara • nos conta dos Gu<!ranis. · Quando
quartel de Belmonte, por motivo de ciúmes, um Botocudo matou a se lhes promete um pouco de farinha e alguns goles de aguardente, êles
tiro uma de suas mulheres, que se distinguia entre as outras pela sua de boa vontade são companheiros, ·num dia inteiro de caçada. À
formosura e pela vivacidade da inteligência. Certa vez, um soldado mulher é forçoso obedecer servilmente ao marido, podendo avaliar-se
foi caçar nas matas de Belmonte, com alguns botocudos. Todos eram pelas cicatrizes de seu corpo, quanto devem temer-lhe os acessos de
muito pacíficos; mas, tendo um dêles pedido ao mulato a faca e cólera. Pertence às mulheres tudo quanto não diz respeito à caça e
esta lhe tendo sido recusada, fêz menção de apoderar-se dela à fôrça. à guerra. Elas é que constroem os ranchos, procuram tôda espécie
O soldado fêz um movimento, como se quisesse ferir o selvagem, ao de frutos para comer e levam todos os volumes durante as viagens,
que foi imediatamente morto por êle. De outra vez, vários boto- como animais de carga. ~sses múltiplos e fatigantes trabalhos não lhes
cudos de Quartel dos Arcos foram, na ausência do oficial superior, deixam tempo para cuidar dos filhos. Se são pequenos, costumam
insultados pelo suboficial; sem mais demora fizeram causa comum trazê-los sempre às costas; se já mais crescidos, são deixados a si, mesmos
e marcharam todos juntos, conseguindo-se a muito custo obter a e ràpidamente aprendem a fazer uso de suas fôrças. O jovem botocudo
paz e chamá-los à razão, por meio de boas palavras. Quando, em arrasta-se no chão até que saiba manejar um pequeno arco; depois
ocasiões semelhantes, querem se reunir, utilizam uma buzina feita daí, começa a exercitar-se sozinho, e, para sua formação, nada mais é
com a casca do rabo do tatu grande (Dasypus gigas, Cuv.), chamada necessário do que as lições da própria natureza. O amor à vida livre,
por êles "cuntschung-cocann", que eu fiz representar na figura 1 da rude e independente, grava-se desde cedo profundamente no espírito dos
jovens, e assim permanece durante tôda vida. Todos os silvícolas
(*) Os espanhóis chamam a êsse povo de "Omaguas" enquanto os portuguêses levados de suas matas para o convívio dos europeus têm suportado
os conhecem por "Cambevas". A seu respeito veja-se LA CoNOAMINE, Vovage, etc., p. 69,
e Corouratia Brasílica, tomo li, p. 826.
(**) AzARA, v ovaue, etc., voi. li, p. 60. (*) AZARA, Vovaues, etc., voi. li, p. 60.
A
294 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 295

durante algum tempo êste sacrifício, mas aspiram sempre voltar ao dos côcos. Diversas famílias vivem quase sempre dentro de uma des-
lugar de seu nascimento, e freqüentemente para ali fogem, quando sas choças, e um conjunto de choças constitui o que os portuguêses
não se atende aos seus desejos. Quem é que desconhece a mágica chamam "rancharia". Se o tempo de permanência num lugar se
atração da terra natal e dos primeiros anos da vida! torna mais longo aperfeiçoa-se a morada, dispondo em tôrno dela
Para não falar senão do caçador, qual é aquêle que, transportado estacas e ramos de árvores e reforçando sua cobertura com palha de
para o tumulto e o ruído de uma grande cidade, não suspira pela grandes fôlhas de patioba •.
mata que se acostumara a percorrer durante a infância, em pleno Todos os utensílios domésticos são espalhados pelo chão. São
gôzo dos espetáculos belos da natureza? Selvagens, que criados pelos todos muito simples, mas de melhor aparência que os dos Puris de
europeus conseguiram depois fugir, têm muitas vêzes prestado bons São Fidélis no Paraíba; quase todos são também fabricados pelas
serviços a êstes últimos, quando bem tratados; em ocasião de guerra, mulheres. Vêem-se panelas de barro cinzento, cozido ao fog:o; porém,
porém, não de raro se tornam prejudiciais, por conhecerem tôdas as nem todos os botocudos dêles se servem. Para beber e guardar água,
fraquezas das colônias. usam, na maioria das vêzes, cabaças, ou, se há moradores europeus
Quando uma horda de botocudos acampa em algum ponto da nas vizinhanças, cuias feitas do fruto ôco da cuieira (Crescentia cuiete,
floresta, as mulheres imediatamente acendem o fogo, pelo mesmo pro- Linn.); nas grandes matas empregam, porém, pedaços grandes do bambu
cesso da maioria dos povos selvagens. Tomam elas para isso um denominado taquaruçu na língua geral dos TupinamOás, hoje civili-
pau comprido em que foram feitas algumas pequenas cavidades; zados. E' .,.uma espécie de Bambusa que, conforme já tive ocasião
apóiam sôbre uma destas a extremidade de um outro pau, colocado de dizer, chega à altura de 30 a 40 pés, com a grossura de um braço
perpendicularmente e emendado quase sempre a um pedaço de flecha, forte. Para fazer um copo, corta-se um segmento do côlmo, deixando
para que fique mais longo e mais fácil de segurar, tomando-o entre numa das partes o nó, para servir de fundo. Essa vasilha, chamada
as duas mãos espalmadas e fazendo-o girar velozmente, num e noutro quecroc, cuja gravura se vê na fig. 8 da estampa l4.a, pode ter 3 a
sentido. Enquanto isso, outras colocam embaixo do pau horizontal, 4 pés de comprimento, cabe muita água, mas é sujeita a rachar-se com
no lugar em que gira a ponta do outro, estôpa tirada da casca da facilidade, sendo comum fecharem-lhe as fendas, com cêra. A água,
árvore chamada pelos portuguêses "pau d'estôpa" (Lecythis); o fogo que nunca deve faltar nas palhoças, é trazida pelas mulheres e crianças,
manifesta-se nos fiapos esparsos e comunica-se em seguida às fibras da que fabricam também linhas de tucum para pescar, cordéis de fibra
estôpa. São muito seguros os resultados com êsse aparelho de fazer de uma bromeliácea chamada pelos botocudos orontió-naric ("o" breve),
fogo, a que os botocudos chamam "nom-nan", e vem representado ou fortes cordas de embira para os arcos. Para obter fibras põem as
na fig. 2 da estampa l4.a; êle exige, porém, muito tempo e esfôrço, fôlhas nágua para amolecer a parte carnuda e retiram depois a película
sendo tão fatigante a manobra de girar o pau, que é freqüente várias externa. Essas cordas duram tanto quanto as de cânhamo. Não falta
pessoas precisarem se revezar nessa manobra, quando não dispõem de com que fabricar cordoalha nas matas virgens da América, pois para
outro meio de fazer fogo 4 74. Para tal fim são usadas duas espécies de tal fim existem, além de outros, o pau de estôpa (Lecythis), o pau
madeira; uma é quase sempre tirada da gameleira (Ficus), a outra, de embira, a embira branca, a barriguda (Bombax). E' com o pau de
da imbaúba (Cecropia). Uma vez aceso o fogo, põem-se logo as estôpa, cuja casca, cortada em grandes tiras, usam abundantemente os
mulheres a construir as choças. Cortam grandes fôlhas de palmeiras portuguêses, que êsses selvagens fazem suas camas; porque não usam
silvestres, fincando-as no solo, umas ao lado das outras em tôrno de dormir em rêdes, como os Puris e a maior parte dos povos sul-ameri-
um círculo alongado, e fazendo curvarem-se para o centro tôdas as canos. Para deitar, basta-lhes um pedaço de estôpa estendido no chão.
suas extremidades naturalmente flexíveis, de modo a formar uma espé- Essa casca parece ter parentesco com a que os índios Encabelados do
cie de abóbada. Estas rudimentares cabanas têm ordinàriamente forma rio Napo chamam "ianchama" e usam para cobrir as camas. Os habi-
alongada, às vêzes, porém, redonda; dentro delas colocam-se algumas tantes do rio Maranhão ordinàriamente dela não se servem senão como
pedras, umas em volta do fogo, outras para quebrar o caroço duro colcha ou como tapête. Frutos de várias espécies, víveres outros,
bem como as armas, constituem todo o resto dos utensílios de uma
(474) Anos atrâs (Agôsto de 1937), em viagem de estudos pelo Interior de Mato cabana de Botocudos.
Grosso, tive ensejo de ver praticado, por um !ndlo bororo de Rondonópolis, o curioso
processo que o autor vem de descrever, com a exatidão habitual. Serviu-se o operador,
!ndio maduro e bastante musculoso, de dois paus roliços, pedaços de galhos de urucu, (*) De acôrdo com a llngua geral os portuguêses chamam "fôlha de patloba" as
da grossura aproximada de um dedo; apesar de ainda melo verdes e algo umedecidos fôlhas novas, saldas de pouco do chão, do "côco de pati ", espécie de palmeira. Tôdas
pela chuva, a fina serragem acumulada em conseqüência do próprio atrito entrou em as plantas dessa bela palmeira fazem brotar do solo fôlhas pregueadas de " a ~ pés
ignição, ao cabo de duas enérgicas manobras. Esta observação, acompanhada de gravuras, de largura; os follolos acham-se então unidos ainda uns aos outros em uma larga
foi detalhada em interessante artigo de Fred. Lane, dado a lume na revista "Ethnos" extensão, e graças ao seu parênquima corláceo oferecem um excelente material para
de Stockolmo (1938, III, n.• 1, p. 1). cobrir as choças, defedendo-as da chuva.
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296 VIAGEM AO BRASIL

Uma vez instalados, a necessidade mais imperiosa dos selvagens


é a alimentação; não há limites ao seu apetite, pelo que comem ,
com grande avidez e, enquanto comem, são cegos e surdos para tudo
quanto se passa ao redor. Para conseguir a sua amizade, basta que
se lhes encha bem o estômago, e, se a isso se acrescentar algum presente,
ter-se-á como certa a sua dedicação.
A natureza, que dispôs, para a satisfação da fome dos selvagens,
os animais da mata, ensinou-lhes também a caçar e a inventar armas
grosseiras, que são sempre as mesmas em quase tôdas as partes do
mundo, a saber o arco e a flecha. Faziam uso dêles os europeus, os
asiáticos, os africanos e americanos; seu emprêgo ainda se conserva por
parte de alguns. Só os habitantes da quinta parte do mundo, por se
acharem num grau ainda mais baixo de civilização, têm a lança e
clava como únicas armas. Os asiáticos e os africanos usam a clava, o
chuço e o arco; os americanos a clava •, o arco, a sarabatana • • e a
lança • • •; os oceânicos a clava, a lança e uma arma de fogo.
De tôdas as armas usadas pelos selvagens, o enorme arco, com a
flecha de proporcional tamanho, parecem as mais temíveis. Um boto-
cudo robusto e entroncado, de olhos agudos e braços musculosos, acos-
tumado desde a mocidade a vergar o lenho duro do grande arco, é, na
solidão das florestas sombrias, motivo de verdadeiro pavor. São muito
semelhantes, em seus pontos essenciais, as armas usadas por todos os
selvagens do Brasil; notam-se, porém, às vêzes, em certas tribos,
pequenas diferenças, em parte derivadas das condições locais. Em
muitas, as flechas são feitas de uma espécie de caniço (taquara),
comum justamente nos lugares por elas habitados, e os arcos de
alguma madeira forte e elástica. As que residem na costa oriental
e na capitania de Minas Gerais constroem êstes últimos com o lenho
da palmeira espinhosa chamada airi, que em Minas tem o nome de
brejeúba, mas é entre os tupinambás conhecida por airi-açu. O lenho
fibroso dessa palmeira é extremamente compacto, elástico, muito
difícil de vergar quando de certa espessura, mas sujeito a quebrar-se
(*) Embora os "tapuias" da costa oriental brasileira não usem a clava, esta
arma é todavia encontrada entre os que combatem os portuguêses nas provlnclas de
Cuiabá e Mato Grosso. Ao número dêstes pertence a tribo que os espanhóis chamam
"Mbayás" e os "Payaguás ". Vide AzARA, voi. 11; também as tribos do rio Maranhão,
os "tupinambás ", hoje civilizados, e outras afins, faziam uso de macêtes de pau pesado
e duro, à semelhança das da Guiana.
(**) Tubos de soprar ("esgravatanas" ou "esgaravatanas"), que LA CoNDAMINE
descreveu nas tribos do rio Amazonas, sob o nome de "sarbacanes ". As pequenas
setas, a serem lançadas por um longo tubo de 10 a 12 palmos de comprimento, têm
numa das extremidades um chumaço de algodão, que fecha exatamente o ôco do tubo.
O veneno enérgico, em que foi embebida a ponta da flecha, mata ràpidamente o animal
atingido. Também von HuMBOLDT dá a descrição de tubos dessa espécie, usados pelos
lndlos do Orinoco, e feitos de um grande caniço, em que a distância de um nó a
outro atinge 17 pés. Sôbre o assunto veja·se Ansichten der Natur.
(***) A lança é uma arma muito rara nos povos nativos da América, não obstante
usarem·na as tribos eqilestres do Paraguai e as que, noutras regiões, criam também
cavalos. Ela tem o comprimento de 10 pés; as do rio Amazonas e da Guiana, pelo
contrário, usam como arma de viagem uma lança curta, enfeitada com bonitos feixes
de penas (vide LA CoNDAMINE, p. 158). Há no Gabinete real de Lisboa uma preciosa
coleção de armas dêsse tipo, em que se admiram belos ornamentos de penas.
ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 297

se é forçado em demasia. Fazem uso dessa palmeira os Puris e a


maioria dos selvagens da costa, bem como grande parte dos botocudos
do rio Doce; ela parece, porém, não crescer mais para o norte. Os
Patachós, os Machacaris, bem como os Botocudos que vivem ainda mais
para o norte, no rio Belmonte, usam para tal fim de uma outra madeira,
o "hierang", denominada pelos portuguêses pau-d'arco. Provém ela
de uma Bignonia de alto porte e belas flôres amarelas, cujo lenho
é muito resistente, elástico, branco, com cerne amarelo como enxôfre,
e bruno-avermelhado depois de trabalhado•. O lenho de airi é pardo-
escuro e dá, quando polido, armas muito agradáveis à vista. A maior
fôrça do arco está no meio e diminui gradativamente para as pontas.
Homens fortes trazem arcos de 612 a 7 pés de comprimento; mas,
entre os Patachós vi um que media 8 pés e 812 polegadas inglêsas.
A corda, muito forte, é feita com fibras de gravatá.
Nas flechas, cujo comprimento é muitas vêzes de 6 pés, usam
os Botocudos do rio Doce duas espécies de caniço, que são o ubá
e a canajuba, que é lisa, sem nós e fácil de distinguir da primeira,
porque não tem medula. No Belmonte, pelo contrário, comumente
só usam o ubá, que cresce ali em grande abundância, embora também
tragam de lugares distantes outras espécies de canas, que têm em
muito aprêço. A extremidade traseira da flecha, que deve apoiar-se na
corda, é guarnecida de penas de mutum (Crax alector) Linn.), de
jacutinga (Penelope leucoptera), de jacupemba (Penelope marail)
Linn.) 47 5, de arara, etc.; de cada lado da flecha põem uma pena, dis·
posta longitudinalmente e amarrada com a casca de um cipó. Os portu-
guêses chamam estas trepadeiras "imbê", tirado da língua geral; os
Botocudos "meli". ·
"
'<i
Há três espécies dê flechas, que se distinguem pela ponta; a saber,
I:
:§>
.... a flecha guerreira, "uagicke comm", a flecha farpada "uagicke-nig-
o meran", e a flecha de caçar animais pequenos "uagicke-bacannumock".
A primeira tem uma ponta muito aguda, alongada ou elíptica, feita
com um pedaço de taquaruçu.
Queima-se o pau para fazê-lo mais duro, talha-se e raspa-se de
modo que as bordas fiquem cortantes como uma faca, e aguça-se-lhe
a ponta como a de agulha. Estas flechas produzem ferimentos graves,
motivo pelo qual são usadas na guerra, ou para matar grandes animais;
como o bambu é ôco, o sangue corre abundantemente pelo lado côn-
cavo da ponta, de modo 1ue os animais por ela atingidos sangrem
abundantemente.
( * ) Pela primavera, Isto é, em fins de agôsto ou comêço de setembro. o pau-d' arco
se apresenta com folhagem nova de uma bela côr bruno-avermelhada, contribuindo para
dar à mata um aspecto variegado. Suas lindas flôres, amarelas e grandes, brotam em
profusão, cobrindo tôda a árvore. A casca, multo espêssa, sob a forma de grandes
placas chamadas "cavacos" servem para cobrir as casas.

(475) As três espécies de que aqui há menção correspondem, respectivamente, os


seguintes nomes atuais: Crax blumenbachii Spix, Pipile jacutinga (Splx) e Penelope
superciliaris jacupemba Splx.
A

298 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 299

Nas flechas farpadas a ponta é feita da mesma madeira que os mas, em compensação, comem também desregradamente. Se o acaso
arcos, ora de airi, ora de pau-d'arco; é fina, muito pontiaguda, lhes põe nas mãos um animal de grande vulto, todos tê~_nêle p~rte
e tem de cada lado uma série de oito a doze entalhes, dirigidos para igual, de modo que em pouco tempo se esgota uma prov1sao conside-
trás, formando as farpas. Esta espécie de flecha, que serve tanto rável. Tem-se visto sobrecarregarem o estômago de tal forma, que se
para caçar animais grandes e pequenos, como ainda para a guerra, põem a pisar os ventres uns dos outros•, E'-lhes a moderação comple-
produz também ferimentos graves. Como é difícil extraí-la, por' causa das tamente estranha, motivo pelo qual, para êles, é tão perigosa a aguar-
farpas, faz-se, quando isso é possível, com que sua ponta atravesse dente, ou qualquer bebida muito espirituosa. Incapazes de repri~ir
inteiramente, para ser então quebrada e permitir a retirada da haste, suas paixões quando em estado normal, então quando se acham :mbna-
fazendo-a girar entre as duas _mãos espalmadas. gados, é com enorme facilidade que se envolvem em sangrentas disputas.
As flechas do terceiro tipo servem só para a caça dos pequenos Na caça, sua ocupação principal, são extremamente práticos e
animais; são feitas de um ramo tendo na ponta quatro ou cinco nós, hábeis; sabem surpreender os animais com incrível precisão, no que
cujos galhos se cortam muito rente, de modo que, em vez de serem deve auxiliá-los a extraordinária acuidade dos sentidos. Conhecem
pontudas, elas terminam em roseta. Nas figuras 2, 3, e 4 da 12.a todos os rastos e sabem segui-los, com segurança, até onde os nossos
estampa, estão representados êstes três tipos de flechas, das usadas olhos nada mais vêem; sabem, além disso, imitar as vozes de todos
pelos Puris; as dos Botocudos apenas diferem por não ter nós. os bichos, a ponto de enganar a qualquer um. Sua ri.ja constituição
Para dar mais resistência às pontas das flechas dos dois primeiros fá-los suportar fàcilmente tôdas as provações, quer seJain: os calores
tipos, elas são untadas com cêra e depois passadas pelo fogo, fazendo-se do dia ou a umidade fria da noite. Se têm que dormir sem teto
também com os arcos coisa semelhante. Os indígenas do rio Mara- dentro da mata, coisa que freqüentemente acontece, acendem uma
nhão empregam igualmente madeira dura na ponta de suas lanças, ao fogueira, que aliás nunca deixam de entreter tam?ém, durante tôda
passo que os do rio Napo se servem de bambu. Os selvagens da costa a noite, no interior das palhoças. Quando os mosqmtos perseguem-lhes
oriental do Brasil desconhecem a aljava; suas flechas são muito com- o corpo, vibram ruidosas pancadas para matá-los. Tem-se feito
pridas e precisam por isso ser sempre trazidas na mão. O arco e a a surpreendente afirmação de que êsses insetos ávidos de sangue at~cam
flecha dos ameríndios são sempre de tamanho considerável, distinguin- muito mais os estrangeiros de que os nativos. Alguns autores acreditam
do-se nisso das dos povos africanos e asiáticoo. Há, não obstante, que a fricção do corpo com certos óleos ou substâncias odoríferas, seja
na América do Sul algumas nações que se servem de flechas curtas, capaz de garantir contra a picada dos referidos insetos; contudo, em-
que são transportadas em aljavas; vivem, porém, na maioria das bora não faltem na· região muitas substâncias desagradáveis aos
vêzes a cavalo, como os Charruas e os Minuanos•. últimos, parece qué os Botocudos nunca experimentaram êsse recurso,
Não há entre os tapuias da costa oriental brasileira o uso de visto como andam para lá e para cá, com o corpo sem pintura.
flechas envenenadas; usam-nas, pelo contrário, as tribos do Rio Ama- A água não costuma faltar aos selvagens durante as caçadas, pois,
zonas. A fim de aprenderem a se utilizar das armas, os rapazes além dos pequenos regatos que murmuram de todos QS lados no solo
começam muito cedo a manejá-las, usando para isso arcos e flechas pedregoso e acidentado daquelas matas, há nelas ainda inúmeras plan-
pequenas. Nos lugares secos e nos muitos bancos de areia do rio tas de refrigerante suco, como o ta~uaruçu. Como já tive ocasião
Belmonte, fomos muitas vêzes testemunhas de semelhantes exercícios, de referir, cortando-se as hastes mais tenras dêste último, acha-se no
vendo aquêles adestrados rapazes lançarem as suas flechas vertical- interior dos entrenós uma grande quantidade de água fresca, de sabor
mente a grande altura, para depois apanhá-las. Nestes exercícios os um tanto adocicado; igual fato se verifica entre as fôlhas rijas das
jovens são muito estimulados pelos pais, e fazem progressos tão rápidos Bromelia.
que dos 14 aos 15 anos podem já tomar parte nas caçadas. Os selvagens, até as próprias crianças de um ou outro sexo, têm
Nessas imensas extensões ininterruptas de florestas virgens, o reino grande habilidade para nadar. Trepam também nas mais altas árvores,
animal fornece aos selvagens rica provisão de gêneroo alimentícios, com muita presteza; para êsse fim, amarram os Puris os dois pés
não sendo menor a quantidade de saborosos petiscos que o mundo com um cipó, o que porém não fazem os Botocudos. Nas caçadas
vegetal põe à disposição de seu grosseiro paladar. Assim, encontram vão ora isoladamente, ora aos grupos; os chefes são também, de ordi-
êles tudo quanto precisam, condição tanto mais indispensável quanto nário, os que melhor atiram com o arco e os melhores caçadores,
não sabem to~ar nenhuma precaução para o dia de amanhã. Em sendo por isso muito considerados. Fazendo uso do arco, o botocudo
caso de necessidade, podem suportar o jejum durante muito tempo;
(*) E:sse processo é empregado pelo povos mais primitivos como, por exemplo,
(*) Vide AZAilA, Vovaues, vol. 11, págs. I8 e 66. os "Arauacs" da Guiana, como no-lo conta QuANDT, pg. I98.
300 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 301

tem constantemente o punho da mão esquerda enrolado num cordão olegar e 0 indicador. E' também muito importante que as penas
dap extremidade inferior da flecha estejam ~o mesmo plc:no da larga
0
p~ra n~o ser feri~o pela corda, c~da vez que é distendida; essa prax~
nao existe, todavia, entre os Puns. No punho, lugar em que antiga- taquara que termina a outra ponta.. Habitualmente nao le':am os
mente amarravam uma corda de embira, trazem atualmente os boto- selvagens consigo mais de quatro ou seis flechas, porque o compnm;nto
cudos uma linha de pescar, que tem o duplo papel de servir tanto delas fá-las muito incômodas. O tamanho coloss~l do are~ desses
para a _caça como para a pesca. Anzóis, obtêm êles dos portuguêses, indígenas e o comprimento da flecha tornam os fen~entos feitos por
por mew de troca . essa arma muito mais perigosos do que os produzidos por flechas
. Aos grandes animais, seja um bando de porcos-do-mato (Dicotyles mais curtas. ~
labzatus, Cuvier, "kureck" na língua dêles), procuram cercá-los na Para os selvagens, entre tôdas as caças da mata, os macacos sao
mata, e, caso o consigam, apressam-se em crivar os animais com o as mais apreciadas, valendo por ótimo p~tisco. Quan~? descobrem
maior número possível de setas, a fim de esgotá-los pela perda de dêsses animais em alguma árvore alta, rodei~m-na e venhcam de que
sangue, porque raramente as flechas produzem morte rápida. Da anta lado êles procuram fugir. Se a árvo~e é mmto eleva~a, um dos caç_a-
comem não só todo o corpo do animal, deixando apenas os ossos dores sobe noutra que lhe esteja próxima e tenta flecha-lo? de um~ dis-
grandes, como ainda o couro. Tanto para a caça, como para a guerra tância menor. Os Botocudos comem quase tôda a espécie ,?e amma~,
na mata, a flecha é uma boa arma e, embora não tenha a mesma efi- até os gatos do mato, a que dão o nome comum de cup~;ack ·
ciência de uma bala de fuzil, alcança tão longe quanto o nosso chumbo A onça, ou "jaguareté", é chamada em sua língua o gato grand~ ( cupa-
mais grosso, sendo além disso mais segura. A flecha é arma tanto mais rack gipakeiú"). O próprio tamanduá (M~rme~ophaga) é _comido pelos
p~rigosa qu~nto o seu golpe é vibrado sem nenhum ruído; depois Botocudos. Também não desprezam o JaCare (Crocodzlus sclerops),
disso, a umidade não tem nenhuma influência sôbre ela, que nunca muito abundante nos rios, se conseguem apan~á-lo. Entre as cob;a_s,
falh~, como sucede às nossas armas de fogo. Nas matas virgens do que de modo geral odeiam e matam, aproveitam apenas a espene
Brasil, quantas vêzes o. estado atmosférico não foi fatal aos conquis- grande do gênero Boa, conhecida dos portuguêses pelos nomes de
tadores _europeus! Estivessem molhadas as suas armas e poderiam "sucuriú" ou "sucuriúba", tirados à língua geral, e chamada pelos Boto-
ser trucidados pelos selvagens, sem nenhum esfôrço. A flecha parte cudos "kitomeniop". Espreitam o momento em que a grande cobra
veloz, por entre a espessura das fôlhas e dos galhos da mata, sem que aquática se acha em descanso, atirando-lhe, se po~sível na cabeça, uma
se possa perceber de onde ela partiu; por isso, num bando de animais flecha farpada, para que melhor se prenda; esse processo, po~é~,
bravios, podem os selvagens matar muitos indíviduos, sem que os outros dá apenas resultado com animais novos. Parece que a matam prmn-
dêem pel<:> fato e procurem fugir. Ao lado porém destas vantagens, palmente por caus~ da gordu~a ..
essa maneira de caçar apresenta também os seus inconvenientes; porque Como acima fiz ver, os mdws preferem os macacos a qualquer
a longa flecha, se atirada para cima, fica muitas vêzes pendurada nos outra caça, e, uma vez que o esqueleto dêsses animais tem tanta seme-
emaranhados de cipó, existentes nos cimos das árvores sendo então lhança com 0 do homem, é possível que os europeus, ao encon,trar
nec~ss~rio que o caça~or nelas suba, para buscá-la. Nessas ocasiões, restos das refeições dos botocudos, cometesse_m o enga?o de acusa-los
os mdws q~e empreçavamo~ d~rante a viagem na caça de aves para de preferir especialmente carne humana. Sep co~o for, como espero
nossas c~leçoes, despiam-se mteuamente de suas roupas, pois, assim mostrar adiante, êsses selvagens não podem ser Isen_:os da culpa de
nus, podiam trepar com mais rapidez. Num tronco de mediana gros- comer carne humana; todavia, parece certo que nao o faz:m po:
sura, êles colocam os dois pés à mesma altura, aplicando-lhes forte- achá-la mais saborosa, senão _que rara~ente se e.ntregam_ a essa mquah-
m.ente a planta, que molham com saliva, de encontro à casca; trepam ficável abjeção, e só com o fito de satisfazer a sede de vmgança. Tem~
desse modo com grande presteza, em atitude comparável à das rãs, se dito que os tapuias prefere~ a qualquer o~tra a carne dos negros,
quando caminham nos pântanos. nada posso decidir a tal respeitO, mas. é tambem crença que os Boto-
Para atirar a flecha, o índio a põe sempre do lado esquerdo do cudos têm os negros como uma espécie de macacos, chamando-os por
arco, seguran~o-a também com o in~icad?r ~a mão esquerda, enquanto isso macacos do chão.
puxa. par_a tras a corda, com os d01s pnmeiros dedos da mão direita. Todo 0 animal que se destina a ser comido é tomado pelas mulhe~es,
O ra~o visual deve ser dirigido em linha com a flecha, mas o arco é que o passam no fogo, para esfolá-lo, atravessand<_>-lhe elll: seguida
~antid_? s~mpre em posição perpendicular. São condições de capital um espêto de pau, que põem em pé, perto da ~ogue~ra. Assim qu:_ o
Importanna que a flecha seja reta, e de pêso equivalente em tôdas animal esteja um pouco assado, começam a dilacera-lo com as ~aos
a~ s~as partes. . Para obter a primeira, põe o índio o ôlho em e com os dentes, devorando-o meio cru, e muitas vêzes a correr am~a
direçao ao compnmento da flecha, fazendo-a girar ràpidamente entre sangue. Os intestinos, que haviam sido previamente arrancados, nao
ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 303
302 VIAGEM AO BRASIL

que as tribos indígenas que não comem sal suprem-no com outras subs-
são entretant~ postos fora, mas, pelo contrário, espremidos entre os dedos,
tâncias salinas, como por exemplo a argila (barro!), de que se tornam
pa;a se esvaziarem, depois igualmente assados e comidos. A cabeça é
grandes comedores• 477 ; entretanto, a argila do Brasil não contém sal
r01da de tal forma, que os ossos mais duros são quebrados e chupados·
algum, e eu não pude achar, entre êles, nenhum alimento salgado.
em uma palavra, nada deixam que se perca. '
Para obter o palmito a que chamam "pontiãck-atá", os Botocudos
Na ~lasse ~os ins:tos, há ~a mata certas grandes larvas, que vivem depois que possuem alguns machados, derrubam a esguia palmeira,
na madeua e sao mm_to apreciadas pelos índios. No tronco da barri- trabalho êsse que é e~ grande parte feito pelas mulheres. Quebram
gud~ (B~bax ventncosa) aparece, entre outras, a larva de Prionus o fruto do côco de imburi, a que dão o nome de "ororó", batendo com
cervzcornts) que tem quase o comprimento de um dedo. Para extrair grandes pedras, e fazendo com isso grande ruído, que muitas vêzes
estas larvas da medula mole d~ árvore, tomam êles um pedaço de pau que traiu a presença dos índios aos soldados idos à sua procura. Para lhes
a9u_çam ;mma das pontas; tiram com ela o inseto para fora, enfiam tirar a amêndoa servem-se de ossos de onça e de outros grandes felinos;
vanos deles num espêto, depois assam-nos e comem-nos. Todavia 0 cortam-lhes obliquamente a ponta e afiam-na à maneira de uma goiva:
a~ha_?o dêsse. petisco está inteiramente à mercê do acaso, porque ~ão a fig. 7 da estampa 14 representa um instrumento dessa espécie, um
dispoem de mstrumento . capaz de rachar árvores grandes. De outras tanto reduzido no tamanho. Nas raízes de certo cipó formam-se tu-
larvas, com~ a do Curculw palmarum 47 6, fazem o maior consumo. Têm bérculos, que arrancam e assam no fogo; chamam os portuguêses a
gra~~e prát~ca em achar_ovos de aves, especialmente os das diferentes essa planta "cará do mato" e consta que é muito saborosa. Nas palhoças
espeCle~ de mambus (Tznamus ou Crypturus), a macuca, 0 zabelê, 0 dos Botocudos acham-se rolos de uma espécie de trepadeira (Begonia?),
choror~? e. outras, q_ue põem os seus ovos no chão. Para pegar peixe, que sobe pelas árvores; os Botocudos põem-na abaixo, enrolam-na em
como p diSSe, fabncam com a madeira do côco-de-palmito que no rolos como os de fumo, e assarn-na ao fogo . Mastigando-a, encontra-se
Belmonte chamam içara, um pequeno arco de 3 a 3Y2 pés d~ compri- dentro dela uma medula muito nutritiva e saborosa, cujo gôsto é em
J:?ento e _uma flecha de tamanho proporcional, sem penas e de ponta tudo semelhante ao da nossa batata. Na língua dos Botocudos esta
hsa, destituída de, farpas. Costumam jogar antes, nos lugares em que planta é chamada "atschá".
a água é raza, ~aiZes esmagadas de certas árvores, a fim de atrair ou As vagens do ingá (lnga) Willd-), árvore que cresce em abun-
entorpece.r o peixe. Ra~ame~te lhes escapa à flechada o peixe que está dância nessas matas especialmente nas margens dos rios, procuram-nas
dentro d água? cheguei a ve-Ios pescar até com as flechas compridas os tapuias por causa de seu miolo branco e doce; também os europeus
de caç_a. As cnança_s é 9-ue, principalmente, pescam com 0 arco e flecha. apreciam êsse fruto . Uma outra árv01e produz uma vagem, cuja
ApreCiam ~xtraordmànamente os anzóis, que aprenderam a usar com semente, chamada "feij1W do mato" pelos brasileiros (entre os Boto-
os portug~eses, não havendo para êles presente mais agradável. cudos "uaab", pronunciado pelo nariz), é comestível e de muito bom
. O remo vegetal não fornece ao aborígine dessas matas menor sabor, depois de torrada. São estas florestas ainda ricas de muitos
cóp_Ia de produtos comestíveis que o animal. Tal é a abundância e outros frutos, entre os quais o maracujá (Passiflora) , o araticum,
van_edad~ de plantas exi~t~ntes nelas, que um botânico precisaria gastar o araçá, a jabuticaba, o imbu, a pitanga, a sapucaia e outros. Os
a VIda ~oda para a~qmnr um regular conhecimento a seu respeito. tapuias, além disso, são muito prejudiciais a tôdas as plantações dos
Cresce la uma quantidade de. frutos ~romáticos, muitos dos quais, culti- europeus; pois, tôda a vez que lhes é possível, roubam tanto o milho,
vados nos ~ornares, to~nar-se-Iam mawres, mais suculentos e mais sabo- denominado "jadnirum" na língua dos Botocudos, como a mandioca
~osos. Mmtos coqu~Iros selvagens produzem frutos comestíveis; a e outros gêneros semelhantes. Apreciam ainda a abóbora (Abobara),
IÇa~a fornece o palmito, que é formado pela parte medular da porção a batata, a banana, o mamão (Carica) e outros frutos das plantações.
~~Is alta do :aule, logo ~baixo da copa da árvore, juntamente com as Cozinham a abóbora e assam a batata na cinza quente. Quando visitam
0 has e. as flores tenras, mcluídas no brôto. Os viajantes e caçadores os portuguêses no quartel, dão-lhes comumente grandes quantidades de
fa~~tugue~es ~sam também êsse alimento agradável com um pouco de farinha. Fizeram nas proximidades do quartel dos Arcos, em Bel-
• os md1genas comem-no cru. Os tapuias aprenderam com os monte, uma plantação de fumo; mas os selvagens pilharam-na antes da
e~r~pe~s a faz:r u~o do sal; afirmaram-me no Brasil que êle teria colheita. Gostam de fumar, o que parece terem aprendido com euro-
dimmmdo consideravelmente o número de nascimentos. Azara pensa
(*) V oyages, etc., vol. I , p. 55 .
(476) Rhynchophorus palmarum G d b
de comprimento) da famllia dos Cur~ llô r~n e ( esouro (alcança mais de 4 centlmetros ( 477) A geofagia, ou hábito de comer terra. é uma perversão do a petite ocasionada
negra e élitros estriados Ion i . u m as a que pertencem os gorgulbos)' de côr por causas hoje bem conhecidas, das quais a mais comum no Brasil é a infestação por
Segundo Rod. von lhering ~~'!d.malmJonte, 0 !lla . das pragas. mais nocivas dos coqueirais. um pequeno " verme " intestinal, o N ecator ameri canus Stiles. (Vide, sôbre o mesmo assunto,
em Pernambuco, e " moleque " ~c~oBahia~ Amma•s do Brastl ), chamam-se "aramandala" a nota 479 ) .
304 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 305

peus. Todavia, já os tupinambás da costa tinham o hábito de fumar roam "carutu"•, feito de uma nefrite dura, de côr verde ou cinzenta.
fôlhas ~nroladas, quand~ os portuguêses os encontraram pela primeira Depois de convenientemente afi~da, podem com. ela abrir ramos e
v:z. DIZem que os tapmas comem sem nenhum perigo a raiz da man- troncos ocados de dureza não mmto grande; para 1sso, ora seguram-na
diOca brava, que provoca aos europeus vômitos tão violentos; consta, só com a mão, ora amarram-na solidamente entre dois paus, .grud~ndo-a
porém, que êles sempre quebram antes um pedaço, passando saliva, depois com cêra. A fig. 8 da estampa 1_3 repres:nta um desses ms~ru­
na superfície seccionada, e que não comem nunca a raiz fresca, mas mentos reduzido de tamanho. Os Galabis da Gmana, segundo Barrere,
deixam-na passar um dia; talvez que, murchando, perca ela as suas servem:se de machados semelhantes. Os brasileiros chamam tais pedras
propriedades nocivas. de corisco (pedra de raio), porque pensam que elas caem do céu durante
Há nas matas virgens do Brasil frutos que nascem em árvores as tempestades, enterrando-se profu~damente n~ solo.
extremamente altas e de lenho duríssimo; os poucos machados de Finalmente, para completar a hsta dos vanados produtos. de que
que dispõem os Botocudos, a custo bastariam para derrubar uma só, se alimentam os botocudos, devo mencionar ainda uma formiga, cha-
donde a necessida~e de lhes vir aqui em auxílio a habilidade em trepar. mada em Minas Gerais "tanajura", cujo abdômen, extraordinàriamente
Está entre as mais altas dessas árvores a sapucaia (Lecythis ollaria, volumoso, assam e têm como muito saboroso. .
Linn.), cujo fruto, semelhante a uma panela e chamado "há" pelos Tudo quanto ficou dito mostra que os Botocudos, CUJO paladar
Botocudos, contém saborosas sementes, para a posse das quais os selva- aliás 1,1ada tem de exigente, não sofrem fàcilmente fome, até porque
gens têm que entrar em competição com numerosos animais, e especial- sabem acomodar a vida às circunstâncias de cada lugar. Não obstante,
mente com as araras, de potente bico. Nenhum esfôrço acham êles às vêzes se vêem à míngua, por fôrça de seu apetite descomedido;
demasiado para obter tal fruto, pois, do contrário, nada no mundo vão então pedir mantimentos aos estabelecimentos portugu~ses, e, caso
seria capaz de fazê-los subir a árvore tão alta. Em tais circunstâncias lhos neguem, saqueiam as plantações. Têm como companheiros magros
é inacreditável a rapidez com que galgam os mais elevados cimos. cães, dados pelos europeus. Utilizam-nos muito. pa~a caçar, ma~ os
Afora êsses frutos, o mel das abelhas selvagens é outro motivo que os alimentam muito mal, motivo pelo qual são ordmànamente pérfi~os
leva a escalar as árvores mais altas. Aliás, a razão que então os move e investem, ladrando, sôbre os estranhos. Servem-se de grandes caes
não é só o mel, alimento que a mata oferece em abundância, mas tam- principalmente na caça dos porcos-do-mato, que são muito abundantes
bém a cêra, ingrediente tão indispensável a todos os seus trabalhos. nas matas e se deixam fàcilmente acuar, particularidade em que se
Nas matas intérminas da América do Sul são muito numerosas as assemelham exatamente aos porcos selvagens da Europa. Depois que o
espécies de abelhas selvagens, muitas das quais não possuem ferrão; cão dá o sinal, há tempo para o caçador aproximar-se sorrateiramente e
um entomologista encontraria nelas com que se ocupar durante muito lançar a flecha sôbre o animal. Por isso, nos seus assaltos aos destaca-
tempo 478 • Em verdade, o mel que produzem não é tão doce como o mentos, os cães grandes eram uma das primeiras coisas que roubav~:n·
da abelha européia, mas, em compensação, é muito aromático o seu Quando uma horda de Botocudos chega a caçar tanto numa reg1ao,
sabor. Para extraí-lo dos galhos ocos das árvores, são necessários instru- a ponto de não encontrar mais meios de sustento, ela imediatamente
mentos cortantes. Embora tôda a horda de Botocudos possua hoje, pelo abandona suas cabanas, e muda-se para outra parte, como costumam
menos, um machado de ferro, êles ainda se servem também do que cha- fazer outras tribos selvagens. Não lhes é nada penoso deixar o local
em que moravam até então, pois nada deixam ali que os pud~sse pren.der,
.• (~78) As. "abelhas selvagens" de que tra ta o autor constituem a famllia das
~ehporudas, CUJOS numerosos representantes, incluídos no grupo das "Abelhas sociais" e em qualquer ponto da selva irão encontrar com o que satisfaze~ to~as
VIVe!" em colmeias mais ou menos numerosas e ainda se caracterizam pela carência d~ as suas necessidades. Poucos vestígios permanecem de suas hab1taçoes
ferrao. Graças a<? extraordinário aprêço em que é tido o mel que produzem, elas figuram
entre ~s poucos msetos a que o nosso sertanejo, a exemplo do fndio, sabe distinguir abandonadas, a não ser as fôlhas sêcas das palmeiras, de que eram feitas
esJ?eclf•camente, aplicando a cada tipo nomes especiais. Assim, no número daquelas
CUJ<? mel . é particularmente apreciado, citam-se a "jataf amarela" ou "sete-porta " as suas choças, e seria baldado procurar ali bananeiras ou mamoeiros,
(Tnfiona Jatv}o a "j~~dalra;; (Melip.ona inter:upta), a "mandassaia" (Melipona quadri- como sucede com os índios da América espanhola, conforme nos conta
fasctata) • a mandun ou mandunm" (Meltpona marginata) além de muitas outras
á O matuto, até hoje, para apropriar-se do mel ("melar"),' derruba habitualmente ~ von Humboldt, em sua interessante memória sôbre os aborígines da
êvore . em ~ue se enc~ntra .o cortiço; não recuando diante do esfôrço que por
~ zts •sso 1 e custa, nao sena também por espírito de previdência ou de amor à América e respectivos monumentos••.
a ureza ~ue se ~urtaria à condenável prática, transmitida de geração a geração.
~rt~ur dNe•~ah"e ,Belisário Penna, no relatório de sua celebrada "Viagem cientlfica pelo
.? e a a •a • etc. (llfem. do Instituto Oswaldo Cruz, VIII, 10I6, ps. 115 e 201), (*) Esta pedra é a nefrite, ou, mais precisamente, a nefrite punamu, de que os
da<?-~os excelente observaçao sôbre a psicologia do fato. A bibliografia das nossas abelhas habitantes da Nova Zelândia fabricam os seus machados, talhadeiras, etc.; da mesma
s(ocJaJ~,r e~ que mereceám destaque os antigos e valiosos trabalhos de Herm. v. Ihering natureza são os "tucaraves" dos Galibis, bem como, em geral, as pedras verd~s que os
Ésepu •ca as em vern cu1o no vo!. XX~I do Bol. Auric. da Secret. da Auricult. do povos da Guiana têm em alta estima. Sôbre êsse assunto veja-se, BARRERE Beschretbunu von
t . .de f!: Paulo, 1~81) .e J. Manano F1lho (I911), devem acrescentar-se as modernas Cayenne (trad. alemã), p. 181.
contr•buiç~es de P. N,?gue•ra Neto, autor de um manual d'A criação de abelhas indígenas (**) Vide o que deixou assentado von HuMBoLDT sôbre os povos primitivos da
sem ferrao (ed. de Chácaras e Quintais ", São Paulo, 1953). América e seu monumento no novo Berlinischen Monatsschrift, março de 1806, p. !80.
A
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 307
306 VIAGEM AO BRASIL

Quando uma família de Botocudos se põe a caminho, colocam as foram encontrados certa vez numa muito mal construída; a verdade,
mulheres os poucos utensílios na sacola feita de trança (fig. 3 da estam- porém, é que hoje não possuem nenhuma.
pa 14), que ordinàriamente levam às costas, pendurada a uma tira, pas- Cada homem tem ordinàriamente muitas mulheres, tantas quantas
sada sôbre a testa. A sacola, já de si pesada, não de raro leva a sobre- possa sustentar, chegando às vêzes a possuir uma dúzia; todavia, não
carga de uma criança, sentada sôbre ela. Enchem a bôlsa de pedaços de encontrei nenhum com mais de três ou quatro mulheres. Os casamentos
taquara para pontas de flecha, cascos de tatu e de tartaruga, urucu para se realizam sem nenhuma cerimônia, dependendo apenas da vontade
tinta, estôpa ou entrecasco para cama de dormir, ossos para comer côcos, do casal e dos pais; também podem ser dissolvidos ~om a mesma
algumas pedras pesadas para quebrar êstes últimos, cordas de gravatá facilidade. Na ausência do marido, a mulher pode fugu para a com-
e de tucum, bolas grandes de cêra, colares feitos de contas, batoques panhia de um outro, que tenha feito uma grande caçada, sei? que daí
para os lábios e para orelhas, trapos velhos e outras cousas que tais. lhe advenham conseqüências desagradáveis. Se, porém, o mando encon-
Encontrei certa vez, em viagem, um chefe, carregando dois grandes tra a mulher em companhia de outro homem, castiga ordinàriamente a
sacos; debaixo do braço levava êle um grande feixe de flechas, arcos, sua infidelidade dando-lhe muita pancada, e no acesso da cólera serve-
caniços para flechas e ainda um grande ancorote taquaruçu. A vinheta se do primeiro objeto que acha à mão, muitas vêzes até de um tição
do 11.0 capítulo do 1. 0 volume representa uma imagem fiel desta cena. ardente, fatos de que se vêem abundantes vestígios no corpo das mulheres.
Carregada dêsse modo atravessou um braço do rio Belmonte, com Muitos homens, nessas ocasiões, chegam a assinalar as suas mulh~res
água até aos quadris, uma horda, composta de homens, mulheres e a faca; golpeiam-nas nos braços e nas coxas, de modo que mmtos
crianças. Uma mulher, já muito carregada, tinha ao ombro uma criança anos depois vêem-se ainda ali cicatrizes de seis a oito polegadas e com
pequena e levava pela mão uma maior, em cujo ombro, por sua vez, ia uma de largura, muito próximas uma da outra. Foi assim que um chefe
ainda uma mais pequena; a água chegava até à altura dos ombros da botocudo (capitão Gipakeiú) cortou à sua mulher todo o rebordo das
grande, e a pequena, por conseguinte, nela mergulhava os pés. A IO.a orelhas e do lábio, deixando os dentes inferiores inteiramente a des-
estampa figura de modo exato essa família em viagem. coberto, de modo a desfigurar-lhe horrivelmente a fisionomia.
Afora o que foi ainda referido, levam também em suas peregrinações O casamento dá às vêzes aos botocudos muitos filhos, que, pelo
muitos gêneros alimentícios, tais como frutos, carne, etc. O homem menos enquanto pequenos, são muito querid~s e mu~to cuidadosamente
viaja ao lado da mulher, sem carga e apenas com o arco e a flecha na tratados. Muitos escritores, Azara em particular, mformaram-nos da
mão. Quando não são largos os rios, atravessam-nos em pontes feitas existência entre índios da América de hábitos contra a natureza;
com cipó, que em cada lugar quase sempre preparam de antemão, nenhum vestígio dêles encontrei ~o~ém entre os .t~p.uia~ da costa
para êsse fim. São muito grosseiras e constituídas de um único e com- oriental do Brasil, não obstante o mfimo grau de ClVIhzaçao em que
prido cipó, estendido um pouco bambo acima da superfície da água; se acham. Os Guanas• enterrariam vivas as crianças recém-nascidas do
marcham sôbre êle em pé, segurando com as mãos um outro, estirado sexo feminino· os Botocudos tomam-se de horror a uma simples pro-
mais acima•. Sôbre tais pontes atravessa a horda tôda, velhos e posta desta espécie. Dos "Mbayas" (a) conta o referido autor que é
moços, com tôda a bagagem. Nas proximidades de Quartel dos Arcos, hábito fazer abortar todos os filhos depois do primeiro casal e que
onde o rio faz grandes curvas, acha-se um pequeno banco de areia, para isso as mulheres grávidas deixam que outras l~es dê~m ~ôcos no
chamado Coroa do Gentio, onde atravessam sem ponte. Os Botocudos ventre, até a expulsão da criança. Também esta práttca é mteuamente
não possuem canoas e nem outra qualquer embarcação; as tribos da
desconhecida dos Botocudos, em cujas matas não se tem notícia de
costa, pelo contrário, constroem grandes embarcações, com casca de
nenhum hábito antinatural análogo. Segundo o mesmo autor, os
árvore, semelhantes às que viram os primeiros descobridores, Cabral e
Gaiucurus (b) só deixariam sobreviver o último filho; da mesma. ma-
outros. Antes da instalação, pelos europeus, dos postos militares, ou
quartéis, nos rios do interior, os Botocudos só sabiam atravessar os pe- neira os "Lêngoas" e os "Machicuís" (c) fariam morrer todos o~ hlhos
quenos rios, e nos lugares mais estreitos; é verdade que foram sempre até o primeiro homem. Embora não me abalance a supor haJa pura
bons nad~dores, mas não levavam consigo a bagagem; depois daí, invencionice nestas asserções, parece-me muito provável q~e p~ov.e?ha
tanto no no Doce, como no Belmonte, tentaram construir canoas. Foram de fatos mal observados, pois que eu entre os selvagens mats prnmt1vos
vistos embarcados em troncos ocos de barriguda, que governavam com das selvas este-brasileiras, a quem não repugna assar e devorar a carne de
um pedaço de pau. Contam até que no primeiro daqueles rios, já seus inimigos, nada observei nem ouvi contar de semelhante.

(*) AZABA, Vovaues, etc., vol. 11, p. 93; (a) Idem, p . 116; (b) idem, p. UG;
( *) H u MBOLDT encontrou também pontes feitas de cipó entre os indlgenas do (c) idem, p. 152 e 156.
Orenoco. Vide Ansichten der Natur, p. 2u.
308 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 309

Os Botocudos tiram os nomes dos seus filhos de atributos dos circunvizinhos; como de regra em tôdas essas gentes, é muito pobre,
objetos, de animais, de plantas, ou coisas semelhantes; temos assim, como a mesma palavra possuindo numerosas significações. Dispõem só de
por exemplo, "Ketom-cudgi" (ôlho pequeno), "Cuplick" (macaco poucos números: um diz-se "~okenam", dois "hentiatá", mais _ou
berrador). Costumam tratar os filhos com benevolência, isto é, fazer- muitos "uruhu"*; passando dai, socorrem-se dos dedos das maos
lhes tôdas as vontades; só o seu chôro lhes causa impaciência. Nestas e pés. Há muitas sílabas que pronunciam com o céu da bôca, como por
ocasiões seguram-nos pelo braço e mandam-nos embora para longe, exemplo "bacan" (carne), em que o an soa indistintamente como pro-
ou então lhes batem com a mão, ou mesmo com um pau. Os partos duzido pela abóbada palatina pronunciando-se ainda o último an à
das mulheres são, como em quase todos os selvagens, muito fáceis, não maneira francesa; também o g no comêço das palavras, como em "gipa-
se encontrando aleijados entre êles. Os Botocudos não são inteiramente keiú", soa quase como ch alemão, pronunciado até certo ponto com a
despidos de amor, ou pelo menos de cuidado, pelas crianças e pelos ponta da língua. .
velhos desvalidos; há disso muitas provas. Viu-se no Quartel dos Tem-se dito que para tornar uma festa perfeitamente alegre,
Arcos um môço que conduzia pela mão, com muito cuidado, o pai homens e mulheres se reúnem em círculo e dançam; Queck porém,
cego, e nunca o abandonava. Um de seus chefes sentiu extraordinária um de meus botocudos, afirmou-me nunca ter êle assistido alguma dança
alegria com a volta de um filho de dezoito anos, que durante muito dessa espécie. Em compensação, entregam-se a outros exercícios e diver-
tempo estivera ausente, entre os portuguêses; apertou-o então de timentos. Fazem às vêzes para si flautas de canudo de taquara, com
encontro ao peito e tinha até lágrimas nos olhos. Não observei porém, alguns orifícios na extremidade inferior, que comumente são tocadas
como Sellow pretende ter verificado, que os botocudos tomassem uns pelas mulheres; fora êste, não se vê entre êles nenhum instrumento
aos outros as pulsações nos punhos, seja para exprimir as boas vindas, de música. O missionário Weigl fala da existência de flautas análogas
seja em qualquer outra circunstância. entre os Maynas; Barrere e Quandt v-iram-nas na Guiana. As crianças
Para com os jovens mais crescidos, os selvagens parecem demonstrar e os jovens divertem-se, como já tive ocasião de dizer, atirando com o
indiferença, fato de que já narrei significativo exemplo, ao ocupar-me arco; entre os adultos observa-se algo de semelhante ao jôgo da péla.
dos "Puris" de São Fidélis, no rio Paraíba. Isso condiz exatamente Usam para êste fim uma grande bola feita com um couro de preguiça
com o caráter dos povos em estado primitivo; está igualmente provado (Bradypus), chamada por êles "ihó", a que tiram a cabeça e os membros,
que a sensibilidade dos Botocudos não é tão grande como no-lo conta cosem as aberturas e enchem depois de musgo. Todo o grupo, muitas
Lafitau, reproduzindo o que ouvira de um missionário brasileiro; vêzes numeroso, se distribui em círculo, cada um jogando a bola para
nenhum sinal se percebe de tão finos sentimentos. Não se pode efetiva- outro, sem deixar que caia ao chão. As vêzes entregam-se, nos rios,
mente esperar encontrar na natureza bruta dêsses homens os senti- a um outro divertimento, que consiste em lutarem nadando doze ou
mentos de delicadeza e de afeto que a cultura e a educação desenvol- mais mulheres em companhia de três ou quatro homens, procurando
veram em nós; mas, nem por isso devemos pensar que nêles sejam cada qual fazer os outros mergulhar, exercício êsse em que é de admirar
completamente embotados todos os atributos que distinguem o homem a destreza com que nadam. Embora a maioria dos povos selvagens
dos irracionais. sejam peri.tos nessa arte, não tem razão Azara em afirmar que os "Gua-
Nas horas de descanso, para passar o tempo, os Botocudos se ranis" são nadadores de nascença nem tampouco Southey, quando
divertem cantando e pilheriando, o que particularmente acontece depois escreve que os Aimorés não sabem nadar. O certo é que nenhuma
de uma boa caçada ou de um combate feliz. Sua arte musical é, toda- das tribos indígenas do Brasil desconhece esta habilidade; para isso
via, das mais rudimentares. Nos homens o canto se assemelha a um seria necessário que alguma habitasse estepe inteiramente destituída
ruído desarticulado, que oscila invàriavelmente entre três ou quatro de água. A asserção de Southey, repetida por alguns escritores, decorre
notas, ora subindo ora descendo, e parece provir do mais fundo do do fato de não possuírem os Aimorés canoas, como tôdas as outras
peito; erguem então o braço esquerdo acima da cabeça, ou senão tribos, de modo que, viajando pelo rio, está-se a salvo de seus ataques.
fecham os ouvidos com os dedos, especialmente se há pessoas a assistir, Nunca vi que os divertimentos dessem lugar, entre os tapuias, a
abrindo enormemente a bôca, deformada pelo batoque. As mulheres desinteligências, disputas ou brigas; isso nada tem que ver, porém,
cantam mais baixo e de modo menos desagradável; mas também não com a minha observação, já anteriormente descrita, de um terrível
vão além de umas poucas notas, incessantemente repetidas. Consta duelo a cacête, motivado pela penetração em alheio território de caça.
que figuram no canto palavras referentes à guerra ou à caça; o fato é
que tudo quanto tive oportunidade de ouvir dêles pareceu-me um ( *) Entre os Arauacks da Guiana esta noção se exprime por têrmo parecido:
simples vozear, sem palavras. A língua que falam, abundante em sons "ujubu ", embora nenhuma semelhança exista entre as duas Jinguas. Ocorrem, além
disso, na costa da Guiana muitas pala vras brasileiras, pelo fato de terem para lá
nasais, mas destituída de guturais, é muito diversa da de todos os grupos emigrado muitos lndios da América portuguêsa.
310 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 311
Cqm~ates em que tomam part~ tôda a horda ou família, podem ocorrer ataque é feito debaixo de enormes gritos e, quando os inimigos chegam·
em v1rtude de ofensa grave feita a algum dos membros ou mais comu· se mutuamente ao alcance das mãos, entram em ação unhas e dentes.
mente, como foi há pouco referido, por desrespeito à reira que esta- Uma xilogravura de Léry dá-nos figura muito exata de um dêsses
be~ec,e ~ara cada g:rupo ou horda um distrito de caça especiaL Desin- combates entre Tupinambás e Margaiás, que ainda em nossos dias
tehgen_oas do~ésticas são muito freqüentemente o ponto de partida seria verdadeira. O vencedor sai ordinàriamente em perseguição aos
das bngas. E , por exemplo, a criança com fome, que enquanto a mãe vencidos, e, pelo menos no que respeita aos Botocudos, só faz muito
está a assar a carne, at?rmenta·a com chôro e gritos; aparece 0 pai poucos prisioneiros. Contaram-me, porém, terem sido vistos alguns
e dá-lhe pancadas; a mae, porém, toma a defesa do filho· enfurece-se em Belmonte, utilizados em trabalhos diversos, como escravos. Se
com isso, o marido contra a mulher, dando-lhe uma gra~de sova; 0 ~ conseguem os Botocudos pôr a mão em seus inimigos, sejam êles Pata·
pa_rentes ,;,ntram ent~o em cena, arma~ uma briga a cacête (chamada chós, a que chamam "Nampuruck", ou "Machacaris" ("Mavon"•,
giacacua , pronunciando-se pelo nanz), em que não de raro toma na língua que falam), homens, mulheres e até as crianças são por êles
parte tôda a horda ou tôda a tribo. Finda a luta, marido e mulher se mortos. A carne é devorada por alguns, exceção feita da cabeça e do
separa~, as crianças f~ca~ co~ a_ última, que passa a viver às expensas ventre, que põem fora. Na região do baixo Belmonte asseguraram-me
do pai. H?mens assim nasoveis recebem comumente o castigo que que se acaso çlerrubam a flechadas um patachó de cima de uma
merecem, nao enco~tran~o mul~er que os queira. Essas desavenças árvore, deixam-no apodrecer intacto sôbre o solo. Esta asserção é
t~azem o~tr~s após s1. Rixas mais graves envolvem tôda tribo, condu· todavia desmentida pelo depoimento de meu botocudo Queck. Das
zmdo assim a guerra. numerosas hordas dessa tribo, que habitam o rio Grande de Belmonte,
_Os Botocudos, numer~sos, cônscios de sua fôrça, irrequietos e ávidos algumas há que vivem em harmonia com os portuguêses. Entram nesse
de hberdade, raramente VIvem em paz com os vizinhos durante muito número as dos chefes (capitães) Gipáqueiú (Maciengieng), Jepareque,
tempo. Desde a época das primeiras descobertas houve no Brasil June (Querengnatnuck) e ainda uma quarta, que todos hoje podem
assim como em tôdas as partes do mundo, povos selvagens em guerr~ acompanhar nas matas, sem receio.
permanente ~~s com os outros. Nesse caso, estão os Botocudos, que Todos se queixam de um certo chefe, de nome Jonué Jackiian.
guerreavam mmterruptamente as tribos vizinhas, levando sôbre elas Vagueia êle habitualmente pela margem norte do rio Belmonte, na
a vantage~ de serem mais f~rtes e muito temidos, por terem a fama Cachoeira do Inferno, a cêrca de oito dias de viagem da ilha da Ca-
de a~ltropo_fagos. f.les repehram para as altas montanhas de Minas choeirinha, rio acima. Tôdas as propostas de paz têm sido, até agora, por
Gerais e Mm~s Novas outras ~wrda~ de selvagens, que quase destruíram, êle rejeitadas, tendo-lhe sido dado pelos seus compatrícios, por causa
ent_:e as quais as dos Malahs, CUJOS remanescentes vivem sob a pro· de sua belicosidade, o apelido de Jarian (o guerreiro). Viajantes que
teç~o do ~uartel de Peçanha, no alto Rio Doce. Já os Maconis, passam no rio em canoa têm sido convidados a descer, sendo depois
mUito mais numerosos, ~puseram-lhes maior resistência; segundo 0 recebidos a flechadas. Os próprios botocudos mansos do Quartel dos
t:stemunho de pessoas ~hgnas de fé, levam agora vida sedentária e Arcos temem enormemente êsse chefe selvagem e hostil, dizendo às vêzes
sao_ em grande parte batizados. f.sse povo era tido como um dos mais aos portuguêses que se Jonué fôsse morto haveriam de comê-lo, o
b_ehcosos, sendo feitos no rio Doce grandes elogios à sua bravura. Con- que. bem exprime o ódio que lhe votam. Kerengnatnuck tinha porém
si_deram-no alguns uma tribo dos botocudos, o que todavia é errôneo, motivo especial para odiá-lo, porque um de seus irmãos fôra por êle
VIsto como a língua que falam é inteiramente diferente da dêstes últimos. morto, só por causa de um machado, quando no alto de uma árvore
. Do la~o da costa marítima os Botocudos vivem em guerra com ocupava-se em extrair mel de abelha selvagem. Graças às medidas
diversas tnbos, entre as quais destacam-se particularmente os Pa- humanitárias e adequadas, e aos esforços do Conde dos Arcos, então
tac~ós e os Machacaris; mais para o interior, com os Panhamis governador da capitania da Bahia, e hoje ministro da marinha, cessou
e amda com outras, mais ou menos a caminho de desaparecimento n_o Belmonte a guerra com os botocudos, podendo-se agora viajar sem
com~ os Capuchos. Todos êsses últimos, por serem mais fracos: nsco, em quase todo o rio. O mesmo não se dá no Rio Doce, onde os
reumram-se c?ntra os Botocudos. As próprias hordas de tapuias selvagens, apesar de terem sido muitas vêzes batidos, ainda na primavera
travam ~ntre si, ru?es c,ombates, qua?~o acaso se encontram. Empregam de 816 voltaram a fazer suas ameaças.
~essas Circunstanoas toda a sua astuoa e todo o seu tino de caçadores· , A guerra contra os selvagens é feita por meio de caçadores e de
e natural . • porém , que se d eixem
· · depressa enganar pelos seus'
ma1s forças volantes nas matas. Uma parte dos soldados é protegida contra
~omp~tnotas do que pelos Brancos. Ordinàriamente trava-se terrível as flechas pelo chamado "gibão d'armas" (couraça), a respeito do qual
a~al a, em que tôdas as flechas são utilizadas por ambas as partes
ca endo geralmente a vitória a quem as possua em maior número. Ó (*) O on no final das palavras soa como na lhigua francesa .

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312 VIAGEM AO BRASIL ALGUMA& PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 313
já me estendi anteriormente. Os sentidos dos selvagens, exercitados por meio de dentadas e arranhões; um soldado abriu-lhe o crânio
desde a infância, tornam-se de uma extraordinária acuidade. Diz-se com um golpe de facão, tão violento, que chegou a ferir a cabeça
que chegam a reconhecer as diferentes tribos pelo rasto, e que são do menino que ela trazia às costas. A criança foi, ainda assim, poupada
capazes de descobrir pelo olfato o rumo por elas tomado, podendo e podemo-la ver depois na colônia supramencionada, em casa do tenente
assim atingi-las através de caminhos abertos e limpos. Se percebem João Filipe Calmon. Não obstante tudo isso, nem sempre é tão
que há inimigos perto, a espreitá-los, como costumavam fazer os soldados favorável para os soldados o resultado dêsses recontros. Ainda no
dos destacamentos, fincam às vêzes no caminho pequenas estacas penúltimo ataque, levado a efeito pelo guarda-mor com cêrca de 30
pontiagudas de bambu e põem-se depois em emboscada; usam mesmo soldados, em outubro de 1816, perto de Linhares, uma grande chuva-
como esconderijos árvores caídas, ou outro qualquer anteparo. Quem rada impediu que as armas de fogo funcionassem, de modo que muitos
passe então calmamente pelo caminho, sem pensar no perigo, cai infa- botocudos escaparam, ferindo três soldados nos braços e nas mãos,
livelmente vítima de suas rijas setas. Quando um estabelecimento onde não havia a proteção da couraça; uma grande quantidade de
europeu, ou um pôsto militar, é por êles atacado, deixam-se geralmente flechas resvalou, porém inutilmente, de encontro às vestes. Foram
correr uns três ou quatro dias, sem nada lhes fazer; assim torna-se abatidos nessa ocasião cêrca de dez selvagens, entre os quais o chefe
mais garantido cair depois sôbre êles com facilidade. Para ir ao seu enfeitado de penas, que fôra morto dentro da própria casa. Alcançada
encalço através das matas, recebem os soldados uma libra de pólvora a vitória e postos em fuga os índios, cortaram-se as orelhas dos mortos,
e quatro libras de chumbo, sendo muito raro fazer-se uso de bala. troféus que, segundo me contaram, tinham sido, não há muito tempo,
Levavam um mosquetão sem baioneta e, geralmente, um facão à remetidos ao governador, na vila de Vitória; foram também enviados
cintura; às costas uma longa mochila, com uma quarta e meia (meio muitos arcos e flechas obtidos no combate.
alqueire saxão) de farinha, um pouco de rapadura (pedaço grande Se os selvagens, porém, estão prevenidos da aproximação dos
e quadrangular de açúcar grosseiro e escuro), e ainda doze libras de soldados, os acontecimentos tomam rumo muito mais funesto para
carne sêca, tudo isso ração calculada para doze dias. Descobertos os êstes, que caem fàcilmente nas emboscadas que lhes foram preparadas.
sinais dos selvagens, o bando segue-lhes a pista, aproximando-se pouco Armam os índios nessas circunstâncias as chamadas "tocaias", que
a pouco do local em que os primeiros devem estar estacionados. Se são esconderijos em cuja volta o mato foi desbravado, de maneira a
acontece a sorte de lhes descobrir os ranchos, muitas vêzes em grande permitir atirar em tôdas as direções; os galhos seriam também arran-
número e próximos uns dos outros, mormente se à noitinha, faz-se-lhes jados de tal maneira que os lutadores poderiam ficar atrás dêles em
em tôrno um grande cêrco, cada qual se deitando sem o menor ruído, várias turmas, escondidos pelos troncos das árvores. Não costumam os
à espera que amanheça. Ao fazer êste cêrco é necessário ter cuidado selvagens combater em campo aberto, faltando-lhes verdadeiramente a
com os cães e os porcos-do-mato, que os selvagens costumam amarrar coragem, pelo que as suas vitórias são obtidas exclusivamente à custa
às árvores, a uma certa distância, para sua segurança. Quando farejam de astúcia ou da superioridade numérica. Causa horror o simples
alguma cousa estranha, os cães se põem a latir e os porcos a grunhir pensamento de cair nas mãos dêsses implacáveis bárbaros a quem uma
desabaladamente. Assim que o dia desponta, os soldados, dois a dois, justa e ilimitada sêde de vingança torna ainda mais terríveis. í.les
se distribuem em círculo, ocultando-se atrás dos troncos das árvores fazem em tiras a carne de seus inimigos, cozinham-na em sua panela,
grossas, quando isso é possível, até que o dia tenha clareado bastante ou assam-na; espetam-lhes depois, com grande festa, as cabeças em
para permitir uma boa pontaria. Desfecham então o ataque, em que estacas, em tôrno das quais dançam, cantam e gritam. Os ossos, depois
tomam a frente os que estão protegidos de couraça. Quando conseguem de chupados, seriam pendurados em suas cabanas, como narra também
chegar até as choças sem serem percebidos, apontam para dentro as Barrere, a respeito dos índios da Guiana.
armas e fazem fogo sôbre os moradores adormecidos. Aos primeiros Os europeus são ainda muito fracos nas imensas matas do Brasil
tiros estabelece-se enorme confusão, com berros e exclamações; homens oriental; fôssem os selvagens unidos entre si e se juntassem todos para
e mulheres e crianças são mortos pelos seus ferozes perseguidores, sem atacar o inimigo comum, e a costa não tardaria a cair novamente em
distinção de sexo ou idade. Os homens lançam mão dos arcos e flechas, seu poder, uma vez que muitos dêles, fugidos das cidades, conhecem bem
mas ordinàriamente sucumbem, em virtude da desigualdade das armas. os pontos fracos dos europeus. Vivia, por exemplo, nas proximidades
A fumaça da pólvora, condensando-se ao contacto da umidade retida de Linhares um botocudo, conhecido entre os portuguêses pelo nome de
pela vegetação, envolve a mata numa escura nuvem baixa e espêssa. Paulo, mas que fugiu depois para a mata. Ao ser atacada a aldeia em
A crueldade dos soldados nesses ataques excede a tudo quanto se possa que fôra residir, êle gritou para os soldados, em português: "não
imaginar. No ataque dirigido aLinhares, pouco antes de minha chegada, atirem em Paulo!" Foi, porém, encontrado depois, entre os que dali
prendeu-se uma mulher, que não queria se entregar, defendendo·se não mais se levantaram. Quando lhes sobra tempo, os tapuias ordi-

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314 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 315

nàriamente carregam às costas, para lugar seguro, os seus mortos e muito tempo ábandonado aquêle hábito. Contou-me então a cena que
feridos; gastam nisso às vêzes muito mais tempo, o que a muitos tem vou narrar, e de cuja verdade devemos tanto menos duvidar, quanto
custado a vida. Para entrar em combate pintam-se os botocudos de ver- mais difícil nos foi conseguir dela sua descrição. Um 'chefe de nome
melho e de prêto. Aos que nunca assistiram dessas cenas, terrível deve "Jonué cudgi", filho do famoso "Jonué iakiiam", aprisionara um
ser a impressão produzida por um ataque dêsses selvagens, com a cara patachó. Todo o bando se reuniu, o prisioneiro foi trazido de mãos
vermelha esbraseada, e debaixo de estrondosa gritaria. Não há muito amarradas, sendo morto por: "] onué cudgi", com uma flechada no
que investiram desta sorte sôbre o Quartel Segundo de Linhares, onde peito. Fizeram então uma fogueira, onde foram cortadas e depois
foram todavia repelidos pelo suboficial comandante, um mineiro deci- assadas, as coxas, os braços e as outras partes carnudas do corpo, que
dido. Tudo que acaba de ser dito sôbre a maneira de caçar, de guerrear e todos depois comeram, dançando e cantando. A cabeça foi pendurada
sôbre o modo de vida dos botocudos, aplica-se mais ou menos a tôdas num poste, por meio de uma corda, que entrava pelos ouvidos e saía
as tribos indígenas da costa oriental do Brasil. pela bôca, de modo a poder-se erguê-la e abaixá-la. Ali ficou a secar,
Quase todos os primeiros viajantes concordam em acusar de antro- depois de lhe haverem arrancado os olhos e raspado os cabelos, com
pofagia a maior parte dos indígenas do Brasil; contudo, talvez se tenham exceção de um tufo sôbre a testa •. Queck contou ainda outro exem-
enganado com relação a muitos dêles, uma vez que os membros dos plo, de um botocudo bem conhecido, chamado Mecan, que matou e
macacos, depois de secos, assemelham-se muito aos das pessoas e pode- devorou um patachó. Da maneira pela qual êsses selvagens, em seus
riam ter passado como tais. O mesmo fato pode ter acontecido com festins canibalescos, suspendem as cabeças de seus inimigos, conclui-se
referência à carne que Vespucci encontrou nas cabanas de índios. Apesar a_ significação_ da cabeça mumificada, que existe na coleção antropoló-
de tudo, não é sem fundamento que se tem noticiado a existência gica do Sr. Rltter Blumenbach, em Gõttingen. Ao tratar dos trabalhos
daquele bárbaro costume em muitas tribos de selvagens brasileiros. que os selvagens do Brasil fazem com penas, tive o ensejo de referir-me
Os tupinambás e outras tribos da costa aparentadas com êles, engor- à cabeça em questão, que está representada na 17.a estampa. Parece
davam os ?risioneiros e depois os matavam com "ivera-peme", nome que ela também foi suspensa em alguma festa, por uma corda passada
que davam a uma pesada maça de madeira, cheia de enfeites•. O car- pela bôca e pelas orelhas. E' possível que muitas das tribos que
rasco devia depois disso permanecer quieto na rêde, e, para que seus outrora comiam sem pejo a carne dos inimigos, tenham deixado já
braços não perdessem a segurança nos golpes, punha-se a atirar com um êste bárbaro costume, principalmente nos pontos em que se acham em
pequeno arco numa bola de cêra u. Tôdas essas tribos tupis acham-se boas relações com os europeus. A própria energia com que os boto-
civilizadas nos dias de hoje, persistindo porém o hábito da antropo- cudos de Belmonte defendem a sua horda da acusação de praticá-lo,
fagia em alguns ramos de tapuias, como os Botocudos e os Puris. E' prova que êles acabaram por se convencer de quanto é degradante
difícil acreditar, como alguns afirmam, que comam carne humana por semelhante costume e justifica a esperança de que êsse povo, cujo
uma questão de gôsto, pois fala contra isso o fato de que também dei- estágio de civilização é de todos o mais baixo, possa gradualmente pro-
xam prisioneiros com vida; não há dúvida porém que, por vingança, gredir para um grau de cultura mais avançado.
devoram a carne dos inimigos mortos em combate, como prova muito Doenças são, de modo geral, muito raras entre os tapuias. Nas-
claramente a declaração feita pelos chefes mansos do rio Belmonte, cidos em plena Natureza, criados em completa nudez, habituados a
de comerem a Jonué, seu inimigo comum. Quando se interrogavam tôdas as mudanças do clima tropical, aos calores ardentes do dia, como
os botocudos de Belmonte sôbre êsse horrível costume, negavam sempre ao frio e à umidade das matas e das noites, nenhuma influência tem
a sua existência entre êles; acrescentavam porém usarem-no ainda a atmosfera sôbre o seu organismo resistente, ao mesmo tempo que
Jonué e outros compatrícios seus. Que fariam êles então dos braços a simplicidade de seu modo de vida isenta-os dos males, que inevi-
e pernas cuidadosamente cortados aos inimigos mortos? Além disso, tàvelmente traz a civilização. Os banhos freqüentes e o exercício
o que contou o jovem botocudo Queck, tira qualquer dúvida a res- contínuo dão ao corpo uma perfeição, de que conhecemos apenas o nome.
peito. Durante muito tempo receou êle falar-me a verdade sôbre o A experiência lhes ensinou muitos meios de combater não só os
assunto; resolveu porém, finalmente, fazê-lo, depois que lhe assegurei feri~entos ex~ernos como até v~rias doenças. Com ela aprenderam
saber que todos os da sua horda, no baixo Belmonte, haviam desde mmtos reméd~os, alguns dos qua1~ talvez pudessem achar aplicação em
nossas farmácias. Grande quantidade de plantas aromáticas e ativas
(*) Vide a história verldica de HANS SrADEN, cap. XXVIII. As mulheres existe nas matas; muitas árvores fornecem bálsamos excelentes, como
desempenhavam papel importante nesses festins. BARRERE conta que as mulheres das
tribos da Guiana procedem de modo diverso, manifestando a sua reprovação pelas
refeições canibalescas dos homens. (*) Também os lndlgenas da Guiana içam as cabeças dos inimigos. Ver sôbre o
(**) Idem. assunto BARRtRE, edição alemã, p. 127.
316 VIAGEM AO BRASIL "
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 317

por exemplo a copaiva• (Copaifera officinalis), o bálsamo peruviano passando casualmente perto ào rapaz, foi por êste ainda mais provocada
(Myroxylon peruiferum) e muitos outros; outras produzem um leite, com uma flechada, investindo então sôbre êle a dentadas e dilaceran-
ora mais ou menos venenoso, ora com propriedades curativas. Famí- do-lhe todo um lado. O ferimento começava na parte mé'd ia do peito
lias inteiras de plantas fornecem cascas benéficas à saúde, tais como e fazia tôda a volta do omoplata, até às costas; os tecidos tinham
as das espécies de Cinchona, de que na região existem várias. Conhe- sido muito bem costurados e reconstituídos. Dizem que os selvagens
ceriam os selvagens tôdas as plantas dotadas de ação sôbre o seu orga- curam infalivelmente as mordeduras de cobras, e que entre êles ninguém
nismo, cabendo quase sempre aos velhos opinar sôbre as suas virtudes. morre por êsse motivo. E' essa a opinião dos portuguêses, com
Não é fácil conhecer os remédios que usam porque disso, mesmo entre que aliás muito pouco concorda o depoimento do jovem Queck,
si, fazem segrêdo. Quando se lhes pergunta como pode ser tratada que me diz não conhecerem os botocudos do Belmonte nenhum
esta ou aquela doença; respondem: "venha conosco à mata, haveremos remédio contra tais mordeduras, de que muitos morrem. Segundo o que
de experimentar". Sirva de exemplo um caso, cuja verdade me foi me informou, o único remédio consiste em amarrar um colar
muitas vêzes afiançada. Um índio, que morava em Trancoso, sofria ("pohuit") acima da região mordida. Entre as moléstias das cri-
de lJm grave incômodo intestinal; os patachõs levaram-no consigo para anças, merecem especialmente menção as que advêm do hábito de
a mata e em três meses deram-no completamente são. Puseram-lhe comer terra. A fome fá-las às vêzes pôr terra na bôca e engoli-la. E'
sôbre a cabeça, como êle me contou, um pau em forma de forquilha, e bem verdade que os pais severamente as repreendem se conseguem
depois de colocarem o intestino no lugar devido, aplicaram sôbre o lugar então surpreendê-las; mas, elas acham sempre oportunidade para satis-
doente uma espuma espêssa feita com o suco fervido de uma planta, fazer êsse apetite doentio. í.sses comedores de terra têm o rosto de
e puxaram-lhe um pé para o lado. Depois de o manterem durante côr amarela-pálida, o corpo magro, barriga dura e volumosa e em
algum tempo nessa incômoda posição, deitaram-no ora de costas, ora regra não vivem muito tempo. A argila que usam comer é na
de ventre, alternadamente, e aplicaram-lhe demoradamente cataplasmas maioria das vêzes um barro amarelo-avermelhado ou cinzento, cuja
daquela mesma planta, despedindo-o por fim completamente são. composição deve ser muito diferente da que Humboldt encontrou entre
Quando querem tirar sangue de uma região doente, açoitam-na com os Ottomaques, como alimento habitual. O missionário e célebre
o cansanção (Jatropha urens), a que chamam "gia~utectec", ou com viajante Frei Ramon Bueno, afirma que em La Concepción di Uruana,
uma espécie de urtiga (Urtica), fazendo depois, com uma pedra no Orenoco, o barro comido pelos indígenas nenhum malefício oca-
afiada ou com uma faca, várias incisões na parte inflamada, de onde siona, embora o comam, às vêzes, em grande quantidade•. Humboldt
o sangue corre em abundância. O Sr. Freyreiss, numa viagem que reputa muito nocivo êste gênero de alimentação, e eu pude verificar
fêz a Minas Gerais, observou entre os Coroados um processo de que entre os brasileiros êle acarreta as mesmas conseqüências que
tirar sangue das veias. Servia-se o médico de um pequeno arco e foram observadas na Africa e nas fndias•• 47 9. Acreditam curar as
flecha .. , tendo esta última na ponta um pedaço de vidro, envolvido dores de barriga comuns esfregando no baixo ventre uma carapaça
em algodão, de modo a ficar livre apenas o necessário para penetrar de tatu ou de tartaruga. Os defeitos na visão são também muito espa-
na veia que era aberta do modo mais original, com uma flechada • • •. lhados entre os índios brasileiros. E' difícil encontrarmos um grupo
Por essa mesma ocasião viu Freyreiss curar uma menina, que sofria de pessoas sem que uma ou duas sejam cegas de um ôlho. Man-
provàvelmente das conseqüências de um resfriado. Aqueceu-se no fogo chas nos olhos não são menos freqüentes. Não vi entretanto caso de
uma grande pedra, até ficar em brasa, e derramou-se nela depois inflamação, de vista curta, ou de qualquer outra doença dos olhos,
água. A paciente foi posta o mais perto possível de modo a ser o que só se pode explicar pela sua resistência física. As pontas dos
envolvida pelos vapôres que se desprendiam, com o que em breve
(*) Ansichten der Natur, p. 143.
começou a suar, e assim curou-se. Os tapuias curam os ferimentos {**) Sôbre êste assunto veja-se o trabalho fundamental do Conselheiro OsiANDER
externos com muita perícia e segurança, colocando sôbre êles certas no Neue hann6veriscllen Magazine de março de 1818, págs. 26 e 27.
ervas, que previamente mastigam; contudo a cura é sem dúvida devida (479) Em todo êsse relato a geofagia é considerada como causa dos distúrbios
à sua constituição sadia e a fortes nervos. Vi uma grande ferida ·da saúde a que o autor faz menção. O certo, porém, é que tal aberração do apetite,
pelo contrário, aparece como sintoma de moléstias ou perturbações ocasionadas por
muito bem curada num rapaz machacali, de propriedade do ouvidor causas várias, a cuja frente deve citar-se a infestação por certos minúsculos parasitas
intestinais, pertencentes à classe dos Nemátodes (englobados com os "vermes" na linguagem
Marcelino da Cunha, em Caravelas. Uma anta, atirada pelos selvagens, vulgar) e conhecidos têcnicamente por Ankylostomun~ duodenale Dubini (1843) e Necator
americanus, Stiles {1902). Dos dois, o último é no Brasil o mais comumente encontrado
(*) Na costa oriental do Brasil é chamado "copaúba". entre as populações rurais, como responsável pela doença bastante conhecida sob as
(**) Ambos estão figurados no trabalho do Sr. von EscHWEGE, Journal von Brasilien, denominações de "amarelão", "opilação", etc. Têm-nos os parasitologistas como animal
que acaba de vir a lume (Fase. I, pl. 2, figs. t, u). importado do Velho Mundo; isso não se opõe, todavia, a que, no tempo da viagem de
(***) A maneira de fazer essa operação foi descrita na Viagem a Darien de Wied, já existisse d seminado entre as tribos costeiras, cujo contato com os colonos,
LtONEL WATER (Viagem do Capitão Dampier à volta do Mundo). e principalmente com os pretos, era mais ou menos freqUente.
318 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 319

galhos, ou os espinhos das árvores, devem ser a causa dos acidentes há tantes do Rio Doce hábitos que êles não possuem, já porque, de modo
pouco apontados. O selvagem, que, com a ferocidade do tigre, fixa geral, só têm sido observados de maneira imperfeita, ,à distância e
tôda a sua atenção na prêsa que persegue, nem sempr,e repara .n:s •com olhares receosos, já porque, em tôdas as partes do mundo, há a
pontas que lhe podem entrar nos olhos. Quando sa1 a persegmçao . tendência de ver, em tudo quanto desperta a nossa curiosidade, aspecto
de um porco-do-mato, de um macaco, ou de outro animal qualquer, mais extraordinário e maravilhoso do que o existente na realidade. A
que não raro foge com a seta prêsa ao corpo, o índio não ~esprega maneira pela qual os Botocudos enterram os mortos é muito semelhante
dêle os olhos, para que a prêsa não lhe escape, ferindo-se assim c~m à ,dos Tupinambás e outras tribos da costa, aparentadas com os
facilidade; essa causa natural parece confirmada pela observação, feita últimos; havia entre êstes também o costume de construir uma choça
por Azara, de que nas populações que habitam as planícies descampadas de fôlhas de coqueiro sôbre o túmulo, mas o corpo era enterrado em
do Paraguai não se observam defeitos nos olhos. posição erecta, amarrados nêle as mãos e os pés, como nos conta
Morrendo um botocudo, enterram-no logo na própria choça ou Léry• .
nas suas proximidades, abandonando-se depois o lugar, para const~uir Walckenaer, na tradução da Viagem de Azara, diz, com muita
outra habitação. O defunto, no primeiro dia, é chorado com gemidos justeza, que todos os povos da Terra possuem certas idéias religiosas,
pavorosos, as mulheres principal.mente comport~ndo-se como loucas; donde haver certamente êrro quando nega Azara a existência, entre
isso não parece, contudo, traduZir uma dor ~mto profunda, porque os Charruas, de qualquer vestígio de religião, de música, de dança,
já no dia seguinte cada um toma seu ca~mho, re~tando a v1da etc.••.
habitual. No Belmonte, amarram com um c1pó as maos do defunto · Eschwege confirma também a presença de idéias religiosas nos
e depois o estendem numa cova longa, em vez de enterrá-lo de cócoras, Guaicurus. Até os bravios Botocudos possuem uma porção de crenças
como fazem muitos outros selvagens da América•; noutros pontos, extravagantes a respeito de espíritos maléficos, dos quais só se poderia
porém, as covas seriam redondas. Naquela mesma região não se costuma adquirir noção exata conhecendo perfeitamente a língua dêsse povo.
enterrar nada com o defunto, fato confirmado pela escavação que Temem os espíritos maus pretos, ou demônios, a que dão o nome de
fizemos de vários túmulos. No rio Doce, o Sr. tenente João Filipe "Janchon"; alguns são grandes e chamam-se "Janchon gipakeiú"; outros,
Calmon encontrou nos túmulos armas e mantimentos, ali postos para pequenos, "Janchon kudgi". Quando o diabo grande passa pelas suas ca·
o defunto; isso vai de encontro às minhas observações e não me parece banas, todos que o viram estão fadados a morrer; sua presença seria
crível. Muitos túmulos por mim escavados, no interior da mata, con· sempre breve; mas, apesar disso, morre sempre muita gente depois de
tinham apenas ossos e demonstravam ter sido enchidos com terra. suás visitas. Deita-se e dorme junto à fogueira dos túmulos e vai-se depois
Sôbre êles, na superfície do chão, viam-se bastões curtos e grossos, ou embora; desenterra porém o morto se não encontra ali nenhuma
pedaços roliços de pau, iguais em comprimento e dispostos u.ns juntinho fogueira. Freqüentemente agarra também um pedaço de pau e bate
dos outros. Perto, viam-se ainda as cabanas que haviam s1do abando· nos cães, até matá-los. Matam ainda, às vêzes, as crianças que saíram
nadas. Depois da morte de um botocudo, de cada lado da: sepultura a buscar água; dizem que, nessas ocasiões, encontra-se a água derra-
entretém-se durante algum tempo uma fogueira, com o fim de afastar mada nas redondezas. Pode-se comparar êste diabo com o "Aignan"
o demônio, tarefa de que os parentes não descuidam, ainda que precisem ou "Aanhangá" dos Tupinambás. Por mêdo dêle, os selvagens não
vir de lugar distante. Se o morto era muito estimado, erguem-lhe sôbre são capazes de passar a noite sozinhos na mata; preferem sempre ir
o túmulo uma cabana de fôlhas de coqueiro. Os braços do defunto acompanhados. A lua ("taru"), entre todos os astros, parece ser o
são amarrados com cipó, embora nem sempre se observe êste preceito. que os Botocudos mais veneram, pois é a ela que atribuem a maioria
Conta Azara que há entre os Charruas o costume de cortar fora um dos fenômenos naturais. Seu nome aparece em muitas das denomi-
dedo, que aliás sabemos existir entre os índios da Oceânia. Disse-me nações aplicadas aos meteoros; assim é que o sol chama-se "Tarudipó",
o Sr. Calmon ter visto no Rio Doce cortarem as mulheres o cabelo, o trovão "Tarudecuvong", o raio "Tarutemareng", o vento "Turucuu",
em sinal de luto, hábito muito comum entre os americanos, mas a que a noite "Tarutatu" etc. Segundo imaginam, é o1 lua quem dá origem
devem ser estranhos os Botocudos, por isso que não o observei em · ao trovão e ao raio; ela às vêzes cairia sôbre a terra, ocasionando
Belmonte. Ademais disso, parece-me terem sido atribuídos aos habi· a morte de muitos homens. Atribuem-lhe também o malôgro na
colheita de certos produtos alimentícios, de frutos, etc., além de muitas
(*) Muitas tribos americanas enterram os mortos pelo último proce~o, c_ontando-se
entre elas os primitivos habitantes do Canadá, dos quais diz o velho mlsswnáno CllEAux, outras superstições que têm a seu respeito.
em sua Hilltoria Canaderuis, Par., 1664, 4, p. 92: "Ubi cum extremo habitu excesslt
animus, corpus statin In glomas conformant, ut quou habitu In matrls a loco fuerlt,
eodem conquiescat In tumulo". Teriam igual costume os Caralbas, os Chllensis, os (• ) LÉRY, V oyaue à la terre du Brésil, etc., p. 802.
Hottentotes, e em alguns lugares, os próprios Botocudos. (** ) AzARA, Voyaues, etc., vol. li, p. a.
320 VIAGEM AO BRASIL

Como acontece com a maior parte dos povos do mundo, haveria


também entre êles a tradição de um grande dilúvio. Encontramos em
Simão de Vasconcellos notícia sôbre as crenças que a respeito do assunto
tinham os índios da costa, que falavam a língua geral. Apenas uma
família, contavam êles, a do velho Tamandaré de Tu pá, que avisada pelo
Ente-Supremo subiu numa palmeira, e livrou-se da inundação que
fêz desaparecer todo o resto da humanidade. Mais tarde, ela desceu e
povoou novamente a terra. Seja como fôr, as idéias religiosas dos
Botocudos não são mais absurdas do que as da generalidade dos colonos
portuguêses que vivem no Brasil; como os índios do litoral os últimos
acreditam também num espírito das selvas, chamado "caipora", ao
qual atribuem o rapto de crianças e de jovens, que depois escondem
no ôco das árvores e ali os alimentam.
São estas as observações que pude fazer dmante IRinha perma-
nência nas matas em que estive. Com o povoamento crescente da
costa, os Botocudos têm sido repelidos cada vez mais para o interior,
não sendo de duvidar-se que afinal marchem também a caminho da
civilização. Isso levará ainda muitos anos, porque não se conhece
mais no Brasil a arte com que os Jesuítas, abstraçã0 feita de muitas
instituições nocivas e dos males decorrentes de seu domínio, sabiam
instruir as tribos selvagens dos primitivos íncolas daquelas matas.
Para adquirirmos conhecimento aprofundado sôbre os BotQcudos, faz-se
mister procurar o rio Belmonte, porque não é ainda hoje possível
observar os que vivem no rio Doce.
Para dar ao leitor uma noção da língua que fabm êsses selvagens,
apresento a seguir a lista de alguns nomes: no fim dêste segundo
volume porém, darei, para os lingüistas, uma tabela comparativa de
diversas palavras.

NOMES DE I;IOMEM

Jucakemet (o primeiro e muito breve)


Cupilick
Jukerecke (] com som de i)
Macnina (o primeiro n pronunciado pelo nariz)
Mecann (a soa entre a e e)
Makiengjeng
Ahó (pelo nariz)
Kerengnatnuck (pelo nariz)

NOMES DE MULHER

Enkepmeck (En muito breve e, como a .segunda


sílaba, pronunciado pelo nariz)
Marinhjopu
Uewuck
Schampacham
Pucat
1\
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE OS BOTOCUDOS 321

SUPLEMENTO

Estavam já escritas as minhas notas sôbre os Botocudos, quando


travei conhecimento com a notícia que sôbre os indígenas da Capitania
de Minas Gerais apresentou o Sr. von Eschwege, funcionário do Reino,
residente em Vila Rica, em seu trabalho ]ournal von Brasilien publi-
cado pelo Industrie-Comptoir de Weimar.
Alegra-me verificar que as opiniões do autor concordam com as
minhas; mas há em seu trabalho certos pontos que reclamam de
minha parte alguns reparos. Penso que me assiste tanto mais o direito
de fazê-lo, sem incorrer em censura, quanto a minha crítica de modo
nenhum poderá diminuir os méritos do nosso compatriota. A longa
permanência do Sr. Eschwege na capitania de Minas Gerais, tão
importante do ponto de vista mineralógico, autorizava-nos a esperar
dêle notícias e observações do maior interêsse, uma vez que os seus
conhecimentos, e a posição favorável em que se encontrou, dever-lhe-ão
ter oferecido muito mais ensejo de investigar o país e seus habitantes,
que o de que poderá dispor um viajante, incapaz de, em curta perma-
nência, adquirir noções completas sôbre a língua, usos e costumes do
povo. Entretanto, o estudo dos indígenas daquela capitania fornece
resultados inferiores aos que se podem obter em outras menos cultivadas,
ou não ainda habitadas pelos europeus. Ademais disso, não havendo
aquêle autor observado pessoalmente os Botocudos, teve forçosamente
que se basear em informações de outros, as mais das vêzes inseguras
e quase sempre exageradas. Ao número destas pertence particularmente
o relato, extremamente inverossímil (pág. 93), de um negro, que esti-
vera longo tempo entre os Botocudos; porque é fora de dúvida que
não só existe nenhum rei botocudo, ou qualquer forma de govêrno
monárquico nesse povo rude, como ainda não é provável que a per-
furação dos lábios e das orelhas seja praticada em alguma assembléia
geral. Se fôssem convocadas tôdas as diferentes tribos e hordas de
botocudos, talvez não se pudessem reunir tantas quantas disse o negro
Agostinho ter alguém visto, por ocasião da operação referida. E' patente
o cunho de in verdade em tôda a narrativa sôbre o caso. Já o mesmo
não acontece com as referências feitas ao tratamento cruel infligido
aos pobres indígenas pelos conquistadores de suas matas, mais podero-
sos e providos de armas de fogo. Tem-se aqui, infelizmente, a expres-
são de uma verdade, que não é possível contradizer. São por igual
interessantes os informes referentes às ordens baixadas pelo reino, rela-
tivamente ao tratamento a dispensar aos índios, as quais, por desgraça,
só muito imperfeitamente são obedecidas. As notas que abaixo se
lêem podem servir para a retificação de alguns pontos concernentes
às tribos selvagens.
322 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 323

Página 77. O nome dado a todos êsses selvagens provém da lançando mão de roupas contaminadas com pústulas de varíola,
palavra "botoque", donde ser mais correto escrever Botocudos do que a fim de que êles espalhassem entre os seus a terrível doença.
Botecudos•. Foram ainda chamados Guerens (pronunciado como O Sr. Eschwege acha inexato comparar a côr dos índios de Minas
na palavra francesa "Guerins") e não "Grens", do que ainda hoje com a do cobre. Devo confessar que há entre indígenas grande
poderemos nos convencer, no rio ltaípe. O nome "Arari" parece exis- variedade na côr, alguns sendo escuros, bruno-acinzentados, outros de
tir apenas em Minas, porque nunca o ouvi, quer no baixo Rio Doce, um pardo mais amarelado e ainda outros de c~r mais vermelho-aco-
quer no Belmonte; ademais, é muito raramente encontrado nos escri- breada; não obstante, todos possuem uma tonahdade vermelha, quer
tores que trataram do Brasil, os quais, entretanto, também os chamam sejam bruno-acinzentados, quer bruno-amar~la~os. Por outro _lado,
de Aimorés ou Amborés. No rio Doce, como no Belmonte, os costu- as minhas observações trouxeram-me a convicçao de que as cnanças
mes dos Botocudos parece serem os mesmos, fato ele que penso ter nunca nascem perfeitamente brancas como os europeus•; têm uma côr
podido convencer-me plenamente, muito embora contra isso se oponha amarelada, mas tornam-se muito depressa brunas. Vi muitas que,
o que diz a respeito o Sr. Eschwege. Pelo simples fato de no rio embora muito novas, tinham uma côr bruno-escura perfeitamente
Belmonte entreterem, até certo ponto, trato pacífico com os brancos, caracterizada. Como já tive, porém, ocasião de dizer, existe entre os
não se deve concluir que pertençam a outro grupo étnico. Tudo nos Botocudos, coisa notável, uma variedade esbranquiçada, que só nas
leva a crer que não seriam lá menos pacíficos do que aqui, se não costas é um pouco amarelada e possui cabelos castanho-anegrados;
os houvessem tratado de modo tão cruel; aliás como foi referido antes, as crianças novas desta raça podem apresentar ao nascer uma côr quase
não há muito ainda que se mostravam igualmente hostis duas milhas inteiramente branca. O Sr. v. Eschwege diz que as crianças, ao nascer,
ao norte do rio Belmonte, no rio Pardo e em Sto. Antônio, duas não seriam de côr vermelha-acobreada, ponto em que estou plenamente
milhas ao sul dêste rio. As relações que entre si mantêm, através da de acôrdo com êle; discordo, todavia, em que elas possam ser então,
mata, do rio Doce ao rio Belmonte, foram também mencionadas atrás; como êle afirma, perfeitamente brancas como nós. Nesse p~mto baseio-
mas, nas regiões do São Mateus e do Mucuri, ao que parece, mantêm-se me nas informações do meu botocudo Queck. Deve aqm remeter-se
isolados. E' certamente destituída de fundamento a asserção de que o leitor a Mithrídates (Vol. III, 3 parte, pág. 313), onde êste autor
constroem especialmente casas enfeitadas de penas, para enterrar os exprime de modo exato as minhas idéias sôbre a matéria. O excelente
mortos, realizando anualmente nelas festas fúnebres; eu próprio tive tratado sôbre os povos da América, que ilustra aquêle trabalho,
ocasião de me revoltar contra as fantasiosas invencionices que se con- fornece ao leitor os verdadeiros pontos de vista sôbre que se deve enca-
tavam sôbre êstes assuntos, e que são muitas vêzes oriundas do conhe· rar êsse interessante assunto. A côr da pele e certos outros caracteres,
cimento incompleto dos fatos, mormente em se tratando de regiões em parecem peculiares a tôdas ~s raças ameri~an~s; apenas variam infi-
que os selvagens se mantêm em hostilidade. Pude conhecer de perto nitamente nas numerosas tnbos e ramos etmcos daquele vasto con-
muitos moradores de Minas Novas e da região de Jequitinhonha, todos tinente, e em cada indivíduo assumem uma modalidade diferente;
concordantes com o que foi dito por mim. Nos lugares em que se por estas razões nada de ab~olutamente geral é possível. reconhecer
mantêm em guerra, como no rio Doce, os Botocudos, por ódio, comem na arquitetura do esqueleto desse povo, em que há altos, batxos, gord_os
a carne dos seus inimigos; no Belmonte, pelo contrário, são pacíficos, e delgados, nada ficando êle a dever aos europeus, ~o. tocante à vane-
parece terem perdido progressivamente êsse bárbaro costume, muito dade. Não é exato que possuam em regra testa fugidia e uma mes~a
embora esteja fora de dúvida que êle primitivamente também ali ocor- conforrilação da bacia••, pois estas partes oferecem as mesmas vana~
resse, como se conclui dos informes de alguns daqueles selvagens, os ções que entre nós. Vi botocudos com a testa alta e larga, outros ac_het
de Queck inclusive. Os Patachós freqüentam as proximidades da costa que a tinham pequena e estreita, embora não se possa negar que m_mtas
marítima, apesar de existirem ainda alguns em Minas Novas. tribos se distingam de outras por certos caracteres a elas peculiares.
Dá-nos o Sr. Eschwege algumas notícias sôbre as rigorosas medidas Muitos autores têm contestado que os indígenas da América do
tomadas pelo Conde de Linhares contra os Botocudos, medidas estas Norte e do Sul "pertençam a uma mesma ' raça. No entanto, pessoas
que, significando embora uma guerra de extermínio contra êles, não instruídas e fidedignas asseguram-me que a fisionomia e a côr, não
foram todavia narradas de modo suficientemente incisivo. Só há ver- só nos Botocudos, como ainda nas outras tribos do Brasil, concordam
dade no que conta o autor sôbre as atrocidades praticadas contra os perfeitamente com as das nações indígenas da Norte América, como
indefesos índios, pois nenhum meio ficou esquecido, capaz de dizimá-los.
I-louve até pessoas desumanas que fizeram a tentativa ele exterminá-los, ( *) Encontra-se uma confirmação dêste tato, de importância capital, na descrição
da Viagem do Sr. von H u MBOLDT, parte I , p. 500.
(*) Vide Corogratia Braaílica, etc., tomo 11, p. 72, em nota. (** ) V. v. EscnwEGE, Journal von Brasilien, cap. I, p. 87.
324 VIAGEM AO BRASIL ALGUMAS PALAVRAS SÔBRE OS BOTOCUDOS 325

por exemplo as dos Cherokys, da Carolina do Norte. Pode· servir para (tomo I, pág. 115), discorre da maneira mais interessante sôbre a
êste confronto o jovem botocudo Queck, que trouxe comigo para a matéria. Ainda que os fatôres externos intensifiquem a pigmentação
Europa •. Chame-se vermelho-acobreada ou bruno-acinzentada a das tribos de que nos ocupamos, a côr bruna fundaJ;Dental sempre
côr dos nativos da América, ela fica sendo sempre o caráter de tôdas permanece; porém, como observa exatamente von Eschwege, ela se
as raças americanas, tanto da porção setentrional, como da meridional, altera sob o influxo de moléstias, tornando-se de um amarelo pálido,
excetuadas as das regiões frias; ela está, além disso, por tôda a parte, principalmente no rosto. Estas considerações não se opõem toqavia
sujeita a muitas variantes de matiz. O próprio Queck serve para mos- a que os habitantes dos países quentes possuam, de modo geral, uma
trar, de maneira eloqüente, a influência do clima sôbre a côr da pele; côr mais escura do que os dos frios; e a grande diversidade de mati-
com efeito, enquanto a côr do seu rosto no verão era um tanto bruna, zes das tribos sul-americanas, cujo próximo parentesco ninguém contesta
tornava-se tão clara no inverno que chegaram a tomá-lo por europeu; . por êsse motivo, par~ce falar em favor da origem da humanidade a
até a própria côr das bochechas parece se ter tornado um pouco aver- partir de um único casal, assunto sôbre o qual o inglês Sumner publicou
melhada. Devo, porém, lembrar que êle não pertence à raça mais trabalho muito interessante•.
escura dos botocudos. Entre os índios norte-americanos, Volney achou Apesar da semelhança existente entre os Mongóis, os Malaios e os
que as partes cobertas do corpo eram mais claras do que as descobertas, povos nativos da América, êstes últimos parece possuírem em comum
fato de que não vi no Brasil nenhum exemp~o, uma vez que os índios um certo número de caracteres externos. Na estampa 17 estão figu-
civilizadds, embora se vistam com calças e camisa, têm em todo o corpo radas várias fisionomias de Botocudos; a figura 4, que devo à bon-
uma coloração uniforme. Da observação de Volney parece depreender- dade do Sr. Sellow, e foi feita do vivo, exibe traços nitidamente
se que a côr verdadeira da pele daqueles povos setentrionais é a das mongólicos, mas errar-se-ia em supor que todos aquêles selvagens pos-
partes mais claras abrigadas pelas vestes, e que conseqüentemente as suem um tal semblante. A 3.a figura, por exemplo, que apresenta
tribos da América do Norte têm, de modo geral, côr mais clara do que Juquereque, tem igualmente fisionomia genuinamente brasileira, mas
as da América do Sul. Entretanto, em ambas as partes do continente apesar disso, difere muito das demais. A 2.a figura mostra a mulher
Americano encontram-se exceções a esta regra; pois, na América do de Jepareque e a 5.a a cabeça mumificada de índio que tem sido aqui
Norte se conhece a existência de povos escuros e na do Sul há os citada em várias passagens, e pertence à coleção do Sr. Ritter Blu-
Botocudos bra:ncos, além de algumas outras nações de pele clara. Fôsse menbach. A comparação com as curiosas figuras de rostos esquimaus,
só o clima a origem da pigmentação bruna dos americanos e os portu- estampadas na descrição da viagem do Capitão Ross ao Pólo Norte,
guêses adquiririam, depois de várias gerações, esta pigmentação; o mostra quão diferente é o aspecto fisionômico dos índios brasileiros,
certo, entretanto, é que, nos l:ugares em que não se mesclam com o confirmando assim a opinião dos missionários do Naín, que tiveram
sangue negro ou índio, êles conservam a côr dos seus antepassados euro- ocasião de ver o meu Queck. E' extremamente difícil decifrar o mistério
peus. Não pude verificar nos portuguêses do Brasil modificações como da origem de muitos grupos raciais da América.
as que descobriu Smith•• nos lavradores da América do Norte, atri- Aos chefes dos tapuias não podemos dar o nome de caciques. :esse
buindo-as ao clima. Os traços fisionômicos dêles não mudaram, os têrmo tem sentido muito mais elevado, e não se enquadra com os chefes
cabelos permanecem crespos e encaracolados, e a própria côr só rara- dos indígenas do Brasil, que não são objeto de nenhuma veneração
mente chega a adquirir a tonalidade escura da dos índios. A verdade particular, e em nada se distinguem dos restantes da tribo; para lhes
é que, no Brasil, os descendentes dos portuguêses só raramente se conferir na horda um voto decisivo, nenhum atributo de superioridade
ocupam em trabalhos agrícolas, que deixam aos negros; em compen- os assinala, tais como a maior prudência, a experiência ou a valentia.
sação, dão-se muito à caça e à pesca, expondo-se assim aos raios solares, Caciques devemos chamar os senhores todo-poderosos dos povos mais
durante longo tempo. Daí adquirirem comumente uma côr mais ama-
adiantados do Novo Mundo, como os mexicanos, peruanos e outros,
relada, mas nunca tão escura, bruno-acinzentada, como a da maioria
cuja autoridade e cujo poderio, não de raro ilimitado, constituíram forte
dos índios. Devo aqui remeter o autor à formosa passagem em que
obstáculo aos conquistadores espanhóis.
Humboldt, no seu ensaio sôbre as condições políticas da Nova Espanha
Muitos possuíam vastos domínios e uma cultura que ainda hoje
(*) Sôbre êste assunto veja-se V ATER em Mithrídates, tomo IH, parte 2.•, p. 309
causa espanto aos viajantes e de que nos dão idéia as belas ilustrações
e seguintes. E' para mim de maior lnterêsse saber dum viajante Instruido, como o do livro de Humboldtu. Quanto estão longe dêles os brutos habi-
Sr. Coronel Thorn, que viveu multo tempo na índia, que a fisionomia do meu botocudo
concorda inteiramente com a dos Malaios, fato que também confirma BLUMENBACH, pelo
estudo comparativo dos crânios trazidos por mim e representados não só na estampa 58 (*) Vide J. B. SUMNER, A Treatise on the records ot the creation, etc.
das Decades Cranio•·um, como também na vinheta dêste capitulo de meu livro (edição in 4-t.•). (**) Vejam sôbre a matéria os escritos de ALEX. von HUMBOLDT e bem assim
(**) Vide J. S. VATER, Untersuchunuen, über Amerika's Beviilkerunu, p. 72. OS de VATER, DO 8. 0 tomo, 2.• parte de Mithrídates.
326 VIAGEM AO BRASIL

tantes das matas virgens do Brasil! Reina aqui a mesma lei que entre
os animais, e a maior fôrça dos braços é a única superioridade reconhe-
cida. Nenhum hieróglifo ou qualquer sinal gravado se encontra nos
rochedos ou nos troncos seculares daquelas florestas, e os únicos monu-
mentos erguidos pelos entes humanos q~e vivem nestas. ú~ti~as .s~o
as palhoças efêmeras, feitas de galhos, e mcapazes de resistir as VICIS- li
situdes de um único ano.
Os do Brasil, então, portadores de um boné de soldado português,
perderam já a sua originalidade, e só pouco interêsse despertam. VIAGEM DO RIO GRANDE DE BELMONTE
Nunca vi algo que com aquilo se pareça nos selvagens da costa
oriental. AO RIO DOS ILHÉUS

O Rio Pardo. - . Canavieiras. - Patipe. - Poxi. -


R io Comandatuba. - Rio Una. - O córrego Araçari. -
Meço e Oaqui. - Vila Nova de Olivença. - Os índios
dêsse lugar. - Utilização do fruto da piaçaba. - Vila
e Rio dos Ilhéus. - Rio Itaípe, Almada·. - Os Guerens,
descendentes dos antigos Aimorés.

Minha demora nas margens do rio Belmonte e nas florestas habi-


tadas pelos Botocudos despertou-me o desejo de encontrar um novo
campo para minhas observações. Fizeram-se, em conseqüência, os
preparativos necessários para continuar nossa viagem para o norte, e, de
acôrdo com o plano que eu estabelecera, penetrar nas florestas e alcan-
çar Minas Gerais. Tive, durante parte da minha viagem, a agradável
companhia do Sr. Charles Fraser, que, como eu, ia até Ilhéus.
O rio Grande de Belmonte, que se lança no mar a pouca distância
da vila de Belmonte, é muito largo, e às vêzes torrentoso em frente
dessa cidade. Adquiri, por isso, grandes canoas para transpô-lo; meus
burros e meus cavalos haviam-no atravessado a nado na véspera.
Quando as canoas atingem a margem oposta, entram numa passagem
estreita acercada de mangues, onde as águas são muito calmas, cha-
mada Barra das Farinhas. Provàvelménte essa passagem foi outrora
um braço de rio, cuja embocadura pouco a pouco se foi cobrindo de
areia; dão-lhe também o nome de Barra Velha.
Depois de carregarmos a nossa tropa, marchamos uma légua e
meia, até alcançarmos a foz do rio Pardo, importante curso d'água.
Percorre-se uma costa arenosa e deserta, em que tôdas as árvores e
arbustos são encurvados e maltratados pelos ventos freqüentes do mar
e pelas tempestades. Encontrei nesse local ossos ele tartarugas marinhas,
328 VIAGEM AO BRASIL

espalhados•, o que aqui constitui uma raridade, ao passo que se mos-


tra muito comum mais para o sul, nas costas vizinhas do rio Doce,
que são desertas e tranqüilas4so.
O rio Pardo forma o limite entre a comarca de Pôrto Seguro
e a de Ilhéus; lança-se ao mar por diversos braços; o mais meridional,
que desemboca em Canavieiras, chamava-se Imbuca no tempo dos
índios. Na margem meridional da barra, encontramos uma pequena
casa, habitada por um passador de gado, que conduz os viajantes à
grande ilha, em que está situada Canavieiras, entre os dois braços do
.
rio. Embarquei, à tardinha, numa canoa pequena, estreita e pouco
segura; a maré enchia e grossas ondas a fustigavam de um e de outro
lado, sacudindo-a com extrema violência, de modo que a travessia
foi penosa e cheia de perigos. Entretanto, graças à habilidade do
canoeiro, que evitou cuidadosamente expor os flancos da embarcação
às ondas, chegamos sem acidente.
Observei, nos mangues que cobriam as margens do canal, uma
quantidade prodigiosa de andorinhas, com a plumagem de colorido .;
o
fuliginoso uniforme, e que, embora não me tivesse sido possível exami- ~
~
ná-las de mais perto, não podiam ser senão da espécie denominada (..)

Hirundo pelasgia 4 B1 • Tinham se reunido nesse local para passar a , c


o
IXl
noite, mas se elevavam algumas vêzes em bandos numerosos a grande .,o
altura, e voltavam a cair imediatamente nos mangues, a que a quanti- ~

dade assombrosa dêsses pássaros emprestava uma côr escura. .,


~
_,g
Encontrei o Sr. Frazer, que havia atravessado o rio antes de mim, '!:;
.:
instalado numa grande casa; aquecemo-nos ambos juntos a um bom
fogo, com a família do proprietário. Fomos depois nos deitar nas camas
;;"'
de tábua que se havia colocado num espaçoso quarto, que serviu também .,"'o
de dormida para parte dos moradores da casa.
Canavieiras é uma vila, ou aldeia, com casas bastante espaçadas Ê
~
e uma igreja; produz principalmente mandioca e arroz. Os habitantes
são, na maioria, brancos e pardos, como são chamados os homens de
diferentes tonalidades de côr, produzidos pelo cruzamento dos brancos
com os negros; êsses pardos constituem o grosso da população do
(*) Na primeira parte desta "Viagem", escrevi que a grande tartaruga marinha
era T estudo myda.s; o estado em que me encontrava então às margens do Rio Doce
impediu-me de dar dela uma descrição conveniente; esperava encontrar outras, mas não
vi mais nenhuma; tenho, contudo. um crânio completo dessa tartaruga e o exame dêle
dará a conhecer se pertence a uma forma conhecida, ou a espécie nova, coisa de que
penso me ocupar em meus B eitrage zur Naturueschichte von Brasilien.
(480) Chelonia mydas (Linn.), descrita nos Beitraeue (vol. I, p. 21), sob a
denominação de Cm·etta esculenta Merrem. Espécie largamente espalhada em todos os
mares quentes e temperados.
(481) A espécie, que pertence à famllia dos Apódidas (= Cipsélidas dos velhos
autores), ou "andorinl1ões", foi durante muito tempo confundida com Hirundo pelagica
Linn., 1758 (= H. pelasgia Linn., 1766), da América Setentrional. A ave sul-americana,
muito parecida aliás com a sua congênere, constitui espécie autônoma, descrita em
1902, no Orenoco, por Brelepsch & Hartert, com o nome de Chaetura andrei, e é
representada nas costas este-brasileiras por uma raça particular, individualizada em 1907
por Hellmayr, sob a denominação de Oh. andrei meridionalis. Deve ser comum em
São Paulo, de onde o Museu Paulista recebera numerosos exemplares, alguns dos quais
obtidos dos bandos que freqüentemente aparecem a fazer evoluções em tôrno do próprio
ediffcio em que a repartição tem a sua sede.
DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 329

litoral. Como não existe no lugar nem juiz nem qualquer outro gover-
nante, não há também polícia, e Canavieiras é conhecida em tôda a
região pela liberdade e pelo estado mesmo um tanto selvagem de seus
habitantes. í'.les não querem saber de juiz, declarando que se podem
governar por conta própria e que só devem pagar poucos impostos.
Aliás o caráter dêles é jovial, e se divertem às vêzes dias seguidos,
tocando música, dançando e jogando cartas, divertimentos que os levam
muitas vêzes a excessos.
A barra do rio é melhor que a do Belmonte e, por isso, controem-se
ali algumas embarcações para o comércio com a cidade da Bahia e
outros pontos do litoral. O rio Pardo atravessa matas onde os Boto-
cudos ainda se apresentam como inimigos, ao passo que são pacíficos,
pelo menos em parte, nas margens do rio Belmonte. Recentemente
ainda, êles mataram várias pessoas, e supõe-se que os assassinos são
da tribo do capitão Jeparaque, cujo retrato é a primeira figura da
prancha 17. Anteriormente já haviam destruído diversas plantações
dos portuguêses. Atacaram-nos e êles se defenderam fortemente; cin-
qüenta de seus guerreiros foram mortos nessa luta. í'.les se vingaram
matando quatro pessoas, e os portuguêses se viram obrigados a abando-
nar as plantações na parte superior do rio, pois os Botocudos as
devastavam e ameaçavam. Parece que não passam além do rio Pardo,
porquanto ainda não foram vistos em Comandatuba. Algumas hordas de
Patachós erram nas margens dêsse rio e nas matas da barra do Poxi.
A pouca distância de Canavieiras, um braço do rio Pardo, deno-
minado rio da Salsa, se destaca e vai reunir-se ao rio Grande de
Belmonte. Vi em Canavieiras um homem que o Conde dos Arcos
enviara da Bahia para tornar o rio da Salsa navegável. Espera_vam-se
da execução dessa emprêsa grandes vantagens para o comércio com
Minas; pelo rio Belmonte; poder-se-ia chegar a êsse último rio pelo
canal do rio da Salsa, partindo do rio Pardo, cuja embocadura é
. melhor para a navegação do que a do rio Belmonte.
Não querendo deixar passar a estação favorável para viajar pelas
florestas, .não pude ficar muito tempo caçando em Canavieiras; verdade
é que aí encontrava-se pouca coisa que pudesse interessar às nossas
coleções. Com tudo isso, houve sempre algo de novo em cada região.
Assim, nas cercanias do rio Belmonte e do rio Pardo, vive um
animal dos mais belos da classe dos répteis, que é provàvelmente aquêle
que Marcgrave descreveu pelo nome de "ibiboboca". Essa cobra• 482
( *) ElapB Marcgravii . O Sr. Merrem reconheceu essa cobra levada por mim
para a Europa como sendo a " ibiboboca " de Marcgrave, o que julgo bem provável.
Russel se engana quando a toma por sua "kalla-jin " da tndla. O Sr. Merrem deu
dela uma descrição resumida em seu " System der Amphibien ", p. 142, em que a ela se
refere pelo nome de ElapB Ibiboboca.
(482 ) M icrurus i bi boca (Merrem) . São das mais complicadas a nomenclatura e a
sistemá tica desta cobra, que Merrem (1820), com base nos exemplares de Wied, foi o
primeiro a descrever sucintamente, sob a denominação de Coluber ibiboca, de que
C. marcgravii Wied é, por conseguinte, sinônimo. Amaral (in Rev. Museu Paulista,
XV, 1927, p. 29) a ela dedicou minucioso estudo, em que sustenta tratar·se da mesma
330 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 331

se parece muito, pela distribuição de suas côres, com a coral, pois os são habitados e animados pelos "tangarás" de viva côr cinzento-esver-
anéis pretos, verdes, esbranquiçados, e vermelho acarminado, alter- - deada• 486 .
nam-se nela de forma mais agradável. A já referida "rebra coral"+483, Quem dispusesse de lazer e fôsse favorecido pelo bom tempo, pode-
a serpente de cabeça alaranjada já descrita por mim (Coluber formo- ria empreender, aqui em Canavieiras, investigações sôbre os peixes
sus)484, a que agora menciono, e uma quarta•• 4S4A, ainda mais bela do do rio e d,o mar. As espécies encontradas são, em geral, as mesmas
que as outras, se assemelham tanto pela natureza e disposição das côres, que freqüentam a porção mais meridional da costa. Em Espírito Santo
que os brasileiros as confundem sob a designação geral de "cobra coral" reluzem nas rêdes dos pescadores, além de outros: o catauá (Perca
ou "corais". Tôdas elas possuem anéis de cada uma das côres que punctata), peixe vermelho vivo, sarapintado de manchinhas violetas;
acima indiquei, dispostos alternadamente; mas o naturalista que as vári~ espécies de Scomber de brilhantes côres, o Squalus, o Silurus,
observa com atenção, reconhece à primeira vista que pertencem a as belas espécies de Grammistes; o "peruá" (Balistes vetula, Linn.),
quatro espécies diferentes. cujo corpo é na parte de cima de um belo verde, com listras azuis-celestes;
O Sr. Freyreiss, que se demorou por mais tempo nesta região, rodeadas de amarelo vivo. O mar, porém, em Canavieiras estava por
encontrou por acaso entre as palmeiras uma espécie notável de morcêgo, demais agitado pelo vento para que os pescadores pudessem pescar
até aqui desconhecida, que deve constituir um gênero novo••+485. No alguma coisa.
lugar da cauda, apresenta êle duas valvas córneas, colocadas horizon- Os viajantes que levam consigo tropa, fazem-na seguir ao longo
talmente uma em cima da outra, a superior, que é a maior, tem 5 da costa marítima e passar a nado as diversas embocaduras (barras)
linhas de largura; é de algum modo o prolongamento do osso da cauda, do rio Pardo. í.les próprios, porém, tomam canoa e, com algumas
que se termina por essa forma; a valva superior é formada pela dobra interrupções, fazem em dois dias a travessia de um estreito, que se
que a membrana da cauda faz sôbre si mesma. O pêlo dêsse animal é estende paralelamente à costa e é formado pelos diversos braços do
um tanto felpudo e branco; conserva-se escondido durante o dia, rio Pardo e pelo mar. Stras águas são salgadas, subindo e descendo
entre as fôlhas colossais dos coqueiros, que ao longo de tôda a costa com as do oceano, de que se acham separadas por uma estreita língua
de terra, cortada pelas diferentes bôcas do rio Pardo.
' Depois de ter percorrido duas léguas, desde a Barra de Canavieiras,
(*) Elaps cm·allinus. No primeiro volume desta "Viagem" tomei essa serpente
por Coluber [ttlvius de ~inneu, e dela falei com êsse nome. Uma comparação atenta, chegou a tropa à Barra de Patipe, assim denominada por causa duma
porém,. me fez. ver depois que realmente ela muito se assemelha, mas que no entanto
dela difere; e1s porque adoto o nome que o Sr. Merrem lhe deu em seu "Sistema dos povoação situada nas vizinhanças, numa ilha formada pelas suas duas
anfíbios", p. 144. Dei dessa serpente, da precedente e das duas outras cobras a que
me refiro no texto, uma pequena nota que se encontra no último volume das "Memórias barras. E' muito agfadável a navegação nesse braço de mar; cobre-
da Academia Imperial Leopoldina-Carolina" dos curiosos da Natureza. Juntei-lhe um lhe as margens a espêssa vegetação alegremente verde dos mangues,
desenho da Elaps corallinus.
(**) Denominei-a Coluber venttstissimtts. E' a mais bela espécie de cobra. Parece-se por detrás da qual se ergue a mata virgem, enquanto que, de espaço
muito pela côr com Elaps corallinus, porém a sua cabeça é maior, a sua bôca fendida em espaço, a vista se alarga nos braços do rio que irrompe da mataria.
mais fundo;_ os dentes muito pequenos são exatamente os das cobras; placas abdominais
20~; caud!'IS 51. O comprimento da cauda ultrapassa de perto de um oitavo a do Avistam-se, nas margens, habitações isoladas, anunciadas de longe pelos
a!Jimal; cor. do corpo, ve~melho ~armim, cuja intensidade é realçada por anéis pretos
dispostos dOis a dms, mmto próximos uns dos outros, e envolvidos exteriormente por coqueirais.
anel estreito cinzento-branco esverdeado. Tôdas as escamas da parte superior do corpo, O braço de mar se prolonga para além da barra do Patipe, ao
mesmo as dos largos anéis vermelhos, têm uma ponta preta.
(***) Dei uma descrição dêsse notável animal em "Isis", ano de 1819, caderno
longo da 'costa, e, légua e meia adiante, chega-se à barra do Poxim,
10. 0, p. 1630. outra embocadura. Até bem pouco tempo, houve sempre nesse lugar
uma pequena 'colôni'a de pescadores; mas êstes agora se haviam retirado.
espécie chamada Colube1· lemniscatus por Linné (1766). Essa opinião aparece mantida
pelo m~smo autor em trabalho~ posteriores (cf. Memórias Inst. Butantan, X, 1987, p. 153), Foi a ~to que achamos aqui água para os nossos animais mortos de
contranando embora a de emmentes autoridades, como Boulenger (Cat. of Snakes Brit. s~erto das casas abandonadas, viam-se ainda algumas plantas úteis,
Museum, 811, 1896, pp. 428 e 480) e Schmidt (Field Mus. Nat. Hist. Zool., XX, 1936, p. 200).
(483) Micl"ttrtts comllinus (Wied), 1820 (in Nova Acta Acad. Leop. Caro!., X, p. 108, entre as quais as tão apreciadas "pimenteiras" (Capsicum), cujos arden-
pl. IV). Vide nota 128, à pág. 59.
(484) Vide a nota 851 (pg. 194). (*) ~sse pássaro tem sido até agora considerado como a fêmea do Tanagra
(484•) Erythrolamprus aesculapii (Linn., 1758), talvez a mais bela das chamadas episcopus, e o Sr. Desmarest representou-o como tal. E' um êrro, pois Tanagra episcopus
corais falsas <por isso que não são venenosas como as do gênero Micl·urtts), e positi- ou sayaca, o "saniaçu" dos brasileiros da costa oriental, é muito diversa da pretensa
vam<;nte a mais abundante em todo o Brasil. Como pondera Amaral (Rev. do Mus. fêmea; possuímos desenhos das duas espécies, que são muito parecidas. ~sse último
Pauhsta, XV, pp. 5-6), o nome "cobra coral" é presentemente aplicado pelo povo não pássaro, considerado como a fêmea, e a que, por viver sempre entre os coqueiros, don
somente às quatro espécies de que trata Wied, mas a número considerável de outros o nome de Tanagra palm.arum, distingue-se inteiramente do "saniaçn" pelo seu canto,
ofídios mais ou menos parecidos com a verdadeira coral. O referido ofiologista arrola que é um gorjeio muito doce.
nada menos de vinte no caso em questão.
(485) Diclidurtts albus Wied, 1819 (= D. treyreisii Wied, 1838), rara espécie . (486) O ~ássaro r~ferido nesta passagem, Thraupis palmar-um (Wied) dos ornito-
de morcêgo, de que, quando estudante, na Bahia, obtive um exemplar, proveniente logistas, outro nao é senao o sanhaço-de-coquelro, por êle descrito in-extensu no vol. III,
do Recôncavo (vizinhanças da Saubara). (pág. 489) dos Beitraege zur Naturgeschicltte von 1Jrasilien.
332 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 333

tes frutos, alongados e de côr vermelho-vivo, são tão procurados pelos datuba e três léguas adiante chegamos à foz de um rio maior, o Una.
habitantes da região para temperar os alimentos. Só se vêem aí umas poucas habitações. Um rico lavrador, que possui
A~esar d~ ventania q~e soprava, preferimos passar a noite na areia vastas propriedades no Una, instalou-se na sua embocadura, com uma
da praia próxima do Poxim, a passá-la nos ranchos abandonados, onde grande venda, cercada de coqueiros. Essa bela planta se ergue a
senamos atacados pela praga dos insetos. Uma canoa, que o acaso grande altura na areia branca que, entretanto, parece ser estéril.
nos ~êz des~obrir nas vizinhanças, transportou nossa tropa na manhã Com sete anos, quando ainda é baixa, já se acha carregada de refri-
do dia segumte para o outro lado da barra. Não havia, então, nenhum gerantes frutos. Cultivam-se aqui a mandioca e o arroz; mas também
p~s~ageiro, p~is ne_ssas paragens ninguém se preocupa muito com os o café, o algodão e todos os produtos do clima equatorial dão maravi-
VIapntes. N_ao existe_ nenhu~ mapa dessa região, e é preciso fiar no lhosamente na região. O proprietário a que me referi estava então
acaso e nas mformaçoes ~efei~-~.wsas do.s habitantes, quando se deseja cuidando de fazer aquelas plantações. Vi também a couve branca
percorrer a costa. Um Cirurgiao frances, chamado Petit, havia pouco européia, o rabanete pequeno, o grande para o gado, e cabeças de
~e es_tabelecera numa pequena elevação, um pouco distante para o repôlho pesando 14 libras.
mtenor; _contam. o_:; moradores, seus vizinhos, que, descontentes com O rio Una se .divide em dois braços, próximo à sua foz; o braço
o seu gemo de bngao, os pescadores de Poxim abandonaram suas casas. esquerdo se chama rio Muruim, e o direito rio da Cachoeira, nome
~cresc_entaram que é êle um fervoroso adepto de Napoleão, e que por êste tirado das pequenas quedas que forma. Nesse rio, não muito
Isso nao conta muito com as simpatias dos portuguêses. acima da foz, vêem-se belíssimas espécies de madeiras, entre as quais
. O estei~o que se estende para o norte da Barra do Poxim, é muito muitos jacarandás ("bois de ·rose"). O Una fica tão baixo na vazante
nco em peixes; ao despontar do dia via-se uma porção de peixes que os nossos animais puderam atravessá-lo. Mais adiante encontramos
saltando muito alto no ar, podendo-se, com uma grande rêde, fazer três riachos, o Araçari, o Meço e o Oaqui, que também puderam ser
abundante pesca, sem grande trabalho. atravessados a cavalo na vazante; mas, na cheia, pelo contrário, dois
Daí até à embocadura do Comandatuba, a costa não varia de dêles são profundos e rápidos.
aspecto; está-se sempre entre ilhas inúmeras, cobertas de manguezais. Para o lado da terra, avistam-se elevações cobertas de matas, que
~a~bé~ aqui as águas são salgadas, e a melhor hora para nelas se prolongam ao norte, formando as margens do rio Muruim. Nesses
VIapr e no refluxo da maré. Vêem-se então, sôbre os galhos cheios morros, avista-se uma árvore extremamente alta, conhecida por "Pau-do-
de raízes dos mangues, o garrido caranguejo de pés vermelhos chamado Muruim", que já é vista de muito longe do mar, e serve de ponto
,, .
gu_a iamu " 487
e, na espessura das moitas, o papagaio amazona
'
comum de referência para os navegantes.
488
(Pszttacus ochrocephalus, Linn.) , denominado curica pelos índios Já nas praias de Una começa a aparecer o tipo de embarcação
e .portugu_êses. _Essa espécie par~ce afeiçoar-se muito particularmente denominado jangada, que Koster descreveu e desenhou. E' utilizada
a ess~ mew, razao pela qual podiam dar-lhe designação dela derivada. durante a vazante, para pesca em lugares rasos; com as de grandes
Ela e sempre encontrada nas margens e embocadura dos rios onde os dimensões, ousa-se mesmo navegar ao largo, para o transporte de merca-
out~os papag~ios raramente vivem. A voz dêsses papagaios é m~ito forte, dorias ao longo da costa. Essas jangadas são balsas com cêrca de dez
vanando mmto de tom, e parecendo imitar a de outras aves. Os seus passos de comprimento. São feitas de 7 troncos de madeira leve, cinco
ninhos são encontrados freqüentemente nos buracos existentes nos dos quais colocados uns ao lado dos outros, e apenas ligados por duas
grossos tro?cos dos mangues. Os habitantes apanham os filhotes, criam- varas transversais de madeira resistente. De cada lado, sôbre os dois
nos e ensmam-lhes a falar. que ficam do lado de fora, existe um terceiro, sôbre o qual, com o do lado
O Coman_datuba não é um rio importante. A pouca distância oposto, se apóia o assento do timoneiro, feito de paus finos e situado
de sua foz, existem, na margem meridional, com areias de um branco no meio da balsa. Não entra uma única peça de ferro na construção
que ofusca a vista, algumas palhoças onde vivem famílias de índios de semelhante embarcação. Os paus são talhados em bisei nas duas
cujas plantações estão na margem setentrional. Atravessamos 0 Coman: pontas. As maiores embarcações dêsse tipo têm comumente um pequeno
mastro, com vela, e podem levar às vêzes muitas pessoas. A madeira
(487) Wfed aplica . aq~. por engano evidente, o nome " guaiamu " ao bem conhecido
leve de que são feitas tem o nome de "pau de jangada" 4 89. Foi descrito
aratu dos mangues (GO!uopsls cruentata).
(488 ) Como já se viu antes (cf. p. 179, nota 824) há engano por parte do autor (489) As jangadas, usam-se ainda hoje no litoral brasileiro, desde a baía de
em ~eferir o ." papagaio. do mangue " a Psittacus ochrocephalus Linn., espécie privativa d~ Todos os Santos até o Ceará, variando a sua construção em pontos de pormenor e,
Br.asii sete~trwna! e OCidentl!-1 (Amazonas, Pará, Mato Grosso) ; êle aparece ainda Impro- concomitantemente, a nomenclatura respectiva. Com elas é feita cada ano na Bahia,
priamente Jdentf~I~ado a Ptnttacus aestivus Linn. nos "Beftrage" (tomo IV, pág. 205), barra fora, a pesca do xaréu, que pelo verão aparece em grandes cardumes, próximo
mas, pela descr1ç;ao, corresp_onde . precisamente a Psittacus amazonicus Lfnn., ou seja à costa. (cf. Almirante Alves Câmara, Ensaio sObre as constr. navais ind,uenas do
Am.azona amazomca amazomca Lmn. da nomenclatura atual. Brasil, Edit. Nacional, " Brasflfana ", n.• 92 ).
,
334 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHEUS 335

por Arruda sob a denominação de Apeiba cimbalaria ou "embira jan· ginais. Lastimei não ver avançar na minha direção um guerreiro
gadeira"•, tida como pertencente à Polyandria Monogynia. Tupinambá, o capacete de penas à cabeça, o escudo de penas ("endu-
Os mais hábeis condutores dessas jangadas são os índios civilizados ap") nas costas, os braceletes de penas enrolados nos btaços, o arco e
da costa, os quais têm suas habitações, nessa região, espalhadas pelas a flecha na mão. Ao invés disso, os descendentes dêsses antropó-
matas litorâneas. Cada família possui a sua embarcação, posta de fagos me saudaram com um "adeus", à moda portuguêsa. Senti, com
pé na areia da praia; na ocasião de ser utilizada, basta virá-la e pô-la tristeza, quão efêmeras sãos as coisas dêste mundo, que, fazendo essas
na maré de enchente, ali perto. Mais ao sul desaparecem as jangadas gentes perder os seus costumes bárbaros e ferozes, despojou-as também
e só se vêem canoas; mais ao norte, pelo co:qtrário, estas rareiam e de sua originalidade, fazendo delas lamentáveis sêres ambíguos. Na
aquelas é que se tornam comuns. Talvez seja esta região a mais vinheta dêste capítulo vem representada fielmente uma família de
meridional das em que cresce o pau de jangada. índios, ein viagem pela costa.
Depois de deixarmos o Una, chegamos, ao têrmo de 6 léguas, a Vila Nova de Olivença é uma cidade de índios, fundada pelos
Olivença, vila habitada por índios. Na última metade da distância, jesuítas há uma centena de anos. Nessa época, buscaram-se índios do
erguem-se colinas verdejantes do lado da terra, que oferecem nova rio dos Ilhéus ou São Jorge para trazê-los para aqui. A vila possui
curiosidade para um botânico. O côco de piaçaba • •, a que já me agora cêrca de 180 fogos e todo o seu território conta com cêrca de
referi a propósito de Mogiquiçaba, cresce aí em grande abundância. 1.000 habitantes. Com exceção do padre, do escrivão e de dois
As suas fôlhas, que se elevam quase que perpendicularmente, lembram negociantes, Olivença não conta quase com portuguêses. Todos os
demais habitantes são índios, que conservaram os seus traços carac-
um penacho turco; seu caule, alto e forte, ergue-se altaneiro acima da
terísticos em tôda a sua pureza. Vi, entre êles, várias pessoas muito
vegetação, como uma soberba coluna encimada de fôlhas. Em Mogi-
idosas, cujo aspecto provava a salubridade do lugar, entre outras um
quiçaba fabricam-se cordas com as fibras dessa planta, e em Olivença
homem que se lembrava de ter visto fundar a cidade e construir a
fazem-se trabalhos com os frutos.
igreja, havia cento e sete anos. Os seus cabelos ainda eram de um
Vila Nova de Olivença se acha aprazlvelmente situada sôbre negro de azeviche, o que aliás é muito comum entre os índios velhos.
colinas bastante elevadas, e é cercada de vegetação espêssa. O convento Entretanto, o cabelo de alguns dêles embranquece com a idade; mas
dos jesuítas se ergue acima dessa muralha de verdura. A costa, formada isso não se dá com freqüência nos indivíduos de raça pura e isentos
de rochedos extremamente pitorescos que avançam pelo mar adentro, de mistura com o sangue prêto. Os índios de Olivença são pobres,
é constantemente batida pelas vagas barulhentas que enchem de alva mas em compensação têm poucas necessidades; como em todo o Brasil,
espuma tôda a baía. índios vestidos de camisas brancas ocupavam-se a indolência é o traço distintivo do seu caráter. Cultivam as plantas
em pescar na praia. Havia entre êles alguns tipos muito belos. necessárias ao seu sustento; tecem êles mesmos os panos leves de
O seu aspecto lembrava-me a descrição que fêz Léry dos seus antepas- algodão de que fazem as suas vestimentas. Não se ocupam absoluta·
sados, os Tupinambás. Os Tupinambás, escreve êle, são esbeltos e mente com a caça, que em outros lugares é um dos principais passa-
bem conformados, têm a estatura média dos europeus, embora mais tempos dos índios, pois não têm pólvora nem chumbo, coisas que
espadaúdos•••. Infelizmente porém perderam as suas características ori· raramente se podem comprar na vila de Ilhéus, e que, por conseguinte,
se têm que comprar por alto preço. Um dos principais ramos de
( *) Cf. KosTER, Travels, etc., em apêndice, p. 488. Marcgrave descreve também indústria dos habitantes de Olivença é a fabricação de rosários com os
a árvore e dá-nos a sua figura em p. 123 e 124.
(**) Por uma inesperada casualidade deixei de examinar com suficiente atenção frutos da palmeira "piaçaba", e de escudos com a carapaça da tarta-
a P.almeira piaçaba nas florestas de Ilhéus, para saber se as longas fibras de que ruga careta ("tartaruga de pente").
falei nascem sôbre os cachos dos frutos ou sôbre os invólucros das fôlbas. Esperava
encontrar essa bela árvore mais ao norte; entretanto, me enganei. A família das palmeiras foi um dos mais úteis presentes que a
• (Suplem.) Como não posso dar, por observação própria, os necessários Informes Providência fêz às regiões equatoriais. A piaçaba dá uma excelente
sobre a procedência das longas fibras da "piaçaba ", quero pelo menos transmitir o que
o Sr. F~eyress me contou ter sabido dos índios. Segundo asseguram êstes últimos, madeira para construção; as suas fibras fornecem aos navegantes
aquelas fibras se formam no raque das fôlbas e dos espadices, cujo crescimento acompanham,
aumentando e'." largu~a e percorrendo às vêzes o caule desde a base da copa até o cordame extremamente durável, que tanto desafia as tempestades como
solo. Os í';'d!Os freqüentemente subiriam na planta, por causa dos frutos. Os cabos a umidade; seu fruto alimenta os habitantes de várias regiões dêste
que se fabnca~ com aquelas fibras são muito duráveis e usam-se nas embarcações de
tôda essa porçao da costa. O fabrico dêsses cabos é uma ocupação multo lucrativa: litoral. A Mauricia fornece morada e sustento; a existência de todo
os escravos en?rregados de trazer as fibras ganham de 12 a 14 vinténs por dia (um vintém um grupo étnico, o dos Guaraúnas, está ligada à existência dessa
valendo aproximadamente 1/20 de florim).
_ (***) Tenho, habitualmente, nas citações de LÉRY, consultado a edição francesa; a palmeira, segundo a expressão de Humboldt•.
alema apresenta a. desvantagem de trazer errôneamente escritos os têrmos brasileiros,
e nem sempre_ sena possível ao Autor passar para o francês o que foi vertido para
a lingua alema. (*) Ansichten der Natur, tomo I, p. 27.
336 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 337

Os frutos que se encontram nos gabinetes de história natural com ondas, fragmentos de um mineral leve e de côr avermelhada, que já
o nome de Cocos lapidea parece serem o da piaçaba. Têm 4 a 5 havíamos encontrado mais ao sul, na região de Pôrto Seguro; obser-
polegadas de comprimento, são regulares, um pouco pontudos na vando-o mais atentamente, reconheci ser um tufo vulcânico esponjoso,
extremidade anterior, e de côr castanha escura. Nas mãos do tomeador com mistura quase imperceptível de anfibólio basáltico, da Ilha As-
tomam um belo polido, donde a idéia de fazer rosários com êles. O censão•.
maquinismo com que se torneia os côcos é muito simples: uma corda, Depois de transpormos uma ponte de terra, fomos agradàvelmente
ligada a um arco de madeira fixo ao teto, tem prêso na outra ponta um surpreendidos pelo inesperado espetáculo do pequeno e lindo pôrto
p~u. que se põe em movimento com o pé, o que faz as vêzes de roda. de Ilhéus. O rio dêsse nome se lança aí no mar, depois de ter brusca-
Divide·se a noz em gomos alongados e subdividem-se êstes depois em mente infletido para o sul, entre as duas rochosas colinas muito pitores-
pequenos pedaços de dimensões convenientes para as contas do rosá- cas, onde crescem coqueirais. Diante da embocadura do rio, vêem-se
rio, que são. depois f~r~das e arre?ondadas. Um trabalhador pode duas pequenas ilhotas rochosas, de que o lugar tirou o seu nome. Duas
faze~ num d1a uma duna de rosános que custam apenas 10 réis (7 pontas de terra fecham o pôrto de cada lado; na do norte, entre
cêntimos) cada um. Saindo das mãos dêsse operário, os rosários são o rio e a costa marítima, fica a vila dos Ilhéus, ou São Jorge; nesse
a~arelo pálido; mandados para a cidade da Bahia, aí são tintos de lugar o rio forma uma bela bacia tranqüila e bem abrigada, cuja
preto. vista, já de si pitoresca, é realçada por um conjunto de coqueirais.
Fui ver os índios em suas palhoças, e encontrei a maioria dêles À sombra dos majestosos coqueiros, cujas palmas penadas oscilam ao
trabalhando na confecção de rosários. As suas habitações, muito simples sabor do vento no tôpo de esguios caules, crescem duas pequenas
não diferem das que se encontram ao longo de tôda a costa. Tôda~ plantas, uma Calceolaria e uma Cuphea••, ambas desconhecidas dos
as suas coberturas são de fôlhas de uricana, que substitui a palha. botânicos. Do lado da terra, elevam-se espêssas florestas, e, do lado
Em vez das fôlhas inteiras de coqueiro, com que se cobre o alto das da vila, uma colina coberta de vegetação, dentre cuja sombria folha-
choupanas,. para im~edir a penetração da água, empregam-se aqui gem emerge a igreja de Nossa Senhora da Vitória. Do alto dela,
as longas fibras da piaçaba. Essas cabanas acham-se expostas em fila avista-se um dos mais belos panoramas imagináveis, cuja representação
a.o longo da enco~ta de um morro e estão em aprazível situação, descor- em minha l8.a estampa devo à bondade do Sr. Sellow. E' admirável
tmando-se uma vista larga do Oceano. Um pouco mais para o interior, o contraste dessa natureza, alegre e serena, com as vagas qo oceano,
chega-se a um _campo (pla~ície sem árvores), donde se avista ao longe rolando sem cessar com surdo ruído, para se quebrarem, espumando, de
a Serra da Maltaraca, cadeia de montanhas que, assim como tôdas as encontro aos rochedos.
dessa região, deve conter muito ouro e pedras preciosas. Vila dos Ilhéus é um dos mais antigos estabelecimentos do litoral
Como a falta de inclinação dêsses índios para a caça não me deixava do Brasil. Depois que Cabral mandou dizer a primeira missa em Santa
esperar grande auxílio da parte dêles nas minhas excursões através Cruz e desembarcou em Pôrto Seguro, foi fundada a colônia de São
das matas, prossegui minha viagem após curta demora e fiz, com a fresca Jorge. Francisco Romeiro lançou em 1540 as fundações da vila dos
da. man~ã, a agradável caminhada de três léguas até o rio Ilhéus.
(*) O gabinete do Sr. Blumenbach de Goettingen contém vários exemplares
~OI pre~1so aguardar a hora da vazante para seguir pela praia arenosa, dêsses fósseis, provenientes da ilha de Ascensão. O Sr. Cunningham também descreveu-o
hs_a e firme, em. qu~ se viaja co~ ~ui ta facilidade. Vêem-se aqui e em "Transactions philosophiques ", tomo XXI, p. 800. As correntes marinhas trazem
êsse fóssil para as costas do Brasil, da mesma forma que levam as sementes de mimosas
a.h al~mas h~bitaçoes; os coqueirais, que as cercam, fazem-nas dis- e outras plantas tropicais para as costas da Inglaterra e da Noruega. Como estou
tmguu no mew da vegetação baixa. A meio caminho atravessa-se a a ponto de deixar a costa do Brasil para me afundar no interior das terras, vou
enumerar sucintamente as diversas espécies de conchas que encontrei nas praias desde
:au um pequeno riacho denominado Cururupe, ou "Cururuípe" (sapo o Rio de Janeiro até Ilhéus, por conseguinte entre o 23° e o 15° grau de latitude sul.
Algumas conchas fluviais se encontram também entre elas:
mchado, na velha língua brasílica, em que "cururu" significa sapo). L epas tintinnabulum; Pholas candida; T ellina rostrata ; Cardiu•n !lavium ; Mactra
Uma ponta de rochedo, avançando pelo mar, estava coberta striatula; Donax denticulata; D. cuneata; Venus paphia; V. Gallina; V. laeta; V. castrensis;
V. Phryne; V. affinis; V. concentrica; Spondylus plicatus; Chama gryphoides; Arca
por u!?a Po~.oqueria•, lindo arbusto de 6 a 8 pés de altura, Noae; A. barbata; A. decussata; A. aequilatera; A. indica; A. rhomboidea; Ostrea
com folhas .nJaS, verde-escuras; suas flôres cheirosas se distinguem edulis; Mytilus edulis; Pinna no bílis; Conus stercus muscarum; Cypraea carneola;
C. caurica; Bulia Ampulla; B. Velium; Voluta Auris Malchi; V. Auris Sileni;
pelas com~ndas corolas tubuladas de 6 polegadas de comprimento; V. Oliva; V. hiatula; V. lspidula; V. Glabella; V. bullata; Buccinum Galea;
B. tube•·osum; B. decussatum; B. Harpa; B. haemastoma; B. porcatum; B. fluviatile;
nur:~a t:av1a encontrado essa planta mais ao sul. As praias dessa Strombus Lucijer; S. Bryonia; Murex Lotorium; M. Morio; M. Trapezium; M. Aluco;
reg1ao sao pobres em conchas; observei todavia aqui, rolados pelas Trochus radiatus; T. distortus; T. americanus; T. obliquatus; Turbo stellatus; Heli3:
pellis serpentis; H. ampulacea; H. ovalis; H. aspersa Müller; Nerita Cairena;
N. Mamilla; N. fluviatillis; N. littoralis; Patella saccharina; P. striatula.
(*) (Suplem.) Posoqueria revoZutCJ Scbrader em Gottingischen gelehrten Anzeigen, (**) (Suplem.) A "Calceolarla" é Physidiunt procumbens, Schrader, op. cit., p.
fase. 72, de 5 de Maio de 1821, p. 714. ' 174; a outra é Cuphea truticulosa Scbrader, op. clt., p. 715.
I
338 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHEUS 339

Ilhéus, depois de concluir um acôrdo amigável com os Tupiniquins, cidade da Bahia. Cultiva-se apenas a "mandioca" bastante para o
que habitavam o lugar•. A colônia cresceu e tornou-se florescente; consumo dos habitantes; eis porque acontece às vêzes ao estrangeiro
mais tarde, porém, sofreu muitas incursões dos tapuias chamados outrora não achar o que comer. Tem-se menos ainda o com que, matar a fome
Aimorés, e hoje conhecidos pelo nome de Botocudos. Em 1602, do que em outras vilas mais ao sul, pois na estação quente rareia até o
na capitania da Bahia foi feita a paz com êsse gentio. Mas o tratado peixe; na estação fria, isto é, em abril, maio, junho, julho, agôsto e
só foi cumprido em Ilhéus no ano de 1603, construindo-se de acôrdo setembro, as águas são mais produtivas. Exporta-se de Ilhéus um pouco
com êle dois aldeamentos para os selvagens. Os restantes dêsses índios de arroz e certa quantidade de madeiras, sobretudo o belo "jacarandá"
têm em parte o nome de "Guerens" (em francês "Guerins"). A colô- (Mimosa) e o "vinhático". Vêem-se poucos engenhos de açúcar no
nia em seguida foi decaindo cada vez mais, de sorte que já em 1685 rio Ilhéus; são mais comuns as chamadas "engenhocas", que só
estava em extrema decadência, e hoje nenhum vestígio mostra da antiga fabricam "melado" e aguardente. E entre aquêles, merece ser citado o
prosperidade. Seu último sustentáculo desapareceu com a retirada dos da fazenda Santa Maria, cujas terras têm 20 léguas de extensão. Possui
j~suítas, pois dêles é que provêm todos os monumentos antigos que ela 270 negros e foi propriedade dos Jesuítas. Ligadas ao engenho de
amda se conservam. O pesado convento, que é a construção mais açúcar, vêem-se as máquinas para beneficiar arroz e algodão, movidas
importante da vila, foi edificado em 1723; está hoje vazio e em ruínas, a água, as quais foram recentemente consertadas por um inglês e dotadas
pois e~ algu~s po~tos não existe mais telhado; os muros são de tijolo de rodas horizontais. Só há um novo engenho de açúcar nessa região
e aremto, cup ongem é atestada pelas conchas marinhas existentes que tenha também uma máquina para beneficiar arroz.
de permeio; as numerosas conchas que nesta rocha se encontra deno- A vila de Ilhéus, pela sua vantajosa situação na barra do rio,
tam-lhe a origem. Entre os monumentos dos Jesuítas, pode-se ainda e pelo seu pôrto bem abrigado, embora pequeno, tem as maiores facili-
contar um belo paço solidamente construído à sombra de grandes dades para fazer um ativo comércio. O rio não é muito caudaloso, pois
árvores e coberto por um alpendre. Apesar de todo o mal que os a sua nascente se acha a pouca distância no interior das florestas.
Jesuítas fizera~, deve-se confessar que a maior parte das instituições Pouco acima da vila êle se divide em dois ramos; o mais setentrional,
cultas e beneficentes da América Meridional lhes são devidas. A denominado rio do Fundão, é o menos comprido e importante; o
própria vila de Ilhéus se compõe de pequenas casas cobertas de telhas, em médio ou o principal, rio da Cachoeira, vem das grandes matas que
parte maltratadas, em decadência ou abandonadas; as ruas são mais cobrem o interior do sertão da capitania da Bahia; o mais ao sul
ou menos regulares, cobertas de capim. Somente aos domingos e dias é o segundo em volume d'água. Como a fazenda de Santa Maria está
de festa é que nelas se observam movimento e vida; vêem-se então situada em suas margens, deram-lhe o nome de rio do Engenho.
algumas pessoas reunidas, pois os habitantes das redondezas acorrem Curioso por conhecer os índios do rio dos Ilhéus, resolvi visitar
à vila, para a missa. Há três igrejas, uma das quais, a de Nossa o Rio Itaípe (comumente chamado Taípe), que tem a sua embocadura
Senhora da Vitória, está dentro de uma mata próxima. Foi cons- cêrca de meia légua ao norte da do rio Ilhéus. Desde há muito
truída, segundo a tradição supersticiosa do lugar, para conservar a tempo, construíram aí, com o nome de Almada, um estabelecimento para
memória de um milagre. Desejara-se construir uma igreja na vila e os "Guerens", que são um ramo Aimorés, ou Botocudos. Chega-se a
para tanto já se havia aparelhado uma viga colossal; numa certa êsse aldeamento após um dia de viagem, subindo o rio desde a sua
manhã, descobriu-se essa enorme peça de madeira no alto da montanha embocadura; a estrada é muito aprazível e oferece muitas oportuni-
vizinha, e viu-se, nesse prodígio, um sinal certo de que Nossa Senhora dades aos caçadores.
desejava ter a sua igreja naquelas alturas, pelo que tratou-se de aten- O Taípe é a princípio um rio de muito pouca importância; ornam-
dê-I~. Contam-se três eclesiásticos na vila de Ilhéus, o primeiro dos lhe as margens muitas fazendas de lindo aspecto, tôdas ornadas de co-
quais é chamado "padre vigário geral". Entre os monumentos da queiros e algumas delas completamente cercadas de coqueirais. Quase
história antiga de Ilhéus, notam-se restos do tempo em que estêve na todos os moradores possuem nas margens do rio os seus currais, ou
posse dos holandeses. Assim é que ainda se vêem junto da entrada "gamboas"• 4 oo, invento muito engenhoso de apanhar peixe, já referido
do pôrto, e, na praia, uma grande pedra de lioz em forma de rebôlo, que
se supõe tenha servido para o fabrico de pólvora. ( *) A "gamboa" ou "curral" é construido da seguinte maneira: fixa-se na terra,
nas margens do rio, uma fila de varas formando um cercado que desce até o fundo
O tráfico dessa colônia com outros portos do Brasil é de pouca d'água. A extremidade está bastante afastada da beira do rio para que se possa dispor
em tôrno dela três compartimentos arredondados, feitos também de varas, e arranjados
import~ncia. Algumas "lanchas" ou "barcos" fazem um pequeno de maneira que o peixe possa nêles entrar fàcilmente, e, uma vez prêso, não encontre
comércio de produtos das lavouras e das florestas vizinhas com a modo de sair. Visto do alto, um dêsses currais tem a forma de uma fôlha de trevo
cujo peclolo é perpendicular à margem do rio.

(*) (Suplem.) SouTHEY, History of Brazil, tomo I, p. 41. (490) O autor escreve "Coral" e "Camboa".
340 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 341

na primeira parte desta descrição de viagem. Pesca·se muito nessas lência e da falta de indústria dos habitantes. Contentam-se em ter um
paragens, e pegam-se também muitas tartarugas de rio, das encontradas pouco de farinha, peixe e carne sêca, e, às vêzes, caranguejos, que
no rio Belmonte• 491 • obtêm nos mangues ao redor. Muito poucos são aquê~es que pensam
Ouvimos nas matas vizinhas o guincho agudo do pequeno "sauí" em melhorar a sua condição, ou em cultivar melhor a terra. A sua
(Jacchus penicillatus, Geoffroy), que as percorrem em bandos. Os habi- indolência vai ao ponto de lhes ser indiferente ganhar dinheiro. O café
tantes das redondezas costumam criar os filhotes dêsses mimosos ani- dá muito bem nas margens do rio, e, mesmo assim, plantam muito pouco.
mais; se bem que se deixem amansar, conservam quase sempre grande O comércio dêsse produto é insignificante, e o café, tão estimado e
disposição para morder. Seriam muito apreciados na Europa e levados procurado entre nós, tem um preço insignificante na vila de Ilhéus.
para lá freqüentemente se pudessem suportar a viagem pelo mar. Só as margens da baixa porção do rio apresentam fazendas e casas;
Encontra-se no rio Taípe um engenho de açúcar e várias engenho- subindo-se, vêem-se apenas, dos dois lados, altas florestas; nos trechos
cas, onde se fabrica aguardente. A de pior qualidade e em tôdas as em que estas não existem, as margens são em geral cobertas de relva,
partes do Brasil a mais comum é a chamada aguardente-de-cana; a que que ora cobre pitorescos montes, ora risonhas colinas, enquanto que do
é um pouco mais bem destilada se chama aguardente-de-mel, e a melhor seio das mais altas florestas emergem os cimos dos coqueiros. Uma quan-
de tôdas, vinda da Bahia, cachaça 402 • Trazem da Europa várias espécies tidade de plantas aquáticas forma em cada margem espêssa tapagem,
de bebidas fortes, como por exemplo a aguardente-do-reino, que vem no meio da qual a "aninga" (Arum liniferum, Arruda), erguendo-se
de Portugal, a genebra da Holanda, o rhum etc. acima da água, com as suas hastes de 7 a 8 pés de altura, cônicas e
Nas fazendas do Taípe, cultiva-se mandioca, arroz, cana-de-açúcar afiladas no alto, e suas grandes fôlhas agitadas, formam um admirável
etc.; mas, conforme eu já disse, não se produz mandioca em quantidade conjunto. Piso representou-a fielmente na página 103, capítulo LXX do
bastante para fornecer à vila de Ilhéus, prova manifesta da indo· 4 to. livro (De Facultatibus. simplicium) 4 93.
Várias aves vivem nessas plantas aquáticas, entre outras o tordo
( *) Denominei-a T estudo d epressa. O Sr. Merrem deu-lhe o nome de Emys depressa de pescoço amarelo e nu (Turdus brasiliensis) 49 4, a piaçoca (Farra
em seu sistema dos anfibios, p. 22; é uma espécie inteiramente nova, que vou descrever
em resumo. Corpo muito achatado, pescoço alongado que não pode esconder e que o jacana, Linn.), e a linda franga d'água azul (Gallinula martinicen-
animal coloca entre os bordos da carapaça e os do plastrão; duas barbilhas em volta
do mento; o disco da carapaça apresenta três placas hexagonais, orladas de dez outras sis)495, que não víamos havia mu.ito tempo. Essa ave tem uma plu-
maiores; as dos bordos são em número de vinte e cinco, sendo a externa estreita e magem magnífica, e se assemelha perfeitamente, quanto ao modo de vida,
alongada; o plastrão é composto de treze placas, a abertura posterior ocupando
na fêmea quase todo o comprimento da cauda que é muito curta; a do macho é mais à nossa Gallinula chloropus alemã, pois não só nada muito bem, como
comprida; as patas dianteiras têm cinco dedos ligados por uma membrana; as traseiras também trepa nas hastes e nos ramos das plantas aquáticas. O grande
só têm quatro; tôclas são armadas de unhas fortes e agudas. A côr dessa tartaruga
é oliva-escura, a parte debaixo do pescoço amarelo pálido, com manchas e listras escuras miuá (Plotus melanogaster) 4 9 6 era muito comum, e um pouco menos
por trás das barbilhas; uma delas tem a forma de uma ferradura. A carapaça é
comumente coberta por um bissus verde escuro carregado; quando limpo, parece bruno, assustadiço que os dos rios mais meridionais; matamos muitos dêles,
com listras negras que se irradiam da extremidade superior de cada placa até à sua assim como a linda pica-para (Plotus surinamensis, L., ou Podoa de
extremidade inferior ou anterior; na parte anterior de cadn. pata traseira, vê-se em
frente da articulação inferior uma apófise córnea amarelada, semelhando uma unha Illiger) 4 07, que transporta os seus filhotes implumes debaixo das asas,
um pouco comprida.
Encontrei nos alagadiços e nos campos inundados do Espirito Santo uma pequena • à maneira do mergulhão (Podiceps) .
tartaruga muito parecida com esta pelos seus principais caracteres, mas que dela se
diferencia pela sua carapaça mais estreita, menos achatada e um pouco levantada nos
As lontras oferecem também nesse rio agradável passatempo para
bordos; as placas do plastrão são atravessadas por linhas paralelas e a parte inferior o naturalista. Vivem em sociedade, e aproximam-se a nado das canoas
do pescoço é amarelo pálido, sem mancha. Tais diferenças são tão pequenas que não
sei se se deve considerar essa tartaruga como uma espécie particular ou como uma
Testudo depressa ainda jovem. E' notável que a maioria das tartarugas de água doce (498) Na edição brasileira da obra de Guilherme Piso (Cia. Editora Nacional,
da América Meridional parece pertencer ao grupo dêsses animais caracterizados por São Paulo, 1948), a passagem a que se reporta Wled encontra-se às págs. 114-115.
barbilhas, ou apêndices membranosos embaixo do mento. Em todos os pontos do Brasil (494) Turdus brasiliensis Gmelin (1788), sinônimo de Turdus atricapillus Linn.
que percorri, só encontrei tais tartarugas de água doce. Humboldt parece que diz a O nome atual da ave, pertencente à familia dos Mimidas (vizinha dos Túrdidas), é
mesma coisa a respeito dos rios situados mais ao norte. Podem-se ler os detalhes Donacobius atricapillus (Linn.). O primeiro a noticiá-la na literatura cientifica foi
interessantes que êle fornece sôbre a procura dos ovos de tartaruga no Orenoco, na pág. Marcgrave (p. 212), sob o nome de "Jacapani ", hoje, ao que parece, desusado e substituido
2~3 da primeira parte do segundo volume da edição francesa da sua descrição de
vmgem, onde são descritas duas espécies novas, Testudo Arrau e Testudo Térekay, por variadas apelações, como "casaco de couro" (comum a muitas outras aves), "pássaro
que muito se parecem com as que encontrei. angu ", "viola ", "assobia cachorro ", etc.
(495) Porphyrula martinica (Linn.). franga d'água encontradiça não só em todos
Estados do Brasil, como ainda no norte da Argentina, nos Estados Unidos e nos paises
( 49~) Como já tivemos a ocasião de observar, o cágado aqui em questão corresponde intermédios. Cf. O. Pinto, Rev. Mus. Paul., XIX, p. 75 (1935).
ao descnto em 1820 por Mikan (Delectus florae et taunae brasiliensis, fase. 1) sob a (496) Anhinua Brisson, 1760, usado de preferência a Plotus Linn., 1766.
denominação de Emys radiolata. O assunto é tratado largamente por Wled nos Beitrtiue A espécie sul-americana é Anhinua anhinua (Linn.), enquanto que A. melanouaster
(I, págs. 29-50), ainda na suposição de que a sua Testudo depressa, tão belamente ( Gmelin) é exclusivamente asiática e malásica. Aliás em várias referências feitas ante-
representada e':" Abbildt~:nuen, pudesse constituir espécie à parte. Platemvs radiolata riormente, a espécie recebera de Wied a sua verdadeira denominação lineana. Cf.
Mikan é peculiar dos nos do Brasil meridional, o Rio Paraguai Inclusive. Cf. Fr. a nota 214.
Siebenrock, in Denkschl'. Akad. Wissens. Wien, LXXVI, 1926, p. 26. (497) Plotus surinamensis Gmel., sinônimo de Colymbus fulica, Bodd., Heliornis
(492) "Cachaza" no original. fulica (Bodd.) a nomenclatura atual.
342 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 343

até o alcance do tiro; algumas vêzes se erguem acima da água e res- flutuava na superfície do lago; é formada por plantas aquáticas, sôbre as
piram fortemente, fazendo ouvir um ruído singular_. Outras ~ê~es apa- quais cresceu uma relva e mais tarde o~tros vegetais. Muitos ~os grandes
recem com um grande peixe na bôca, como se qmsessem ex1b1r a sua lagos da Europa experimentaram fenomeno semelhant~. , A Ilha a que
prêsa, e mergulham logo depois. E' raro serem apanhadas, pois quando me refiro está encostada a uma das margens do lago, JUnto à entrada
o tiro não as fere mortalmente, não se deixam ver outra vez. do Taípe, e aí se fixou. Essa_ lagoa de;e ser parti~ularmente r~.c.a e_m
Nas margens de todos êsses rios criam-se também capivar~s; mas peixe, pois os moradores da vila de Ilheus a ela vem com frequenCia,
êsses animais não são aqui tão numerosos como nas zonas Situadas voltando para casa ao cabo de dias, com grandes provisões.
mais próximo do equador, visto como Humboldt os encontrou no Apure A beleza e a utilidade dêsse lago lhe emprestam tão grande valor
e no Orenoco em bandos até de sessenta a cem indivíduos. Segundo aos olhos dos habitantes do lugar, que é uma l das primeiras coisas de
o testemunho' dêsse ilustre viajante•, a capivara come peixe, o que que falam aos viajantes que chegam. Contam muitas lendas sôbre êsse
todavia me parece muito duvidoso. lago, sôbre a sua origem, a zona que o cerca e os fen?m.enos que ~pre­
Há nesse lugar, aberto através da mata, um pequeno furo que corta senta, não raro exagerando-lhe o tamanho e as pecuhand~des. J?uem
uma grande volta do rio e abrevia, portanto, o caminho pa~a as canoas que as montanhas vizinhas são ricas em ouro e pedras precwsas; Situou-
leves. E' muito raso durante a vazante da maré, que amda se faz se mesmo no seio das solidões dessas montanhas um Eldorado fabuloso,
sentir fortemente a essa distância, a ponto de algumas vêzes não ser um país em que não haveria necessidad~ de muito trab~lho para se
possível por êle passar; mas, na cheia, não se tem a menor dificuldade. adquirirem grandes riquezas. Os aventureiros europeus, ávidos de ouro,
Mais acima, o rio lança um braço, em direção ao norte, para um grande excitados por essas narrativas fabulosas, arriscaram-se a percorrer tôdas as
lago que se estende por duas milhas entre lindas montanhas. partes do Novo Mundo à procura dêsse para_íso tão ardenteme.nte
Essa lagoa, como impropriamente a chamam, é famosa em tôda desejado; para achá-lo, penetraram nas mais distantes florestas desse
a redondeza por ser muito rica em peixe, e nela se terem feito, algumas vasto continente, e muitos nunca voltaram.
vêzes, grandes pescarias. Muitos moradores de Ilhéus têm roças nas suas Devem-se, portanto, a essa sêde de ouro dos espanhóis e portuguêses
margens. Ela tem perto de duas milhas alemãs de comprimento por uma as poucas noções incompletas que se possuem sôbre as condições_ e a geo-
de largura. E' cercada de morros cobertos de viren~e vegetaçã_o, com grafia dessas solidões interiores da América meridional. A mawr parte
alguns claros ocupados por plantações. Dur~~te o dia, uma ~nsa leve dos países dêsse continente gozam da tradição de serem regiões que
("viração") se levanta sôbre a amena superfiCie da lagoa, agitando as encerram no seu interior grandes riquezas em ouro. La Condamme
suas águas com violência capaz de pôr em risco as leves canoas. E' fala-nos de um "Dorado", ou duma "Lagoa Dorada"•; Humboldt .. e
muito provável que ela outrora tivesse comunicação com o mar. Um outros escritores também os mencionam; tradição semelhante reina nas
trecho baixo, entre dois morros pouco elevados, situados na margem
margens. do M ucuri e do rio dos Ilhéus. Entretanto, a crença na exis-
que dá para o Oceano, parece ter sido o ponto de comunicação, ou a tência dêsses países maravilhosos diminuiu muito, presentemente, entre
"barra", mais tarde coberta pela areia. Dizem também que são comuns
' os lavradores da América Meridional, pois a pobreza geral dos mineiros
na lagoa várias conchas marinhas, e que, em certas partes de suas mar-
que procuram ouro leva _à imediata conclusão de qu~ a cu.ltura da terra,
gens, observam-se rochedos perfurados, com buracos redondos e em nessas zonas tão favorecidas pela natureza, é o mew mais seguro para
forma de funil, como os que formam os parcéis ao longo da costa se conseguir sólida fortuna.
marítima: êsses buracos têm o nome de caldeiras.
Voltamos da lagoa para o rio Taípe, cujo braço principal percor-
No ponto em que o Taípe entra na lagoa, as suas margens são
remos, subindo para o oeste o seu curso sinuoso, através das mata~,
tomadas por grandes tufos de aninga, sôbre cujas hastes p<;msam grande
até um ponto em que o seu curso diminui consideràvelmente. AproXI-
número de pequenas garças, sabacus (Cancroma coch~eana, L.) e soc?-
mava-se a noite; uma grande ave, o íbis verde brilhante (Tantalus
bois (Ardea virescens, Linn.), os quais se mantêm aCima da superfície
cayennensis)499, errava pela mata sombria, fazendo ouvir o seu forte
das águas, à espreita de peixes, de insetos, ou ~as larvas dêstes 498 : I;o~o
na entrada do rio, vê-se uma ilha atualmente fixa, mas que, a pnnCip10,
(*) DE LA CoNDAMINE, Voyage, etc., pâgs. 98 e 112.
(**) Sôbre uma "Laguna del Dorado " no Orenoco, veja-se von HuMBOLDT, AMichten
(*) V. von HuMBOLDT, Voyage au No1!eatt Continent, t. li, cap. XVIII, p. 217. der Natur, p. 293. Arrow Smlth figurou-a em sua carta.

(498) O aqui chamado "socó-boi" é a garcinha verdoenga, tecnicamente Butorides (499) Mesentbrinibis cayennensis (Gmf\1.), vulgarmente "caraúna". Oco_rre desde o
striatus (Linné), comunlssima nos rios e nos mangues da costa atlântica, onde é norte da Argentina até a Colômbia e as Guianas, afeiçoando-se sempre às reg1ões vestl'!as
conhecida por "maria-mole", "ana-velha", "socõzinho", etc. O apelido "socó-boi ", derivado de mata, donde lhe haver chamado Vieillot Ibis 81111!atica. Em minhas peregrlnaçoes
da possança da voz, é hoje quase privativo das garças rajadas, bem maiores, do gênero ornitológicas pelo interior do Brasil, só me recordo de havê-lo encontrado em Goiás
Tigri8onta. (lnhumas), pelo que inclino-me a considerá-la espécie já relativamente escassa.
344 VIAGEM AO BRASIL DO RIO GRANDE BELMONTE AO ILHÉUS 345
grito, exatamente como a galinhola nas florestas da Europa. Sua voz drada e tinham sido a princípio destinadas à instalação dos Guerens.
forte repercutia ao longe na quietude da mata. Já era noite quando Não tendo tido ainda tempo de construir uma casa para si e sua família,
cheguei a Almada, último povoado que se encontra quando se sobe o aproveitou-se de uma das que foram construídas para os • índios. Destas
Taípe. Fui recebido da maneira mais amigável possível pelo Sr. Weyl, só restam umas três, que são os últimos vestígios da vila de Almada. O
proprietário havia pouco chegado da Holanda. Sr. Weyl pretende fundar aqui uma grande fazenda; tôdas as circunstân-
Almada, agora, apenas indica o local onde, há uns sessenta anos, cias parecem favorecê-lo. Plantará principalmente café e algodão, que
se tentou fundar uma aldeia de índios. Uma tribo de descendentes dão perfeitamente nessa zona, onde a maioria das plantas, pelo seu cresci-
dos Aimorés ou Botocudos, conhecida nos rios Itaípe e Ilhéus pelo mento vigoroso, denunciam a excelente qualidade do solo e do clima,
nome de Guerens, consentiu que se fundasse um estabelecimento, com e onde as matas estão cheias das mais belas espécies de madeiras.
a c?ndição de que lhes dessem terrenos e habitações. A proposta foi
ace1ta; construíram-se casas e uma pequena igreja; um padre e vários O novo colono espera construir para si uma casa, assim como uma
índios do litoral vieram habitar a aldeia. Todavia, êsse estabelecimento igreja, no alto duma colina donde a vista é admirável. Do lado do
fracassou. Os Guerens morreram todos, com exceção dum velho cha- norte, vê-se a lagoa entre dois morros cobertos de matas, e muito
mado capitão Manuel, e de duas ou três velhas. últimamente, levaram pitorescos; por trás dêle, se ergue o monte denominado "o Queimado",
os índios do litoral para povoar a vila de São Pedro d'Alcântara, que de onde, segundo dizem, durante muito tempo, os mineiros retiraram
também está próxima do seu fim. muito ouro e muitas pedras preciosas. O horizonte, além dessas eleva-
Vários escritores afirmam que os Guerens são realmente descen- ções, é limitado pela Serra Grande, cadeia de montanhas que se prolonga
dentes dos Botocudos; a perfeita semelhança da língua dêsses dois em direção ao mar, escondendo à vista as florestas que o rio das Contas
povos prova-o indiscutivelmente. Pessoas que há trinta anos os viram atravessa. A esquerda, vê-se ao longe o sertão que confina com Minas
dizem que, então, usavam batoques nas orelhas e no lábio inferior, e os Gerais; montanhas cobertas de matas se elevam, umas sôbre outras,
cabelos cortados em coroa, como os Botocudos. A tribo de Aimorés nessas extensões desertas. Nessas matas do sudoeste é que passa a
que em 1685 expulsou os Tupiniquins da capitania da Bahia, e da qual estrada aberta até Minas Gerais pelo tenente-coronel Felisberto Gomes
uma parte devastou Ilhéus, Santo Amaro e Pôrto Seguro, pertencia aos da Silva, e que eu tinha o projeto de percorrer.
Guerens. Alguns dêstes voltaram para as suas matas, outros con- As cercanias de Almada são também muito pitorescas: o Taípe se
cordaram em morar em habitações fixas•. divide em vários ramos pequenos que lhe trazem o tributo de suas
O aspecto exterior do capitão Manuel deixa ver que êle descende águas, saindo dos vales sombrios e precipitando-se por sôbre as pedras,
dos Botocudos; já não usa, todavia, a ornamentação característica dêsse murmurejando, e formando pequenas cachoeiras. Abaixo do flanco
grupo; suas orelhas e o lábio não são desfigurados por placas de madeira, escarpado da elevação em que será construída a casa, o rio se lança
e êle deixa o cabelo crescer até a nuca. Manifestava, porém, grande pre- ruidoso por sôbre os obstáculos que lhe opõem os rochedos, formando
dileção pela sua gente, e sentiu uma enorme satisfação quando me ouviu aí uma pequena cascata. O espetáculo dessa natureza grande, majestosa
pronunciar algumas palavras de sua língua. Aumentei ainda a sua e selvagem, compensará o Sr. Weyl da corajosa resolução de deixar a
~legria e a sua curiosidade quando lhe disse que trazia comigo um sua pátria para vir viver unicamente com a sua família nessas remotas
JOvem botocudo, que não se separara de mim; lastimou muito não o paragens. Em qualquer parte do mundo o homem culto encontra entre-
poder ver, pois eu o tinha deixado na vila, e falava nêle constantemente. tenimento e ocupação; mas, entre tôdas as classes, é ao naturalista que
í.sse velho conserva sempre o seu arco e as suas flechas, como recordação cabe a maior vantagem sôbre os outros; que campo imenso de observa-
dos seus velhos tempos. Está afeito à fadiga, e é ainda vigoroso e capaz ções, que fonte inesgotável de prazer espiritual não lhe proporcionaria
de caçar _nas florestas, apesar da sua avançada idade. Aprecia a aguar- essa morada solitária nas nascentes do Taípe!
dente aoma de tudo. A chegada do Sr. Weyl foi para êle o aconteci- Passei em Almada um dia muito agradável em companhia do Sr.
mento mais feliz que podia desejar. Nunca, na casa dêsse homem Weyl e sua família. Regressei em seguida à vila, onde procedi ime-
generoso, deixou de soar a hora em que lhe distribuíam a divina bebida. diatamente aos preparativos necessários para percorrer o sertão de Minas
Também, nunca o capitão Manuel conheceu em Almada tempos tão Gerais, pela estrada aberta, a partir do pôrto, dois anos antes. Foi muito
felizes. dispendiosa a abertura dessa estrada através das matas, e, nesse curto
O Sr. Weyl, que escolheu recentemente êsse local para as plantações espaço de tempo, já se encontra inteiramente abandonada. Destinava-
que pretende fazer, é proprietário das terras que medem uma légua qua- se a estabelecer comunicação entre os territórios interiores das capitanias
de Minas Gerais e Bahia e os portos marítimos, a fim de transportar
(* ) SoUTHEY, Historv of Brazil, vol. li, p. 562. para êsses os seus produtos e por êles receber as mercadorias de que
346 VIAGEM AO BRASIL

necessitassem. Alguns negociantes de gado vieram, com efeito, do


sertão até Ilhéus com as suas boiadas; mas não acharam a quem vendê-
las, nem como embarcá-las para a cidade da Bahia. Foram obrigados a
vender por ínfimo preço o seu gado. Depois, como os animais estra-
gassem as plantações dos habitantes de Ilhéus, êstes os caçaram a tiros.
O fracasso de tal emprêsa dissuadiu os vendedores de gado de realizarem
outras tentativas. Desde então, ninguém mais freqüenta essa estrada,
que está hoje tão obstruída de mato, espinhos e árvores novas que um III
viajante a cavalo, somente com a foice e o machado, pode abrir caminho
através dela; por conseguinte, animais de carga não podiam caminhar
por tal estrada. Não obstante, convencido de que nas montanhas do VIAGEM DE VILA DOS ILHÉUS
interior da capitania da Bahia eu haveria de encontrar produtos natu- A SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA,
rais e criaturas inteiramente diferentes dos do litoral, decidi-me a empre-
ender viagem tão penosa.
último povoado rio acima e preparativos para a VIagem
pelo sertão, através da mata.

Viagem para São Pedro, através da mata. - Noite


em Ribeirão dos Quiricos, com a ponte destruída. - São
Pedro de Alcântara. - Viagem rio abaixo até à vila. -
Semana de Natal e festas . - Regresso a São Pedro. -
Preparativos para a longa viagem através da mata virgem.

Fui muito bem acolhido na vila de Ilhéus pelo Sr. Amaral, pri-
meira autoridade do lugar; vantagem essa aliás que desfrutei em tôda
parte. Em sua qualidade de juíz, o Sr. Amaral muito se empenhou por
me prestar auxílio, tornando menos sensível a falta de recursos de que
sofria a vila, e teve a bondade de mandar vir de sua fazenda, situada
na grande lagoa, farinha e outros víveres para o meu pessoal.
O Sr. Fraser, que viera de Belmonte comigo, tendo encontrado
um navio prestes a partir para a Bahia, aproveitou-o.
Verifiquei não haver conveniência em permanecer na vila, porque
os brasileiros que eu havia contratado para me acompanharem na tra-
vessia das florestas, eram todos grandes bebedores de aguardente, e
deram ocasião a várias cenas desagradáveis. Resolvi, por conseguinte,
apressar os preparativos da minha viagem, a fim de iniciá-la logo que
pudesse. Um mineiro, que se achava na vila de Ilhéus, consertou as
cangalhas dos meus animais de carga, que a longa viagem por terra,
do Rio de Janeiro até aqui, havia pôsto em mau estado. Repará-las
era tanto mais importante quanto êsses animais iam empreender, muito
348 VIAGEM AO BRASIL DE ILHÉUS A SAO PEDRO DE ALCÂNTARA 349

mais carregados, uma travessia por matas inteiramente desabitadas. As rochedos banhados pela água, ao longo dos córregos«<5oo, mas nesse local,
caixas e os fardos batem freqüentemente de encontro aos troncos, e era visto com mais freqüência. Aí descobri o seu ninho, construído
êsses choques os arrebentam e estragam, se a cangalha não fôr macia e num buraco à margem do rio, embaixo de tufos de palmeiras novas.
reforçada, e a carga bem equilibrada. Grande número de outras aves animavam as vizinhanças da fazenda,
A grande jornada que eu ia fazer pelas matas exigia também outras sendo particularmente abundantes os araçaris (Ramphastos aracari,
providências. Como no percurso de quarenta léguas, através de zonas L.), num jenipapeiro próximo (Genipa americana, Linn.), coberto tam-
pouco freqüentadas, eu não esperava encontrar nenhuma habitação bém de belas flôres brancas e de frutos. Outras grandes árvores estavam
humana, era preciso levar uma provisão de farinha de mandioca, carne tão carregadas de ninhos de japuís (Cassicus persicus), que se via um
sêca e aguardente. Um dos burros foi carregado, portanto, com um dêles suspenso em cada ponta de galho. .r.sses pássaros faziam ouvir
barril dêsse líquido aqui tão indispensável; dois outros le"aram víveres, sem cessar o seu grito áspero, e mostravam, como os nossos estorninhos,
guardados em sacos de couro (bruacas). Finalmente, cada um dos o seu talento singular para imitar o canto de tôdas as aves que se
achavam então nas vizinhanças. A sua plumagem negra e amarela,
meus índios levava às costas sua provisão de farinha para seis ou oito
bem marcada, é magnífica, sobretudo quando êle abre a cauda, e sobe
dias. Haviam-me prevenido de que, nessa estrada obstruída por mata-
voando até o ninho, que parece uma bôlsa.
gais, eu não poderia caminhar sem o recurso de machados e foices;
Os meus homens voltaram após um dia e meio de ausência com a
mandei, por conseguinte, fabricar várias dessas ferramentas de boa qua- notícia de que a ponte não podia ser reparada e que, por conseguinte,
lidade, e confiei-as a Hilário, Manuel e Inácio, três homens que eu a passagem seria muito difícil. Todavia, parti a 24 de dezembro, com
contratara para a viagem. O primeiro era um mameluco, o segundo tôda a minha tropa, para tentar transpô-la; encontrei o caminho
um mulato forçudo, afeito à fadiga e acostumado a percorrer as flo- ainda em pior estado do que me haviam dito. Por tôda parte os espi-
restas, e o terceiro um índio. nhos rasgavam a pele e a vestimenta dos viajantes; era preciso abrir
Terminados êsses arranjos, mandei carregar algumas grandes passagem constantemente com o facão; às vêzes, touceiras espêssas da
canoas com as nossas bagagens, e parti da vila a 21 de dezembro. A chamada "banana do mato" (Heliconia), com suas longas fôlhas duras,
estrada de Minas Gerais deixa logo a costa e sobe acompanhando o tornavam, por causa da umidade do orvalho, penosa e desagradável a
curso do rio, e a uma légua e meia de Ilhéus penetra nas matas ininter- marcha através da mata. A estrada percorre morros e mais morros,
ruptas. Desembarquei, à noitinha, numa fazenda onde os meus car- atravessando florestas imensas e sombrias, cheias de árvores gigantescas,
gueiros, para aí mandados alguns dias antes, tinham encontrado bons excelentes para construção e tôdas as espécies de trabalhos. Desde
pastos para descansar. Encontrei nesse local um mineiro chamado o primeiro dia de nossa caminhada por essas selvas ininterruptas, esca-
José Caetano, que fazia uma derrubada nas matas vizinhas e levava lamos muitas montanhas elevadas, entre as quais assinalarei o monte
consigo dois jovens selvagens da tribo dos Camacans, ou Mongoiós. Miriqui, assim denominado pela grande quantidade de macacos
Terei ocasião de falar adiante dêsse homem, que tomei por minha (Ateles)50l que aí se encontram, e o Jacarandá, assim chamado justa-
conta durante algum tempo. Deu-me êle a notícia de que uma parte da mente por causa da bela espécie de Mimosa de igual nome, ali muito
estrada estava completamente impraticável; por isso, mandei na frente comum. A estrada, em volta dêsse último morro, foi traçada em ser-
seis dos meus homens com machados para examinarem o local e, em caso penteio; apesar disso, a subida por ela foi penosa para os nossos
de necessidade, construírem uma ponte provisória, ou uma pinguela burros sobrecarregados, que tinham muitas vêzes de parar e fazer um
para facilitar a passagem. Encarreguei também dois dos meus caçadores bom descanso, para depois continuarem a marcha. Grandes obstáculos
de acompanhá-los, para lhes fornecerem caça, ficando com o restante
(*) Muscicapa 1·ivularis. Comprimento, ~ polegadas e 3 linhas; envergadura das
da tropa na fazenda de um certo Simão, de onde fizemos várias excur- asas, 7 polegadas e s linhas; fronte e lados da cabeça côr de cinza, êstes um tanto
sões pela mata. mlsturados de branco; linha branca amarelada em cima dos olhos; papo amarelado
branco; peito cinzento amarelado; assim como o urop(gio e as penas de debaixo
A pouca distância da casa do dono da fazenda, um pequeno cór- da cauda; tôda a parte superior do corpo verde oliva com forte colorido verde claro.
~sse pássaro tem o modo de vida e os hábitos das toutinegras (Sylvia).
rego se precipitava do alto das pedras, entre moitas cerradas de
Heliconia, Cocos, e outras belas plantas, correndo para o rio. Havia (500) Basileuterus rivularis rivularis (Wied), mais comumente citado sob B. strauu-
latus (Licht.), seu sinônimo. E' regra, entre as espécies do gênero, voz dellcada e
nesse sítio uma sombra muito fresca e agradável, onde aparecia em harmoniosa, cabendo segundo a nossa observação (cf. Pap. Avuls. Dept. de Zoologia, IV,
p. 132) a primazia sob êste ponto de vista a B. l eucoblepharus (Viei!l.). O exemplar
abundância um mimoso passarinho que, a qualquer hora do dia, fazia que serviu à descrição de Wied encontra-se ainda na coleção do American Museum de
ouvir um canto breve, porém bastante agradável. Já em Belmonte, New York.
(~01) Brachyteles arachnoides (Geoff.). vulgarmente "mono " ou "buriqui ". E' o
havia eu encontrado êsse cantor dos bosques ermos e sombrios, entre os maior dos macacos brasileiros, como já houve ocasião de referir.
350 VIAGEM AO BRASIL DE ILHÉUS A SÃQ PEDRO DE ALCÂNTARA 351

eram para nós os vales ermos e silenciosos, fechados entre montanhas uma coxa, muitas de lenho rijo (Bauhinia, Banisteria, Paullinia e out~as)
e onde as palmeiras, numerosas, constituem o principal ornamento; entrelaçam-se em volta dos troncos e dos galhos, elevam;s~ até o Cimo
muitas vêzes os nossos animais afundavam as patas num solo alagadiço e das árvores, onde dão flôres e frutos fora do alcance da VIsta humana.
mole (atoleiro). Os caçadores iam na frente e avisavam a tropa quando Alguns dêsses vegetais têm forma tão singular, como por exemplo
surgiam êsses obstáculos. Então fazia-se alto; os cavaleiros desciam do certas espécies de Bauhinia, que não podem ser observadas sem sur-
cavalo, os caçadores penduravam suas armas nas árvores mais próximas, prêsa. Não raro o tronco em volta do qual elas se enroscaram morre
tiravam-se as cargas e cada qual punha mãos a obra. Derrubavam-se e vai-se consumindo; vêem-se então cipós colossais que sobem com
as árvores menos grossas, que eram estendidas sôbre o caminho, reco- as espirais livres, e compreende-se fàcilmente a causa ?o fenô~eno.
bertas por fôlhas de palmeiras e galhadas, e com isso se conseguia uma Seria bem difícil representar o aspecto dessas florestas, p01s a arte ficará
passagem artificial. sempre aquém do que pretende exprimir. . .
Assim conseguimos avançar, à fôrça de muito trabalho, e sob o calor No primeiro dia, à tarde, cheguei a um sítiO denommado Curral
do dia; mas não tardávamos a encontrar gigantescas árvores atra- do 1acarandá, porque as boiadas, vindas do sertão, passavam aí a
vessadas na estrada, que tinha de 8 a 10 passos de largura; era então noite antigamente. Os vaqueiros constroem um parque, ou curral,
necessário abrir uma trilha lateral na parte mais cerrada da mata, e cortando grandes paus, e amarrando-os horizontalment<;_ aos troncos, co~
contornar por essa forma o obstáculo. Tais dificuldades, que fazem fôrça bastante para que os bois ou os cavalos n~o possam fu!pr
recuar os viajantes nessas imensas matas virgens e retardam grande- durante a noite. O curral do 1acarandá está escondido numa porçao
mente a sua marcha, não assustam absolutamente quem, como nós, tão fechada e alta da floresta que nêle já muito cedo escurece. Vimos
está no comêço duma tentativa como essa, pôsto que não faltem a ainda, junto ao cercado, um par de velhos ranchos, construídos muito
saúde e as provisões. O homem muito atarefado esquece a que está ligeiramente como os outros que já tínhamos visto; são feitos de paus
entrelaçados, e cobertos de patioba ou outras fôlhas, para proteger da
sujeito, e o aspecto das florestas majestosas ocupa o seu espírito com
cenas sempre novas e variadas; o europeu, sobretudo, que a percorre chuva. Os que ainda se viam no lugar eram tão velhos e e~ t.ão _mau
pela primeira vez, encontra-se constantemente entretido. Em tôda parte estado que não ofereciam o menor abrigo; ~· no enta_nto, a cont1gen:1a ~e
passar aí a noite tornava-os bem necessános: efetivamente, a nOite Já
a vida pulula e se espalha a vegetação mais luxuriante; não se vê o ia a meio quando caiu uma pancada de chuva, que nos molhou comple-
mais pequeno espaço sem plantas. Em todos os troncos de árvore vêem-
tamente a todos. No dia seguinte, tivemos céu claro e sereno mas
se crescer, trepar, enrodilhar-se, prender-se uma profusão de espécies de
precisamos ainda de algum tempo para nos esquentar com. o café e
Passiflora, Caladium, Dracontium, Piper, Begonia, Epidendrum, vários um bom fogo, para em seguida nos porm~s no~amente a cammho_. O~
fetos (Filices), liquens e musgos os mais diversos. Espécies dos gêneros nossos animais de carga passaram uma nOite pwr do que nós, se Isso e
Cocos, Melastoma, Bignonia, Rhexia, Mimosa, Inga, Bombax, Ilex, possível, porquanto, depois do primeiro dia de viagem, a custo
Laurus, Myrthus, Eugenia, ]acaranda, ]atropha, Vismia, Lecythis, Ficus, encontraram na floresta algum capim para matar a fome. A floresta
e milhares de árvores outras, a maior parte ainda desconhecidas, com- estava tão úmida ainda, que foi com penoso trabalho e grandes estorvos
põem o maciço da floresta. O solo está juncado de flôres, e fica-se que prosseguimos em nossa travessia por uma estrada tapada de espêssa
embaraçado para saber, de qual elas provêm. Alguns galhos gigantescos, vegetação.
cobertos de flôres, de longe parecem brancos, amarelo vivo, vermelho Durante o segundo dia de viagem por essas velhas matas, encon-
escarlate, róseos, violetas, azul celeste, etc.; nos lugares pantanosos, tramos vários córregos que rolavam, murmurantes, suas fres:as e lím-
erguem-se em grupos unidos sôbre longos pecíolos, grandes e belas fôlhas pidas águas sôbre leitos de pedras. Em suas margens cresCiam novas
elípticas das helicônias, que têm às vêzes de 8 a 10 pés de altura, acom- espécies de salvas (Salvia), cujas flôres eram de um vermelho carregad~.
panhadas de flôres de forma extravagante, e côr vermelha carregada, ou Uma planta curiosa, que ainda eu não tinha visto antes, e nunca mais
de fogo. No ponto de divisão dos galhos das árvores maiores, crescem tive ocasião de encontrar•, atraiu principalmente a minha atenção:
enormes bromélias, de flôres em espiga ou em panícula, escarlates ou de tem um caule lenhoso, de perto de 2 pés de altura, com fôlhas quase
outras côres igualmente belas; descem grandes feixes de raízes, à seme- opostas, carnosas, ovais, acumiadas, entre as quais se erguem
lhança de cordas que descem até o solo e constituem novos obstáculos pedúnculos alongados, finos, quase filiformes, flexíveis, com 8 a 10 yole-
para o viajante. ~sses tufos de bromélias cobrem as árvores até que, gadas mais ou menos de comprimento. Trazem êstes na extremid_ade
depois de muitos anos de existência, morram e, desarraigados pelo vento, uma flor de cálice roxo. escuro, qüinqüéfido, cujas divisões são estreitas,
caiam em terra com grande fragor. Milhares de plantas trepadeiras de
todos os tamanhos, desde as mais delicadas até as que têm a grossura de (*) (Suplem.) Nemathantm corticola, Scbrader, op. cit., p. 718.
DE ILHÉUS A SAO PEDRO DE ALCÂNTARA 353
352 VIAGEM AO BRASIL
logo em quantidade par: se vingar~m. ~s brasileiros evitam c01..1 temor
lanceoladas e acumiadas; a corola, com 2 polegadas de comprimento, êsses ninhos, quando nao podem 1med1atamente destruí-los.
de uma viva côr escarlate, larga, um pouco entrada na frente perto
Ao meio-dia, cheguei a um trecho da floresta onde o Ribeirão dos
da abertura, é, da mesma forma que o cálice e o pedúnculo, coberta
Quiricos, de leito profundamente escavado, corria outrora por baixo
de pequenos pêlos esbranquiçados. As anteras são unidas junto da
duma ponte. Essa havia desaparecido, caída de velha, desagradável ~on­
abertura da corola, e sustentadas por filêtes distintos. Essa bela planta,
tratempo que nos fêz logo imaginar o atraso que nos ameaçava; por 1sso,
da Didynamia Angiospermia, só se me apresentou aos olhos nesse local;
resolvi passar a noite nesse lugar, para dar tempo ao meu pessoal de
infelizmente, não lhe pude obter a semente, pois não lhe vi o fruto.
fazer a tropa passar o rio. Junto do local da ponte encontramos um
Não encontramos, no correr do dia, muitos morros; em compen- velho rancho, cuja coberta de fôlhas de coqueiro ~stava em part~
sação, outros obstáculos, cuja seriedade ainda não tivéramos ocasião de apodrecida, mas que assim mesmo n~s deu regular abngo contra a u~m­
conhecer, apareceram em grande número. Conforme o meu hábito, dade da noite. Perto da choça hav1a também uns restos de fogue1ra,
eu precedia a tropa montado em meu cavalo, levando à minha frente feita de pequenos paus, que a minha vanguarda de caçadores já
dois homens armados de facão e machado, para desembaraçarem a havia aproveitado para preparar a nossa refeição. Fomos ver o acamp~­
estrada da mataria; de repente, ouvi os meus homens, que vinham mento dêles, onde havia um porco-do-mato, três grandes macacos ml-
atrás, me chamarem, e todos os animais correrem, fugindo de onde riquis e uma jacutinga estendidos nas brasas, espetáculo deveras agra-
estavam. A indocilidade dêsses animais não me deixou outra alternativa dável para os viajantes esfomeados; sentamo-nos todos em volta do
senão ceder-lhes lugar, o mais depressa que pude, para que passassem, fogo, e cada qual contou as aventuras do dia. I:Jilário, um dos c~çadores,
sem me ferirem com as caixas que carregavam. Todos se puseram a depois de ter matado o P?rco do mato, d.e1xou-o. no própno local,
correr e, como continuassem em disparada, pude descobrir a causa de sua coberto de galhos, para v1r buscá-lo no d1a segumte; mas quando
fuga. Haviam esbarrado, à borda do caminho, nas fôlhas dum arbusto voltou, uma grande onça (jaguareté) havia devorado a melhor parte
em que havia um ninho de vespas (marimbondos). Enxames dessas do animal. O viajante que percorre e,ssas imensas florestas .deve .con-
vespas furiosas, cujas picadas causam dor cruciante, se haviam lançado siderar-se feliz quando encontra com que se sustente; por 1sso amda
contra os pobres animais; tamanho pavor têm êles dessas vespas que ficamos muito satisfeitos de a onça nos ter deixado alguma coisa para
fogem imediatamente e se precipitam infrenes nas moitas mais cerradas comer.
e embaraçadas de espinhos. Os meus homens não ficaram mais isentos
Refeitas as nossas fôrças, tratou-se de transportar a bagagem para
de acidentes; uns tinham a cabeça a doer, outros o rosto, de modo que
sé depois de longa demora foi possível reunir a tropa e pô-la de novo o outro lado do ribeirão, operação em que os índios demonstraram
em ordem. muita destreza e habilidade. Depois de atravessarem uns paus de
margem a margem, passaram por cima dêles carregando aos ?mbros
Conhecem-se várias espécies de marimbondos50 2 ; são pequenas uma caixa pesada, e assim fizeram até que tôda a bagagem fo1 trans-
vespas alongadas, a maior e a mais temível das quais é de côr acasta- portada para a margem oposta, sem que tivesse havido o mínimo aci-
nhado escuro; uma outra espécie é amarelo castanho. Suspendem elas dente. Os burros deram novamente trabalho. As margens do ribeirão
a um g.alho de árvore, ou a uma planta qualquer acima do solo, o seu eram altas, escarpadas, escorregadias, e o terreno emb~ix~ encharcado;
ninho, construído à moda do das vespas da Europa. Como o destas, os pobres animais muito tiveram que lutar para atmgu a margem
é constituído duma massa cinzento-esbranquiçada, semelhante ao oposta, pois afundavam no leito; vimo-nos obrigados a c?loc~r neste
papel, e apresenta uma forma geralmente elíptica e pontuda nas os restos da velha ponte e, graças a êsse recurso, todos os amma1s foram
duas extremidades; fica prêso pela parte superior, e na inferior há levados para a outra margem.
uma pequena entrada redonda; outras vêzes a forma é arre.dondada.
Essas perigosas casas de marimbondos acham-se comumente fixadas na Apenas essa operação terminara, fomos surpreendidos pela noite.
face inferior duma grande fôlha de Heliconia; quando acontece que Era a estação das chuvas; nuvens espêssas toldavam o céu, o que
um viajante nelas toca por acaso, mesmo leve, as vespas irritadas saem mergulhava a floresta numa escuridão incrível, que parecia ainda mais
profunda ao clarão da nossa fogueira. Uma quantidade inumerável
de rãs coaxavam nas touceiras de bromélias que cresciam nos galhos das
(502) Marimbondo (escrito ordinAriamente "maribondo") é, no Brasil, a denominação grandes árvores; eram gritos cada qual diferente do outro, uns roucos
vulgar que de modo geral não cabe só a todos os vêspldas, como a várias outras
familias de Himenópteros, as abelhas excetuadas. No caso vertente êle se aplica porém, e curtos, outros semelhantes à batida de uma ferramenta, êstes a um
particularmente, às vespas sociais. Segundo o catálogo publicado por Ad. DucKE
(Rev. Museu Paulista, X, 1918, p. 315) orçam estas, em nosso pais, bem averiguadas, silvo breve e claro, aquêles a uma pancada. Insetos luminosos, à maneir~
em 120 espécies, distribuídas por 20 gêneros, entre os quais são particularmente Impor- de faíscas, voltejavam de todos os lados, entre outros o Elater noctt-
tantes, pelo número de espécies e largueza de distribuição, Polybia Lepelet., Mischocyttarus
Saussure e Polistes Latreille.
354 VIAGEM AO BRASIL DE ILHÉUS A SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA 355
lucus5oa, com suas duas lanternas, donde jorra uma luz esverdeada; árvores e, enrolando-se nos galhos mais altos, cobre inteiramente as
nenhum dêles, porém, tão luminoso como Lampyris noctiluca da Europa, copas, fazendo destas uma bola. Soberbas bignônias ornavam os lados
além de que nunca observamos o menor vestígio da luz, provàvelmente do caminho, e suas flôres róseas, brancas, lilases, roxas, de todos os
fabulosa, da Fulgora laternaria, que todavia várias vêzes pegamos nas matizes, enfeitavam o solo por baixo das plantas que lhes deram nasci-
árvores, principalmente na caixeta5o 4 • Os habitantes da região tampouco mento. O pau-d'arco, com que os selvagens, conforme disse anterior-
confirmaram o que se conta a respeito da luminosidade dêsse inseto505 • mente, fazem seus arcos, se destacava pela sua bela côr amarelo vivo.
Humboldt conta que, em sua viagem pelo Orenoco, ouviu durante a Foi provàvelmente essa árvore tão útil pela sua madeira, dura e elástica,
noite vozes de macacos, preguiças e aves diurnas•. Quanto a mim, nada que Marcgrave descreveu e representou pelo nome de "guirapariba" ou
ouvi de parecido nas florestas do Brasil oriental; as onças, as corujas, "urupariba" (p. 118). Os exemplares que vimos não tinham ainda as
os curiangos e o juó (Tinamus noctivagus), as rãs, os sapos e alguns fôlhas desenvolvidas; seus ramos estavam carregados de flôres. Os
insetos, são os únicos animais cujo canto ferem à noite o ouvido dos troncos se cobriam de Dracontium pertusumJ cheios de brancas flôre~, e
viajantes. de várias espécies de CaladiumJ que não contribuíam pouco para em-
No terceiro dia de viagem pelas matas, encontrei uma picada belezar o conjunto dos vegetais que nos rodeavam, enquanto que uma
freqüentada pelos moradores de São Pedro de Alcântara. Ela facilitou ligeira aragem trazia-nos o aroma suave das baunilhas. Essa planta
muito a minha marcha através da floresta; mas terminava em frente apreciável é muito comum; entretanto é pouco procurada e raramente
a um trecho do rio, denominado Banco do Cachorro. Os habitantes tiram partido dela; vários animais, entre outros os ratos e os camun-
costumam, dêsse ponto em diante, seguir uma outra picada ao longo dongos, devoram com singular avidez suas vagens ainda verdes.
do rio, mas como êste é impraticável para animais com carga, fui obri- As numerosas espécies de fetos cobriam o solo, principalmente
gado a seguir o mesmo caminho. Triste necessidade, essa, pois êste no lugar por onde outrora passava a estrada, e como tinham muitas
tornou-se ainda pior do que antes, embora lhe tenham dado mais vêzes 8 a lO pés de altura, era preciso abrir caminho a muito custo,
largura do que ao caminho do rio Mucuri; os troncos derrubados e através de seus tufos cerrados. Várias espécies são pequenas e procuram
partidos, os espinhos, as touceiras, as árvores pequenas, molhadas pela a sombra; outras, pelo contrário, são tão vigorosas que podem dar
chuva abundante, interrompiam constantemente a nossa marcha. sombra a um homem a cavalo. Devo observar a êsse respeito que já
Achamos, num recanto isolado, rodeado de folhagens espêssas, um foram encontrados nessa região dois gêneros dessa família, que são
esconderijo que uma grande onça construíra para si, afastando, como espinhosos e que podem ser classificados entre os fetos arborescentes.
costuma fazer, os galhos e as fôlhas, e que pouco antes havia abandonado. Arranhado e rasgado pelos espinhos, encharcado pe,l.a chuva, esgotado
A sombra dêsses bosques fechados, floresciam belas plantas; árvores pela contínua transpiração devida ao calor, o viajante, apesar de tudo,
majestosas ostentavam seus cimos gigantescos; em alguns pontos o solo sente-se arrebatado diante de tão magnífica vegetação.
estava como que forrado de grandes flôres escarlates dum mara- A chuva, que caía em torrentes, aumentava ainda para nós os
cujá (Passiflora) , planta sarmentosa cujo caule sobe ao longo das contratempos da estrada, mas não impedia que os habitantes das
florestas se fizessem ouvir. Fomos surpreendidos pelo grito singular
(* ) V. HUMBOLDT, Voyages aux r égions equi nocti ales du Nouveau Continent, tomo
II, cap. 18, p. 221. duma ave de rapina que ainda não tínhamos visto. A sua voz era
extremamente vigorosa e estridente, que começa como um grito muito
(508 ) O povo conhece êstes coleópteros luminosos, cuja ma ioria está hoje no
gênero Pyrophorus (fam. dos Elatéridas), pelo nome genérico de " vaga-lumes " confun- forte, para aos poucos ir diminuindo, e precedido de algumas notas
dind(H)S, portanto, com os Lamplrldas, familia a que pertencem os vaga-lumes 'europeus curtas e destacadas, como se fôsse o canto de uma galinha que está pondo.
e aqui também largamente representada.
(504) "Caixeta" aplica-se a mais de um vegetal ; no caso presumimos tratar-se Era gavião prêto de barriga branca, denominado pelos habitantes do
do também chamado "cinzeiro " ou "pau de tucano", Vochysia tucanorum Mart.
(505) A lenda, se assim posso me exprimir, da luminosidade da "jlqultiranahoia" lugar "gavião do sertão", já descrito por Buffon com o nome de "Petit
(ou "jaqulra nahoia ", nomes dados pelo povo às espécies do gênero Laternaria Llnn ., Aigle d'Amérique" (Falco nudicollisJ Daudin)5°6. Estava pousado no
para elas modernamente desmembrado de Fulgora) foi espalhada na Europa pela viajante
alemã Slbylle Merian , que andara pela Guiana em fins do século XVII e deixara um cimo de uma das árvores mais altas, e gritava sem cessar. Fiz a tropa
livro curioso sõbre as metamorfoses dos insetos, notável sobretudo pela perfeição das gravuras. fazer alto; dois caçadores se aproximaram devagarinho; cuidado inútil,
A menos que se a a tribua ao vêzo, multo comum aos viajantes da época, de dar largas
à fant!lsia, o fato pode explicar-se pela observação de uma luminescência acidentalmente porque a chuva tinha por tal forma molhado as armas, que delas não se
produz•da por cogumelos (ou senão bactérias) fotógenos, a menos que se quisesse invocar
~ma il';lsão visual, proveniente do pavor Inspirado pelo inseto, de aspecto efetivamente puderam servir, e a ave acabou por voar, depois de haverem falhado
ImpressiOna nte. Mais de uma crendice corre, aliás, a respeito dos Insetos de que nos vários tiros.
ocupamos ; tem-nos ainda o povo como terrivelmente venenosos, até para as próprias
plantas, que não t a rdariam a sucumbir às picadas de seu rostro, em tudo aliás análogo
ao das Cigarras, suas próximas parentas. Sõbre o a ssunto consulte-se Neiva e Penna, (506) Daptrius ( = Ibyter) americanus americanus (Boddaert), vulgarmente chamado
Mem. Inst. Oswaldo Cruz, VIII, pág. 118. Da sistemática do gênero ocupou-se J. Pinto " gralhão ", "cancã ", " caracará prêto ", etc. (cf. OI! v. Pinto, Rev. Museu Paulista, XX,
da Fonseca em Rev. llfuseu Paulista, XIV, p. 478-500, com estampas (1926). págs. 15 e 50).
356 VIAGEM AO BRASIL DE ILHÉUS A SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA 357
Não nos achávamos longe de São Pedro de Alcântara, último Bahia. A decadência da vila de São Pedro acompanhou a da estrada,
povoado que encontra quem sobe o rio de Ilhéus, pois, à tarde, saindo cujo mau estado experimentáramos várias vêzes durante a nossa viagem.
da espessura da mata, entramos nas roças pertencentes aos seus mora- Porque os homens constrangidos a viver no lugar, não encontrando
dores, que tinham plantado mandioca por entre os velhos troncos quei- mais os recursos de que necessitavam, em parte o abandonaram,
mados• e, pouco depois, chegávamos às suas casas. enquanto que uma grande parte dos índios Camacãs morreu duma
O lugar em que agora nos encontrávamos, era uma miserável aldeia, moléstia contagiosa, e os restantes fugiram imediatamente para as matas.
com apenas umas dez casas de barro e uma igreja, que não passa de A vila de São Pedro só é habitada, nesse momento, por um cura
uma espécie de alpendre, construído também de barro; deram, no ("padre vigário") e meia dúzia de famílias, que desejam ardentemente
entanto, a essa aldeia o nome de vila de São Pedro de Alcântara; todavia, que o govêrno crie para elas medidas de proteção. Dizia-se que a estrada
há ainda o costume de chamá-la impropriamente de "as Ferradas", por- ia ser desobstruída e que se mandaria para São Pedro uma nova leva
que, a pouca distância dela, o leito do rio é atravessado por porção de de moradores.
pedras conhecidas por Banco das Ferradas. Essa vila, ou melhor, essa Essa povoação está situada numa: zona inteiramente selvagem,
aldeola, foi fundada há dois anos, quando se concluiu a estrada de rodeada por todos os lados de florestas cheias de animais ferozes, e per-
Minas. Reuniram-se aí homens de tôda sorte, alguns espanhóis, várias corridas por bandos de Patachós. ~sses índios não causaram até
famílias de índios, e homens de côr (pardos), além de um grupo de então o menor mal aos habitantes, mas como não se conseguiu concluir
índios Camacãs trazidos da mata e de uma que os portuguêses conhecem com êles um tratado, são olhados com desconfiança, evitando-se ter
com o nome de Mongoiós. ~sses índios só se estendem ao sul até o Rio com êles o menor contacto, tanto mais quanto, em caso de ataque, os
Pardo, enquanto que ao norte se encontram até além do rio das colonos, em menor número, não se poderiam defender. As casas são
Contas, onde todavia já renunciaram de todo à vida selvagem. Somente rodeadas pelas plantações, de onde um camiTJ.ho estreito conduz à
aqui, no sertão da capitania da Bahia, pode-se ainda observá-los em seu estrada grande; os nossos animais com suas cargas só puderam passar
estado primitivo, pois muitos dêles nunca viram um europeu. Entre- por êle depois de aberto a machado.
tanto, são mais civilizados que os Patachós e os Botocudos, seus vizi- Chegamos a São Pedro num dia santificado, o que era contra as
nhos, visto como não vivem mais exclusivamente da caça e já cultivam nossas intenções, pois no Brasil não se costuma viajar em tais dias.
plantas para sua subsistência, prendendo-se assim, mais ou menos, ao A nossa demora iTJ.esperada junto à ponte destruída fôra a única
lugar que desbravam, embora não para sempre. Terei ocasião, mais causa do atraso. Um dos meus homens, morador em São Pedro, ouviu
tarde, de descrever com minúcia os costumes dêsse povo. Já disse, ao por isso vivas censuras da parte da mulher; a discussão quase terminou
tratar de Belmonte, que ali fui encontrar um resto dêsses índios, levados em vias de fato. O dia seguinte era também santificado; o cura teve
pelos paulistas e quase completamente degenerados. a gentileza de pôr à nossa escolha a fixação da hora da missa. ~sse
A vila de Almada, situada sôbre o rio Taípe, e a que já acima me respeitável eclesiástico teve grande contentamento de ver pessoa com
referi, forneceu também alguns habitantes à nova vila de São Pedro quem pudesse conversar e, como eu tivesse necessidade de ir mais uma
d'Alcântara, nas margens do rio da Cachoeira. Quando concluíram vez à vila de Ilhéus, a fim de tomar algumas providências, teve a
a igreja, o ouvidor da comarca instalou nela a paróquia; mais adiante, amabilidade de emprestar-me uma grande canoa. Procurei um prêto
a alguns dias de viagem, no ponto em que a nova estrada atinge o em quem pudesse confiar e que conhecesse bem as matas do lugar, a fim
sertão do rio Salgado, construiu-se também uma igrejinha onde se de levá-lo comigo, fazendo-me também falta vários objetos, que eu tinha
celebrava missa, e havia plantações para os viajantes; êsse pequeno tido a esperança de poder adquirir em São Pedro.
estabelecimento, porém, caiu em ruínas, o lugar se tornou um deserto,
ficando inúteis tôdas essas despesas, pois a estrada não foi mais utili- O rio de Ilhéus, ou antes o braço dêsse rio denominado rio da
zada e, dentro de pouco tempo, não se poderá mais reconhecê-la. Os Cachoeira, passa perto de Ferradas, como acima já disse; da costa
mineiros preferem a êsse caminho difícil através das matas o que até êsse lugar, a estrada de Minas corre paralelamente ao curso do
atravessa os campos ou as planícies nuas do sertão interior da capitania rio, em vários pontos fica-se dêle muito pouco distante; eis porque
da Bahia, porque não encontram na vila de Ilhéus nem colocação para se faz freqüentemente a viagem daí a Ilhéus por água, gastando-se
as suas mercadorias, nem navios que as transportem para a cidade da nela um dia, enquanto para subir o rio são necessários dois dias. Está-
vamos na estação sêca, o rio havia baixado tanto que em vários trechos
(*) WEIGL, missionário que percorreu a provlncia dos Mainas e as margens do só dificilmente avançava a canoa, pois o leito do rio se apresentava às
Rio Amazonas, fornece-nos minúcias sôbre o modo por que os lndios derrubam e queimam vêzes quase completamente cheio de pedras. ~sses fragmentos de rochas
as matas para fazerem as suas plantações. V. a coletânea de MURR, intitulada Reisen
eini{ler Missionüre der Gesellschatt Jesu, Nüremberg, 1785, p. 142. fazem lembrar um pouco a porção superior do rio Grande de Belmonte,
358 VIAGEM AO BRASIL DE ILHÉUS A SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA 359

com· essa diferença, no entanto, que o Ilhéus parece sempre pequeno gosa no sertão da Bahia, por ser amargosa a sua carne. Parecia pro-
em comparação com o Belmonte, muito mais considerável. Há quedas nunciar baixinho algumas palavras, que os portuguêses interpretam como
bem fortes, que dificultam a navegação; se os canoeiros não fôssem "um só fico!". O seu canto se compõe efetivamente de qu,atro notas, que,
experimentados, essas pequenas cachoeiras seriam às vêzes muito peri- moduladas muito doce e destacadamente, agradam muito aos ouvidos
gosas; a denominada cachoeira do Banco do Cachorro é a primeira na espessura das matas, e podem ser traduzidas daquela forma. A
para quem vem de São Pedro, e uma das mais fortes. O rio, no seu plumagem dessa ave simpática e muito mansa é côr de cinza quase
estado normal, é bastante impetuoso nesse trecho e cai de uma altura uniforme.
de quatro a cinco pés. Além dessa queda d'água, há várias outras, as Meus canoeiros fizeram passar ~ canoa por sôbre as pedras, o
quais, embora não façam correr grande risco às canoas, fazem com que que muito a estragou, ficando com o fundo todo cortado. Uma viagem
estas muitas vêzes se encham, molhando os viajantes, assim como as dêsse gênero, subindo a corrente, ainda deve ser pior para as embarca-
bagagens. Mesmo quando o rio atinge o nível mais baixo, as águas ções, pois se vêem pedaços de algumas delas presos às quinas agudas
têm sempre alguma profundidade entre certos rochedos; os peixes aí das pedras. Uma canoa não dura muito tempo nesse rio; na vinheta
se reúnem em grande número, porque a correnteza é menor. que acompanha êste capítulo fiz representar uma canoa, deslizando água
Vimos sôbre alguns dos rochedos grandes jacarés, cuja côr cinzento- abaixo, numa pequena cachoeira; dois índios a governam por meio
escura indicava uma idade avançada; costumavam mergulhar n'água de varas, deixando-a correr sozinha, depois de lhe haver dado direção
quando nos aproximávamos, e era inutilmente que lhes atirávamos. Esta conveniente. Vê-se a floresta marginal com as longas franjas de barba
espécie, o Crocodilus sclerops, nunca atinge as grandes dimensões dos de pau (Tillandsia), e, pendentes de uma velha Mimosa, muitos ninhos
jacarés que habitam mais ao norte, próximo do equador, pois os que bursiformes de guaches (Cassicus haemorrhous).
Humboldt observou no Apure, no Orenoco e em outros rios, chegavam A distância de cêrca de uma légua da costa, toma o rio aspecto
a ter 20 e mesmo 24 pés de comprimento. O viajante não se pode banhar inteiramente diferente; não se vêem mais rochedos nem pedras sôltas,
nesses rios sem perigo, tendo ainda que temer os ataques dos "caribes" e as fazendas das margens alternam com as matas e verdejantes colinas
ou "caribitos", peixes ávidos de sangue5o7. cobertas de pastagens ou de canaviais, dando alegria às habitações som-
As margens do Ilhéus são geralmente cobertas de belíssimas flo- breadas pelos coqueiros; junto a algumas dessas habitações, encon-
restas. As árvores gigantescas, os arbustos, as menores plantas, tudo trei pequenos cercados feitos de estacas, em que se criavam para comer
estava florido. Várias espécies de mimosas pareciam estar cobertas grande quantidade de jabutis (Testudo tabulata)509, espécie de tarta-
de neve e exalavam o mais suave perfume. Nessas florestas sombrias ruga que vive no mato.
ouvia-se freqüentemente o canto singular do sebastião (Muscicapa Cheguei a Ilhéus no fim da semana do Natal, quando muita gente
vociferans), cujo assobio alto era sempre repetido por muitos indivíduos, se tinha reunido para a festa. Já estavam em preparativos para celebrar
ao mesmo tempo. Ouvíamos também muita vez o canto doce e agra- a de São Sebastião. Tinha-se erguido um alto mastro, enfeitado de
dável duma espécie nova de pomba•5os, denominada pomba amar- bandeiras e, no dia da festa, homens mascarados percorriam a pequena
vila, ao som de tambores e fazendo tôda sorte de brincadeiras. Durante
(*) Denominei-a Colvmba locutrix por causa de seu canto; comprimento, 1 pé e
8 linhas; envergadura das asas, 1 pé, 6 polegadas e 10 linhas; pés vermelhos; pálpebras o dia chegaram mesmo a dar muitos tiros de espingarda nas ruas,
vermelho violeta carregado; plumagem cinzento escuro; papo um tanto amarelo ao passo que, durante a noite, o som do violão e das mãos, batendo
avermelhado; cabeça, peSCOço e peito cinzento púrpura; ventre um pouco mais pálido;
lados do alto do pescoço violeta um pouco mais vivo; parte superior do corpo cinzento em acompanhamento dos batuques, ressoava por tôda parte. Os
esverdeado cobre, ou oliva pálido furta-côr. mais ricos habitantes custeiam êsses festejos; costuma-se representar
(507) "Caribe" (de "carib", canibal), nos palses hispano-americanos, nome dos a vida do santo por mascaradas, cenas de teatro, combates e coisas
peixes carnlvoros denominados no Brasil "piranhas". Há várias espécies sob êsse nome
vulgar, distribuldas nos gêneros Serrasalmo e Ptloocentrus. Nos rios e lagoas em que
semelhantes. As pessoas que representam nessas pantomimas absurdas
existem, as piranhas constituem o mais temeroso flagelo, pois, em regra, aos cardumes são escolhidas alguns dias antes, e vestidas apropriadamente. No dia
de milhares de indivlduos, sanguissedentas se precipitam sôbre todo animal que, por de São Sebastião, havia dois partidos que se guerreavam, os portu-
desgraça, ali se aventure a penetrar, ou simplesmente matar a sêde. Páginas sugestivas
sôbre o que são os seus maleflcios encontram-se na maioria dos naturalistas que percorreram. guêses e os mouros; cada qual tinha seus capitães, seus tenentes, suas
desde Humboldt, as regiões quentes da América do Sul, podendo consultar-se sôbre o
assunto o interessante relato dado por R. v. Ihering, no "Dic. dos Animais do Brasil" insígnias. Erguera-se junto da igreja uma fortaleza feita de galhos de
(in Boletim de Agricultura, São Paulo, 1937, p. 388).
(508) Columba plumbea Vieill. (1818) é nome que já fôra antes do de Wied dado
a esta pomba, com base em um exemplar, colecionado por Delalande, em 1816, nos (509) O nome "jabuti " parece tender atualmente a desaparecer da linguagem
arredores da cidade do Rio de Janeiro (talvez nos mangues que ali abundavam). Propôs-se vulgar; na Bahia pelo menos, onde o animal existe ainda hoje com relativa abundância
modernamente aproveitar o nome de Wied para as aves do nordeste brasileiro, tidas
como raça particular (Cf. Pinto, Arquivos de Zool. S. Paulo, VII, 1949, pág. 249). ·- nas matas do Rio de Contas (cf. O. Pinto, Rev. Mttseu Paulista, XIX, pág. 17), êle é
chamado simplesmente "cágado".
360 VIAGEM AO BRASIL
DE ILHÉUS A SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA 361
árvore; os mouros tomam a imagem do Santo e levam-no para a sua
fortaleza, até que na última noite o partido oposto toma-a de novo vira, daí para o norte. Distingue-se ela por manchas arredondadas
e condu-la para a igreja, com o maior respeito. Essa representação durou esverdeadas, dispostas regularmente pelo corpo todo• 51?.
vários dias, durante os quais o povo vivia em constante movimento e Tornava-se necessário apressar os preparativos para a viagem pelo
não saía da igreja; ao mesmo tempo, só se ocupava de se divertir, sertão, a fim de aproveitar a estação sêca que era a mais favorável para
entregando-se à ociosidade e a tôdas as espécies de desordens. Os os meus trabalhos. O mineiro José Caetano, a que já me referi,
índios, que não demonstram a menor disposição para os dogmas e encontrando-se nesse momento em São Pedro d'Alcântara, ofereceu-se
preceitos da religião, tomam às vêzes parte muito ativa nessas panto- para ficar a meu serviço e guiar a tropa através das matas. ~le sabia
mimas e nas cerimônias externas. Por isso, vê-se os missionários apro- tocar os animais, arreá-los, e tratar dêles; conhecia a estrada, por
veitarem muitos dos costumes dos selvagens para conseguir a aceitação tê-la percorrido uma vez, trazendo uma boiada do sertão. Acompa-
de sua doutrina por essas gentes. Encontram-se nos relatos dos viajantes nhava-o sempre um jovem índio camacã, que muito me serviu nas
muitos exemplos dêsse costume. Humboldt, quando estava hos Andes, caçadas; costumávamos mand:i-lo na frente, de manhã, com um de
viu os índios da província de Pasto, mascarados e com chocalhos, exe- seus companheiros, para caçar e esperar-nos.
cutarem danças selvagens em volta do altar, enquanto um monge de
São Francisco elevava a hóstia. As considerações dêsse ilustre
viajante, explicando como a religião mexicana se misturou com a cristã,
podem se aplicar perfeitamente aos índios da costa oriental do Brasil.
"Não foi um dogma, escreve êle, que cedeu ao dogma, foi apenas um
cerimonial que substituiu outro. Os naturais do país só conhecem
da religião as formas exteriores do culto; amantes de tudo o que se
relacione com uma ordem de cerimônias prescritas, encontram prazeres
especiais no culto cristão. As festas da igreja, os fogos de artifício que
as acompanham, as procissões misturadas de danças e mascaradas
barrôcas são para a atrasada gente indígena uma fonte abundante de
divertimentos"•.
Observa-se aqui uma diferença: muitos indígenas da costa oriental
do Brasil não observam nem mesmo as cerimônias exteriores da religião
católica. A razão disso é extremamente simples: os índios mexicanos,
antes da conquista de seu país pelos europeus, tinham uma religião
regular ao passo que os brasileiros estavam no mais baixo grau de
civilização.
Terminados que foram os meus preparativos na vila, embarquei
para subir novamente o rio. Foi preciso trabalhar com afinco, num dia
quentíssimo, para içar, às vêzes a 3 ou 4 pés de altura, as pesadas canoas
por cima das pedras e das "cachoeiras". A nossa navegação foi muito
agradável durante a noite fresca, com o ar embalsamado pelas suaves
emanações das flôres das árvores que havia nas margens, emanações (*) Denominei essa serpente Coluber 1\Ierremii, em testemunho de meu reconhe-
que aumentam durante a noite. Levei dois dias para regressar à vila cimento pelos serviços que o Sr. Merrem prestou à história natural dos anflblos. Essa
cobra tem 148 placas abdominais e 87 pares de placas caudais; corpo grosso, arredondado,
de São Pedro. coberto de escamas lisas e escuras; as da parte superior são tôdas marcadas por uma
Durante a minha ausência, os meus homens tinham colecionado mancha redonda amarela ou cinzento-esverdeada; nos lados as manchas são amarelas,
todo o ventre é amarelo claro, com algumas manchas escuras nos bordos. As placas
muitas raridades de história natural, entre as quais uma bela serpente, caudais são orladas de amarelo e prêto.
ainda não descrita, que eu havia encontrado com freqüência, mais ao sul,
no Paraíba e no Espírito Santo, mas que, no entanto, nunca mais (510) A despeito da posição dubitatlva de Boulenger (Cata!. Snakes Brit. Mm.,
li, p. 168), acordam hoje os ofiologistas em reconhecer na presente espécie a batizada
PC!r Llnn~ (1!58) com o nome de Coluber miliaris, e lnclulda presentemente no grande
genero Lwph•s de Wagler. Na zona percorrida por Wied é ela representada por uma
(*) V. von HuM.BOLDT, Verauch 1i.ber den politischen Zustand des Kiiniureichs va~edade ~eográflca particular, Liophis miliaris semiaureus (Cope), a que correspondem
Neu-Spanien, tomo I, p. 18~. vános apehdos vulg~~;res. como "jararaca do tabuleiro " e "tralra-bóia ", arrolados por
Amaral (Mem. Inst. Butantã, X, p. 115).
IV

VIAGENS PELAS' MATAS VIRGENS,


DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
À BARRA DA VAREDA, NO SERTÃO.

Estreito d'Agua. - Rio Salgado. - Sequeiro Grande.


- Joaquim dos Santos. - Ribeirão da Içara. - Serra da
Suçuarana. - Vestígios dos índios Camacãs. - João de
Deus. - Estada no Rio da Cachoeira. - Em procura
dos Camacãs. - Rio Catolé. - Estada neste último. -
Berruga. - Barra da Vareda.

A 6 de janeiro, pela manhã, fiz carregar a minha tropa e dei o sinal


de partida. Para poder alcançar a estrada que conduz à mata, através
das lavouras de São Pedro, tive de mandar alargar a picada que para
lá se dirige, afastando da passagem os troncos queimados deixados no
chão. Atingimos assim ràpidamente a estrada, por onde depois prosse-
guimos através da floresta sombria, até o lugar chamado Rancho do
Veado. Uma ponte cujos paus estavam podres, quebrou-se sob o
pêso de alguns dos nossos cargueiros, e, se não fôsse o auxílio pronto
do mineiro José Caetano, teria despencado completamente sôbre o
ribeiro. Foi-nos muito trabalhoso um atoleiro existente em certo córrego;
todavia, vencemos também êste obstáculo, podendo chegar à tardinha
num pequeno riacho chamado Estreito d'Agua, cuja ponte havia tam-
bém caído, de podre. Acendemos nosso fogo não longe da ponte, entre
altas árvores, enquanto os nossos caçadores vinham chegando, uns após
outros. Um dêles trazia dois exemplares do já por mim referido "gavião
do sertão" 611 (Falco nudicollis, Daud.), cuja voz forte era ouvida em
tôdas essas matas. Tem a plumagem negra com belo lustro azul-ferrête,

(511) Daptrius am.ericanus am.ericanus (Boddaert), conhecido em Goiás e Mato


Grosso por "gralbão ". Já referido anteriormente (nota 506). Vive sempre em bandos
mais ou menos numerosOs e espanta aos não habituados com o clangor de sua possante
voz, audível a mais de um quilômetro de distância.
364 VIAGEM AO BRASIL
DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 365

capuelas (Perdix guian.ensis), cuja carne moqueamos numa grelha


o ventre branco e a garganta nua, de viva côr vermelho-cinábrio, bem
feita de varas~>l5. Exammada de perto, a mata que nos cerca parece
como a íris. Como as aves trazidas não prestavam para comer, algumas
das mais fechadas e ininterruptas; só na margem leste dp rio encon-
pessoas foram pescar, sendo igualmente bem sucedidas. Enquanto jo-
tram-se alguns sinais das plantações,. que o capitão Felisb~rto Gomes
gavam o anzol de cima de uma das traves da ponte caída, viram nadar
da Silva havia feito, quando construm esta estrada, há d01s anos pas-
uma cobra, que engolia um grande sapo; com um tiro de espingarda con- sados. Não obstante, já se tinha desenvolvido ali a vegetação alta, reco-
seguimos matá-la, verificando-se ser uma linda espécie do gênero
nhecendo-se os lugares das antigas plantações pela falta de grandes
Coluber•~> 1 2, cuja pele era agradàvelmente enfeitada de faixas bruno-
árvores e pelas cabanas de barro, que tinham servido de igreja e de
vermelhas e amarelo-desbotadas, mas inteiramente desconhecida dos
morada para os trabalhadores. Nestas p~antações retornad~s ao estado
filhos da terra.
silvestre, minha tropa não encontrou ma1s do que plantas Já altas e de
A 7, muito cedo arranjamos com o facão uma picada, a fim de
lenho duro, prova da rapidez com que se desenvolve a vegetação nestas
contornar a ponte e podermos passar o córrego. Como seguisse antes regiões quentes do globo. Nas proximid~des das choupan.as encon-
da tropa, encontrei na mata, tôda coberta de orvalho, muitos inambus tramos ainda muitas das pimenteiras (Capstcum) que lá hav1am plan-
da espécie da macuca, ou "macucava" (Tinamus brasiliensis, Lath.) tarlo; seus frutos acres foram para nós um feliz achado, pois é um
e do "chororão" (Tinamus variegatus) 513 , que, com o barulho, voaram condimento que, acrescentado ao peixe, nessas florestas ~roídas, muito
para o interior da mata e não puderam ser atirados. Sob um velho e contribui para facilitar a sua digestão, yodendo ser amda encarad.o
grosso tronco descobrimos um monte de terra, acumulada pelo grande como remédio contra as febres. Nas v1agens pelas matas do Brasil
tatu ("tatu-açu" dos brasileiros, ou "Tatu géant" de Azara), que ali é uso levar uma provisão de pimentas sêcas•, que vão sendo consu-
havia cavado no chão a sua toca~> 14 . Como êsse extraordinário animal, midas durante as refeições.
cujo tamanho e fôrça são consideráveis, costuma cavar os seus grand~s Antas e capivaras freqüentam essas roças abandonadas, devorando
buracos entre as raízes mais grossas das velha~ árvores, não é fácil o que resta de plantas úteis, pois que nesses lugares ermos o homem é
pôr-lhe a mão; durante tôda viagem não pudemos ver um só, apesar de ainda incapaz de aproveitá-las. . . .
lhes encontrarmos freqüentemente as tocas. Nossa refeição de hoje constou de três espéCies de peixes, o piau,
Uma segunda ponte parecia nos dever obrigar a uma nova parada; a piabanha e a traíra~• 51 6, de que conseguimos pesc~r . grande. quan-
mas, dessa vez, conseguimos passar com os nossos cargueiros. Chegamos tidade; favorecia-nos tempo calmo e bom, de maneira que tivemos
depois daí ao rio Salgado, de onde nos restava apenas uma légua uma noite quente e amena, tornada ainda mais agradável pelas grandes
para chegarmos ao próximo pouso. :Esse ribeirão, que tem uma largura fogueiras que acendemos. . . .
de 40 a 50 passos e entra, não longe do ponto em que estávamos, no A 8, pela manhã muito cedo, a tropa f01 carregada, p01s tmha eu
rio Ilhéus, ou rio da Cachoeira, é, como êste último, cheio de frag- em mira aproveitar o dia da melhor maneira. A estrada sobe e desce
mentos de rocha, e estava também com as águas no nível mais baixo. incessantemente, alternando-se morros e vales. Nesse lugar, que chamam
Atravessamo-lo a vau e acendemos o nosso fogo na margem oposta. Como Sequeiro Grande, a mata apresenta grande abundância de velhas
nos sobrava agora algum vagar, fomos à caça. Trouxemos uma porção árvores, de grossura e altura consideráveis; são freqüentes também as
de miriquis (Ateles), atirados por vários dos nossos caçadores, e bem extraordinárias barrigudas (Bombax), e o mamão do mato 517 , a que
assim algumas macucas, um mutum (Crax alector) e algumas
(*) Barrere refere o mesmo hábito entre os índios da Guiana (p. 121 da
(*) Essa cobra é, com tôda a probabilidade, Coluber versicolor de Merrem; consul- trad. alemã).
te-se Versuch. eines Systems der A1nph.ibien, p. 95. (**) (Suplem.) O "piau " é Salmo Friderici, q~e ta!"bém ocorre em Surinam ;. a
"piabanha" caracteriza-se por uma mancha vermelho-cmábr10 por detrás das nadadeiras
(512) Xenodon .,everus (Linn., 1766). Wied (Beitr., I, p. 859) descreveu essa peitorais e a "traíra " é provàvelmente a "tareira do rio" dt; Marcgrave (p. 157). La!flen-
cobra com o nome de Coluber sauroceph.alus, que se reconheceu depois ser sinônimo tável acidente, em que se molhou uma parte dos meus papéis, fêz-me perder as descnções
de C. severus Linn., 1766, ou seja a "cururubóia" dos nordestinos (cf. Amaral, Mem. de vários peixes; por êsse motivo não tenho meios para determinar ou descrever os
Inst. Butantã, X, p. 117). C. versicolor Merrem está no mesmo caso. peixes que menciono, falha que tenho todavia a esperança de sanar para o futuro.
(513) "Macuca" ou "macuco", já determinado anteriormente como Tinamtts soli-
tarius (Vieill.); "chororão ", nome ainda usado nas matas do sudeste da Bahia para (515) As três espécies foram já objeto de comentários (vejam-se, pelo índice, as
Crvpturellus varieuatus (Gmelin). Cf. O. Pinto, Rev. Museu Paulista, XIX, págs. 51 e 54. referências anteriores). • .
Sôbre a etimologia obscura de "ema", consulte-se Alfr. Newton, "Dict. of Birds", p. 212. (516) Abstração feita da traíra, que corresponde sem margem de du~ida ao pe1xe
(514) Priodontes uiuanteus (Demarest, 1804). O "tatu·açu ", ou " tatu-canastra", como conhecido por êste nome em tôda vertente oriental atlântica (Hoplias malabartcus (Bioch)) •
é mais comumente conhecido, deveria t er sido bastante comum na Bahia; já Gabriel do piau e da piabanha, poder-se-á apenas ter como certo tratar-se de algumas . das
Soares a êle se refere em satisfatória descrição, dizendo-o pegado pelos índios em muitas espécies dos gêneros Leporinus e Brycon, ambos da famflla dos Tetragonopténdas
armadilhas e achando-lhe a carne boa e saborosa. Disseminado irregularmente em quase <= Carácidas) .
tôda a América Meridional, desde a Guiana até o norte da Argentina. No Brasil (517) Jaracatia dodecaph.ylla A. De Candolle, da famflia das Caricáceas, como o
existe ainda em relativa abundância nos Estados centro-ocidentais, Mato-Grosso em mamoeiro cultivado (Corica papaya Linn.).
particular.
366 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 367

me referi quando fiz a descrição da minha viagem ao rio Belmonte, é da espécie que aqui se chama "catinga" 521 . À medida que a gente se
também muito comum. Encontram-se nas florestas da América do Sul afasta das planícies baixas e úmidas do litoral, o solo se eleva insensivel-
árvores enormes, tanto em altura como em espessura, que apresentam mente e se vai tornando gradativamente mais sêco, e as árvores menos
uma disposição singular, na parte próxima ao chão. A quatro ou cinco altas. As mesmas espécies vegetais que, nas grandes florestas úmidas
pés do solo, e às vêzes mais alto, formam-se no tronco quinas salientes e espêssas da costa, se erguem a consideráveis alturas, ficam a9ui
que se vão alargando e acabam por formar expansões achatadas como muito mais baixas. Essas matas sêcas apresentam também mmtas
pranchas, que se enterram obliquamente no solo e fazem continuação árvores de espécies peculiares. Neste local o solo se mostra coberto
com as grandes raízes dessas árvores 51 B. O missionário Quandt viu tam- de touceiras de bromélias, cujas fôlhas armadas de espinhos são muito
bém dessas singulares árvores no Surinam. Conta êle que os índios incômodas para os caçadores brasileiros, que andam sempre descalços;
batem com os seus machados nessas raízes quando procuram alguém cresce também em abundância o "capim de zabelê", bonita gramínea
que se perdeu na floresta •. cujas fôlhas, delicadamente penadas, fornecem bom alimento para os
As aves que, nessas profundas solidões, animam as matas são burros; infelizmente não encontramos em flor•. Em muitos pontos,
principalmente várias espécies de pica-paus (Picus), de subideiras cobre inteiramente a antiga estrada e as clareiras do mato com um
(Dendrocolaptes), de papa-môscas (M usei capa), de papa-formigas espêsso tapête verde.
(Myothera), bem como algumas espécies de pequenos papagaios ("pe- O caminho através da caatinga era muito incômodo e cheio de
riquitos"), que em bandos barulhentos voam com rapidez entre as mato; altos Solana5 22 de várias espécies interessantes, mimosas diversas,
copas das árvores, e, finalmente, os inambus (Tinamus). Nunca e o cansanção (Jatropha urens), nos molestavam muito com os seus
encontrei tantos bandos de miriquis, pulando do alto de uma árvore espinhos, e pareciam mesmo querer despojar-nos das nossas roupas.
para outra, ou correndo em fuga pela estrada. Pouco habituados à Estávamos todos mais ou menos ensangüentados e, por cúmulo, encon-
presença do homem, fogem à sua aproximação, mas os nossos caça- tramos freqüentemente casas de marimbondo, que tornaram ainda mais
dores não os perdiam de vista, apontando para êles e atirando. Muitas lamentável o nosso estado. Os da grande espécie pardo-escura, sobretudo,
vêzes, quando feridos, ficavam suspensos nas árvores ou se deitavam nos atacaram com tal fúria certa ocasião, que todos os nossos animais de-
nos galhos para se esconderem. A carne dêles constitui o alimento sembestaram, e os homens, picados ao mesmo tempo por seis ou sete dêsses
quase exclusivo do viajante nessas florestas. insetos, ficaram gemendo até muito tempo depois. Com o rosto e as
Alguns dos meus caçadores espalhados pela mata contaram-me mãos inchadas, os joelhos esfolados pelos espinhos, percorremos, debaixo
haver visto uma espécie de macaquinho prêto519 que ainda não tínhamos de calor' exaustivo, êsses cerrados densos. Ao cair da noite novo incon-
observado e que não conseguiram derrubar. Já me tinham falado em veniente sobreveio para os nossos animais, pois o terreno era agora
Ilhéus dêsse animal ainda não descrito, e, por isso, eu desejava muito cortado por fundos valados, alternando com elevações consideráveis.
conhecê-lo; e foi o que efetivamente se deu alguns dias mais tarde. Viam-se vales sombrios, de aspecto selvagem, onde reinava uma frescura
O canto do juó (Tinamus noctivagus), chamado aqui "zabelê"52o, perpétua; à beira dos córregos que se precipitavam pelos rochedos
fêz-se de novo ouvir, após longo intervalo de tempo. Essa ave, com abaixo, cresciam magníficas flôres, que o homem nunca veio admirar
efeito, é encontrada em tôda a parte desde o Rio de Janeiro até o Rio nessas longínquas paragens; só o passo solitário do caçador patachó,
Belmonte, mas parece não freqüentar as vizinhanças da costa dêste ou o das antas e das onças, pode perturbar o silêncio dessas
rio até o Ilhéus. selvas desabitadas. Em muitos vales o calor tinha secado os córregos,
Achávamo-nos agora no caminho de Minas, nas alturas do trecho e foi por isso preciso, apesar do cansaço dos nossos animais, percorrer
do rio de Ilhéus denominado Pôrto da Canoa, porque se sobe de ainda uma grande distância para chegar a um lugar onde tivéssemos
canoa até aí. A mata em que nos encontrávamos ao cair da tarde é
(*) Essa erva, que cobre o chão como um denso tapête, tem hastes de um pé e
meio de altura, suas fôlhas são delicadamente penadas, estipulas estreitas, quase lineares.
(*) QUANDT, Nachrichten von Surinam, p. 60, com uma estampa;
também em Não vi nem a flor nem as sementes.
Gaspar Barlaeus vem a representação duma grande árvore dessa espécie no primeiro
plano da estampa 8. (521) No original lê-se sempre "Catinga", mas a grafia legitima é "caatinga"
(do tupi: caa, mata e tinga, clara aberta). E' sobremodo dificll de definir esta
. (518) Refere-se o autor às chamadas "sapopembas" ou "sapopemas ", grandes raizes entidade floristlca, cuja caracteristica dominante de modo geral está na adaptação aos
tubulares que aumentam a base de sustentação de certas árvores como as figueiras ou rigores de um clima sêco, mediante a perda das fôlhas durante o verão. A. J. Sampaio
gameleiras ( Urostigma), de que se pode ver boa estampa em J. S. Decker Aspectos (Phytogeographia do Brasil, p. 106) atribui à caatinga tipica o aspecto de "floresta de
biológicos da Flora Brasileira, p. 9. ' pequenas árvores tortuosas, entremeadas de espinheiros, cardos e gravatás ", a que não
(519) Trata-se do macaquinho conhecido na zona de Ilhéus pelo nome de "saulm- de raro se associam, "como árvores muito caracteristicas, as conhecidas "barrigudas"
una ", (Leontocelus chrysomelas Kuhl, 1820) da atual nomenclatura. Wied voltará a (Chorizia ventricosa ou "barriguda de espinho", e Cavanillesia arborea ou "barriguda
mencioná-lo, com maior minúcia, páginas adiante. lisa") e o "jaracatlá", que é o mesmo "mamão do mato", referido por Wied.
(520) Wied escreve "Sabélé". (522) O autor põe aqui no plural o nome genérico Solanum.
368 VIAGEM AO BRASIL

água potável perto do nosso acampamento. Encontramos afinal um


riacho de águas claras, que corria através de sombria floresta. Deram-
lhe, assim como ao vale, o nome de Joaquim dos Santos, porque, na época
da construção da estrada, um homem dêsse nome construiu aí uma
tendinha, para vender mantimentos aos trabalhadores. Acampamos
junto do riacho, e tratou-se imediatamente de preparar os três miriquis,
mortos nesse dia. Ornava o nosso acampamento a planta de flôres
vermelhas que se aproxima das bignônias, a que me referi ao tratar
do rio Belmonte•, e que foi descrita pelo Pro f. Schrader, bem como
uma outra de flôres alaranjado-escuro; fôlhas de palmeiras serviram
para construirmos uma cabana ligeira, que nos protegesse do sereno.
Para repousarmos um pouco da longa marcha da véspera, fizemos
no dia 9 um percurso só de três léguas, através da floresta densa, onde se
nos depararam muitas plantas interessantes e magníficas flôres, com
que enriquecemos nosso herbário. A taquara de fôlha miúda entre-
laçava-se na mata em espêssa trama; alguns pequenos córregos con-
tinham ainda água límpida e fresca, e a Bignonia de flôres escarlates É
!))
tll)
viçava em suas margens. Pequenas elevações e vales alternavam-se
"'
·;;
continuamente; nos altos, a vegetação era de caatinga; nos vales, viam-
se ainda matas altas. A frescura destas era tanto mais agradável quanto, e:
!))
,
nas colinas, o terreno é sêco e aquecido pelo sol. Os nossos caçadores .,
c
mataram, nas margens dum riacho, num vale sombreado por grandes "t;S
~
árvores, vários macacos, entre outros o de peito amarelo, que já tínhamos c
~
encontrado no Rio Belmonte5 23. Verificou-se, examinando-o, que já c
I:Q
havia sido ferido, fazia pouco tempo, por uma flecha de índio.
Nesta região, chega-se às margens do córrego da Piabanha, que "'
"':!

é considerado o ponto extremo das incursões que os patachós do litoral :Ji


fazem no interior. O território dos índios Mongoiós, ou Camacãs, prin- 'ê
cipia nesse córrego e se estende pelo sertão a fora. ...."'
A partir dêsse local, encontramos freqüentemente, pousada na
casca das árvores, do lado oposto ao norte, a maior borboleta do Brasil
(Phalaena agrippina)"""" 524 que atinge nove polegadas e meia de largura
(medida francesa). E' de côr cinzento-esbranquiçada suja, com manchas
pretas; permanece, durante o calor do dia, colada contra as árvores
e só abandona tal posição na fresca do crepúsculo. E' preciso, para
apanhá-la, aproximar-se dela com a maior precaução e, assim mesmo,
ela freqüentemente voa. Empreguei, todavia, um meio mais seguro; o
jovem botocudo Queck foi-se chegando aos poucos e atirou-lhe uma
flecha de ponta rombuda; a borboleta, tonta, caiu imediatamente ao
solo. Queck adquirira grande destreza nesse gênero de caçada.
( *) O professor Schrader reconheceu nessa. bela planta um gênero novo da !amllia
das Bignônias, mas faltou-lhe o fruto para completa determinação (V. Adendo).
(**) CRAMERs, Schmetterlingen, tomo I, est. 87, fig. A - MEBIAN, Sur. Ins., est. 20.
(Suplem.) Neowedia speciosa, Scbrader, 1. c. p . 706.
(528) Cebus variegatus E. Geoffr. (= C. xanthosternos Kuhl). C!. nota anterior.
(524) Thysania agrippina Cramer, da famllia das Noctúidas, passa o dia pousada
com as asas longamente abertas, de modo a confundir-se com a superficie de troncos
ou paredes, cinzentos como ela.
DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 369

Chegamos a uma cadeia de montanhas ("serra"), em que cresciam


muitas "barrigudas" e outras grandes árvores, muitas das quais tom-
badas no caminho, sendo preciso, por isso, abrir passagem através da
mata, operação que nos tomou muito tempo. Nas caatingas, observamos
muita vez caules colossais de Cactus tetrágonos e pentágonos, entre os
quais vimos um que se elevava por entre as árvores a mais de cinqüenta
ou sessenta pés, sobrepujando a elas em altura, e que media dois
pés de diâmetro. Outras espécies dêsse singular vegetal atingem também
prodigiosas dimensões nestas regiões equatoriais; o Cactus brasiliensis,
por exemplo, muito comum no país, e que Piso representou na pá-
gina 191.
Entre as observações zoológicas dessa zona da mata, figura o
sapo de chifres ou "intanha" (Bufo cornutus)5 2 5, encontrado por nós
em abundância, entre as fôlhas que cobriam o solo úmido. Consegui-
mos apanhar muitos exemplares ainda jovens, que se distinguiam pela
bela coloração verde-claro e castanho de suas costas, muito mais viva
do que nos indivíduos idosos•. Apanhou-se num tronco de árvore
um lagarto, tendo debaixo do pescoço uma grande bôlsa côr de laranja,
que êle incha quando alguém se aproximaU5 2 6. Observamos com fre-

(*) O Sr. Tilesius publicou a estampa dêsse sapo no " Magazin dei Gesellscbaft
naturforschender Freunde zu Berlin •, 3.• ano (1808), est. 111. E' bem boa a estampa,
porém Inexatamente colorida, pois não encontrei nesse animal as côres violeta e alaran-
jado vivo que nela estão representadas; é, contudo, a melhor de tôdas as que conheço,
pois as que vêm publicadas nas obras de história natural são verdadeiras caricaturas.
A estampa publicada pelo Sr. Tlleslus representa um individuo fêmea; o macho tem
colorido multo diferente.
(**) E' um Anolis, que considero espécie nova, e denominei A.nolis gracüis. Apre-
senta certa semelhança com A.nolis d point blancs de Daudln, de que, todavia, parece
sensivelmente diferir. Tem o corpo multo esguio, a cabeça alongada, estreita, quase em
forma de tromba, ocupando quase um têrço do comprimento do corpo, fora a cauda,
que mede mais de duas vêzes o comprimento do resto do corpo. A cabeça lembra,
pela sua forma, a do jacaré; por baixo da garganta se vê um grande saco membranoso
de côr alaranjada, com algumas filas de grossas placas verde-claro; o resto do corpo
é coberto de placas muito finas, imitando "chagrin". Uma crista membranosa, pouco
saliente, se prolonga pelas costas e base da cauda; a abertura das orelhas é lisa;
tôdas as partes superiores do animal são de côr castanho-avermelhado escuro e marcadas
de pequenos pontos brancos dispostos em linhas transversais; observa-se em algumas
porções do corpo uma leve coloração verde. A descrição que Daudin fêz de seu A.nolis
d point blancs, é por demais Imperfeita para poder decidir da Identidade dêsses
dois animais.
Encontrei em Morro d' Arara, nas matas do rio Mucuri, uma outra, igualmente
delgada e de cauda muito comprida, a que denominei A.nolis v iridis. A sua cauda
mede mais de duas vêzes o comprimento do resto do corpo, que é como o do outro
coberto de pequenas placas. A coloração do animal, que muda conforme diferentemente
é excitado, agrada à primeira vista; é geralmente de um belo verde-claro, atravessado,
da cabeça à cauda, por sete faixas mais carregadas. que, geralmente, são ora castanhas
ora verde-escuro, ora cinzento-escuro_ Os lados são marcados de pontos brancos circulares
que, quando o animal é excitado, se tornam azul-esverdeado. A cauda é verde-claro
na base, com listras transversais e manchas de coloração pardas muito escuras.
Essas duas espécies de A.nolis vivem sôbre as árvores das florestas. Os brasileiros
dão-lhes o nome de " camaleão", que bastante lhes convém, pois a última, pelo menos,
muda de côr.

. (525) Wied escreve " Itannia". Hoje a forma usual é " unta nha" e aplica-se
mdistln~amente aos grandes sapos de gênero Ceratophrvs, singularizados pela existência de
um apendlce em forma de chifre, de cada lado da cabeça.
(526) A espécie corresponde a A.nolis punctattts Daudin , 1802 e inclui-se entre as
que o povo chama "papa-vento" ou "camaleão" (fam. Iguânidas). A.nolis gracüis Wied
e A.. viridis Wled, consideradas distintas na nota do autor e em " Beitrlige" (vol. I,
págs. 108 e 118), são hoje tidas coino sinônimas.
370 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 371

qüência um sapo avermelhado, com as costas marcadas por uma tríplice tivo para rir dos grupos singulares, formados pelos nossos homens,
cruz de côr preta •527 ; como em geral tôdas as espécies do gênero nessa para se garantirem, cada qual a seu modo, da melhor f~rma possível,
região do Brasil, é conhecido pelos portuguêses simplesmente pelo nome contra a inclemência do tempo. Consolávamos uns aos outros com
de "sapo". a esperança de que essa catastrófica chuva não tardaria a passar; mas
Nesta parte do Brasil, estas, como as demais espécies próximas, não podíamos deixar de refletir que bem mal estaríamos se ela durasse
são conhecidas pela denominação comum de "sapo", que é portuguêsa. vários dias, pois, em tais circunstâncias, os homens, e, sobre-
Entretidos na contemplação das inúmeras curiosidades naturais tudo os animais, caem logo doentes, não suportando êstes a umidade.
dessas florestas chegamos a um lugar que nos proporcionou os primeiros Comitivas inteiras de viajantes têm em pouco tempo perdido a vida
vestígios de ocupação, pelo homem, dessas afastadas solidões. índios nessas florestas espêssas e úmidas.
Camacãs errantes haviam acampado neste local, algumas semanas Finalmente raiou o dia, e, que felicidade! - os raios quentes do
antes, tendo erguido várias choças. Eram estas de forma quadrangular sol romperam por entre as nuvens e restituíram a cora9em a to_do ?
e formadas por paus amarrados uns aos outros; pedaços de casca nosso pessoal. Bem necessitados disso estavam todos, p01s aos ammais
de árvores, colocados sem ordem, compunham a cobertura; o chão enfraquecidos pela falta de alimento era penoso suportar a carga mo-
em redor estava juncado de penas de mutuns e jacutingas, que tinham lhada pela chuva e portanto mais pesada, para depois continuar a nossa
servido de alimento aos moradores. Não pudemos, todavia, atinar marcha através de vales e montanhas. Tínhamos avançado tanto nesse
com a direção que deveriam ter tomado êsses selvagens caçadores. O 10 de janeiro que em um dia poderíamo~ atingir o pont~ em _q~e se
nosso guia e seu jovem camacã, que conheciam bem a região, nos transpõe pela última vez o rio da Cachoeir~;. I?as, para nao exi_gir de-
asseguraram que, à nossa esquerda, ao sul por conseguinte, havíamos mais dos nossos burros, já tão carregados, dividimos a nossa cammhada
passado por perto de uma das aldeias maiores e mais povoadas dêsses em duas partes. .
índios. No primeiro dia, o caminho se apresentou quase que hvre de m~­
Queimados pelo sol e picados pelas urtigas e marimbondos, ciços de vegetação; mas algumas plantas rasteiras, armadas de espi-
chegamos à tarde ao Ribeirão da Issara, que rola suas cristalinas águas nhos, a ]atropha urens, e, sobretudo, uma espécie de Ilex , juntamente
sôbre o leito de pedra e estava então pouco cheio; fizemos uma parada com moitas de Mimosa e ainda os "marimbondos", nos afligiram cruel-
na solidão romântica dêsse vale, debaixo de velhas árvores. Descarre- mente. E.stes últimos insetos, todavia, nos atormentaram menos do
garam-se os burros, pendurando as cargas nos cipós, e teríamos passado que tínhamos receado, pois os combatemos tenazmente, destruindo
uma boa noite ao relento, se, depois da meia-noite, violenta tempes- muitos de seus ninhos. Atravessamos uma zona montanhosa, deno-
tade, acompanhada de forte chuva, não nos tivesse tirado do nosso minada Serra da Suçuarana, porque, quando se abriu a estrada, aí foi
sono profundo. Diante disso, tivemos que cobrir as bagagens com morta uma onça vermelha ("suçuarana", Felis concolor, Linn.) ._ As
couros de boi, e nos abrigarmos com um manto grosso e o guarda- montanhas dessa serra não são muito altas, mas são ásperas e ándas,
chuva, que tivemos o cuidado de trazer. Trazer consigo uma barraca cobertas de fragmentos de pedras e seixos, no meio das quais c~esce un~.a
ou. coberta é grandemente incômodo, pois seu transporte exige vários mata intrincada de árvores de altura medíocre, ou uma caatmga CUJO
ammais, e êstes, em grande número, teriam dificuldade de se alimentar solo, nos pontos mais desembaraçados, e principalm_ente. ~a estrad~,
nas florestas fechadas em que se viaja. Quem se decida a empreender é coberto de capim-de-zabelê, bela gramínea a que acima Ja me refen.
via&'em semelhante, deve gozar de excelente saúde, ser capaz de suportar Camin.,\l.ando pelos tufos cerrad?s dessa gra~ne~, desmanchamos_o
fadigas de todo gênero, animado de ardente zêlo pelos objetivos em mira, ninho solitario de uma macuca (Tmamus. braszlzenszs, Lath.), que poe
suportando tranqüila e alegremente todo e qualquer desconfôrto, seus grandes e belos ovos no chão. Encontram-se freqüentemente êstes
acomodando-se às privações, e sabendo tomar no bom sentido tôdas ninhos nessas matas, e êles já têm servido de alimento a T?uitos via-
as contrariedades que experimente. Contemplávamos com calma filo- jantes. A relação das trágicas aventuras de Madame Godm, que se
sófica a chuva torrencial que caía sôbre nós e achávamos mesmo mo- lê no livro de La Condamine, fornece-nos impressionante exemplo•.
Deveu ela a conservação dos seus dias àqueles ovos, que um feliz acaso
(* ) Bufo crucifer. E', sem dúvida, o Crapauà perlé (Bufo margaritifer) de a fêz descobrir, enquanto que os companheiros jaziam ao lado dela,
Daudln (Histoire naturelle àes rainettes, des grenouüles et àes crapauàs, p. 89. tomo prostrados pelos sofrimentos da viagem.
XXXIII).
O meu melhot animal de carga adoeceu numa das subidas da Serra
(527) Bufo cruci/er Wied vem minuciosamente d escrito em Beitrage ( I , pág. 132 ) da Suçuarana e foi ficando para trás; tornou-se, assim, necessário
sob a d e nominação de Bufo ornatus, que lhe dera Spix (1824). Segundo D. Cochran (Un . St.
Nation. Mus., Buli. 206) corresponde a êste mesmo sapo o B. cinctus Schlnz, I822, tido
por Wied, nos Beitrage (pág. 564) , como espécie à parte. ( *) DE LA CONDAMINE, Rélation abregeé à' un v oyage, etc ., pág. 355.
372 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 373

carregar um dos nossos animais de sela. Apesar de todos os socorros com as fôlhas resistentes de palmeira, ou de patioba, quando as encon-
que lhe foram ministrados, o animal morreu : sentimos muito a sua tram; fixam-se alguns paus na terra, amarram-se-lhes outros atraves-
perda. sados e cobre-se tudo, de modo a formar uma cobertura 'inclinada. Se
Uma ave, que havia muito procurávamos, o urubu-rei (Vultur faltam tais fôlhas, como na maioria dos lugares por onde passa a nossa
papa Linn.) 528, apareceu-nos nessa ocasião plainando nas alturas. Seu estrada, São João de Deus sendo exemplo dêsse caso, destacam-se grandes
fino olfato lhe havia indicado a presença de um cadáver; mas a sua pedaços de casca de árvore e com êles se cobre a cabana; a casca do pau-
prudência o retinha a considerável distância, e foi debalde que mandei d'arco, a que anteriormente já me referi, é das mais empregadas nesse
um caçador se esconder para pegá-lo de surprêsa. Entretanto, como mister.
eu desejasse possuir uma dessas aves, passei a noite nas proximidades A 11 de janeiro, os caçadores, que haviam passado a noite ao pé
dum córrego denominado João de Deus, nome tirado de um índio do burro morto, chegaram contando que não haviam conseguido matar
que foi enterrado em suas margens, por ocasião da abertura da estrada um urubu-rei, pelo que, em seguida, levantamos acampamento. A
e em cuja sepultura colocaram uma cruz, que ainda hoje ali se vê. tropa não tardou em atingir o ribeirão da Cajàzeira, e depois o ri-
O comum dos brasileiros não passa de bom grado a noite no lugar beirão das Minhocas. Encontramos em suas margens, pela primeira vez,
em que alguém foi enterrado, pois o mêdo das almas-do-outro-mundo a bela gralha de barba azul (Corvus cyanopogon)*53o, a que chamam
é ainda muito forte entre êles. Se isso porém acontece, não deixam "quem-quem"531 no sertão da Bahia. Matamos algumas dessas aves,
de murmurar algumas orações em seu rosário; mas quando estão pois não são ariscas. A plumagem delas é simplesmente branca e preta,
junto de outras pessoas, têm mais coragem, pois acreditam que os mas é fácil de reconhecer por uma mancha azul de cada lado da
espíritos fogem para longe. parte inferior do bico; o alto da cabeça é ornado de um pequeno topête
O lugar por mim escolhido, junto da cruz, para pernoitar, já havia de penas.
sido ocupado antes de nós por um macaco (Cebus xanthosternos), que, Matamos também no mesmo local, pela primeira vez, o "sauí prêto",
ao avistar-nos, fugiu precipitadamente. Um outro habitante do local a que já me referi. Fiquei muito satisfeito por poder ter êsse belo
deu-se melhor com os novos hóspedes; prêso à fôlha duma pequena animal, que é uma espécie nova reconhecível por côres muito caracterís-
árvore via-se o ninho de dois colibris, de uma espécie (Trochilus ater)5 20 , ticas*'-'532. f'.sses sauís vivem em pequenos grupos de quatro a doze
já por mim citada à página 269. O pequeno ninho estava prêso à face indivíduos, e correm pelo cimo das árvores. São muito numerosos nas
superior do galho e era construído de lã vegetal amarelo-avermelhada; grandes florestas desta região; mas parece que não se dispersam por
havia nêle dois filhotes implumes, que tomamos sob nossa proteção. , área muito extensa, pois ainda não os tinha observado em outro ponto.
Tendo ainda presentes na memória as torrentes de chuva da noite Se alguém se aproxima da árvore em que estão, ficam logo agitados,
precedente, derrubamos uma árvore (Bignonia), e tiramos-lhe a casca, escondem-se por trás dos grossos galhos e olham com cm:iosidade, esti-
cobrindo com ela uma choça, que construímos, às pressas, com uns cando o pescoço e procurando fugir. Fàcilmente podem ser mortos,
galhos. Os ranchos que os viajantes constroem nessas matas são feitos mas são muito pequenos para serem comidos. No sertão, fazem-se às

(528) Sarcoramphus papa (Linn.), " urubu-rei " ou "corvo branco". Grande e (*) L' ACAHÉ DE AzARA, Voyages, etc., vol. III, p. 152.
vistosa ave; de bico e pescoço ornamentados de carúnculas carnosas vivamente coloridas (**) Hapale chrysomelas. Comprimento do corpo, 8 polegadas e 8 linhas; da
de vermelho e plumagem quase Inteiramente branca, mais ou menos distintamente tingida cauda, l i polegadas e l i linhas. Cara rodeada de longos pêlos ruivos que são erectos
de róseo. Não fôssem os seus hábitos e poder-se-la não suspeitar, à primeira vista, como em /iii;l.ia rosalia; o pêlo do antebraço apresenta também essa bela coloração
do seu estreito parentesco com os urubus, de que é formoso e agigantado rival. No vermelho-amarelada. Ao longo · da cauda, desde a base até o meio, estende-se uma listra
interior do Brasil, longe das zonas habitadas, a par dos urubus comuns, banqueteia-se de linda côr amarelo-avermelhada clara. Tôda a parte superior do corpo é de um
comumente nos cadáveres dos grandes herbívoros. logo no início da putrefação. Sôbre prêto carregado.
seus hábitos divulguei alhures (Rev. Museu Paulista, XIX, p. 17 e XX, p. 48) algumas
observações colhidas em Goiás, aliás algo discordantes do que ainda ocorre geralmente a (530) Não nos admiremos que Wied, ao escrever o relatório de sua viagem,
respeito (cf. A. Neiva & Penna, Mem. Inst. Oswaldo Cruz, VIII, p. 104). Mais tarde, tive tivesse deixado de reconhecer uma nova espécie na ave que acabava de descobrir,
o prazer de verificar que o nosso principe-viajor, em opúsculo relativo ao livro de confundindo-a com a gralha dos Estados do sul, ou "Acahé" de Azara (Cyanocorax
sua ylagem ao Brasil, houvera divulgado observações perfeitamente concordantes com chrysops Vieillot). E' de lamentar, porém, que, assim equhocado, omitisse qualquer
as mmhas, refutando ao mesmo tempo o que a respeito escrevera outro célebre viajante. descrição da ave, dando margem a que do adequado nome por êle proposto viesse se
"Messieurs Schomburgk (voyages à Ia Gulane anglalse), diz êle, assurent que Ies apropriar Temminck, quando pouco depois (Nouv. Réc. Plancltes Color., págs. 169-1922)
Yautours ordinaires marquaient une espece de respect pour le roi des vautours (Sarcoram- a descrevia e figurava, mediante exemplares remetidos pelo nosso zoólogo-viajante.
phus pa~a), en ~·osant commencer leur repas dégoutant avant que !e roi des vautours Cyanocorax cyanopogon (Temm.) é peculiar à porção oriental do altiplano brasileiro, de
ne se s01t. ra~sas1é. Ce sont des Indiens et Ies Nêgres qui ont Ia coutume de raconter Minas para o norte.
det elles lustOJres aux voyageurs, au moin au Brésil personne ne savait de ces prérogatives (531) Onomatopéia grafada no original, à maneira germânica, " geng-geng". "Ca!'-
du roi de la Gulane. Mr. Tschudi (voyez Faune du Perou, p . 70) est d'aocord avec cã", leve variante dêste nome, é o usado ainda hoje, para a ave, na costa da Bahia
moi sur ce. point ". Cf. _Pr_. Max. de Wied, Quelques correction.s in.dispen.s. à la (Cf. O. Pinto, Rev. Museu Paulista, XIX, pág. 82).
trad. frança1se de la Descnpbon d'un Voyage au Brésil (Francf. sur le Meln, 1858), (582) Leontocebus chrysomelas (Wied), bastante encontradiço ainda nas matas de
pág. 74. leste da Bahia. Colecionei para o Museu Paulista vários exemplares da espécie, em
(529) Melanotrochüus tuscus (Vieillot) da moderna nomenclatura (cf. nota anterior). 1982, no Rio Gongogi.
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vêzes bonés com a sua pele; mas geralmente não são aproveitados para e chega-se aos córregos que lhe dão origem. Não tardamos a encontrar,
nada. O grupo dos pequenos sauís (Jacchus, Hapale e Midas)533 é em sua margem ocidental, algumas cabanas feitas d~ estacas, que
extremamente numeroso nas florestas da América Meridional: são atual- cobrimos com as fôlhas de patioba que tínhamos trazido. Os nossos
mente conhecidas muitas espécies dêles e, com certeza, depois de se homens tiveram daí a pouco um prato grande de peixe, principalmente
fazerem pesquisas mais rigorosas nessas florestas, ainda se descobrirão de piabanhas, que constituíram a nossa refeição da tarde.
outras. Os animais estavam bastante fatigados com a viagem pela mata,
Os nossos caçadores só conseguiam geralmente pequenos animais, durante a qual pouca forragem verde tiveram, além de estar quase
principalmente macacos. O nosso desejo de encontrar uma onça esgotada a nossa provisão de milho. Tornou-se por isso preciso ir
("jaguarété") nunca se realizou, embora muitas vêzes distinguíssemos buscar outra numa aldeia de Camacãs situada na mata e conhecida
traços recentes dêsse carnívoro, e víssemos repetidamente troncos em de 1nosso jovem índio, que _pertence a essa tribo. José Caetano se ofe-
que êle tinha afiado as suas perigosas garras; pois, para isso, êle arra- rectu para acompanhá-lo, trazer o milho de que necessitávamos e até,
nha a casca das árvores. Mais felizes não fomos em relação aos porcos se fôsse possível, alguns índios que nos acompanhassem e auxiliassem
do mato, cujos rastos encontramos em muitas ocasiões, sem que conse- nas caçadas.
guíssemos matar um só; os nossos tiros, o barulho que faziam os nossos Estando a aldeia dos Camacãs a distância de um dia e meio
cargueiros, ecoando ao longe nestas florestas solitárias, junto aos gritos de viagem, tivemos que nos resignar a passar quatro ou cinco dias
dos tropeiros, em parte bem poderão ter sido a causa dêsse insu- nessas solidões desertas. Fiz acompanhar os dois portadores, bons
cesso. Nossos cães latiam com fôrça quando descobriam um animal conhecedores da mata, pelo meu mulato Manuel, homem robusto e
e, às vêzes, forçavam os grandes teiús•534 a se refugiarem no ôco destemido; todos os três bem armados, providos de pólvora e chumbo,
das árvores; seria preciso tirá-los daí a machadinha, mas faltou-nos assim como dos víveres necessários, partiram a 12 de janeiro, de manhã
tempo para essa operação. cedo.
A mata estava hoje fortemente molhada pela chuva, repartindo Nós, os que ficamos no rancho, começávamos a sentir imperiosa
conosco parte de sua umidade, muito contra a nossa vontade. Foi assim necessidade de carne fresca para poder comer alternadamente com
necessário pensar em construir um abrigo contra os novos aguaceiros peixe, cujo uso muito repetido causa febres. Enquanto alguns dos
que ameaçavam cair durante a noite. Para fazer um rancho em que meus homens deitavam o anzol, outros percorriam a floresta vizinha;
pudéssemos passar a noite, colhemos tôdas as fôlhas de patioba que mataram grande quantidade de sauís pretos535 e bem assim de cinzentos
pudemos encontrar por tôda parte, e, carregados com êsse fardo salvador, , (Jacchus penicillatus, Geoffr.); mas êsses pequenos animais, que são
chegamos antes do pôr do sol às margens do rio da Cachoeira. do tamanho de um serelepe, não foram bastantes para matar a fome
Nessa altura, o rio dos Ilhéus ou da Cachoeira é atravessado pela dos caçadores. Essa região pareceu-nos pouco abundante em caça
última vez. :Ele faz aí um cotovêlo e corta a estrada, ao sul da qual grande, própria para se comer; em cinco dias os nossos caçadores
corre_ sempre, desde aí até o mar. Para oeste a estrada prolonga-se só mataram três guaribas, um guigó536 (Callitrix melanochir) e uma
e~ lmha reta, e todos os cursos d'água que a cortam se vão lançar no jacupemba e algumas outras aves comestíveis, além de grande número
no Pardo. O rio da Cachoeira é muito pequeno nessa altura, e estava de sauís. Ao cabo de alguns dias, os peixes não quiseram morder
tão raso então que pudemos atravessá-lo a vau; seu leito estava cheio mais as iscas, de sorte que ficamos reduzidos a carne sêca e farinha de
de detritos de rochas e de seixos; pouco mais acima, divide-se em dois maypioca. Os animais de carga não foram mais bem aquinhoados que
(*) As obras de história natural contêm multas inexatidões sôbre o "teiú ". Julga-se
os homens, pois no solo sombreado pela mata fechada não cresce muita
entre outras coisas, pelos exemplares conservados em espirito-de-vinho, que êsse lagarto relva, e ao longo da estrada só se viam arbustos duros e na maior parte
de cauda redonda é prêto com manchas azuladas, quando estas são de fato amareladas. espinhosos. Não seria, pois, de surpreender que êsses inteligentes animais
(V. CuviEa, Reune animal, tomo li, pág. 27, etc.). Observei também que êsse lagarto
merg:ulba n'água, apesar do que disse HUMBOLOT (V . Relation du voyage au nouveau procurassem a todo momento voltar para as pastagens cuja lembrança
Contment, tomo li, p. 80). Seba representou provàvelmente êsse animal na estampa
XCVI, flgs. 1, 2 e 3 do seu primeiro volume; mas essas figuras não são exatas, pois ficasse profundamente gravada na memória. A nossa principal preo-
o fundo da coloração deve ser escuro, com manchas amarelo claro. A primeira figura cupação era, então, a de que tomassem o caminho de volta, e tivéssemos
~a estampa CXIX apresenta diferenças de côr muito grandes para se aplicarem a
esse animal. de empregar tôda a vigilância para impedi-lo. Tivemos, por conseguinte,
(533) J;:sses três nomes tornaram-se inválidos à luz do atual Código Inter. de de obrigar os burros a andar para a frente pela velha estrada da flo-
Nomencl. Zool. correspondendo os dois primeiros a Callithrix, e o último a Marikina
Lesson. (585) L eontocebus chrysomelas (Kuhl, 1820), já antes mencionado. Como Informa
(534) Tupinambis teuuixin (Linn., 1758) já tratado em nossa nota 247. E' o maior Wied (Beitrlige, I, pág. 168) a espécie que acabara de descobrir foi Jogo descrita por
dos nossos lagartos, atingindo cêrca de um metro de comprimento; pratica regime carnivoro Kuhl, com base nos exemplos por êle colecionados.
e é muito comum nas grandes matas do este baiano, como a mim próprio foi dado (586) Wied escreve, à maneira germânica, "Gigó ". E' o nome usual nas mata<~
observar. (Cf. Rev. Museu Paulista, XIX, pág. 17). do Gongogl onde ouvi mt~itas vêzes os concertos que entoam êstes macacos.
376 VIAGEM AO BRASIL

resta e, sendo ela impraticável pelo lados, juntas como são aí as árvores,
bastou fechar o caminho, por trás dêles, com compridos paus e pequenas
árvores atravessadas. Assim mesmo, fugiram, conforme o seu costume,
logo que anoiteceu; ouvimo-los atravessar a trote o rio, sem os poder
distinguir na escuridão, e tivemos muito trabalho em reconduzi-los ao
acampamento. Cedo reconhecemos a inutilidade dos nossos esforços,
pois assim que os largamos êles atravessaram de novo a espessura da mata
e correram para o rio. Começamos, então, a pensar que outro motivo se
somava ao de procurar melhores pastagens para fazê-los fugir. Des-
pachei, por conseguinte, ao raiar do dia, dois caçadores para reconhe-
cerem o caminho para diante, e êles logo descobriram os rastos de duas
grandes onças ("jaguarété") que, durante a noite, haviam passado
pelas nossas proximidades. Se o tivessem podido, não teriam deixado
de se apoderar de um par de burros nossos. Depois disso, demos várias
batidas no local e, à noite, acendemos grandes fogueiras na estrada.
O nosso tempo de descanso nesses afastados ermos foi aproveitado
em percorrer a floresta que nos cercava em todos os sentidos. A nossa
coleção de plantas curiosas foi abundantíssima; encontramos, entre
outras, muitos fetos interessantes•. Limito-me a citar um dos mais
belos, Asplenium marginatum, que se ergue a dez ou doze pés, e que
só se nos deparou uma vez durante tôda a nossa viagem; pode, por
isso, ser incluído entre as raridades da região.
Aumentamos a nossa coleção com aves de várias espécies novas,
entre as quais uma subideira côr de ferrugem (Dendrocolaptes trochili-
rostris do Museu de Berlim)53 7 , de bico muito comprido e recurvado
em foice, e outra espécie muito aparentada, de plumagem bruno-fer-
ruginosa, que trepa nas árvores e nelas bate com o bico, fazendo ouvir
um grito singular .. 5ss.
(*) (Suplem.) Trouxe da minha viagem mais de cem espécies de fetos; o Sr.
Schrader reconheceu como novas mais de metade delas.
(**) Essa ave pertence a uma família que tem afinidades com os arapaçus e
com as toutinegras (Sy!via). TEMMINCK lhe deu o nome ele Anabates na nova
edição de seu Manuel d ' Ornithologie, (tomo I, p. 82). Designo pelo nome de Anabates
leucophthalmus a espécie, de que dou uma curta descrição. Comprimento do macho,
8 polegadas e 2 linhas e meia, envergadura das asas, 11 polegadas e 3 linhas. Tôda a
parte superior do corpo é ferruglneo carregado, ou bruno avermelhado; a coloração do
uroplgio passa insensivelmente ao ferruglneo claro; cauda da mesma côr; raque das
penas muito escuro, mento, garganta e parte inferior do pescoço. branco bruno amarelado
claro, que contrasta nitidamente com as cOres das partes superiores do corpo; a tonalidade
esbranquiçada passa ao amarelo sujo à medida que se afasta do peito; ventre cinzento-
amarelado pálido passando ao azeitonado pardo nos flancos; crisso pa rdo-amarelo multo
pálido; tectrizes inferiores da asa, amarelo-arruivado claro; fronte um pouco mais
avermelhada; íris cinzenta-pérola ou branco-prateada.
(537) Cantpylorhamphus t. trochilirostris (Licht.), da atual nomenclatura. A deno-
minação Dendrocolaptes trochilirostris é devida a Lichtenstein, que descreveu o pássaro
em 1920, nas Abhandl. Akad. Wissens., de Berlim. Em 1983 colecionei no Rio Jucurucu
um exemplar, que atribuo à forma referida por Wied. No norte da Bahia (Bonfim)
vive uma outra raça, que descrevi com o nome de Campylorhamphus trochilirostris omissus
(c!. Boletim Biológico, nov., ser., 11, p. 61, 1988), mas que hoje considero inseparável
de C. t. major Ridgw.
(588) Automolus l . leucophthatmus (Wied). E' pássaro relativamente abundante
nas matas do este baiano, dois exemplares topotlpicos dela existindo no Museu Zoológico
de São Paulo e vários outros tendo sido por mim trazidos dos Rios Gongogi e Jucurucu
(c!. Rev. Museu Paulista, XIX, pág. 186). Sua. área. geográfica é multo extensa, compre·
endendo o sul de Goiás e o leste do Paraguai (cf. Rev. Museu Paulista, XXII, pág. <&81/2).
DE SAO PEDRO A BARRA DA VAREDA 377
No quarto dia da nossa parada nas margens do rio, no dia 16,
lá para o meio-dia, ouvimos um tiro de espingarda, que logo nos deu a
esperança de ver regressar Caetano e seus companheiros. A seguir
ouviram-se várias vozes ressoar na espessura da mata e avistamos do
outro lado do rio Manuel, acompanhado de dois Camacãs. Trazia na
mão, ainda vivo, um belíssimo gavião branco, de espécie desconhecida
para mim. José Caetano não regressara com êles porque, conforme
a combinação nossa, tinha preferido voltar da aldeia para São Pedro de
Alcântara, com o seu camacã. Manuel contou-me que encontrara
uma pequena aldeia de índios Camacãs, vivendo em estado ainda
de extremo atraso. · Nela só se contavam cinco homens, um dos
quais tinha um gráve ferimento no pé. f.sses Camacãs viviam quase que
exclusivamente de caça, e só cultivavam um pequeno número.,..de plan-
tas para suas limitadíssimas necessidades; por isso não conseguirl!bs obter
milho para os nossos animais. Nalgumas dessas "rancharias" (aldeias)
de Camacãs, não se haviam visto brancos ainda. Noutras aldeias, situa-
das mais para o sertão, colhe-se bastante algodão, mandioca e milho,
de modo a permitir que aí nos abasteçamos.
Os Mongoiós, como são êles denominados pelos portuguêses, estão
colocados um pouco acima dos Botocudos e Patachós, seus vizinhos,
na escala da civilização. Cultivam geralmente alguns vegetais úteis e há
muitos anos vivem em paz com as colônias européias. Os dois homens
dessa tribo que acabavam de chegar ao acampamento eram bem cons-
tituídos, robustos e musculosos; inteiramente nus, com exceção apenas
da "tacanhoba", ou bainha de fôlhas de issara, que os homens trazem, à
moda dos Botocudos. Suas orelhas e lábios não estavam de~figurados.
Alguns deixam os cabelos crescer tanto que caem até à cintura e lhes dão
um ar feroz; outros, ao contrário, cortam-nos em volta da nuca, sendo,
entretanto, essa moda pouco comum. Seus arcos e suas flechas eram
fabricados com muito esmêro. Mais adiante, darei amplas informações
sôbre essa tribo. Fiz representar uma assembléia dêsses índios na vinheta
que precede êste capítulo. Um dêles havia matado a flechadas um
gavião branco que estava no ninho, em cima ~ma árvore muito alta, e
a 4ma distância em que as nossas melhores espingardas nem sempre
atingem o alvo. O prazer que senti quando consegui obter essa bela
ave, foi tanto maior quanto muitas vêzes a víramos plainando nos ares,
sem nunca a podermos apanhar. No resto da minha viagem, nunca
mais a avistei+ 539.
Os nossos dois selvagens olharam fixamente os forasteiros sem
dizer uma palavra e sentaram-se junto à fogueira. Depois que descan-
( *) E' sem dúvida a " petit Aigle de Ia Guiane " de Mauduyt (Falco guianensis,
DAUDIN, Traité élém. et comp. d ' ornith., tomo li, p . 78) .

(589) Morphnus guai anensis (Daudin, 1800). E' um dos chamados "gaviões de
penacho " e constitui a única espécie do gênero Morphnus. Em tamanho, no Brasil,
rivaliza com a " águia cinzenta " (Har whaliaet us cor onatus (Vielll. )) e é excedido ape nas pelo
"gavião real " (Harpia harw;a Linn.). Pela informação encontrada em BeitrOge (li, p.
90), sabe-se que na região ·era êle chamado " gavião branco ".
378 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 379

~aram u~ pouco ma~dei-?s c~çar. ~ habilidade que possuem para e no fundo do qual serpenteia um pequeno riacho, quase sêco. Suas
esse exerCICIO, por assim diZer mato neles, é realmente extraordinária; margens, como todo o fundo do vale, estavam cobertas pitorescamente de
voltaram. à noite trazendo dois macacos (Cebus xanthosternos)«<54o fetos de formas variadas. Cresciam aí várias espécies d~ Anemia e,
e uma Fcupemba, todos atravessados em pleno peito, pela flecha notadamente, um Pteris. não conhecido, ainda •, cujas fôlhas estéreis
vigorosa dos Camacãs. (frondes steriles) são sagitadas enquanto que, pelo contrário, são
Nessa mesma noite fomos testemunhas de uma das mais animadas recortadas profundamente e de maneira diversa, à semelhança de várias
cenas de caçada que se possa imaginar. Estávamos todos em nossas outras belas espécies dessa interessante família. O meu perdigueiro
cabanas, ca~a qual em sua ocupação, quando um numeroso bando de varejou sôfregamente êsse matagal e trouxe-me inesperadamente uma
lontras surgiu no rio, que não era muito fundo. Não desconfiando de grande macuca, que não mostrava nenhum ferimento, e que provàvel-
nossa presença no local, êsses tímidos animais haviam avançado até mente surpreendera no ninho. Nossos caçadores, que tinham vindo na
aquêle ponto. Como as águas do rio eram muito baixas para nelas se frente, acrescentaram a essa caça uma segunda macuca, um guigó e um
esconderem, corremos todos a apanhar nossas armas. Infelizmente as zabelê (Tinamus noctivagus).
esp~ngar_das não estavam em muito bom estado e algumas negaram fogo; A declividade que fomos obrigados a subir, para sair do Boqueirão,
vános tiros erraram o alvo, e os nossos cães se recusaram a atacar foi tão penosa para alguns dos nossos animais, esgotados de fadiga,
as lontras, que mordiam furiosamente, de todos os lados. Assim, que êles nem mais sentiam o chicote, e ficaram muito pai\ trás dos
escaparam ao nosso. vivo ataque, com exceção de uma só, que Manuel outros; estavam cobertos de suor, pois o calor era intolerável e a
mato~ com um vwlento golpe de facão, quando procurava fugir atmosfera repleta de eletricidade, que procurava se pôr em equilíbrio
por o_:na ,de_ uma pe_dra. As lo,ntras do Brasil têm um pêlo belíssimo, mediante repetidos trovões5 42 ; trovejava ainda bastante, quando
que nao e tao apreciado no pais quanto é entre nós o da lontra euro- fizemos o nosso acampamento entre dois límpidos córregos, donde o
péia541; são n:uito comuns na América Meridional, e adquirem grande local tirou o seu nome de Dois Riachos. Víamos com inquietação
tam~nho, _:azao pela qual deram ?Iotivo à tradição das sereias, que a noite se aproximar, pois seríamos forçados a passá-la a céu aberto,
habitam n~o só os mares como os nos. Quandt (p. 106) e outros escri- e os raios, que se repetiam sem cessar por sôbre o vale, nos faziam
tores acreditaram na existência dêsses sêres singulares e todos os dias temer ser assaltados por uma tempestade. Em vista disso, procuramos
na culta Europa, ouve-se falar que, nesse ou naquele ponto, foi encon~ arranjar com os couros, e da melhor maneira possível, uma espécie de
trada uma mulher marinha. cabana, que, entretanto, não nos poderia suficientemente proteger
Malograda a minha esperança de obter milho na aldeia dos Ca- contra as torrentes de chuva, que acompanham as tempestades nos
macãs, não. ati~ava :om u~ meio de obter melhor alimentação para trópicos. Por felicidade nossa não choveu, e as nuvens se dissiparam.
os meus ammais; dei, por Isso, ordem de partida na manhã do dia 17. A árvore que derrubamos junto ao nosso pouso exalava uma ema-
Os dois selvagens, não. querendo nos acompanhar mais longe, voltaram nação extremamente aromática, o que fêz lhe darem os brasileiros o
para suas choças depois de terem trocado por facas e outras ninharias nome de canela. Não lhe pude obter nem as flôres nem os frutos, mas
os seus arcos e flechas. Sob fortíssimo calor, atravessamos colinas extre- trata-se sem dúvida da planta que Arruda descreveu com o nome de
mamente sêcas cobertas de caatinga, onde a água era muito escassa. Linharia aromatica•+453.
Tendo encon~rado muitas f?lhas de issara, levamo-las para com elas Do nosso atual pouso ao rio Catolé havia quatro léguas, que foram
fazer um abn_g? para a noite. Percorremos duas léguas e meia, e cobertas no dia 19. A estrada passa por numerosas elevações, dentro
paramos à nOitinha nas margens de um límpido córrego. A 18 puse- duma floresta ininterrupta; atravess os vários córregos, e encontramos
mo:nos. nov~m:nte em marcha, fazendo mais três léguas. Lá para o grande variedade de aves e de plantas. Ao cair da tarde alcançamos
mew-dia, atmgimos o vale do Boqueirão, sombreado por altas florestas,
(*) O Prof. Schrader, de Goettingen, denominou essa interessante planta de Pteris
paradoxa.
b (*) d:Es~ macaco, a que ~á me r.eferi no primeiro. vol!!me, foi depois representado (**) Vide KosTER, Travels, etc., p. 493.
na o ra e eoffroy e Freder~co Cu vier sob a denonunaçao de "Sai à grosse tête •. (Suplem.) Pteris paradoxa, Schrader. Essa planta se distingue principalmente
porque as fôlhas estéreis são ora divididas em 5 lóbulos desiguais, ora sagitadas em
•• (540)) Sôbre êste símio veja-se o que ficou dito em nosso anterior comentário lança (hastatosagittata) ; as fôlhas que contêm frutificação são ao contrário pinn c;tifida,
( no ..."t 462 . laciniis linearibus: infimis 2 - 3 fidis, reliquis indivisis.
(54I) Convém le~brar que a lontra a que se refere Wied é a mesma espécie
a ~ue os. tupis den!>mmav~m "ariranha" (Pteronura brasiliensis Zimm.), muito maior, (542) Respeita-se aqui a fidelidade da tradução (" Gewittern " ); raios seria aqui
mais bravia e de pelo mUit? mais macio do que a que conhecemos hoje propriamente o têrmo adequado.
por lontra ~L_utr~ paranenn! Rengger). Esta última está confinada, no Brasil, aos (543) A planta mencionada aqui pelo autor não pôde ser identificada com precisão,
~stados mer;dwnais e centrais, não havendo noticia de ter sido encontrada pelo prln- atenta a circunstância de que a espécie descrita por Arruda Câmara parece confinar-se
CJpe naturalista. aos Estados do Nordeste.
380 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 381

um lugar situado às margens do Catolé, onde só crescia mato rasteiro. que encontrei neste local, menciono o Anabates erythroph!alm_us* 548 ,
Alguns anos atrás, o capitão-mor Antônio Dias de Miranda mandara o leucophthalmus (vide as páginas precedentes) .. 549 , o atncaptllus 550 ,
os seus escravos fazer aí uma plantação que foi depois abandonada, cuja fronte é de côr negra, o macrourus••• 55 1, e outros. Quase todos
voltando o lugar a ser novamente um deserto. Uma velha e espaçosa constroem com pequenos galhos secos e~t~ecru;ados, um ninh~ I?endente,
cabana, com muitas paredes de barro, e coberta de cascas de árvore, que de forma muito curiosa; observamos vanos deles em nossas v1zmhanças,
tinha servido de morada aos negros, estava em péssimo estado, cheia suspensos de velhas árvores isoladas. O mato mais baixo servia de asilo
de formigas, bichos-de-pé (Pulex penetrans) e lagartixas (Stelio tor- ao bicudo prêto de bico vermelho (Loxia grossa, Linn.), ao tangará 552
quatus), de 14 polegadas, se não mais, de comprimento; apesar de seu de cabeça listrada (Tanagra silens, Linn.) 553 e várias pequenas espécies
mau estado, ela nos proporcionou sofrível abrigo contra a chuva e o de bicudos, toutinegras e papa-môscas, bem como ao tordo de mancha
sol; assim mesmo nessa falta de confôrto, entregamo-nos ao sono, após nua de cada lado do pescoço (Turdus brasiliensis), que pousava no meio
uma refeição frugal de algumas piabanhas, guaraíbas e outros peixes .
dos caniços existentes nas margens. u ma ave am . d a nao . ••••554 ,
- descnta
apanhados no pequeno riacho.
De Catolé a Berruga, primeiro ponto em que se deparam habita- (*) Anabates erythropllthalmus é um lindo pássaro: comprimento, 7 polegadas e
9 linhas; envergadura das asas, 7 polegadas e 8 linhas; f ris vermelho de fogo; fronte,
ções humanas, contam-se aproximadamente dois dias de viagem. Resolvi mento, garganta e a maior parte do inferior do pescoço, bem como tôda a cauda.
mandar na frente alguns dos meus homens com animais sem carga, ruivos· as últimas de coloração menos viva e bela do que a fronte e o papo. Todo o
lado s~perior do corpo é cinzento-bruno azeitonado, passando um pouco para amarelo averme-
a fim de buscar milho, pois não tínhamos nenhuma esperança de poder lhado no peito e no ventre; asas côr de ferru~ Dedos externos muito pouco unidos.
retirar a nossa bagagem dessa inóspita região, sem restituir as fôrças (**) Anabates atricapillus, denominado Sylvia •·ubricata _por Illiger. A fronte,
juntamente com uma faixa atravessando os olhos e uma outra mdo desde a mandíbula
aos burros de carga, com uma alimentação mais substancial. Enquanto até abaixo dos olhos, são bruno escuro. Uma lista entre .o alto da cabeça e ~ olhos,
esperava a volta daqueles homens, mandei que os outros explorassem outra debaixo dos olhos, a garganta e os flancos, a part~ supenor do pes~oço, a parte mferlor
das costas, a cauda e tôdas as partes Inferiores sao um tanto rmvas; o . ventre tem
as matas, em tôdas as direções. uma coloração bruno-azeitonada; cauda ferrugfl!eo-claro; costas bruno-ferrugmosa carre-
gadas; asas da mesma côr, porém um pouco mais escuras e orladas de amarelo-bruno.
Aves diversas animavam os bosques vizinhos, tais como bandos de (***) Anabates macrourus chamada Sylvia striolata no Museu de Berlim. Compri-
anacãs (Psittacus severus, Linn.) e tiribas (Psittacus cruentatus)5 44 , mento, 10 polegadas e 6 linhas; envergadura ou. asas, 8 polegadas e 11 linhas; a cauda
bem como passarinhos, entre os quais o papa-môscas com duas longas tem mais de 8 polegadas e 8 linhas de compnmento; a ave traz essa asa um tanto
aberta o que permite reconhecê-la de longe; coloração da cauda, amarelado-claro e ruivo.
penas na cauda*5 45; o bicudo prêto de bico vermelho (Loxia grossa, Tôdas 'as partes superiores do corpo bruno-ferruginosas, aproximando-se muito do ferrugfneo
carregado. As penas da fronte são negras na ponta, ruivas na parte restante e o ráquls
Linn.)54 6, bem como diversas subideiras (Dendrocolaptes) e as espécies avermelhado mais vivo; porção superior do pescoço um pouco mais clara; ráquls amarelo-
vizinhas de toutinegra (Sylvia)5 47 , que Temminck, conforme acima arruivado claro, tôda a porção anterior do corpo bruno-ferrugfnea, entrecortada de faixas
amarelo-arruivadas; parte inferior do dorso e penas superiores da cauda, bruno-ferrugino-
já dissemos, reuniu num gênero novo denominado Anabates. í.sses sas, aquêle com listras mais claras.
pássaros se distinguem pelo canto composto de várias notas muito (****) :esse pássaro parece pertencer ao novo gênero Opetiorynchos de Temmlnck.
Dou-lhe o nome especifico de turdinus por apresentar os traços gerais do nosso tordo da
agudas; saltam e trepam pelos galhos, andando de lado e contornando-os Europa. Macho: comprimento, 7 polegadas e 11 Unhas; envergadura das asas, O polega~as;
as partes superiores tôdas cinzento-bruno claro; borda das penas um pouco mais páhdas,
em todos os sentidos num movimento incessante. Entre as novas espécies sobretudo na cabeça e por cima do pescoço; listra por cima dos olhos, desde o bl~o
até atrás da cabeça; papo, parte Inferior do pescoço e peito, esbranquiçados; papo nao
manchado, parte inferior do pescoço, peito e ventre tendo espalhadas manchas cmzento-
(*) "Le Colon" de AzARA, Voyages dans l 'Amérique Mérid., etc., vol. 111, pág. 869. bruno isoladas e um tanto angulosas; penas do melo da cauda manchadas de bruno-
prêto nos lados e, junto destas, marcadas de manchas amarelo-arruivado pálido.; grandes
(544) Respectivamente Ara severa (Linn.) e Pyrrhura cruentata (Wied), da penas da asa orladas de ruivo-pálido com manchas transversais da mesma cor. .
atual nomenclatura. A última já fôra descrita por Wled no capitulo 111 da obra, na Encontram-se no Brasil várias outras aves semelhantes que constituem uma famiha
relação do trajeto do Rio a Cabo Frio, quando a descobriu. tendo muita analogia com as toutinegras (Sylvia) e tôdas se distinguindo por um canto
forte, porém singular e pouco melodioso.
(545) Colonia colonus (Vieillot), bem conhecida pela apelação vulgar de "viuvinha",
aplicada aliás, também, a outra espécie muito diversa (Arundinicola leucocephala Llnn.).
A primeira é ave de campos e serrados, a segunda, a cuja cauda faltam as duas penas (548) Hoje Drioctistes~rythrophthalmus (Wied). Espécie rara que se ~stende,
longas daquela, não se aparta das baixadas úmidas ou margens de rios ou lagoas. porém, até o litoral de Sãoryaulo, como o prova um exemplar de Ubatuba, obt~do. por
E. Garbe, antigo colecionador do Museu Pa ulista. Muitc;> afim é D. ten·~tgi>Wtgula
(546) Pitylus tuliginosus (Daudin), comumente chamado " bico pimenta" e, às (Pelzen), hoje havido por simples raça do pássaro descnto por Wled.
vêzes, "bicudo", é o pássaro a que aqul o autor se refere. Loxia grossa Llnn. tem (549) Cf. nota 588, dêstes comentários. .
habitat setentrional (do vale amazônico ao Maranhão) e difere por muitos caracteres (550) Philydor atricapillus (Wied). Ocorre do sul da Bahia ao Paraguai e
berrantes (tamanho menor, plumagem mais azulada, garganta branca). No s.• vol., território das Missões.
P~· _552 de Beitrage, retifica Wled a determinação do pássaro, descrevendo-o sob (551) Tripophaga tnacroura (Wied), passarinho sllvest:e, confinado às matas da
Fnngilla gnatho Licht., sinônimo de Loxia fuliginosa Daudin. Bahia e do Espírito Santo. Cf. Oliv. Pinto, Rev. Museu PaultSta, XIX, pág. 185.
(547) Em muitos pontos, ao tempo de Wled, a ornitologia estava ainda consl- (552) Sôbre o sentido primitivo do nome "tangará ", tomada à llngua geral, c f.
deràvelmente atrasada. Temos aqui um exemplo disso. A famflla dos Silvlldas, de a nota 285. d · "d d
que a toutinegra eur~péia é o exemplo mais notório, pertence ao grande grupo de (553) Arremon taciturnus (Hermann, 1788) substitui, por direito e" pr~on a ~·
pássaros can.oros. (Os~nes). e nenhum parentesco particular possui com os Furnarfidas, Tanagra silens Boddaert, 1788. E' vulgarmente conhecido no norte por pai-Pe~ro ·
em que se mclm a espéCie tomada por Temminck como tipo de seu gênero Anabates, (554) Heleodytes turdinus turdinus (Wied), nome atual. Com o nome d~ gar-
nome que as regras da Nomenclatura reduzem a sinônimo de Synallaxis Vleillot, mais rinchão ", ocorre abundantemente êste Troglodftida nas matas d<? rio Gongogl, onde
antigo do que êle. tive ocasião de observá-lo e colecioná-lo (cf. Rev. do Museu PaultSta, XIX, pág. 287).
382 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 383

cujo canto forte, composto de três notas, ouvia-se incessantemente, tam- velho provérbio, segundo o qual tanto mais próximo vem o socorro,
bém não era rara nesse lugar. Tem afinidades com os representantes da quanto maior é a nec~ssidade, verificou-_se mais uma vez. Alguns
família das toutinegras (Sylvia), que apresentam um bico recurvado e guaribas (Mycetes ursmus) 55 S se aproximaram de no~so acampa-
longo. Já a tinha encontrado nas margens do rio Doce, mas depois mento e puseram-se de repente a urrar com tôdas as suas fôrças. Levan-
nunca mais a vi. tamo-nos logo de nossos lugares e pegamos nossas armas. Ao cabo de
O tapicuru verde (Tantalus cayennensis) 5 5 5 habita também aos algumas horas havíamos matado dêsses grandes macacos em número
casais a beira dos riachos solitários que cortam essa floresta; êle pousa suficiente para várias refeições; de outro lado, a pesca no rio fôra
nos velhos troncos que emergem d'água e faz ouvir o seu forte canto igualmente feliz.
de som tão singular; os brasileiros o chamam "caraúna", como já o Foi assim que nesses ermos o tempo passou depressa para nós, por
referi acima; mataram um dêles junto de nosso rancho, e o meu cachorro entre as ocupações que a história natural nos proporcionava. Até que,
foi buscá-lo nágua para trazê-lo para terra. :tsse meu cachorro finalmente, ao anoitecer do sexto dia, ouvimos com alegria as vozes
encontrou sua principal ocupação com as preás (Cavia aperea, Linn.) 5 56, e os tiros dos nossos homens, que regressavam de Berruga. Trouxeram-
pequeno quadrúpede muito comum nas moitas perto do nosso acampa- nos boa provisão de milho que nós tivemos pressa em distribuir aos
mento; vivia procurando êsses animais; muitos dêles foram mortos, animais famintos alegrando-nos com a perspectiva de vermos satisfeita
porém, nós, europeus, não apreciamos a sua carne demasiadamente sua fome extrema.
mole. Nesse lugar, que fôra outrora cultivado, encontrei a confirma- Por feliz casualidade, no lugar em que devíamos acampar, encon-
ção do asserto de que as grandes florestas do interior são mais pobres de tramos muitos troncos ca~s sôbre o rio Catolé, que é afluente do
animais de espécies diferentes que os sítios cultivados, pois principal- rio Pardo, de modo a formarem como que uma ponte, duma a outra
mente onde o terreno é despojado de suas matas é que se encontra margem. Isso nos dava o único meio possível de atravessar o rio, pois
maior diversidade de animais. As partes interiores das grandes flo- era bem provável que a corrente houvesse carregado as duas canoas que
restas possuem também seus animais peculiares; mas é na orla dos o capitão-mor tinha mandado colocar nesse local. Depois de demorada
terrenos cultivados que, nas matas, se encontra o maior número de
procura, descobrimos uma delas, meio enterrada na areia, por baixo dos
criaturas diferentes.
troncos; os meus homens entraram nágua até o peito para retirá-la,
Nessa latitude austral, achávamo-nos em pleno verão; o calor mas não conseguiram. Tomaram então a resolução de levar na cabeça
estava fortíssimo. A 22 de janeiro, o termômetro Réaumur, entre duas para a outra margem a nossa bagagem, que consistia em várias caixas
e três horas da tarde, mantinha-se a 24 graus e meio, à sombra, e ao sol muito pesadas, passando com maior destreza sôbre a ponte oscilante e
subia em alguns minutos a 31 graus. Tivemos dias ainda mais quentes; perigosa, onde nós europeus, embora não carregados, tínhamos dificul-
todavia encontrei raramente 30 graus à sombra557 . No dia seguinte, dade tanto maior · em nos defender da vertigem quanto os troncos, mo-
as tempestades se sucederam, a trovoada se fêz ouvir com violência, lhados pela água, estavam escorregadios e balançavam a todo instante
caiu chuva em torrentes, mas não vimos nenhum relâmpago. Essas sob nossos pés.
chuvas torrenciais freqüentes haviam enchido gradualmente os rios a
tal ponto que os peixes se tornaram muito raros; a umidade também Após três quartos de hora, chegamos às margens dum grande e
dificultou a caça. Suportamos a falta do que comer por várias vêzes, bonito córrego, além do qual a estrada se apresentava coberta de
e vimo-nos reduzidos a matar a fome com carne sêca velha extre- matagal espêsso e impraticável. Fomos, porém, compensados dêsse
mamente dura. Sentíamos viva compaixão dos nossos pobres animais transtôrno pelo encontro de vários exemplares de história. nat~ral.
de carga, pois quase não encontravam na floresta o necessário para No meio da estrada, pendurados a algum galho por um Cipó fmo,
poder viver e rodavam em volta de nossas cabanas, como a pedir-nos vimos com freqüência um amontoado de musgos, ou de filamentos se-
sustento. As aperturas se tornavam cada dia mais prementes; mas o dosos, reunidos numa massa piramidal, de base voltada para baixo.
Essas espécies de novelos apareciam em grande número, balançando-se
(555) Na atual nomenclatura, Mesembrinibis cayennensis (Gmel.). Já referido livremente bem sôbre as nossas cabeças, de modo que às vêzes batíamos
anteriormente (nota 499). nêles com os nossos chapéus. Já vinham despertando a minha curio-
(556) Pelo texto dos Beitriige (11, p. 462) e pela figura das Abbildungen (fig. 26),
é lícito supor-se que a espécie referida pelo autor é a mesma descrita por Gmelin
sidade, pela sua forma singular, quando, de repente, vejo sair de um dêl~s
(13.• ediç. do Syst. Nat. de Linneu), com base em Marcgrave, visto que é a mais um passarinho, verificando então que se tratava do ninho duma espécie
largamente distribufda no Brasil. Na zona percorrida por Wied deve porém ocorrer
também Galea spixii Wagl.
(557) Em escala centfgrada, 22 e 30 graus Réaumur correspondem respectivamente (558) Sôbre êste macaco, Alouatta fusca (Geoffr.), já teve o autor destas notas
a so e 37,5 graus, temperaturas, como se vê, longe de ser excessivas. ensejo de dar os esclarecimentos necessários (cf. nota 104).
384 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 385

de papa-môscas (Muscicapa)•r.5u. f.sse pássaro constrói seu curioso ninho tanto, para nos compensar o estôrvo que nos causava, êsse vegetal nos
com Tillands,ia e outras plantas que dão fêlpas, que êle mistura com fornecia, nos seus grossos caules, uma refrescante bebida, pois a natureza
musgos; suspende-o a um galho, acima de um lugar descoberto. A dum lado dá com largueza o que ela tira de outro. '
entrada dêsse oscilante abrigo é embaixo, na base da pirâmide, e, em Pequenos bandos de bicudos amarelo-esverdeados, com garganta
frente da abertura, existe um anteparo pendente, que a protege. Os preta (Loxia canadensis) 56°, animavam as touceiras de bambus. A
filhotes estão assim, nessa moradia singular, bem garantidos contra o estrada passava agora por colinas de solo pedregoso, coberto de caatingas;
calor, a umidade e todos os seus inimigos. embora a subida fôsse fácil, o terreno se ia elevando insensivelmente.
Estávamos ainda cêrca de meia légua distantes do local em que A maioria dos córregos que fomos encontrando estavam secos, vendo-se
tínhamos resolvido acampar, quando encontramos um grande e velho nos seus leitos grande quantidade de seixos rolados, de mistura com
rancho, uma choça bastante espaçosa, coberta de cascas de árvore, quartzos, provenientes das primitivas montanhas.
que se conservava desde o tempo em que se abriu a estrada. Se bem Nossos cães perseguiram várias vêzes cutias (Cavia aguti Linn.),
que essa cabana nos oferecesse abrigo para passar a noite, preferimos mas não tivemos a sorte de vê-los apanhar uma que fôsse. Viam-se,
prosseguir nossa caminhada até um córrego que se denomina Bo- em geral, muito poucos animais nessa região. Só se encontravam, muito
queirão, pois aí contávamos encontrar boa água, pois que onde está- freqüentemente, os ninhos do pequeno papa-môscas 5 6 1 •
vamos a água era má e pouco abundante. Ao cair da noite, as rãs e os Encontramos, também, uma velha cabana, coberta de casca de
sapos fizeram um barulho ensurdecedor, ao passo que os mosquitos nos árvore, nas margens dum córrego; atraiu então a nossa atenção uma
incomodaram durante tôda a noite. linda planta, baixa, de flô tubulosas e de côr alaranjado muito vivo•,
A 27 achamos a estrada ainda mais cercada que comumente de que crescia ao pé da cabana. Essa planta começa a aparecer com fre-
helicônias de fôlhas altas e rijas, e de abustos espinhosos. As ferroadas qüência na estrada, a partir dêsse ponto, à medida que se avança para
dolorosas dos marimbondos aumentaram ainda os incômodos do dia; o alto sertão.
mas a esperança de encontrar as primeiras habitações humanas fêz Meia légua adiante, feriu-nos de repente o ouvido o canto de um
com que tudo suportássemos alegremente, e atravessássemos celeremente galo, companheiro do homem até mesmo nessas solidões longínquas.
montes e vales, pois, a cada refeição, restaurávamos as fôrças dos nossos Saindo da escuridão da floresta, tivemos diante de nós uma grande plan-
burros com abundantes rações de milho. tação de altos pés de milho e mandioca. O azul do céu após tanto tempo
Depois de percorrermos cêrca de duas léguas e meia, a tropa apareceu de novo, num vasto espaço, a nossos olhos; para além das
chegou às margens dum pequeno rio, junto do qual os moradores de florestas, avistavam-se os cimos azulados das montanhas, oferecendo-nos
Berruga, desde algum tempo, haviam feito uma plantação, derrubando um quadro extraordinário e cheio de encantos.
para isso as matas em volta. Respiramos um pouco mais livremente aí, Achávamo-nos então sôbre o rio Berruga, pequeno rio que se
pois, embora nos achássemos rodeados de florestas sombrias e muito lança, bem perto dali, no rio Pardo. Três famílias de gente de côr
altas, já avistávamos os cimos das montanhas e nos considerávamos como foram os primeiros moradores dêste sertão, na época em que se teve a
libertados do cativeiro sombrio das eternas florestas virgens; mas ainda idéia de fundar nesse lugar uma aldeia, para comodidade dos viajantes,
faltava um trecho fatigante cujas dificuldades teríamos que vencer. quando se abriu a estrada. Essa gente é já possuidora de importantes
A estrada estava em muitos pontos obstruída pelas taquaras, cujas tou- plantações, e ainda continua a derrubar a mata para alargar os seus
ceiras, com seus galhos e fôlhas finamente recortados, formavam como "roçados". Pode-se avaliar a fertilidade do solo pela altura e pelo vigor
que novelos. Também o taquaraçu, de que já falei atrás, erguia-se, dos pés de milho, e, conseqüentemente, pela abundância de sua pro-
em vários pontos da estrada, a trinta e quarenta pés de altura, for- dução. O milho ainda não estava maduro: as bananeiras, plantadas em
mando grandes obstáculos, que os seus espinhos tornariam intranspo- grande número, também não haviam atingido ainda o ponto; por isso
níveis se não fôsse o facão, que nos permitia abrir passagem. Entre- só pudemos nos prover de farinha.
( *) Não pude conhecer o fruto dessa bela planta, que por Isso não pode ser
(*) O pássaro que eu suponho haja construido êsse ninho é um "papa-môscas"
a que denominei Muscicapa mastacalis. Coloração oliva-esverdeada, urop!gio amarelo- determinada com precisão; parece ser uma Ruellia.
limão pálido; penas do alto da cabeça amarelas na base, e cinzento-amareladas (Suplem.) Synandra amoena, Schrader. op. clt., pág. 715.
na ponta, de sorte que quando estão em repouso não se distingue a primeira côr. (560) Colecionei êste belo pássaro no rio Gongogi e dêle tive de ocupar-me no
Asas e cauda bruno-escuras. Comprimento total da ave, 4 polegadas e três quartos. relato de minha viagem à Bahia (Rev. Museu Paulista, XIX, pág. 278). Seu nome
atual, Caryothraustes canadensis brasiliensis Cabanls, significa ser êle uma raça da
(559) Com o nome de Myiobius barbatus mastacalis (Wied), êste passarinho é espécie gulanense descrita por Lineu, com o nome Impróprio de Loxia canadensis, e na
hoje considerado raça particular de uma espécie existente em todo o Brasil setentrional sinon!mia da qual entra Cocothraustes viridis Vieillot, adotado por Wled em seus
e oriental. Não se lhe conhece nome vulgar, além de "caga-sebo", comum a tantos Beitrüge (v oi. 111, pág. 555).
outros. Encontrei-o abundantemente nas mata do Gongogi (Cf. Rev. Museu Paulista, (561) Myiobius barbatu~ mastacalis Wled, passarinho descoberto pelo viajante, que
XIX, pág. 219). o descrevera na página anterior (cf. nota 559).
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Três pequeninas casas de barro, cobertas de casca de árvore e cheias se reúnem nas plantações de milho, juntamente com o canto suave e
de carrapatos (Acarus), é em que consiste até agora a aldeia de Ber- fanhoso do tucano (Ramphastos dicolorus) 565 , o grito de duas notas do
ruga. Alguns Mongoiós (Camacãs), que trabalham por dia, se esta- araçari (Ramphastos. aracari) e o assovio de notas repetidas dos suru-
beleceram com as mulheres e os filhos, numa pequena choça pouco dis- cuás (Trogon).
tante; estavam quase nus e tinham várias partes do corpo pintadas de A parada em Berruga constituiu uma agradável interrupção em
vermelho e prêto, com urucu e jenipapo562 ; traziam em volta do pes- minha viagem através das florestas virgens, porém não o ponto terminal;
coço colares de sementes grandes e redondas tiradas de uma espécie de tínhamos ainda dois dias de marcha antes de chegar à Barra da Vereda,
gramínea. O govêrno nomeou um mulato para chefe dos Camacãs; reside onde penetraríamos nas regiões da capitania da Bahia em que o sertão é
rtesta localidade e tem sob seus cuidados diferentes aldeias, ou "ran- deserto, ou, pelo menos, entremeado de matas, campos e pastagens.
charias". O chefe os reúne quando se trata duma expedição contra as Parti de Berruga a 29 e segui a estrada que, saindo das plantações,
tribos selvagens inimigas, como por exemplo os Botocudos, e consta penetra imediatamente nas florestas ininterruptas. Estas são agora cons-
que, nessas ocasiões, êles se têm portado com bravura. tituídas de caatinga de altura em geral medíocre. Na verdade elas são
Tendo passado vinte e dois dias viajando em plena floresta virgem, ainda bastante fechadas, mas o caminho é menos impraticável por ser
desde a nossa partida de São Pedro até à nossa chegada a Ber-
mais freqüentado.
ruga, sem ver uma única habitação humana, tínhamos naturalmente
o mais vivo desejo de poder dormir, ao abrigo da chuva e do sereno, Um camacã tinha matado a flecha, havia pouco, uma onça ("jagua-
debaixo dum teto. Por conseguinte, não nos preocupamos muito com rété"), cujo esqueleto ainda lá estava, no mato a beira da estrada.
os tormentos que teríamos a sofrer dos carraptos e mosquitos que Pelo crânio reconhecia-se que o animal, na ocasião de ser morto, estava
pululavam nessas moradas miseráveis, e passamos o dia 28 nelas des- mudando os dentes. :r.sse esqueleto constituiria, pois, uma peça muito
cansando. Conseguimos obter feijão prêto e farinha; não eram petiscos interessante para um gabinete de osteologia, se vários ossos já não
muito apetecidos, mas quem suportou o jejum durante algum tempo tivessem sido leva.iQs por animais carnívoros.
habitua-se com a frugalidade. Os nossos animais puderam, com efeito, Quando chegamos a Jibóia, pequeno rio que se lança um pouco
descansar; mas não encontraram bons pastos, pois todo o terreno tomado acima no rio Pardo, estávamos tão próximos dêste que ouvíamos o
às matas tinha sido transformado em plantações; daí a razão por que, ruído de suas águas. O Jibóia corre sôbre um leito de granito tão
durante a noite, a nossa tropa muita vez fugia para as plantações de liso que se deve fazer com que os cavalos e os burros, estando ferrados, o
milho. atravesserp. com extrema precaução, para que não caiam. Havia na
Os meus homens empregaram o dia destinado ao descanso caçando margem ocidental uma casa aberta, coberta de cascas de árvore, e junto
e pescando; por fim, chegaram até as margens do rio Pardo, meia dela, um curral para boiadas que deveriam passar por aí, quando a
légua distante, e trouxeram muitos peixes. O "conquistador" (hoje estrada fôsse inaugurada.
coronel) João Gonçalves da Costa desceu êsse rio até à sua embocadura, Entramos, então, no vale do rio Pardo e seguimos a sua margem
em Patipe. Falarei mais adiante dessa expedição. setentrional, através da mata. A nossa direita erguia-se uma das ver-
As florestas, que cercam de todos os lados as plantações de Berruga, tentes do vale, coberta de matas, que diminuíam de altura à medida
fornecem, como as de Catolé, especialmente para os ornitólogos, agra- que o terreno subia, de modo a, no alto, degenerar em caatinga. As
dável e útil ocupação, pois ouvem-se de todos os lados vozes maviosas águas do rio Pardo, turvas e cinzentas, se precipitavam espumando pelos
. de pássaros. Observam-se várias espécies de Tanagra e Loxia, tais como fragmentos de rochedos. Podíamos às vêzes contemplar livremente o
Tanagra silens, guyanensis, magna, brasilia, brasiliensis, cayennensis*563 azul do céu e as altas montanhas, cobertas de mataria, que nos cercavam.
e muitas outras, bem como Loxia grossa e L. canadensis 56 4 , e diversas Essa solidão tem um caráter imponente e terrível. Nela o silêncio
espécies de Pipra. Fere-nos o ouvido a voz penetrante dos papagaios, que era só interrompido pelo fragor das águas do rio, enquanto a êste não se
veio misturar o grito singular dum numeroso bando de gaviões de
(*) (Suplem.) Leia-se Tanagra fiava, em vez de Tanagra cayennensis.
pescoço vermelho (Falco nudicollis)566, que um fortíssimo eco repetia
(562) Wled escreve "Genipaba " . pelo vale selvagem. Nossos caçadores não podiam tentar atingi-los na
. . (563) Os nom_es l!:tuais dêstes passarinhos, em geral já referidos pelo autor, são,
retificada a deterrrunaçao e a nomenclatura: Arremon taciturnus taciturnus Hermann
Oych_lf!ris guy~'.'ensis _cearensis (Balrd), Saltator maximus maximus (Müller), Ramphocelu;
brestltus bre.stltus (Lmn._), Tan~ara (= Oalospiza) brasiliensis (Linn.) e Tangara cayana (565) Há aqui êrro de nomenclatura; o tucano a que se refere Wied deve
f!ava (Gmel,!n) •. aos q~a1~; na hnguagem vulgar, correspondem os seguintes nomes, respec- clJa!fl_ar-se Ramphastos ariel Vigors e não R. dicolorus Linn., espécie ~?.em distinta, nun:ca
tivamente, pa1-Pedro , gente de fora vem", "trinca-ferro", "sangue de boi " e "saí ver1f1cada acima do Esplrito Santo. Em Beitraege, vol. IV, pág. 272, ele aparece descnto
amarelo". com o nome de R. temmincki Wagler, sinônimo de R. ariel V!g.
(564) Sôbre Loxia grossa e L. canadensis, notas anteriormente Inclusas. (566) Vide nota 506.
388 VIAGEM AO BRASIL DE SÃO PEDRO A BARRA DA VAREDA 389

altura em que se achavam; mas, em compensação, foram atraídos por Transposta a serra, verificamos que a mata era cada vez mais entre-
outro espetáculo. Um bando uumeroso de miriquis (Ateies hypoxan- meada de caatinga, de modo que mesmo no fundo dos vales não tinha
thus)561 saltava de galho em galho por cima de nós; matamos três dêsses mais de 40 a 60 pés de altura, e cheia de touceiras de cactos e bromélias,
animais, depois de os haver longamente observado. O limite que aqui afora barba-de-pau (Tillandsia). As árvores eram de espécies variadas,
assinala a distribuição dêsse macaco está nas proximidades, e é o córrego mas só atingiam porte insignificante. Lá estava o "pau-de-leite" (pro-
do Mundo Novo. ~le parece preferir as matas do altiplano às monta- vàvelmente um Ficus), temido pelo seu suco leitoso e cáustico; todavia,
nhas sêcas, cobertas de mato baixo. não consegui nunca encontrar o salutar e nutritivo leite do "paio-de-
Queck apanhou muitas das grandes borboletas noturnas de côr vaca", descrito por Humboldt•; êle teria sido de muito auxílio na nossa
esbranquiçada (Phalaena agrippina) que era aqui muito comum. Num situação. Encontramos também a barriguda (Bombax), que aqui só
ponto em que a estrada se afasta uns cem passos do rio, os nossos homens, cresce até uma altura medíocre, além de muitas espécies de Mimosa,
q~e conhecem a região, nos fizeram tomar apressadamente por uma Bignonia etc., tudo no meio de pedaços de pedras e blocos de granito.
tnlh~, que 9ua~e não se percebia~ no meio das moitas cerradas, e que Isso tudo era uma prova de que íamos gradativamente subindo, através
desCia em dueçao às margens do no Pardo. Encontramos aí dois alpen- de florestas virgens, das regiões úmidas e sombrias das grandes matas
dres, cobertos de cascas de árvore, os quais, embora estivessem um tanto do litoral para uma região mais elevada e sêca. Observei, entre outros,
arruinados, prometiam abrigo suficiente contra o sereno e as chuvas; um b~oco isolado de granito, com 20 a 30 pés quadrados; a sua parte
acendeu-se logo uma fogueira e assaram-se os macacos para a nossa ceia. sup_enor, coberta de terra, ostentava belos tufos de bromélias e pal-
Os burros ficaram na antiga estrada, e a passagem lhes ficou impedida meiras entrelaçadas. ~sse pequeno jardim dentro da mata apresen-
com paus atravessados. O caráter selvagem dêsses ermos emprestava um tava um aspecto extremamente pitoresco, lembrando certos trechos iso-
aspecto bastante pitoresco ao nosso acampamento. Algumas ilhotas, lados e atapetados de flôres que ornam os vales gelados do Monte
formadas por blocos de pedra, cobertos de belas plantas, que excitavam Branco, e que são justamente chamados jardins, ou "courtils". Fazia
a _n~ssa _curiosidade, dividiam as águas turvas e espumantes do rio. grande calor nessas matas baixas que, dando pouca sombra, são muito
Dtstmguia·se entre elas uma magnífica planta, alta, de flôres amarelas, ressequidas e queimadas pelo sol; os viajantes adquirem em pouco tempo
que, de longe, tomamos por uma Oenothera; à beira do rio, pendiam a côr dos Botocudos. Suportamos, no entanto, tudo isso, sem uma queixa
os sarmentos floridos das bignônias, de vivas côres. porque nos considerávamos num mundo novo. Logo depois de gal-
garmos a serra, vimos que as matas adquiriam caráter estranho, que
. O ar ~a noite, I?esse vale, era muito úmido; devido a isso par- cantos novos de aves feriam-nos o ouvido, e novas eram as borboletas que
timos no dia 30, mmto cedo, e, depois de transpormos o córrego do
voavam em volta de nós; também grande número de plantas, que nunca
Mundo Novo, galgamos uma cadeia bastante elevada de montanhas,
observáramos, alegravam os nossos olhos. Tudo quanto agora nos cer-
arredondadas e cobertas de pedras fragmentadas e blocos de granito, entre cava, anunciava uma natureza inteiramente diversa daquela que
o~ quais se viam, principalmente, pedaços de quartzo branco, de grandes
observáramos até então, e a contemplação dêsses sêres diferentes, prome-
~Imensões. Tôda a região é coberta de espêssa mata virgem, ou de caa-
tendo a cada passo enriquecer as nossas coleções, enchia-me de viva
tmga. Essa cadeia se denomina Serra do Novo Mundo. A primeira mon- impaciência por atingir o fim de nosso dia de viagem.
tanha é a mais alta de tôdas; se bem que se eleve em rampa suave, gasta- Aproximávamo-nos do segundo lugar habitado por homens;
se bem uma hora para chegar ao alto dela. Viaja-se em seguida por vales chama-se Barra da Vareda, e significava o alegre fim da nossa penosa
e. montes e acaba-se descendo a uma considerável profundidade. O viagem através das matas. Lançamos um olhar de surprêsa em tôrno
r~o P~rdo rumoreja à esquerda, no fundo de um vale, seguindo a mesma
de nós, quando, saindo da mataria, avistamos de súbito, ao lado dum
du~çao da _estrada. As matas que revestem essas montanhas estavam
vale suavemente inclinado, uma planície descampada e atapetada de
c~eias de diversas espécies de bignônias, de aspecto extremamente agra-
relva e de arbustos, limitada ao longe por montes arredondados e
davel pela grande variedade de suas côres; viam-se tôdas as tonalidades
cobertos de vegetação, tendo alguns trechos cultivados. A alegria
de ~ranco, am~relo, alaranjado, violeta e rosa. O canto dos zabelês
logo se manifestou no nosso grupo; felicitavam-se uns aos outros
(Ttnamus noctwagus) e das arapongas (Procnias nudicollis) ecoava nas
por se ter vencido com tanta facilidade as fadigas da viagem pela
profundezas do vale, como no alto das montanhas, animando êsses
ermos. mata; a nossa satisfação era tanto maior qu~nto os moradores da
Barra da Vareda nos afiançaram que havíamos sido extremamente
favorecidos pela sorte, pois raramente se dá que homens e animais
. (567) Brachytelu aracllnoides (Geoffr.) vulgarmente " mono" on "buriqui ", já
referido em várias passagens. Ateies araclln'oides Geoffr., I806, tem prioridade sôbre
A. llypoxanthus Kuhl, I820. (*) Vide HuHBOLDT, V011aue au Nouveau Continent, etc., t. 11, pág. I07.
390 VIAGEM AO BRASIL

saiam sãos e salvos daquelas paragens, quando começam a cair as


chuvas seguidas. Contemplávamos com alegria as vastas plantações e
os morros mais próximos; nossa vista media a extensão das matas virgens
que tínhamos deixado atrás de nós, agora que nos achávamos em segu-
rança numa região onde tudo prometia abundância de recursos e repouso
para os homens e os animais. A tropa avançou na planície coberta de
v
ervas altas, onde várias aves, inteiramente novas para nós, espalhadas
pelos bosques e capões de Mimosa, Cassia, Allamanda, Bignonia e outras,
atraíram logo a nossa curiosidade. Lindas pombas de cauda comprida
ESTADA EM BARRA DA VAREDA E VIAGEM
e cuneiforme (Columba squamosa)+568 passeavam aos pares no chão; ATÉ AOS CONFINS DA CAPITANIA
o "vira-bosta", um melro de côr negra 568a brilhante, caía em bandos
sôbre as moitas. Viam-se voando por sôbre o capinzat a Fringilla nitens DE MINAS GERAIS
Linn.56 9 e o tentilhão de crista vermelha•• 570 • Grande quantidade de
bois pastava nesses campos naturais. Descrição da zona. - Angicos. - Vareda. - Cria-
Passamos por perto de duas pequenas choupanas, habitadas por ção do gado no sertão. - Os vaqueiros. - Tamburil. -
homens de côr, e chegamos à fazenda do Sr. capitão Ferreira Campos,
Ressaca. - Ilha. - Pôrto aduaneiro de Minas. - Os
proprietário da maior parte dêsses sítios. Fomos recebidos com a maior Campos Gerais. - Descrição de seu aspecto físico e con-
cordialidade, e depressa nos refizemos por completo das fadigas da siderações a respeito. - Caça da ema e da seriema.
nossa viagem através das matas.
(*) Vide TEMMINCK, Histoire nattt•·elle des piueons, etc. 59, onde está otimamente
representada.
(**) Fringilla püeata. Macbo, comprimento 5 polegadas e 6 linhas; envergadura das
asas, 7 polegadas e 7 linhas. Plumagem inteiramente cinzenta, um tanto tinta de
bruno nas partes superiores; peito, ventre, uroplgio e cobertelras Inferiores da cauda
esbranquiçada, mais escuro dos lados; mento e garganta esbranquiçados; embaixo do O vale de Barra da Vareda tem pouca profundidade e é, do lado
pescoço e alto do peito cinzent<rclaro; asas e cauda cinzento-bruno carregado; ápice
da cabeça coberto de penas estreitas, longas, com cêrca de meia polegada, de um de sudeste, cortado pelo rio Pardo, que nesse ponto recebe o riacho
vermelho escarlate intenso, estendendo.se um pouco por cima da parte posterior da cabeça
e formando penacho; são cercadas de cada lado por uma listra preta que, quando em Vareda, do qual tomou o nome. Nesse lugar, o sr. capitão Ferreira
repouso, escondem um pouco as penas vermelhas. Campos, nascido na Europa, mandou derrubar a mata e fazer plan-
(568) Scardafella squammata squmnmata (Lesson). Sempre aos casais, esta rôla tações, em que cultiva mandioca, milho, algodão, arroz, café e todos os
é bastante comum no centro (oeste de São Paulo, Goiás, Minas) e principalmente no demais produtos do país•. Vêem-se ainda, ao lado de tais plantações,
nordeste do Brasil, onde a conhecem geralmente pelos nomes de "fogo.apagou" (Bahia),
e "rôla cascavel", o primeiro Imitativo do seu canto, o segundo alusivo ao singular consideráveis espaços ainda incultos, cobertos de capinzal alto e resse-
ruído de chocalho que produz, quando ergue o vôo. quido, onde surgem, aqui e ali, moitas e arbustos, traindo o caráter sel-
(568a) Gnorimopsar chopi chopi (Vieillot). Conquanto tenha sido descrito por Azara
sob a denominação de "Chopi ", é nos Estados do sul geralmente conhecido por " pássaro vagem próprio dos países áridos da zona tórrida dos dois hemisférios;
prêto ", reservando-se o nome "vira-bosta" ou simplesmente "vira", para outro passarinho,
Molothrus bonariensis Gmelln, que outro não é senão o "cboplm" dos paulistas. ~ste o seu aspecto lembra, assim, as solidões da Africa e da índia, menos
último tornou-se popular pelo singular instinto que o faz depositar os ovos no ninho ricas em grandes florestas que a América Meridional.
d.e outras aves, tais como o tico.tico (Zonotrichia capensis (Linn.)), a cujos legítimos
f1lhos usurpa, com o abrigo, todos os cuidados maternais. O homem da roça, embora Para aproveitar êsses campos incultos, o proprietário tem cons-
freqüentemente lhes aplique indiferentemente os mesmos nomes, sabe perfeitamente distin- tantemente necessidade de um considerável número de negros. A
gui-los, o que aliâs é fâcil. O "pássaro prêto", que nos Beitrage (vol. UI, pág. 1208),
vem descrito como Icterus unicolor Licbt., é maior e tem plumagem negra, lustrada riqueza de um lavrador brasileiro consiste em seus escravos, e as somas
de azul-ferrête; o "chupim" ou "vira" é menor, menos denegrido e, quando adulto,
é-lhe no sexo masculino a plumagem realçada por intenso brilho violáceo. A graúna do que retira do produto de suas colheitas são logo empregadas na compra
nordeste é apenas uma raça geográfica do pássaro prêto, avantajada em tamanho.
(569) Volatínia jacarina jacarina (Linn.). Foi anunciado ao mundo cientifico
de mais escravos. ~sses são tratados geralmente com doçura, e, em
por hfarcgrave; "serrador", "tisiu", "pinéu", "saltador", etc., da linguagem vulgar. Barra da Vareda, são muito bem alimentados. Na hora do maior
Dêstes. nome~, o segundo é onomatopalco, os outros derivam do hábito que tem o
passarmho, tão comum nos caplnzais, de saltar verticalmente do lugar em que se acba calor do dia, levam-lhes nas roças em que trabalham grandes vasilhas
pousado, proferindo o seu canto característico, "tlslu ", e voltando em seguida ao mesmo do melhor leite, e dão-lhes em abundância excelentes melancias, muito
ponto. Esta manobra, com freqüência repetida, lembra os movimentos alternativos
de uma serra. vertical. Fringilla nitens, além de posterior ao de Llnneu, é nome refrescantes. Proprietários que possuem cento e vinte escravos, ou mais,
sob que G~eh!', em sua edição da obra do último, confundiu o pássaro brasileiro
com outro mte1ramente diverso, natural da África.
(570) Coryphospingus pileatus pileatus (Wied), multo aparentado ao "tico-tico rei" (*) Planta-se pouca cana-de-açúcar e a pequena quantidade que se colhe é quase
(COrrJph. cuculatus (Müll .)), do Brasil meridional e central. tôda empregada no fabrico de aguardente.
392 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 393

moram comumente em casas de barro e, como as pessoas pobres, vivem sidades, os seus vaqueiros aos diferentes pontos de seus domínios em que
de farinha, feijão prêto e carne sêca. Raramente pensam em melhorar estão os animais; geralmente, por isso, abrem várias fazendas de gado,
o seu modo de vida, que os bens de fortuna não tornam mais alegre. onde alguns de seus vaqueiros vivem separados do mundó, levando uma
Neste sertão, o resultado que se tira da agricultura fica muito aquém verdadeira existência de solitários.
do produzido pelo gado, que nêle se cria. O meu generoso hospedeiro, Há também sempre em Barra da Vareda algumas famílias de
por exemplo, criava nos campos recentemente explorados de sua índios Camacãs, que trabalham mediante um certo salário; são empre-
propriedade consideráveis rebanhos de bois e cavalos; os primeiros gados, sobretudo, na derrubada das matas ou em caçar na floresta.
são guardados por rapazotes pretos, e voltam à tarde para a fazenda, Têm ainda por hábito tirar das plantações do proprietário o que lhes
onde os fazem entrar num grande curral, para a ordenha das vacas. convém; o capitão Sr. Ferreira é bom demais para impedi-lo. Cobrem-se
Vi aqui, pela primeira vez, como se cria gado no sertão, assunto sôbre com algumas vestes, sobretudo camisas, e as mulheres usam aventais
o qual falarei detalhadamente mais adiante; pude também travar co- de retalhos de algodão. A maioria havia sido batizada, e alguns tra-
nhecimento com os homens encarregados de guardar o gado; são os ziam uma cruz vermelha pintada com urucu, na testa; as mulheres
vaqueiros, ou campistas, como os chamam em Minas Gerais, vestidos mostravam semicírculos pretos pintados entre os seios, e outros riscos da
de couro de veado da cabeça aos pés. Essa vestimenta parece extra- mesma côr no corpo e na face. Preparam a tinta vermelha em bastões
vagante à primeira vista, mas é muito adequada, pois êsses homens compridos que parecem com as tabletes de tinta da China, preparados
têm muitas vêzes de correr atrás do gado, que foge atravé.s dos arbustos esmagando a casca vermelha do caroço de urucu.
espinhosos e das caatingas, ou então são obrigados a fazê-lo passar Encontrei entre êsses índios um velho que tinha os cabelos gri-
no meio delas para reuni-lo. A sua vestimenta consta de sete peças salhos, porém o corpo forte e robusto; entendia a língua dos portu-
feitas de couro de veado, como se vai ler• 571 • O chapéu, pequeno e arre- guêses e com êstes vivia. Havia matado, tempos antes, um de seus patrí-
dondado, com abas estreitas, e alargado atrás para formar uma pala cios que havia servido aos portuguêses, quando êstes andavam em busca
que abriga o pescoço; o "gibão" ou jaqueta, aberto na frente, por de Camacãs nas florestas; foi na época em que, no deplorável zêlo
baixo do qual está o "guarda-peito", largo pedaço de couro que desce de constranger a ferro e fogo os selvagens a abraçar o cristianismo
até a barriga; polainas ou "perneiras", por debaixo das quais estão e se deixarem batizar, enviavam-se destacamentos armados às flo-
as botas munidas de esporas. Uma vestimenta dêsse gênero dura restas. Um dêsses bandos, guiado por um índio desertor, enveredou
muito tempo, é fresca, leve, e defende dos espinhos e das pontas dos por esta região. Os Camacãs fugiram em tôdas as direções; mas o velho
galhos. O vaqueiro, montado em bom cavalo sôbre uma sela acolchoada, de que acabo de falar, que se achava entre êles, seguiu à distância os
leva na mão uma longa vara cuja extremidade é guarnecida por uma portuguêses durante muitos dias, e, sem ser percebido, quando êstes
ponta de ferro rombuda, com que afasta ou abate os bois furiosos; voltavam para as suas terras, aproveitou uma ocasião favorável para
às vêzes, leva também um "laço" para pegar os animais mais bravios. atravessar com uma flecha no peito o pérfido compatrício. tsse Tell
Na vinheta n .0 17, anexa a êste capítulo, vêem-se dois homens com brasileiro pregou na terra com várias flechas o corpo do traidor, e ainda
esta roupa original, justamente no momento em que procuram der- hoje se orgulha de tal façanha.
rubar um boi. Cada fazenda de gado tem um número suficiente de
vaqueiros, entre os quais vêem-se negros, mulatos, brancos e algumas O Sr. capitão Ferreira Campos me acolheu da forma mais amigável
vêzes índios. São geralmente bons caçadores, exercitados em perseguir e possível, juntamente com a minha numerosa tropa, obsequiando-nos
combater, com grandes cães educados para isso, as onças, ou os grandes generosamente com víveres e excelente leite, provisões essas extrema-
felinos que costumam escolher a sua morada na vizinhança dos grandes mente raras até então, e fornecendo grande quantidade de milho para
rebanhos. O proprietário da fazenda envia, de acôrdo com as neces- os nossos animais. Teve ainda para comigo a especial amabilidade de
mostrar-me as suas vastas plantações, onde o arroz e o milho tinham
( * ) Do couro do " veado mateiro" (G1lazupita de Azara) , que é mais forte, faz-se sofrido um pouco com a sêca. Eram sobretudo consideráveis as provisões
comumente o paletó. O "veado catlngueiro" (G1lazubira de Azara) dli as vestimentas de milho e algodão. Havia, entre outras coisas, 91 arrôbas de algodão
mais leves.
I embalado em grandes sacos quadrados de couro, prestes a serem expe-
(571) O autor, preciso como sempre em suas Informações, especifica em nota didos para a Bahia.
os veados cujo couro usavam os vaqueiros na confecção de sua caracterfstlca lndumen-
tlirla. ~sse pormenor não permite duvidar de que, por aquêle tempo, os sertanejos se Os couros de boi, tão comuns no sertão, pertencem aqui ao
pudessem dar ao luxo de empregar matéria prima aparentemente tão cara; hoje, porém,
o couro de boi deve ter substituido, em tôda pa rte, os couros de veado. Nã o obstante, número dos objetos de primeira necessidade. São cortados em t~ras,
na Bahia, hli sitlos em que, senão o "veado matelro" ou "guataparli" (Mazama com que se fazem cordas e correias, e servem também para cobnr a
amer icana (Erl.)), pelo menos o catingueiro (Mcnama si ntplicicornis (IUig.)) se multiplicam
ainda em notlivel abundância (Cf. O. Pinto, Rev. Museu Paulista, XIX, plig. 10), carga dos animais. O gado dessa região é grande e gordo, dando, por
394 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFI S DE MINAS 395

conseguinte, couros muito grandes. Um couro de muito boa qualidade no meio dos rochedos. Encontramos também uma Cassia magnífica
custa 3 a 4 florins. Só se matam bois raramente, e para o consumo do- de copa cônica muito basta; estava enfeitada com uma profusão de
méstico; porém muitas boiadas são mandadas para vender na Bahia con- longas girândolas de flôres côr alaranjado-escuro, muito• semelhantes à
duzidas por vaqueiros a cavalo. Um boi grande vende-se por 7.000 réis; do castanheiro da índia (Aesculus)•. Essas árvores contribuíam
na Bahia custa mais caro. Os proprietários convizinhos fazem em infinitamente para embelezar as moitas e as pastagens, de..-colorido som-
comum as suas remessas. brio e pardacento na parte restante.
Passei aqui algum tempo, não só para melhor inteirar-me da criação No dia 5 de fevereiro, despedi-me do Sr. Ferreira, que tão genero-
do gado nessa zona, como para conhecer as curiosidades histórico-naturais samente nos dera hospitalidade e parti de Barra da Vareda. A pouca
dessas regiões altas, que por muitos títulos se parecem com as do interior distância da casa, entra-se numa mata de 3 léguas de extensão,
da capitania de Minas Gerais. Encontrei entre os mamíferos uma cujo solo se eleva insensivelmente. As montanhas dessa região ele-
espécie de Cavia• ainda não descrita, o "mocó", pequeno animal do vada são suavemente arredondadas e anunciam a vizinhança das pla-
tamanho de um coelho, que vive sob os amontoados de pedra do rio nícies amplas e das altas serras, que ocupam grande parte do interior do
Pardo, no alto Belmonte, no rio São Francisco e em outros lugares Brasil. Era para nós bem salutar respirarmos o ar sêco e saudável dessas
semelhantes. Um camacã, que mandei à caça, trouxe quatro dêstes alturas, depois de têrmos por tanto tempo lutado penosamente contra a
animaizinhos, cuja carne é boa para comer. Koster diz que o mocó febre nas florestas úmidas da costa. No sertão, não se tem mais
vive no sertão do Açu 572 e que é uma espécie de coelho573. que temer êsse mal que esgota as fôrças: os rios correm aí, ràpida-
Entre as aves havia muitas espécies interessantes e para nós des- mente, sôbre pedras, sem se misturarem com as plantas corrompidas
conhecidas, que vivem nas montanhas de Minas Gerais, particularmente dos pântanos, cujas emanações produzem, nas florestas da costa,
as do gênero Myothera de Illiger, e diversos passarinhos granívoros, um ar úmido e pouco saudável. O próprio leite, principal produto
entre os quais Loxia torrida, lineola ou crispa (sem penas crêspas no das zonas de criação, ocasiona freqüentemente, nos lugares baixos e
abdômen todavia), Pyrrhula misya Vieillot, Fringilla nitens, Emberiza úmidos, indisposições e febres. Porém, nas regiões elevadas, não faz
brasiliensis Linn., Fringilla pileata, o "Chingolo" e o bicudo azul-celeste mal nenhum e alimenta grande número de homens, cujo corpo robusto
("Gros bec bleu du ciel"), de Azara, além de outros574. e boa aparência provam que o ar aí é saudável, e seu modo de vida bom.
As nossas coleções de botânica foram enriquecidas de várias A vegetação de Barra da Vareda, como tôdas as das regiões elevadas,
espécies de gramíneas, lindos fetos (Filix) e algumas plantas de belas não é mais constituída de matas virgens, mas sim uma caatinga
flôres, entre as quais distingue a Allamanda cathartica, de grandes flôres das mais altas pprém. Grande número de árvores e outras plantas
amarelas, que em alguns lugares era muito comum, formando tufos estavam em flor, entre outras, bignônias das mais belas côres, uma
árvore da família das malvas••, com flôres escarlates, e que consti-
(*) Cavia rupestris, de que dei uma curta descrição em "lsis " (ano 1820, tomo I). tuirá um gênero novo; uma trepadeira da classe Diadelphia, de flôres
(572) Henry Koster nascido em Portuga l, filho de inglêses, veio para o Brasil côr de carmim claro•u; grande quantidade de beija-flôres da espécie
em 1809, fixandc>-se em Pernambuco, onde residiu largos anos, ocupandc>-se de trabalhos Trochilus moschitus, Linn. 574, com o alto da cabeça vermelho e o peito
agrícolas. Viajou também pelos Estados vizinhos do Nordeste, inclusive no Rio Grande
do Norte, onde fica o sertão do Açu, a que o texto de Wied se refere. Koster dourado, rodeavam as flôres zunindo. Em vários pontos da floresta
compôs sôbre sua permanência no Brasil um copioso livro, traduzido depois em várias há lagoas cobertas de grandes caniços, enquanto outros são inteira-
linguas, e tido como um dos mais fiéis e minuciosos depoimentos sôbre o que era então
a sociedade e a vida naquela parte do nosso pais. Cf. Alfredo de Carvalho, Bibl. Exótico- mente descampados, pois as árvores tinham sido queimadas, a fim de
Brasileira, IH, págs. 104 e lU.
(573) O "moc6", Kerodon rupestris (Wied), parece-se muito com a "preá"; é, que o solo produzisse capim para o gado. f.sses sítios não tardam em se
porém, pouco maior do que esta e vive de preferência no Interior sêco e pedregoso dos revestir de altas samambaias (Pteris caudata), cuja fronde, disposta hori-
Estados nordestinos, do norte da Bahia ao Piauf.
(~74) Segue a identidade dêstes pássaros, retificada a determinação e posta em zontalmente, apresenta um aspecto singular. Ao sair da floresta, depa-
harmoma _com a _nomenclatura vigente: ram-se-nos lindos prados verdejantes, cuja côr, malgrado a secura
Lo:>:>a torrida Scopoli = Oryzoborus angolensis (Linn.), vulgarmente "curló" ou
"avinhado". da estação, era tão fresca como a dos prados europeus. A sombria
L. lineola Linn., ou crispa Müli. = Sporophila lineola (Linn.), conhecido vulgar-
mente, co~o outro~, por "papa-capim" ou "coleira " ("bigodinho " em São Paulo).
L. ml8fla Vletll., que Wled viria a considerar sinônimo do precedente (cf. Beitr(Jge, (*) Esta bela Cassia forma uma espécie nova, a menos que tenha sido
III, pág. 577), corresponde a Sporophila americana (Gmelin) espécie amazônica referida descrita na monografia dessas plantas publicada em Montpellier.
às vêzes. soJ;l Spo;ophila lineata (Gmel.). ' ' (Suplem.) Cassia excelsa, Schrader, op. cit., pág. 717.
Fnngil_la mte~ _Gm!!l· = Volatinia jacarina (Linn.), vulg. "serrador" ou "tlsiu ", etc.
E~e':1za b;as•henm Gmel. = Sicalis flaveola flava (Müller), "canário da terra".
(**) (Suplem.) Schouwia semiserrata, Schrader, op. cit., pág. 717.
(***) Suplem.) Clitoria coccinea, Schrader, op. cit., pág. 717.

"Chingolo", Azara = =
Fn11;g•lla p&leata Wied Coryphospingus pileatus (Wied), "tico-tico rei".
Zonotrichia capensis matutina (Licht.), "tlco-tlco". (574) Chrysolampis ntosquitus (Linné, 1758). Como dá a entender o nome lineano,
"Gros bec bleu du ciel"
ou "bicudo azul ".
= Cyanocompsa cyanea cyanea (Linn.), vulgarmente "azulão" é um dos nossos menores beija-flôres e também, seguramente, dos mais belos. Ocorre
em quase todo o Brasil setentrional e central, do Esplrito Santo para o norte.
396 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 397

mata que cerca essa viridente planície realça-lhe agradàvelmente o as confundem umas com as outras e, como não é costume matá-las,
efeito; um variegado bando de jumentos pastava com os seus potri- os próprios caçadores experimentados não as sabem distinguir com
nhos no meio do capim alto, fugindo à chegada inesperada da nossa exatidão. A significação dos nomes de animais dados por Marcgrave
tropa. refere-se geralmente ao norte da Bahia e Pernambuco.
Viam-se, à orla da mata, árvores de 20 a 30 pés, cujas flôres indi- Nesse trecho da mata, a voz muito forte de uma ave desperta
cavam pertencerem elas à classe Syngenesia. Os trechos cobertos de a atenção do caçador, que caminha pela planície descoberta. Inúme-
mata alternavam com os campos, no fundo dos quais havia pequenas ras curicacas (Tantalus albicollis)• 57 9 voam em bandos, sarapintados
lagoas. Entre as novidades que chamaram a nossa atenção nessa de prêto e branco, e passando por cima das baixas colinas vestidas
região, citarei os cactos. De todos os lados êles se erguiam, isola- de vegetação rasteira, dirigem-se às lagoas, charcos e pastagens em que ha-
dos, por vêzes a uma grande altura; seu caule, anguloso e coberto de bitualmente vivem. Essa ave tem aqui a denominação pela qual Marc-
espinhos, é lenhoso na parte inferior, onde ainda se distinguem os grave a designa em sua História Natural do Brasil. Pode ser reconhe-
vestígios das arestas que o caracterizam quando novo, e são sobretudo cida, no vôo, pelo seu pescoço branco e suas asas pintadas de prêto, assim
claramente visíveis nos galhos ramificados em forma de girândola e como por sua voz forte, diversamente modulada e de modo algum desa-
agora carregados de frutos redondos. tsse cacto parece ser hexagonus gradável. Observam-se também aqui, às vêzes, bandos de colhereiros
ou octogonus; tem flôres muito grandes e brancas na ponta dos ramos, (Platalea ajaia Linn.)58o voando, que vão de uma lagoa a outra, e
e os frutos são àvidamente comidos por uma espécie ainda não descrita que são notáveis pela sua bela côr rósea.
de papagaio, o periquito de barriga alaranjada, a que chamei Psittacus Tôdas essas aves, extremamente assustadiças, voam logo que
cactorum• 575 • tle devora a polpa do fruto, que é de um vermelho- avistam o homem, e vão de novo pousar nos campos, no meio dos ca-
sangue, ficando com o bico dessa côr. Algumas grandes árvores da valos e dos bois; mas nada têm aí a recear, pois o vaqueiro, se muitas
Cassia de flôres amarelas, ofereciam vivo contraste com as formas rígidas vêzes as espanta passando por elas a cavalo, nunca lhes aponta a espin-
dos cactos. garda. Vivem confiantes entre os animais que pastam e, ao lado
De uma lagoa, por entre o gado que pastava, levantou vôo o dêles, procuram tirar fraternalmente o alimento dos prado~ e . dos pâ~­
grande jabiru (Mycteria americana)57 G; a esta grande e bela ave, tanos; só fogem do homem, que, na natureza, se const1tu1 o ma1s
a mais rara entre as grandes pernaltas da região, chamam aqui cruel dos tiranos para perturbar-lhes a paz e harmonia 581 •
"tuiuiú". Quando voava, com sua plumagem de uma alvura des- Penetrando-se mais além, entre os prados e os maciços de flo-
lumbrante, no seu longo pescoço estirado distinguia-se o colar verme- resta, depara-se uma região mais aberta e unida. As vastas pasta-
lho que o caracteriza. Pouco depois, voaram em bandos o pelicano gens do planalto, em que então viajávamos, eram aquecidas pelo sol
silvestre (Tantalus loculator Linn.) 577 e a cegonha (Ciconia ameri- do meio-dia, cujos raios pareciam tanto mais ardentes, quanto e:am
cana)578, ambos aqui chamados também jabirus. Tôdas essas aves refletidos em inúmeras pedras. Ao cair da noite chegamos a Ang1cos,
são grandes e têm a plumagem branca, motivo pelo qual os brasileiros nome de uma velha habitação em ruínas, construída na mata, a pouca
distância duma lagoa. O capitão Ferreira, proprietário dessas pas-
(*) Psittacus cactorum. Comprimento 9 polegadas e 8 linhas; envergadura das tagens, nela habitara outrora.
asas 15 polegadas e poucas linhas; cauda alongada e cuneiforme; tôdas as partes
superiores de uma coloração verde-vivo, misturadas com um pouco de cinzento-pardo no tsse local é conhecido como o último em direção à costa, ou o
alto da cabeça e parte posterior do pescoço; bochechas, mento e garganta cinzento- mais oriental dos em que se encontra comumente a cobra de chocalho,
azeiton ados, passando gradativamente para esta última côr a o aproxima r-se do peito;
peito, flancos e barriga, até o uropfgio, alaranjado vivo ; rectrizes um tanto azul celeste
na ponta e na ba rba Interna; cauda, verde claro; penas médias de côr baça, tôdas (*) Considerou-se geralmente a " curi caca" de Ma rcgrave como Tant a.Zus locutator
amarela das na porção interna. de Linneu, até que Llchtenstein retificou tal êrro, explicando a obra de Marcgrave
(Suplem.) KUHL, por engano, em seu Conspectus psittacorum, pág. 82 , colocou essa segundo os desenhos originais que êle descobriu. Apesa r d~ todos os meus esforços,
ave entre os papagaios de cauda curta, quando a sua cauda é longa e cuneiforme. não pude obter essa bela ave, que se nos mostrava todo dia em pequenos bandos e
pa recia ter o corpo escuro, ou mistura~o de prêto, e o pese~ esbra nquiçado. Tu~o
(575) Aratinga cactorum cactorum (Kuhl, 1820 ) . Como se vê, o nome especifico, isso confirma que a " curikake " do sertão da Bahia e a " cuncaca " de Ma rcgrave sao
altaiD:ente expressivo, foi criado por Wied; entretanto, em nomenclatura, sua paternidade uma e mesma ave.
é . atnbufda a Kuhl que, embora se baseasse nas informações e nos exemplares do primeiro,
pode dar a lume o seu trabalho (Conspectus Psittacorum, pág. 82) , antes do último. (570 ) Theristicus caudatus caudatus (Boddaert), vulgarmente "curicaca " (o autor
. . (57_6) . Jabiru mycteria (Licht.), já mencionado anteriormente. Vê-se que o nome escreve "Kurikake "), é ave ainda freqüente no Brasil central e muito especialmente nos
tr1v1al "JabJru •: era, na região percorrida por Wied, usado indiferentemente pa ra as pa ntanais mato-grossenses. Cf. Rev. Museu Paulista, XVII, 2.• parte, págs. 699 e 716.
três cegonhas •ndfgenas, a saber o "tuluiú", o "cabeça-de-pedra" e o "tabuialá ". Cf.
nossa nota anterior a respeito. (580) A jaia a;a;a (Linn .), "colhereiro " ou "aja já", gra nde perna lta de bico achatado
(5i 7) Hoje iiiycteria americana (Linn .)) , nome a ntiga mente a tribuído ao " tuiuiú " (cf. em colher, plumagem branca tingida de róseo, encontradiço nos banhados de Mato-Grosso,
Rev. Museu Paulista, XXII, pág. 40). na Amazônia e em alguns pontos do litoral marítimo (Maranhão) .
(578 ) Euxenura galeata (Molina) . Ciconia maguari Gmelin é nome post erior ao (581) Proposição cruel e desalentadora, cuja veracidade a ssistimos, Infelizmente,
dado pelo autor chileno. acentuar-se dia a dia.
398 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 399

cobra cascavel 582 dos portuguêses. Só se conhecia anteriormente, na (mutucas)584, ou então por matas de pouca altura, e planícies cobertas
América Meridional, uma única espécie dêsse gênero pertencente à de capim baixo e muita pedra. Pela primeira vez, avistamos nessas
América, sobretudo, à parte setentrional dêsse continente. Hum- r
planícies o "pica-pau do campo" (Picus campestris 58!'>, .que só habita
boldt deu-nos a conhecer duas espécies novas•s8s. Dêsse ponto, as terras altas do interior do Brasil, mas se estende em quase tôda a
tomando-se a direção de Minas Gerais e do interior do Brasil, a cascavel largura da América Meridional, e que Azara foi o primeiro a descrever
se torna cada vez mais comum; encontram-se freqüentemente algumas entre as aves do Paraguai. Vive especialmente de térmitas e formigas,
muito grandes, sobretudo nas caatingas ou matos baixos, e nas moitas que são extremamente abundantes nessas planícies. Encontram-se, nas
pedregosas dos campos. ~sse preguiçoso réptil não abandona sua mo- florestas e pastagens, grandes montículos de forma cônica, formados de
rada dias inteiros, e volta espontâneamente ao lugar que para isso barro amarelo, tendo às vêzes 5 a 6 pés de altura, obra das térmitas.
escolheu. Assim é que tem acontecido, ao passar um rebanho diària- Nos terrenos abertos, ou "campos", a forma dêles é ordinàriamente um
mente pelo mesmo lugar, ser mordido cada vez um boi, que vinha a pouco mais achatada••. Ninhos semelhantes, de forma arredondada
morrer em conseqüência do ferimento; com a atenção despertada por e côr negro-pardacenta, acham-se suspensos aos grandes ramos das
êsse fato, examinou-se o caminho seguido pela boiada e se achou quase árvores e cada caule de Cactus sustenta um ou vários dêles. O refe-
sempre a cobra tranqüilamente enrolada, sem dar muito trabalho para rido pica-pau pousa sôbre êsses ninhos e bate nêles com o bico; é
matá-la. No que respeita ao veneno, a cascavel e a surucucu nada ficam por isso muito útil nessas regiões destruindo êsses insetos prejudiciais,
devendo uma à outra. Encontram-se ambas nessa região, da mesma forma que no Brasil constituem o maior flagelo da agricultura. ~sses insetos
que a jibóia (Boa constrictor), porém não é conhecida a sucuriúba; esta é destruidores enquanto constroem suas galerias por cima e por baixo do
muito mais comum em Minas Gerais, segundo me convenci à vista solo, e, dentro da terra, levam-nas até às paredes das habitações humanas,
das enormes peles de tais serpentes que daí me enviaram••. são perseguidos nesta região por numerosos inimigos. Assim é que os
Os cerrados de Angicos alimentam uma quantidade de espécies tamanduás (Myrmecophaga), os pica-paus, as Myothera 586 e vários
diferentes de aves, com particularidade periquitos e melros pretos. A outros animais, vingam os lavradores cuja colheita inteira é devorada
casa em ruínas, em que passamos a noite, estava repleta de borboletas às vêzes por êsses minúsculos e terríveis inimigos. É bem verdade que
crepusculares (Hesperia), sem importância, que voavam em tão grande êles não causam nas pastagens do sertão e nos extensos "campos gerais"
número que não se podia fugir à sua importunação; eram elas perse- tão grandes danos como nos lugares cultivados, pois os seus habitantes
guidas por grandes morcegos, que também volteavam, guinchando em se ocupam principalmente com a criação de gado. Aí são mais para temer
tôrno de nossas cabeças. as sêcas e a falta de chuva, flagelos êstes que havia três anos conse-
Deixando Angicos, percorri quatro léguas antes de chegar à fazenda cutivos vinham causando prejuízos incalculáveis.
de gado do capitão Ferreira, chamada Vareda. Nesse caminho encon- A tardinha cheguei, sob uma fortíssima chuva, à ~azenda da
tram-se a princípio campos extensos, ou sejam planícies cobertas de ca- Vareda, onde os vaqueiros se achavam ocupados em mung1r as vacas,
pim ressequido, com pequenos arbustos de permeio. A vista procurava que tinham acabado de fazer entrar no curral587 . Tôdas as tardes
aqui em vão um ponto agradável em que pudesse repousar, pois só se trazem do pasto certo número de vacas; depois deixam mamar bezerros,
viam moitas acinzentadas e verde-escuras, e as girândolas dos altos cactos que estiveram presos durante o dia todo num pequeno cercado.
espalhadas por todos os lados, contribuindo para dar à paisagem uma fi- E' um defeito da criação de gado no sertão da Bahia, e que não se
sionomia hirta e fúnebre. Passamos assim por imensos prados que só verifica, em Minas Gerais. Nesta província, ao que parece, soltam-se
tinham por limite o horizonte, e nos quais pastavam bois e cavalos, ator- as vacas sozinhas, levando-se os bezerros para um pasto diferente;
mentados em pleno dia por enxames inumeráveis de môscas de ferrão
(*) Picus campestris, "Les Charpentier des champs", AZARA, Voyage, etc., t. IV, p. 9.
~·) Orotalus _loeflingi e O. cumanensis. Vide HuMBOLDT, Abhandlungen aus àir (**) Vide EscHWEGE, Journal von Brasilien, pág. 109.
Zoologte und vergle<chenden Anatomie, t. 11, p. 1.
(**) A "Boa" de que fala EscHWEGE em seu Journal von Brasilien, (2.• parte, (584) "Motuca" ou "Botuca", nome vulgar das môscas hematófagas da famllia
pág. 276), sob o nome de "Sucuriú", sem dúvida que não é Boa constrictor mas sim dos Tabânidas, ricamente representada no Brasil.
Boa Anaconda, Daudin. O autor pretende também que muito se tem exagerado o perigo
da cobra de chocalho (parte I, pág. 15). (585) Oolaptes campestris campestris (Vieillot), mais conhecido nos Estados do
Sul pelo nome da "chã-ehã", imitativo de sua voz, forte e caracterlstica. No nordeste,
a partir do norte da Bahia, é substituido por uma raça levemente diferenciada, a que
(582) No original, "Cobra Cascavella". Swainson deu o nome de O. campestris chrysosternus.
(583) As ~erpentes com cauda terminada em chocalho (crepitáculo). formam a (586) O gênero llfyothera Illiger (1811), relegado atualmente à sinonimla de
subfamUia ç:rotahnas, uma das duas em que se divide a famllia das Crotálldas, a que Fornticarius Boddaert (1788), enfeixava nos tempos de Wied a maior parte das Forml-
pertence!? tôda!J as cobras venenosas brasileiras de dentes canaliculados (excluidas portanto cariidas mais tlpicos, habitantes das matas, em cujo solo procuram ordinàriamente o
as "corais"). Sao representadas no Brasil pelo gênero único Orotalus Linn. com uma só espé- seu sustento. Estão nesse número as "tovacas" (gêneros GraUaria, Ohamaesa, etc.) • os
cie, a "cascavel", O..terrificus (Laurentius), e várias no Centro e Norte-A~érica. Cf. Afrânio "pintos do mato " (Formicarius, etc.), os papa-taocas" (Pyriglena, etc.).
do Amaral, Mem6rtas do Inst. Butantan, XI, pág. 217 e seguintes. Cf. a nota 884. (587) No original lê-se sempre "Coral".
400 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 401

mas, ao cair da noite, junta-se o gado todo no curral. O modo de tratar altura ou de pastagens ressequidas. Muitas novida?es para a ~istória
do gado selvagem no sertão da Bahia é, sob outros aspectos, bem mais natural se nos foram deparando; contentar-me-e1 em refenr uma
atrasado do que em Minas Gerais, onde o gado é manso, e as fazendas espécie nova de caprimulgo, aqui chama_da "criangu"• 58 Q, que. voa du-
são fechadas por cêrcas e valos, pelo que, para pegar as vacas, apenas rante o dia e costuma pousar nos pastos, JUnto dos cavalos e bois.
se faz necessário o uso do laço, atirado nos chifres. Aqui, pelo contrário, Como, durante o percurso feito nesse dia, encontráss_emos muita
o gado é perseguido a cavalo através dos campos e matas, e, muitas mata e muita caatinga, grande número de pla~tas mteressantes
vêzes, é necessário defender-se a gente dos seus ataques com uma foram vistas por nós; diversos pássaros canoros ammavam de novo
vara. O gado de Minas Gerais é mais corpulento e dá mais leite, os bosques, entre outros uma espécie de melro que ainda não tínhamos
e, por conseguinte, mais queijo para vender; aí não se matam os vitelos, encontrado, o "sofrê" (Oriolus jamacaii, Linn.) 590, de plumagem parte
mas, para fazer a separação da caseína emprega-se em vez de lab- alaranjado-vivo e parte preta, cujo canto é extremamente agr~dável,
fermento de vitelo a de anta (Tapirus), de tatu canastra ("Tatou pela diversidade e mudança de tons. Pousados, em grande numero,
géant" de Azara), de veado, ou de porco. Para que a raça do gado não numa árvore frondosa, ofereciam à vista magnífico quadro.
se abastarde, manda-se vir sempre um touro de outra fazenda e A Senhora Simoa, proprietária duma fazenda em Tamburil,
não se deixa que as vacas fiquem prenhes antes do seu quarto ano. aldeia situada na região montanhosa a que c?egamos de tarde, deu-
No Brasil não se sabe fabricar manteiga; aliás o calor impediria que nos hospitalidade em sua casa, agradàvelmente situada num val~ cober_to
essa se conservasse e o alto preço do sal muito a encareceria. As regras de matas no Riacho da Ressaca. Fomos aí observados com mmta cuno-
mais conhecidas da criação do gado não são seguidas neste sertão. sidade, p~is asseguram-nos que nunc~ até então se havia_ visto inglês:s;
Os vaqueiros, ou antes os "campistas" de Minas, têm a sua tarefa porém nada nos faltou e fomos aloJados, em companhia de uns. VIa-
bem mais facilitada do que os do sertão, e não usam as vestes de couro jantes brasileiros, numa grand: sala, ond~ armamos as nossas ~edes.
indispensáveis a êsses. Ao cair da noite todos os convivas se reumram para entoar ladamhas,
A situação de Vareda, no meio de uma vasta planície, rodeada de segundo o costu~e da terra; nessas moradas solitárias, ou fazendas,
pequenos morros cobertos de caatingas entremeadas de lagoas onde costuma haver uma sala com um cofre ou um armário, contendo algumas
se vêem jabirus, tuiuiús, curicacas e colhereiros, não é nada desagradável, imagens de santos; os moradores s: ajoelham diante ~essas imagens para
embora seja comumente fustigada pelos ventos. Em tôdas as planuras fazer orações. Não ouvi falar, aqm, de padres, que vao de um la~~ para
do sertão, e tanto mais quanto mais próximas dos "campos gerais" outro com um altar, como Koster encontrou no sertão do Ceará -
de Minas, Goiás e Pernambuco, o ar é muito purificado pelos ventos,
motivo pelo qual desde que se ultrapassa Barra da Vareda, não reinam (*) Caprimulgus diurnus: ave de corpo entroncado e cabeça volumosa; compri-
mais febres; mas o viajante, que se tinha acostumado com o calor, acha mento da fêmea, dez polegadas e duas linhas; envergadura das_ asas, vinte e sete
que as vestimentas leves, bastantes até então, não só se tornaram insu- polegadas; íris côr.<Je-café; partes superiores agradàvelmente mtsturadas de bruno-
acinzentado amarelo-ruivo e pardo-escuro; grandes manchas escuras com largos bordos
ficientes para protegê-lo contra o frio das manhãs e das noites, como ama;elo ruivo, e, na cabeça, pequenos pontos da mesma coloração espalhados; pen!s
escapulares com a mesma pontuação; as manchas escuras apresentam cercadura amare o
até durante o dia, não são devidamente quentes. Assim, depois de nossa ruivo · raia amarelo-claro quase lmperceptfvel acima dos olbos; mento amarelo pãlldo,
chegada a Vareda, começamos a sentir os sintomas de defluxo, os quais listrado transversalmente de cinzento castanho, larga mancha transversal branca na 'arganta:
as cinco primeiras penas das rêmlges pardo-escuras, com umlo-cla faixa tra;si~C:ssa tra~::;:­
todavia desapareceram logo que nos fomos, aos poucos, acostumando no melo· cauda marmoreada de castanho-escuro e amare aro com a
com a temperatura mais fresca. sais em' número de nove ou mesmo dez, salpicadas de pardo muito escuro; po~
bal;o do pescoço e no alto do peito com coloração imitando agradàvelmente ocl má~oJe •
A 8, pela manhã muito cedo, deixei Vareda e continuei minha tôdas as demais partes Inferiores brancas com linhas transversais bruno-a nzen a as
claras, o meio do ventre, branco, não manchado.
viagem, a princípio através de brejos repletos de junco baixo, onde (Suplem.) E' o "Nacunda" de Azara, t. 4. pág. 119.
nidifica o pato de crista• 588, e depois por entre matas de pequena (**)Vide KosTER, Travels, etc., pãg. 85.
(*) "Le Canard à Crête", AzARA, Voyages, etc., vol. IV, pãg. 331. (589) Podager nacunda Vlelllot, (18I7), descrito pela primeira vez por Azara.
(588) Trata-se, com segurança, da mesma espécie que Azara descreveu sob o nome E' um bacurau de porte alentado, que durante o dia repousa no chão, .emui pleno
de "Pato crestudo" ("Le Canard à Crête"), na edição de Sonnini, base de Anas campo descoberto, e põe-se em movimento logo às primeiras sombras do crep~ o,R~u
carunculata Licbt., 1819. Na última pãgina de seus B eitrtige (vol. IV, pãg. 942) lamenta mesmo durante o dia, se nuvens de tempestade obscurecem o sol (cf. q11v. Pmt~·- v.
Museu Paulista, XX, pãgs. 12 e 61). Wled, por Isso, chamou-o Capnmulgus mrnus
Wled não ter podido obter exemplares da ave, cujo nome popular, "pato de crista ", (Beitrtige, UI, pág. 826). Lugares há em que acampam em grandes band?S• como ~f
consigna todavia. A apelação que lbe cabe em nomenclatura científica é Sarkidiornis aconteceu observar, em Setembro de 1987, em Cuiabá (Mato Grosso), no suburbio deno -
sylvicola Iher. & Ihering (1907), substituto do de Lichtensteln, jã anteriormente usado
para outra espécie por Vielllot (1816). Ocorre da Argentina ao Amazonas e é relati- nado Várzea, que as enchentes anualmente inundam.
vamente comum no Nordeste (Maranhão, Piauí, Cearã) onde o conhecem também pelo (590) Icterus ;amacaii (Gmelin). Belo e bem conhecido pássaro, de vistos&: plu-
nome de "putrião " (teste Pompeu Sobrinho). Jã Marcgrave, allãs, o havia descrito magem e dolente canto, muito procurado pelos amadores. Ocorre. nos ca~pos e, caatinga~,
sob a designação tupi de "pecati Apoa ", que justamente significa "pato de crista levan- desde 0 sertão baiano até o Maranhão, sendo conhecido na Bahta por sofrê (corrup ·
tada", segundo Rodolpbo Garcia (Boi. Museu Nacional, vol. V, n.• 8, pãg. 7). de sofrer) e em Pernambuco por "concoriz".
402 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 403

Para se ir de Tamburil até às fronteiras de Minas Gerais, atra- dessas moradas aéreas, descobrimos que a parte inferior é habitada por
vessa-se uma região áspera, coberta uniformemente de caatingas, um uma espécie de rato• 592, mesmo quando o pássaro ainda ocupa a parte
tanto montanhosa e entrecortada de barrocas. Segue-se o curso do superior. '
Riacho da Ressaca subindo um caminho que a princípio é muito Nos lugares em que a coberta de vegetação permitia que a rocha
agradável, enfeitado por arbustos que crescem na sombra, e povoado aparecesse, encontrei estaurolitos de cristais simples, com um pouco de
de lindos beija-flôres. O riacho forma vários saltos e espalha uma frescura anfibólio no xisto micáceo. Os carrascos, ou matas anãs, em que via-
que nos pareceu deliciosa, pois o calor era grande e a estrada, em jávamos, eram, com grande surprêsa nossa, inteiramente despidos de
parte, muito difícil para os nossos animais de carga. A variedade das fôlhas, como as florestas da Europa no inverno. Na minha chegada a
flôres que nos cercavam compensava amplamente das pequenas fadigas Ressaca não pude obter explicação satisfatória dêsse fato. Um lavrador
da viagem. Entre os belos vegetais que encontrei, limito-me a citar inteligente disse-me que, dois ou três anos antes, no mês de agôsto,
soberbas Cassia, cujos grandes cachos de flôres alaranjadas espalhavam uma geada muito forte havia matado as árvores; outras pessoas,
um aroma balsâmico•; maracujás (Passiflora), de flôres roxas e pelo contrário, achavam que a causa disso era a secura extrema do solo.
vermelhas, porém inodoras, e uma planta· trepadeira com flôres ver- Ressaca é uma pequena localidade em que três famílias de homens
melho carregado• • que, entrelaçando-se no alto dos arbustos, formava de côr cultivam um terreno situado numa pequena elevação, pouco
uma latada em cima de nossas cabeças. As moitas de mimosas, de inclinada e rodeada de carrascos; criam também gado. A vegetação
fôlhas delicadas e finamente recortadas, eram muito incômodas nas morta, que limita o horizonte por todos os lados, dá a êsse sítio um
veredas, em parte impraticáveis, cobrindo com seus galhos espinhosos aspecto de uniformidade extremamente triste; só uma moita de Agave
a argila amarela ou vermelha, que forma aqui a superfície do solo e foetida e algumas laranjeiras dão um pouco de alegria aos arredores
que estava ressequida pelo sol. das casas de barro. Nessas regiões de aspecto desolado vê-se apenas um
Uma vez transpostos os morros que se elevam uniformemente pequeno número de animais; só o vira-bosta (Tanagra bonariensis) 593
uns por cima dos outros, formando pequenas serras, e que são inteira- de plumagem prêto-violácea brilhante e garganta mais vermelha dava
mente cobertos de caatingas ou "carrascos"•••, atravessam-se, acompa- alguma vida ao mato ressequido. Deram-nos para morar uma das
nhando o curso do córrego da Ressaca, pequenos prados cobertos de cabanas; mas tivemos que disputá-la a um enxame de marimbondos
diferentes espécies de gramíneas; ouvindo-se por tôda parte cantos novos ameaçadores. Estavam êles ocupados em construir o ninho em nosso
de pássaros que, assim como as novas plantas, muito nos deleitavam. En- quarto, ninguém se podendo considerar seguro contra o seu ferrão.
contrei aí muitas vêzes o ninho de uma ave, que ainda não foi des- Até os nossos animais, que pastavam a pouca distância, tiveram que fugir;
crita•·u•591; é fabricado com grande número de gravetos de pau sêco, e só depois de fecharmos a porta e as janelas foi que conseguimos nos pôr
suspenso na ponta de um galho, deixando apenas, como entrada, uma pe- ao abrigo dêsses importunos hóspedes. A noite, sobreveio violenta tem-
quenina abertura redonda. Cada ano o pássaro coloca um novo ninho em pestade; caíram torrentes de chuva acompanhadas de espêssa saraiva;
cima do antigo, de modo que encontrei uma fila dêles que tinha 3 a 4 os meus homens, que nunca haviam visto semelhante meteoro ao longo
pés de comprimento, balançando-se num galho fino. Examinando uma do litoral, apanharam por curiosidade os grãos transparentes de gêlo,
testemunhando em altas vozes a sua surprêsa.
(*) Essa espécie parece ser Cassia mollis de Wahl.
(Suplem.) Bacti1'!1lobium terrugineum, Schrader, op. cit., plig. 711.
(**) E' provAvelmente uma nova Ipomoea. (*) llfus p?Jrrhorinos, rato da caatinga, e de cauda muito comprida; tamanho
(Suplem.) Ipomoea sidaefolia, Schrader, op. clt., pjlg. 719. dum rato do campo, europeu; corpo de côr cinzento pardo sujo, aproximadamente da
(***) Chama-se "carrascos" às matas mais baixas situadas nos limites das grandes côr do "bamster"; região vizinha do nariz, grandes orelhas pouco aveludadas, e coxas,
planícies áridas e planas, denominadas "campos gerais": têm dez a doze pés de altura, perto da cauda, castanhas.
e parecem ser constituídas aproximadamente com as mesmas espécies de árvores; podem
ser comparadas aos bosques de aveleiras que se vêem em vários pontos da Alemanha, (592) Na nota marginal (p. 177 do tomo I_I da ediç. in:B·•.>. em que esta espécie
com qu_e . apresentam muita semelhança. esses arbustos estavam todos mortos e, por é pela primeira vez descrita, lê-se Mus pyrrhormos; em Bettrage (vol. 11, pág. 418)
Isso, fm Impossível determinar a que familia pertenciam. Wied emendou o nome específico para wrrhorhinus, mais correto na forma. De acôrdo
. (****) Anabates •·utitrons; é a Sylvia rutitrons do Museu de Berlim. Comprimento, com as normas da nomenclatura, a grafia original deve prevalecer. Interessantíssima
SeiS polegadas e nove linhas; tôdas as partes superiores são pardo-acinzentadas, passando é a observação biológica registrada a seu respeito. O fato não tem sido verificado
em certos pon~os um pouco para o amarelado, frente e alto da cabeça guarnecidos depois, fazendo crer não se tratar de uma associação. no sentido biológico do têrmo.
de penas estreitas e pontudas não formando entretanto um penacho; fronte, castanho- Nunca, pelo menos, pude testemunhá-lo, em inúmeros ninhos que tenho Investigado. Há
avermelhado escuro, quase imperceptível em cima dos olhos; partes Inferiores esbranqui- habitualmente nos ninhos do carrega-madeira insetos comensais que têm sido moderna-
çada , . de um pardo-acinzentado claro; garganta e meio do ventre muito mais claros; mente estudados por H. Lent do Inst. Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro.
uropígu~ e. flancos t~ngldos de amarelo; asas e partes superiores pardo-acinzentadas, um (593) Molot/!1'tiS bonariensis bonariensis (Gmelin). E' o "chupim" dos paulistas,
tanto tmg1das de ohva. pássaro dos mais conhecidos, e tido em antipatia pelo hábito parasítlco, comum a outros
da mesma famllla, de não fazer ninho e confiar a estranhos os cuidados da incubação
(591) Phacellodon~us rufifrons (Wied), vulgarmente "carrega-madeira" (Bahia), dos ovos e a criação dos filhotes. Afora o nome registrado por Wied, goza ainda de
"casaca de couro" iPernambuco), etc. Reconhecem-se hoje várias raças na espécie, numerosos apelidos regionais, tais como "grumará" (E pirito-Santo), "gaudério" (Pernam-
umas do este-seteotrlao brasileiro, outras do oeste de Mato Grosso e repúblicas vizinhas. buco) etc.
404 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 405
Um pequeno vale despido, situado nas elevações cobertas pelo e parsos, se desdobram a perder de vista. ~sses campos, que se
carrasco, conduz à fazenda da Ilha, distante quatro léguas, a qual apre- estendem até o rio São Francisco, Pernambuco, Goiás e além, são
senta um aspecto selvagem e pouco agradável, pois os bosques que a cortados em diferentes direções por vales, em que nascem rios que
rodeiam são uniformes e em parte secos; vêem-se, por tôda parte, árvores descem do planalto para o mar. O mais notável dêles é o rio São
sêcas ou plantas de brejo, de modo que daí não se desfruta nenhuma vista. Francisco, que nasce na Serra da Canastra, e pode ser considerado
Musgos e fetos crescem em vários pontos. Felizmente para os viajantes, como formando o limite entre as capitanias de Minas Gerais e Goiás.
o canário (Emberiza brasiliensis Linn.) e o pintassilgo (Fringilla magel- Nos vales que cortam essa cadeia e êsses planaltos nus, as margens
lanica), dois dos pássaros brasileiros que melhor cantam, dão-lhes alguma dos rios e ribeirões são guarnecidas de florestas; matas isoladas se
distração 594 • O vira-bosta (Tanagra bonariensis) é visto aí em vêem assim escondidas nessas depressões, principalmente nas proximi-
pequenos bandos; entre êles é raro aparecerem os de peito vermelho, de dades das fronteiras de Minas Gerais; êsse tipo de florestas é um dos
mais idade. Um outro "tangará", que não vi descrito ainda•5o5, pousa principais traços característicos dessas regiões descobertas. Imagina-
mudo na ponta mais alta dos arbustos. Encontram-se aqui sobretudo se, às vêzes, ter diante de si uma planície contínua, e inopinadamente
várias espécies de papa-môscas, e a espécie maior com elas aparentada, às a gente se encontra nos bordos de um vale estreito, profundamente
quais Buffon chamou de "Becardes" e "Tyrans", e Azara de "Suiriris". escarpado, ouvindo-se um rio murmurar no fundo, onde o olhar mer-
As "becardes" são mais raras aqui do que nas províncias mais baixas u so6. gulha nos cimos duma floresta cujas árvores variadamente floridas lhe
O terreno descamba cada vez mais até Ilha, e os arbustos dimi- guarnecem as margens. Aqui, na estação fria, o céu se mostra constan-
nuem também de altura na mesma proporção, até que se avistem os temente coberto e o vento é contínuo; na estação sêca, o calor é sufo-
"campos gerais", que surgem como um mundo novo. Planícies imen- cante, tôda a vegetação rasteira seca e o solo arde; a água potável
sas e inteiramente descampadas, ou então colinas de declive suave que falta totalmente. Essa descrição prova que os "campos gerais" do
se prolongam em série, cobertas de capim alto e ressequido, e de arbustos Brasil oriental, embora desprovidos de florestas e em geral planos,
diferem entretanto das estepes do Velho e do Novo Mundo, de que
(*) Tanaora caopis trata, comprimento 6 polegadas e 12 linhas; envergadura 9
Humboldt nos fêz descrição tão bela e fiel""; pois os "llanos"
polegadas e 8 linhas. Lembra muito pela forma exterior o pisco (Pyr rhul a ) ; em redor ou as estepes do norte do Orenoco, e os pampas de Buenos Aires,
da maxila inferior, prêto ; bochechas e meta de anterior do vérti ce cinze nto-pardo claro;
garganta, embaixo do pescoço, peito e a lto do abdome a ma relo-avermelhado pá lido ; não se assemelham aos campos gerais, e às estepes do Velho Mundo
tôdas as pa rtes superiores cinzento-azula das- ainda menos. ~sses campos gerais não são perfeitamente planos;
(** ) Costuma-se geralmente confundir as duas espéci es mais comuns, e o próprio
Sonninl caiu nesse êrro. Foram elas chamadas por Linneu Lanius pitanoua e L. sulphuratus, sua superfície apresenta alternadamente fracas elevações e planaltos,
e se parecem muito. Essas repetições de formas nas a ves são muito freqüentes no mas seu aspecto é uniforme e inanimado, sobretudo na estação sêca.
Brasil; mas os dois pássaros diferem t a nto pelo bico que não podem ser confundidos.
O que faz ouvir sem cessar êsse grito : "bentevl " ou "tictivi ", tem o bico estreito Todavia, não são tão despidos como o "llanos" e os pampas, e menos
e alongado; o outro, que repete distintamente "gnel-gne l ", tem um bico largo e ainda que as estepes do Velho Mundo, pois são sempre cobertos de
a ba ulado_ Sonn inl se engana dizendo que o "nei-nel " de Aza ra pronuncia em Ca iena a
palavra "tictivi " ; êste é, como acabei de dizer, o grito do Pi tanoua. O mesmo êrro plantas baixas, que às vêzes crescem bastante; pequenos arbustos cobrem
cometeu Vieillot, na sua " História Natural das Aves da América setentrional"; escreve,
tomo I , pág. 78, que o tictivl repete algumas vêzes " gnel-gnel", que é o grito de outra comumente os declives e, algumas vêzes, o planalto todo; por conse-
espécie, Lanius sulphuratus de Linneu . Aza ra di stinguiu, no entanto, com multa exatidão, guinte, os raios do sol não produzem efeitos tão violentos como nos
pelo grito e pela forma, êsses dois pássa ros muito comuns no Brasil.
lhanos, e nêles não sopram os ventos secos e abrasantes, nem os tur-
(594) O " caná rio da terra " (como é geralmente chamado, por oposição aos verda- bilhões de areia, tão incômodos para os viajantes nos lhanos da América,
~I e ir~s caná rios de importação), Si cal is flaveola (Linn .) , da nomenclatura cientffi ca, nos desertos da Africa e Asia, e nas estepes da Asia.
mciUt três raças brasileiras, reconhecidas pela generalidade dos ornitologistas; uma
nordestina, s_ fl. brasilien sis (Gmelin), uma oeste-meridional, S. fl. pel zeni Sclater e Quem vem do litoral, começa por galgar êsse primeiro degrau de
outra este-meridional, S. fl. holti Miller. A esta última, cuja descrição pode ser procurada
na revls.ta ornitológica norte-americana "The Auk" (vol. XLII, pág. 254), pertence montanhas do interior do Brasil, que não são muito elevadas na região
o passarmh<? referido por Wled. O "pintassilgo" (no original "Pintasilgo ") corresponde por mim percorrida, pois que aí não cai neve, e as geadas e granizos
à forma hoJe chamada Spinm maoellanicus alleni Rldgw.
(595) Sc_histo chlamys r ut i capillus capistratus (Wied) é raça nordestina de um são fenômenos muito raros; aliás, grande parte das árvores conser-
pássaro conhecido no Brasil meridional por "sanhaçu-pardo" e " bico de veludo " (test e vam a sua folhagem todo o ano. O mesmo não se dá, todavia, um pouco
Iher. & Ihering).
. (596) Apesar de todo o cuidado e acêrto com que discute Wied as relações entre mais a oeste em alguns pontos mais elevados. Continuando-se a viajar
o~ do!s pássaros que o PO':_O geralmente confunde sob o nome de "bem-te-vi", não logrou em direção à parte mais alta dos "campos gerais", atinge-se a cadeia de
por term?. ~ grand~ conf~sao que havia no t a ngente a o nome cientifico que lhes compete.
O nome Pitanguá é ormndo de Marcgrave, que sob êle descreveu em seu clássico livro regiões mais altas, de montanhas que se alteiam acima dêles, e que
um pássaro q~e, conforme .ficou escl a recido páginas atrás (pág. 40, nota 78) , não pode
se! outro senao o verdadeiro bem-te-vi , bem identificado pelo seu canto inconfundfvel.
Nao obstante, tem prevalecido na nomenclatura a opinião oposta segundo a qual o (* ) Ansichten der Natur, tomo I , pág. 1 e Vovaoes au Nouveau Continent, etc.,
"Pitanguá " seria o bem-te-vi-de-bico-chato, ou nef-nef. ' t. li, págs. 147, 148 e 149, Inclusive a nota.
406 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 407

não se podem comparar à Cordilheira dos Andes da América espanhola, bém que poderíamos suportar grandes exercícios e, por conseguinte,
visto como não apresentam cimos cobertos de neves perpétuas, nem empreendemos excursões por todos os pontos dessa agreste e solitária
vulcões. Eschwege deu-nos a descrição das altas "serras" de Minas Gerais, região. '
e Humboldt explicou as conexões entre as cadeias de montanhas das Encontramos, na porção dêsses campos gerais que confina com o
Américas espanhola e portuguêsa • . sertão da Bahia, fazendas isoladas e situadas a grande distância umas das
As diversas regiões da América meridional despidas de florestas outras; nelas se cultivam milho e outros vegetais; a criação do gado,
só se assemelham entre si pela natureza animada, e se distinguem sobre- porém, constitui o principal ramo da indústria, embora a quantidade
tudo das estepes do Velho Mundo porque os seus habitantes primiti- de gado cornígero dessas paragens não seja de modo algum comparável
vos, no tempo da descoberta européia, se achavam no mais baixo grau à que se encontra nos lhanos•. As vacas só dão pouco leite, devido
de civilização, vivendo exclusivamente da caça, ao passo que os do à secura das pastagens, de sorte que tivemos grande dificuldade em
Velho Mundo eram nômades, estado êsse que de forma alguma exis- obter por dinheiro essa bebida, que os alemães tanto apreciam. Cria-se
tiu na América. aqui grande quantidade de cavalos, e os habitantes só saem de suas
. Partindo da fazenda da Ilha, cheguei, ao cabo de uma légua e casas a cavalo; é muito raro ver alguém andando a pé. Os vaqueiros
me1a de marcha, ao quartel Geral do Valo, nos limites da capitania geralmente se vestem de couro. As mulheres usam chapéus de fêltro
de Minas Gerais, atravessando planícies cobertas de capim alto e pretos e estão tão habituadas quanto os homens a andar a cavalo.
sêco, onde se avistam, aqui e ali, árvores isoladas, que o vento con- Para tornar bem macios os couros de veado, são êles esfregados com
serva muito baixas, e capoeiras esparsas. Observei vários pássaros miolos de boi, depois de curtidos; os selvagens da América do Norte
novos, . entre outros o papa-môscas de cauda comprida e bifurcada empregam o mesmo processo para preparar as peles de animais. Julga-
(Mus,ctcapa tyrannus Linn.) 597, que voa desajeitadamente por causa se no sertão que as peles assim preparadas são muito macias, mas
de suas longas e incômodas rectrizes, e outras espécies do mesmo afirma-se que não duram mais de um ano, e, para torná-las mais
gênero. duráveis, esfregam-nas com sebo e em seguida com miolos.
Sob a claridade dos relâmpagos, alcancei o Valo, pequenina casa de O comércio entre Minas e Bahia se faz aqui por diferentes caminhos.
barro, habitada por um furriel e dois soldados, que o alferes coman- Grandes tropas de sessenta a oitenta burros, ou mais, vão e vêm sem
dante do pôsto do Arraial do Rio Pardo envia para aí. São encarre- parar transportando mercadorias, principalmente sal, que falta em
gados, para evitar o contrabando, de revistar todos os viajantes que Minas. Descarregam-se os burros em Valo para serem revistados, depois
chegam e partem, e, presentemente, de trocar as moedas espanholas segue-se comumente pela estrada ao longo do rio Gavião. E' espetáculo
(cruzados) por portuguêsas, operação lucrativa para o govêrno. Se interessante o de uma dessas tropas, aliás características dos campos
be~ 9ue essa casa nem mesmo da chuva nos tenha podido abrigar, gerais e representadas na vinheta do 7. 0 capítulo dêste volume. Sete
deod1 passar algum tempo nela, para poder conhecer os campos gerais. burros formam um lote, devendo ser conduzidos, carregados e alimen-
Estava-se no fim da estação das chuvas, quando me instalei nesse tados por um homem. O primeiro animal da tropa tem arreios pintados
local; a sêca já era bastante considerável e acompanhada de muito e guarnecidos de numerosos guizos. O encarregado da tropa vai a cavalo,
vento; sofriam-se alternadamente tempestades violentas e pequenas na frente, com alguns de seus companheiros ou ajudantes; todos vão
chuvas. A temperatura era rude, fria e desagradável para nós, que armados de compridas espadas e vestidos de botas de couro castanho,
durante a nossa estada na costa nos havíamos acostumado a um que sobem até muito em cima; à cabeça um chapéu de fêltro cin-
clima inteiramente diferente. De manhã, em tempo de nevoeiro, o zento claro. Essas tropas interrompem às vêzes a triste uniformidade
termômetro Réaumur se mantinha a 14 graus; com tempo sêco, dêsses campos.
acompa~hados de poucos raios de sol, ou num tempo coberto e ventoso, Encontram-se poucas criaturas humanas nessas paragens; em
o termometro marcava ao meio-dia 19 graus e meio. Essa tempe- compensação, a grande quantidade de animais selvagens e de plantas
ratura, e a ausência total de mosquitos, lembravam muito a nossa pátria. faz bem depressa esquecer os seus rudes habitantes. A natureza dêsses
Obrigou-nos outrossim a mudar de vestimenta. Reconhecemos tam- campos gerais difere tanto da dos campos da região inferior da costa
que o naturalista muito tem com que se ocupar quando dispõe de tempo
(*) V oyaues aux ?'égions équinoxiales du nouveau continent, tomo li, pág. 153. necessário para tanto. Mui tas dessas curiosidades histórico-naturais, por
se acharem dispersas, só ocasionalmente e pouco a pouco podem ser
. (597). !tfuscivora tyrannus (Linn.), vulgarmente " tesoura" ou " tesoureira ". No encontradas, nenhum auxílio devendo esperar-se dos vaqueiros, homens
Brastl .t_!lendwnal só a~a re~e com o vt;rão, emigra ndo no inverno, provàvelmente pa ra
a s. regwes oeste-~etentrwnats da _ Amértca do Sul. Em Outubro vi grandes bandos
mtgratónos e alttvolantes na reglao de Chapada (Mato Grosso), em marcha para leste. (*) ALEX. von H uMBOLDT, Voyag e au Not~~;eau Continent, etc., t. li , cap. 17.
408 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 409

agrestes, indolentes e exclusivamente ocupados de cuidar de seus animais. colocam sôbre os ferimentos. E' difícil que os nossos caçadores da
E' até a muito custo que se consegue, mediante boa paga, que êles cacem Alemanha tenham observado uma inteligência tão marcada, ou um
para nós. Isentos de qualquer pretensão ao título de homens instruí- instinto tão atilado nos animais selvagens. O guará, ou "lôbo"•aoo,
dos, consideram o estudo da história natural e os trabalhos que a acom- habita, juntamente com os veados, essas regiões descampadas. Parece ser
panham como uma ocupação tôla e pueril. Nada aqui se obtém a não comum em tôdas as zonas da América Meridional desprovidas de matas.
ser o que se consegue pegar, ou caçar; daí a razão por que os meus Eis por que Cuvier reconheceu nêle, com razão, o Canis mexicanus.
caçadores estavam constantemente ocupados. Todavia, seria talvez mais conveniente tirar-lhe o nome do hábito de
O número dos quadrúpedes é aqui menos considerável do que nas viver nos campos, que o caracteriza, perfeitamente. Foi também deno-
florestas das regiões mais baixas. Todavia, encontra-se em Minas Gerais minado Ursus cancrivorus, mas nada tem de comum com os ursos 601 ;
uma espécie de veado que se chama "veado-campeiro"*598; é provà- tal denominação convém melhor ao Lotar ou Procyon da América Me-
velmente o Cervus mexicanus dos naturalistas, que se torna tão grande ridional, que, nas vizinhanças da costa oriental, habita os manguezais,
quanto o nosso cabrito montês; seus chifres têm três ramificações, têm e é conhecido pelo nome de "guaxinim". O guará, ou lôbo vermelho,
cauda, e o pêlo é pardo-avermelhado. ~sses animais preferem a planície não é raro no Valo, e mais comum ainda se vai tornando à medida que
nua às florestas e fogem dando saltos prodigiosos, quando pressentem o a gente se aproxima de Minas. Todos os habitantes me asseguraram
inimigo. São muito difíceis de atirar, sendo preciso, sobretudo, atentar que êle nunca ataca os animais vivos.
para donde sopra o vento, se se deseja sair bem sucedido no tiro. As florestas e os cerrados, sobretudo nos vales, são habitados
Aproveita-se tanto a carne como o couro dêsse animal. pelo guariba prêto (Mycetes), que corresponde provàvelmente ao "Ca-
Se se penetra mais no campo até às cabeceiras do rio São Francisco, raya" de Azara 6 0 2, e é uma raridade peculiar a esta região. O macho tem
ir-se-á encontrar, principalmente na Serra da Canastra e nas grandes o pêlo negro carregado e muito longo; a fêmea, ao contrário, é cinzento-
florestas de outras regiões, a grande espécie de veado, cada um de cujos amarelado pálido, diferença notável, que raramente se observa entre
chifres tem cinco pontas, ou mais, e que aqui se chama "veado os macacos. Costuma-se caçar ativamente os machos, por causa de
galheiro", ou "suçuapara"590; é idêntico provàvelmente ao "guazu- seu belo pêlo negro, que serve de coberta para as selas, e daí a razão
pucu" de Azara. O veado mateiro e o catingueiro•• vivem nas florestas de a fêmea ser muito mais comum. Essa espécie parece distinguir-se
dos vales; quer um quer outro se caçam com cães e são aproveitados de Mycetes belzebul principalmente pela diferença de coloração dos dois
da mesma forma que as outras espécies. Conta-se que o veado grande, sexos, pois nesta última ambos os sexos são pardo-escuros. ~sses ma-
fato que todavia não testemunhei, quando se vê ferido precipita-se cacos, vivendo apenas nas caatingas, não podem ser considerados
s~bre os caçadores, tal como fazem os veados da Europa, quando estão no propriamente animais de campo, título que, em compensação, cabe com
cw. Entretanto não se vê, aqui, nos do Brasil, o grau de inteligência que todo direito ao papa-formigas grande (Myrmecophaga jubata Linn.),
atribui aos veados da Europa uma obra recentemente publicada•**;
afirma-se ali que êsses, quando feridos, sabem achar ervas curativas que (*) "Aguara-Guazu ", de Azara.

(600) Chrysocyon brachyurus (Illiger, 1811). da atual nomenclatura. Corresponde


(*) O "Guazuti" de Azara. O "matacani" que Humboldt viu nos lh a nos de ao Canis jubatus Desmarest, e vem descrito em Beitruge (li, pãg. 884) com o nome de
Calabozo pertence sem dúvida também a essa espécie. Azara fala ele uma variedade Canis campestris. E' animal de avantajado porte, muito alto de pernas, de vida antes
branca dêsse veado. solitária, e que nem de longe tem a ferocidade do seu homônimo do Velho Mundo.
(**) Guazupita e Guazupira de Azara. (601) Parece-me bastante singular a alegação de que se tenha atribuido ao "guarA"
o nome de Ursus cancrivorus Illiger; não encontro, pelo menos, nenhuma explicação para
(***) Vide EscHWEGE, Journal von Brasilien, parte I, pãg. 202, em nota.
ela. Todos os autores. inclusive o próprio Wied. nos seus Beitruoe (vol. 11. pág. 301),
reconhecem pertencer tal nome ao "guaxinim " (Procyon cancrivorus (Ill .), na nomencla-
(598) Ozotoceros bezoa~·ticus (Linn)., (1766), vulgarmente "veado campeiro", "veado tura atual), mais conhecido no sul do Brasil por "cachorro do mato de mão pelada",
branco", etc., ao qual a generalidade dos autores julga corresponder o Cervus campestris ou simplesmente "mão pelada ".
de Fr. Cuvler. Odocoileus mexicanus (Gmelin) é espécie norte-americana, de que temos (602) Alouatta caraya (Humboldt), vulgarmente "bugio prêto " (nome que só
nos banhados do extremo norte do Brasil uma multo afim, Odocoileus gymnotis (Wiegmann). caberia aos machos porque as fêmeas são pardo-amareladas), ocorre nas matas do Brasil
~od~r.namente, bA tendência para considerar êste último simples subespécie de Odocoileus centro-meridional, inclusive nos sertões de São Paulo, Minas e Bahia. Foi de fato descrito
v~rgm':?nus (Bodd.), tal como também o é Cervus mexicanus Gmelin. Miranda Ribeiro primeiramente no Paraguai por Azara, com o nome indigena de "caraya ", que vem a
vm nele o C. campestris Cuv. e propôs chamá-lo Odocoileus suaçuapara (Kerr.). ser o mesmo que "carajá", aplicado a certa tribo do alto Rio Araguaia. Sintia caraya
, (509) A apli~ação ~o nome "suçuapara" (escrito também "suaçuapara", "çuguassu- Humbolclt (1811) baseia-se exclusivamente na descrição de Azara e é o primeiro nome
para •• etc.), tem Sido. ObJeto de cerrada discussão, que não caberia pormenorizar nesta científico aplicado à espécie, que veio ulteriormente a receber diversas denominações tais
emergencla. Pelo depOimento de Wied, parece fora de dúvida que êle também se usava como Stentor niger Et. Geoffr. (1812) e Mycetes barbatus Spix (1828). Nas matas costeiras
para o gr~nde veado. galhelro dos banhados do Brasil centro-ocidental (Blastocerus dicho- d? Brasil este-meridional vive outro bugio, Alouatta fusca (E. Geoffr.). já vArias vêzes refe·
~fmus (IIIIger)l; m:'IS co~hecido hoje por "cervo ", Em Marcgrave, todavia, o nome rido por Wied (cf. pãg. 48, nota 1 e pág. 118, nota 3) e objeto também de estudo nestes
cagu~çu-apara al!hcar;se-Ia, segundo Miranda Ribeiro, ao veado dos banhados amazônicos, comentários (cf. a nota 104).
Odocoileus gyn_motts W1egm., donde. grandes divergências na nomenclatura dêste último O nome genérico dos "guaribas" (" guariba" se usa em todo o norte, de preferência
(cf. Mlr. Ribeiro, Rev. Museu Paulista, XI, págs. 213 e ss.) . "Guazupucu ", descrito no a "bugio"), por direito de prioridade, é Alouatta Lacépêde, 1800; são-lhe sinônimos Mycetes
Paraguai por Azara, é o nosso "cervo". Illiger, 1811 e Stentor Et. Geoffr., 18 12 .
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chamado pelos brasileiros "tamanduá bandeira" ou "tamanduá Encontrei no seu estômago pequenos côcos e outros frutos muito duros,
cavalo"6oa, que é extraordinàriamente abundante. A grande quan- muitas espécies de ervas, restos de cobras, gafanhotos (Gryllus) e outros
tidade de ninhos de térmitas, por tôda parte tão profusamente espalhados insetos. A carne da ema tem gôsto um tanto desagradável, e não se
no campo, sob a forma de montículos achatados, e distantes apenas uns come. Dizem que engorda muito os cachorros. Com sua pele curtida e
dos outros dez a vinte passos, fornece a êsse animal farta alimentação; tingida de prêto, fabricam-se perneiras nas quais ainda se pode ver o
êle cava naqueles ninho~. com suas unhas compridas e recurvadas, lugar das penas. Fazem-se bôlsas para dinheiro com a pele comprida
buracos de que depois as pequenas corujas se servem para fazer o do pescoço; os ovos, cortados pelo meio, serve'm de cabaça ou de tigela,
ninho6o 4 • e as penas de leque.
Dentre os novos produtos da natureza que tive aqui oportunidade A seriema (Dicholophus cristatus, Illiger)• 60 6, outra ave muito
de encontrar, o avestruz da América, ou ema (Rhea americana)605, veloz na carreira, é a companheira constante da ema nos campos gerais.
foi para mim dos mais interessantes. Essa ave, a maior das do Novo Ouvíamos de todos os lados a sua voz altissonante, que é constituída
Mundo, prova ser muito comum nos campos gerais, onde entretanto é de várias notas repetidas com pequeno intervalo umas das outras,
raramente caçada. Uma fêmea, com quatorze filhotes, que tinham nas- desde a mais alta até à mais baixa. Víamos muitas vêzes essa cautelosa
cido seis meses antes, vivia tranqüilamente nos arredores de Valo. Nin- criatura passear aos pares, como os perus, mas nunca conseguimos matá-
guém a havia inquietado, até que chegássemos nós, europeus ávidos, para la. Tentei durante muito tempo, sem resultado, caçá-la a tiros, até que
logo lhe perturbar o sossêgo e atentar contra a sua vida. Como essa ave um dia um lavrador do lugar, que se achava montado num cavalo muito
é muito desconfiada e precavida, descobrindo de longe os caçadores, corredor, encontrando-me e sabendo quanto era vivo o meu desejo de
é preciso muita precaução e trabalho para agarrá-la. Na corrida, ela obter uma dessas aves, prometeu-me fazer com que eu visse como se
cansa qualquer cavalo, porque não foge em reta, mas fazendo voltas deve proceder para apanhá-las. Seguiu então pelo capinzal sêco até
incessantes. Quando a ema, com seus quatorze filhotes que já haviam o ponto em que se ouvia a voz das seriemas, e logo que as avistou pôs o
atingido mais da metade do crescimento, apareceu pela primeira vez, cavalo a todo galope. Perseguiu assim, sem descanso, uma delas, pelas co-
depois de a havermos esperado baldadamente muitos dias, três dos meus linas suaves e dilatadas planícies, empenhando-se sobretudo em impedir
caçadores se puseram logo de emboscada. As emas foram enxotadas na que a ave, que corria velozmente, entrasse pelo mato. Da nossa casa, se-
direção em que estavam os caçadores, mas foram tão espertas que não guíamos com os olhos impacientes o vaqueiro, galopando sem parar, até
se deixaram enganar. O acaso trouxe então um vaqueiro a cavalo, bem que o animal se cansasse. A ave levantou vôo uns trezentos passos adi-
armado, que logo se decidiu a pegá-las. Começou por seguir lentamente ante; mas as suas asas fracas em breve lhe recusaram serviço, e o caçador
o bando, depois correu a todo galope, e, após diversas tentativas, con- pôs a mão então em sua prêsa. Nessas acasiões, a ave ou se empoleira
seguiu matar um dos filhotes, saltando prontamente do cavalo. Um numa árvore pouco alta, ou se deita no chão; no primeiro caso, dá-se-lhe
tiro bem certeiro de chumbo grosso abateu a ave maior. Renovamos um tiro, no segundo apanha-se viva. Por fim, o nosso vaqueiro desceu
várias vêzes êsse gênero de caçada, e um dos meus caçadores, em direção do cavalo e, com grande alegria nossa, conseguiu trazer viva uma bela
ao qual se enxotaram três emas, conseguiu matar uma ave adulta. Era seriema.
uma fêmea completamente desenvolvida, medindo quatro pés e cinco Essa ave tão interessante, cuja melhor figura, embora não perfeita,
polegadas de comprimento desde a ponta do bico até a extremidade da se encontra no tomo XIII dos "Annales du Museum d'Histoire Naturelle
cauda, e sete pés de envergadura; pesava cinqüenta e seis libras e meia.
(*) Palamedea cristata Llnn., Cariama, Marcgrave, pág. 81. Azara parece haver
descrito um individuo jovem, pela côr que atribui à Iris e ao bico: pois aquela, nos
(603) Myrrnecophaga tridactyla Linn. Cf. a nota 318, dêstes comentários. indivlduos velhos, é sempre branco-pérola, e êste vermelho-cinábrio.
(604) Refere-se Wied à "coruja buraqueira", Speotyto cttnicularia grallaria (Temm.),
d e que já houve antes alusão. (606) Cat·iama cristata (Linn.). Esta interessantissima ave, sôbre que tanto se
. (605) Duas raças distinguem-se seguramente entre as "emas" do Brasil: Rhea tem escrito, foi objeto de exaustivo estudo por parte do falecido Prof. Allpio de Miranda
amer.ct:~:na americana Linn., do nordeste (norte da Bahia, Pernambuco, Ceará, etc.), e (cf. Re1J. Museu Paulista, XXIII, págs. 37-162, com figs.). O notável zoólogo patrlcio
R. a. mtermedta Rothschild & Chubb, do Brasil meridional (São Paulo, Minas, Goiás, conclui pela existência em Cariama cristata de nada menos de quatro raças geográficas,
ll~to Grosso) .. ~ma terceira raça, peculiar ao Prata, R. a albescens Arribalzaga & Holmberg a que denomina cristata, leucotimbria, schistofimbria e azarae.
<-R_. rothscht!d• Brab. & Chubb), ocorrerá a inda provàvelmente nas zonas limítrofes do Ainda hoje a seriema é muito comum nas vastas planícies descampadas do interior.
Brasil oeste-ocidental (sudoeste de Mato Grosso). A ema é uma ave poligama; tem-se Viajando de automóvel é comum surpreenderem-se casais de seriemas, que se põem
como certo qu!' tôdas_ as fêmeas de um bando põem num mesmo ninho, ocupando-se depois a correr, fugindo à aproximação do veiculo, enquanto que para isso lhe sobrem fôrças,
o macho da _mcubaçao dos ovos, cujo número a tinge por vêzes algumas dezenas. Há, sem jamais atinarem com o meio mais fácil de escapar-lhe, desviando para a direita ou
a., êste propósitO, no folclore nordestino, interessante estrofe, coligida por Gustavo Barroso para a esquerda da estrada. Uma vez prestes a serem alcançadas, erguem o vôo em
( Terra de Sol") : supremo esfôrço, para galgar a primeira árvore, tal como no-lo descreve o príncipe.
Quantos ovos põe a ema? Nessas ocasiões acontece-lhes por vêzes serem atacadas pelos grandes gaviões, que
A ema nunca põe só, espreitam empoleirados à beira dos caminhos, e não temem travar luta com a grande
Põe a mãe e põe a filha, prêsa enfraquecida. Fato desta ordem observei com grande espanto, viajando de Chapada
Põe a neta e põe a vó. para Campo Grande, faz alguns anos.

t
412 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 413

de Paris"oor, parece ser para a América o que o secretário (Gipoge- melho-amarelado•, cujo ninho é artisticamente construído de barro e
ranus africanus) é para a África. As duas se parecem muito na forma que, por essa razão, os brasileiros chamam de "joão-de-barro"612 ; o
e no modo de vida. A seriema se distingue por uma crista de penas tentilhão de topête pontudo e prêto•• 613 e a coruja do campo••u 14 ,
estreitas, e alongadas, erguida sôbre o nariz; tem o pescoço coberto que faz o ninho em terra, nas casas das térmitas. O tucano grande, cujo
de longas e belas penas, que ela eriça à moda do nosso alcaravão (Ardea
frente da cabeça, cada qual formado de 6 penas maiores, colocadas umas em frente
~tellaris Linn.); o bico é côr de carmim. As suas asas são curtas e fracas, às outras; a sua ponta é verde dourado, o meio dourado, e a raiz vermelho de cobre.
mas as pernas compridas se adaptam da melhor maneira possível à Descrevi êsse novo colibri um tanto minuciosamente por ser extremamente lindo.
(Suplem.). Quando essa última parte da relação de minha viagem estava no prelo,
corrida. A carne, cujo gôsto parece com o da galinha, é muito pro- o Sr. Temminck mandou desenhar êsse colibri em seu "Nouveau Recuell de planches
curada; mas não é por isso que a caçam. Os meus caçadores, que coloriées d'oiseaux" e denominou-o Trochilus bilophus. Fui eu que lhe dei um exemplar
dessa bela espécie, e também o primeiro a encontrá-la nos Campos Gerais.
perseguiam essa ave com particular afã, encontraram, em fins de feve- (***) T•·ochilus petasophorus. Comprimento, 4 polegadas e 10 linhas e meia;
envergadura das asas, 6 polegadas e 8 linhas; bico muito pouco recurvado; cauda
reiro, um ninho dela em cima de uma pequena árvore do campo. Era arredondada, de penas largas e fortes; tôda a plumagem de um belo verde dourado
construído de gravetos, com revestimento de argila, e continha dois brilhante; penas da cauda de ponta azul escuro, com reflexos violetas; garganta verde,
de reflexos de várias tonalidades; parte inferior do pescoço, peito e ventre superior
filhotes. Querendo apanhar o macho e a fêmea adultos, os caçadores verdes, com reflexos azuis; ventre mesclado de um pouco de branco; listras de reflexos
se esconderam nas proximidades da árvore; mas as aves desconfiadas não azuis carregados desde o canto do bico até às orelhas, e depois até à nuca. Atrás da
orelha, tufo de penas largas, arredondadas, t êsas, com lampejos metálicos, e reflexos
se deixaram enganar. brilhantes verde arroxeado; é interrompido na nuca. Uropfgio e porção inferior da
cauda brancos.
Os campos do interior do Brasil possuem ainda muitas outras (*) Turdus fioulus do Museu de Berlim.
espécies interessantes de aves, entre as quais o tucano grande (Ramphas- (**) Fringilla ornata. Comprimento, 4 polegadas e 6 linhas; envergadura das
asas, 6 polegadas e 11 linhas e meia. No alto da cabeça, topête de penas estreitas, de
tos toco Linn.) 608, grande quantidade de beija-flôres (Trochilus), várias mais de 8 linhas de altura, um pouco recurvadas para trás; elas são negras, da mesma
forma que a roda do bico, o mento, o papo, o meio da parte inferior do pescoço,
espécies de Tanagra) afora muitas outras espécies desconhecidas ainda do peito, e da barriga. Lados da cabeça e do peito, branco; lados do pescoço e de
dos naturalistas, como por exemplo a gralha azul de cauda branca•oo9, tôdas as partes superiores, bem como o ventre e o uropfglo, amarelo vermelho pálido;
parte posterior da cabeça e nuca, cinzento esbranquiçado; tôdas as partes superiores,
o beija-flor de chifre+*6lo, o beija-flor de coleira roxa**•sn, o tordo ver- cinzento; coberturas das asas e da cauda, branco, as primeiras misturadas de cinzento
claro; raiz da quarta e da quinta rectriz branca, o que produz uma mancha branca em
cima das asas; metade superior da cauda, branco; as duas penas do meio quase
(*) Corvus cyanoleucus. Comprimento, treze polegadas e cinco linhas; envergadura que inteiramente cinzento pardo; as outras com a metade da ponta preta e uma
das asas, vinte e duas polegadas e quatro linhas. Na fronte, penacho de penas pequena listra preta em cima. Fêmea de coloração uniforme mesclada de cinzento,
delgadas, de nove linhas e meia de comprimento, recurvadas para trás, e bem distintas amarelado e castanho; não tem penacho; cauda branca na raiz.
de tôdas as penas do alto da cabeça. Cabeça e peito pretos; belos reflexos de azul (***) Strix cunicularia, MoLINA, Hist6ria natural do Chile, pág 233. AZARA,
índigo pálido no alto do pescoço e nos flancos; partes inferiores do pescoço, costas, V oyaoes, etc., tomo III, p. 123. Essas corujas são muito comuns nos campos gerais;
baixo das costas, asas e metade superior da cauda do mais belo azul anilado; peito, elas nidificam nos buracos que os tatus e outros animais escavaram nos formigueiros.
tôdas as partes inferiores e extremidade da cauda, brancos de neve. (Suplem.). Molina em sua descrição não se refere às manchas escuras que eu
(**) Trochilus cornutus, um dos ornamentos dêsse lindo gênero. Comprimento do observei no ventre das aves dessa espécie, por mim encontradas no Brasil. Talvez haja
macho, 4 polegadas e 5 linhas; envergadura das asas, 4 polegadas e 5 ou 6 linhas; êle esquecido, na sua descrição muito sucinta, de mencionar êsse caráter. O que é certo
bico reto, com 6 linhas e meia de comprido; cauda longa, estreita, cuneiforme, acuminada; é que a coruja (chouette) que encontrei é a "Urucurea" de Azara.
as duas penas do melo mais compridas de 8 linhas que as mais vizinhas e estas 8
linhas e meia mais compridas que as seguintes. Alto da cabeça e face cobertas de penas (610) H eliactin bilophum (Temminck, 1820 ). Trochilus bilophus Temm., embora
rijas de coloração azul escuro furta-eôr, com 4 linhas de comprimento por cima de baseado em exemplares remetidos por Wied, invalida, por precedência de um ano, Tr.
cada ôlho, e formando assim de cada lado da cabeça um penacho pontudo de reflexos cornutus Wied, 182 1. Espécie encontradiça nos campos do Brasil central (Goiás, Minas
violeta, vermelho de fogo e verde; parte restante do alto da cabeça azul escuro, com e Mato-Grosso).
reflexos verde azul, azul celeste e ultramar; mento, garganta, lados da cabeça até as (611) Belo beija-flor cuja primeira descrição se deve a Vielllot (1816), que o
orelhas, azul prêto carregado, mas coberto de penas não frisadas, que no meio da denominou Trochilus serrirostris. Em 1840 , G. R. Gray fê-lo tipo do gênero Petasophora,
garganta têm quase 6 polegadas de comprimento e formam ai uma barba pontuda com o que seria perpetuado o expressivo nome proposto por Wied, não fôsse o fato de
caindo sôbre as penas brancas de leite da parte Inferior do pescoço, cuja coloração realça
a tonalidade. Tôda a porção inferior do pescoço e tôdas as partes inferiores e a
ser êle precedido por Colibri Spix (1824), de idêntica acepção (Colibri crispus Spix
Tr. serrirostris Vieillot). Colibri serrirostris existe no norte da Argentina e em todo
=
C,!'Uda, brancas de leite; flancos do peito verde de cobre; parte posterior da cabeça e Brasil central e este-meridional (do Paraná à Bahia).
~ôdas as partes superiores verde de cobre brilhante, da mesma forma que as rectrlzes (612) Furnarius fioulus fioulus (Lichtenstein, 1823). E' o "joão-de-barro" comum
mternas e externas, e as duas longas penas do meio da cauda. Os dois penachos da nos Estados do Nordeste, onde é conhecido por a pelações várias, tais como "amassa-
barro" (Recôncavo da Bahia) . "maria de barro" (Ceará), "casaco de couro'' (Pernambuco),
(607) Em dias recentes, deu-me Affonso Taunay, o historiador emérito a quem etc. Não deve ser esta, todavia, a espécie de que se ocupa o autor nessa passagem;
deve o Museu Paulista longos anos de profícua administração, o prazer de admirar pois a ocorrência do pássaro nos confins da Bahia e Minas não só iria de encontro ao
um desenho da seriema, feito do natural pelo celebrado artista Amado Adriano Taunay, que se sabe hoj e de sua distribuição, como ao próprio autor no vol. IH das Beitraoe
cujo trágico fim nas águas do Rio Guaporé está decerto na lembrança dos estudiosos (p. 670), onde, ao descrevê-la sob o impróprio nome de Opetiorhynchus rujus, informa-nos
de nosso passado (v. Visconde de Taunay, A Cidade do ouro e da ruínas, Comp. Melhora- só havê-la encontrado no Recôncavo e vizinhanças (Nazareth, Rio Jequiriça). O pássaro
mentos de São Paulo, 2.• ed., pp. 22 e ss.). em questão outro não pode ser senão o comum "joão-de-barro " de São Paulo e Minas
. (608) O " tu<;anuçu", de enorme bico côr de laranja é tão comum em Mato Grosso (Furnarius rufus badius (Licht .) ), cuja distribuição alcança o norte da Bahia (Juàzeiro) .
e Go1ás, ao contráno das outras espécies do gênero, freqUenta também regiões descobertas, Como pedreiro, F. fioulus não tem os méritos do verdadeiro "joão-de-barro ", pois
parecendo preferir os cerrados às matas propriamente ditas. Cf. Oliv. Pinto, Rev. na construção dos ninhos associa largamente na argamassa de argila pedaços de pau,
Museu Paulista, XX, pág. 72. gravetos, etc., aproveitando freqUentemente ocos de á rvores e buracos naturais (teste
(609) Uroleuca cristatella (Temmlnck). Embora tenha sido o nosso príncipe, de Dias da Rocha) .
f~;Lto,o descobridor da ave, o nome que lhe propusera, Corvus cyanoleucus, já tinha (613) Charistospiza eucosma Oberholser, 1905 (nome para Fringilla ornata,
s1do ocupado por Latham (1801) para uma espécie européia. Peculiar ao planalto centro- Wied, prejudicado por um homônimo, anterior em data). E' um pequeno passarinho
brasileiro. peculiar aos campos do Brasil central, desde o oeste de São Paulo ao sul do Maranhão.
414 VIAGEM AO BRASIL DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 415

bico vermelho e colossal os mineiros muitas vêzes empregam para fazer Tendo passado muitos dias nas fronteiras de Minas Gerais, uma
polvarinhos, se encontra principalmente nos lugares onde há plantações indisposição devida ao clima, e que poderia se ter agravado se eu hou-
de goiabeiras (Psidium pyriferum) ao pé das casas; é, porém, muito vesse descuidado, obrigou-me a renunciar ao projeto de penetrar
difícil lhe atirar. nessa província. Incômodos insignificantes, principalmente feridas, e
Encontrei, em Valo, um suboficial (furriel) regularmente instruído, mesmo doenças da pele, tomam fàcilmente um mau caráter neste clima
que me forneceu muitas particularidades sôbre a sua terra natal. quente, si delas descuramos. Vários moradores da região, que haviam
Era um dos dois soldados que acompanharam Mawe na sua viagem trabalhado na abertura da estrada através da mata, desde Ilhéus, trazem
a Tejuco. Em sua exclusiva companhia, passei oito dias no Valo, ainda marcas e cicatrizes de feridas rebeldes, ou de doenças da pele,
com um tempo mau e desagradável, após o qual o céu logo clareou, que em parte sararam lentamente, algumas até apresentando ainda
o termômetro subiu muito, e o calor se tornou muito forte. Ao meio-dia, chagas abertas desde dois anos. A má alimentação, que se compõe,
o termômetro Réaumur ao sol elevou-se em poucos minutos a 30 graus em parte, de carne sêca, não contribui pouco para corromper os hu-
e meio, e, à sombra numa casa aberta e exposta ao vento, manteve-se a mores, efeito êsse que se manifesta em úlceras malignas•6 1s. Dizem
20 graus 615 . O calor era tanto mais desagradável quanto a ausência também que a mistura de raças diferentes, neste país, onde a população
total de florestas e árvores obrigava-nos a ficar todo o dia fora, sem se compõe de brancos, vermelhos e negros, gerou várias doenças até
abrigo contra os raios do sol. Em poucos dias o capim e as outras então desconhecidas••.
plantas ficaram como que queimados, e os burros sem o que comer. Quero aproveitar a oportunidade de dizer algumas palavras sôbre
As emas, que até aqui, em virtude do mau tempo, pouco se tinham o clima dos campos gerais, expondo, a seguir, tudo quanto sabemos
mostrado, apareciam agora em abundância, quer adultas, quer jovens; a seu respeito.
obtive assim um terceiro espécime, tão pesado que um homem, Se bem que várias doenças tornem os países quentes perigosos,
sozinho, não podia carregar. Seu preparo, para a coleção, ocupou sobretudo para os estrangeiros, várias outras há peculiares às zonas
tôda a minha gente um dia inteiro. temperadas e frias, de que aí se sofre muito menos; entre essas são
As nossas excursões botânicas forneceram-nos também colheita de notar as doenças de peito, a gôta e outras semelhantes. O Brasil,
bastante considerável. Encontramos várias plantas novas, entre outras estendendo-se do equador até 35° de latitude sul, tem uma tempe-
lindas mimosas muito baixas, ornadas de pendões de flôres róseas e ratura muito variada. A porção dêle que é descrita no relatório da
brancas, e uma outra de flôres escarlates•. Mas vi frustrada minha minha viagem, é muito mais favorecida do que as outras, no que res-
esperança de encontrar a única árvore elo Brasil que se assemelha ao peita ao clima e ao solo. Ela pode, de modo geral, ser tida como fértil,
pinheiro europeu, a Araucaria, que se encontra em Minas Gerais, e em pois, na maioria das províncias, o calor e a umidade se acham associados
outras partes altas do interior do país••616. Os arbustos floridos do em proporções convenientes. As terras altas são as únicas que sofrem
campo eram, como ficou dito, rodeados por inúmeros beija-flôres. Acre- de falta de água na época da sêca; pois, embora o orvalho possa, até
ditava-se que essas criaturinhas só se alimentavam do mel das flôres; mas certo ponto, compensar essa falta, não há meio de evitar, nessas regiões,
já o Dr. Brandes, tradutor da História Natural do Chile, de Molina, as sêcas que matam grande parte do gado. Durante a metade do ano
encontrou restos ele insetos em seu estômago, o que eleve estar de acôrdo em que não caem chuvas, o solo se fende com o calor e a secura, sendo
com os fatosG17. até muito pequeno o alívio sentido de manhã e à tarde, pois que a
(*) (Suplem.). Nees von Esenbeck denominou essa planta Acácia asplenioides:
inermiB, foliis bipinnatiB, partialibtts bi-trijugiB, 12, 15 jugis, sessilibtts, petiolo communi
(*) SoUTHEY, HiBtory of Brazil, tomo I, pág. 288; e Ptso, Das Doenças.
trsttto, globosis peduculatis, tenninabilus, corymbosis. (**) SoUTHEY, pág. 327.
(**) MAWE, Tl·avels, etc., pág. 275.
(618) Não podemos censurar o autor por motivo das idéias que professava sôbre
(614) Speotyto cunicularia orallaria (Temminck), vulgarmente "coruja buraqueira", a etiologia das moléstias, por mais que elas hoje nos pareçam extravagantes. Basta
já anteriormente mencionada. lembrar que o conhecimento dos microrganismos patógenos data apenas do final do
(615) Convertidos à escala centfgrada, temos, respectivamente 37°,50 e 25•. século passado. As úlceras atônicas de que faz aqui menção o nosso viajante não teriam
. (616) O pinheiro do Brasil, dito do Paraná, Araucaria auoustifolia (Bertol.) dos tôdas por certo a mesma origem; mas, na sua generalidade é provável que pertencessem
botân!cos. formava primitivamente bosques intermináveis estendidos a partir do sudeste à entidade nosográfica conhecida por "úlcera tropical" ou "úlcera fagedênica ", ocasionada
de. Mmas . Gerais até às fronteiras do Rio Grande do Sul e o Paraguai. constituindo a pela presença de uma bactéria e um espirilo, em vida simbiótica. O povo chama a
umdade f1togeográfica chamada por J. Sampaio "Zona dos Pinhais", ou "Araucarilândia" estas úlceras de "ferida brava " e não as distingue da chamada "úlcera de Bauru",
de Fr. Hoebne. O fruto da auracária é comumente encontrado à venda em São Paulo, que é produzida por agente totalmente diverso, a L eiBhmania brasiliensis Gaspar Vianna.
com o nome de upinhão". Martius, que era médico, ocupara-se largamente de medicina na longa narrativa
(617) Não há mais dúvida de qne os beija-flôres pratiquem uma alimentação mista, de sua célebre viagem naturallstica em companhia de Spix. As observações que coligira
em que entram largamente. senão de modo predominante pequenos insetos (que muita vez sôbre o tema foram ao depois compendiadas num livro de que, sob o titulo Natureza,
vêm b~sc~r na própria teia das aranhas), ao lado das' secreções açucaradas das flôres. Doenças, Medicina e Remédios dos lndios Brasileiros, publicara a Cia. Editora Nac~on!ll
Em cahve1ro consegue-se mantê-los por tempo variável com mel e xarope, vindo a propósito uma tradução brasileira, enriquecida de preciosos comentários e notas do Prof. Ptra)á
registrar a rara habilidade adquirida nesse mister por um distinto observador, o Sr. da Silva.
Augusto Ruscbi, administrador do parque florestal de Santa Teresa (no Estado do
Espírito Santo), pertencente ao Museu Nacional.
416 VIAGEM AO BRASIL

passagem do dia para a noite e da noite para o dia, entre nós tão agra-
dável pela sua frescura, aqui se dá demasiado depressa, sendo o dia
e a noite de duração quase igual; há noites longas que começam ordi-
nàriamente pouco depois das sete horas.
Nas regiões baixas e planas, ao longo da costa do Brasil, a estação
da sêca é mais agradável porque o ar, as águas e as altas florestas
refrescam a atmosfera, e, nos meses frios, a temperatura continua a
ser muito suave. Não cai geada nessa região; nunca vi o termômetro
descer aí abaixo de 13 graus Réaumur e, na estação quente, nunca, à
sombra, observei temperatura muito acima de 30 graus 61 9. O que
faz para todo o ano uma temperatura igual e deliciosa, que na estação
fria se assemelha um tanto à das nossas belas primaveras, sendo também
a época das flôres e dos frutos.
Não é na estação fria, mas na época do calor e da sêca mais fortes,
que as mais violentas tempestades sobrevêm; a terra, então, alterada,
é umedecida· e reanimada por chuvas extremamente fecundas. Depois
de algumas semanas de alternativas de chuvas abundantes e fortes
calores, as plantas ressequidas do campo ou das regiões altas e descam-
padas crescem a vista d'olhos, e mesmo nas províncias inferiores, cobertas
de matas, uma vida nova e mais ativa se manifesta no reino vegetal.
Chove comumente durante os meses de fevereiro, março, abril e maio,
e dá-se o nome de estação fria aos meses de junho, julho, agôsto e setem-
bro, sendo durante os meses de outubro, novembro, dezembro e janeiro
que reina o maior calor. Aliás, essas estações diferem conforme a pro-
víncia, conforme sejam elas mais setentrionais ou mais meridionais.
Em certos anos viu-se a chuva cair apenas durante seis semanas, outras
vêzes durante um maior período de tempo, mas engana-se quem pensar
que, durante todo êsse tempo, a chuva cai todos os dias, sem parar.
Faz-se geralmente na Europa idéia bastante inexata dêsses longín-
quos países. Pode-se atribuir êsse êrro a certos viajantes, que não se
limitaram a tratar somente do que viram, e a escritores que fizeram
descrições de regiões em que nunca puseram os pés. Essas descrições,
escritas nos gabinetes sôbre tema escolhido, com a citação do que
parece mais interessante nos autores conhecidos, ao sabor da fantasia
e sem conhecimentos dos fatos, podem agradar pelo primor do estilo e a
forma atraente com que são apresentadas, mas não possuem nenhum
valor real, repletas que são de erros. Como evitar os erros e as inexa-
tidões, quando não se tem presente, aos olhos, o objeto de que se deseja
traçar a imagem? Aplicam-se ao todo traços que só convêm às partes.
Como, por exemplo, se pode supor que tôdas as partes de um país tão
grande como o Brasil se pareçam umas com as outras, quando cada
província apresenta as suas particularidades próprias? Assim é que se
lê em mais de um livro que em todo o Brasil se encontram fetos arbo-

(619) O que equivale a 16• e 37° centigrados, respectivamente.


DE VAREDA AOS CONFINS DE MINAS 417
rescentes; exagera-se em geral a beleza do país, fala-se de macacos que
riem e tagarelam, de pássaros canoros que chilreiam, e de laranjeiras
que crescem nas florestas, de Agav e foetida em cima das árvores; atri-
buem-se às serpentes as propriedades mais absurdas, e fazem-se descrições
exageradas das florestas_ O fato é que raramente se encontram reunidas
tôdas as coisas agradáveis e interessantes, como imagina um autor sen-
tado em sua poltrona, depois de haver tomado suas descrições aos via-
jantes acostumados a representar tudo com exagerada beleza.
VI

VIAGEM DAS FRONTEIRAS DE MINAS GERAIS


AO ARRAIAL DA CONQUISTA

Vareda. - O trabalho dos vaqueiros. - A caça da


onça. - Arraial da Conquista. - Visita aos Camacãs
de Jibóia. - Algumas palavras sôbre essa tribo.

Para ir, do lugar em que nos achávamos, até a capital da Bahia,


tem-se que atravessar todo o sertão da capitania; por isso, tomei o
mesmo caminho por que vim, descendo o curso do Ribeirão da Ressaca,
até Vareda. O calor era exaustivo, e, por isso, procurávamos com empe-
nho a sombra que nos davam as velhas mimosas, de alvos galhos flo-
ridos, e de fôlhas de um belo verde, delicadamente recortadas. Belas
Cassia de cimos arredondados, carregados de flôres amarelo-vivo, per-
fumavam-nos com seu suave aroma. . Achei um jacaré (Crocodilus
sclerops)6 2 0 morto no Ressaca; a presença dêsse réptil nesse local
prova que êle, às vêzes, sobe bem acima no curso dos pequenos ribeiros.
Os ninhos de térmitas eram extremamente numerosos em todos os pontos,
quer descampados, quer cobertos de mata; êles se formam aos poucos
pela adição sucessiva de novas camadas de terra, que acabam por formar
um edifício, que a chuva e os agentes atmosféricos achatam, dando-lhe
a forma deprimida que lhe é própri<;t. Pode-se de algum modo fazer
uma idéia de sua prodigiosa quantidade, levando em conta a extensão
imensa do interior do Brasil e o número dêsses pequenos animais exis·
tente em cada uma dessas habitações, sabendo-se que não se podem
dar vinte passos sem encontrar uma dessas construções. Azara refere-se
a essas térmitas sob a denominação de "cupiy"•62 1 •
(* ) AZARA, V<njages, etc., vol. I, pág. 190.
(620) Sôbre os jacarés da costa orie ntal do Brasil, veja-se a nota inserta na
primeira parte. Segundo Wied (Beitrtige, I, pág. 70), a denominação " ururau " , corrente
em nossos dias, era aplicada ao macho velho na época do cio, em que a garganta se
tinge mai s intensamente de amarelo, ao passo que os indivíduos comuns recebiam a
de "jacaré tinga".
(621) " Cupim", da nossa linguagem vulgar. Aos ninhos denomina o povo "casas
de cupim ".
420 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 421

Chegados, pela segunda vez, à fazenda da Vareda, ocupamo-nos A natureza animada, sempre bela, sempre ativa e variada, faz
por algum tempo em caçar aves palustres, que nos maiores museus aqui sensível contraste com a grande massa dos habitantes, que são tão
da Europa raramente se encontram reunidas na proporção em que rudes e ignorantes como o gado a que emprestam os seus assíduos
são vistas aqui. Os colhereiros côr-de-rosa (Platalea ajaja Linn.), os cuidados, e que constituem o único objetivo de seus pensamentos. Aos
jabirus, os tuiuiús, as curicacas, as seriemas, os carões6 22 e muitas outras vaqueiros, com propriedade poderíamos chamar homens encourados,
vivem aqui em harmonia, e vão, aos bandos, de uma lagoa para outra, pois se vestem de couro da cabeça aos pés. O seu chapéu redondo de
mostrando-se cada espécie, nesse jardim zoológico natural, com os traços couro serve-lhe, em caso de necessidade, de prato e copo de beber;
característicos e originais que lhes imprimiu a natureza. As nossas sua roupa, que às vêzes não tiram longo tempo, protege-lhes o corpo
caçadas, quando tinham por objetivo as seriemas e as curicacas (Tantalus contra os arbustos espinhosos, que enchem os ermos em que são obrigados
albicolis Linn.), nunca eram bem sucedidas; em compensação, eu a passar grande parte da sua monótona existência, guardando e pegando
obtive algumas aves, até então desconhecidas dos naturalistas. gado, conforme já descrevemos, não raro com perigo de vida. Correm
Encontram-se, nas caatingas desta região, duas espécies de papa- riscos quando pegam cavalos, pois obrigam todo o bando a entrar no
gaios; uma é o "papagaio verdadeiro" (Psittacus amazonicus Lath. e curral que existe em tôdas fazendas, feito de moirões muito fortes.
Kuhl) 62 3, procurado principalmente pela facilidade com que aprende Uma vez aí dentro, examinam-se os feridos, amansam-se os potros, etc.
a falar, a assobiar e cantar; a outra é a que denominei Psittacus vina- O curral tem duas divisões, uma para os cavalos e outra para o gado.
ceus•624. Ambas se retiram ao cair da tarde, soltando altos gritos, para Quando se deseja pegar um dos primeiros, o vaqueiro, com o laço
a parte mais alta da floresta, que escolhem para passar a noite. O na mão, avança para o meio do terreiro e faz os cavalos correrem em
caçador, então, não tem mais que esperá-los, ou ir à sua procura, volta dêle. O laço é uma longa corda de couro, tendo na ponta um anel
para ter certeza de alguns tiros felizes. de ferro, pelo qual se faz passar a outra ponta; segura-se o laço bem
O quero-quero (Vanellus cayennensis)6 25 é muito comum em todos aberto com a mão direita e o resto da tira de couro se enrola em voltas
os campos desta região; como a maioria das aves, é muito arisco em regulares, segurando-o com a mão esquerda; o vaqueiro fá-lo girar
relação ao homem; mas é visto a passear tranqüilamente pelo chão, muitas vêzes por sôbre a sua cabeça, e tão hábil, à fôrça do hábito, se
entre o gado que pasta, enquanto o vira-bosta e o caracará branco (Falco tornou no seu manejo que, no meio de cinqüenta ou sessenta cavalos,
crotophagus ou degener)6 26 pousam pacificamente no dorso das vacas. apertados uns contra os outros, êle acerta o laço na cabeça daquele que
A superfície das águas era animada por patos e mergulhões de várias escolheu. Logo que o cavalo se sente prêso, recua para se desembaraçar
espécies, entre as quais duas se distinguem por sua plumagem de belos do laço, mas vários homens caem sôbre êle, agarram-no, garroteiam-no
reflexos, o "areré" (Anas viduata Linn.)••o 27 e uma outra, de cabeça e derrubam-no. Muita vez o cavalo aprisionado se mostra muito indócil,
preta, que Lineu chamou Anas dominica628. empina-se, corcoveia, arranca, salta, escoiceia, etc.; mas o nó corredio,
que tem no pescoço, e que o aperta cada vez mais, impede-o de resistir
(* ) O Dr. Kuhl, a quem enviei a descrição dêsse novo papagaio, publicou-a em seu muito tempo. Não é raro que o animal se fira muito nessas ocasiões,
Compectus psittacorum, pãg. 77.
(** ) Multo bem representada nas Planches enluminées de BuFFoN, n.• 808. E'
tendo-me acontecido ver uma égua cair morta no terreiro; mas a
encontrada também no Senegal, na África, donde foram enviadas para a França exemplares grande quantidade de cavalos disponíveis torna a perda de alguns
absolutamente semelhantes aos do Brasil.
pouco sensível. Logo que o potro é dominado, põe-se-lhe às costas uma
(622) Colhereiros (cf. nota 580), jabirus (576) , tuiuiús (idem), curicacas (nota 579), sela, passa-se-lhe um freio na bôca, e um negrote o monta, mete-lhe
seriemas (nota 606) , carões (v. nota 409 ) . as esporas e chicoteia-o; depois o soltam, e êle começa a correr em
(628) A espécie a que se refere o autor, tanto pelo que nos diz a denominação
vulgar, como muito principalmente pela descrição que dela nos deu (Beitrtige, IV, pâg. ZU) volta do cercado, ou então a empinar e escoicear; mas o vaqueiro
é ';" que atualmente denominamos Amazona aestiva (Linn.). Distingue-se de A . amazonica mantém-se firme, fatigando o animal até que fique coberto de suor e
(Lu~n.), existente talvez na zona, principalmente por ter os encontros das asas vermelhos,
e nao verdes, como o resto. E' a espécie preferida pelos amadores, donde o seu nome ceda, vencido pela fôrça. Os vaqueiros consideram questão de honra
de " papagaio verdadeiro".
(624) Amazona vinacea (Kuhl), espécie descoberta por Wied e hoje aparentemente
domar assim os cavalos mais bravios, e são nisso extremamente h ábeis:
rara. na zona onde foi assinalada pela primeira vez. Abunda ainda nas matas do algumas vêzes perdem a vida, acidente que não afeta muito o proprie-
Brasil este-meridional (Paranã, sul de São Paulo).
tário, seu senhor, pois trata-se apenas de um negro a menos, de que
(625) B elonopterus chilemis lampronotus (Wagler), vulgarmente "quero-quero" (vide
pãg. 45, nota 89) . êle não faz maior caso do que do gado. As bolas• da América espanhola,
·- (626) Müvapo chi machi ma chi machima (Vieill.), vulg. "caracarã branco ", " pinhé",
"gav1ao carrapatetro ", etc.
que se usam nos pampas de Buenos Aires e em tôda a região vizinha,
(627) Dendrocygna viduata (Linn .), vulgarmente "irerê ", "marreca viúva ", etc.;
das mais comuns em quase todo o Brasil. (* ) Vide AzARA, Essai sur l'hist. natur. deB quadr. du Paraguafl, vol. I, pãgs. 52
(628) Nonwnyx domini cus (Linn.), " marrequinha", " paturi ", "cancã ", etc. e 125 e ainda outros escritores.
422 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 423

têm muita relação com o laço; usam-nas também para apanhar o gado se enfrentam, lutam durante horas inteiras; o vencido cede o campo
e todos os animais selvagens, tendo sido empregadas, outrossim, contra ao vencedor. O gado do sertão é de estatura medíocre, cheio de carne e
tropas inimigas; não são conhecidas, porém, aqui no sertão. robus,to; os touros têm os chifres maiores que os europeus e o pincel
Se o serviço dos vaqueiros é penoso e fatigante, em compensação de pelos da ponta da cauda extremamente basto; a sua coloração é
passam êles o resto do tempo na maior ociosidade junto dos seus pardo-escura ou cinzento-amarelada; mais raramente são malhados.
rebanhos, e dormem ou descansam todo o dia. Comer e dormir são Criam-se também, no sertão, porcos, que fornecem grande quantidade
as suas únicas distrações. A sua alimentação é substancial e consta de toicinho.
de leite, usado para o consumo tanto dos homens e dos animais, como Uma das principais obrigações do vaqueiro é proteger os rebanhos
para fabricação de queijos, que não costumam vender, de farinha de contra os aniii_Iais carnívoros. Conhecem-se nessas solidões três espécies
mandioca e de carne sêca. Para preparar esta última não se salga a carne de grandes felmos, que atacam os bois e os cavalos; são a onça pintada
d: boi, mas corta-se a dita carne em finas camadas ou em tiras, que se ou "jaguarété", o "tigre" prêto, e a onça vermelha ou "suçuarana"•629.
poem para secar ao sol, numa corda de couro. Em um ou dois dias ela A primeira e a última são as mais comuns; há duas variedades ou
adquire tão grande solidez que se torna dura e sonora como o chifre; raças da primeira, como entre as panteras e os leopardos da Africa.
essa operação exige algum cuidado, para que o ar e o sol penetrem por E ' assim que a pele de uma delas apresenta, também, manchas mais
igual em tôdas as partes. numerosas e pequenas. Obtive a pele de cada uma destas variedades,
sem ter visto, porém, o animal inteiro.
O produto da criação de gado no sertão é considerável, pois há Em muitos pontos do Brasil, chama-se "canguçu" a onça grande
uma excelente procura na capital. ~sse escoadouro falta em outros que se distingue por manchas maiores, em forma de anel e menos nume-
pontos do interior do Brasil, onde também se cria importante quantidade rosas ; no sertão da Bahia, pelo contrário, dá-se aquêle nome à varie-
de gado, do que resulta ser o seu preço muito mais baixo. No rio .J
dade de malhas pequenas. Se se adota a opinião dos naturalistas fran-
São Francisco compra-se um boi de grande tamanho por 2.000 réis (cêrca ceses (IJ_ictionaire des Sciences Naturelles, t. VIII, p. 225), que pensam
de Y2 "carolin"); na Bahia, pelo contrário, êsse mesmo animal custaria que o tigre prêto não passa de uma variedade da onça pintada, o do
9.000 a ll.?OO réis. Os proprietários dessas fazendas de criação cos- sertão da B~hia deve então pertencer à raça de pequenas malhas, ou
tumam env1ar, uma ou duas vêzes por ano, tropas de bois (boiadas) canguçu, pois, no seu pêlo, bastante escuro, distinguem-se manchas
o~ c~~alos ("cavalarias") para a capital, onde as vendem prontamente.
pequenas e numerosas, que são ainda mais escuras. Vi grandes couros
E facll calcular o montante do produto dêsse comércio. Suponhamos de côr bruno-escura, com malhas arredondadas e cheias, que me dis-
que uma boiada se componha de 150 a 160 cabeças de gado; sendo o seram pertencerem igualmente à espécie do tigre prêto; isso me leva
preço médio de um boi 10.000 réis, o resultado da venda da boiada a pensar que êsse grande felino é de espécie diferente da onça pin-
será de 5.000 patacas (cêrca de 5.000 florins). Os cavalos são relativa- tada6ao.
mente mais caros, pois um mau cavalo, já bastante servido, custa rara- A onça vermelha (Felis concolor Linn.), ou "Guazuara" de Azara,
mente menos de 16.000 a 18.000 réis. E' tanto mais vantajoso criar gado, é o menos perigoso dêsses animais, conquanto atinja tamanho consi-
nessa região, quanto êsse ramo da economia rural se explora com derável ; só ataca o gado novo, ao passo que a onça pintada, assim
pequena despesa. A única despesa adiantada, indispensável, é a da
compra de escravos; a alimentação do gado nada custa, nesse clima
(* ) F elis onca Linn., F elis br asiliensis e Felis concolor Linn., a última das quais
quente, em que se desfruta de permanente verão. O gado está durante é, sem dúvida , a "Guazuara " de Aza ra.
todo o ano nos pastos; somente as sêcas contínuas lhe podem causar
(629 ) Wied refere-se sempre à onça pa rda (ou suçua rana) sob o nome de onça
da~o. Aliás, os proventos da criação de gado poderiam ser muito vermelha (" rothe U nze ").
mawres nestes lugares, caso os habitantes não se obstinassem em seus (630) Em que pese a opinião de muitos caçadores, a generalidade dos zoólogos
não admite a existência de mais de duas espécies de onças na América do Sul - a
antigos há_bitos,. se cuidassem de progredir, e tratassem de conhecer o "onça pintada " e a_ " onça parda " ou "suçuarana ". Não obstante, autores há que
que tem sido fe1to em outros países, há muito tempo. advogam o reconbecJmento de outras form as especificamente autônomas. Está neste
caso J. A. Allen (cf. Bull. Amer . Hus. N at. H i st., XXXV, pág. 575 e ss.) que ao mesmo
tempo que separa as onças . malhadas das concolores respectivamente nos gêneros Panthera
. Espetáculo interessante é o dessas imensas pastagens, cheias de ~ken (I8I6) e ~uma J a rdme (I854) , reconhece no primeiro duas espécies bem caracte-
bOis _e cavalos, ent~e os quais passeiam tranqüilamente aves grandes riza d";s morfológtca e geogràfica mente, a que denomina Panthera onca (Linn .), e P. para-
quen~ts (Holllster) . Admitida esta distinção, à espécie lineana devem ser exclusiva mente
de d1ferentes espécies. Os touros certos de sua fôrça exercem seu refertdas a s do . Brasil oriental, restringindo ao Paraguai e Mato Grosso a pátria da
domínio sôbre ?S rebanhos. Cada' qual tem a sua área: que defende, forma paraquen81-8 (nome, aliás, prejudicado por Felis palustris Ameghlno multo anterior).
A ~ha_ma~a ".onça preta " ou " tigre " não constitui espécie à parte, m~s corresponde a
e de ?nde, mugmdo com a cabeça baixa e batendo o solo com as patas, variaçao mdivtdual de que é suscetivel qualquer das duas formas referidas. Da onça parda,
Puma concolor (Linn.) , admite-se atualmente a existência no Brasil de três ra ça s
desafia para o combate o seu vizinho rival. As vêzes, êsses altivos animais geográficas. Cf. C. da Cunha Vieira, in Arq. Zool. Est. S. Paulo, VIII, pág. 458.
424 VIAGEM AO BRASIL

como o tigre prêto, matam o boi mais pesado, e podem carregá-lo com
os dentes a uma grande distância. Às vêzes degolam vários bois numa
mesma noite, sugam-lhes o sangue e devoram-lhes mais tarde a carne.
E' costume ter-se nas fazendas bons cães para dar caça a êsses perigosos
carnívoros; seguem-se-lhes o rasto cheio de sangue quando, saciados da
carnificina, êles se metem num matagal espinhoso ou cheio de bromélias,
para descansar. Logo que o animal avista os cães, procura trepar numa
árvore inclinada, refúgio pouco garantido, de onde, com a devida cautela,
derrubam-no a tiros (há uma figura desta caçada na vinheta dêste capí-
tulo). Mas a caçada não é sempre assim tão fácil; as grandes onças não
costumam ceder terreno tão prontamente aos cães; muita vez matam
um ou dois, carregam-nos e devoram-nos. Havia no sertão, não muito
longe do Valo, uma grande e famosa onça, que nunca fugia dos cães.
Três vaqueiros tinham ido certa vez ao mato para procurar o gado,
quando os cachorros descobriram o rastro fresco dela e puseram-se ao
seu encalço. Como os três homens estavam sem espingarda, e armados
somente com as suas longas varas, semelhantes a lanças, discutiram se
seria razoável aproveitar ou não essa rara oportunidade. Resolveram
aproveitá-la, e marcharam corajosamente em direção ao monstro, que
se mantinha de pé ameaçadoramente, no meio dos cães postos por terra.
A onça atacou de pronto, ferindo os três caçadores, um após outro; êsses
porém, bateram-lhe repetidamente com os cacêtes, dando-lhe muitas
facadas . Um dêles, menos corajoso, tentou fugir depois de ferido;
o mais bravo dêles estava estendido em terra, sob as garras do animal,
e o medroso, então, retomou a coragem, atacou o animal com redobrado
vigor, matando-o a pauladas. Foi a custo que os homens, gravemente
-feridos, puderam voltar à noite para suas casas, e indicar o local em
que tão bravamente haviam combatido; foram lá e encontraram a
onça estendida sôbre o próprio sangue e rodeada dos cães mortos.
Essa aventura, conhecida de todo êste sertão, e que me foi narrada
por várias pessoas dignas de fé, prova que não tinham razão os que
acusavam de covardia a onça sul-americana. Nos primeiros tempos da
descoberta, em que os animais ferozes eram mais numerosos nos pontos
habitados, sobravam exemplos de pessoas por êles atacadas e mortas,
se bem que os acidentes dessa espécie fôssem aí mais raros que os
que se contam da índia e da África. Fatos dessa natureza foram
relatados por vários autores, como por exemplo o jesuíta Eckart• e
outros.
Independentemente das grandes espécies a que acabo de me referir,
encont~am-se no sertão da Bahia gatos selvagens mais pequenos e tam-
bém l~ndamente pintados. Citarei entre outras o maracajá (Felis
pardalts) 631 , o gato mourisco, denominado em muitos lugares irara682
(*) Vide, além de outros, von MuRR, R eisen einiger Missioniire, etc., pág. 542 .
. .. (6812 . Gat~r~ão, malhB;dO de p~êto s(lbre fundo claro, chamado vulgarmente "mara-
ca)á , a Jaguatmca . F etos pardalts brasiliensis Oken, 1816, é a subespécie encontrada
no Brasil, Paraguai e norte da Argentina.
DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 425

(Felis jaguarundi); um outro, de pêlo ruivo não mosqueado, provà-


velmente a "eyra" de Azara, e, finalmente, um quarto pertencente a
uma espécie nova a que, em razão de sua longa cauda, dei o nome de
Felis macrouraass. Forneci uma descrição completa dêle ao doutor
Schinz de Zurich, que pensa aproveitá-la em sua tradução do Regne
Animal de Cuvier. Apresenta quase o mesmo desenho do "mbaracayá"
ou "chibiguazu" de Azara; é porém, menor, mais delgado, e tem uma
cauda muito mais longa. A caça dos diferentes animais mais próprios
para comer daria aos vaqueiros com que variar agradàvelmente a sua ali-
mentação, se nessas regiões longínquas a pólvora e o chumbo não
fôssem tão escassos e tão caros; essa a razão por que em muitas zonas
os caçadores não são comuns, e os habitantes dessas comem invarià-
velmente farinha, feijão prêto e carne de boi.
O gênero de vida uniforme, que prende o vaqueiro ao seu gado,
em companhia do qual cresce e vive ininterruptamente, faz dêsses
homens sêres rudes, ignorantes, indiferentes a tudo o que lhes é estra-
nho, que não se entregam a nenhuma reflexão sôbre si mesmos, e não
fazem nenhuma idéia do resto do mundo que os rodeia. Escolas, esta-
belecimentos de instrução para o povo, são coisas inteiramente desco-
nhecidas nestas paragens, e não se tem promovido mais a cultura espi-
ritual dessas gentes que a conservação de suas vidas, pelos recursos
da medicina. Restam ainda infinitas coisas a fazer e a desejar para
êsse vasto reino, fracamente povoado; sem dúvida, um govêrno ativo
e empenhado no bem-estar de seus súditos volverá, com o tempo, a
sua atenção para assunto tão relevante.
O tempo, que em Vareda se havia mostrado até então ventoso
e fresco, sofreu agora grande mudança; tornou-se agora extremamente
quente, embora o calor na verdade fôsse um tanto mitigado pelo vento.
A 5 de março, que foi um dia dos mais quentes, o termômetro Réaumur
elevou-se ao meio-dia até 28 graus e meio; à tarde, desceu a 15 graus
e, uma hora mais tarde, quando caía o sereno, já estava apenas mar-
cando 14 graus 6 3 4 • O sereno foi extremamente abundante durante
a noite, bonita e clara; só êle é que umedece a vegetação, emurchecida
pelos calores do dia.
Como falhassem os meus esforços para descobrir muitos produtos
naturais que esperava encontrar aqui, resolvi deixar Vareda e seguir
para o Arraial da Conquista. Deixei, portanto, os campos descobertos,

(682) Dir-se-ia haver engano do autor em atribuir ao gato mourisco o nome local
de "Hyrara " (= !rara), peculiar, como se sabe, a outro carniceiro (Tayra barbara
(Linn. )), muitn comu m em certos pontos do interior do Brasil (p. ex. na região do
Rio das Almas, no sul de Goiás) e também conhecido por "papa-mel ". Esta suposição
desfaz-se, porém, diante das Informações suplementares fornecidas por Wled, ao ocupar-se
de F el is yaguarondi Lacépêde, no vol. li dos B eitrtige (pág. 880).
(683) F el is wiedii Schlnz, 1821, Das Thierreich, I, pág. 285. À falta de uma
descrição neste lugar, perdera Wled a prioridade do nome que atribuira a o gato-do-mato
em questão.
(634) Reduzindo à escala centigrada, temos, pa ra as temperatura s referidas, os
seguintes valon!s, aproximadamente: 85, 18 e 17 graus.
426 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 427

atravessei com a minha tropa uma região sêca e coberta de caatingas, fugiu e foi inutilmente que os cães se puseram no seu encalço. Foi
ou sejam florestas baixas e ressequidas, e passei a noite em "os Porcos", ser prêsa, com tôda probabilidade, de algum morador de Porcos, que
lugar cuja população era composta, exclusivamente, de duas famílias tenha testemunhado a nossa caçada.
de gente de côr. Retiram elas sua subsistência da cultura dos campos e Encontrei num velho tronco a bela e inofensiva cobra que aqui
criação de gado; nessas solidões afastadas, nada sabem do resto do chamam "cobra verde", mas que não se deve confundir com a espécie
mundo, motivo pelo qual a nossa chegada lhes causou extrema sur- perigosa, que se designa pelo mesmo nome em outros lugares636_
prêsa. Todo mundo se juntou para nos olhar com um ar estupefato, Encontrei no Arraial o capitão-mor Antônio Dias de Miranda,
e foram mesmo chamar a gente das vizinhanças para vir examinar a comandante dêste importante distrito; recebeu-me da forma mais hos-
grande curiosidade que acabava de chegar às suas moradas. í.sses pitaleira possível, alojando-se em sua casa que, na ocasião, estava
homens apalparam nossos cabelos, perguntaram-nos se sabíamos ler, desabitada.
escrever e rezar; se éramos cristãos e que língua falávamos, não nos Arraial da Conquista, principal localidade do distrito, é quase tão
deixando sossegar senão quando lhes demos provas de nossa habilidade importante como qualquer vila do litoral. Contam-se aí de trinta a
em assuntos diversos. A presteza com que escrevíamos, os nossos livros quarenta casas baixas e uma igreja em construção. Os moradores são
com gravuras, as côres e os desenhos, bem como as nossas espingardas pobres; daí a razão por que os ricos proprietários das redondezas, as
de dois canos, que lhes mostramos, todos êsses objetos causaram-lhes famílias do coronel João Gonçalves da Costa, o capitão-mor Miranda e
grande espanto; acabaram por declarar que a nossa situação era bem su- algumas outras empreenderam a construção da igreja às suas expensas.
perior à dêles, porque estávamos em condições de poder conhecer o Independentemente dos recursos que a cultura dos campos fornece
mundo; em seguida unânimemente observaram que havia no mundo para a subsistência dos habitantes, a venda do algodão e a passagem
homens singulares, que não temiam se expor às fadigas e perigos de tão das boiadas,. que vão para a Bahia, lhes proporcionam outros meios
longas viagens, para buscar, nos países longínquos, pequeninos insetos, de vida. As boiadas que vêm do Rio São Francisco passam também
que se maldizem no lugar, e pequenas plantas, que só são procuradas por essa localidade, e algumas vêzes vêem-se chegar, numa semana,
pelas vacas. para mais de mil bois, que se destinam à capital. O gado comumente
Passei um dia em Porcos com o fito de conseguir um belo casal de emagrece, durante o longo trajeto que tem de percorrer, motivo pelo
tuiuiús (Mycteria americana)63 5 ; mas, embora essas aves ali se qual deixam-no descansar, aí, durante algum tempo, e mandam-no
mantivessem constantemente à beira de uma lagoa, não conseguimos para se refazer nos pastos mais próximos.
matar uma só, pois são muito desconfiadas e ariscas. Também tirei Grande parte dos moradores do Arraial compõe-se de trabalha-
a prova de que essas grandes aves vivem também de rapina, porquanto dores e de rapazes desocupados, que ocasionam muitos distúrbios, pois
vi uma delas perseguindo no vôo, com grande afã, uma ave aquática. ali não há polícia. A malandrice e uma inclinação imoderada para
Após curta caminhada, cheguei ao Arraial da Conquista, prin- as bebidas fortes são traços distintivos do caráter dêsses homens; daí
cipal localidade da zona. Durante o trajeto passei por trechos inte- resultam disputas e excessos freqüentes, que tornam detestável êsse
ressantes, cobertos de belíssimas matas. Lindas árvores e arbustos lugar, de má fama para as pessoas mais sérias e consideradas, que vivem
floridos ornavam o caminho com a extrema variedade de suas flôres; em suas fazendas, espalhadas em tôrno. Fomos muitas vêzes incomodados
alguns dêles exalavam um cheiro de jasmim, muito agradável; as por pessoas embriagadas e algumas vêzes foi a grande custo que nos de-
casas de cupim são muito espalhadas em tôda a extensão ela mata. Alguns sembaraçamos dessa gente, que singularmente nos aborrecia. Trazendo
prados, fechados em tôda volta pela mata, interrompem agradàvel- cada um, como é perigoso costume da terra, um estilete ou um punhal
mente a uniformidade dêsses maciços ele árvores; o seu verde-vivo, na cintura, êsses homens grosseiros e imorais, que nenhuma espécie de
as belas gramíneas e as arundináceas, que os compõem e atraem a vigilância contém, cometem freqüentes assassínios e outras violências.
atenção do botânico, lembravam-me o frescor dos prados das zonas Algumas semanas antes de nossa chegada, certo morador havia matado
temperadas, concorrendo para avivar ainda mais esta impressão dos a tiros um outro. Eis porque 'llunca será demais recomendar aos via-
quadros tranqüilos e encantadores das florestas de minha terra natal um jantes que procedam com a máxima cautela em Arraial da Conquista,
veado, que pastava por entre as ervas altas. Acostumados a logo para evitarem, para si e para o seu pessoal, aborrecimentos muito sérios.
dec~ararem guerra a todos os animais, meus caçadores, encobertos pelas
(636) Philodryas oljersii (Licht., 1823), descrita por Wied em Bcitréi(le (I, pág. 349)
moitas, avançaram para surpreendê-lo. Atiraram sôbre êle; mas êle com o nome de Coluber herbeus. Aqui, chama o nosso autor atenção para a necessidade
de distinguir as cobras de cipó verdes do gênero Philodryas Wagler (= Chlorosoma
Wagl.) da jararaca verde ou "surucucu de patioba ", Both!-ops bilineata (Wied), por
(635) Jabirtt mycteria (Licht.), quase universalmente conhecido por "jaburu" (cf. êle próprio descoberta e muito perigosa. Wied, em apêndice ao segundo volume de
pág. 396, nota 577). sua obra, dá a descrição in extcnsu desta última.
428 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 429

O naturalista encontra sempre, entre os habitantes, caçadores de que a êste teria sido possível dar cabo dêle, foi bastante valente para
que se pode servir para obter exemplares de história natural. Obtive matar o índio com uma facada, e, de volta ao arraial, revelou essa
aqui, entre outras coisas, a rapôsa do Brasil que, na noite precedente, pérfida conduta dos Camacãs ao comandante. f.ste, depois de ordenar
havia roubado galinhas aos moradores. f.sse animal é o "aguarachay" a seus homens que tivessem as armas prontas, convidou todos os sel-
de Azara, espécie de côr cinzento-amarelada, ou branco-acinzentada vagens para uma festa, e, enquanto confiadamente se entregavam à
suja, que se acha, sem dúvida, disseminada por tôda a América meri- alegria, foram cercados de todos os lados e quase todos mortos. Depois
dional; pois é muito provável que a rapôsa cinzenta de Surinam, e disso, os selvagens embrenharam-se nas matas, e o arraial conseguiu
talvez mesmo a rapôsa da Virgínia, sejam da mesma espécie. Ao longo de repouso e segurança. O crescimento da população vai comprimindo
tôda a costa oriental, dá-se geralmente a êsse animal o nome de cada vez mais êsses índios; vivem ainda reunidos em pequenas "ran-
"cachorro-do-mato" 637 ; mas em Conquista o confundiam com uma charias" ou aldeias, somente em parte conhecidas, nas grandes flo-
outra espécie e chamavam-no "rapôsa"638. Comparando-se atentamente restas que se estendem desde o rio Pardo, através do rio de Ilhéus,
a sua forma e a distribuição de suas côres com as da rapôsa da Pensil- até o rio das Contas. Não vão absolutamente até o litoral, pois hordas
vânia (Canis griseoargenteus, "Renard tricolor") conclui-se que ambos se isoladas de índios Patachós erram nesse intervalo, até quase
parecem muito e pode-se supor que o "aguarachay" deva ser consi- o último dêsses rios. As aldeias de Camacãs mais próximas dos
derado como uma variedade produzida pelo clima. estabelecimentos portuguêses cultivam o milho, o algodão e a banana;
A situação de Conquista não é desagradável, sobretudo porque, os índios, não obstante isso, vivem em estado de completa rusticidade;
no fundo do vale, cercado de colinas suavemente inclinadas, avistam- na sua maioria andam nus, sendo sempre a caça a sua principal ocupa-
se os flancos e os cimos dessas colinas cobertas de matas. Numa das ção. O govêmo colocou nessas aldeias diretores portuguêses para
vertentes, sombreada por umbrosas florestas, Conquista forma um civilizar os selvagens; mas êsse processo atua muito lentamente e
retângulo alongado, onde a igreja, construída no lado mais alto, ocupa com pouca eficácia, pois os diretores são, êles próprios, homens incultos,
o meio dêste. As matas espêssas, que enchem tôda a área em volta do muitas vêzes soldados ou marinheiros, e portanto pouco indicados
retângulo, dão-lhe a aparência de um prado verde-claro e tomam muito para lhes granjear a confiança. Os pobres índios são tiranizados, tra-
aprazível o aspecto da vila. tados como escravos, levados a trabalhar nas estradas e a derrubar
Tôdas essas redondezas eram outrora cobertas pela mata. Um as matas, mandados a levar mensagens a grande distância, e recrutados
"conquistador", isto é, um "capitão" português dado a emprêsas, apor- para servir contra os tapuias inimigos; como, por outro lado,
tou-se aqui como aventureiro, acompanhado de um bando de homens isso fazem sem, ou quase sem receber pagamento algum, não é de estra-
armados, declarando guerra aos primitivos habitantes do território. nha-;- que, sempre propensos à liberdade, não tenham nenhuma boa
f.stes eram os índios Camacãs, cujo domínio, segundo parece, se estendia disposição para com os seus opressores.
até as proximidades da posição atualmente ocupada pela vila da Ca- Tendo avistado, na minha viagem através das florestas virgens,
choeira de Paraguaçu, ou até os pontos ocupados pela nação dos Cariris Camacãs completamente selvagens, tinha eu o desejo de visitar a
ou "Kiriris". Apossou-se do território e fundou o arraial, que ficou aldeia dêsses índios, situada a um dia de viagem do arraial, nas
denominado Conquista. Finalmente, depois de ter concluído um acôrdo grandes matas da Serra do Mundo Novo, e que é conhecida pelo nome
com aquêles selvagens e começado a constituir o seu estabelecimento, de Jibóia. O caminho que conduz a ela é selvagem e desigual, entre-
notou que os seus soldados diminuíam de dia para dia, acabando por meado continuamente de medíocres elevações e pequenos vales.
vir a saber que os índios os atraíam, cada qual por sua vez, no interior No comêço dêsse caminho, a região é ainda um pouco habitada, o
da mata, sob um pretexto qualquer, e aí os matavam. Um soldado, que campo foi desembaraçado de florestas e cultivado; mas, logo depois,
havia sido levado para o mato por um Camacã, a uma distância tal mergulha-se na grande mata virgem. Encontram-se aí, sobretudo na
sua orla externa, touceiras compactas de taquaruçus, onde pela pri-
(637) Dusicyon (Cerdocyon) thous azarae (Wied. 1824) da vigente nomenclatura.
~sse cachorro-do-mato pertence a uma espécie de vasta distribuição na América Meridional meira vez encontramos o pica-pau albinegro (Lanius picatus Linn.) 639 .
cisandina e, em que pese a opinião de Wi ed, diversa do "aguaracbay" de Azara, Um pouco adiante, as grandes árvores se entrelaçam das mais singu-
cuja atual denominação técnica é Dusicyon gymnocercus (Fischer, 1814). Convém
lembrar, todavia, que no extremo sul do Brasil o cachorro-do-mato é representado por lares plantas trepadeiras, enquanto sôbre os velhos troncos em putre-
uma raça particular, peculiar à região platina, Dusicyon thous entrerianus (Burmeister), fação crescem fetos, Piper, Begonia, Epidendrum, Cactus e muitos outros
a qual é também correntemente chamada "graxaim".
(688) Aqui não nos fornece Wied dados bastantes para concluir com segurança
sõbre a outra espécie com que na zona de Conquista era confundido o cachorro-do-mato,
há pouco referido; mas é de presumir-se que devia tratar-se da ainda hoje chamada
"rapôsa do campo", Dusicyon (Lycalopex) vetulus (Lund), espécie de pequeno porte,
.. (639) Lanius picatus, nome de Latham (lndex Ornitholooicus, 1790, I, pág. 73)
e não de "Linneu ", cai na sinonímia de Lanius Zeverianus Gmelln. O pássaro referido
por Wied corresponde a Cissops Zeveriana major Cabanis, da nomenclatura atual, e
peculiar às regiões de campo do Brasil centro-meridional, Interior da Bahia Inclusive. é conhecido vulgarmente por "pintassilgo do mato" e "prebixlm ".
430 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 431

gêneros de plantas. O silêncio que reina nessas solidões, é interrompido O Sr. capitão-mor Miranda, que, próximo dali, nas solidões das
pelo canto forte das araras vermelhas, do surucuá (Trogon) e outras montanhas cobertas de grandes matas, cria muito gado, por acaso tinha
aves. Nessas paragens, onde o amigo e pesquisador da natureza é negócios no lugar e aí se achava na mesma ocasião que eu, o que me
solicitado a cada passo por coisas interessantes e novas, éramos obri- proporcionou o interessante espetáculo duma dança de índios Camacãs.
gados a parar por muito tempo e penetrar no âmago das matas em As boas qualidades do Sr. Miranda o fazem querido de todos. Um via-
perseguição de animais que até aí não havíamos tido ocasião de ver. jante não deve, portanto, deixar de travar conhecimento com êle; aliás,
Muitas belas aves nos alegraram, entre as quais era muito comum é o primeiro personagem do distrito. Passei a noite em sua companhia
a rendeira de duas penas mais longas na cauda (Pipra caudata Lath.) 64 0; em Jibóia, e, no dia seguinte, voltei com êle para o arraial.
encontramos também um novo "tangará" de cocoruto amarelo-vivo• 641 • Os índios Camacãs diferem pouco, no aspecto exterior, dos
Depois de percorrer uma região que apresenta numerosas irregu- seus irmãos da costa oriental; são bem talhados, de estatura média,
laridades de terreno, e que permite apenas um estreito caminho prati- robustos; têm ombros largos e bem pronunciados os traços fisionô-
cável a cavalo, chegamos ao vale de Jibóia, rodeado por todos os lados micos de sua raça. Reconhecem-se de longe porque até os homens
por altas florestas virgens. Aí é que se acham construídas as pequenas deixam cair ao longo das costas os seus compridos cabelos•. A pele
choças dos índios, os quais começam já a se curvar à vontade de apresenta uma bela côr morena, algumas vêzes bastante carregada,
seus opressores, adotando seus usos e costumes. Essas construções outras um tanto amarelada, ou avermelhada. Andam geralmente nus
estavam cercadas por touceiras fechadas de bananeiras, por trás das e quando se vestem, é só parcialmente. No primeiro caso, os homens
quais as árvores gigantescas da floresta, cerradas umas contra as outras, usam, no lugar competente, a tacanhoba, já mencionada com refe-
se erguiam como colunas de um pórtico, entremeadas de uma multi- rência aos Botocudos (representada na figura 4 da estampa 14),
dão de plantas diversas, formando como que uma muralha. Do fundo e conhecida entre os Camacãs pelo nome de "hiranaika". Arrancam
dessas matas sombrias, ouvia-se sair freqüentemente o agradável canto ou cortam as sobrancelhas e todos os pêlos do corpo e furam algumas
da chamada pelos portuguêses pomba amargosa (Columba locutrix), vêzes as orelhas, tendo o orifício a dimensão de um grão de ervilha.
de que já falei. De tempos em tempos, têm a fantasia de pintar o corpo com urucum e
As choças dos índios são feitas de paus e barro, e cobertas de jenipapo, a que juntam uma outra tinta pardo-avermelhada, que
cascas de árvore. Seus moradores andam, alguns, mais ou menos vestidos, denominam "catuá", e que retiram da casca duma árvore que des-
outros ainda completamente nus; cultivam milho, banana, mandioca, conheço.
um pouco de algodão e muita batata, contentes com os produtos que
Quando no rio Grande de Belmonte, fiz referência aos restos
lhes dá a natureza; vão, todavia, até hoje, buscar fora a farinha de que
duma tribo de índios que a si mesmos se dão o nome de Camacãs,
necessitam.
e os portuguêses denominam-nos Meniens. Segundo concluo das informa-
(*) Tanaura auricapilla. Comprimento, 6 polegadas, 2 linhas e meia; envergadura ções obtidas, êsses Meniens constituem realmente um ramo dos Camacãs,
das asas, 8 polegadas e 11 linhas. Alto da cabeça, amarelo-limão carregado; orla da
fronte, lados do vértice e vizinhança dos olhos, pretos; região da orelha, parte inferior porém degenerado; não são mais da raça indígena pura, tendo a maioria
das bochechas e tôda a parte superior do corpo, clnzento-Qiiva, um pouco mais carregado dêles o cabelo encarapinhado dos negros e também a côr escura e,
nas costas; asas e caudas pretas; larga listra branca transversal no meio da asa; lado
externo da asa e as duas retrizes internas da cauda pretas; tôdas as partes Inferiores desde com exceção de dois velhos, não sabem mais a sua língua. Os exemplos
o bico amarelo-alaranjado claro; essa côr contrasta bem com as penas negras do canto
da bôca. A fêmea não tem alto da cabeça de côr amarela. que desta última darei mais adiante, não podem, pela mesma razão, ser
Essa espécie de tangará parece ser o "Lindo brun à huppe jaune" de Azara, considerados como os de seu verdadeiro idioma; as diferenças, que se
tomo IH, pág. 244; mas nesse caso, o escritor espanhol descreve as côres dêsse pássaro
muito superficialmente e mesmo com pouca exatidão. encontrarão entre êsse idioma e o dos legítimos Camacãs não deverão
(640) Chiroxiphia caudata (Shaw & Noder, 1798). Passarinho bastante comum induzir os lingüistas em êrro, pois a experiência demonstra que, entre
nas matas de São Paulo e Minas, onde tem os nomes de "tangará" e "dançador". E'
munto conhecido pela chamada dança a que se entregam os casais na época das os povos indígenas da América, a separação em troncos, tribos e hordas
núpcias. O macho é azul claro e prêto, com topête encarnado; a fêmea não tem topête influiu muitas vêzes sôbre a linguagem, de sorte que se encontram diver-
e é tôda verde. Ninguém parece tê-lo encontrado na Bahia, depois de Wled. Vlelllot
(1819) deu-lhe o nome de Pipra longicauda, baseando-se em Azara, que descreveu o sidades e variações de dialeto nos diferentes ramos duma nação
pássaro no Paraguai. que, sob outros aspectos, se assemelham completamente. Encontrar-se-ão,
(641) Trichothraupis melanops (Vieillot), vulgarmente "tié de topete". Passarinho
dos mais vulgares nas matas do Brasil este-meridional. Ainda nos Beitrtige (111, pág. ~88) pois, no vocabulário dos Meniens várias expressões que êles tiraram dos
não se tinha convencido Wied de que a sua suposta nova espécie era a mesma anteriormente
descrita por Azara, sob o nome de "Lindo pardo de topete amarelo", base exclusiva povos de que são vizinhos.
de Muscicapa melanops Vleillot. O momento é azado para chamar novamente (vide a nota
28~) a atenção para a transposição de sentido sofrida pelo têrmo '' tangará " ao ser intro-
duzido na linguagem dos eruditos, que o tiraram da familia dos "sanhaços" e "safras" para (*) Vários povos da América, entre outros os fndios da Guiana. usam os cabelos
a dos dançadores; praticaram-na, a principio, os autores do século XVIII e foi, em seguida, compridos como sinal de liberdade; eis porque êles cortam os cabelos dos escravos,
acompanhada por todos os autores estrangeiros. e fazem o mesmo quando estão de luto. Vide BARRERE, pág. 128.
432 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 433
Os Camacãs foram outrora um povo inquieto, amigo da liber- Outro trabalho manual dessas ninfas da floresta é uma espécie
dade, belicoso, que defendeu palmo a palmo o s~u território contra de sacola, feita de cordões de algodão trançado, que êsses índios suspen-
os portuguêses e só depois de graves derrotas se viram forçados a em- dem onde quer que vão, quando deixam as suas choças! São elas feitas
brenhar-se mais profundamente nas florestas, até que o _tempo este~­ de cordões amarrados ou entrelaçados, em que o branco ou o amarelado
desse também gradativamente a sua ação sôbre êles. PerSISt:m t~davia alterna com o bruno-averme1hado da tinta de catuá e são penduradas aos
as suas características originárias, sendo nêles até agora mmto vivos o ombros por meio de tiras igualmente trançadas. Quando os homens
amor por sua terra e pela liberdade. E' difícil levá-los para longe dos vão caçar, levam , sempre essa espécie de bôlsa que fiz representar na
lugares em que nasceram; não vão senão com repugnância para as figura 5 da 12.a estampa.
zonas cultivadas pelos europeus, e preferem, como todos os selvagens, As armas dos Camacãs provam que os homens dessa tribo
voltar às suas florestas sombrias. Tornados circunspectos e descon- possuem maior indlM;tria inata que os outros ramos dos Tapuias.
fiados pelos exemplos freqüentes de medidas tirânicas tomadas pelos O seu arco ("cuang") é forte, de pau de braúna, que é castanho-prêto
brancos, escondem êles no mato as crianças e os rapazes, tal como carregado, muito bem polido, e muito mais bem fabricado que o das
fizeram por ocasião de nossa visita. Habituaram-se pouco a pouco às outras tribos. Fazem, ao longo de tôda a parte anterior, uma ranhura,
moradas fixas, como os ranchos de paus, e mesmo aos construídos de que é pouco menos profunda que a do arco d~s Mac?acaris. , ~sses
barro e cobertos com placas de casca de árvore. Não se deitam em rêdes arcos, cuja altura ultrapassa a dum homem, sao mmto flexiveis e
como as tribos da língua-geral, que habitam ao longo da costa marí- fortes. As flechas ("hoay") sobretudo, são esmeradamente trabalhadas.
tima; mas armam em suas choças camas para dormir, formadas um?e São de três tipos, como as das outras tribos, porém, da mesma forma
estrado de paus sustentado por quatro estacas, que cobrem depois com que as dos Machacaris, têm abaixo da ponta um longo segmento de
estôpa. As crianças costumam dormir no chão, com os cachorros. madeira de braúna, depois do qual começa o cabo, feito de bambu,
Os Camacãs de que estamos tratando parecem se aproximar, onde se prendem as penas entre as quais é ainda costume exis~ir d?is
sob vários aspectos, dos Goitacás. Fabricam panelas . com arg~a pequenos tufos de penas pintadas. Para guarnecer a parte mfenor
cinzenta, e são mais industriosos que as tribos da costa onental. Nao da flecha, empregam penas da bela arara vermelha e azul, dispostas e
possuindo animais domésticos • , sabem, . com a destreza na ca~a, amarradas com extremo cuidado; os tufos são alternadamente entrela-
arranjar o alimento animal de que necessitam; mas conhecem mmto çados com tiras de algodão branco e vermelho-bruno, o que lhes dá
bem as vantagens que lhes assegura o. cultivo das plantas _úteis~ e plan- um aspecto muito elegante, como se vê na figura 3 da 21.a estampa.
tam, junto às suas choças, banana, milho e mandwca, CUJa raiz assada Fazem também flechas ornamentais, que são tão delicadas, finas
êles comem, e batatas. Cultivam também pequena quantidade de e trabalhadas com tanto cuidado, que não podemos deixar de nos
algodão, e fazem com êle cordas muito bem feitas. As mulheres, surpreender com o fato de que obras como essas possam ter saído de
principalmente, sabem torcer os f~os com m1_Iita ~rte e_ tran~ar mãos tão grosseiras, servidas por instrumentos tão ruins. Essas flechas,
lindas cordas de quatro fios, que utilizam nos mais vanados fms, pnn- feitas de braúna pardo-escura, ou de belo lenho vermelho do pau-
cipalmente nas suas vestimentas e enfeites; os homens ornam com brasil, são extremamente lisas, polidas e brilhantes, ornadas de tufos
elas as suas armas. O "guihi" ou avental das mulheres (estampa 21, de algodão, brancos ou tintos de vermelho, como se vê na figura 3
fig. 4), parte principal de seu vestuário, consiste numa tira artistica- da 21.a estampa.
mente coberta de finos fios, com várias borlas em cada ponta, e da qual Fabricam igualmente longos bastões lisos, que outrora se viam
pende grande número de cordões para formar um avental;_ as mu~heres às vêzes nas mãos dos chefes. Nas ocasiões solenes, principalmente
amarram essa tira em volta dos quadris. í.sses aventais constituem nas danças, os chefes trazem à cabeça um barrete de penas de papagaio,
a sua única vestimenta, quando levam ainda uma vida um tanto sel- artisticamente confeccionado; dão-lhe o nome de "charó". As penas,
vagem. Dantes, elas nem isso conheciam; andavam inteiramente nuas, cada uma isoladamente, são prêsas a uma rêde de algodão, de maneira
tendo mais tarde atado, em volta dos quadris, um pedaço de casca de que na parte mais alta do barrete fica uma espécie de coroa feita com
árvore. Nunca se admirará bastante a arte com que essas gentes rudes as penas da cauda do juru (Psittacus pulverulentus), ou de outro
sabem fabricar os cordões dêsses aventais; para mais embelezá-los, costu- papagaio, tendo geralmente no meio um par de penas compridas, tiradas
mam tingi-los da côr vermelho-parda do catuá, e de branco. de cauda de arara. As penas são verdes e vermelhas e fazem uma
belíssima vista. Os barretes de penas usados pelas tribos indígenas
( *) Os Camacãs não conhecem nenhum animal doméstico além do cão, que lhes das margens do rio Amazonas, quando os espanhóis e portuguêses
velo da Europa, o que prova que nenhum povo indígena da América foi nômade. Ver
sôbre o assunto von HuA<BOLDT, na descrição de sua viagem, vol. 11, pág. 160. o visitaram pela primeira vez, eram feitos como os dos Camacãs,
434 VIAGEM AO BRASIL

que acabo de descrever; tem-se uma prova disso na bela coleção de


ornamentos de penas existente ainda hoje no Museu de Lisboa. Bar-
rere nos informa que as tribos da Guiana também usavam barretes
semelhantes.
A habilidade dessa gente em todos os trabalhos manuais, torna-a
muito útil aos portuguêses, depois que parte dela se civilizou um pouco.
Aproveitam-se êsses índios no desbravamento das terras, porque der-
rubam as árvores com grande presteza, servindo-se hàbilmente do
machado. São caçadores experimentados, excelentes no uso do arco,
conforme várias vêzes testemunhei, e alguns dêles manejam muito
bem a espingarda. Estão atualmente encarregados de repelir os ata-
ques dos Botocudos no rio Pardo, tendo à frente o capitão Paulo Pinto.
~les temem os Botocudos, que, pouco antes de minha visita a êsse lugar,
haviam matado alguns Camacãs no rio Pardo; por isso exami-
naram com muita atenção, e dando mostras de raiva, o môço boto-
cudo Queck, que eu levava comigo. Dizem, aliás, que êles são bravos
e têm aprisionado muitos dêsses bárbaros.
Os Camacãs acolhem muito bem os estrangeiros e quando em
1806 o capitão-mor João da Silva Santos veio a êste sertão, em visita
a uma aldeia dêsses índios, foi recebido festivamente. O chefe havia
pintado a cabeça de vermelho, os pés e os antebraços; tinha à
cabeça um belo barrete de penas; ao pescoço trazia grosso cordão de
algodão tinto de vermelho, terminando por duas pencas de dentes de
animais e cascos de anta; os compridos cabelos flutuavam-lhe nas costas
e na mão trazia uma longa vara de madeira vermelha, sem dúvida
pau-brasil, liso e delicadamente trabalhado. Tinha pintado um cres-
cente prêto em cima e embaixo dos olhos. O cauim não faltou nesse dia,
e os Camacãs dançaram a noite tôda.
Afora as suas armas e trabalhos de arte, êsses costumam vender
aos europeus velas de cêra, que espalham um cheiro agradável, quando
queimam. Fabricam-nas muito engenhosamente fazendo com elas com-
pridos cordões, que em seguida enrolam artisticamente em feixes
alongados, a que externamente grudam grandes fôlhas. Os Camacãs
vendem também mel, que colhem em grande quantidade nas florestas;
Essa substância é dos petiscos que êles mais apreciam, muito embora
sejam bem pouco delicados em matéria de alimentação. Encontrei em
suas choças pés de anta em completa putrefação, e que êles comiam,
assim mesmo, como coisa muito apetitosa; em compensação, não to-
cariam na carne do tatu verdadeiro (Tatou noir Azara) 642 , que os
europeus muito apreciam.
Tal como na maioria dos povos selvagens, os homens tratam suas
mulheres com certa rudeza, embora sem maldade. Parte dos Camacãs,

(642) Dasypus novemcinctus (Linn.), "tatu verdadeiro", " tatu galinha". Ct. nota 243
(pág. 123).
DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 435

que mantém relações mais íntimas com os portuguêses, fala já um


pouco a língua dêstes. O idioma dos Camacãs tem qualquer coisa de
bárbaro, por causa do grande número de sons nasais e guturai~; cor-
tam bruscamente o fim das palavras, falam baixo, com a bôca aberta
pela metade. Quando fazem uma boa caçada, ou têm outra ocasião
qualquer de se divertir, não deixam de celebrar uma festa, acom-
panhada de danças e de cantos; reúnem-se então em grande número
e começam cortando transversalmente o tronco de uma barriguda
(Bombax), árvore essa que' contém uma medula tenra e sucosa, e a
esvaziam, deixando ficar, porém, o fundo. Obtêm assim um recipiente
com 2 a 2 pés e meio de altura, que colocam num lugar plano, entre
as suas choças ou em suas proximidades. Enquanto os homens tra-
balham nisso, as mulheres se ocupam em preparar o cauim com man-
dioca ou milho. Doze ou dezesseis horas antes, mastigam os grãos
de milho (é substância que preferem para tal bebida, mas empregam
também batatas), cuspindo num vaso os grãos mastigados, e acrescen-
tando depois água quente; despejam depois a mistura no vaso de
casca de árvore, onde continua a fermentação ; então, acende-se o fogo
debaixo dêle, e depois prende-se-lhe a base num buraco cavado na
terra6 43.
Enquanto isso, todos os dançadores se paramentam conveniente-
mente para a dança, os homens pintam-se com longas listras negras, e as
mulheres, com círculos formados de meias-luas concêntricas por cima
dos seios, linhas no rosto, etc. Alguns ornam a cabeça com seus bar-
retes de penas e enfiam penas pintadas nas orelhas. Um dêles segura na
mão um instrumento feito de uma porção de cascos de anta, amar-
rados em dois maços por meio de cordões. E' chamado herenehediocá, e
serve para marcar o compasso, produzindo um ruído muito forte quando
sacudido (vem êle representado na fig. 3 da 22.a estampa). Servem-se
também às vêzes de um pequeno instrumento cujo nome é "kechiech"
(a pronunciar como em alemão), o qual conste numa cabaça ôca,
com um cabo de madeira (estampa 22, fig. 2) e contendo algumas pedri-
nhas que, quando se sacode, fazem também ouvir ruído semelhante ao
de um chocalho. ~sse instrumento tem inegáveis afinidades com o
maracá, o ídolo doméstico dos Tupinambás e outros aborígines do
Brasil, que também dêle se serviam em suas danças. Nos primeiros
tempos da descoberta, os Espanhóis encontraram instrumentos seme-
lhantes na América do Norte, na Flórida, por exemplo*.

(*) Ver BARRERE, pág. 156 e SOUTH EY, Hi$tory of Brazi!, tomo I, pág. 685.
Não encontrei entre os Camacãs os chocalhos que usam nos pés várias tribos do Brasil
e da Guiana, em suas danças.

(6.48) A técnica de ~abricação do "caul " foi descrita por mais de um via,W.nte
e espeCialmente pelos cromstas do século do descobrimento. Entre as noticias 'IDais
antigas e ao mesmo tempo mais circunstanciadas sôbre o assunto está a dada por
Jean de Léry (Voyages au. Brési!, ediç. Gaffarel, tomo I, págs. 141-169 ) que tem
sido a principal fonte informativa para a generalidade dos autores.
436 VIAGEM AO BRASIL DAS FRONTEIRAS DE MINAS A CONQUISTA 437

Começa então a dança: quatro homens um pouco inclinados para praticado pelos Bagaís ou Semmelis, pelos Aruaques e outros povos
diante, avançam e, com passadas medidas, dispõem-se em círculo, conser- da Guiana*, que consiste em lançar sôbre êles a fumaça do tabaco.
vando-se uns por detrás dos outros; todos cantam com pouca modu- Durante essa operação, o médico murmura palavras que infelizmente
lação, hoi! hoil hê! hêl hêl, enquanto um dêles acompanha essa ninguém compreende. Se um doente vem a falecer, tôda a tribo se reúne
toada com o ruído do instrumento, que, de acôrdo com a sua fantasia, em volta dêle, e, com a cabeça inclinada sôbre o cadáver, todos, homens
ora é mais forte, ora mais suave. As mulheres, nesse momento, se e mulheres, soltam gritos horríveis, durante dias inteiros. í.sse pranto
metem na dança, e ficam duas a duas, com a mão esquerda nas costas fingido dura às vêzes muito tempo; fazem intervalos de descanso, mas,
umas das outras. Depois os homens e as mulheres, alternadamente, quando se pensa que as lamentações terminaram, recomeçam com
fazem voltas sem parar, ao som dessa encantadora música, em tôrno renovada intensidade. O morto fica às vêzes estendido no chão
do vaso que contém a desejada bebida. Dançam, assim, sob o rigor do durante muito tempo, até que seja enterrado. Dizem que consideram as
sol, na estação mais quente do ano, com o suor a escorrer-lhes ao longo de almas dos mortos como suas divindades, dirigem-lhes preces e atribuem-
todo o corpo. Dirige-se então cada qual ao vaso, de onde, com uma lhes as tempestades. Acreditam também que as almas dos mortos, quando
cuia, tiram o cauim e o bebem. As mulheres acompanham o canto não foram bem tratados durante a vida, voltam sob a forma de uma
com sons a meia-voz, sem nenhuma espécie de modulação, e marcham onça para fazer mal aos vivos; daí a razão de botarem, junto do
simultâneamente com a cabeça e a parte superior do corpo inclinadas. cadáver, numa cuia ou numa panela, um pouco de cauim, bem como
í.sses selvagens dançam assim a noite inteira sem se fatigarem, até arcos e flechas . Todos êsses objetos são colocados por baixo do morto,
que o vaso esvazie. A 20.a estampa dá uma sugestiva representação de enchendo-se em seguida a cova e acendendo-se uma fogueira em cima.
uma tal festa. Essa dança parece ter alguma semelhança com a dos Acrescentarei a essas poucas particularidades sôbre a notável
Coroados de Minas Gerais*. tribo dos Camacãs, alguns traços que tirei da Corografia B rasílica,
Algumas vêzes os dançadores se dividem em duas filas que ficam obra que na Alemanha, até o presente, só deve ser conhecida de poucos
face a face, de modo que uma empurra sempre a outra. Nas ocasiões leitores. "Os Mongoiós, escreve o seu autor (que parece não ter
solenes, quando a noite foi passada a dançar, segue-se-lhe muita vez conhecido o nome de "Camacãs" que essa tribo a si se atribui), com os
outro exercício. Os índios jovens, para ostentarem a sua fôrça, cor- quais foi concluído um tratado de paz em 1806, se achavam reunidos
rem à mata, cortam um grande pedaço cilíndrico de um tronco de em seis aldeias pouco povoadas, nas proximidades e ao norte do rio
barriguda, que é muito pesado enquanto está cheio de seiva, e nêle Patipe (Rio Pardo). Cada família vive isolada em sua cabana e tôdas
enfiam um pau, para poderem carregá-lo mais fàcilmente. O mais cultivam diferentes espécies de batatas, abóboras, inhames, melancias,
forte do grupo toma dêste pedaço de tronco, coloca-o sôbre os ombros e excelente mandioca (trata-se no caso, de "mandioca-doce" ou "aipi");
e, carregado dessa maneira, corre para a sua cabana, perseguido por colhem também muito mel. Em coisa alguma são menos econômicos do
todos os outros, que procuram arrebatar-lhe o fardo . Essa luta con- que no aproveitamento das abelhas. Tiram tôda a cêra de mistura com
tinua até que chegam ao lugar em que estão reunidas as belezas da as abelhas que se acham em casa e coam tudo numa espécie de peneira;
tribo, que lhes dirigem os seus aplausos. As vêzes o pedaço de madeira cêra e abelha são postas numa certa porção d'água e obtêm assim uma
é tão pesado que um ou outro dêsses rústicos cavalheiros se machuca. bebida embriagante, que os faz alegres e às vêzes os torna furiosos.
Assim que chegam ao fim da corrida, costumam, inteiramente banhados Preparam também outra bebida espirituosa com batatas e raiz de man-
de suor, precipitar-se no rio para se refrescarem, prática em que não dioca pisadas, e deitadas de infusão até fermentar.
poucos já têm encontrado a morte. Os pais põem os nomes aos filhos recém-nascidos, sem qualquer
Quando um Camacã cai doente, deixam-no sozinho; se ainda outra cerimônia; choram os mortos e os enterram nus, em posição
pode andar, procura por si a sua subsistência, pois, do contrário, se sentada **; cantam e dançam ao som dum instrumento tão simples
verá absolutamente privado de qualquer ajuda. Essa indiferença quanto pouco sonoro e que consiste numa corda fina, esticada num
pelos doentes e os desvalidos se observa entre os indígenas do Orenoco, arco *u . As mulheres trazem franjas de algodão delicadamente tran-
onde o desprêzo de que são vítimas só tem rival no estoicismo com que
sofrem as suas dores, e até esperam a morte, tal como se lê na relação
( *) QuANirr, Nachrichten von Suri nant, pág. 61.
de vários viajantes, entre outros Gumilla u . Os Camacãs conhecem Dêsse livro, cujo autor é o Pe. M. Aires de Casal, há modernas edições entre
poucos medicamentos; empregam para curar os doentes um processo as quais a recentlssima, pelo Inst. Nacional do Livro.
( **) Dizem que êles abandonaram êsse modo de enterrar.
. " (***) Nã!,> encontrei entre os Camacãs o instrumento de que a "Corografia Bras(-
(*) Ct. v. EscHWEGE, Journal von Brcuilien, parte I, pág. 142. hca faz mençao; talvez o tenham obtido nas aldeias ou vilas dos negros vizinhas
(** ) Vide G UMILU, Histoire de l ' Orénoque, tomo I, pág. 328. dos portuguêses, pois êles possuem um instrumento semelhante, que freqüentemente tocam.
438 VIAGEM AO BRASIL

çadas que lhes caem na frente do corpo até os joelhos. Os homens


cobrem as partes pudendas com um tecido de fôlhas de palmeira •;
afora isso, nada mais cobre o seu corpo bem proporcionado. Passam
a maior parte do tempo caçando nas matas, ou procurando frutos.
A fabricação dos vasos de barro é o único ramo de indústria que
cultivam. Fazem foles com couro de veado, e, quando querem tirar VII
a pele dêsse animal, principiam a fazê-lo pelo pescoço. Consideram
o cão o mais útil dos animais domésticos; é o único que criam para
a caça. Os instrumentos de ferro é o que mais invejam dos europeus. VIAGEM DE CONQUISTA A CAPITAL
Seus remédios consistem em emplastros, compostos com ervas maceradas,
em decocção e em banhos; conhecem-nas, quer por experiência própria, DA BAHIA E ESTADA NESSA CIDADE
quer pelo conhecimento transmitido pelos antepassados. O arco e a
flecha são suas únicas armas, não só para a caça, como para a guerra.
Os Mongoiós que abraçaram a religião cristã preferem aquelas às armas O vale pitoresco de Uruba. - Cachoeira. - Coronel
de fogo". João Gonçalves da Costa. Rio das Contas. - Rio ]iqui-
riçá. - Laje} e desagradável incidente aí ocorrido. - Pri-
são em Nazaré das Farinhas. - Rio ]aguaribe. - Ilha de
Itaparica. - Cidade de São Salvador da Bahia de Todos
os Santos.

Para ir do arraial da Conquista, através do sertão da Bahia, à capital


da capitania, podem-se escolher vários caminhos. A estrada principal
de Minas Novas e de Minas Gerais a essa cidade, passa pela vila de
Caieté644, vila do Rio das Contas e vila da Cachoeira de Paraguaçu.
Mais próxima do arraial, onde eu me achava, há uma outra, acompa-
nhando o curso do rio Gavião. A ela se chega em dois dias de viagem;
mas, representa um rodeio. O caminho que as boiadas da zona de
Conquista costumam tomar para atingir a capital é o mais curto;
foi êste que eu preferi, porque poucos viajantes o freqüentam, tanto
mais quanto fazia pouco que algumas tropas tinham sido atacadas por
salteadores, nas margens do Gavião.
A chamada estrada das boiadas, que é relativamente boa na
estação sêca, até à fazenda de Tamboril, foi feita à própria custa pelo
coronel João Gonçalves da Costa, que até agora não recebeu qualquer
indenização do govêmo por êsse e vários outros empreendimentos igual-
mente úteis, a que consagrou parte de sua fortuna.
Deixando-se o arraial, entra-se numa reg1ao uniformemente
montanhosa e coberta de matas, onde as colinas e morros se sucedem
ininterruptamente, de modo a descortinar-se sempre atrás das serras

(644) "Cayeté" no original. Deve ser Caetlté, hoje cidade de cêrca de 40.000
(*) Esta bainha das fôlhas da "lssara" vem representada na fig. 4 da estampa 14 habitantes, situada 625 km a sudoeste da cidade de Salvador e a cêrca de 400 km da
e concorda exatamente com as dos Botocudos. costa marítima.
\

440 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA A CAPITAL DA BAHIA 441

novas serras, cobertas tôdas de matas de pouca altura, que se estendem No nosso segundo dia de viagem, a contar da partida de Preguiça,
até aos arredores do Arraial. Essa vasta solidão, onde hoje não se depararam-se-nos muitas borboletas, daquelas duas espécies acima
encontra mais que um pequeno número de pessoas, era ocupada há referidas. A mata era aqui mais alta, mais sombria e • mais fechada
apenas uns sessenta ou setenta anos, pelos Camacãs, seus primitivos do que nos primeiros dias; aquelas grandes borboletas voavam aos
habitantes, os quais agora se refugiaram nas grandes florestas vizinhas da bandos, em volta do cimo das árvores, para onde as atraía uma infini-
costa, onde, por muito tempo, desfrutarão de um território de caça dade de flôres amarelas e brancas, motivo pelo qual não nos foi pos-
que ninguém lhes virá disputar. sível apanhar uma só com a rêde. As asas dêsses magníficos insetos,
Nas matas despovoadas das cercanias de Conquista, outra ocupa- batidas pelos raios ofuscantes do sol do meio-dia, reluziam com o
ção não achei senão observar as diferentes plantas, cujas flôres impres- brilho incomparável, mormente quando observadas de cima. As asas
sionam o olfato dos viajantes pela suavidade de seu aroma, antes azul-celeste de Papilio menelaus, exibiam reflexos de um soberbo violeta,
mesmo de serem vistas. As fazendas ou habitações isoladas, que se e as de nestor reflexos azuis, dos mais diversos matizes. A grande
encontram a três, quatro, cinco e até seis léguas de distância umas borboleta branco-azulada, Papilio laertes de Fabricius, é também muito
das outras, raro interrompem a monotonia dessa estrada. No primeiro comum nessas matas sendo mais fácil de apanhar do que a mene-
dia fiz uma parada para passar a noite na fazenda da Preguiça; a laus649. No sul se encontram essas duas magníficas borboletas azuis,
casa muito bonita e construída de tijolos, sobressaía vantajosamente até nas cercanias do Rio de Janeiro. São o principal ornamento das
entre tôdas as outras da região se bem que não fôsse muito grande. flôres; pode-se-lhes juntar a Papilio leilus, negra com listras verde
Ao crepúsculo ouvimos soar, nos charcos da redondeza, o curioso doirado, que encontramos com particular abundância em vila Nova
concêrto entoado pelo chamado "sapo ferreiro", que lembrava o som de Almeida e em Mucuri. E' muito comum nas zonas descam-
produzido pelas batidas duma multidão de latoeiros; não conseguimos, padas, mesmo quando próximas do mar.
entretanto, apanhar nenhum dêsses curiosos animais6 45. Na primeira parte da relação de minha viagem, afirmei que as
Um dos nossos homens, que marchava na retaguarda da tropa, Nymphales eram, em certa região, muito numerosas, e agora observarei,
matou com uma paulada, num galho baixo de árvore, um grande outrossim, que as Heliconii formam em geral a família mais comum
urutau, a que já me referi pelo nome de Caprimulgus aethereus6 46 . de borboletas nas zonas que percorri. Adejam em tôdas as matas,
E' bastante comum nas matas, alimentando-se principalmente de bor- notadamente a pinta de fogo, Heliconius phyllis, H . sara e H. egna,
boletas; persegue as espécies grandes, tais como Papila nestor e me- assim como muitas de suas variedades e afins. Nos campos descobertos
nelaus, de magnífica coloração azul, e a branca laertes, Fabr.6 47 . Essa e nas pastagens, uma das borboletas que mais freqüentemente se vêem é
curiosa ave crepuscular, cuja goela espantosamente larga é perfeita- Papilio plexippus Fabricius, encontrada até na América setentrional.
mente adaptada à captura dêsses insetos, não lhes engole as grandes Em tôdas as grandes matas virgens, vive a borboleta já referida por
asas que se vêem em tôda parte, espalhadas no chão. Langsdorff* e que, provàvelmente com a tromba, produz um som seme-
Encontrei ainda nessas matas uma outra espécie, muito bonita, cabeça bruna com linhas transversais amarelo-avermelhado pálido; nuca e parte
de urutau, provàvelmente desconhecida até então, e que se distingue superior do pescoço com listas esbranquiçadas; dorso negro bruno com estreitas ralas
transvers~is esbranquiçadas ou amarelo avermelhadas; parte Inferior das costas negro
pela íris alaranjado vivo*64S. bruno mais carregado; ombros negro bruno; tectrizes médias e posteriores branco marmoreado
de côr negro bruno nas pontas e nas bárbulas externas; cauda negro bruno muito
(*) Caprimulgus leucopterus é o nome que dou a essa bela espécie que não carregado com sete listras transversais marmoreadas mais pálidas; interior das asas negro
encontrei descrita em nenhuma obra de história natural. Fêmea: comprimento, 11 polegadas, bruno; mento esbranquiçado, com as penas um tanto amareladas e escuras nas pontas;
6 linhas; envergadura das asas, 22 polegadas e 6 linhas; I ris alaranj ado-vivo; bico garganta cinzento bruno mesclado de amarelo; parte inferior do pescoço e alto do
muito largo e da forma do de Caprimulgus grandis; tarso curto e nu; alto de 4 linhas peito semelhantes, apenas misturados com um pouco de amarelo avermelhado e marcados
~o r_náximo; asas estreitas e compridas; cauda composta de 10 penas aproximadamente com grandes manchas negro bruno; ventre e partes inferiores cinzento esbranquiçado,
IgUais, sendo as duas externas apenas um pouco mais curtas; plumagem à primeira vista marmoreados; peito e ventre listrados. As côres do macho são mais claras ou mais
negro bruno, bastante carregado; grandes tectrizes posteriores formando sllmente uma esbranquiçadas que as da fêmea.
longa mancha esbranquiçada nessa parte do corpo, ventre mais claro que o resto, (*) O Sr. Langsdorff me havia dito que também se encontra a mesma borboleta
puxando mesmo a branco; cabeça negro-bruno, pequena mancha branco-amarelado em em Santa Catarina.
ctma de cada ôlho e listra semelhantemente colorida até o bico; parte posterior da
(645) Cf. a nota 265. (648) ?vctibius leucopterm leucopterus (Wied). Forma rara, de que não consta
(646) Cf. a nossa nota 321. serem conheci~os outros exemplares além do colecionado por Wled. Cbapman (Bull. Amer.
{647) Morpho menelaus (Linn. , 1758), conhecida no Rio de Janeiro por "Borboleta Mus. _Nat. HtSt., LV, pág. 275), que estu~ou no American Museum, do qual são hoje
Co~covado", é uma grande borboleta de esplêndido azul, das mais comumente empregadas propne~ade, os dois exemplares a ela atnbuldos pelo viajante-naturalista, informa que
hoJe em trabalhos de ourivesaria. Papilio menelaus e P. nestor Linn., ambas só a femea pertence a leucopterus, o macho sendo "uma forma de Nyctibius griseus".
primeiramente noticiadas pela Mlle. Meriam, na Guiana, significam, respectivamente o Segundo o mesmo autor a ave brasileira é coespeclfica da que Ridgway descreveu em
macho e a fêmea de uma mesma espécie. Morpho laertes (Fabr.), bem menor, é um 1912 no Equador, com o nome de Nyctibius maculosus.
branco opalino, com manchas pardo-escuras caracterlstlcas junto ao bordo anterior das (649) Morph<? menelaus e M. laertes acham-se representadas em belos desenhos
asas. E' provável que a denominada P. nestor por Wied venha a ser outra que não a côres (est. XV, fig. 55 e XIV, fig. 54, respectivamente). No livro de Benedito Raimundo
a assim chamada por Linneu. da Silva Lepid6pteros do Brasil, Rio, Impr. Nac., 1907.
442 VIAGEM AO BRASIL DE CO QUISTA À CAPITAL DA BAHIA 443
lhante ao de uma matraca, como também a Climena (Cramer, est. viagem; as fôlhas dispõem-se no tronco em quatro ou cinco filas, e 0
XXIV, F.), que traz em cima de suas asas o número 88. Outras cach? tem f~utos do taJ?anho dum pequeno _abricó, _revestidos de polpa
belas espécies, tais como nimas, zacynthus, polydamas, mutius, dolicaon, adocicada, cor d: laranp. As araras os apreciam mmto e quebram fàcil-
etc., são muito mais raras. me~te, com o b~co: o caroço que se encontra nêles. Dá-se a essa pal-
Estando o calor extremamente forte nesse dia, os nossos animais meira, nas proximidades de Nazaré, o nome de "côco de licuri", que
de carga, esgotados, buscavam sôfregamente água, o que por pouco nos não se ~eve confundir com o "aricuri" já referido na primeira parte
ocasionou uma perda; um dos burros atirou-se de repente num charco, desta Vtagem 650 , com que muito se parece, principalmente no fruto.
fazendo com que a água entrasse nas caixas e estragasse quase comple- A nossa marcha, através de áridas colinas, vinha cansando tanto
tamente tudo o que nelas se guardava. O viajante está exposto em os homens e os animais, que uns e outros corriam àvidamente para
tais ermos a freqüentes acidentes dêsse gênero, perdendo, muita vez, estancar a sêde ardente nos córregos que encontrávamos no fundo
pela indocilidade dos animais de carga, pela negligência dos tropeiros dos vales. A água dêstes riachos era límpida e fresca, embora a que se
ou pelas chuvas, o fruto de assíduas pesquisas e de longas e penosas bebe geralmente nesse sertão seja extremamente ruim. Apesar da falta
jornadas. de boa água nessas zonas sêcas e desnudas, o viajante fàcilmente observa
Tendo deixado a mata, entrei numa zona em que altas colinas, que ~s febres são aí mu_ito mais raras que nas grandes florestas próximas
suavemente arredondadas, se cobrem de mato rasteiro, ou de vastas do litoral. As que remam nas zonas que percorri se distinguem das
touceiras de samambaia (espécie de feto, Pteris caudata). ~sse feto febres das outras províncias por um caráter mais benigno; assim é,
apresenta a singularidade de cobrir aqui e ali imensas áreas do solo, que, por exemplo, ao longo do rio São Francisco, na época em que
de ordinário os trechos desnudos das florestas, fato êste pouco comum nas as suas águas ?aixam, a região tôda se vê infestada por epidemias
zonas quentes do Brasil, e provàvelmente nas de todos os países quentes, que mat_am mu1ta gente e se tornam, sobretudo, muito perigosas para
pois, sob tal clima, é mais raro crescerem juntas plantas duma mesma estrangeiros e para os viajantes não aclimatados.
espécie do que nas zonas temperadas e frias do Globo•. Dizem que A tarde, cheguei a uma fazenda velha e abandonada, chamada
os brotos dêsse feto causam a morte do gado que os come. Atribui-se Taquara, ond,e só existiam duas miseráveis choças de barro, completa-
efeito semelhante, em relação aos cavalos, a uma espécie de Bromélia mente em rumas; estavam cercadas de mato por todos os lados, por
que aqui vive. Não chovia desde muito tempo, motivo pelo qual êsses grandes touceiras de samambaias sêcas (Pteris caudata) e, em alguns
ermos achavam-se inteiramente esturricados. Sêcas dessa espécie pontos, po~ ~spêssas macegas compostas de uma planta de 4 a 5 pés de
ocasionam, em várias zonas do sertão da Bahia, a morte de grande quan- altura, espeCie nova de Tagetes•, que espalha um cheiro forte muito
tidade de gado, causando assim prejuízos consideráveis; eis porque se agradável. H~via, ness~ sítio, um :urral, que era utilizado para guardar,
faz mister reunir o gado freqüentemente, com o fito de levá-los para durante a no1te,_ as b01adas_ ~m transito. Tentamos dormir nas choças,
zonas mais úmidas. Às vêzes se põe fogo aos fetos nos lugares secos ma~ uma quantidade prodigiOSa de pulgas e bichos-de-pé cobriu, num
e altos, a fim de fazer o solo produzir, com essa forma de adubação, um abnr e fechar de olhos, tôda a nossa roupa, de sorte que nos pareceu mais
pouco de vegetação para os animais. prudente fazer um bivaque ao ar livre65 1 . Acendeu-se uma fogueira para
A natureza, todavia, espalhou nesses prados ressequidos alguns
(*) (Suplem.). Tagetes_ gtandulifera, ScHRANK, Plant. rar. H. Monac. , n.• 54. E'
vegetais que parecem suportar perfeitamente a sêca; entre outros, talvez a mesma_ que T_agetes mmuta; pelo menos a figura que Dlllenius nos deu dessa
uma bela Bignonia de grandes flôres amarelo limão vivo, que se ergue planta e que Lmneu c1tou, adapta-se-lhe muito bem. Veja-se ScHRADER, op . cit., pág. 714.
a uma altura de 8 a lO pés, e uma Cassia de longos estames verticais, (650) O "ouricuri", "nicurl" ou "llcurl " (Cocos coronata Mart.) é muito comum
de côr alaranjado vivo; possuem ambas um aspecto magnífico. em grande parte do Recôncavo da Bahia, tanto na terra firme como nas ilhas Seu
grande valor econômico tem sido ultimamente divulgado por Gr~gório Bondar d~ Inst
Esta última é uma árvore de que já tratei; sua folhagem verde clara Central de Fol!lento Econ. da Bahia. Os frutos maduros destacam-se espontAneament~
forma uma copa perfeitamente cônica, donde se viam pender, então, dos cachos, camdo no solo onde os procuram àvidamente o gado bovino e ca rlno
que ~eglutem o próprio car02o, rejeit_and<HJ depois pelo intestino. Não são ~eno~
longas vagens articuladas. Por entre as moitas do cerrado sobressai apetec~dos também pelas aracuas (Ortalts aracuan Spix) e até pelo povo que não me
cons~ crlmlná-los !le qualquer maleflcio. Cumpre não confundir a prese~te com outra
uma es~écie de palmeira, que não atinge mais de 20 a 30 pés de altura páalme1ra_. Cocos schtzophylla Mart., também vulgarmente chamada • aricurl " ou " Iicurioba "
J refenda por Wied à pág. 204. ' '
e é a úmca representante que encontrei da família, nessa parte de minha (65I) Qu~m tenba experiência das viagens pelo sertão sabe 0 risco que se corre,
procurando abrigo nos velhos ranchos abandonados, de ser devorado por êsses insetos
(* ) Veja-s': a respeito HuMBOLDT, De Distribuitione geographica plantarum, pág. 50. aos quais se !_leve acrescentar, em certas zonas, 0 "carrapato do chão ", Ornithodo~
As p~aotasque v1_vem em socied.ade no Brasil oriental são Conocarpus e Avicennia, várias ~os~~~:ri!r1:;~a co~v:g;: ~ol~fl M~to tGrosso e repúblicas limltrofes. Cf. A. Nelva
espéci~s de Rhexw, alguns carnços muito altos (Bambusa,), "ubá " e •taquarassu", as f III ~~ • cren ca • e c., em Mem. do Inst Oswaldo Cruz VIII
palmeiras anãs da costa, vários fetos, principalmente Pteris caudata muitas espécies de asc. • PG6· 92; H. B. Aragão, "Obs. lxod. Rep. Argentina,; In Nov Reu;,. Soe'
gramlneas, Cecropia, Bignonia e outras. ' Arg. de Patol. Region., vol. III em bom. à mem. de Carlos c~as (I989l, pág." 1476:
444 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA- À CAPITAL DA BAHIA 445

cozinhar, e tôdas as moitas vizinhas foram batidas em busca de madeira dêsses galhos, sente logo uma comichão insuportável em todo o corpo,
sêca; um dos meus homens descobriu, muito próximo donde estáva- pois êsses bichinhos, que não são maiores que a ponta de um alfinête,
mos, ao lado duma das choças, uma serpente de chocalho (cobra casca- se espalham por tôda a parte e atormentam de tal modo, que não dão
vel). Fomos todos observá-la; o réptil estava tranqüilamente deitado repouso nem de noite nem de dia, até que a gente consiga se desem-
e não parecia absolutamente se inquietar com aquêle número desusado baraçar dêles65 4 • Quase todo o nosso pessoal sofreu dessa incômoda
de espectadores, de modo que nos foi fácil atordoá-lo, batendo-lhe com praga, contra a qual não se conhece meio mais seguro do que fric-
um pequeno pau, e matá-lo. cionar o corpo com uma infusão de fumo. ~sses importunos insetos6 55
O resto da tarde foi consagrado ao exame da nossa prêsa, que, constituem um dos maiores contratempos para os viajantes, nas regiões
em seguida, foi colocada dentro dum barril de aguardente, que eu sêcas do interior da América Meridional, e, nesse particular, substituem
sempre levava comigo para tal fim. Essa aventura prova com evi- os mosquitos das zonas florestais e úmidas. Alguns dêsses carrapatos
dência a inexatidão e o exagêro das descrições que se têm feito da cas- atingem tamanho considerável e produzem muitas vêzes perigosas feridas,
cavel, pois êsse animal, como o observou Bartram652, só se torna peri- quando não devidamente tratadas; produzem mesmo doenças cutâneas
goso quando alguém se aproxima muito dêle sem o ver, irritando-o, nos homens pouco asseados 656 . No Paraguai chamam êste inseto de "vin-
portanto, e obrigando-o a se defender. Entre as diferentes espécies chuca"•, e na Guiana Francesa de "tique"••.
de serpentes é difícil achar uma que, por natureza, seja mais preguiçosa Vimos, aos montes, nos galhos, filhotes de gafanhotos (Gryllus),
do que a cascavel (Crotalus horridus) Linn.). Daudin descreveu-a muito gênero que conta numerosas espécies no Brasil; alguns são muito
bem. Ela atinge um comprimento de 5 a 9 pés e uma grossura propor- grandes, outros se fazem notar por suas belas côres. Não tive ocasião
cional; sua coloração é muito simples: cinzento-bruno, mesclado apenas de observar os numerosos bandos dêsses insetos que descreve Azara • • •.
de manchas em losango, mais claras e mais escuras. Parece que êles freqüentam de preferência os terrenos planos e desco-
Mal rompera o dia, após uma noite úmida, e já a nossa tropa bertos.
estava carregada e em movimento. Atravessamos um trecho agreste, Em breve achei-me no pequeno arraial de Poções657, cujo
entremeado de cerrados baixos e pastagens. Lindas Cassia de flôres vigário pareceu-me grande apreciador de bebidas fortes, pelo menos
amarelo-vivo•, bignônias, mimosas e palmeiras-licuri formam aqui a julgar pelo seu estado de completa embriaguez. O lugar conta uma
o interior das moitas, o que empresta aspecto pitoresco à paisagem, dúzia de casas e uma capela feita de barro.
malgrado o seu caráter rude e selvagem. Profundos vales cortam, A pequena distância daí começam as terras do capitão-mor
bruscamente, essas colinas de vertentes escarpadas; sombreiam-lhes Antônio Dias de Miranda, que costuma residir na fazenda de Uruba,
o fundo espêssas florestas, enquanto o solo, uniformemente constituído onde me tinha convidado a visitá-lo. Seu pai, o coronel João Gonçalves
de argila vermelho-escura, deixa ver, por tôda parte, os montículos da Costa, assim como vários de seus filhos, possuem em comum uma
amarelados e cônicos das térmitas. Anima a paisagem, aqui e ali, vasta extensão de terras, onde conservam grande quantidade de gado
algum gado que, tomado de espanto pelo inesperado aparecimento de em estado selvagem.
viajantes, olha com surprêsa para êles.
Vêem-se aqui, em grande abundância, o periquito de barriga alaran- ( *) AzARA, V oyages, etc., t. I, pág. 208.
jada (Psittacus cactorum) e a rôla de cauda comprida (Columba (**) Vide BARRERE, Bescreibunu von Cayene (tradução alemã), pág. U.
(***) Vide AzARA, Voyages, etc., vol. I, pág. 2U.
squamosa) 65 3.
Quando se atravessam as caatingas e os cerrados dessa região, (G54) :esses "carrapatlnhos", também chamados " micuins", são as larvas bexá podas
nunca a gente se precavê bastante contra os pequenos galhos das árvo- (o animal adulto tem sempre oito patas) de grande número de espécies, dentre as qual•
o muito conhecido e molesto "carrapato estrêla" (Amblyomna cayennense (Fab.) é,
res que ladeiam a estrada, pois se acham êles literalmente forrados de quase sempre, a mais comum (cf. Nelva & Penna, págs. 90-92 do trab. citado em nossa
uma porção incontável de pequenos carrapatos (Acarus), que os nota 651). E' durante os meses de estiagem (agôsto e outubro) que esta praga assume
em certos lugares as proporções do verdadeiro flagelo, desaparecendo, pelo contrário,
fazem ficar totalmente vermelhos. Se acontece alguém tocar num quase sempre completamente logo às primeiras chuvas, quando passa para os naturais
hospedeiros em que conclui a sua evolução, ou morre ao acaso das Intempéries_
(655) Não é ocioso lembrar que na acepção atual os carrapatos não pertencem
( *) (Suplem.). Cassia speciosa. ScHRADER, op. cit., pág. 718. à classe dos Insetos (Hexapoda), mas sim à das Aranhas (Arachnoidea).
(656 Sabe-se da enorme importância que vieram ter para a medicina os carrapatos,
(652) Convém lembrar que a observação de Bartram, a quem se deve uma Inte- que muitas vêzes são vectores normais ou ocasionais de agentes causadores não só de
ressante narrativa de viagem rica em assuntos de História Natural (Travels throuu North acidentes _locais (úlceras malignas) como até de graves doenças, quer no homem (tifo
and South Caroline, Phllad. 1791), reporta-se a alguma das espécies norte-americanas exantemátlco), quer nos animais (piroplasmoses).
do gênero Crotalus. (657) Wied escreve "Os Possões", por onde se depreende que, à semelhança de
( 658) Sôbre estas duas aves, j!i anteriormente tratadas, vejam-se as notas 575 e 568, outros topônimos, o artigo deveria ter sido, a principio, invariàvelmente usado junto ao
respectivamente. que ficou sendo depois, sõzinho, nome do lugar.
446 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA 447
O caminho para Uruba levou-me em seguida por uma zona are- animais; e uma chuva abundante, que durou tôda a tarde, ainda
nosa, coberta de arbustos secos, onde fui encontrar três espécies de veio aumentar os aborrecimentos da viagem. Chegados ao fundo do
Cactus novas para mim. Uma se distingue por seus rebentos muito vale tivemos ocasião de contemplar novas cenas agrestes; velhas e
felpudos; a outra por suas flôres vermelho vivo, reunidas em coroa alta; árvores de onde pendiam emaranhados compridos de Tillandsia,
na ponta dos ramos, como em nossos cardos, e de côr quase igual à que os portuguêses d_eno~inam "barba. de pau", ostentavam formas
das flôres de Cactus flagelliformis. verdadeiramente adm1ráve1s. Eram mmto comum as grandes araras
Essa zona apresenta aspecto muito pouco variado; o solo consistia vermelhas, tão pouco assustadiças, em razão da chuva, que conti-
quase que exclusivamente de barro amarelo avermelhado, e só o côco nuavam pousadas nas árvores, por baixo das quais passava a nossa
de licuri animava, raramente porém, a paisagem árida e selvagem. tropa barulhenta. Vimos em Ladeira algumas choças mal construídas
As araras, tão notáveis pela sua plumagem de um vermelho magnífico, de paus e barro, porém bastante grandes, habitadas por negros escravos,
eram extremamente comuns; pousavam muitas vêzes pertinho de nós, que cuidam do gado nos campos em redor. Há também nesse local
na sombra, sôbre os galhos mais baixos das grandes árvores. grandes plantações de algo~ão. . .
Daqui a seis léguas fica a fazenda d~ Cachoe~r:, de propne~ade
O calor era exaustivo; nenhuma aragem o amenizava, e o solo do coronel João Gonçalves da Costa, pa1 do capltao-mor. DeseJava
argiloso e árido, semelhantemente à areia de ofuscante brancura, vivamente travar conhecimento com êsse homem que, movendo guerra
refletia fortemente os raios do sol a pino. Atravessamos muitos córregos, aos índios de tôdas as bandas, foi o primeiro a abrir estradas praticáveis
de águas turvas e salgadas (água salobra). Dois, porém, límpidos no sertão, pois eu esperava colhêr dêle informações autênticas sôbre a
e frescos, nos deram fôrça e ânimo, especialmente o Uruba, cujas águas
região. Continuei o meu caminho através dum deserto matagal onde as
cristalinas serpenteiam à sombra das matas, entre margens cobertas de
montanhas se acumulam umas atrás das outras, tôdas cobertas de mato
vegetação virente.
baixo, interrompido aqui e ali por blocos salientes de rocha. M_uit~s
À noitinha, cheguei ao alto dum morro, onde acampamos ao pé dessas montanhas são massas desnudas de pedra de formas as ma1s dl-
dum curral, a meia légua da fazenda de Uruba. A noite foi tran- versas, mas de contôrno em geral arredondado na parte superior. Nos
qüila e agradável, e a lua, com a sua doce claridade, destacava em dife- trechos sem vegetação, via-se que o solo era constituído por argila ama-
rentes tons as colinas circunvizinhas. Durante tôda a noite não ces- relo-avermelhada. De um lado e doutro o caminho era fechado por
samos de ouvir inúmeras vozes de animais, pois os insuportáveis carra- mimosas espinhentas, de fôlhas finamente recorta~as, entremeada~
patos não nos deixaram dormir. Quando o dia surgiu, meus olhos foram aqui e ali de plantas lindamente floridas, entre as qua1s me contentarei
agradàvelmente surpreendidos com a encantadora vista de um vale de citar uma nova e magnífica espécie de Ipomaea, de grandes flôr~s
profundo, onde se acha situada a fazenda de Uruba. Altas montanhas, vermelho vivo, côr de fogo•. Os blocos de pedra, de formas as maiS
cobertas de sombrias matas, formam profunda depressão, no fundo da surpreendentes, semelhando algumas vêzes tôrres e torreões, e ergue~~o­
qual, acompanhando o córrego Uruba, surgem os telhados vermelhos se isolados por entre a vegetação, são habitados geralmente, nessa reg1ao,
das casas, em pitoresco contraste com o verde da vegetação. pela pequena Cavia a que já nos referimos sob o nome de "mocó" 658 e
Fui acolhido o mais amigàvelmente possível na casa do capitão- que é caçada com grande empenho, pela sua carne, tida como sab?rosa.
mor, embora êste estivesse ausente. Sua família que, tanto quanto Outrora, as hordas dos Camacãs inimigos erravam por essas solidões;
êle, é muito considerada nessas terras, cumulou-me de atenções. e os viajantes não podiam se aventurar nelas sem correr perigo de
Levaram a amabilidade a ponto de mandar uma porção de provisões vida; mas, por fim, forçaram-se aquêles índios a se retirar para as flo-
para a minha tropa, no morro onde estava o nosso acampamento; restas mais próximas do litoral, e já em 1806 firmava-se com êles
vários escravos dos dois sexos foram incumbidos disso. Teria de bom uma paz definitiva.
grado passado alguns dias nessa hospitaleira casa; mas como o chefe Reinava nessas matas pedregosas um calor insupo~tável; nelas
da família estava ausente, e uma demora maior não me traria vanta- não se sentia a menor aragem, e por todos os lados os raws sola~es ~e
gens, decidi-me a prosseguir viagem nesse mesmo dia, e, ao meio-dia, refletiam fortemente. O próprio solo escaldava, os homens e os amma1s
reuni-me ao meu pessoal, depois de ter recebido de presente alguns arfavam exaustos; só as soberbas araras, perto de nós, pareciam com-
papagaios faladores. prazer-se nessa temperatura abrasadora. Voavam gritando em tôdas as
Chegamos no mesmo dia à fazenda da Ladeira, situada num vale
muito profundo, no seio duma região extremamente montanhosa; (*) (Suplem.). Convolvulus igneus. ScHRADER, op. cit., pág. 716.
pertence também à família do capitão-mor. A descida, pela floresta
que cobre uniformemente tôda a região, foi penosíssima para os (658) Nota 578.
448 VIAGEM AO BRASIL ' CAPITAL DA BAHIA
DE CONQUISTA A 449
direções, enquanto quase tôdas as outras aves se deixavam ficar quietas, Quando começou a se estabelecer nesses ermos, as florestas esta-
à sombra dos galhos, durante as horas mais quentes do dia. Quanto vam cheias de animais ferozes. Só nos primeiros meses matou 24 onças
a nós, não nos foi possível fazer uma parada nas horas de calor mais (jaguarété) e, em cada mês seguinte, um certo número, ' que foi sempre
intenso, continuando a viagem até a noite, quando, no prolongamento decrescendo, de sorte que, por fim, pôde tentar a construção de um
de um vale selvagem, alcançamos a fazenda, e pudemos descansar de curral para o gado bravio, coisa que a princípio teria sido absolutamente
um dia extenuante. inexeqüível devido àqueles grandes e perigosos felinos. Abriu, em
Na fazenda da Cachoeira, os negros, as suas choças construídas em seguida, vários caminhos e estradas, da qJial a mais importante é a que,
tôrno da habitação do coronel João Gonçalves da Costa, tinham formado passando por Tamburil, dirige-se para as fronteiras de Minas Gerais.
uma pequena aldeia, cuja situação não era nada agradável, pois dela Ela lhe custou muito tempo e exigiu-lhe grandes adiantamentos em
não se descortinava senão uma vista triste e inanimada, que me fêz dinheiro, de que ainda não foi reembolsado pelo govêrno. Como recom-
lembrar as pinturas de paisagens africanas. O proprietário, cuja casa pensa, promoveram-no do pôsto de capitão-mor ao de coronel. Passa
pegara fogo havia pouco tempo, reside habitualmente num sítio vizi- a maior parte do seu tempo vago nas diferentes fazendas que possui, e
nho; só por acaso achava-se agora aqui. Era um velho de oitenta e onde fáz grandes plantações de algodão e milho. Fornece êste último
seis anos, ainda ativo e robusto, vencendo em vivacidade muita gente produto com grande generosidade e cortesia a todos os viajantes. O
môça. Percebia-se logo, que em idade menos avançada devia ter sido estrangeiro que percorre êsse isolado e quase desabitado sertão, nunca
dotado de grande vigor, coragem e ousadia. Recebeu-me da forma mais há de esquecer a hospitalidade recebida da família do coronel da Costa,
amigável possível, testemunhando a alegria de poder ver um europeu; e principalmente de seu filho, o capitão-mor Miranda. A lembrança
a sua palestra era instrutiva e cheia de interêsse para qualquer dêsses homens de bem vive mesmo em afastadas terras, onde ficará
viajante. Na idade de dezesseis anos, seguia a sua vocação, que era imperecível o reconhecimento a que têm direito.
a de conhecer terras distantes. Abandonou sua pátria, Portugal, e Depois de Cachoeira os montes continuam uniformemente cobertos
veio estabelecer-se no meio das montanhas selvagens do sertão da de matas até o vale do rio das Contas, onde se chega após um dia de
capitania da Bahia, onde se abria, às suas energias, um vasto campo viagem. O calor intenso tornou penosíssima a falta d'água, durante tôda
de atividades para muitos anos. Combateu, com grande denôdo e essa travessia. As águas dos córregos têm um gôsto salgado, devido pro-
perseverança, os índios Patachós, que êl:e denominava Cutachós, os vàvelmente ao fato de atravessarem subterrâneamente camadas de sal,
Camacãs e os Botocudos. Percorreu, fazendo despesas consideráveis pois são esbranquiçadas e turvas. Os ninhos de térmitas e as
e empregando os mais persistentes esforços, tôdas essas matas virgens; araras são as únicas coisas notáveis do reino animal, que aí se
foi o primeiro a navegar vários rios, como o rio Pardo, o rio das vêem. Em compensação, observei vários vegetais interessantes, entre
Contas, o rio de Ilhéus e parte do rio Grande de Belmonte, desco- outros um arbusto de 4 a 5 pés de altura, provido de grandes flôres
brindo-lhes a embocadura no mar e as suas comunicações entre si. tubulosas amarelas pontilhadas de violeta por dentro, e de fôlhas grandes
No rio Pardo, sustentou vários combates contra os Botocudos. Tais e bonitas•.
feitos lhe deram freqüentes oportunidades de demonstrar um caráter Exausto pelo calor sufocante e pelo tempo que ameaçava temporal,
extremamente decidido e grande perseverança de ânimo. Um dia, nem 'por isso deixamos de prosseguir em nossa marcha através de
por exemplo, acompanhado de pequeno número de homens armados, matas baixas e ininterruptas. Os córregos estavam, na sua maioria,
aproximou-se tanto duma grande "rancharia" de Patachós que não secos, e foi em vão que procuramos um filête d'água para estancar a nossa
pôde mais voltar sôbre seus passos; escondeu-se então o mais depressa sêde. Finalmente, ao cair da tarde, as montanhas se abriram um pouco,
que pôde, atrás de um tronco caído, com dois de seus homens, e desvendando-nos cambiantes magníficas de iluminação e variedades de
mandou que alguns outros companheiros rodeassem a mata. Não cenário, que logo nos deram a certeza da proximidade dum grande
esperando poder permanecer por muito tempo nessa perigosa posição, rio; e, efetivamente, não tardamos em alcançar as margens do rio das
sem ser d~sc~berto, la_nçou-se inopinadamente no meio dos selvagens, Contas.
dando d~Is tiros ~e pistola, com o que os pôs em grande pânico, for- ~sse rio, que teve a princípio o nome de Jussiappe, nasce na co-
çan?o-os a fuga, nao sem que lhe deixassem nas mãos alguns prisioneiros. marca de Jacobina e recebe vários afluentes. Seu leito, no ponto em
~ais tarde, c?meçou a civilizar e batizar muitos Camacãs; depois uti-
lizou-se vantaJOSamente dêles em suas incursões contra outros selvagens. (* ) (Suplem.). Holoreumia 1Jiscida, Nees ab Esenbeck: Class. Llnn. Didynamla
Anglospermla famflla naturalis Bignonlacearum. Locus prope Spatbodeam et Crescentiam.
Assegurou-me que os índios, quando reunidos aos brancos, demonstram Charact. essent.: Calyx tubulosus, trilobls Iatere lnfero tlssus. Corola lnfundibullformls,
sempre grande coragem nos combates. limbo quimquetido, subaequall. Nectarium-gymnobasicum, magnum di sciforme. Rudlmentum
tllamenti qulntl. Capsula bllocularis.
450 VIAGEM AO BRASIL DE CO QUISTA À CAPITAL DA BAHIA 451

que nos achávamos, media apenas 60 passos de largura, porém dizem que das•; nos pântanos ouvia-se a voz retumbante do ferreiro. Os
êle se alarga logo depois e que, junto à sua foz, é muito considerá- caçadores de tôda a região afirmavam-me a existência de uma espécie
vel•659. Passamo-lo a vau, sem custo, em nossos cavalos; na sua de jacu (Penelope), que não ocorre nem mais ao sul nem mais perto da
margem setentrional viam-se duas cabanas, onde o proprietário dessas costa. Não tive ocasião de ver essa ave; mas, pela descrição que dela
terras, o coronel de Sá, pôs algumas famílias de negros escravos para me fizeram parece tratar-se de Penelope cristata de Linneu 662 .
tomar conta duma venda. Os viajantes aí podem obter milho, aguar- Como nos aproximássemos, ao crepúsculo, do lugar em que os
dente e rapadura. O coronel mora numa grande fazenda situada cinco nossos burros pastavam, vimos esvoaçar em volta dêles grande número
léguas abaixo, nas margens do rio. de morcegos, fazendo grande ruído com o bater das asas. Com grande
As terras que margeiam o rio das Contas, no ponto em que as pesar de nossa parte, nada pudemos fazer contra êsses ameaçadores
pude contemplar, eram muito pitorescas. Montanhas de variadas inimigos, porque a escuridão nos impedia de atirar sôbre êles. Ficamos
formas, cobertas de verdes matas, se elevam de todos os lados, enquanto bem inquietos pelos nossos pobres animais, o que tinha muita razão
na sua base erguem-se altos capões de belas e sombrias árvores, entre- de ser, pois que, quando voltou a luz do dia, os encontramos todos escor-
meadas de prados verdejantes. As próprias margens são ensombradas por rendo muito sangue, a ponto de não ser difícil prever, que, com essa san-
velhas mimosas de fôlhas finamente recortadas, e de dentro da sombra gria, a maior parte dêles não estava em condições de nos servir durante
ouve-se sair a voz rouquenha e forte das araras. Essa região, muito aquêle dia. ~sses vampiros (Phyllostomus) fazem um grande orifício
pouco habitada ainda, passa por ser grandemente sujeita a febres66o; na pele dos animais com os seus dentes, abrem-lhes a veia e sugam-
entretanto, o velho coronel da Costa me assegurou que tais epidemias lhes o sangue, que continua escorrendo por muito tempo depois que dêle
não são causadas pelo clima mas sim pela corrupção de imensa quan- se fartaram. Conta Koster que, em alguns lugares, costuma-se suspen-
tidade de cápsulas de algodão que se costuma atirar no rio. Depois que der por cima do animal uma pele de coruja para preservá-lo daqueles
se deixou de fazê-lo, as febres se tornaram menos freqüentes. Colhemos perigosos inimigos+*. ~ão pude determinar a espécie a que per-
nos rios dessa zona, tais como o Ilhéus, o Taípe e outros, várias pequenas tenciam êsses morcegos, tão numerosos no lugar em que nos achá-
plantas aquáticas muito delicadas, entre as quais uma Azollau, que vamos663; todavia presumo, pelo que me informaram os habitantes,
se mostra à tona d'água, e outra, Potamogeton tenuifolius, Humboldt e que se trata de "guandirás" ou "jandirás" • U664.
Bonpland •••, que se via um pouco mais ao fundo, e se achava de per-
(*) Daudin publicou uma boa estampa clêsse animal em sua Histoil·e ?Jattt>·el/e
meio com uma espécie nova de Caulinia•••• . des rainettes, des grenouilles et des crapauds, est. XXXVII.
As margens do rio das Contas contêm muitas coisas notáveis para (**) Cf. KosTER, Travels, etc., pág. 292.
(***) O "guand irá " das regiões que percorri, parece-me ser uma espécie diferente
a história natural. Ao cair da noite observei grande quantidade de do vampiro comum (Phyllostomus spectrum) : dou-lhe o nome de Phyllostomus maximus.
sapos (Bufo agua, Linn.) 661, alguns de dimensões colossais, cujo dorso Não só é maior que o vampiro de Azara (" chaurie-souris troisiême ou chauve-souris brune"),
como possui uma cauda, caráter que falta inteiramente ao último. O guandirá por mim
cinzento-amarelado é coberto de manchas irregulares bruno-denegri- encontrado tem as dimensões seguintes: comprimento, 5 polegadas e 1 linha, compreendida
a caucla insignificante de 7'h Unhas, contida tõda na membrana voadora; envergadura das
asas, 22 polegadas e 10 linhas; altura da orelha externa acima da cabeça, 8 linhas; altura da
(*) A Corografia Brasílica, tomo IJ , pág. 101, dá sôbre êsse rio os seguintes membra na acima do nariz entre 4 e 5 linhas; comprimento do polegar, 5 linhas e meia; com-
informes: "Tem a origem, e seus primeiros confluentes na comarca de Jacobina, onde primento do metatarso 11 linhas e meia. Parte superior do corpo cinzento bruno carregado,
dêles falaremos. Os que se lhe juntam em estoutra pela margem setentrional, são: às vêzes um pouco avermelhado; partes inferiores mais pálidas.
o rio Prêto, o das Pedras, o Manageru, o Ribeirão d ' Areia, o Pires, o Agua-Branca,
o Oricó-guaçu, que atravessam grandes matas, onde podem estabelecer-se numerosas (662) Penelope cristata Gmelin é espécie centro-americana, estranha à fauna brasi-
colônias. Pela margem austral incorpora-se-lhe o rio Grungugi, que lhe é pouco inferior, leira. O autor não voltou a fazer depois qualquer nova alusão à ave, a que se refere
e cujo principal ramo é o rio Salina. Os lndios Patachós dominaram as suas adjacências. por informação dos naturais. E' quase certo porém tratar-se da espécie descoberta
Abaixo desta confluência está o sitio dos Funis, onde o rio corre com rapidez, repartido, pouco depois em Poções por Spix, que a descreveu com o nome Penelope jacucaca,
e quase escondido por entre penedias. Desemboca obra de dez léguas ao su l da ponta aproveitando-lh e o apelido vulgar. Ela ocorre em grande parte do interior da Bahia e
de Muttá, e outras tantas ao Norte de Ilhéus. As su macas sobem por êle quatro léguas vai até o Piaul.
até a primeira cachoeira, onde há uma populosa Aldeia com uma ermida". (663) Como se depreende dos esclarecimentos prestados mais tarde (Wied, Beitrage,
(**) (Suplem.). Azolla magellanica Willdenow; ScHRADER, op. cit., pág. 715. li, pág. 179 e ss.) os morcegos colecionados nesse lugar pelo nosso viajante pertenciam
(***) (Suplem. Najas tenera. SCHRADER, op. cit., pág. 715. à espécie Phyllostomus hastat11s (Palias, 1767), de porte muito avantajado, mas não
(****) (Suplem.). Caulinia Wild. (= Fluvialis Persson) t enella, Nees ab Esenbeck: hematófaga. Aliás, o próprio Wied verificara a a usência de sangue no conteúdo estomacal
C. foliis oppositis, linearibus argute serratis flexilibus, caule trichotomo. de seus exemplares (op. cit., pág. 185).
. (664) Convém recordar que os morcegos hematófagos pertencem a urna familia
(659) O ~recho da "Corografia Brasílica" constante da nota que na presente ed ição particular, Desmodidae, cujos membros se reconhecem especialmente pela conformação carac-
se transcreve literalmente da obra original, aparece vertido em alemão com admirável terlst.i ca dos dois incisivqs centrais superiores, falciformes e estreitamente contlguos. A
fidelidade , no livro de Wied. ' esJ?éCie mais. comum é Desmodus rotundus (Geoffr.), de que é sinônimo Desmodus rufus
(660) ~sse quad!o até hoje pouco se modificou, pois tradicional é a malignidade Wted (''Abbtl~ungen" e "Beitrãge", li, pág. 238), cuja descrição baseou-se num único
das febres palustres remantes no vale do rio Gongogi (cf. O. Pinto, Rev. Museu Paulista, exemplar, '?bttdo no Esplrito Santo (ltabapuana) pelo naturalista germânico, que não
XIX, págs. 20-21). põde suspettar-lhe _porém o regime alimentar. A vista do que nos conta Wied sôbre
(661) Bufo agua Daudin, que Wied identificara depois ao seu Bufo bimaculatus o estado em que ftcaram os seus animais, devemos ter como certa a existência, no lugar,
(vide a nota 85, dêstes comentários), cai na sinonlmia ele Bufo -marim1s Linn. Dos nossos de morcegos hematófagos, ao lado da espécie inócua a que nos referimos na prece-
sapos é o mais comum e também o que atinge maiores dimensões. dente nota.
452 VIAGEM AO BRASIL ' CAPITAL DA BAHIA
DE CONQUISTA A 453

Vi, ao partir, grande quantidade de belos pombos selvagens, que Entre os vários acidentes de que fui testemunha, limito-me a citar
a princípio tomei por Columba speciosa, mas que logo depois me con- um, apenas. Um chinês, que morava perto de Caravelas, na fazenda
venci pertencerem a uma espécie particular, que eu nunca vira e cuja em que eu me achava, foi mordido por uma cobra. Como já era tarde
carne é de muito bom paladar•665. e não dispunha de outro meiç>. amarrei-lhe o pé acima da ferida, sôbre a
Segui, pelo espaço de aproximadamente uma légua, o vale do rio, qual se viam duas pequenas gotas de sangue; escarifiquei-a, e, em
e em seguida rumamos para o Norte, em direção às montanhas. seguida, chupei-a longamente, pois ninguém ousava fazê-lo. Depois
Essa região é pouquíssimo habitada, e tôda ela coberta de matas virgens, queimei a ferida com pólvora de caça, apliquei compressas de sal e,
que em certos pontos as touceiras de Bromelia e os grandes bambus finalmente, fiz o homem ingerir sal misturado com aguardente.
("taquaruçu") tornam impenetráveis. Aparece aqui em abundância a O doente, tal como todos os que tinham sido mordidos por cobra,
bela gralha de barba azul a que Azara chamou Acahéu (Corvus sentia fortes dores no pé, e tanto mais receava pela vida quanto várias
cyanopogon), mas que os naturais conhecem por "quem-quem"666. pessoas de idade se mostravam descontentes com a forma pela qual
Um dos meus homens, que ia descalço junto dos ·burros, avistou, êle havia sido tratado, dando-lhe, sem que eu visse, uma infusão de
em tempo ainda de poder matá-la com uma paulada, uma serpente ervas. Na manhã seguinte, as dores tinham desaparecido, e com elas as
enrolada sôbre si mesma, e descansando no meio das fôlhas sêcas ao pé da inquietações. Infelizmente, não pude, nem mesmo aproximadamente,
estrada. A primeira vista parecia, pela coloração e aspecto, ter a maior determinar a espécie de serpente, pois não a puderam matar.
semelhança com a jararaca; mas, depois de examiná-la com mais atenção, O Sr. Sellow me comunicou um acidente mais grave. O jovem
reconheci que se tratava de espécie bem distinta•:•667. puri que o Sr. Freyreiss tinha comprado em São Fidélis, foi, quando
(*) Columba leucoptera parece maior que a "trocais" (Columba speciosa); caçava, mordido no p.é por uma víbora66s, no mês de outubro de 1816.
forma esbelta; bico anegrado; pés vermelhos; plumagem cinzento-azulada; penas do A perna estava um pouco inchada quando êle voltou para casa, meia
pescoço marcadas por um linba arqueada, estreita, escura; uropígio azul cinzento vivo;
penas do bordo externo da asa e coberteiras superiores brancas, o que forma, nessa porção hora depois; amarraram o pé, escarificaram a ferida e chuparam-na
da asa, uma larga cercadura desta côr. várias vêzes, e como não dispunham de outro sudorífico, deram aguar-
(**) (Suplem.). Temminck, em sua bela obra Intitulada Nouveau Récueil de
Planches coloriées d' oiseaux, tab. 58, deu-nos uma figura do "Acahé ", pela qual não se dente ao enfêrmo; queimaram a ferida várias vêzes com pólvora de
pode fazer uma idéia exata dessa ave; com efeito. as suns partes superiores não são
absolutamente azuis como a figura as representa, mas sim, quase pretas; a cauda, atirar, deitaram-no depois numa rêde, e polvilharam a ferida com pó
particularmente, é preta; a parte superior do pescoço e a nuca são branco-azulados, de cantárida. O pé inchou enormemente.
passando muitas vêzes ao violeta. Pelo contrário, a bela côr azul, que orna essa 58.•
estampa, pertence integralmente à gralha azul de cauda branca, que eu citei em curta Um mineiro, que ali se encontrava, trouxe duas raízes, cujas vir-
nota à página 373 do segundo tomo desta descrição de viagem. E' possível que, pintando
essa estampa, se tenha sido levado a êrro pela descrição de Azara, pois devo observar que tudes enalteceu; uma delas estava esponjosa e insípida, motivo pelo qual
êste naturalista, aliás tão escrupuloso, descreve as côres com pouca exatidão, ou multo foi rejeitada; com a outra, pelo contrário, que era muito amarga e pa-
superficialmente; assim é que êle, por exemplo, chama muitas vêzes azul-celeste a côr
plúmbea ou de cinza, azul-celeste, ou mesmo azul, o prêto, com brilho apenas percep- recia ser a raiz de Aristolochia ringens, fizeram uma forte infusão. É
tível de azul, etc.
(***) Essa serpente venenosa pertence ao gênero Cophias, estabelecido por MERREM difícil apurar se os vômitos que se seguiram foram devidos à infusão, à
(cf. Versuch eines Systems Amphibien, pág. 154); é uma espécie ainda não descrita aguardente ou à mordedura. A noite foi tranqüila; no dia seguinte o pé
que denomino Cophias holosericeus por causa do seu belo brilho aveludado. Por sua
forma e coloração parece muito com a jararaca (Cophias atrox), com que geralmente e a perna estavam inchados com o dôbro de seu tamanho natural.
se confunde no Brasil; observando-a atentamente, verificam-se as diferenças. Cabeça
chata e muito saliente no ponto de nascença dos maxilares, o que lhe dá a aparência Tão irritável ·estava o doente que, ao menor ruído, punha-se a gritar
de um ferro de lança; essas duas partes salientes são marcadas por uma listra clara e chorar. Tendo o mineiro declarado que um doente nesse estado
longitudinal sôbre fundo mais carregado; essas listas nascem em cima dos olhos. Parte
superior do corpo bruno-escura, côr de café, que rebrilha como um belo veludo, marcada de não pode ver mulher, o jovem índio, assim que ouviu a voz de uma
manchas mais claras, losângicas, distribuídas longitudinalmente no dorso, com as pontas môça, bradou: "Maria, cala a bôcal"
opostas; comprimento, 22 polegadas e 6 linbas, inclusive a cauda com a polegadas e 5
linhas e meia; 46 pares de placas caudais. Como o sangue lhe escorria da bôca, não lhe deram mais remédios,
(665) Columba leucoptera Wied corresponde precisamente à raça este-brasileira de e aplicaram-lhe no pé umas fôlhas provàvelmente de Plumeria obo-
uma e.spécie des<;rita no Paraguai por Azara, com o nome de "Picazuro", e mais . tarde vata, que o doent-e muito apreciou, dizendo ter sentido grande alívio.
denommada têcmcamente Columba picazuro por Temminck (1813). Entretanto, o nome
prop~sto pelo nosso viajante, precedido que fôra por C. leucoptera Linn. (espécie norte- Espalhou-se, por cima da ferida, o pó da raíz dessa planta; o doente
amer!cana, pertenc;ent!" hoje ao gênero M elopelia), teve de ser substituído, donde chamar-se
C. ptcazuro margtnalts Naumburg a ave referida por Wied. A raça paraguaia, a que não tardou em sarar.
falta; quas~ . inteira~ente o branco no lado externo das asas, estende-se também pelo
Bras1l mendwna! (Rw Grande do Sul) e oeste-meridional (Mato Grosso), onde é aparen-
temente confundida com Columba speciosa Gmelin, sob a denominação de "pomba . trocaz". (667) O autor nos Beitriige (vol. I, p. 490), volta a tratar dêsse ofídio sob o
Acr_escente-se que a. ~orma este-brasileira foi por Wied, no vol. IV (pág. 459) dos Beitriige, nome duvidoso de Oophias holosericeus. Está-se geralmente de acôrdo em reconhecê-lo
erroneamente 1denbf1cada a Columba poeciloptera Vielllot sinônimo de C. maculosa Tem- na espécie descrita por Wagler com o nome de Bothrops neuwiedi (vulgarmente "jararaca
minck, ave platina, que no Brasil ocorre apenas no ext;emo sul (Rio Uruguai). de rabo branco"), mediante exemplares colecionados por Spix.
(666) No original "geng-geng". Já houve referência a esta gralha (veja a nota (ft68) "Viper" no original. Víbora é nome que os europeus de ordinário aplicam,
581 dêstes comentários). genericamente, às serpentes venenosas.

,
(
454 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA 455

Numa pequena viagem que o Sr. Sellow fêz nos arredores do sem beber até o dia seguinte. A fim de aliviar-lhes o sofrimento o mais
Rio de Janeiro, encontrou êle um negro que, mordido por uma cobra, depressa possível, parti desde muito cedo e atravessei de novo vastas
estava estendido por terra, completamente prostrado; tinha o rosto florestas, onde as árvores aumentavam progressivamente• de altura, à
intumescido e respirava ruidosamente, botando sangue pela bôca, nariz medida que a costa se aproximava.
e orelhas. Deram-lhe para comer a gordura de um grande lagarto, ou Entre várias plantas novas, notei três espécies de Ilex) de belas
"teiú" (Lacerta teguixin Linn.), que é sempre encontrada como medi- fôlhas lustrosas, algumas muito grandes•. Os rebanhos de gado que
camento, nas casas dos brasileiros. Antes lhe haviam feito tomar inter- se mandam vender na Bahia estragam de tal modo essa estrada nos
namente .e aplicar por fora uma infusão duma espécie de Verbena) tempos de chuva, que os animais correm o risco de quebrar as pernas;
a que o Sr. Sellow deu o nome de virgata, e que dizem ser um poderoso além disso, as montanhas, muito íngremes, causam também grande
sudorífico. Se bem que o Sr. Sellow não tenha podido aguardar o fim obstáculo à sua marcha, mormente quando há declive, e o terreno
da cura, o que acaba de ser contado basta para dar idéia da maneira untuoso e barrento está molhado, tornando-se escorregadio. Uma
pela qual os brasileiros do interior tratam os doentes dessa espécie. E' dessas montanhas foi particularmente penosa de escalar; foi preciso
exatamente como entre nós: cada qual conhece um remédio que é uma hora inteira para chegar ao alto dela. Havia aí árvores de Bombax)
muito melhor do que o dos outros. Depois recomenda-se um certo ou "barrigudas", de enormes e bojudos troncos; suas grandes flôres, de
número de Padre-nossos e Ave-Marias. cinco pétalas longas e esbranquiçadas, cobriam todo o solo em volta.
Num cachorro mordido de cobra observei acidentes inteiramente Há muitas espécies dessas Bombax bojudas, as quais podem se distinguir
diferentes, provàvelmente por tratar-se de outra espécie de serpente. Foi ' prontamente pela forma de suas fôlhas; em algumas as fôlhas são
com um dos meus cães de caça, mordido no pescoço por uma víbora, lobadas, porém as da a que me refiro são inteiras. Vi sôbre os troncos
entre as moitas da praia arenosa. O pescoço logo inchou, assim como muitos lagartos de um belo verde diversamente matizado; não eram
a cabeça, e essas duas partes do corpo ficaram tão monstruosas que a muito ariscos, porém inchavam o saco da garganta logo que alguém
custo se distinguiam os olhos. Ao cabo de três dias, durante os quais dêles se aproximava. Essa faculdade lhes valeu o nome de "papa-
se teve que obrigá-lo a só ingerir líquidos, a inchação desapareceu, vento"669, que lhes deram os portuguêses••.
da mesma forma que a doença; mas a pele do pescoço ficou No dia seguinte atravessei uma zona ondulada, parcialmente
sempre mole e caída. O contrário se deu com o cachorro a que tive coberta de altas florestas; só encontramos nela água turva e má para
ocasião de me referir tratando de minha estada em Vila Viçosa, o qual beber. Abundava aqui nas matas o imbuzeiro, árvore do "imbu",
fôra mordido na espádua, às cinco horas da tarde; o seu corpo inchou fruto amarelo e arredondado do tamanho duma ameixa, e de gôsto
muito, e, depois de ter uivado durante tôda a noite, morreu no dia aromático extremamente agradáve1•••o1o.
seguinte às dez horas da manhã.
(*) (Suplem.). Celastnts ilicifolia. ScHRAnER, op. cit., págs. 719 e 720. Celastnts
Terminada essa pequena digressão, volto à narrativa de minha quadmngulata. Op. cit., pâg. 716.
viagem. (**) A gama catenata, bela espécie ainda não descrita; comprimento do corpo,
3 polegadas e 5 linhas e meia; cauda, 6 polegadas e 11 linhas; alguns exemplares são
Passei a noite ao relento numa pequena campina, rodeada de matas, maiores. Côr verde capim claro; extremidade do focinho e listras transversais da
cabeça, amarelo esverdeado, cercados de prêto; o resto da parte superior da cabeça
conhecida por Cabeça de Boi. Perto de nós crescia uma Aristolochia cinzento bruno, com listras mais carregadas. Ao longo do dorso, estende-se uma pequena
de enormes flôres de côr amarelada e extraordinária configuração•. crista membranosa, denteada, cercada duma série de manchas cinzento bruno carregado
com bordos pretos, orlada por uma linha verde vivo; mancl1as do dorso um tanto esverdeadas
Humboldt menciona uma espécie dêsse gênero, cujas flôres são de di- apêndice prêto fora da linha verde, seguindo-se de cada lado do dorso uma larga faixa
no centro, ora mais próximas umas das outras, ora mais afastadas em losango; pequeno
mensões tais que as crianças cobrem com elas a cabeça, como se fôssem reta verde azulada pálido que se prolonga um pouco além da base da cauda, depois
um gorro. Vi-me obrigado, para ter água para beber, a mandar pro- desaparece, terminando do lado verde do animal por uma série de pequenos pontos pretos
muito juntos; pequenas manchas escuras isoladas, espalhadas sôbre o fundo verde. Parte
curá-la por vários dos meus homens. Depois de andarem longo tempo à inferior branca, marcada embaixo dos olhos e de cada lado do pescoço por uma li stra
procura, acharam enfim uma poça d'água bastante clara, em cima dum negro bruno, e salpicada de pequenos pontos e mancl1as negro bruno isoladas.
(***) Spondias tuberosa Arruda. Vide KosTER, Travels, etc., pâg. 496, em apêndice.
rochedo, na escuridão da mata; juntaram também nas vasilhas a água
que se tinha conservado entre rijas fôlhas de bromélias. Foi com tal (669) A espécie corresponde à atual denominação de Enyalius catenatus catenatus
(Wied), e é vulgarmente conhecida por "papa-vento", (nome comum a numerosas espécies)
recurso que pudemos desalterar a sêde dos homens, dos cães e dos ou "aniju-acanga", segundo Amaral (Mern. Inst. Butantan, XI, pâg. 176). Em suas
Abbildungen, deu-nos Wied esplêndida estampa dêste lagarto, também minuciosamente
papagaios. Quanto aos nossos pobres animais de carga, que não puderam descrito em Beitrlige, vol. I, pâgs. 181-137.
subir no rochedo em que se achava a água, viram-se obrigados a passar (670) Na aridez das caatingas do nordeste brasileiro, é o umbuzeiro árvore
verdadeiramente. providencial para o homem, graças não somente aos seus sumarentos
frutos, como principalmente pela abundante provisão de água, quase pura, que acumula
nos grandes tubérculos existentes nas raizes. E' conhecida a passagem em que ao assunto
(*) (Suplem.). Ar·istolochia mm·supiiflora. ScHRADER, op. cit., pâg. 719. se refere Euclides da Cunha em seu famoso livro Os Sertões.
' CAPITAL DA BAHIA
DE CONQUISTA A 457
456 VIAGEM AO BRASIL

Fazendas em que se possa passar a noite são raríssimas nessa de pequenos prados, situados nas vertentes das montanhas, lembrando
zona. Em plantações outrora cuidadas, hoje deixadas ao abandono, a paisagem dos Alpes europeus. Essas pequenas habitações campestres
vi numerosas moitas de soberbas Bougainvillea brasiliensis, tornadas aumentam de número à medida que se desce o curso do rio.
inteiramente vermelhas pelas grandes brácteas, e, ao lado delas, real- À noite, encontrei na fazenda de Areia várias famílias reunidas,
çando o quadro, a Cassia de flôres alaranjado vivo. e especialmente os moços da redondeza. Como era domingo, todos
Encontramos nesse local, da mesma forma que em várias fazendas procuravam divertir-se, cantando com acompanhamento de viola,
do sertão, uma espécie de alpendre, aberto dos lados, mas coberto e fazendo tôda sorte de brincadeiras. À nossa chegada todos largaram
por um teto debaixo do qual os viajantes costumavam se meter, para o divertimento e correram para nos ver, enchendo-nos de perguntas.
passar a noite ao abrigo das intempéries. A casa do proprietário da Como na maior parte das localidades do sertão, aqui não existe igreja;
fazenda de Santa Inês ficava nas imediações dêsse barracão, cercando-a os habitantes, que moram a pouca distância uns dos outros, se reúnem
de todos os lados as plantações e a mata. Mostraram-me a pele gigan- para ouvir missa em comum, e passam o resto do dia divertindo-se.
tesca de um tigre prêto (Felis brasiliensis) 671 , morto havia pouco nas Caminhamos sempre seguindo o curso do rio, que se foi tornando
matas vizinhas; media 6 pés de comprimento fora a cauda; não me cada vez mais forte e impetuoso; viam-se através das velhas árvores
quiseram cedê-la porque os portuguêses a empregam como mantas de das florestas as suas águas brancas de escuma e barulhentas; são fre-
montaria. qüentemente avolumadas pelas águas de vários ribeiros, cujo leito
Muitas tropas de Minas, ou do sertão, que se tinham abrigado como ..é constituído apenas de rochas primitivas, completamente nuas; corre-
nós sob o alpendre, levavam consigo uma quantidade de papagaios, se todo o instante o risco, atravessando-os a vau, de cair do cavalo.
ainda novos, que iam ensinar a falar, para vendê-los na Bahia. A argila untuosa e amarelo-avermelhada, que forma o terreno da maior
Fazia luar, e o tempo estava belíssimo; aproveitei-o para mandar parte da estrada, estava por tal forma encharcada pela abundância
meu pessoal caçar rãs da espécie chamada "ferreiro", extremamente das chuvas, que os caminhos tinham ficado inteiramente sem firmeza;
abundantes nos charcos próximos. Armaram-se dum tição aceso e vol- as boiadas que por êles passam agravam êsse inconveniente, com os
taram com vários dêsses moradores dos pântanos. O ferreiro é uma buracos fundos que fazem. Os morros e os espigões que constante-
espécie nova de rã, que ainda não foi descrita • 672 • Não é muito grande; mente se sucedem, aument~m a fadiga da marcha para os animais
por isso mesmo a fôrça da sua voz ainda mais surpreende. Encontrou-se muito carregados, de forma que só se pode viajar muito lentamente.
também outra rãzinha elegantemente sarapintada • •. Vim descobrindo um número cada vez maior de habitações isoladas,
Depois de deixarmos Santa Inês, a nossa viagem se tornou mais que nos ofereciam perspectivas muito pitorescas, sobretudo nessa
amena. A região toma um aspecto mais romântico; as matas são mais época em que, por efeito da grande umidade somada ao calor, a vege-
altas e frondosas e dão, por conseguinte, mais sombra e frescura. En- tação se desenvolve com riqueza e perfeição maravilhosas. Vi em alguns
contramos com freqüência água muito boa. A estrada desce sempre, lugares, amontoadas, muitas pranchas um tanto achatadas, que os
cada vez mais, deixando perceber que nos vamos aproximando do índios reúnem em balsas, para depois fazê-las flutuar rio abaixo, até
litoral. o mar. A povoação de Jiquiriçá, situada na embocadura do rio, é
Em breve atingimos o vale banhado pelo rio Jiquiriçá, que não em grande parte habitada por índios que comerciam com o vinhático e
é muito caudaloso, mas que se precipita espumando por sôbre pito- outras árvores úteis, abatidas por êles no seio das florestas e lançadas
rescos rochedos, através de matas sombrias. Fazendas isoladas, com em seguida à correnteza do rio. Nas enchentes bastam três dias para
seus tetos vermelhos, mostravam-se de quando em quando, no meio a balsa chegar ao seu destino; mas quando as águas baixam, essa
(*) Denominei-a Hyla faber; comprimento, 3 polegadas e § linhas; patas multo
longas, dedos grossos, palmas arredondadas e fortes; meias-membranas natatórias nas
operação exige o dôbro do tempo. :ltles recebem por cada prancha de
patas anteriores; corpo amarelado, Inteiramente tirante a côr da terra, com uma listra madeira de 6.000 a 8.000 réis, cêrca de 19 a 25 florins em nossa moeda,
escura estendida desde o extremo do focinho até entre as coxas; coxas e pernas marcadas por em que se inclui o trabalho de derrubá-la e transportá-la. Durante
faixas transversais acinzentadas-pálido; linhas escuras estreitas e em parte alteadas
na porção anterior do corpo; pele lisa, apenas chagrlnada de pontos salientes no ventre êsse trabalho ficam vestidos só pela metade, ou mesmo inteiramente nus,
esbranquiçado; alguns indivíduos eram de côr oliva, porém, exceto essa diferença, pareciam
pertencer à mesma espécie. sôbre os paus, dirigindo-lhes a marcha por meio de uma longa vara, e
(**) Hyla aurata, espécie não descrita: comprimento, 1 polegada e 1 linha; colo- fazendo-os deslizar sôbre os rochedos do rio, semelhantes a degraus.
ração, verde-<>liva bruno carregado, algumas vêzes bruno-<>liva; linha amarela ou amarelo
dourado indo transversalmente de um a outro ôlho; Unha semelhante na nuca, um Essa tarefa seria perigosa para êles, se não fôssem, como são, hábeis
pouco interrompida no meio, prolongando-se até à extremidade do corpo; de cada
lado sobressai uma linha semelhante; algumas manchas amarelas ou amarelo dourado ' e experimentados nadadores.
no alto das espáduas e das coxas. Fui encontrar grande número dêsses índios reunidos em Bom Jesus,
(671) Cf. a nossa nota anterior (n.o SOS) a respeito. fazenda inteiramente rodeada pela mata espêssa, onde cheguei num
(672) Cf. a nota 265, dêstes comentários.
458 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA 459

domingo à tarde, e passei a noite; êles passavam o tempo à moda portu- dade compatível com a sua natureza. Os papagaios, notadamente
guêsa, tocando viola, e assim que souberam de nossa chegada reuniram- os jurus (Psittacus pulverulentus), voam gritando de um lado para
se embaixo do alpendre, onde havíamos empilhado a nossa bagagem outro, para manterem em atividade as suas asas molhadas pela chuva.
e acendido o fogo. Fenecidas ao calor dos dias anteriores, as fôlhas das árvores e as flôres
Durante tôda a noite caíram pesados aguaceiros, o que, para nossa vivamente coloridas duma porção de plantas carnosas ostentam tôda
maior tristeza, ainda piorou mais os caminhos, tirando-nos a esperança a sua riqueza, e parecem adquirir nova vida: Dracontium) Caladium)
de podermos conhecer as curiosidades daquelas matas. Foi uma grande Pothos) Bromelia) Cactus) Epidendrum) H eliconia) Piper e uma infi-
contrariedade, pois o canto de várias aves interessantes, com particula- nidade ·de outras plantas de textura suculenta, que particularmente se
ridade o do juru (Psittacus pulverulentus Linn.), nos tinha feito ficar desenvolvem em companhia dos fetos sôbre as árvores cobertas de musgos,
muito animados. Esperamos com impaciência que o dia clareasse, levantam os seu novos rebentos e muitas delas enchem a mata das mais
na consoladora esperança de que uma mudança de tempo viesse ao suaves emanações. Refrescados e reanimados, todos êsses ornamentos do
encontro de nossos desejos. f'.stes, porém, não puderam ser satisfeitos e, reino vegetal, entre os quais cumpre colocar as palmeiras, a começar
como não me era possível permanecer no vale estreito de Bom Jesus, dei pelas espécies de C ocos) principal enfeite das florestas virgens, adqui-
o sinal de partida, apesar da chuva. Surgiu então novo empecilho. O , rem um grau de vigor mais acentuado, quando, após a chuva, os raios
pequeno rio de Bom Jesus, que se reúne nesse ponto ao Jiquiriçá, do sol lhes fazem sentir sua influência salutar.
tinha engrossado de tal forma durante a noite, que ameaçava inundar Na tarde dêsse dia chuvoso, embarcamos em Corta Mão, pequena
o nosso acampamento. Transpô-lo a vau não era mais possível; foi povoação duma centena de casas, e transpusemos o córrego Jiquiriçá,
assim preciso, debaixo de aguaceiro torrencial, perder muito tempo em que estava cheio e impetuoso. Passamos em seguida uma noite desa-
descarregar novamente os animais e fazer passar tôda a tropa numa jan- gradável num engenho de farinha de mandioca, aberto de todos os lados.
gada, feita de quatro troncos de árvores. Durante essa operação, extre- Na manhã do dia seguinte, pusemo-nos de novo em caminho, e andamos
mamente penosa, não só a nossa bagagem ficou totalmente molhada, para trás uma légua a fim de alcançar a povoação, ou seja o pequeno
como fomos obrigados a conservar no corpo o dia todo as nossas roupas arraial, de Laje, onde nos aguardava uma cena extraordinária e extre-
encharcadas d'água. mamente desagradável. Caminhávamos tranqüilamente numa trilha
Nos países equatoriais, pelas tempestades da estação chuvosa os muito fechada, que ia ter a Laje, povoado grande, situado num vale,
rios se enchem tão depressa que, durante a noite, pode-se ser alcan- quando, de repente, vi a passagem barrada por grande número de pes-
çado de surprêsa pela águas transbordantes; êles, porém, voltam aos soas. Eram aproximadamente uns setenta homens munidos uns ele armas
seus limites naturais no mesmo curto espaço de tempo. A nossa marcha de tôda espécie, e outros simplesmente de paus; precipitaram-se sôbre
sob uma chuva violenta, que teria sido insuportável para homens
nós de todos os lados, de sorte que foi impossível nos opor aos movi-
franzinos, não nos molestava menos, embora estivéssemos afeitos à
mentos dêsse bando de homens brancos, mulatos e negros, que mais pare-
fadiga; mesmo assim, tivemos muitas coisas interessantes com que
ciam uns bandidos. Alguns dêles tomaram pelas rédeas o meu cavalo,
nos ocupar. As matas virgens que atravessamos se tinham tornado
gritando que eu estava prisioneiro e que não escaparia à sorte que
tão escuras com o tempo encoberto e chuvoso, que nos fizeram supor
tanto tinha feito por merecer. Tratavam-me de inglês, e alguns pareciam
que a noite estava perto. São magníficas as selvas tropicais, quando,
nutrir tantos receios a meu respeito, que conservavam os seus fuzis
durante um dia claro, os raios do sol, dardejando através de sua espes-
a tiracolo apontados para mim. Apreenderam imediatamente as nossas
sura, realçam a beleza de sua sombria verdura; mas, quando a sua
armas de caça, foices e pistolas; arrancaram até das mãos de Queck, o
obscuridade é aumentada pela tonalidade fusca de um dia de chuva, o
meu pequeno botocudo, o arco e as flechas. Alguns dos meus homens
seu aspecto é ainda mais interessante. Milhares de sêres vivos, que ainda
não se havia observado, surgem então; inúmeras espécies de sapos fazem por que se recusaram a entregar as suas armas, foram quase maltratados;
ouvir o seu canto nas poças d'água e nos charcos, nas touças das bro- mas quando nos viram desarmados, a coragem dessa gentalha assumiu
mélias, nos ramos das árvores, e na superfície do solo; no ôco de velhos alto grau de heróico desassombro. Pois se eram setenta homens armados
troncos caídos por terra, juntamente com um mundo de plantas e de contra seis desarmados! Realmente, não era nada pequena a sua
insetos, faz-se também ouvir a voz forte e grave dum grande sapo, causan- valentia! Para nos livrar dêsse tumulto, de que eu nada podia com-
do espanto aos forasteiros, que não atinam donde ela vem•. Os répteis, preender, e conhecer a causa de tão estranho tratamento, perguntei a
animados pelo calor acompanhado de umidade, adquirem tôda a ãtivi- êsse bando de loucos se tinham um chefe, como se chamava e onde estava.
Responderam-me lacônicamente que o capitão Bartolomeu, que era
(*) Não vi êsse grande sapo de voz tão grave; é talvez o Bufo agua de Linneu. o comandante, não tardaria a chegar, e me faria a devida justiça. Efetiva-
460 VIAGEM AO BRASIL ' CAPITAL DA BAHIA
DE CONQUISTA A 461

mente, vi que se adiantava um homem de mau aspecto, sujo, esfarrapado necessitavam também passar alguns dias descansando; mas, de manhã
e coberto de suor, com o fuzil na mão. O seu zêlo não lhe havia permi· muito cedo, chamaram-nos para nos pôr em marcha. Deram-nos para
tido esperar-nos à frente de sua companhia; correra ao nosso encontro, comer um pedaço intragável de peixe salgado; em seguida, fizeram
mas falhara o golpe. O aparecimento do chefe pôs fim, felizmente, às seg_uir os nossos burros, que haviam sido esquecidos no tumulto e que,
disputas que se haviam levantado sôbre a posse de nossas pessoas, detxados sem comer a noite inteira, caíam de fraqueza. Não importava,
naquele bando de possessos; aos gritos e vociferações dessa barulhenta era preciso partir. Uns trinta cavalarianos e infantes, armados de
multidão, sucedeu de súbito um silêncio que me foi muito agradável fuzis e pistolas carregadas, nos foram dados como guardas; tinham
aos ouvidos. constantemente o ôlho alerta para o menor dos nossos gestos. À frente
Temendo não obedecer à risca às severas ordens de seu superior, o da comitiva ia um novo comandante; fechavam-na, os meus animais
capitão-mor de N azaré, o capitão Bartolomeu fêz tirar tôdas as nossas de carga. Atravessamos assim lindos trechos cobertos de matas, e
armas, inclusive os nossos canivetes. Fui, em seguida, com a minha gente, em cada fazenda por que passávamos, corriam os moradores em chusma
levado para uma casa aberta, situada à margem da estrada; um grupo para nos ver, apontando com o dedo os criminosos, e repetindo cons-
de homens armados foi colocado dentro do próprio cômodo e outro na tantemente os nomes de inglêses e pernambucanos. Ao cair da tarde,
porta. As portas e as janelas não se fecharam durante o dia, nem tam- fizeram alto numa fazenda isolada, onde nos vigiaram severamente,
pouco durante a noite, embora esta tivesse sido bastante fria. Deixaram e onde, além disso, mal havia o que comer, principalmente para os
entrar indistintamente marinheiros embriagados, negros escravos, mu- meus animais, que sofreram muita penúria. Enfim, um dos meus cavalos
latos, brancos e todos os ociosos que nos quisessem ver; instalaram-se ficou tão cansado que foi preciso deixá-lo para trás.
à vontade, durante todo o tempo que lhes aprouve; sentaram-se em No segundo dia de nossa viagem como prisioneiros, partimos,
nossos bancos, enxotando-nos; fizeram em altas vozes comentários polí- ainda de manhã muito cedo, e depois de percorrermos algumas léguas,
ticos a nosso respeito, e não nos deram um só momento de descanso. encontramos de repente um destacamento de trinta soldados de milícia,
Soube então que me tomavam por um inglês ou americano, e que tinha bem uniformizados, sob o comando do capitão da Costa Faria. O caso,
sido prêso por uma série de medidas de segurança tornadas necessárias então, tomou um aspecto mais sério aos olhos do povo. Durante a
por causa da revolução que rebentara em Pernambuco. marcha, minha gente foi insultada de todos os modos pelos soldados;
mostravam-lhes as armas carregadas, dizendo-lhes: "Isto é para vocês,
:f'.sses fatos muito consternaram alguns dos portuguêses que eu inglêses tratantes!" Batiam nos cavalos; não sabiam o que mais fazer
levava comigo; ficaram com má impressão a meu respeito, imagi- para nos atormentar.
nando que os havia enganado. Minha portaria, que certamente me À tarde, chegamos por um caminho intransitável à povoação
teria valido em qualquer outra circunstância, de nada me serviu no caso, de Aldeia 673, situada próximo da costa. Tem o aspecto de uma vila e
porquanto, embora mais de vinte pessoas enfiassem a cabeça ao mesmo manda para a Bahia pequenos barcos carregados com os produtos da
tempo para lê-la, nenhuma compreendeu o seu conteúdo, e o coman- z~na. Uma légua depois, chegamos a Nazaré, nosso ponto de destino.
dafolte do bando ainda menos. E' o que prova sobretudo a qualificação Ftzeram-nos atravessar o Jaguaribe no meio duma multidão incrível;
de mglês que me deram no relatório dessa ocorrência, apesar de a portaria puseram-se guardas para vigiar as nossas bagagens e para manter um
expressamente declarar que eu era alemão. Aliás, era bem provável pouco em ordem tôda a gente que se comprimia para nos ver. Eu
que em Laje ninguém suspeitasse que havia no mundo outros países · próprio fui conduzido pelo capitão ao meu arrogante juiz, o capitão-
além de Portugal e Inglaterra. Fizeram em seguida o inventário de mor. Já estava escuro quando entrei em sua casa; não me apareceu
tôdas as minhas bagagens e entreguei as chaves de tôdas as minhas logo; iluminaram a sala; e, depois, me chamaram como faria um sátrapa
malas. Alguns dos meus guardas, levados pelo amor desordenado à persa em suas audiências. Um miserável criminoso, trazido diante dum
prêsa de ~erra, insistiram para que fôssem abertos e revistados todos os
tribunal, não teria sido olhado com mais curiosidade do que eu fui.
me~s objetos ~e uso; mas o capitão Bartolomeu teve o senso justo de
Quanto ao capitão-mor, dignou-se a lançar-me apenas um olhar. Ouviu
o ?ao consenttr. Ao meio-dia os prisioneiros obtiveram um pouco de
fria~ente a~ minhas que~xas sôbre o tratamento injusto e indigno que
petxe s~~ga~o; mas tiveram oportunidade de ver submetida a prova havia recebido; em seguida despachou outros criminosos, colocados na
s~a paCI.enCia, e~cutando tôda sorte de ditos ofensivos, até que a noite
mesma categoria em que eu fôra incluído. A minha paciência estava
VIesse por um ~ermo a essa insuportável situação. Não nos trouxe ela,
entretanto, multo sossêgo, pois os importunos não nos deixaram. (678) Wied escreve "Aldéa". Aldeia foi primitivo topônimo da cidade de Aratufpe,
Fôra projeto meu descansar nos arredores de Laje, percorrendo distante 6 quilômetros da de Nazaré. Publiquei anos atrás algumas notas sôbre a
ornitologia dessa localidade, por mim visitada em excursão organizada pelo Museu Paulista
as florestas da redondeza. Os meus animais de carga, muito fatigados, (cf. Rev. Museu Paulista, XIX, pág. 6 e ss.).
462 VIAGEM AO BRASIL ' CAPITAL DA BAHIA
DE CONQUISTA A 463

esgotada; não pude conter a indignação e a cólera. O capitão-mor, mente mais caros aqui que nos lugares mais meridionais e afastados
enfim, depois de ter por muito tempo examinado a minha portaria, da capital; nestes um alqueire de farinha só vale 1 pataca e meia ou
declarou-me que êsse documento, se bem que concebido em têrmos 2 patacas (3 a 4 francos), ao passo que em Nazaré custa de 6 a 8 patacas.
muito favoráveis à minha pessoa, não era bastante, e que ia escrever Mandam-se principalmente muitas frutas para a capital; porém não
o seu relatório incontinenti ao governador da Bahia, devendo eu, sabem cultivá-las. O coqueiro e a mangueira (Mangífera indica Linn.)
enquanto não chegasse a resposta, continuar prêso. Os cinco homens crescem muito bem nas margens qo J aguaribe e tornam-se aí muito
que me acompanhavam foram chamados e interrogados sôbre o seu nome altos; mas não dão senão frutos pequenos e ruins, enquanto que na
e lugar de nascimento, e, em seguida, encerrados comigo no andar supe- Bahia queima·se a casca das árvores rente ao solo, e, por êsse meio,
rior duma grande casa vazia; as portas se fecharam sôbre nós. Feliz- obtém-se frutos maiores e de gôsto mais saboroso. O fruto do dendêzeiro,
mente já era noite quando nos conduziram para essa prisão; pois, de grande e bela palmeira da Africa, cultivada nessa região e chamada
outro modo, o populacho nos teria talvez atirado pedras. "côco-dendê'!, emprega-se na extração de um óleo de côr alaranjada, que
O capitão da Costa Faria se esforçou por diminuir a agruras da é usado na alimentação674 • Várias frutas européias dão aqui muito bem,
nossa situação tanto quanto o permitiam as suas instruções, atenção pela como por exemplo as uvas e os figos; êsses últimos, porém, são tão
qual eu lhe manifesto de bom grado as expressões do meu reconheci- àvidamente procurados pelas aves, que se é obrigado a envolver cada um
mento. Desde que nos trouxeram a lenha e a água necessárias, fecha- dêles separadamente em papel. As macieiras, pereiras, cerejeiras e amei-
ram-se as portas de nossa nova prisão; soldados ficaram montando xeiras se cultivam também com resultado; todavia, dizem que há um
guarda em volta da casa. Somente um dos meus homens teve permissão inseto que não leva muito tempo para destruir essas árvores.
para sair, sob escolta, a fim de ir comprar os víveres de que necessi- Parti sem pesar de Nazaré, onde havia passado tôda a semana
távamos. Passei assim três dias, ao cabo dos quais o governador da da Páscoa como prisioneiro, e dirigi-me cheio de esperanças para a cidade
Bahia mandou ordem para me porem em liberdade. da Bahia, onde projetava embarcar para a Europa. Comecei, de tarde,
a descer o J aguaribe. O dia tinha sido belo e sereno, o que prometia
f.sse desagradável incidente causou-me grande perda de tempo e feliz viagem. Os barcos que partem semanalmente para a Bahia são
de vários objetos interessantes que se estragaram, póis a nossa marcha pequenas embarcações cobertas com uma cabina que pode conter
forçada não me deixou tempo para fazer secar os objetos que se haviam umas vinte pessoas; são de três mastros pequenos, os dois posteriores
molhado. Teria de boa vontade deixado imediatamente a zona inclinados para trás. O barqueiro, ou "mestre", é dono de alguns es-
de Nazaré, que êsse incidente me tornara odiosa; mas a falta de navios cravos, que lhe servem de marinheiros; mas, como não trabalham senão
que se dirigissem para a Bahia me reteve ainda por oito dias nessa
contra a vontade, não se pode dêles esperar muito socorro em caso de
localidade, e forçou-me a estudá-la. perigo.
Nazaré, cognominada "das Farinhas", é uma povoação que bem As margens do Jaguaribe são pitorescas; várzeas verdejantes e
merece o nome de vila. Suas ruas são bastante regulares; contêm colinas se sucedem umas às outras; vêem-se por tôda parte fazendas
alguns edifícios notáveis, e, incluindo as habitações isoladas das redon- guarnecidas de lindos coqueirais. Os proprietários são em geral oleiros;
dezas, que pertencem à paróquia, contam-se nela cêrca de 8.000 almas. fabricam-se aí também muitas telhas; os produtos dessa indústria
Possui duas igrejas; a principal é grande e bem construída. Nazaré são mandados para a capital. A argila que êsses oleiros empregam
das Farinhas acha-se situada sôbre ambas as margens do Jaguaribe. é de côr cinzenta; as vasilhas ficam vermelhas quando passam pelo
Verdejantes colinas, cobertas em parte de campos cultivados e de casas, fogo; passam-lhes ainda por dentro um verniz vermelho. Para
emprestam às margens do rio um aspecto risonho. Vêem-se, por tôda queimá-las usa-se de preferência a lenha dos man~es (Conocarpus e
parte, coqueiros e dendêzeiros, erguendo nos ares os seus caules esguios. Avicennia), que contribui, segundo se diz, para dar uma côr vermelha às
O principal recurso do lugar é o seu comércio com a cidade da Bahia. vasilhas. Os pescadores se opuseram a princípio a que se cortassem essas
Todos os domingos e segundas-feiras um certo número de parcos ou plantas supondo que atraíssem os peixes e caranguejos, e com isso facili-
lanchas, carregados de produtos das plantações, partem para a capital. tassem a pesca. Dizem mesmo que levaram as suas queixas ao Rio de
Descem elas o rio aproveitando o refluxo, atravessam à vela a baía Janeiro, não sendo porém atendidos.
de Todos os Santos, e chegam após vinte e quatro horas à cidade.
A carga consiste principalmente em farinha, cuja produção não é, con- (674) Ainda hoje é o azeite de dendê Ingrediente largamente usado na culinária
baiana, talvez, no Brasil, a mais rica de caracterfstlcas próprias, mercê da Influência
tudo, superior à de Caravelas e outros lugares situados mais ao sul; nela exercida pelo elemento africano. O produto é objeto de grande exploração na
exportam-se também bananas, côcos, mangas, diversos outros frutos, Malásia e na Africa Ocidental, orçando seu consumo mundial nos dias de hoje em cêrca
de 500.000 toneladas, segundo L. Kehren (do Labor. Biol. da Factdd. d e ilfed. de
toicinho, aguardente, açúcar, etc. Todos êsses produtos são natural- Ribeirão Prêto, S. Paulo).
464 VIAGEM AO BRASIL

À meia-noite, deixamos cair a âncora diante da Vila de Jaguaripe,


e, ao nascer do dia, desfrutamos o panorama dessa pequena cidade,
agradàvelmente situada na margem meridional do rio, sôbre uma ponta
de terra que forma a sua confluência com o Caípe; aquêle recebe,
além dêste, o Cupioba, o Tijuco, o Maragojipinho, o da Aldeia e o
Mucujó.
Jaguaripe é a localidade principal do distrito; aí é que devia
residir o capitão-mor, que no entanto mora em N azaré. E' uma vila
bastante grande, porém mal povoada, pouco animada e bem menos
comercial que Nazaré; exporta produtos de olaria para a capital.
Vêem-se aí uma grande igreja e, junto das margens do rio, a casa da
Câmara, que é a maior que encontrei em minha viagem.
Partimos ao raiar do dia, e, ao cabo de uma légua, chegamos à
embocadura do rio, à vista da grande ilha de Itaparica (chamada comu-
mente Taparica), situada no gôlfo ou baía de Todos os Santos, e que
no seu lado ocidental é separada do continente apenas por um estreito
canal. Os navios que vêm do rio de J aguaribe tomam êsse canal, que é
mais seguro, para chegar à cidade (Bahia), navegando entre a ilha
e a terra firme; mas, assim como em tôda essa viagem por água, é
preciso prestar atenção às horas da maré.
Nossa viagem ao longo da ilha de Itaparica foi muito agradável
e favorecida por vento fresco. Avistam-se junto ao rio, bem como ao
longe, encostas verdejantes, pitorescos morros plantados de coqueiros
e lindas fazendas, enquanto, a tôda volta, descortina-se o vasto pano-
rama da superfície do rio, animado por barcos e canoas de pesca,
com suas velas de resplandecente alvura. Compramos aos pescadores
que passavam junto de nós uma quantidade de excelentes peixes e com
êles preparamos um ótimo jantar. Logo depois, a fôrça da vazante
nos fêz dar de encontro a um banco de areia, do qual só a custa de muito
esfôrço e auxiliados pelo fluxo da maré é que nos pudemos livrar e
flutuar de novo; mas uma rajada de vento fêz de repente nosso barco
tombar muito de lado, rasgando a melhor de nossas velas. Malgrado
tudo isso, chegamos felizmente ao meio-dia na ponta setentrional da
ilha, onde está edificada a vila de Itaparica. Deixamos aí cair a âncora
para aguardar a volta da vazante.
A ilha de Itaparica tem de norte a sul uma extensão de 7 léguas;
é fertil e bastante povoada. Divide-se em três paróquias; mas nela
só existe uma única povoação ou vila. Todo o resto da população se
acha disseminada pelo interior, ou ao longo de suas praias. A maior
parte de seus habitantes são pescadores.
A vila possui alguns edifícios bem construídos, instalações para
a pesca da baleia e algumas igrejas. Os mercados são bem providos
de tôda sorte de peixes e frutas. Cultivam-se na ilha laranjeiras, bana-
neiras, mangueiras, coqueiros, jaqueiras, videiras, que dão frutos duas
vêzes por ano, etc.
DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA 465
A pesca da baleia é, em certos anos, muito produtiva nas águas
do Brasil; em Itaparica quase tôdas as cêrcas dos quintais e das roças são
feitas com ossos de baleia.6711• '

Exporta-se de Itaparica um pouco de aguardente de cana; fabri-


cam-se cordas de piaçaba, que são, segundo consta, muito duráveis.
Fazem-se cordas semelhantes em Amboina e em outras ilhas do Arqui-
pélago oriental das índias, com os longos filamentos que crescem na
base dos pecíolos das palmeiras•.
Da ponta setentrional da ilha de Itaparica, onde está edificada a
vila, desfruta-se para o lado do norte uma bela vista do Recôncavo,
rodeado de montanhas de diversas formas, e coberto de velas brancas.
tsse mar interior, famoso na história dos primeiros tempos do Brasil,
mede 6 léguas e meia de norte a sul e mais de 8 de leste a oeste. E' em
tôda a extensão do seu perímetro abrigado por montanhas. Ao norte
a pouca distância de sua entrada está situada a cidade de S. Sal-
vador, que se costuma designar simplesmente pelo nome de cidade,
ou Bahia. No ponto mais distante dessa baía fica a foz do Paraguaçu,
comumente denominado Peruaçu, oito léguas acima da qual, nas
margens do rio, encontra-se a vila de Cachoeira de Paraguaçu, que
é a cidade mais importante florescente da região, depois da capital.
E' grande, bem povoada, e faz grande comércio com a Bahia; tôdas as
tropas vindas do interior param aí, para depois embarcarem para a
capital, com seus animais e mercadorias. Tôdas as semanas partem
dessa vila muitos barcos destinados à capital.
Outrora essa zona era habitada pelos Kiriris ou Cariris,
tribo dos tapuias. O Pe. Luís Vicêncio Mamiani publicou a gramática
dessa tribo••. Atualmente êsses índios estão todos civilizados;
o que dêles resta é conhecido pelo nome de "Cariris da Pedra Branca";
são todos soldados. Quando o seu comandante recebe ordem de partir
para uma expedição, êles levam consigo suas mulheres e filhos; à

(*) Vide LABILI.ARDlERE, Vot~aue à la recherche de La Pérou&e, t. I , pâg. ao2.


(**) "Arte de grammatlca da llngua braslllca da nação Klrlri ", composta pelo
P. Luis Vlcêncio Mamlanl, da Companhia de Jesus, missionário das aldeias da dita
nação ". Lisboa, 1699.

(67~) A pesca da balela no Brasil, a respeito da qual há vasta literatura (cf. Comte.
Alves Câmara, in Rev. Soe. de Geogr. do Rio de Janeiro, V, ano 1889, págs. 17-48),
foi já aqui objeto de oportuno comentário. Era proverbial a abundância dêsses cetáceos
na bafa de Todos os Santos, havendo larga referência ao assunto no relato de quase
todos os primeiros cronistas que conheceram a região. Gabriel Soares (capltuio CXXV),
delas nos conta "entrarem na Bahia muitas em o mês de Maio, que é o primeiro
daquelas partes, onde andam até o fim de Dezembro que se vão." Cardlm ("Tratados",
eram vistos os cardumes de peixes e balelas a andar saltando n' água. Não obstante,
ediç. de J. Leite, 1925, pág. 288) refere como das janelas do colégio dos jesuftas
muito Incompletos, insignificantes mesmo, são os dados que temos sôbre as diferentes
espécies que visitavam os nossos mares. No Museu Zoológico de São Paulo, há,
provenientes dos mares de Santos, esqueletos completos ou parciais determinados como
de Balaenoptera musculus (Linn.), B. borealis Lesson, B. acutorostrata Lacépêde e
Megaptera nodosa (Bonnaterre) ou "jubarte ". Há, porém, ainda , além do Physeter
macrocephalus Llnn., ou "cacbalote", registro autêntico da Balaena australis Desmoullns,
além de outras, mais ou menos duvidosas.
466 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA 467

noite todos acampam. A cabana do comandante é colocada na frente (Simia jacchus Linn., ou ]acchus vulgaris Geoffr.) 676 , que nunca ha-
das outras; êle os reúne para rezar a Ave Maria, e depois determinar víamos encontrado mais ao sul. Acharam também, nos edifícios da
o que devem fazer. Conta-se que êsses militares índios, que man- cidade, uma bela coruja• 67 7, que muito se parece com a rtossa coruja das
têm obstinadamente os seus costumes, comem muito e não trabalham, tôrres 678 .
causando por conseguinte ao Estado despesa maior do que os serviços O conde dos Arcos, governador geral, mandou construir recente-
que lhe prestam. mente uma larga e cômoda estrada que sobe da cidade baixa até o seu
Os primeiros escritores que falaram do Brasil forneceram muitas palácio. Como não há carros nessa cidade, servem-se os habitantes,
particularidades sôbre a história do Recôncavo, ou baía de Todos os para subir e descer as ruas escarpadas, sem se cansarem, de uma "ca-
deira"; é uma espécie de cadeirinha com um assento encimado por
Santos. Foi sobretudo famosa pelas guerras dos pprtuguêses com as
diferentes nações selvagens. Só depois de contínuos esforços, durante um dossel, e tendo cortinas em volta; é carregada por dois negros.
Sem êsse recurso, não se poderia dar um passo na cidade, quer quando
longa série de anos, com grandes perigos e sacrifícios inúmeros, conse-
o tempo está bom e o sol é ardente, quer quando chove e as ruas não
guiram acabar, nessas hordas selvagens, com o costume cruel de comer
calçadas se tornam intransitáveis.
os pnswneiros. Em tempos mais remotos ainda, várias nações indí- A cidade alta está cheia de conventos e igrejas, algumas das quais
genas disputaram essa região. Parece que os tapuias habitaram a magníficas. Destacam-se também a fortaleza que domina a cidade e o
princípio as margens do Recôncavo, sendo daí expulsos pelos Tu- palácio do governador, que é bastante grande; finalmente a praça
pinaés e Tupinambás, que vieram das margens do Rio São Fran- d'armas. Nessa parte da cidade é que se encontram o tribunal régio
cisco, e já estavam na posse dessas belas regiões quando os portuguêses e os colégios, entre os quais um ginásio, onde se ensina o latim e o
desembarcaram nas costas do Novo Mundo. Cristóvão Jacques des- grego, a filosofia, a retórica, as matemáticas, etc., e uma biblioteca
cobriu a baía de Todos os Santos em 1516. Em seguida os portuguêses de 7.000 volumes, muito enriquecida pelo Conde dos Arcos; possui
se estabeleceram aí, fizeram guerra aos indígenas, e os jesuítas conse- até várias obras novas sôbre todos os ramos do conhecimento. Essa
guiram cativar os selvagens, desabituá-los de comer carne humana, e biblioteca está instalada no antigo colégio dos jesuítas; grande perda
por fim civilizá-los de todo. resultou de se não ter tido bastante cuidado com os papéis dessa ordem
Nosso barco ficou em Itaparica até ao cair da noite; levantamos religiosa; foram em sua maior parte dispersados.
âncora no comêço da vazante e atravessamos a baía, cuja largura é Os serviços prestados pelo Conde dos Arcos são suficientemente
de 5 léguas entre êsse pôrto e a cidade da Bahia. Um vento forte se conhecidos para que eu possa fazer silêncio sôbre êles••. Durante o
levantara, que agitava fortemente o mar, de sorte que a travessia (*) Essa ave é a que Marcgrave descreveu na pág. 205 com o nome de Tuidara.
em nossa pequena embarcação foi desagradável e fatigante; mas che- Foi considerada como uma simples variedade da "coruja de Igreja" da Europa (Stri3!
flammea Linn.) cujas ligeiras diferenças seriam devidas ao clima. A do Brasil se
gamos sem acidente à Bahia lá pela meia-noite. assemelha à nossa pela maioria dos caracteres; entretanto, os seus pés, dedos e unhas
parecem ser mais compridos e fortes; a plumagem é mais clara; as partes Inferiores,
A cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos é a antiga em lugar de serem amarelo-pálido como na nossa, são brancas, um pouco coloridas de
amarelo em alguns pontos; observam-se também ai pequenas pintas Isoladas mais escuras.
capital do Brasil; foi durante duzentos anos a residência do Gover- A cara tem pouco da coloração bruna que cerca os olbos, e as penas retrizes t~m. além
nador Geral dêsse país. Acha-se situada sôbre a vertente de uma das listras transversais mais carregadas, manchas marmoreadas mais visíveis; ao passo que
na espécie européia essas partes são quase cOr de ferrugem, não manchadas, e somente
escarpada montanha que ladeia a baía; a sua parte mais importante atravessadas por listras mais escuras. Já PENNANT fizera notar, em sua Zoologie arctique
(trad. alemã de Zimmermann, t. li, p. 224), que a sua coruja branca têm a parte
está situada no alto, e a parte restante, habitada principalmente por Inferior do corpo Inteiramente branca, o que condiz perfeitamente com as minhas obser-
mercadores, está situada a beira-mar. Essa cidade mede uma légua vações sôbre a coruja do Brasil.
(** ) Pouco depois de minha chegada' à cidade da Bahia, o rei nomeou o conde dos
de extensão de norte a sul; é construída bastante irregularmente, Arcos ministro da marinha, sendo seu titulo atual: Ilustríssimo Excelentfssimo Senhor
embora possua grande número de vastos edifícios. E' bela a vista da Conde dos Arcos do Conselho de Sua Majestade, Ministro e Secretário d'Estado da Marinha
e Domínios Ultramarinos, êtc.
Bahia do lado do mar; entre os prédios vê-se verdejante arvoredo,
(676) Oallithri3! jacchus (Linn.), é o "saglli" vulgar em todo o litoral nordestino,
constituído geralmente de laranjeiras. Se bem que a parte alta da cidade desde a baia de Todos os Santos. Não obstante, davam-lbe os autores (cf. Trouessart,
seja a mais importante, há nela ruas não calçadas, e ainda vastos ter- Oatal. Mammalium, I, p. 49) como pátria tfpica a Ilha de Marajó, opinião tanto mais difícil
de explicar, à primeira vista, quanto Linneu só lhe indicava vagamente a procedência
renos e pomares, separando muitas das habitações; mas a bela vegetação ("habitat in América"), abonando-se em vários autores, entre êles Marcgrave. Ocorre
por vêzes até nas Ilhas mais próximas à terra ' firme, embora o fato parece de explicação
e uma perspectiva magnífica fazem esquecer os defeitos encontrados. difícil, a menos que se admita a Interferência do homem. Cf. a nota (vide Pinto,
Vários pequenos vales ostentam pomares e plantações em que os meus Pap. Avuls. Dept. de Zool., 111, 1948, pág. 268).
(677) Tyto alba tuidara (Gray) na atual nomenclatura. A "suindara" dos fndlos
homens realizaram algumas excursões, matando animais interessantes, da costa representa uma raça da coruja das tôrres européias (Tyto alba (Scopoli)), Stri3!
flammea (Linn.), e conta em sua sinonímia Strix perlata Lichtenstein.
como por exemplo o pequeno sauí de tufo de pêlos brancos nas orelhas (678) Tyto alba alba (Scopoll).
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468 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA A CAPITAL DA BAHIA 469

tempo em que foi governador dessa província, nada esqueceu que lhe navios de tôdas as nacionalidades. Navios de passageiros mantêm comu-
pudesse ser vantajoso; conhecendo a língua e as instituições dos países nicação constante com Portugal e Rio de Janeiro e, como bons veleiros
estrangeiros, instruído por suas viagens nas diferentes partes do Brasil, que são, fazem a travessia em muito curto tempo. Os habitantes das cos-
êsse ministro ativo e esclarecido consagrou todo o seu tempo em intro- tas vizinhas trazem todos os produtos de suas plantações para a capital,
duzir melhoramentos. Honra e protege as ciências e as artes; põe a fim de trocá-los por mercadorias de diversos países. Essas trocas
zêlo constante e infatigável em sustentá-las e animá-las. Trata constantes e ativas ràpidamente fizeram da Bahia uma importante
os estrangeiros com distinção, e podem êles confiadamente contar com cidade, que parece exceder de muito, em tamanho, o Rio de Janeiro.
o seu apoio; fundou uma imprensa e uma fábrica de vidros; a cidade Pode-se fazer uma idéia da rapidez do progresso da cidade, levando-se
lhe deve um passeio público e diversos outros embelezamentos; ins- em conta que, em 1581, contava apenas 8.000 habitantes e todo o Re-
tituiu uma loteria em benefício da biblioteca, sendo que o lucro dela é côncavo não possuía mais de 2.000, excluídos todavia, dêsse número, os
destinado à compra de livros; fêz plantar no Passeio Público a verdadeira negros e os índios•. Hoje a população da Bahia se eleva a mais de
quina do Peru. Várias plantas da Europa e de outras regiões atraem 100.000 almas.
aqui a atenção do botânico, entre outras o chorão (Salix babilonica), O interior dessa grande cidade não oferece, de modo geral, aspecto
que é muito belo e vigoroso. A quina, de Santa-Fé de Bogotá, ao con- agradável; não se nota ali nem asseio, nem ordem, nem gôsto. A
trário, não se parece ter dado bem neste país, provàvelmente porque arquitetura é pesada, tendo os jesuítas feito vir da Europa as pedras
êle não convém à natureza dessa planta. Vê-se também um obelisco, já preparadas para a sua igreja e o seu convento. As casas são tôdas
erigido para conservar a lembrança da estada do rei nessa cidade. construídas com os mais diversos estilos; algumas são altas, bastante
O panorama que se descortina da parte alta da cidade é de beleza parecidas com as da Europa e ornadas de balcões; outras, porém,
inexcedível. A esplêndida baía estende ao longe a sua superfície tran- baixas e bem insignificantes; tôdas, apesar de tudo, rom janelas envidra-
qüila e reluzente; ancorados nas margens vêem-se navios, enquanto çadas. Durante a estação sêca, o calor é insuportável, principalmente
outros se aproximam com suas velas enfunadas por vento favorável, na cidade baixa, que um mau cheiro de tôda espécie torna ainda mais
ou então apressam a sua marcha em direção ao Oceano, dando salvas incômoda. Uma multidão sempre em movimento, constituída em sua
de canhão para saudar a fortaleza; ao longe, avista-se a ilha de Itaparica, maior parte de homens de côr, agrava êsse inconveniente; negros aos
ao mesmo tempo que um anfiteatro de pitorescas montanhas fecha em grupos de doze, vinte ou mais, carregam pesadas cargas, gritando e can-
tôda volta o encantador cenário. Além dos passeios públicos, provi- tando, a fim de conservar o passo igual, pois tôdas as mercadorias são
denciou-se na cidade alta pelos prazeres de seus habitantes construindo transportadas assim do pôrto até a cidade; outros mercadejam tôda sorte
uma sala de espetáculos, embora seja ela de gôsto um tanto antigo, de objetos de um lado para outro, gritando para anunciar o que estão
menor que a do Rio de Janeiro, e a afeiem pequenos obeliscos vendendo; de cada lado da rua, vêem-se os fogareiros que as negras con-
pontudos, colocados em cima do telhado. servam sempre acesos, para cozinhar e assar as gulodices, pouco ape-
Contam-se na Bahia 36 igrejas e grande número de conventos, titosas aliás, que vendem aos compatrícios.
por onde se pode fazer uma idéia da quantidade de eclesiásticos e Os usos e costumes dos habitantes se parecem completamente com
frades que nela existem. Em alguns conventos as freiras fazem lindas os dos portuguêses da Europa; dizem que nas classes altas reina luxo
flôres com as penas das aves do país, tão notáveis pela variedade e diver- desenfreado. Os estrangeiros, filhos de nações marítimas e comerciais,
sidade de suas côres. Elas mostram êsses ramos de flôres aos estrangeiros são muito numerosos; há sobretudo muitos inglêses e, atualmente, um
que vêm visitar o Convento. numero também considerável de franceses; pelo contrário, ainda são
A parte baixa da cidade, que não tem mais do que umas poucas poucos os alemães e os holandeses.
ruas ao longo da praia muito estreita, contém as lojas, os armazéns dos Durante o dia não se vê nenhuma mulher nas ruas; só ao cair da
negociantes, uma bôlsa que se deve ao Conde dos Arcos, o arsenal e tarde é que a sociedade elegante sai de suas casas, para gozar o fresco
os estaleiros. Na ocasião em que aí estivemos concluía-se a construção da tarde; ouvem-se então cantos e o som das violas. Entre as diversões
duma fragata. Os navios que se fazem na Bahia são tidos em alta conta, populares, nas ruas da Bahia, contam-se as procissões e as cerimônias
pois as florestas do Brasil são ricas em excelentes madeiras de cons- religiosas, que se realizam freqüentemente, em conseqüência da quan-
trução naval. tidade incrível de dias santos. As ruas são então bem varridas, cobrem-se
O comércio da Bahia é muito ativo; essa cidade serve de entre- de areia branca e de flôres; iluminam-se as janelas, e as procissões, à
posto para os produtos do sertão, que por ela se exportam para as
diversas partes do mundo; motivo pelo qual se encontram em seu pôrto (*) SoUTHEY, Hi&to1'11 of Brazil, tomo I, pág. 817.
470 VIAGEM AO BRASIL DE CONQUISTA À CAPITAL DA BAHIA 471

luz de grande número de círios que os fiéis levam na mão, marcham dade e sua dedicação ao rei, visto como a insurreição foi por todos desa-
ao som dos sinos e aos estouros de foguetes, em direção à igreja, enfeitada provada, e, se o perigo fôsse mais grave, os fatos teriam dado prova
para recebê-las. Os enterros se fazem igualmente à noite, à luz de dessa verdade. •
grande quantidade de velas, e conserva-se ainda o funesto hábito de Várias fortalezas põem a cidade da Bahia ao abrigo dum ataque.
sepultar os mortos nas igrejas. Depois de receber o defunto a bênção A entrada da baía de Todos os Santos é defendida do lado do norte pelo
e numerosas aspersões de água benta, fazem-no baixar ao jazigo subter- forte de Santo Antônio da Barra; a cidadela está situada na cidade
râneo; os padres se retiram, e os negros acabam de cobrir de terra o alta, enquanto que no pôrto, justamente em frente da cidade, foi cons-
esquife. Após dois anos de intervalo, ouvi novamente o órgão nas igrejas, , truído um forte de forma circular, com várias baterias de canhões de
e o tanger dos sinos. grosso calibre; atiram com êles em certas ocasiões, principalmente nos
Lindley e Andrew Grant descreveram com relativa exatidão o dias festivos, e para responder à saudação dos navios que entram.
Rio de Janeiro e a Bahia. Pode-se, pelas suas descrições, fazer uma idéia Minha demora na antiga capital do Brasil foi de curta duração;
sobretudo das cerimônias religiosas em uso no país. Nessas duas capi- não tive nem tempo de visitar os estabelecimentos científicos da cidade,
tais, que crescem todos os anos consideràvelmente, fazendo progressos os quais, na verdade, são ainda em pequeno número. Além da biblioteca
no caminho da civilização, não se vêem hoje tantas extravagâncias, pública, para cujo engrandecimento o Conde dos Arcos se empenhou
tantos usos ridículos, nem os costumes pouco em harmonia com o com tanto zêlo, e que, com, o tempo, se tornará considerável e muito
espírito moderno, que êsses viajantes observaram. Por exemplo, não útil ao progresso da instrução nessa parte do país, encon-
existe mais a mínima diferença entre o modo de vestir dos habitantes tram-se na Bahia outras coleções de livros que possuem preciosíssimas
das cidades do país e o dos europeus; o luxo e a elegância reinam em obras antigas e modernas. Vários conventos, como, por exemplo, o
alto grau por tôda parte. dos franciscanos, possuem manuscritos antigos curiosíssimos sôbre o
Grant, muito particularmente, em sua Des.cription of Brazil, falseia Brasil. Vivem também na cidade alguns homens de cultura, entre os
uma porção de nomes e tôdas as suas apreciações sôbre história natural quais o sr. Antônio Gomes, correspondente do conde de Hoffmannsegg,
são inexatas e risíveis. de Berlim, os Srs. Paiva, Bivar e outros, que se dedicam ao estudo das
Uma guarnição bastante numerosa vela pela defesa da cidade da ciências, e particularmente ao estudo da natureza. Devo à gentileza
Bahia, onde se encontram quatro regimentos de tropas de linha e outros do primeiro, que possui uma bela biblioteca, alguns escritos interes-
tantos de milícia, entre os quais um de negros e um de mulatos. O go- santes sôbre o Brasil, e às obsequiosas informações dos outros, várias
vern~dor viu-se várias vêzes na necessidade de empregar essas tropas observações sôbre o clima da cidade e dos arredores de São Salvador.
de homens de côr para reprimir as revoltas dos pretos escravos, pois Fui na Bahia muito bem acolhido por várias pessoas cultas. O Sr.
êstes formam a maioria da população da Bahia. Os distúrbios de Per- Conde dos Arcos apagou com a sua afetuosa atitude para comigo, e
nambuco, que irromperam na ocasião de minha estãda na capitania com o interêsse que demonstrou pelo desagradável incidente que me
da Bahia, haviam exigido o envio de tôdas as tropas disponíveis. sucedeu em Nazaré, tôda a penosa recordação daqueles dias tão infeliz-
Navios de guerra, carregados de soldados e armamentos, chegaram mente perdidos, a que o levante de Pernambuco dera lugar. Devo tam-
do Rio de Janeiro à Bahia; os que se achavam no pôrto da Bahia bém me referir com gratidão à acolhida que recebi da parte do Sr.
a êles se juntaram, e foram bloquear o pôrto de Olinda, ou Pernambuco. coronel Cunningham, ·c ônsul de Inglaterra e de sua família, que se
.Esses fatos deram ocasião a que na Bahia se fizessem elogios às apressaram em cumular-me de provas de gentileza. Teria de bom grado
rápidas providências tomadas pelo Conde dos Arcos. Graças à presteza e aproveitado por mais tempo tanta boa vontade, se o meu vivo desejo
sabedoria das medidas que pôs em prática, pôde conservar essa bela de rever a pátria não fôsse o bastante para me obrigar a aproveitar uma
província para o rei, e conseguiu abafar o espírito de insurreição que oportunidade que para isso se me apresentava, levando-me a abreviar
alguns homens, sabidamente maus, procuravam excitar em proveito a volta para a Europa.
dos seus interêsses pessoais. .Esses facciosos souberam atrair para o
seu partido vários sacerdotes, que, prevalecendo-se da ascendência q!:Je
a religião lhes dava sôbre o espírito inculto dos brasileiros, podiam tor-
nar-se muito perigosos para a tranqüilidade pública. Martins, Ribeiro
e Mendonça, chefes da conspiração, foram fuzilados publicamente na
Bahia, e até um sacerdote foi punido com o mesmo suplício. Os habi-
tantes da cidade da Bahia deram por essa ocasião provas de sua fideli-
I
VIII

VIAGEM DE REGRESSO A EUROPA

Viagem até Lisboa. - Travessia até Falmouth. -


Percurso terrestre pela Inglaterra. - Trajeto até Ostende.

Tendo o "Princesa Carlota", da carreira da índia, entrado na Bahia,


em viagem de Calcutá para a Europa, a fim de tomar provisões, o go-
vêmo o requisitara para levar munições de guerra para Pemambuco.
Cumprida esta missão, êsse navio voltou à Bahia. Era confortável e
seguro; resolvi não perder essa excelente ocasião de voltar para a Europa
embarcando para Lisboa.
Tendo feito as minhas despedidas às pessoas de minhas relações,
embarquei na tarde do dia 10 de maio, e já ao anoitecer o capitão Be-
thencourt mandou suspender âncora. Um vento favorável nos impeliu
para fora da baía de Todos os Santos e, tendo-se aberto tôdas as velas,
não tardamos a perder a cidade de vista. Durante o crepúsculo, os
montes que fecham o Recôncavo apareciam ao longe, envoltos na bruma,
e só as trevas da noite os fizeram desaparecer completamente. Entretanto,
tendo diminuído o vento, que só soprava fracamente, avistávamos ainda
o litoral nos dias 11 e 12. O termômetro se mantinha, ao meio-dia e ao
sol, a 24 graus e meio Réaumur; a 23 graus à sombra e a 21 graus às
9 horas da noite.
Na noite de 12 o vento refrescou de novo, de sorte que a 13 pela
manhã a costa não mais se avistava. Para nossa grande satisfàção o
tempo continuava bonito, sem fazer calor nem frio demasiado. Ao meio-
dia, o termômetro se manteve sempre entre 26 e 28 graus. Tôdas as provi-
dências tinham sido tomadas para uma viagem de longa duração, o
cabo da âncora ("amarras") fôra levado para o porão, etc. Já ha-
víamos entrado na zona dos ventos alísios, que sopraram quase ininter-
ruptamente na direção les-sueste durante tôda a travessia, com diferente
intensidade; o mar tomara uma bela tonalidade azul carregado679 •
(679) Essa tonalidade, peculiar ao mar alto, traduz a pureza das águas, muito
pobres de plancto (nome dado, em conjunto, aos sêres vivos muito pequenos em suspensão)
que abunda, pelo contrário, nas águas verdes do litoral.
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474 VIAGEM AO BRASIL VIAGEM DE REGRESSO A EUROPA 475

No dia 15, achávamo-nos proximamente à altura da foz do rio Um aumento considerável do calor, pois às 9 horas da noite o
São Francisco. Viam-se algumas pequenas procelárias pretas isoladas, termômetro se mantinha entre 21 e 22 graus, e pancadas de chuva entre-
e com mais freqüência uma ave branca de asas negras, semelhante ao meadas de calmaria nos anunciavam a aproximação do , equador; efe-
ganso de Bassan ("Bass Goose") 680. Tivemos, quase tôdas as tardes, um tivamente, atravessamo-lo na noite de 22 para 23 de maio. Encon-
pouco de calmaria nessa porção do Oceano; mas, ao cair da noite, a trávamo-nos de novo no hemisfério setentrional, fato que encheu de
brisa sempre refrescava. visível alegria a todos aquêles que, a bordo, haviam estado longo tempo
A 17 o vento tornou-se muito forte, e dobrou-se o cabo Santo Agos- separados de sua pátria.
tinho; também nesse mesmo dia deixamos Pernambuco, o que causou As calmarias e as grandes chuvas se alternaram ainda durante
muita satisfação a todos os passageiros, pois que seria de recear ser oito dias; o calor era fortíssimo. Às vêzes a chuva caía com tanta
o navio aprisionado pelos vasos de guerra portuguêses que cruzavam violência que entrava em vários pontos do navio. Quando nos acha-
em frente àquela cidade, e que poderiam novamente requisitá-lo. mos no paralelo das ilhas do Cabo Verde, o calor diminuiu sensivel-
Tendo o vento se tornado menos favorável, fomos obrigados a aproar mente, pois que ao meio-dia o termômetro ao sol não marcava senão
para a ilha de Fernando de Noronha, onde recebemos violentas rajadas de 23 a 24 graus; o vento era geralmente muito forte e impelia-nos
e fortes quantidades de chuva, conseqüência comum das proximidades demais para leste, fazendo o navio inclinar-se para o lado, de sorte que
da terra. Vimos nessas paragens muitas aves marinhas e, com particula- as ondas cobriam grande parte do tombadilho.
ridade, bandos numerosos de peixes voadores. Os temporais desagradáveis, que reinaram constantemente sob
A 20 de maio havíamos passado Fernando de Noronha. O vento o paralelo das ilhas do Cabo Verde, eram algumas vêzes interrompidos
tornou-se de novo favorável, o tempo calmo, e um belo luar se veio à noite por intervalos mais tranqüilos, e gozávamos de um belo luar.
somar aos prazeres da travessia. Sentados no convés, sob a aragem Sentados então à pôpa do navio, podíamos contemplar à vontade a
fresca da noite, contemplávamos muita vez a magnífica claridade nos bela constelação do cruzeiro, no hemisfério austral, resplendendo com
altos mastros e nas brancas velas do navio, meditando sôbre essa auda- o máximo do seu brilho.
ciosa invenção, com a qual o gênio humano vence e domina tôdas as A 4 ãe junho, o tempo estava coberto, sombrio, nublado, e o
partes do mundo. A garbosa nave singrava tranqüilamente como um vento impetuoso, quando avistamos uma embarcação de três mastros,
pássaro e sem o menor ruído, impelida pelo vento, a proa da embarca- que se dirigia diretamente para nós. Temíamos já que fôsse um navio
ção muito carregada erguia-se sôbre as ondas, para afundar-se nelas corsário, quando ela arvorou o pavilhão dos Países-Baixos.
novamente; com a sua pesada massa cortava as vagas rolantes, fazendo- A 9 atravessamos o trópico de Câncer, tendo pouco antes obser-
as rebentar em alva espuma. Assim, já havia quatro meses que o Carlota vado sargaços flutuantes e aves-dos-trópicos (Phaeton aethereus Linn.),
viajava de Calcutá para a Bahia, arrostando sem o menor dano os que os portuguêses denominam "rabo-de-junco". Os sargaços se
ventos e as tempestades, enquanto no cabo de Boa Esperança navios de tornavam cada vez mais freqüentes, o que levou os portuguêses a
guerra soçobravam ao seu lado. darem a êsse trecho do Oceano Atlântico o nome de Mar de Sargaços. Ao
Alegrou-nos saber que havíamos deixado atr~s de nós a ilha de meio-dia, sob a temperatura de 22 graus, e com o céu quase encoberto,
Fernando de Noronha, pois nesse tempo costuma ser desfavorável pescamos uma porção de ervas marinhas, nas quais encontramos um
a aproximação de terra. Não obstante, muito senti não ter visto essa pequenino caranguejo e várias espécies de peixes miúdos, notadamente
il~~' cujo comprimento consta ser de três léguas e é sede de um pôsto singnatos. As aves-dos-trópicos nos haviam seguido de 8 a 12 de
mrhtar dependente de Pernambuco. Serve como lugar de banimento aos junho, por conseguinte até o paralelo da ilha Palma; conservaram-se
criminosos condenados a essa pena em Portugal. Seus habitantes cul- sempre a grande altura, o que impossibilitou que matássemos uma
tiva_m muita mandioca, e fazem abundante pesca ao longo das suas delas sequer.
praras. A 14 o tempo apresentou-se belíssimo e muito nos divertimos em
pescar. Um bando de dourados (Coryphaena) seguia o navio desde
(680) A espécie a que se refere Wled, lndubltàvelmente do gênero Bula Brlsson, e a véspera, rodeando-o por todos os lados; afinal o contramestre con-
com tôda probabilidade o "mergulbão" ou "atobá" (Bula l eucogaster l eucogast er (Bodd.)), seguiu fisgar um dêsses magníficos peixes. Extraordinário divertimento
grande ave plscfvora de dedos totlpalmados, muito freqüentes em nossa costa atlântica e
com c;sp_ecialidade .na de São Paulo (Ilha dos Alcatrazes) e na baia do Rio de Janeiro. proporcionou-nos a contemplação dêsse animal sôbre o tombadilho;
Sua smular européia (Bula bassana Llnn.), "F ou de Bassan" dos franceses (nome originado a coloração geral do corpo é azul-celeste, diversamente lustrado de
da abundância com que se multiplica na pequena ilha de Bass do gôlfo de Edimburgo)
é conhecida em Portugal. por nomes vários, como "mascato ",' "facão", "ganso patola": reflexos côr de ouro, com ponteações de azul ultramar. A própria
etc. Em mares do Brasil ocorrem ainda Bula dactylatra Lesson (Ilha de Fernando de
Noronha) e, na ilha da Trindade, Bula aula (Linn.). íris é de uma côr azul-dourada magnífica, que se torna amarela quando
476 VIAGEM AO BRASIL ' EUROPA
VIAGEM DE REGRESSO A 477

o peixe está morto; aliás, perde êle então muito de sua beleza. Sua Podíamos atribuir êsse tempo desagradável e variável às VIZI-
carne saborosa muito nos agradou, não tardando a ser arpoado um nhanças das ilhas dos Açôres. Vimos muitas embarcações que lutavam,
outro dêsses belos peixes. Rodeavam ainda o navio alvacoras681 e também, contra a tormenta, e observamos que a temperatura da chuva
uma outra espécie de peixes denominados "judeus" pelos portuguêses682, era mais elevada do que a do vento; o termômetro exposto a êste só
mas não se pôde pescar nenhum. atingia 15o, ao passo que, quando o retiravam dêle, subia a 16°, altura
A 15 havíamos já deixado o "Mar de Sargaço" e não mais víamos em que se manteve até a noite.
dêsses vegetais flutuantes; em compensação, as calmarias eram fre- Ao meio-dia entramos no canal que separa -Faial de Flôres, ilha do
qüentes e à noite a temperatura era comumente de 18 graus. No dia grupo dos Açôres. Pelos nossos cálculos, supúnhamos estar ao norte da
18 achávamo-nos proximamente na altura de Gibraltar, observando-se primeira dessas ilhas, mas, à tarde, quando as nuvens espêssas que
na superfície calma do mar moluscos em grande número; destaca- cobriam a superfície do mar se abriram um pouco, avistamos, a uma
vam-se particularmente Phys.alis) Medusa pelagica e um Beroe; viam- distância de 5 léguas, um alto promontório pertencente à ilha de Faia!.
se, também, golfinhos683 e a Procellaria pelagiw. Adiante dessa costa pedregosa e escarpada divisei uma pequena ilha
A 19 a brisa, refrescando, permitiu-nos tomar o rumo dos Açôres rochosa que me deu a reconhecer tratar-se do cabo denominado Ponta
e da costa de Portugal; a 20 foi ficando cada vez mais forte e as vagas das Capelinhas.
espumantes alcançavam o tombadilho; à tarde caiu forte aguaceiro, O capitão Bethencourt rumou então um pouco mais para o norte,
acompanhado de rajadas de vento, obrigando-nos a ferrar quase tôdas as afastando-se da ilha, que foi onde nasceu, e que não revia desde muitos
velas. A 21 o tempo estêve encoberto e ameaçador; o vento sibilava, a anos. Confesso que também era grande o meu desejo de conhecer Faia!.
chuva caía em torrentes; a água corria ao longo do passadiço, e as vagas Navegávamos agora com bom vento, e lá pela meia-noite, avistou-se
espumantes batiam no navio com tamanha violência que lhe sacudiam uma escuna que foi logo reconhecida como um corsário americano.
continuamente o costado. Avistamos um navio que, da mesma forma O alarma foi geral, virou-se prontamente de bordo, e, como pareciam
que nós, se esforçava com pouco pano em arrostar a fúria do vento estar dormindo a bor o da escuna, tivemos a felicidade de escapar a
e das ondas. Lá para o meio-dia o vento, que até então soprara mais êsse perigo. Ao raiar do dia tinha-se perdido inteiramente de vista
do norte com a maior impetuosidade, virou bruscamente para noro- aquêle navio.
este, ameaçando partir os nossos mastros e pondo-nos em terrível con- A 24, o tempo estêve sombrio e tempestuoso; o mar muito car-
fusão. Todos acorreram ao tombadilho, e cada um pôs mãos à obra regado vinha tôda hora bater com violência de encontro ao nosso navio,
para arrear as velas, operação difícil por causa da chuva violenta que que corria a 8 nós. Em pouco estávamos ao norte da ilha Graciosa.
acompanhava a tempestade. O capelão de bordo, que era um "maratte" Avistamos vários navios; evitamo-los cuidadosamente porquanto
de Goa, o cirurgião e os passageiros expuseram suas vidas nessa ocasião. grande número de corsários cruzam comumente essas águas. .f'.les
Após muitos esforços, conseguimos escapar do perigo. espreitam àvidamente os navios portuguêses que vêm da índia com
O navio se viu obrigado a dirigir-se para sudoeste, o que para êle ricos carregamentos, e que em sua travessia para chegar à Europa
era sair da rota. Mais tarde a violência da tempestade abrandou um fazem rumo pelas ilhas dos Açôres; aliás as rotas de muitos navios cru-
pouco, mas o mar continuava muito agitado e o vento continuava zam-se nas vizinhanças dêsse arquipélago. O mar tinha uma coloração
a soprar violentamente, mantendo-se então o termômetro a 17 graus plúmbea e estava coberto de espuma branca; agitava fortemente o
ao meio-dia e 15 à noitinha. No dia seguinte o tempo melhorou e a navio, que um forte vento favorável d~' pa impeliu para diante,
temperatura subiu. No dia imediato a atmosfera estêve carregada enquanto desabava copiosa chuva. Ao m ·o-dia vimos passar perto
e chuvosa. e o vento forte; o navio desenvolvia 7 nós e mantinha as velas de nós, boiando, úma grande vela ainda p esa ao mastro, o que nos fêz
inferiores encolhidas; estava excessivamente tombado para o lado, pensar que talvez algum navio por ali houvesse naufragado.
posição para a qual muito concorriam os seus mastros feitos de madeira A 25 deixamos os Açôres, enquanto o vento, sempre muito forte,
do Brasil, muito resistente, porém muito pesada. impelia-nos para as costas de Portugal, variando embora constantemente,
e dando muito trabalho à tripulação; manteve o mar muito agitado e
(681) Thunnus alalO?l{la vulgarmente "alvacora " ou " albacora " (o autor escreveu fêz partir um dos cabos. Nossos vigias no alto do mastro grande assi-
"Alvacore") é peixe da famflla dos escômbrldas, cujo exemplo mais conhecido entre nós são
a "cavala verdadeira" (Scomberomorus cavalla Cuvier), e a " cavala branca" (Se. regalt. nalaram várias velas ao largo, que evitamos por não têrmos canhões
Bloch )_ Ao mesmo gênero pertence o "j udeu " (Thunntts thunnica Cuvier), próprio ao a bordo. O espaço que nos separava do continente europeu não era
Atlântico europeu.
{682) Syngnathus acus (Linn.), vulgarmente "agulha do mar ". muito considerável, mas, por causa dos corsários, oferecia mais perigo
(688) No original "Braunlisch ", nome alemão da espécie Phocaena phocaena Linn. do que a distância imensa que já havíamos percorrido. Observaram-se
478 VIAGEM AO BRASIL ' EUROPA
VIAGEM DE REGRESSO A 479

atentamente todos os navios, cujo número aumentava agora dia a dia, tôdas as velas; o Constância fêz o mesmo, e depois de içar o seu escaler
e imediatamente tomava-se uma direção diferente. a bordo, singrou êle a sotavento, passando majestosamente por nós, com a
Essa manobra vinha dando sempre resultado, até a manhã do dia 28, velocidade duma flecha, e desejando-nos boa viagem. Em breve nos sepa-
quando notamos no horizonte um navio que parecia seguir a mesma rota ramos, pois os dois navios corriam um para leste e outro para o sul.
que o nosso. O pilôto do Carlota, que já havia sido prisioneiro dos cor- Uma chuva acompanhada de ventania, que os portuguêses denominam
sários, e bem assim o capitão e tôda marinhagem, observaram com a "aguaceiro", foi-nos muito favorável, e em algumas horas perdemos de
maior atenção êsse navio, pois todos êles julgavam distinguir em suas vista o Constância. Nos dias seguintes avistamos muitos navios, que
manobras sinais ameaçadores para nós. Via-se que êle vinha, a todo evitávamos prudentemente. A 30 de junho, sargaços (Fucus) e outros
pano, diretamente ao nosso encontro. As 12 horas, com sobressalto de indícios já nos anunciavam a proximidade das costas européias, mere-
todos, reconheceu-se ser uma escuna americana, tornando-se portanto cendo entre aquêles destaque particular um que se assemelha a uma
muitíssimo provável que iríamos nos haver com um corsário. No larga fita, e ao qual os navegantes portuguêses deram o nome de
mesmo instante deu êle um tiro de canhão, para indicar que o devíamos "curiolas".
esperar, e içou o pavilhão português. A confusão chegou ao auge; cada As 2 horas da tarde o grito de "terra! terra!" se fêz ouvir do
qual desceu ao seu camarote para esconder o que possuía. Abriram-se alto do mastro grande, enchendo-nos de alegria. Em breve distingui-
buracos no revestimento interno do navio para meter aí tudo o que mos, num longe brumoso, o Cabo Roca, na costa de Portugal;
havia de mais precioso, como papéis, dinheiro, etc., se bem que se não a sua extremidade aparecia à nossa vista como uma ilha suavemente
devesse esperar esconder nada aos olhos ávidos de piratas excitados pela arredondada. O litoral não tardou em desdobrar-se mais distinta-
prêsa. Puseram na mesa o almôço; mas ninguém teve muito tempo, mente aos nossos olhos, apesar das nuvens que obscureciam um pouco
porque ao grito de "a escuna vem perto!", todos se reuniram sôbre a beleza da perspectiva. Navios de diferentes nacionalidades viam-se
o tombadilho. Nossos olhos se fixavam inquietos e no maior silêncio ao longe; vários barcos de pesca aproximaram-se de nós, e demos-
sôbre a embarcação que vinha sôbre nós a todo pano. Trazia os canhões lhes a entender, içando uma bandeira, que desejávamos um pilôto.
a descoberto; uma multidão de homens comprimia-se sôbre o tom- Ao cair da tarde uma muleta, navio de pesca de construção singularís-
badilho distinguindo-se no meio dela negros e mulatos, o que ainda sima, tendo o pavilhão dos pilotos, e'ittostou ao nosso navio. Trouxe-n~s
aumentava as nossas suspeitas. No momento em que esperávamos, com grande quantidade de excelente peixe, e um pilôto de Cascais, que logo
ansiedade difícil de descrever, a decisão da nossa sorte, o comandante subiu para bordo. Já era muito tarde para que pudéssemos entrar no
da escuna tomou o porta-voz e nos perguntou de onde vínhamos. Res- Tejo, e ficamos bordejando até a manhã do dia seguinte.
pondemos, bem inquietos sôbre o que é que nos iam êles replicar, A 1. 0 de julho, ao raiar do dia, estávamos todos no tombadilho
quando, - com que inesperada satisfação! - alguns dos nossos mari- para saudar as costas da Europa. Infelizmente o tempo não estava
nheiros postados no cêsto da gávea, reconheceram que o pretenso cor- suficientemente belo para que pudéssemos bem distinguir a terra.
sário era um navio de guerra português. Alegria geral espalhou-se agora Aproamos então para a foz do rio, formada ao norte pelo Cabo Roca
a bordo do nosso navio, e reciprocamente nos felicitávamos. O oficial e ao sul pelo Cabo Espichei; êste último avança m~to para o mar, e é
comandante da escuna de guerra Constância (assim se chamava o menos elevado que aquêle. O mar tinha o mes~o cplorido verde claro
navio) mandou que esperássemos, acrescentando que nos ia enviar um de ao longo das costas do BrasiiOB 4 • As 9 horas o Caflota passou a barra,
bote. A escuna aproximou-se então, fazendo descer ao mar um bote, no onde o mar se quebra com violência à direita e à esquerda, nos rochedos.
qual logo veio até nós um loco-tenente que nos assegurou a falta de se- Muletas, barreiros e outros barcos de pesca de esquisitas formas, bem
gurança dêsses mares. O Constância era com efeito uma bela escuna como navios espanhóis cruzavam em todos os sentidos e navegavam
americana de dezoito canhões, que o govêrno português comprara e conosco.
armara. Havia deixado Lisboa, dezesseis dias antes, para cruzar essas Nesse ínterim, o nevoeiro se dissipara, permitindo-nos avistar as
águas, contra os corsários que as infestavam. Alguns meses antes, uma fra- duas margens do rio que se erguiam suavemente inclinadas, e cobertas de
gata portuguêsa tinha aprisionado um dêles. Um outro havia perseguido aldeias, casas de campo, igrejas. Apesar da largura do rio, distinguiam-
e atacado nessa região o grande navio português Asia Grande, da carreira se a brancura das casas e os campos já ceifados, visto como em Portugal
da índia, sem todavia aprisioná-lo porque êste, que levava vinte canhões, o trigo amadurece muito cedo. Deixamos à direita um forte redondo
se defendeu bravamente.
chamado Tôrre de Bugio, e à esquerda o forte São Julião. O rio agora
Satisfeitos como estávamos de ver esclarecido de modo tão favo-
rável um fato que nos causara tantas apreensões, o Carlota abriu (684) Cf. nota 679.
480 VIAGEM AO BRASIL ' EUROPA
VIAGEM DE REGRESSO A 481

vai se estreitando, vendo-se em ambas as margens, povoados e habitações. extensão ao longo da margem setentrional do Tejo. Só ~ à beira do rio
Passamos à frente de duas fragatas francesas surtas no pôrto e que é que realmente se vê uma cidade regular com suas ruas longas, algumas
estavam sendo visitadas por uma bombarda portuguêsa. das quais bastante largas. Nas partes mais altas e distantes da cidade
Ao meio-dia, aproximadamente, o Carlota ancorou na margem as casas são separadas umas das outras por jardins e até por searas. As
setentrional do Tejo, em frente de Belém, que constitui o comêço ruas, na sua maior parte, são estreitas, mal asseadas, exalando em conse-
da cidade de Lisboa. As casas se sucedem a partir daí ininterruptamente qüência um mau cheiro extremamente desagradável quando faz muito
até à capital. À tarde recebemos a visita da saúde, que examinou o calor. As casas são de pedra, geralmente de vários andares; tôdas têm
estado sanitário da tripulação. Não pudemos deixar o navio sem que balcões, donde se desfruta a vista do rio e das belas regiões que banha.
todos os passaportes tivessem sido rigorosamente examinados. Dois O número de igrejas e conventos é prodigioso, e vêem-se nas ruas monges
navios de linha, que se achavam ancorados perto da cidade, e que com tôda espécie de uniformes e das mais diversas ordens religiosas.
daí a poucos dias deveriam ir buscar em Livorno a arquiduquesa Essa capital possui vários edifícios públicos. Notam-se entre outros
Leopoldina da Áustria, para conduzi-la ao Rio de Janeiro, enviaram o arsenal com seus estaleiros, a Casa das índias com a alfândega e a
a bordo do nosso navio um oficial acompanhado de soldados, para bôlsa reunidas no mesmo edifício, perto da bela e grande praça do Co-
escolher alguns marinheiros dos nossos, pois que faltavam homens em mércio, onde se ergue, em bronze, a colossal estátua eqüestre de João I.
sua tripulação. Fomos pouco depois obrigados, por falta de vento, a Lisboa tem uma Opera e duas outras salas de espetáculos. Os
ancorar de novo. Ao cair da tarde e durante tôda a noite, grande número cais, principalmente o cais Sodré, em frente ao qual ancoram os grandes
de soldados se alojaram a bordo para vigiar os marinheiros; atirariam navios da índia, são muito freqüentados; à noite, sobretudo, servem
sôbre qualquer embarcação que se aproximasse. de passeio aos habitantes que aí vêm tomar um pouco de fresco. Dizem
A 2 de julho movemo-nos de novo em direção à cidade. O aspecto que antigamente a afluência de público e de vendedores nesse trecho
dessa grande cidade é magnífico; estende-se ao longo do Tejo sôbre da cidade, situado à beira do rio, era muito mais considerável do que é
colinas suavemente inclinadas, distinguindo-se no meio do seu branco hoje, tendo o comércio diminuído muito de importância. Os por-
casaria, todo coberto de telhas avermelhadas, grandes edifícios e tuguêses acusam o govêrno britânico por essa decadência de sua prospe-
notáveis palácios, entre outros o da Ajuda ainda não concluído, a ridade; e daí a razão por que os inglêses não são geralmente estimados.
massa imponente das igrejas, etc. Entre as construções crescem bos- O comércio é mais importante com 'b índias orientais do que com o
ques de loureiros sempre verdes, laranjeiras, limoeiros, de mistura com Brasil; os inglêses arruinaram completamente êste último.
pinheiros e ciprestes, cujo verde carregado forma o mais agradável Portugal é sob vários pontos de vista muito mais atrasado que os
contraste com o verde claro das oliveiras. Destaca-se, dominando êsses outros países da Europa. A própria capital não possui várias institui-
tufos de verdura, o jardim da rainha. No entanto o aspecto dessa ções úteis que se encontram em quase tôdas as pequenas cidades dos
região é algo mortiço, severo e algo desnudo, faltando-lhe a frescura da países civilizados da Europa. Tudo aí é caro; as carruagens ("seges")
vegetação verde; os olhos só se deixam impressionar pela côr queimada e os albergues são extremamente maus, e só um pequeno número, per-
do solo, pela brancura das casas e o colorido pardacento das árvores. tencentes a estrangeiros, apresentam alguma vantagem. As ruas não são
Ao meio-dia ancoramos no cais Sodré, em frente da estátua do rei iluminadas à noite; as estradas principais são maltratadas; o correio
João I, que se costuma designar pelo nome de Memória, e entre dois para Madri ainda é a cavalo; não há guardas para a vigilância noturna
grandes navios de três mastros, alguns dos quais, como nós, regressavam da segurança das ruas; mas atualmente se vêem por tôda parte postos
de longínquas viagens. militares, mormente depois do levante que há pouco se verificou.
A vista do rio nesse ponto é particularmente bela; para o lado da Muitas originalidades apresenta êsse país meridional. A água, que
terra, parece um mar, pois as suas margens, extremamente baixas, são vem das montanhas de Sintra, a uma distância de 4 léguas, por um
tão afastadas que nem se avistam. Navios de todos os tamanhos, carre- belo aqueduto em pedra talhada, é carregada em tôda a cidade por
gados de produtos das regiões vizinhas, cruzam-se a cada momento, homens, que a vendem em pequenos barris. í.sses carregadores d'água,
enchendo de vida o interessante cenário. O termômetro de bôrdo, nesse pertencentes à classe mais baixa do povo, são vistos aos magotes em
dia quente, marcava ao meio-dia 19 graus à sombra; porém o calor era tôdas as fontes públicas. Tôdas as manhãs muito cedo, fazem passear
muito mais forte nas ruas. pelas ruas da cidade vacas e cabras com campainhas ao pescoço, as quais
Lisboa vista do Tejo agrada muito mais à vista do que quando são mungidas em frente das portas dos compradores de leite. Encontram-
nela se penetra. O solo é onduloso, desigual; as casas são separadas se nas ruas uma multidão de jardineiros, camponeses, moleiros, condu-
e mal conservadas, as ruas sujas. A cidade ocupa uma considerável zindo tropas de burros e jumentos carregados de frutas, hortaliças,
' EUROPA
VIAGEM DE REGRESSO A 483
482 VIAGEM AO BRASIL

legumes, farinha, etc., que são vendidos a qualquer transeunte. Princi- são feitas de penas de araras, ararunas, tucanos, guaribas e outras
palmente, traz-se, para a cidade, grande quantidade de frutas. belas aves. Há também entre as suas raridades dois manatis, com 6
Vêem-se em Lisboa muitos aprazíveis jardins, cujas árvores frondosas e 8 pés de comprimento.
atraem os passeantes. Mas os portuguêses estão também aquém das O jardim botânico nem vale a pena ser citado; compõe-se de
outras nações na arte da jardinagem. Vêem-se ainda por tôda parte quadras cercadas de sebes baixas e cortadas a tesoura, e onde vegetam,
árvores cortadas à antiga moda francesa, desfiguradas pelas formas em estado meio selvagem, plantas comuns. Duas pequenas estufas
extravagantes e ridículas que lhes dão. O jardim da rainha está situado estão quase vazias; vêem-se ao lado delas grupos de cactos muito vigo-
em Belém, na parte inferior da cidade, próximo ao parque zoológico, hoje rosos, e um dragoeiro (Dracena draco), cujos frutos estavam madur9s.
completamente vazio; compõe-se o jardim de um bosque de grandes O estudo da natureza não parece contar muitos amadores em Portugal,
árvores de diversas espécies, entre outras choupos prateados, loureiros, e os próprios produtos naturais do país são em grande parte estudados
alfarrobeiras, etc., próprias dos climas meridionais; formam aléias por naturalistas estrangeiros, motivo pelo qual não nos deve surpreender
rodeadas de sebes cortadas a tesoura. Uma multidão de pássaros animam que aqui se descuide de fazer pesquisas sôbre a história natural das
com o seu canto o arvoredo. O Passeio Público, situado no centro colônias dêste reino.
da cidade, foi feito no mesmo plano: êsse passeio, se bem que pequeno, O espetáculo das falhas e defeitos que precisam ser ainda melho-
proporciona grande prazer pelo frescor que espalha em plena cidade rados e aperfeiçoados em Portugal, é compensado pelo aspecto das
aquecida pelo sol. Entre as árvores do país, agradam sobremodo altos belezas naturais do país, principalmente durante a primavera. Na
e belos Cercis6B5, época, porém, em que nos achávamos, o ardor do verão havia despo-
O palácio do rei, edifício de tamanho medíocre, acha-se a pequena jado o campo de todos os seus atrativos; à vista disso, eu desejava
distância do Passeio Público. Estão construindo em Belém um outro vivamente chegar a um país mais setentrional e procurar, em seu clima
denominado Palácio da Ajuda, mas falta muito ainda para ser con- mais temperado, um meio seguro de me refazer das fadigas de minha
cluído. Os estrangeiros vêem com muito maior interêsse o gabinete longa viagem.
de história natural, que não fica longe do palácio, e é contíguo ao Os paquêtes inglêses, dos quais muitos partem de Falmouth nos
jardim botânico. Antigamente, aquêle devia ter sido muito mais rico; primeiros dias de cada mês, constituem uma inovação das mais agra-
todavia contém ainda muitas coisas curiosas, provenientes das possessões dáveis para os estrangeiros. Tôda semana, Lisboa oferece uma tal opor-
portuguêsas nas diferentes partes do mundo. Napoleão, que considerava tunidade de viajar para a Inglaterra, do que me aproveitei, embar-
justa prêsa todos os objetos em que podia pôr a mão, deixou triste cando no paquête "Duque de Kent", comandado pelo capitão Lawrence.
recordação entre os portuguêses pela pilhagem dêsse gabinete, tendo A 12 de julho, ao meio-dia, partimos com uma boa brisa; des-
sido o primeiro conquistador que não poupou sequer os estabelecimentos cemos em pouco tempo o Tejo e, uma vez no mar, perdemos de vista
científicos, nos diferentes povos que despojou6s6. Havia nesse gabinete Portugal no mesmo dia. No dia seguinte, o vento aumentou e o mar
uma importante coleção de animais do Brasil; todavia, ela não mais estêve um pouco agitado, fazendo com que alguns passageiros fôssem
existe, podendo ser procurada em Paris. Tôdas as outras nações obti- tomados de enjôo. Apesar dos ventos muitas vêzes contrários e das
veram, pelo tratado de paz de 1815, grande parte, pelo menos, das calmarias, que tivemos até às alturas do cabo Finisterra, na costa da
raridades que lhes tinham sido tiradas; os portuguêses, porém, não Espanha, chegamos felizmente a Falmouth ao fim de dez dias. Os
foram tão felizes, e choram ainda a perda que sofreram. Seria fácil paquêtes inglêses merecem sinceros elogios dos passageiros; são muito
de reparar, se uma ordem do rei encarregasse naturalistas de percorrer limpos e confortáveis, é-se muito bem servido e a comida é boa; da
as diferentes províncias do Brasil, para preparar exemplares notáveis mesma forma, os marinheiros são gente de bem. Em tempo de guerra
para o museu em questão. :Ele, contudo, ainda possui várias peças de cada um dêsses navios, que se escolhem entre os brigues de guerra mais
grande valor, entre outras uma coleção de armas, utensílios e orna- ligeiros, sólidos e bons veleiros, tanto quanto é possível, é armado com
mentos de penas das diferentes tribos do Brasil, principalmente do oito canhões e trinta e um homens; em tempo de paz a tripulação é de
Maranhão. As côres dêsses ornamentos são magníficas, porquanto vinte e um apenas.
No dia 21, ao meio-dia, reconhecemos as costas das ilhas Scilly687
(685) Gereis süiquastrum, "olala" dos portuguêses.
e fizemos rumo para o canal da Mancha. À tarde, o cabo Lizzard
(686) A. Nelva, em seu substancioso "Esbôço Histórico sôbre a Botânica e a
Zoologia no Brasil" aduz Interessantes informes sõbre êste ato de pirataria clentlflca.
A maior parte do material arrebatado do Museu Zoológico de Lisboa provinha da célebre
expedição enviada ao Amazonas em fins do século XVIII pelo govêrno de Portugal, (687) Denominadas Ilhas Sorlingues pelos franceses. O arquipélago compreende
sob a chefia de Alexandre Rodrigues Ferreira, cujos notáveis trabalbos, na sua maioria 145 Ilhas e Ilhotas, das quais 6 são habitadas por uma população quase exclusiva de
Inéditos até hoje, lhe valeram o cognome de Humboldt brasileiro. pescadores.
484 VIAGEM AO BRASIL ' EUROPA
VIAGEM DE REGRESSO A 485

surgiu do seio do Oceano. Que alegria experimentei, após um intervalo pequeno rio Ex, e tendo uma população de 18.000 almas, mais ou menos.
de dois anos e vinte e nove dias, por me encontrar de novo no mesmo Os seus arrabaldes, na bela estação em que estávamos, lembravam um
ponto donde partira. Começava justamente a escurecer quando che- jardim, cujo aspecto proporciona agradável entretenimento aos
gamos à entrada do canal, e subitamente apareceram à nossa vista os viajantes.
numerosos faróis que brilham na costa da Inglaterra. Na manhã se- Passei por Sallisbury. Atravessei o Willshire, o Hampshire e
guinte, subindo ao tombadilho, vimos que estávamos tranqüilamente outras províncias, percorrendo sem cessar regiões encantadoras. A
ancorados no pôrto de Falmouth. distância de Exeter a Londres é de 176 milhas inglêsas. Só permaneci
Falmouth é uma pequena cidade na embocadura do rio Fal; poucos dias nessa grande capital. Parti para Dower, de onde em-
o pôrto, inteiramente cercado pela terra, é belo e seguro. De todos barquei para o continente. A minha travessia para Ostende foi feliz;
os lados, vêem-se campos cobertos de verdura e belos prados; grandes ao meio-dia o paquête partiu de Dower, e já antes da meia-noite alcan-
árvores se erguem junto da cidade. çávamos a costa de Flandres. Ao raiar do dia, entramos no pôrto
Desembarcados e com os passaportes visados, ficamos ainda àlguns de onde, passando por Gand, Bruxelas e Liege, tomei a estrada para
dias em Falmouth, onde fomos recebidos da forma mais amável em Aachen 688• Foi nessa cidade que ouvi falar de novo o alemão, antes
casa do Sr. Lawrence, o nosso capitão. Achei muito aprazíveis os arre- de, pouco depois, chegar à minha pátria, nas margens do Reno.
dores da cidade, especialmente quando se sobe o monte onde fica o forte
Pendennis, e se descortina uma bela vista do oceano, de par com a verde
vegetação que existe por tôda parte, na Inglaterra.
Parti para Londres no dia 24 de julho, fazendo uma viagem muito
agradável. As grandes estradas são o que se podia desejar de bem
tratadas nesse belo e rico país; a organização das estações de posta
tem aí uma perfeição que não se encontra em nenhuma outra parte.
Os cavalos são belíssimos, ótimos e todos de raça escolhida. Em cada
parada, é-se servido com uma presteza que nada deixa a desejar.
O aspecto da província de Cornualha, em que está situada Fal-
mouth, agrada menos a vista que o dos outros condados que se atra-
vessam na viagem; contém muitas charnecas, onde pastam bois e car-
neiros; muitos pântanos cheios de juncos e caniços; mas também muitos
trechos aprazíveis. E' principalmente conhecida por suas minas, de
que muitos viajantes já deram a descrição.
A aspereza de aspecto indicando um terreno pouco fértil, que se
observa em vários trechos da Cornualha, desaparece em Devonshire;
aí o viajante só encontra regiões de pasmosa fertilidade; prados e
bosques do mais rico verdor, pastagens repletas de cavalos, bois, car-
neiros, se estendem por todos os lados, em colinas suavemente arredon-
dadas. Tudo está cultivado e tem vida. Em parte alguma se vê um
trecho despido ou inculto; por tôda parte, aldeias muito limpas e
lindas herdades; cidades onde as casas bem construídas e cuidadas
denotam um bem-estar, que não se vê tão freqüentemente em outros
países. Em alguns trechos, o campo semelha um parque natural; aliás
a arte soube criá-los, e o olhar descç>bre, nos vastos prados, regados
por límpidas correntes, velhas e sombrias matas de carvalhos, e, junto
dêles, a residência do proprietário, construída com muito bom gôsto.
Contam-se 84 milhas inglêsas de Falmouth a Exeter, uma das
(688) No original lê-se, em vez de Llêge e Aix-la-Chapelle, " Lüttich" e "Aachen",
ma1s lindas cidades da Inglaterra, edificada com regularidade sôbre o seus respectivos nomes germânicos.
APENDICE
I

SOBRE A MANEIRA DE .SE EMPREENDEREM


NO BRASIL VIAGENS RELATIVAS
A HISTORIA NATURAL

Espero que não serão mal recebidos pelos naturalistas os resultados


da experiência de um viajante sôbre a maneira mais conveniente de fazer
coleções nos climas em questão, podendo, pelo que lhes vou dizer,
avaliar os obstáculos que se deparam na execução dêsse gênero de
projetos. Embora todos os países situados na zona tórrida se pareçam
geralmente sob êsse ponto de vista, cada qual, entretanto, se distingue
por certas particularidades, motivo pelo qual tratarei especialmente do
Brasil; todavia, os conselhos que vou dar poderão, com algumas modi-
ficações, ser aproveitados em tôdas as regiões da zona tropical.
O Brasil, país imenso, geralmente montanhoso ou acidentado e
ainda pouco cultivado, apresenta grandes dificuldades para o natura-
lista, pois nêle nunca se pensou na comodidade daqueles que o per-
correm.
Na Europa, uma viagem é motivo de prazer e distração, porque
nela se encontra com facilidade tudo quanto pode ser útil ou agradável
aos viajantes.
O Brasil, pelo contrário, tem permanecido até agora no mais baixo
grau de civilização; só possui até agora um pequeno número de cami-
nhos e nenhum que se possa considerar uma grande estrada. O viajante,
só em poucos lugares pode encontrar teto em que se abrigue, pontes
para as travessias dos rios e ribeirões, e até mesmo o alimento mais
estritamente indispensável, vendo-se muitas vêzes obrigado a se prover
de coisas, de que só é possível lembrar-se no caso de já ser bastante
experimentado. Não se conhece, no Brasil, o meio tão fácil e cômodo de
transportar em carros as mercadorias, empregando-se para isso somente
burros, cuja índole teimosa aumenta ainda de muito as dificuldades
do transporte, além de não carregarem muito pêso e custarem muito
490 VIAGEM AO BRASIL MANEIRA DE SE EMPREENDEREM VIAGENS 491

caro. Verdade é que, em certas regiões montanhosas, o uso de bêstas Como rédéa o burro de carga não leva mais do que um cabresto de
de carga é de grande vantagem; mas, mesmo assim, êsse meio de trans- couro cru, ou de crina de cavalo trançada, que passa por trás das
porte não se pode comparar com o transporte sôbre rodas, tal como orelhas e deixa a bôca do animal livre para pastar e beber. •A correia que
existe na Europa. É, porém, até o presente, o único praticável, dado se prende ao cabresto, e com a qual se amarra o burro, quando êste
que nesse país não existem grandes estradas, ou caminhos transitáveis. está arreado, é prêsa à cangalha; uma vez tudo isso pronto, deixam-se os
Se se pretende viajar pelo interior do Brasil, é preciso, em primeiro animais marchar livremente uns atrás dos outros.
lugar, arranjar bons animais de tropa, os quais custam barato em certas A carga consiste em duas caixas do mesmo tamanho; pendura-se
províncias como Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande, enquanto cada uma delas de um lado da cangalha; convém que não sejam nem
noutras alcançam alto preço. No Rio de Janeiro, pode-se comprar a muito grandes nem muito pequenas, o comprimento mais próprio sendo
um mineiro tôda a tropa, à razão de 33 a 25.000 réis cada burro (o que de 29 polegadas renanas; são feitas com madeira leve de caixeta, ma-
vale aproximadamente 6 Carolin, dinheiro alemão, por peça). Na deira branca e leve, e são protegidas por uma manta de couro, com os
Bahia pode-se comprá-los na vila de Cachoeira de Peruaçu ou Para- pêlos para fora . Em cada uma de suas extremidades há uma argola de
guaçu. Os estrangeiros nada entendem do modo de tratar êsses animais; ferro; fazem-se passar por baixo duas correias de couro, que se cruzam
não sabem nem ferrá-los, nem curá-los quando caem doentes. Eis porque para melhor segurá-la, e mete-se por dentro de cada argola uma alça de
é de necessidade contratar um tropeiro, ou arrieiro. São homens que couro que serve para suspender as caixas nas pontas da cangalha.
desde moços se ocuparam em transportar mercadorias em lombo de Quando o tropeiro põe a carga no animal, toma a caixa aos om-
burro. Sete animais carregados formam o que se chama um lote, bros e pendura-a à cangalha, tomando o cuidado em que o equilíbrio
cabendo êsse número a um tropeiro. Habituados com tudo o que con- da carga se estabeleça dos dois lados, para não maltratar o animaL
cerne às caminhadas no interior, êsses homens conhecem perfeitamente A vinheta do capítulo VIII representa o trabalho dos tropeiros e o
as mínimas particularidades do seu ofício; são afeitos à fadiga e sóbrios aspecto externo da cangalha. Se as caixas não tiverem pêso igual, põem-
como todos os brasileiros, dormem no chão puro quando é preciso, mar- se outros objetos na mais leve, para torná-la mais pesada. A carga
cham a pé, ao lado dos burros ou a cavalo, conforme o que se tenha bem colocada e firme, cobrem-na com um grande pedaço de couro
combinado. Se se teve a felicidade de encontrar um bom tropeiro, curtido, com o pêlo para fora, que se prende por meio de uma longa
está vencido o ponto principal da emprêsa; pode-se contar que a correia de couro, chamada "sobrecarga". Numa das pontas tem um
viagem será bem sucedida. Tôdas as manhãs êle carrega e à tarde des- gancho de ferro, com que se puxa a outra ponta, provida duma grossa
carrega os burros, e, depois de tê-los feito pastar durante a noite, cravelha de pau, até que a correia esteja bastante apertada para a ponta
reúne-os no dia seguinte de manhã, quando chega a hora da partida. do gancho nela poder entrar, mantendo-a firme, a custa de vários laços.
Muita vez, vê-se obrigado a ir no encalço dêles para encontrá-los, mas Para impedir que a carga escorregue para a frente ou para trás da
conhece tão bem o seu rastro e seus costumes que acaba por descobri-los. cangalha, fazem-se passar pelas duas pontas uma nova correia, que
A maneira de carregar os burros no Brasil é muito engenhosa e prende melhor as caixas. O animal assim convenientemente carregado,
simples. Um bom animal carrega 8 arrôbas (uma arrôba vale 32 libras) deixam-no caminhar livremente e pastar até que, tôda a tropa pronta,
e às vêzes eleva-se a carga até a 12 arrôbas. Põe-se primeiro nas costas possa pôr-se em marcha. No fim de cada dia de viagem, dá-se aos burros,
do burro uma albarda (chamada "cangalha"); esta é de madeira, e tem depois de aliviá-los da carga, uma ração de milho; esta é posta, como para
uma forte saliência vertical nas duas extremidades da parte superior; a cavalaria em campanha, num pequeno saco suspenso ao pescoço do
penduram-se nelas, de cada lado, as caixas. A fim de diminuir a pressão animal, ou então espalhada sôbre pedaços de couro. tsse alimento é
dessa cangalha, forram-na internamente com capim sêco, cujas fôlhas muito substancial, e necessário sobretudo nas viagens fatigantes.
longas e estreitas são estendidas bem por igual; põe-se por cima dêsse As caixas, que se empregam para as cargas dos burros, só se encon-
acolchoado de capim um coxim feito de junco, chamado esteira, e cobre- tram até agora em certas cidades importantes, como o Rio de Janeiro,
se esta com um pano de algodão. A albarda assim acolchoada é ainda Vila Rica e Bahia; são muito bem construídas, porém muito caras. Em
forrada com um couro de boi, de forma retangular, o qual tem na parte tôdas as pequenas cidades e povoações do interior do Brasil e mesmo
superior dois orifícios para deixar passar as pontas da cangalha, em do litoral, não se consegue encontrar caixas tão boas e duráveis, pois não
que se suspendem as caixas. Amarra-se, na frente dessa cangalha, uma há nelas marceneiros, mas tão-somente carpinteiros. As caixas que fazem
correia peitoral larga e, atrás, uma outra, ambas indispensáveis na são demasiadamente grossas e pesadas, têm os lados unidos somente com
subida ou na descida das montanhas. Uma tira de couro cru, fortemente pregos, e não servem absolutamente para viagem. E' portanto indispen-
amarrada, serve de cilha, prendendo solidamente a cangalha. sável prover-se das caixas necessárias nas grandes cidades.
492 VIAGEM AO BRASIL MANEIRA DE SE EMPREENDEREM VIAGENS 493

Para se conseguir, no meio de um país estranho, conservar nessas se depois.sôbre uma tábua forrada de algodão, a qual pode ser o próprio
caixas exemplares de história natural, é preciso introduzir nel~s adap- fundo das caixas. Os animais ficam assim alguns dias expostos ao sol.
tações especiais. Dispõem-se vários fund?s delgados ~e m.adeir~ leve Se se precisa partir antes que as peles estejam completamente sêcas, basta
uns por cima dos outros, separados por mtervalos desiguais a fim de envolvê-las com algodão para que se conservem na posição em que foram
que nestes se possam pôr objetos de diferentes t'l:manhos; fi~am-se arrumadas. Prega-se uma etiquêta em cada uma, onde se anota o sexo
pequenas escoras em pé, nos quatro cantos da caixa para aguentar do exemplar, razão pela qual é útil ter prontas de antemão um certo
os fundos. Nas caixas destinadas aos mamíferos e às aves, êsses fundos número delas.
ficam nus, mas para os insetos devem ser forrados ~OII_l uma .camada de Não precisarei dizer que é necessário esfregar as peles com um
"pita", de 5 a 6 linhas de espessura, a qual substttm perfeitamente a bom sabão arsenical, como o melhor meio de preservá-las. O sol no
cortiça européia, ou é até melhor de;> que ela. E' a me~ula das haste~ flo- Brasil seca com uma presteza extraordinária, sobretudo no verão,
rais de Agave foetida6B 9 , planta mmto comum no Brasil,. mas que n~o se tôdas as peles de animais; bastam poucos dias para que a pele dos
encontra em tôdas as suas zonas. Os arredores do Rw de Janetro e maiores quadrúpedes fique dura como pau.
outros lugares fornecem uma quantidade suficiente. Como as placas A coisa, pelo contrário, se passa de modo diferente na época das
obtidas com essa medula não são muito largas, elas devem ser coladas chuvas. A grande umidade do ar se opõe a que tudo se seque, e como faz
sôbre a tábua do fundo. ao mesmo tempo muito calor, os pés das grandes aves, principalmente das
Para empacotar os exemplares de história natural, emprega-~e aves de rapina, das garças e dos grandes galináceos, se estragam muitas
algodão, muito barato em tôda parte, principalmente nos lugares dis- vêzes ao cabo de dois ou três dias até o calcanhar. Para evitar êsse incon-
tantes do litoral. Uma arrôba de 32 libras só me custou 2 a 3 patacas, veniente, o Sr. Freyreiss, que tem muita habilidade e experiência em
isto é, cêrca de 3 florins renanos, na zona litorânea que percorri. Custa preparar tôda sorte de objetos de história natural, inventou uma lata de
mais caro na vizinhança das cidades, onde tem maior procura por parte fôlha de Flandres, onde as aves, convenientemente colocadas sôbre algo-
dos negociantes. Em pleno sertão da Bahia valia 4.000 réis (12:y2 florins) dão, são suspensas por cima de um fogo brando; viram-se de vez em
e na cidade da Bahia 8.000 e até 10.000 réis a arrôba. O algodão bem quando para impedir que se queimem e também para que sequem de
batido e catado é inegàvelmente a melhor coisa que se pode empregar maneira uniforme. A tampa da lata deve ficar um pouco aberta para a
no empacotamento do material de história natural; preserva-o mesmo umidade se evaporar. Em um ou dois dias, as peles estão suficientemente
da umidade. Sabendo com antecedência o viajante, com certa segurança, sêcas. Verdade é que, às vêzes, com êsse processo, perdem as aves mais
necessária, guardará dela nos seus caixotes vazios provisão suficiente. belas parte do brilho da plumagem; e a gordura das aves aquáticas se
Se se quer colecionar mamíferos e aves, mandam-se na frente derrete e espalha sôbre a plumagem; todavia, não se conhece até o
caçadores bem municiados de chumbo de _todos os t~manhos, dando- presente mei,o melhor para o viajante poder evitar que se estraguem
lhes ordem de atirar sem distinção sôbre tudo o que virem. Madrul?a- valiosos exemplares, nas florestas quase sempre fechadas e úmidas, onde
se para chegar cedo ao lugar escolhido para ponto de parada, com o fim o sol nunca penetra, e se é obrigado a dormir ao relento.
de se ter tempo de preparar os animais que forem mortos. Tomam-se Tarefa mais difícil e incômoda é colecionar répteis. Só em poucos
logo informações de quais sejam os melhores caçadores do lugar, manda- lugares é que se pode encontrar aguardente pura e forte; em todos
se que venham, trata-se com êles, dá-se-lhes pólvora e chumbo, que ~e os pontos habitados só há de má qualidade. A comumente chamada
teve a precaução de trazer da Europa; pois,. se bem que no Br~sll "água ardente de cana" é muito fraca; precisa ser freqüentemente
não faltem tais munições e sejam de boa quahdade, custam excessiva- renovada nos bocais em que se guardam répteis, que, sem essa
mente caro· encontram-se também no interior do país, bem como precaução, não ficariam conservados. A aguardente forte, a que os
o chumbo, porém de má qualidade. Dando-se ao~ ca~adores as instruç,ões brasileiros chamam "cachaça"691 , é muito mais útil nesses casos. Con-
necessárias sôbre a maneira de guardar os ammais que matam, eles tudo, a principal dificuldade é a falta de vidros convenientes, que mui-
caçam com diligência e são pagos à razão de um florim por dia 690 . tas vêzes não se tem meio de remediar. Não se encontram nunca no
Fazem-se preparar imediatamente as peles dos animais mortos, sem interior do país garrafas ou frascos com gargalo suficientemente largo;
empregar arame, mas pondo-os em boa atitude, dispondo por exemplo nas garrafas só se pode fazer entrar animais pequenos, e especialmente
de asas em posição conveniente, e em ordem tôdas as penas; colocam- cobras não Illilito grossas. Além disso, o transporte de vidros é muito
arriscado; o burro, quando se zanga, joga no chão a carga, e tôda a
(689) Fourcroya gigantea De Cand., nome atual.
(690) O florim ("Gulden") correspondia quase exatamente a 320 rs. de nossa (69 I) No original lê-se "agoa ardente" e "cachassa".
moeda de então.
494 VIAGEM AO BRASIL MANEIRA DE SE EMPREENDEREM VIAGENS 495
coleção de répteis está perdida. Noutro vasilhame pode aco~tecer que gar o sabão arsenical para os peixes e os répteis; substituímo-lo vanta-
a aguardente vaze, inutilizando da mesma maneira os espéomes. ya- josamente por tabaco em pó. ,
silhas de barro vidradas por dentro de nada valem para tal operaçao; Para colecionar insetos é preciso fazer uma grande provisão de
não conservam a aguardente por muito tempo; seu emprêgo me fêz
alfinêtes, que não devem porém ser de aço, a fim d~ que a ferrugem
perder várias raridades. Aliás só se podem obter êsses potes nas vilas;
não os destrua em pouco tempo. Pode-se usar plta, em lugar de
não são menos frágeis que os de vidro e são mais pesados.
cortiça. Os insetos, logo depois de espetados, são prontamente mortos
Saí-me sempre bem colocando os pequenos animais em garrafas ao calor de uma fogueira; enchem-se de algodão as aranhas grandes,
de vinho, e arrumando estas últimas em caixas cheias de algodão. Para processo êste que se aplica também às grandes borJ:>oletas; estas, porém,
os grandes répteis, levava comigo um pequeno barril de excelente fabri- exigem mais cuidado e habilidade. Os ins_etos ~~rtos há poucc;> tempo,
cação européia, equivalente à metade da carga de um burro. Era ~e ou mesmo os que já foram secados, estao su1e~tos, no ~rasil, a ser
carvalho, e infelizmente foi logo perfurado por vermes 692 . Remediei atacados por uma porção incontável de pequenmas formigas, qu~ os
sofrivelmente êsse inconveniente, mandando besuntar o barril com devoram ràpidamente; elas chegam mesmo a l?enetrar nas caix~s
uma boa camada de alcatrão, e passando por cima dêste um invólucro fechadas, quando estas não são de fabricação perfeita. O melh~r meiO
de lona; tinha na parte superior um grosso batoque rodeado de pano, de defesa contra tais inimigos é espalhar tabaco em pó sôbre os msetos,
que se adaptava perfeitamente à abertura, a qual era bastan_te larga o qual se tira depois fàcilmente soprando em cima. Para apanhar ins~tos
para permitir que se introduzisse a mão até o fundo do barril. :Este voando, é preciso ter rêdes próprias, prêsas na ponta de compndos
estava cheio de aguardente muito forte e cabia muitos répteis, que paus, pois muitas borboletas voam muito alto e rápido.
antes de serem mergulhados eu fazia envolver em algodão. Para pen-
·Quanto aos vermes e moluscos693, algumas fisálias ~ medusas que,
durá-lo na cangalha do burro, enfaixaram-no em correias de couro, for-
em pleno mar, coloquei no álcool, conservaram-se mmto bem, sobre-
mando em cada ponta uma laçada. É bom notar que tôda vez que
tudo as últimas. Os tentáculos das fisálias se estragaram, só a vesícula
se pode, deve-se tratar de ficar livre da coleção de anfíbios, enviando-a
não sofreu alteração. Fazer uma coleção de todos êsses animais é uma
para o seu lugar de destino, o que apresenta quase sempre grandes difi-
emprêsa cheia de dificuldades e muito dispendiosa em que não é pos-
culdades. Viajando-se ao longo da costa, tem-se a vantagem de encontrar
sível ser-se inteiramente bem sucedido.
navios que podem ser aproveitados para levar os objetos colecionados,
para um ponto escolhido como depósito comum. No interior, essas Os necessários que convêm no caso de levar da Europa para o Brasil
ocasiões de expedições são mais raras, motivo pelo qual é forçoso limitam-se a facas, tesouras e outros instrumentos de boa qualidade,
adquirir cargueiros em número bastante para transportar todo o material e a uma boa receita para fazer sabão arsenical, que se pode preparar
recolhido; precisa-se, ainda, renovar várias vêzes a aguardente, o que na Bahia ou no Rio de Janeiro.
custa muito caro. Dos répteis, só se podem empalhar alguns lagartos e Para se colecionarem vegetais, não se pode empregar com vanta-
algumas tartarugas; e, ainda assim, é preciso proceder com muita pre- gem papel de embrulho sem cola; é -~uito mole ~ seca dificilmen~e
caução pois, do contrário, fàcilmente resultam erros e falsas descrições, uma vez molhado. As plantas das reg10es quentes sao geralmente mais
nas classificações de história natural. suculentas do que as dos climas temperados; por conseguinte, não é
No Brasil, para se construírem bons barris, deve-se empregar ma- possível secar lentamente, como entre nós, as plantas aéreas, pois que
deira de vinhático; mas é muito difícil encontrar um hábil toneleiro. apodrecem. Só se deve empregar nessas zonas papel forte e com cola, que
O naturalista deve descrever sempre os répteis logo depois de mortos, se expõe diàriamente ao fogo, col~cando_-se depois nê~e ~s plantas
porque, nos climas quentes, a aguardente altera as côres dêsses animais enquanto esteja ainda quente, operaçao habitualmente mmto mcomoda,
com rapidez incrível. por causa do calor e da fumaça.
Pode-se aplicar em geral aos peixes os conselhos precedentes; Depois que as plantas estiverem sêcas, podem ser postas em papel
na maioria, são êles demasiado grandes para poderem ser postos em sem cola, e remetidas para o seu destino. Mergulham-se as plantas
aguardente, motivo pelo qual o colecionador tem que se limitar a enchê- carnosas durante oito a dez minutos em água fervendo, de modo, porém,
los de algodão; as côres, porém, não se conservam. Não se pode empre- que o vapor não tinja as flôres; em seguida comprimem-se como de
costume as fôlhas, e elas perdem o seu suco. Depois de chuvas seguidas,
(692) Os " vermes" a que se refere Wied nada têm que ver com os animais a é necessário expor ao sol o material colhido, limpar o bolor que
que atualmente se restringe o emprêgo dêsse nome; trata-se de quaisquer larvas xllófagas
de insetos, mais provàvelmente coleópteros. Mesmo no estado adulto, abrem galerias
no lenho e correspondem à apelação genérica de "brocas ". Há uma espécie que (693) Lembremo-nos que o autor incluia entre os Moluscos os Celenterados (v.
perfura os tubos grossos de chumbo dos condutores telefônicos. a nota a).
496 VIAGEM AO BRASIL

se forma na superfície das plantas, e expor de novo ao sol as partes que


foram limpas.
As coleções de mineralogia são as mais fáceis de fazer e conservar;
mas o seu transporte esbarra de encontro a grandes obstáculos. Em pouco li
tempo se reúne mat~rial para completar, a carga de um burro, au.me':-
tando-se assim constderàvelmente o numero de homens e amma1s
necessários, e que acarreta grandes despesas. Muita vez não é possível VOCABULÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS
conseguir outros animais, devendo-se também levar sempre em conta
que alguns podem fugir. Formei, n.o interior d~s flo~estas, m~a coleção DO BRASIL MENCIONADOS NESTE
das diferentes rochas que encontrei, mas me VI obngado a JOgar fora
essas amostras, por não ter tido mais onde comprar animais para trans- RELATORIO DE VIAGEM
portá-las.
Não se pode guardar muita coisa em pequenas caixas; por outro
lado, os grandes caixotes são também incômodos, pois a sua largura,
tanto quanto o seu pêso, os torna estorvantes nas trilhas estreitas das
florestas. Julguei poder pôr os meus caixotes perfeitamente ao abrigo O investigador interessado em descobrir a origem e a primitiva
da umidade da chuva, mandando-os forrar de lata por dentro, mas história dos povos indígenas do Bra~l, não encontra, como já disse em
ficaram tão pesados que tive logo que renunciar a êsse recurso. Se as páginas atrás, nem hieróglifos nerrf monumentos de qualquer espécie,
chuvas não duram muito tempo, um pedaço de couro estendido sôbre que possam servir de fio para guiar-lhe os passos, porquanto, naquelas
as caixas preserva-as suficientemente. E' aconselhável nas épocas de florestas virgens, o gênero humano ainda não se elevou acima do estado
chuvas seguidas suspender a viagem; quando nã'o se conta com uma de incultura que por tôda parte caracterizou a sua existência primitiva.
habitação humana nas vizinhanças, pode-se construir com rapidez uma Não restam, portanto, para se empreenderem pesquisas dessa natureza,
cabana, ou, pelo menos, um abrigo ("rancho"). As florestas oferecem outros recursos senão o exame atento e a comparação cuidadosa das
material suficiente para tanto e a gente se serve para êsse fim, como línguas, que são o produto mais rudimentar da razão humana. O
se viu na relação de minha viagem, quer de fôlhas de palmeira, quer conhecimento delas espalhará, sôbre o espaço imenso dos tempos anti-
da casca de diferentes árvores, tais como o ipê, a sapucaia, etc. Durante gos, uma tênue claridade que nos guiará nessa trilha tão árdua, e graças à
os períodos de chuvas constantes, juntam-se as caixas, tanto quanto pos- qual eminentes sábios se têm modernamente esforçado por chegar a
sível, umas às outras, põem-se por bªixo delas pedaços de pau para que importantes descobertas. Na extrema dificuldade que há em adquirir
não fiquem em contato com a terra molhada, e cobre-se com os couros uma noção exata das línguas e idiomas que se falam num país tão vasto
que serviram para as cargas dos burros. como o Brasil, ao menos alguma recompensa se tira dêsse trabalho, pois
Enfim, recomendo aos viajantes, que queiram percorrer o Brasil, que é o único meio de se poder julgar da origem e parentesco de pov?s
entregarem a navios seguros o material de história natural, guardado esparsos, não raro separados uns dos outros e transportados a grandes dis-
em caixas bem acondicionadas e fechadas. Devem dividi-lo, se possível, tâncias. A dessemelhança total das línguas faladas por povos às vêzes
em várias remessas a fim de que, no caso de um naufrágio, tudo não se contíguos é, realmente, um tema do mais alto interêsse para o homem que
perca. Quando as caixas vão fechadas, deve-se mandar revesti-las de raciocina, e, nesse particular, nenhuma parte do mundo rivaliza com
couro, com o pêlo para fora. ~sses couros são muito baratos no Brasi~; a América. Contam-se no Novo Mundo 1.500 a 2.000 línguas e idiomas
deixam-se mergulhados em água até amolecer, depois do que são esti- diferentes, assunto sôbre o qual os trabalhos de Severin Vater na obra
cados em cima das caixas por meio de pequenos pregos. O couro, "Mithrídates" são preciosíssimos•. l'.le pensa que o número dêles se
secando, se torna duro como pau, e protege a caixa contra todos os eleva no máximo a 500, e que as línguas da América Setentrional diferem
inimigos externos, principalmente contra a umidade do ar marítimo que das da Meridional. Só uma longa permanência nessas terras pode levar
faz mofar com muita facilidade o material de história natural. a uma noção precisa dessas línguas, porquanto o viajante, que só vê
de passagem êsses povos, tem ocasião apenas de se impressionar COJ:?
a pobreza de seus idiomas, e sua maior ou menor afinidade entre Sl.

(*) Vide S. VATER, i n Mithrídates, vol. a, parte 2.•, págs. 373 e ss.
498 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 499
Não posso, portanto, prometer fornecer elementos consideráveis para Para apresentar ao leitor vocabulários de tôdas as tribos de índios
o conhecimento da gramática dessas línguas e devo limitar-me a dar que visitei, tencionei extrair, da obra de Eschwege sôbre o Brasil, os
fragmentos de vocabulários que, mesmo assim, poderão servir para julgar dos Puris, Coroados e Coropós, pois que o número de vocábulos dessas
das relações mais ou menos estreitas existentes entre elas. três tribos reunidos por mim é um tanto reduzido; mas achei depois
A língua que parece ser a mais disseminada na América Meridional que conviria poupar ao leitor essa repetição.
é a dos povos Tupis, ou Língua Geral, a que também pertence a dos Os índios do Brasil não têm todos a mesma pronúncia. Alguns pro-
Guaranis. E' conhecida já há muito tempo, tendo vários escritores nunciam o fim das palavras como os alemães, e outros como os fran-
dela se ocupado, entre êles Marcgrave e Jean de Léry, que prestaram ceses. Por isso, para dar idéia do som das palavras, indiquei sempre a
importantes contribuições ao conhecimento do assunto. Passarei por ela maneira como devem ser pronunciadas; mas, ainda assim, muitas vêzes
em silêncio69 4 e limitar-me-ei a dar vocabulários das diversas tribos não é possível exprimir o tom gutural das dos Tapuias. Uma tribo
Tapuias com que tive relações; ver-se-á que a linguagem que falam difere fala pelo nariz, outra pela garganta, e uma terceira pelo nariz e pela
totalmente da de seus vizinhos imediatos, com os quais vivem sempre garganta ao mesmo tempo; já numa quarta, êsses sons faltam por
em guerra. A tribo dos Cariris, ou Quiriris, atualmente civilizada, e que completo. A maioria dos vocábulos de muitas línguas tapuias são ricos
habita na região da Bahia, se distingue também por uma língua especial, em vogais; as suas terminações se pronunciam em parte como em francês,
da qual, como já informei anteriormente, o jesuíta Mamiani havia nos e em parte como em alemão. Para dar a entender ao leitor a tonalidade
dado uma gramática, impressa em Lisboa no ano de 1699; por isso, em- da pronúncia das primeiras, andaria eu errado se procurasse escrevê-las
bora eu tenha travado contato com essa tribo, não falarei dela, para evitar de novo à moda alemã, como fêz, por exemplo, o tradutor ela Viagem
repetições. Em parte, as línguas dos Tapuias diferem muito entre si, ele Jean ele Léry; pois não há dúvida que a terminação francesa an não
mas, no entanto, encontram-se nelas grande número de nomes e vocá- soa como ang em alemão, em que o g é ouvido distintamente.
bulos comuns; por exemplo, tupã ou tupá, que serve para designar o
ser supremo. Os exemplos que dou ela língua dos BotocuclosAão os mais nume-
rosos, graças ao concurso de meu Queck; mas não pude obter dêle
(694) Foram os jesuítas os maiores conhecedores da primitiva lfngua dos aborí- informações satisfatórias sôbre a estrutura mesma da língua. Talvez
gines do litoral, que dela necessitavam para exercer a sua missão de catequese e evange· que êle no futuro, quando se tomar mais senhor da língua alemã, possa
lização do gentio. Dessa llngua, a que costumavam chamar simplesmente "IIngua brasllica ",
mas cujo uso generalizado entre as tribos tupis deu motivo a que depois se denominasse fornecer uma contribuição mais completa ao conhecimento de sua língua
"IIngua geral" (entre os próprios tupis era conhecida por "Abânheénga ", ou "Nheéng-{!atú "), materna. O viajante que desejar anotar os vocábulos dos idiomas de um
ficaram-nos assim numerosos vocabulários, como também gramáticas mais ou menos
completas, de que os interessados poderão obter exaustiva resenha no trabalho de Alfredo povo deve mandar pronunciá-lo por uma pessoa pertencente a êsse povo;
do Valle Cabral, dado a lume no tomo VIII dos Anais da Biblioteca Nacional. Graças pois, se os recolhe de uma terceira pessoa pertencente a outra nação,
aos esforços de Pllnio Ayrosa, na época presente um dos mais competentes e incansáveis
investigadores do assunto, há, acompanhadas de estudos críticos, edições recentes de alguns escrevê-los-á inexatamente; é uma observação que a minha experiência
dêsses vocabulários, entre os quais se salientam pela sua importância, o "Dlcclon. Portuguez-
Brasileiro c Brasileiro Portuguez" (inserto na Rev. do Museu Paulista, tomo XVIII, me permitiu fazer. Os vocábulos botocudos que eu escrevia pela pro-
1984, págs. 17 a 819) e o "Vocabulário na Língua Braslllca" (publicado como volume núncia dos portuguêses eram incorretos, porque êsses fazem sempre
XX da Col. do Depart. de Cultura de São Paulo, págs. 1-433, 1938). Atribuiu-os o douto
editor, com abundância convincente de argumentos, o primeiro a Frei Onofre, obscuro ouvir no fim das palavras um som que se aproxima do i; por exemplo,
missionário do Maranhão (e não a Fr. Mariano Velloso, como até ent ão se supusera), e o
segundo ao Padre Joseph de AncWeta, unânimemente havido como o maior de todos a palavra "kerengcat", que em botocudo significa cabeça, é pronun-
(cf. "Cartas", etc. do Pe. J. de Anchieta, com noticias e coments. de Ant. de Alcântara ciada sempre pelos portuguêses do Brasil "kerengcati" 695 , e um europeu
Machado et alt., tomo 111 das Cartas Jesuíticas, ediç. da Acad. Brasil. de Letras, 1933).
Referência especial deve ser feita, entre os vocabulários, ao "Glossaria linouarum a escreveria dessa forma. Eis, sem dúvida, porque se vêem vocábulos
brasiliensium" de Martins (Erlangen, 1868, págs. XXI-548), que sõbre ser um dos mais
completos e autorizados que existem com relação aos do idioma tupi, encerra ainda os da língua de um mesmo povo escritos de modo diverso pelos viajantes
de grande número de outras tribos, pelo que é de consulta Indispensável a todos quantos que publicaram seus vocabulários; essas variações devem ser natural-
se Interessem particularmente pela contribuição glotológica prestada pelo livro do príncipe
de Wled. Há ainda vocabulários especializados da Ilngua tupi, relacionando-se mais direta- mente grandes em indivíduos de nações diferentes; concordam, entre-
mente com a matéria do livro agora anotado o que sob o titulo "Nomes das aves em tanto, nos pontos principais, e, sob êsse ponto ele vista, simples listas
língua tupi" publicou Rodolfo Garcia, o erudito diretor da Biblioteca Nacional (in Bol.
Museu Nacional, vol. V, n.• 3, 1929, págs. 1-54). Nenhum outro Idioma Indígena deixou de vocábulos podem ser úteis para o sábio que se ocupa com o estudo
na llngua falada atualmente no Brasil traços de longe sequer comparáveis aos da "IIngua
geral", que em meados do século passado era falad a ainda correntemente pela gente das línguas.
de São Paulo. Sõbre o assunto serão consultados com proveito a bela série de artigos E' geralmente difícil fazer os selvagens repetirem várias vêzes
publicados em 1938 por Arthur Neiva, no " Jornal do Comércio" do ruo de Janeiro e
posteriormente editados pela Cla. Edit. Nacional. na sua série "Brasiliana" ( vol. 178). os nomes dos objetos, o que no entanto é absolutamente necessário
No que tange às llnguas brasllicas, consideradas em globo, merece ainda particular
registro o trabalho de Ch. Loukotka, "Línguas indígenas do Brasil " (in vol. LIV da para se representar com exatidão os sons bárbaros. Pensam que se
Rev. do Arquivo llfunicip. de São Paulo), onde parece resumido, com extraordinária
clareza e completa informação bibliográfica, tudo quanto se sabe sõbre a sua primitiva
distribuição no solo brasileiro. (695) O i está por mudo: "querengnate" deveria escrever-se.
500 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGE 1 AS 501

pretende caçoar dêles e, então, não há meio de induzi-los a fazer o Anzol, Mutung. Braço (o), Kgiporóck.
Apagar, Nucú. Branca (uma coisa), pá-i-iockundng.
que se deseja, ainda que se lhes acene com as mais tentadoras promessas. Aranha (uma), angcorí. Bruno (pardo), npurúeck ou nprúck.
Poderia dar frases inteiras de algumas das línguas brasílicas, Arara (papagaio), Hdtarat. Bruto, tiip. '
mas elas seriam menos autênticas que os simples vocábulos, a mesma Areia, gnúmiang. Bucho, barriga, cuang-mniáck.
expressão tendo às vêzes várias significações; aliás, quando só se passou Arco, neem. Buraco, mah.
Arrancar, amack (segundo a no céu da Cabeça, keriing-cat.
pouco tempo entre os índios, pode-se decifrar o séntido da frase, mas bôca, quase como ü). Cabeça (dor de), ke1·iin-íngerung (e
nunca o de seus diversos elementos. Arremessar (uma pedra), carung-ang- breve).
gring (o último g pouco audível, Cabelo (de cabeça), keriin-kii (primeiro
tudo pelo nariz). muito breve).
Arroz, japkenin (ke pelo nariz, mal Cabelo (cortar o), keriian-mang.
1) Vocabulário dos Botocudos distinto). Cabelo louro, keriin-kii-niom.
Árvore, tchoon. Cabelo prêto, keriin-kii-him.
OBSERVAÇÕES: O som nasal é freqüente na língua dos Botocudos; esta não Asa, bacan-gnirnaak. Cabelo ruivo, keriin-npuruck.
possui som gutural; abunda em vogais; casos há em que o som de algumas Assar, op. Caçar (ir à caça), nio-kná (kn pelo
consoantes é muito confuso e não se distingue, o que o torna algumas vêzes Assobiar, náh (á só meio pelo nariz). nariz).
ininteligível, se bem que o seja menos que outras línguas tapuias. Algumas Assoar kigin-gnoreng. Caçar (em lugar distante), nió-knd-amo-
instruções são necessárias para a leitura das palavras dos vocabulários: Atirar (com espingarda), pung-apúng. rong.
Atirar em peixe (com a flecha), impock-atd. Cacête (bordão), tchoon (o mesmo que
r só se pronuncia com a ponta da língua e nunca com a garganta; mas Avarento, king. pau).
há casos em que essa letra tem o som de l; Avarento (mais ou muito), king-gika- Cadáver (animal morto exalando mau
g tanto no meio, como no comêço é sempre igual; no final é porém gutural. rdm. cheiro>{ unám (n quase inaudível).
Quando no comêço duma palavra uma consoante vem precedida duma outra, Ave (grande), bocan-ii-riick (primeiro a Caiador, branqueador, pa-í.
como nn, mn, mb, np, nd, etc., a primeira quase não se pronuncia; têm-se entre ii e ó). Cair, gnardck (gne pelo nariz).
exemplos freqüentes dessas palavras nas línguas da América, como mbaya, Balbuciar, gaguejar, te-óng-ton-ton (te- Calmaria, tarú-t-cahú-amnúp.
mborébi, ndaiá, mbaracayá, etc. óng pouco separados). Calva, kriin-nióm.
Bambiá (ou caniço), com. Cantar, ong-ong.
Se se notar alguma diferença na maneira pela qual as palavras vão escritas
Barba, giákii6t. Cão, engcóng (quase como em portu-
no texto do livro e no vocabulário, esta é a que prevalece.
Barriga da perna, maak-egniek (e breve). guês): eng muito breve e apenas
O n é pronunciado pelo nariz. Barrilete de bambu, kálkrock (a como ii). audível.
A pronúncia dada às palavras obedece à moda alemã, a não ser que se Barro, argila, naak ou nnaak (primeiro Capivara (hydrochoerus-nyimpon).
faça alguma explicação em contrário 696 • n apenas audível). Capueira, (galináceo selvagem), hárarat.
Batata, gnúnana (gn apenas audível). Caramujo, gnocuiick.
Abóbora, amiaknon (kn nasal). Aguardente, magnan-coróck (a primeira Bater, hang. Carne, bancan-gnick.
Abrir (os olhos), ketom-amang. palavra como em francês). Batoque (do beiço), gnima-tó. Caroço (de fruto), jiam (i apenas au-
Acenar, chamar, kia-kelit (l entre l e r). Agudo, afiado, meriip. Batoque (da orelha), nu-rnii (antes do dível).
Acenar com a cabeça, can-ap-máh. Aldeia ("rancharia" no. mato), kjiem- n o g quase não se ouve). Casa, choça, kjiém.
Acender, numprúck. uruhú (muitas casas ou choças). Beber, joóp ou jióp (primeiro i apenas Casar, kjiém-ah.
Adiante, à frente, mung-merong (e bre- Algodão, angnowáng (ang como ack, audível). Casca de árvore (sôbre a qual dormem),
ve), literalmente: ir com fôrça. tudo pelo nariz e mal distinto). Beija-flor, moróckniung. tchoon - cat.
Adorado (ente), pai-tupan (pan fre- Alto, orón. Belo, ae-rahii. Casca, cortiça, tchon-cat.
qüentemente soa como pat). Alvejar, jagintchi. Bexiga (bôlha), nnlchmangkuck. Cauda (de ave), jokii.
Afiada (a faca está muito), karack-e- Amarelo, nuiáck. Bico (um) comprido, jlun-oron. Causado, niimperáng.
meriip-gicardm. Amargo, niángcorock. Bico (e ave), jlun. Cavalo, bacan-niaugcorock ou pómo-
Água (vai buscar!), magndn-ah. Anacã (papagaio), hátarat-cudgi. Bôca, gnima ou kigaak . kendm.
Água, magnán. Ananás, mánan. Bocejar, mpiihiick (m apenas audível). Cavar (o chão), naak-awit (como aüwit.)
Água fria, magnán-niimtiack. Anca, keprótam (e breve). Boi, bocling-gipakiú. Cego, o ôlho é cego, ketom-entjagemeng
Água quente, magndn-igitd (i muito bre- Anhuma, ohi. Boi (chifre de) , kriin-tiuem. (tja como chia, en breve).
ve e indistinto). Anta, hóchmereng. Bofetada, mípmaun. Cêra, p6kekat (6 breve e entre 6 e ü).
Bom, ae-rehii. Cérebro (o), manjdck (primeiro a algo
(696) Para o leitor português convém acrescentar: gn pronuncia-se como em Bom (não é), ton-ton. alongado.
francês, isto é, nh; ti soa como e ou entre a e e; ü, como u francês, entre u e i; Bom (é), ae-rehii. Cheio, mat (a entre ii e ó).
w como v; g, mesmo antes de e ou i, como gue e nunca como j. Bonito, ae-rehii. Cheirar, cui.
Passando êstes vocabulários para o português, para seguir a ordem alfabética, Botocudo, engeriick-mung (en muito Chifre de veado, kriin, tioném.
fôrça foi a lterar a seriação em que os respectivos verbetes se acham no original. Também
não foi possível observar algumas convenções gráficas utlllzadas no último. breve). Chorar, puck.
502 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 503

Chora (êle), hii-puck.. Cuspir, nupiú. Estremecer, ncurúh (n quase indistinto). Gritar, ong-merong (isto é, falar alto;
Chuva, magnan-ipo (primeira palavra Dança, ntack. Eu, kgick ou kigick. o ng é mal audível).
como em francês, o palatal). Dê ~á, up. Excremento, estêrco, gniing-kú (gni in- Grosso (é), ae-riick. ,
Cinza, tiacó (ti quase como ch). Dedo (do pé), pó. distintamente nasal) . Guariba (macaco), cúpilick.
Claro, amtchiú. Dedo, pó: Faca, karacke. Guerra, luta, kiakiiem ou jakiiam.
Cobra, engcarang (eng como n , muito polegar, pó-ii-riick; Face (a), njiimpong. Homem, uahá.
breve). indicador, pó-iopú; Falar, dizer, ong. Inchaço (proveniente de pancada),
Coçar, kiangantjép (tje como tche). médio, pó-cupa-niem (talvez pelo seu Feder, cheirar mal, uwám (w pouco au- gniong.
Côco (selvagem), pontiiick. uso no arco, embora não haja ne- dível). Intes tinos , w dn g-o1·ón (literalmente, o
Côco (outra espécie), ororé. nhuma prova disso); Feijão (prêto), erá-him. "comprido na barriga").
Colar, coleira, pó-it ou pó-u'it. anular, pó-cupa-curúck; Feio, tonton. Ir, mung.
Combate (duelo a cacête), giacacuá (g mínimo, pó-cudgi ou pó-cruck. Ferver, está fervendo, hii mot ou he- Ir devagar, núng-negnóck (a última pa-
como gu). Delgado, nnin. mot. lavra nasal).
Comer, nungcút. Defunto, cadáver, kuém. Flauta, flautim, u-ah (levemente pelo Irmã, kgi-cutá (a como a).
Comprar, compra (tomado dos portu- Dentada de cobra, engcarang-coróp. nariz). Irmão, kgiparack.
guêses e modificado). Dentes (muitos), kiiun -hruuú. Flecha (atirar com a), ungíke-nung-gring Jacaré, ae-hii.
Conduto auditivo, kniaknot-mah. Dente (um) kiiún. (o primeiro g não se percebe). Jacutinga (ave), pó-co!ing.
Construir (uma choça) , kjiém-tdrat (am- Despertar, merat (r e a pouco distintos). Flecha (matar com a), uagike-nutá. Jaguatirica, poknien.
bos a muito breves, pronunciados quase Destripar (um animal), cuang-awó (cua Flecha com fisga, uagike-nigmerang. Japu (pássaro), jake-riiiun, ou mais pro-
como a). soa indistintamente, quase como w, Flecha com a ponta de bambu, uagike- priamente: tiakeriiiun.
Coração, hiitung. ó breve). com. Jibóia, cuong-cuong-gipakiú.
Corar, ter vergonha, hii-ráng ou erang Diabo, jantchong (ch como g) . Flecha, uagike. Joelho, nakerinjam (pron. indistintamen-
(e breve, a palatal), êle enrubesce Direito, tiih-toh (o entre o e a). Flecha para passarinhos miúdos, uagike- te palatina e nasal).
ou cora. Distender (o arco), neem-gitá-merong- bacan-num;ck. Lágrima, ketom-magndn (literalmente
Corda de arco, neem-gitá. ong. Fogo, chompiick. água nos olhos).
Córneo, o mesmo que "chifre de veado". Doce, cul. Fôlha (de planta), jiam. Lamber, númerang.
Correr (grande distância), emporóck- Dor, hii-ingerung. Fome, tu. Largo, ae-riick.
morung. Doente, maun-maun. Formiga, Pelick-niick-niick. Largo, amorón.
Correr (com grande pressa ou ímpeto), Dor-de-barriga, cuáng-ingerung. Forte, fôrça, mérong. Lavar, kiiúm (como nadar).
emporóck-uruhú. Dor-de-dente, kiiún-ingerung. Fraco, engeniock (eng palatal e breve). Leite, pó-cling-parack.
Correr, emporóck (m muito breve, ape- Dor de peito ou cansaço, mimin&erung. Frio, ampurú. Leque de penas amarelas ou a cauda
nas audível). Dormir, kuckjún. Fumaça (de fogão), tchou-gikaka. do Japu, nucangcan ou jakeriiinu-
Cortar, nut-niih. Dorso (as costas), núkniah. iokd.
Fundo, mat ( a entre ii e o, quase como
Coruja (pequena), nu-knúng, (kn pelo Duro, rijo, mérong (e breve). êste último). Leve, mah.
nariz) . tle, ela, hii ou ii. Liga (jarreteira), merúknignim (e breve,
Costela, to (o entre o e ü). Embaixo, pawin (quase como aüi). Furar, espetar, nungcoró. rukni nasal, gn como nh português).
Furtar, ningkiick.
Couro, ou pele de um animal, bacan-cat Embarcação, canoa, tiongcat (isso parece Limpar, esfregar, numaun.
(segundo a palatino, quase como ó) . significar que as canoas são feitas Fuzil (de acender), nom-nan.
Limpo, kuring.
Cutia, Maniakenüng (e às vêzes inau- de casca de árvore). Gaivota (Larus), naak-naak.
Língua, kjgitiock (i como ch).
dível). Galinha, capucá.
Empurrar, nútick. Longo, or011.
Cotovêlo, miugcren iot -nom. Gambá, ntjúntju.
Enganar, up. Louro (cabelo), keriin-kii-nióm.
Cova (para defunto) , naák-mah. Enrolar, nurat. Gato do mato (Felis pardalis), kuparack-
Lua (quarto de), tarú-carapóck-cudgi.
Coxa, quadril, makn-dchopock (um e Enterrar (um morto), m erám . nigmiick (g apenas audível).
Lua (meia), tarú-carapock.
entre k e n apenas audível). Espécie, carapóck ou carapó (ck apenas Gato do mato (outra espécie, Felis ma- Lua cheia, tarú-gipakiú.
Cozinha (êle), hii-mot ou aemot. audível). croura), kuparack-kuntiack. Lua nova, tarú-him.
Crânio (humano), heriing-hong (o pri- Espêto (de assar carne), tchoon-meriip Gema (do ôvo), nnáck ou nniáck (tex- Lua, tarú.
meiro e quase inaudível). (e breve) textualmente: um pau pon- tualmente: o amarelo). Macaco, hieriing.
Criança, curuck nín (pelo nariz) . tudo. Geme (o mutum, Crax Linn.), cónt- Machacangri (tribo), mawó.
Crescer, miiknot-knot (kn indistintamen- Espingarda, pung. chang-ha-hing. Macuco (ave), angcowóck.
te nasal e palatal). Espingarda de dois canos, pung-uruhú. Generoso, kan (pelo céu da bôca, quase Mãe, kiopú.
Cuia, ou prato de mesa, pokn djinvin Espinho, tacan (segundo a gutural). como ó). Magro, kniiin.
(dji como em francês). Espuma, korop (o quase palatal). Globo (ocular), ketom-him (e breve). Mamão (Carica), pattm·ing-gipakiú.
Curvo, ntang (a palatino só em parte). Espirrar, ndkgning (gni como nh). Gôta, magndn-knin . Mão, pó.
Curiango (Caprimulgus) niimpiintiun Estôjo (para o membro viril), giúcan Grande, gipakjú. Mar, magnan-ii-riick (gr1an como nhan
(tiu como tchu) . (g palatino) . Grávida (mulher), cuáng-ii-riick (isto é, português).
Cuspir, kniákerit . Estrêla, astro, niore-iit (e breve). o ventre é crescido). Mastigar, miáh.
504 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 505
Mata (floresta), tchoon-uruhú (muitas ' Pancada, nup-maun. Próximo, nahriing. Tamanduá-mirim, cuián-cudgí.
árvores). Panela, nát-neck. Puxar, núntchorót. Tarde, pôr do sol, tarú-temung.
Mel, mah-rii (primeira sílaba longa, rii Panela (a) cozinha, nat-neck-hiimot, ou Queimar-se, ji6t ou j-6t. Tartaruga, corotiock ,(tio como tcho).
breve, tudo pelo nariz). i-mot. Queixada (porco, Dic<!tyles labiatus), Tatu, kuntschung.
Mentir, japüin (ü entre u e ü). Pau , árvore, tchoon. curiiçk-nipmantiocú-nióm. Tatu-canastra, (Dasypus gigas Cuv.)
Mergulhar, múkarack (kara pelo nariz) . Pássaro (pequeno), bacan-cudgí. Queixo, kngip-mah (o primeiro vocábulo kuntschung-cocan.
Milho, jadnirun. Patachó, ou Cutachó (tribo), nampuruck Terra, chão, naak.
pelo nariz).
Miriqui (ou "mono"), kupó (u como ü (kn breve e indistinto). Tesoura, keprot!Ím.
Pato do mato, catapmúng. Quente, kigitiá.
ou ó). Testa, can (a semipalatal).
Pé, pó. Rã, sapo, nuang.
Môça, mulher, jóknang ou jókunang. Tíbia (osso da perna), kiiiick.
Pedra de amolar, carátung. Raiz, kigitang.
Molar (dente), kjun-iiriick. Tição (pau em brasa), tchoon-keróng.
Pedra, rochedo, carátung, muitas vêzes Rasgar, quebrar, núngniong.
Mole (tenro), gnenióck (gn como nh) . Tornozelo, ó-nimh-nong (pron. nasal,
como caratú. Relâmpago, tarü-te-meriin (iin como em
Molhado, kniót (k apenas audível). antes como hn).
Pegada, rasto, pó-niep (niep pelo nariz). francês).
Morcêgo, niákenat (ken indistintamente Tossir, uhúm.
Rio, taiiick (algo pelo céu da bôca).

..
nasal). Peito, brust. Tremer de frio, aeii-rii (ambos palatal
Morder, coróp. Peixe, impock (o algo alongado) . Rio (o) é muito fundo , taiiick-mot-gi- indistintos) .
Morrer, kuém. Pele, cat. karam. Trilha, caminho, emporong (em muito
Mosquito, jókunang (entre k e n, às Pele branca, cat -nióm. Rio (o) é muito raso, taiiick-mah -gi- breve e pouco audível e bem assim
vêzes não se ouve nenhum u). Pele bruna, cat-nprúck. karám. o o médio).
Mudo, ong-nuck (nuck de am-nup ou Pele preta, cat-him. Rio (quando no período de maior cheia), Trovão, taru-ta-coung.
amnuck , a negação). Pena (de ave), gni-maak (o k freqüente- taiiick-ngimpung. Tutano (medula óssea), kjiiick-iotom.
Muito, gicarám. mente inaudível). Rir, hang (a palatino com ó). Um, mokeram, (ken pelo nariz).
Muito, uruhú. Pequeno, cudgí ou pmiick. Rosário, pó-it ou pó-üit. Umbigo, gnick-na-gnik (gni como nh e
Mutum (Crax), cóntchang. Perna, maak. Rosnar (do cão), mporom-pong. ckna pelo nariz).
Nadar, kiium (i breve). Pés (os), quando doentes ou doloridos, Roubou (êle) e fugiu, eu o vi, njingkiick- Unha (das mãos e pés), pó -criing-kenat
Não, não quero, amnúp ou amnuck. maak-gitia-gikarám. kigick-piep. (ken pelo nariz). _
Nariz, kigín. Pesada, mókarang (o entre 6 e a) . Ruim, ton-ton. Urina, niim-kiiang.
Narina, kigín -mah. Pescar, impock-awck. Saco, tang (a meio palatal). Urra (a onça), cuparack-hii-hú.
Nariz (arqueado), kigín-ntang. Pescoço, kjipuck. Saliva, gni-ma-kniot (gni como nhi). Urrar (refer. à onça), hú.
Nariz (reto) , kigín-tiit-t6h (6 entre ii e ó). Pestana, ketóm-kii. Saltar, nahang (segundo a só meio pa- Urtiga, giacu-tiick-tiick .
Negro, engora (en mal se ouve). Pestanejar, meriik (r quase como l) . latal). Urubu, amp6 (6 entre 6 e ü alemães).
Ninho (de ave), baciin-tiem (segundo a Pica-pau (ave), aeng-iing (como ain Sang•·e, comtjiick (tia como em tcha). Vadear (passar a vau), mung-magnan-
palatino). francês). Sang,Tia (depois de se ter fustigado com mah (significa, literalmente: passar
Noite, tarú-te-tú. Pimenta (Capsicum) , tom-chiick (ch qua- a planta Giacu-t6ck-tiick), Kiakatong. através da água rasa).
Nuvem, nevoeiro, tarú-nion. se como g) ou tschom-jiick (a pri- Satisfeito (muito), cuang-gipakiú-gika- Valente, muito valente, jakjiám-gicarám.
Olhar de esguelha, ketóm-iojiick. meira sílaba derivará talvez de tchoon, rám (isto é, o ventre está muito Vazio, ôco, mah.
Olho, ketom (e breve). pau). grande). Veado, corça, pó-cling.
Ombro, espádua, Corón. Pintar, nowung. Sêco, niimtchii. Veia, pónim-gnit.
Onça negra ("tigre"), kuparack-him. Pisar, andar, tang. Sentar-se, acocorar, njiip. Vela de cêra, karantiim (primeiro a
Onça parda (sem malhas), kuparack- Planta (do pé), pó -p m im (p quase inau- Sim, he-e (os dois e muito breves). muito breve).
nim-puruck (primeiro u apenas au- dível). Só, mokenam. Velho, makniam.
dível). Pólvora de caça, pung-gningçú (gn como Sobrancelhas, kánkii (a palatino, e in- Venha cá!, ning (g apenas audível).
Onça pintada, kuparack-gipakiú. nh). distinto, quase como ó). Vento (o), tarú-te-cuhú (te pouco audí-
Orelha, kniaknon (kn nasal) . Pombo, k6üem (6 palatal indistinto). Sóbrio, cueng-e-mah (o ventre é vazio vel) .
órgão genital masculino, kjúck (o mes- Pontiagudo, meriip (e breve), como - e apenas audível). Vento (se está muito forte), tarú-te-cuhú-
mo que cauda de mamífero). afiado. Sol (o), tarú-di-pó. p meróng.
Osso, kjiiick. Pôr do sol, taru-te-mung. Sol a pino, meio-dia, tarú-njiip. Ventre, cuáng.
Ovas (de peixe), im pock-gipíng. Porco do mato (caitetu ou taitetu), Solípede (animal de um casco), pó-moke- Ver, piep.
Ovelha, pó-cling-cudgi (o l meio como r). hó-kuiing. nam. Verdadeiro, verdade, japaüin-amnúp (li-
Ovo (de ave), bacan-ningcú. Porco (doméstico), curiiack-gipakiú. Subir, trepar, mukiiip. teralmente: não é mentira).
Paca (Coelongenys), acóron. Porco-espinho, acoró-ió (último ó breve). Sucuri, ketomenióp. Vermelho, tiongkriin (como tchion).
Pai, kgikan. Pouco, amnúp. Sugar, kiaka-iick. Verruga, ki-áng (pelo nariz).
Palmatoada, pó-ampáng. Preguiça (animal), ihó. Suor, suar, cucang-eiú. Vespa, marimbondo, pangnonion (a en-
Palmito (brôto tenro de palmeira) , Preguiçoso, indolente, camnúck (a um Suspirar, nohón. tre ii e 6, ng como nh e apenas au-
ponti-iick-atá. pouco gutural). Tamanduá-bandeira, cuián (a semipa- dível).
Pálpebra, kentóm-kat. Prêto, him. latal). Voar, mung.
506 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 507

Escrevi em parte êsse vocabulário quando me encontrava às margens tica estreita observância a essa lei, e, na vivacidade da conversa, pode
do rio Grande de Belmonte; aumentei-o depois, à medida que o jovem faltar a elas: contudo, na composição dos substantivos que exprimem
Queck fazia progressos na língua alemã.. Tive ~casião depois ~e fazer uma fôrça oculta, ou qualquer coisa relativa à divindade, p'o r uma espécie
examinar êsse botocudo pelo Sr. Goetlmg, sábiO dotado de smgular de temeroso respeito, êsse te nunca é esquecido. E' o que se verifica
poder de penetração para o estudo aprofundado da~ lín~as, _que .teve sobretudo na palavra taru. :esse vocábulo, extremamente notável, ori-
a gentileza de comunicar-me o resultado de suas mvestigaçoes sobre ginàriamente designa .ap:nas a. l~~· pro':àvelmente também o ~ol •. ?Ias
a língua de que nos ocupamos. Sem ~úvida~ qua~do Queck. vier a pos- depois, por uma associaçao de Ideias mmto natural, passou a significar
suir melhores conhecimentos do alemao, sera possivel fazer Importantes também o tempo. A lua tem, sem dúvida, maior importância do que o
adiantamentos a êsse ensaio; mas, tal como é, a interessante exposição sol, aos olhos do Botocudo para a noção do tempo, porque lhe dá
do Sr. Goetling, que abaixo literalmente transcrevo, bastará para dar um meio mais fácil de ter um sinal exterior preciso para dividi-lo;
uma idéia da língua dêsses selvagens. provàvelmente por essa razão recebeu o sol ~penas o nome de.rivado de
tar·u-ti-po. Po significa pé; assim a denommação de sol eqmvale a de
corredor do céu. Corresponde integralmente às de U7rf.piwv (o que
SôBRE A LíNGUA DOS BOTOCUDOS anda alto céu) e ÀuKá.{3as (o que se apressa sua carreira luminosa), que
a princípio designou o sol e depois o an? entre os grego~. E: e':i~ente
A língua dos Botocudos é muito rica em onomatopéias, isto é, que taru é também o nome do sol, pois que taru-te-nzng sigmfica o
em palavras que imitam um som próprio de determina~a coisa e?lpre- levantar do sol; e taru te mung o pôr do sol. Ning (vir) e amung (ir-se-
gando o som ou o movimento da coisa que se quer designar. EI~ por embora), são verbos ·cujos infinitivos estão e~~regados aqui como s':lbs-
que a raiz do vocábulo é muita vez dobrada, o que taii?-bém se da nas tantivos; mas, nesse caso, te pode ser omitido, como em taru-mep,
outras tribos quando formam p~lavras semelhant~s .. Assim, o ~otocudo meio-dia (de niep, sentar-se, porque então o sol parece estar fixame!l"te
chama a gaivota nack-nack; o pica-pau eng:eng, Imitando .o gri~? de.~sas sentado). Pela associação da idéia do tempo com a palavra taru, explica-
aves. Pela mesma razão, uma espécie de urtiga se chama k7acu-tack-tack; se a palavra taru-te-tu, a noite (que literalmente, o tempo que não se tem
uma borboleta, kjacu-kiick-kiick; uma formiga, plick-niik-niik; a maior que comer), denominação para a qual o grande apetite dos Botocud~
das cobras terrestres, encarang cuong-cuong jipakiú; essas reduplicações fornece uma fácil interpretação (tu significa fome). Taru-te-cuong,
se observam também em ton-ton, mau, em maun-maun, doente (ao o trovão, ou mais propriamente quando ronca, pois Cuong deve imitar
contrário, nup-maun significa pancada). Assim também falar se expri:r!l"e o ruído do trovão; taru-te-meriin, o raio, ou mais propriamente quando
por ong, cantar ong-ong; espingarda se diz pung e atirar com a esp:n- se deve fechar as pálpebras, meriih significando piscar; taru-te-cuhu, o
garda pung-e-pung (imitação do ruído) . Essas palavras compostas sao vento, (isto é, quando brame); cahu imita o bramido do vento.
formadas da mesma forma que 1ropcp'ÚpEos ou 1r0pcpvpa em grego, pela
:esse te se encontra também em outras composições de palavras;
reduplicação de 1rup; pois o vocábulo propriamente é 7rop7rvpf.os ~u por exemplo: po-t-ingerung (dor no pé); quando, porém, nessas com-
como nos nossos vocábulos infantis, pa-pa, ma-ma, weh-weh. Sao posições a palavra que precede termina por consoante, põe-se de lado
comuns a todos os povos, embora menos numerosos do que nos Boto- o te: maak-ingerung (dor na perna). Junto do adjetivo, êsse te não
cudos. Tôdas as reduplicações das línguas antigas pertencem a essa aparece. Assim, diz-se taru-him (lua nova), him, significa prêto (por
categoria. exemplo, keton him a menina dos olhos, porque todos os botocudos
Em seus substantivos e adjetivos, os Botocudos nã.o conhecem têm os olhos negros); taru-niom, céu coberto, nuvens (niom significa
a distinção do gênero; tôdas essas palavras são, por con.seg~mte, neutras, branco).
da mesma forma que em cada língua, mesmo nas mats nc~s, os non:es Os Botoci:idos formam o plural acrescentando a palavra ruhu ou
das coisas são os mais antigos e por isso os menos suscetíveis .de flexao. uruhu (vários, muito); por exemplo, pung-uruhu, duas espingardas,
E', porém, muito notável que êsses selvagens. ~onheçam d01~ casos •• o uma espingarda de dois canos e, em geral muitas espingardas; tchoon-
que lhes permite representar a relação do SUJeit.o com ~ obJeto: tem uruhu, árvores, florestas; kjem-uruhu, casas, aldeia.
um caso subjetivo, tomando essa palavra no sentido nomm~tiVO (ca~us
rectus) e um caso objetivo. O primeiro não tem característica extenor Os diminutivos se formam pela adição da palavra njin, pequeno,
e o segundo só se emprega quando dois substantivos se segu~m, exercendo que é um adjetivo abreviado; assim kruck-nin significa criancinha,
o segundo a função de objeto. Essas relações que eqmvalem às do meninote, magnang-nin, gôta, pequena água.
genitivo, dativo, e acusativo, se exprimem pela si.laba te (que so~ quase Uma regra rigorosa é que o adjetivo nunca pode vir antes do subs-
ti ou de), colocada antes da segunda palavra. Ahás o selvagem nao pra- tantivo a que se refere, mas sempre depois dêle; por exemplo, uaháh
508 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 509

ou wahá-oron, homem gordo ou alto, uaháh-pmiick, homem pequeno. êles designam o trabalho por iopeck. As mulheres, porque não vão
Os graus de comparação do adjetivo são formados da seguinte maneira: à caça, sã~ obrigadas a ficar em casa; assim sendo, a mulher é deno-
1. - o comparativo, pela adição de uruh (ou uruhu, o mesmo que forma minada i~anang, palavra que tem provàvelmente afinidade com
0 plural); por exemplo, amp-uruh, mais agudo (isto é, frio); ampe-ot
njokná, pois n parece designar o indicativo; assim nunge-ring, atirar,
significa afiar; 2.- o superlativo, pela adição do advérbio jikaram ou se aproxima de angering, lançar, e ioóp de njoop, beber; ng ou nck
gikaram (muito), como por exemplo, cuang-mah-jikáram, muito esfo- é sem dúvida uma contração de amnup ou amnuck (nada); na compo-
meado (literalmente, a barriga está muito vazia). sição das palavras costuma aparecer como nuck, como em cam-nuck,
O pronome substantivo kjick (eu) vem sempre colocado antes; preguiçoso. Isso corresponde aproximadamente, em alemão, a W eib,
exemplo, kjick-piep, eu o vi, kjick-ioop, eu bebo. De todos os ..pro- que significa - aquela cuja ocupação é tecer (weben). De modo aná-
nomes possessivos, os Botocudos parecem conhecer somente k7zack, logo, em alemão, a mulher (Weibe) opõe-se ao guerreiro (Degen, o que
meu; por exemplo, kjick-kjuck-magnan-ioop, eu bebo a minha água. leva a espada), como também no velho direito saxão, os Schwertmagen
Entretanto, parece que o pronome possessivo não difere muito do (Schwert, espada), isto é, os parentes do lado paterno, opõem-se aos
pronome substantivo da primeira pessoa; pois Queck tanto diz Spillmagen ou Spindelmagen (Spille ou Spindel, fuso), ou parentes
kjick-maak, minha perna, quanto kjuck-maak. A variação do u em i do lado materno.
nas palavras kjick e kjuck não deve surpreender, pois da mesma diz-se 3) O dedo indicador se diz pó-iopu; iopu, vem de ióp, beber, e,
kuém, morte e uámm cadáver. principalmente, lamber ou chuchar; assim pó-iopu, o dedo com que
Os verbos estão sempre no infinitivo e no particípio e sua forma não se chucha; é efetivamente o mais cômodo dos dedos para se realizar
parece diferir da dos substantivos. E' porém muito de notar que grande êsse ato; por motivo semelhante, o indicador se diz em grego
quantidade dêsses vocábulos comece por um n, que parece ser móvel, Àixavós.
ou termine por um p. Essa particularidade tem talvez uma causa; O fogo se designa pela palavra -tschoom piick. Pensando-se na
aliás, o n parece destinado principalmente a indicar o infinitivo, como maneira por que os Botocudos produzem o fogo, esfregando ràpida-
se verá pelos exemplos que citarei adiante. A terceira pessoa do verbo mente dois pedaços de pau um contra o outro, a etimologia dêsse vocá-
se forma dum modo baseado sôbre a essência da língua e a origem do bulo, derivado de tschoom (madeira) e iopéck (mover-se com veloci-
verbo. O verbo substantivo (ser) consiste propriamente na palavra dade) é evidente.
het (êle é, ela é), que comumente aparece sob a forma abreviada he, As idéias de verdade e bondade são expressas entre os selvagens de
precedendo nesse caso o verbo; exemplo: he-mot, isto ferve, he-múng, uma forma muito clara, isto é, pela negativa. Assim njinkiick quer
êle partiu; het-nohónn, êle suspira; he-ning, êle vem; e-rehii ou dizer ladrão, tratante, e njinkiik-amnup um homem que não é tra-
e-Tehii, é bom. Essa palavra he vem repetida, segundo a moda tante; iapawin significa mentira, e iapawin-amnup, verdade.
•botocuda, em he-e-e ou he-e que significa sim, isto é, isto é
assim; hé-kjúm-m'rong, êle nada bem. Na palavra ampe-ot, afiar,
julga-se reconhecer uma terminação especial que se conservou na sílaba
ot, pois amp por si significa agudo, e daí amp-uruh, frio; talvez mesmo 2) Vocabulário dos Machacaris
essa sílaba ot provenha do verbo substantivo het; o mesmo parece se
dar com a palavra i-ot, queimar-se. Essa maneira de compor assim os 10TA. A entonação deve ser nasal, mas nunca gutural. Muitas sílabas e
verbos com o verbo substantivo é muito natural; por exemplo: êle palavras devem ser pronunciadas de modo muito singular, com o céu da bOca,
bebe se decompõe fàcilmente em êle é bebedor; somente o que entre nós à semelhança do que acontece com os Botocudos.
parece próprio dos verbos intransitivos entre os Botocudos se estende Água, cunnan. Cara (rosto), nicagnim.
a todos os verbos. Anta (tapir), tschaá. Carne, tiungin.
Para dar a conhecer a maneira simples pela qual os Botocudos Arco, tsyhii. Casa, beiir.
Árvore, abaay. Comer, tigman (ig com o nariz).
exprimem as suas idéias, bastará citar os exemplos seguintes: Bonito, epai. Coração, idekegná.
1) mes encontram o mel produzido pelas abelhas selvagens no Botocudo, idcussiin. Dedo, egnipketakam (gn como nh, kam
ôco das grandes árvores, e, portanto, chamam essa substância de mah-rii Braço (o), nipnoi (nasal). mal distinto, pelo céu da bôca).
ou mah-rehii, isto é, um buraco doce, ou um buraco bom. Cabelo, inden. Deus, tupd.
Caiador (um), creban. Erva, grama, schiili (indistintamente).
2) A principal ocupação dos homens é a caça njokná; eis porque, Canoa, barco, abascoi, (oi separado). Espingarda, bibcoy.
não tendo sido as suas costas curvadas pelo exercício de um ofício, Cão, tochuckschauam. Espinho, minnidm.
510 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS I ' DÍGEN AS 511
Fogo, kescham. Ouro, tagnibá. Pequeno, kenetketó. Sangue, enghiim.
Galinha, tsucacacan. óvo (um), niptim. Pern\,_ patá. Sim, han.
Homem, idpin. Pau, madeira, ke (e palat. e breve). Pescol:J, may. Sol, mayon.
Ir (deixe·nos ir), mámamu. Pé, idpata. Pintar (a côres), noytanatschii. Soprar, ekepoh6.
Irmão, idnooy (nasal). Peito, itkematan. Polegar, nüp-keto. Terra, chão, aham.
Jacaré, maai. Peixe, maan. Porco, schaem (e como ü, palatal). Um, só, apetiiienam.
Macaco, keschniong (e breve). Preguiça (animal). gneüy. Unha (das mãos e dos pés), nionmenan.
Relâmpago, tiinjanam.
Machado, piim. Preguiçoso, noktiokpetam. Velho, hitap.
Rio, itacoy.
Mão, agnibiktiin. Quebrar, tschaá. Vem, nanii.
Monte, agniná. Sangue, idkiing (ii palatal). Rã, mauá. Ventre, etii (mal distinto).
Mulher, atitiom (etiatüm, ü entre o e ü). Tatu, coim. Rio, kekatá. Vermelho, eoató (eo separadamente).
Negro, tapagnon. Trovão, tiitiná.
ólho, idcay. Ventre, inion (nasal).

4) Vocabulário dos Malalis


3) Vocabulário dos Patachós
NoTA: Há nesta língua abundância de sons guturais e nasais; as palavras
na sua maioria são pronunciadas de modo confuso, pelo que é muito difícil
NoTA. Tem essa língua grande número de palavras de pronúncia mal defi- representá-las pela escrita.
nida, meio pelo céu da bôca; também muitos sons entre ii, ü e o.
Água, keché (ambos e breves). Criança, akó .
Aldeia (muita gente), canan-patashi. Faca, amanay. Alto, amsettoi. Dê-cá!, naposnom.
Amigo, camarada, itioy. Feder, niunghaschingá. Anta, amajo (o breve). Dedo, aniemkó.
Anta (tapir), amachy (ch como em ale- Fígado, akiopkanay . Arco, soihé (e breve). Dente (o), aió .
mão). Filho, nioaactschum. Areia, nathó (tom nasal). Deus, amietó.
Anzol, kutiam. Flecha, pohoy. Árvore, me. Dormir, niemahonó (o final breve).
Arco, poitang. Frio, nuptschaaptangmang. Ave, poignan. Erva, achená (e breve).
Árvore, mniomipticajo. Gordura, tomaisom. Barba, eseko (mal distinto). Espingarda, poó.
Beija-flor, petékétom. Grande, nioketoiná. Bôca, ajatocó. Espinho, mimiam.
Boi, juctan. Homem, nionnactim. Boi, tapiet (e indist.). Eu, po (breve) .
Bom (é), nomaisom. Inimigo, combater. Bom (é), epoi. Faca, haak (k quase inaudível).
Bom (não é), mayogená. Irmã, ehii. Bom (não é), jangmingbos. Feio, eveuura (indist.).
Braço (o), agnipcaton. Irmão, eketannay. Bonito, epoi. Filha, ekokahá.
Brilhar, niongnitochingá. Botocudo, epcoseck (orelha-grande). Filho, hakó.
Machado, cachü (ch como em alemão, ü
Cabeça, atpatoy. Braço (o), niem. Flecha, po'i (tôdas as letras audíveis).
Cabelo, epotoy.
Cama, miptschap.
como o).
Mãe, aton (o entre o e e). . ' Cabeça, ako .
Cabelo, ao (mal dist.).
Fogo, cuiá.
Frio, kapiignomingming.
Mandioca, cohom. Galinha, sucaca.
Canoa, mibcoy. Cair, orná.
Milho, pastochon. Gato, jongaet.
Cantar, sumniatá. Calor, ejé.
Môça, nactamaniam.
Cão, koké. Caminho, paa. Homem, atenpiep (e breve).
Monte, egnetopne (e final breve).
Carne, uniin. Camisa, agüschicke. Ir, akehege (e breve).
Morder, kaangtschaha.
Cavalo, amaschep. Cantar, niamekae (final breve). Irmão, hagno (indist.).
Morrer, nokschoon.
Chifre, niotschokptschoi. Cão, wocó. Jacaré, ae.
Comer, oknikenang. Não, tapetapocpay. Cara, tietó. Jacutinga, pigná.
Comprido, miptoy. Nariz, insicap. Carne, junié (e breve). Leite, pojó (o indist.).
Correr, topakautschi. Negro, tomeningná. Casa, jeó. Ligeiro, aioihamoi.
Coxa, anca, tschakepketon. Noite, tomenieypetan. Cavalo, cawandó. Lua, ajé (e breve).
Crianç.a, tschauam. ólho, anguá. Céu, jamepiioime (final breve). Macaco, küschnió .
Cuia, totsá. óvo, petetiiing. Chifre, manaitke (id.). Machado, p e.
Curto, nionham-ketom. Paca, tschapá. Chover, chaab. Mãe, ate (e breve).
Dedo, gnipektó. Paciência, niaistó. Cobra, checheem (ch gutural). Mandioca, cuniii (ii breve).
Deus, niamissum. Pedra, micay. Comprido, escheem (mal dist.). Mão, ajimké (e breve).
Doente, aktschopetam. Peito, ekiip (pron. indist.). Comer, pomamenmeng. Milho, manajá (final breve).
Dormir, somnaymohon. Peixe, maham. Coração, akescho. Morder, niamanomá.
Espingarda, khekui (e palatal). Pena, potoitan. Coxa, ekemnó (e breve). Morrer, hepohó.
512 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 513

Mosquito, kepná. Pena, poe (indist.). Irmão, tschinam. Pé, ingpatá.


Muitos, akgnonachii. Pequeno, aguii. Jacaré, maai. Pedra, comtai.
Mulher, ajente (e breve). Pescoço, ajemio. Jacutinga, macatá. Peito, inkematan.
Mutum, jahais (mal distinto). Porco, jauem (a e u separados). Leite, atiedacün (e breve, ü entre 6 e ü). Peixe, maam.
Não, atepomnock. (id.) Prêto, echemtom. Ligeiro, moachichman. Pena, potegnemang ou angemang
Nariz, asejé (final breve). Raiz, mimiae. Lua, puaan (mal distinto). (e inaudfvel).
Negro, tapagnon. Sangue, akemje. Macaco, kegno (e indistinto). Pequeno, capignan.
Noite, aptom. Sim, koó. Machado, biim. Perna, idcasché.
ólho, ketó (e breve). Sôbre, jamemauem. Mãe, ahain. Pescoço, incatakay.
Onça Gaguareté), jó. Sol, hapem (pelo nariz). Mandioca, coon. Porco, tratketen (en nasal).
Ontem, hahem (a breve). Tamanduá, kakee (ambos e destacados Mão, inhimancoi. Prêto, imnictam.
Orelha, ajepcó. e breves). Milho, punadhiam. Raiz, agnibtaschaten (en longo).
Osso, akem. Tatu, conib. Morder, cuptumang. Regato, ecoinan.
Ouro, toicd. Terra, am. Morrer, umniangming. Relâmpago, agnamam.
óvo (de galinha), suckakakier. Testa, haké (e breve). Mosquito, kemnian (e breve e indistinto). Santo, tupq.
Pai, tanatiimon (ou indist.). Trovão, scape. Mulher, ati. Sangue, inko (6 entre 6 e ü).
Pau, me (e breve). Um, aposé (e breve). Mutum, tschasch'1póché (sch brando, co- Serra (montes), aptien.
Pé, apá (a entre a e o). mo j francês). Sim, (exprime-se apenas pela inspiração
Venha!, pó (mal distinto).
Pedra, haak. de um pouco de ar).
Vento, aoché (e breve). Não, poé.
Peito, anjoche. Ventre, aigno. Sôbre, pawipam.
Nariz, inschicoi.
Peixe, maap (a meio como o). Vermelho, pocatd. Sol, abcaay.
Negro, tapagnon. Tamanduá, potoignan (oi com o ó).
Ninho, mapkepii.
Tatu, coim.
Noite, aptamnan. Terra, aam.
ólho, idcaai. Testa, incüy (ü nasal).
5) Vocabulário dos Maconis Onça (jaguareté), cuman. Trovão, uptatiná.
Orelha, inipcoi. Um, epochenan.
Osso, ecobjoi. Velho, idkatoen, (a e oe indistintos).
Água, cunaan. Cobra, cagná. Ouro, taiud. Vem!, abui.
Alto, eouptan. Comer, uptumang. óvo (de galinha), amnientin. Vento, thiam.
Anta, tia. Comprido, etoitam. Pai, tatd. Ventre, agniohn (nasal).
Anzol, cagnagnam. Coração, inkicha. Pau, co (o gutural, entre o e u). Vermelho, upekiingehiing.
Arco, paniam. Coxa, incajhé.
Areia awoon. Criança, idcutó.
Árvore, abooi. Cuia, cunatá.
Ave, petoignang (e breve). Dedo, agnipcutó. 6) Vocabulário dos Camacãs civilizados
Banana, atemtá. Dê-cá, aponenom.
Barba, agnedhürn (mal distinto). Dente, etioy. de Belmonte, chamados pelos portuguêses
Bôca, inicoi. Deus, tupá. de Meniens
Boi, inschicoi. Dormir, niamonnon (prim. sílaba nasal).
Bom (é), epoy. Erva, scheüy (e breve).
Bonito, epoinam. Espêto, muschi. NoTA. Há nesta llngua muitos sons palatais e especialmente nasais, de
Braço, agnim. Espingarda, bibcoi. modo que as palavras são em geral pronunciadas de modo muito confuso para
Cabeça, epotoi. Espinho, bimniam. os estrangeiros.
Cabelo, endaen (breve). Eu, ai.
Cair, omnan . . Água, sin (n só em parte). Cabeça, inro (n só pela metade).
Faca, patitai. Cabelo, iningé.
Calor, abcoican (a entre a e e). Feio, niaam. Alto, insché.
Caminho, pataan. Anta, eré (e indistinto). Caminho, schd.
Filha, atinang. Cão, jaki.
Camisa, tupickchay. Arco, huán.
Filho, incutó.
Cantar, niamungkiitii. Areia, ae. Capim, assó.
Flecha, paan.
Cão, pocó. Árvore, hi. Carne, kioná.
Fogo, coen (pelo nariz). Banana, incrú. Casa, tuwuá.
Cara, incaay. Frio, chaam (ch como em alemão).
Carne, tiungin. Barba, jogé (g como gu). Chover, si.
Galinha, tiucacan. Bôca, jniatagó.
Cavalo, camató. Cobra, ti.
Gato, kumangnang. Bom (não é), saú. Comer, jicuá.
Céu, becoy. Hoje, ohnan (n final indistinto).
Chifre, ecüm. Bonito, ingote (i indist.). Comprido, insché.
Homem, icübtan.
Chover, taeng. Braço, ighia (indist.). Coração, niroschi.
Ir, jamón.
514 VIAGEM AO BRASIL VOCABULÁRIOS DOS POVOS INDÍGENAS 515
Criança, canaiu. Nariz, inschiwó. Bôca, hiiriiko. Estrêla, péo (o cheio, acentuac,ão em e).
Cutia, onschó. Negro, coatá. Bodoque, diapii (dia breve, pii idem). Eu, echchá.
Deixe-nos ir, niamu. Noite, utá. Boi, hereró (he indist.). Faca, kediahadó (indis,t. e breve).
Dente, jo (ambas as letras audíveis). Olho, imgutó. Bom, koikí. Falar, schakréré.
Dormir, jundun (un pela metade). Onça (Jaguareté), kakiamu. Bonito, scho-hó (scho longo, hó breve e Fava, kegná.
Espinho, inschá. Orelha, incogá. destacado). Filho, kediiigrá.
Estrêla, pinia. Ovo (de galinha), sacré. Borboleta, schakréré. Flecha, hoay.
Faca, keaio. Pau, hintá (hin pelo nariz). Botocudo, kuanikochiii. Flor, huiinhindó.
Feio, saú (a e u ouvem-se destacados). Peixe, há (nasal). Braço, nichuá (ch como em alemão, pelo Fogo, diachke.
Filho, camajó. Pena, ingé (gé como gué portug.). nariz). Fôlha, ere (e muito breve).
Flecha, hain. Pequeno, intan. Branco, inkohéro (he breve). Fruto, keriinii (e e ii final curtos).
Fogo, jarú (i). Pescoço, inkió (com os dentes cerrados). Buraco, aekó (ae algo longo, ko breve). Ferida, andoh'iu (do indist. iii separa-
Galinha, saschá. Porco, cuiá. Buscar (vá ali e busquei), ihanii (ii dos).
Gambá, cansché. Povo (homens), tují. breve). Gato pintado, kuichhua-dan (tudo des-
Gato, intan. Prêto, cuatá. Cabeça, hero (lingual e muito breve). tacado).
Hoje, inu (i acent.). Quente, aniunggu. Cabelo, kii (muito breve e como que Grande, iró-oró.
Homem, cahé. Raiz, kiají. interrompido). Homem, hiiemá.
Ir (depressa), ni. Rio, sin. Cair, kogerachkii (mal dist.). Ilha, kahoi'.
Irmão, ató. Calcanhar, hoak. Ir, man.
Sal, schukí.
Jacaré, ué. Calo,r, schahacijj,..r(d ió breve e como que Irmã, ichodorá.
Sangue, isó (i indist.).
Leite, anju. interrompido). Irmão, kiachkoadan (as três últimas síla-
Sim, inu.
Lua, jé. Caminho, hyá. bas breves).
Sol, schiojí.
Macaco, caun (mesma pronúncia da pa- Canoa, hoinaká. Jacutinga, schanensü (ü entre ii, e e ó).
lavra portuguêsa cão) . Tamanduá (tam. bandeira), tamanduá. Cantar, hekegnahekuechkii (pelo nariz, Jacupemba, schaheiii.
Mandioca, kaiú. Tatu, pá (palat.). tudo breve e confuso). Jaguatirica, kuich-hua (ch como em ale-
Mão, incrú. Terra, é. Capim, kai· (a e I algo separados). mão).
Mata, antó (o breve). Tigela, enan (e breve). Cavalo, cavará (o meio como ii). Jararaca, dká-hiii.
Milho, kscho (mal dist.). Um, wetó. Cêra, hioí (tôdas as letras separadas). Jazer. estar deitado, konul.
Morder, imbró. Velho, schoeo (pron. tôdas as letras). Choça, casa, dea (breve, pelo nariz e céu Jibóia, kta-hiii.
Morrer, juni. Vem!, ni (como entre os Botocudos). da bôca). Língua, diacherii.
Morto, scha-úia. Vento, juá. Chover, tsorachka. Lua (a), hiidiii (acento em dià).
Mulher, schá. Ventre, jundu. Cinza, aechkeia. Luz, ichke (in gutural, ke breve).
Comer, niukuá (niu apenas audível, kuá Macaco, caun (como a palavra portug.
acentuado). cão).
Coral (cobra), dideré. Machado, jakedochkó.
Correr, niani. Mão, ninkre (kre muito breve).
7) Vocabulário dos Camacãs ou Mongoiós Corça, hénii. Mar, sonhiii.
da Capitania da Bahia Cutia, hohion (pelo nariz, sem acentua- Mata, dochodiii.
ção particular). Matar, hendechedau.
Criança, koinin (nin acentuado). Mentira, n echioniin.
NoTA. E' uma língua muito singular, cheia de palavras bárbaras e extensas, Cuia, keriichká (iich breve e pelo céu Môço, creniin.
com muitos sons guturais, pelo que se diversifica profundamente das anterior- da bôca). Monte, here.
mente tratadas. O final das palavras é pronunciado de um modo breve e indefinível. Dar, adchó (ch palat.). Morrer, endiiinii (diiinii breve).
Às vêzes os sons nos parecem nasais, palatais e guturais a um tempo só. Abunda Dá cá!, nechó (idem). Morto, hendechedau (e breve, ch palat.).
o ch alemão, alem do k e ii; e tem, de ordinário, pronúncia muito breve; no Dançar, ecoin (nasal). Mutum, schachedá.
final das palavras acham-se com freqüência o a e o o, mas tão destacados e breves Dedo (primeiro), inhindió (inhin breve Muitos (eiihiiihiii (e ü apenas audível).
como se o elocutor estancasse subitamente o som. As palavras devem ser e indistinto). Mulato, kediachká (ach gutural e palat.).
pronunciadas à moda alemã, a menos que haja alguma recomendação em contrário. Dedo (segundo), ndiachhiii (idem). Mulher, krochedioTá.
Dedo (terceiro), ndjaiinó. Nada, hatschhoho (hatsch algo alongado,
Água, sa (a muito breve). Arco, cuan. Dedo (quarto), ndioiigrá. hoho breve).
Alegria, anchoro (ch gutural, ro com a Areia, acdiiengaranii (iidii breve, en ape- Dente, dió. Nadar, sandedá.
ponta da língua). nas audível). Dia, ari (a arrastado, i e a breves). Não , moschi (breve).
Alto, hoiniá (á breve, tudo pelo nariz). Árvore, hauué (u é breve, tudo pelo na- Dormir, hakegnehodochkó. Nariz, nihiekó.
Anzol, kediahaie (e breve, hai acent.) . riz) . Espêto, ohindio (dió breve, palatal e Negro, khohadá (kho tão breve que
Anta, herii (breve). Assar, mal distinto). apenas se ouve, dá breve).
Arara, tschokii. Ave, schaná. Espingarda, kiakó . Noite, huerachká ou húerá.
516 VIAGEM AO BRASIL

Olho, kedó. Queixo, nichkaran (nich gutural, tudo


Onça pintada, jaké-déré. muito breve).
Onça parda (suçuarana), jaké-koará. Raiz, kdse.
Onça preta, jaké-hyii. Rêde, huerachkachká (tudo nas. e breve).
Orelha, nichkó (nich pelo nariz, ch Regato, sanhod (hod breve).
pouco audível, kó breve). Relâmpago, tsahochkó (kó breve).
Paca, hohion (pelo nariz, e sem acent. Rio, kedochhiii.
particular). Sal, eschké (esch alongado, ké acent.).
Pai, keandd (e algo cheio). Sangue, kedió (e e o breves).
Pau, madeira, hoindd (oin unido, dá Sim, koki (o indistinto).
breve). Sôbre, hoéchod (tudo breve e indistinto,
Pedra, ked (nasal). o a especialmente).
Peito, kniochhere (here breve). Sol (o), hioso (o entre o e ü).
Peixe, huá (nasal). Soprar, sckkí (i breve).
Pequeno, krahado (kra com a ponta da Tamanduá bandeira, perd.
língua, hado muito breve). Tatu (grande), panká-hiii (ii destacado).
Perna tãchketse (ketse breve). Terra, chão, e (breve). .···
Pescoço, ninkhedió (khe indefinível, h Testa, aké (e breve e acent., a indist.).
nasal, dió muito breve). Tossir, cogerii (rii breve, nasal).
Pintar, indiirii (diirii breve). Trovão, sankoray (breve, san apenas au-
Polegar, nede (primeiro e indistinto, se- dível).
gundo breve).
Ponte, hondid (did muito breve).
Porco (doméstico), kuii-hirochdd.
Prêto, koachedá (e apenas audível, da
breve).
Velho, stahie (i e e destac., e breve).
Vento, hedjechke (je como em francês,
ech palat., ke indistinto).
Ventre, kniooptech (ech muito breve).
Vermelho, cohird (co quase inaudível,
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Queimar, undsedó (dsedó breve). hird pelo nariz, rd destacado e breve).
Queixada (porco do mato), kuii-hiii. Voar, hohdonichkó (ó breve).
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QUE ACOMPANHA A SEGUNDA PARTE
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DESTA RELAÇÃO DE VIAGEM

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• S. Jo .MivuJ. ,.~•M .

Essa carta indica a minha viagem através das matas virgens do ser~ão
e dêste até à Bahia. Principia ao sul do rio de Santa Cruz e indica
com bastante exatidão o litoral até o rio Itaípe; isso que dizer que
eu procurei retificar de acôrdo com a minha própria experiência todos

I
I os pontos assinalados nas cartas de Faden e Arrowsmith, as melhores que
conhecia por ocasião de minha viagem. Pude encarregar-me dessa retifi-
"I cação, porque tive sempre o cuidado de anotar o número de léguas que
um lugar estava afastado do outro. Foi mais difícil determinar exata-
mente os pontos das zonas do interior, porque faltavam-me o tempo e os
instrumentos necessários às observações astronômicas; falha que não me
preocupava muito, em virtude das promessas que me tinham feito o
ministro Conde da Barca e mais tarde o Conde dos Arcos de me remeter
uma carta dessa região. A morte porém do primeiro fêz com que se
esvanecessem as minhas esperanças nesse sentido. Tomei, por conse-
guinte, como base principal a carta de Arrowsmith; mas não se deve levar
em conta senão a rota que eu segui, e vai marcada por uma linha, pois
não posso de forma alguma julgar da justeza da posição de todos os
outros pontos situados de um e outro lado dela; julgo mesmo poder
considerá-los em geral como mal colocados.
O curso do rio Pardo é representado nessa segunda carta de modo
um tanto diferente do que está representado na primeira, pois que
nesta eu não podia ainda ajuizar de seu curso no interior do país. Foi
preciso mudá-lo, porquanto eu alcancei as margens dêsse rio na estrada
~,;(Z.íru':y ~k,.-. .. '111~;,...!,;~';?' do tenente-roronel Felisberto Gomes da Silva, acompanhando-as em
.A .1/dt-.:t
.IJJ _ /r~tj'al
seguida até Barra da Vareda, onde delas me afastei. Valo, na fronteira
'B.Aarcw .
~. J'Jo,.c•
de Minas Gerais, é o ponto do interior mais afastado da costa a que
( '!."r• .,."'"5J"''I .
t""'lio"~"m . cheguei; está a 18 léguas de distância do arraial do rio Pardo, cons-
'E..T.uoula .
t ..J>..~
,..,,ldll truído sôbre as margens dêsse rio, e assinalado sob o seu verdadeiro
Q Qw........,
1. . ~
nome na carta de Faden, ao passo que, na de Arrowsmith, vem designado
' Jr-.~
B." lt~ pela denominação de Extrema. tsse ponto vai também indicado em
v. 1"ilk
minha carta; porém como Arrowsmith se enganou sôbre a sua posição,

I
:Botocod.u .
- Cunar" u fôrça foi deslocá-lo também em minha carta na mata.
c=::::=::J l aratho•
518 VIAGEM AO BRASIL

A estrada aberta na mata pelo Sr. Felisberto da Silva segue exata-


mente a margem direita do Ilhéus, ou rio da Cachoeira: logo adiante,
entretanto, ela se afasta e vai reunir-se ao rio Pardo, o que indica
naturalmente uma mudança no traçado dêsse último rio. Prometeram-
me na cidade da Bahia uma carta exata e especial dessa estrada; mas
até agora não a recebi. De acôrd~ com as minhas observações, assinalei
todos os córregos, riachos, rios e montanhas mais importantes, os pontos
em que acampamos à noite, e bem assim todos os outros pontos dignos íNDICE DAS VINHETAS E ESTAMPAS (1)
de atenção. Poder-se-á assim acompanhar muito rigorosamente o diário
da minha marcha através das matas. A minha viagem de Vareda à
cidade da Bahia foi feita a princípio bem próximo das margens do rio TOMO I
ENTRE
dos Ilhéus, formando um ângulo muito agudo com o seu curso, pois a PÁGS.
distância de Barra da Vareda ao Arraial da Conquista, ou a linha trans-
I - Tempestade durante uma viagem marítima (gravada por
versal de uma à outra estrada é apenas de dois dias de viagem. Haldenwang, Carls-ruhe) ............................. . 16/ 17
Na estrada de Bom Jesus a Corta Mão, omiti alguns pequenos
li - Vista da entrada da baía do Rio de Janeiro (gravada por
rios que são aproximadamente da fôrça do Jiquiriçá na última dessas Schnell, Darmstadt) ....... . ......... .. . . ... . .......... . 16/ 17
localidades; não pude, porém, determinar se tais rios eram ou não
sinuosidades do Jiquiriça. Igualmente, entre Laje e Aldeia, o meu 111 - Caçadores brasileiros (gravada por Jacob Lips, Zurique) 24/ 25
aprisionamento me impediu de tomar apontamento sôbre o assunto. O IV - Cabana de pescadm·es, no Rio Bragança (gravada por C.
riacho de Bom Jesus, perto da fazenda dêsse nome, foi deixado inteira- Schleich, Munique) ................................... . 24/ 25
mente de lado, em vista do seu volume de águas pouco considerável. A 15 - Vista da Fazenda de Tapebuçu e da costa marítima, com
costa, da embocadura do Itaípe até a entrada da baía de Todos os o Monte de São João e a Serra de Iriri cercados pela
Santos, ou Recôncavo, é muito pouco exata na carta de Arrowsmith, e por mata virgem ........ . ....... ... ...... . ........... .. . . . 64/ 65
conseguinte na minha, pois não fiz essa viagem. Sôbre êsse e mais pontos V - Casa de campo, à margem do Paraíba (gravada por C.
dever-se-á consultar a "Corografia Brasílica", tomo 11, p. 103 e seguintes. Schleich, Munique) ................... . ... ...... ...... . 72 / 73
Os limites da capitania da Bahia vão assinalados por uma linha 2 - Puris na choça (gravada _por Seyfer e Rist. Stuttgardt) ... . 72 /73
pontuada.
12 - Armas, adornos e utensílios dos Puris ..... ... .. . ....... 112/ 11!1
Fig. 1, arco; 2 e 3, flecha guerreira e para a caça de
grandes animais; 4, flecha para animais pequenos;
5, colar de frutinhos; 6, colar de espinhos de uma
planta; 7, cesto de fôlhas de palmeira.
Vista da Missão de São Fidélis (gravada por Wagner,
Leipzig) ............................................... 120/ 121

(1) - As estampas pertencem à edição alemã em grande formato da obra de


Wied; , umas (vinhetas) acompanham-lhe o texto, em face de cada capítulo, as outras
(estampas no sentido restrito) fazem parte do atlas tirado à parte. Na edição atual
conservam-se às primeiras a sua situação original (a que o índlce remete indicando o
capitulo e a página, sempre ímpar, a que fazem face) ao passo que as segundas (fronteiras
às páginas pares indicadas no índice) aparecem distribuídas, tanto quanto possível, em
correspondência com o texto a que se reportam, sem consideração pelo seu primitivo número
de série. Para maior facilidade nas remissões indica também o índice os números de
série originais das vinhetas (algarismos romanos) e das estampas (algarismos arábicos).
Sôbre a autoria das estampas encontramos em Wied informações precisas. "Os
desenhos que serviram para a confecção das gravuras, dlz êle, foram na sua maioria,
esboçados in loco por mim próprio e ulteriormente aperfeiçoados. Devo, porém, agradecer
ao Sr. Sellow alguns desenhos originais. especialmente os retratos de Botocudos, por êle
desenhados na câmara lúcida, com muita fidelidade. Dêle são também a vista da
costa de Tapebuçu, da vila de Ilhéus e de Pôrto Seguro e mais alguns interessantes
desenhos ". (Nota do comentador).
520 VIAGEM AO BRASIL '
INDICE DAS VINHETAS E ESTAMPAS 521

PÁGS.
ENTRE
TOMO II
VI - Casa de um lavrador brasileiro (gravada por C. Schleich, ENTRE
Munique) .. .. . . . . . . . ..... ... . . . . . ... ..... .. .... . .. . . .. 120/121 PÁGS.

13 - Trastes, adornos e armas dos Puris, dos Botocudos, dos I - Crânio típico de Botocudo (gravado por Bitthaüser,
Machacaris e dos índios da costa . ... . ....... . . . . .. .. . . .. 144/145 Würzburg) ..... . . . .... . . . . . .... . . . ..... . ...... . .... . . . 296 / 297
17 - Quatro retratos originais de Botocudos e, ao centro,
Fig. I, batoque; 2, arco dos Machacaris; 3, flecha dos cabeça de múmia (gravado por A. Krüger, Florença) . . .. 296/ 297
mesmos; 4, batoque de orelha de Botocudo, copiado do
de Capitão June; 5, batoque de lábio de botocudo; 14 - Utensílios e ornatos dos Botocudos . •.. ... . . . . . .. . . .... 320/ 321
6, "Jakeraium Joka", leque amarelo de penas, primitiva-
mente usado pelos Botocudos, prêso à testa; 7, rêde Fig. I, tubo "Kunstschun-Cocann"; 2, instrumento de
de dormir dos Puris; 8, "Caratu", ou machado de fazer fogo. "Nom-Nan"; 3, sacola de viagem; 4, estôjo
pedra dos Botocudos. de fôlha de palmeira; 5, colar de sementes, chamado
"Pohuit"; 6, faca, arranjada de modo a ser pendurada
VII - Soldados de Linhares, com suas mochilas (gravado por no pescoço; 7, ôsso de animal e nozes de côco, para
M. Esslinger, Zurique) .. . .. .. .. . . ... . .. .. ....... .. .... .. 152/ 153 comer; 8, copo de taquarussu, para beber água, chamado
"kekrok".
4 - Vista do rochedo de ]ucutucoara, no Rio Espírito Santo,
perto de Vitória (gravado por Frenzel, Dresdem) . . . . . . . . 152/ 153 21 - Armas e utensílios dos Botocudos . .... . ... .. . ..... . ... . 328/ 329
Fig. I , arco; 2, flecha comum; 3, flecha pequena de
5 - Viagem por um braço do Rio Doce (gravado por Veith, pau vermelho; 4, avental feminino; 5, sacola listrada
Dresdem) . . . .. ................ . . . . . . . .. .... ..... .. . . . .. 176/177 de caça.
VIII - Ninho e ovos de tarturuga na costa marítima (gravada 10 - Familia de Botocudos em viagem (gravado por Seyffer
por J. Lips, Zurique) . . ...... ... . . . . . . . . . .. .. . . ... .. ... 176/ 177 e Krüger, Stuttgardt) . . . . .. . ....... ....... .. . . ..... .. .. 368/ 369

IX - Nossa choupana em Morro d'Arara (gravado por Reinhard, II - lndios em viagem (gravado por Esslinger, Zurique) .. . .. . 368/ 369
Wien) .... ......... . .... .. . .. .. . . . ..... ..... . .. .. . . .... 184/185
18 - Vista da Vila e do Pôrto de Ilh éus (gravado por Schnell,
6 - Nas matas do Mucuri, em companhia do Capitão Bento Carbsruhe) . . .... . .. ....... ... . ..... . . . .. .. . . . . .. . . . .. . 376/ 377
Lourenço e seus "mineiros" .. . . . . .. .... . . . .... ... .. .... 184/ 185 III - Viagem de canoa pelo rio dos Ilh éus (gravado por Halden-
wang, Carlsruhe) .. . .. .. . . . ... ... .... . . ...... . ... . .. .. .. 376/ 377
2 - Puris na mata (gravado por Seyffer e Rist. Stuttgardt) ... 208/ 209
IV- Estada no Rio da Cachoeira (gravado por C. Rahl, Wien) 416/ 417
X - Choças dos Patachós (gravado por C. Schleich, Munique) 208 / 209
19 - Festa dançante dos Camacans (gravado por J. Lips,
7 - Patachós do Rio do Prado (gravado por Rist, Munique) 216/ 217 Zurique) . .. ...... ... . . . . ...... . . ... ... .... .. .. . . ... .. . 424/ 425
20 - Grupo de Camacans na mata (panorama de Seyffer de
16 - Vista da vila de Pôrto Seguro, no Rio Buranhem (gravado Stuttgardt e figuras de Bitthauser de Würzburg) ...... . . 434/ 435
por C. Schleich, Munique) . .. . ... . . ... . . ...... .... . . . . . . 216/ 217
22 - Ornatos e utensílios dos Camacans . . .. . .......... . .. .. .. 434/ 435
8 - Vista da foz do rio e da igreja de Santa Cruz (gravado
por Frenzel, Dresden) . . . . . . . ... . . . ....... . .. .. .. .. . . .. 256/ 257

XI - Botocudos . O Chefe Kerengnatnuck e sua família (gravado V - Desfile de u ma tropa carregada (gravado por J. Lips,
por Esslinger, Zurique) .... ... .. .. . . . . . .. ... ... . ..... .. 256/ 257 Zurique) . ... ... . . . . . ....... .. . .. . . .. .. . . ... ........ . . . 464/ 465
9 - Vista da Ilha Cachoeirinha e do Quartel dos Arcos, na foz VI - Boi perseguido pelos vaqueiros (gravado por F. Meyer,
do Rio Grande de Belmonte (gravado por F. Haldenwang Berlim) . .. ..... . .. . . . . . . ... . . . . .. . . . .. ........ . ....... 464 / 465
Sohn Carlsruhe) .. .. . ...... . ..... . ... . . . ....... .. .. . . . . 264/ 265
VII - A caça da onça (gravado por C. Rahl) ... . .... ... .... . . . 472 (473
11 - Duelo entre Botocudos no Rio Grande de Belmonte
VIII - Apresentando um burro de carga para viajar (gravado por
(gravado por Müller, Paris) . . . ..... . .. ... . .... . . . .. .... 264/ 265 Esslinger, Zurique) .. .. ...... ... . . . . . .. ........ . ..... . . 472/ 473
íNDICE ALFABÉTICO
dos nomes
ZOOLóGICOS E BOTÂNICOS 1

Abelhas 304 Amaryllis 80, 274


Abóbora 303 amazonicus, Psittacus 179, 220, 332, 420
Abutua 68 ameiva, Lacerta 72
Acarus 386, 444 americana, Ciconia 77, 396
aestuans, Sciurus 45 americana, Genipa 107, 274, 289, 349
aethereus, Caprimulgus 177, 440 americana, Mycteria 278, 396
aethereus, Phaeton 475 americana, Rhea 410
ajricanus, Gypogeranus 412 americanus, Tapirus 30, 129, 156, 175,
Agama catenata 455 197, 258, 266
Agave joetida 32, 37, 49, 81, 403, 492 Ampelis atro-purpurea 198, 207
Agrião 32 Ampelis carunculata 45
agrippina, Phalaena 368, 388 Ampelis catinga 207
agua, Bufo 44, 450 ampulacea, Helix 78
Agua-viva 16, 278, 476 Amyris 210
Águia-pesqueira 278 Anabates atricapillus 381
aguti, Dasyprocta 193, 198, 385 Anabates erythrophtalmus 381
Airi 48, 82, 297. Anabates leucophtalmus 381
ajaja, Platalea 91, 397, 400, 420 Anabates macrourus 381
albicollis, Tantalus 397, 400, 420 Anabates rufifrons 402
albus, Diclidurus 330 Anacã 239, 380
Alcedo alcyon 120, 123 Anacardium occidentale 122. 172, 230
A/cedo bicolor 187 anaconda, Boa 265
alcyon, A/cedo 120, 123 Ananás 26, 172
alector, Crax 109, 198, 266, 273, 297, 364 ananas, Bromelia 26
Alisma 89 Anas dominica 420
Allamanda cathartica 101, 390, 394 Anas moschata 43, 127, 157, 198, 242,
" Alma de gato 38 244
Almécega 204, 210 Anas viduata 92, 127, 131, 228, 420
Alstroemeria ligtu 59 Anas virgata 241
aluco, Strix 85 Andorinha 152, 326
Alvacora 476 Andorinha verde-branca 188

(1) Na presente lista, preparada expressa e cuidadosamente para esta edição pelo
comentador, incluem-se apenas os nomes constantes do texto e das notas do autor, assim
técnicos como vernáculos.
Os números em itálico assinalam os lugares em que o assunto foi versado no
comentário.
I · I
INDICE ALF ABETICO 525
524 VIAGEM AO BRASIL
bimaculatus, Bufo 44 Caesalpinia brasiliensis 57, 66
Andorinha do mar 46, 55, 134, 230, 239 Arum liniferum 123, 182, 277, 341 Caitetu 156
Bixa orellana 107, 289
240, 232, 234 Asclepias curassavica 39 Boa anaconda 265 Caixeta 174
Andorinhão 258 Asplenium marginatum 376 Boa constrictor 72, 207, 257, 265, 350, Cajueiro 122, 172, 230'
Andorinhão de coleira 61 Ateles hypoxanthus 78, 108, 244, 349, 364, Caladium 49, 277, 350, 355, 459
398
Andromeda 86 366, 388 Bombax ventricosa 57, 233, 260, 286, 365, Calceolaria 337
Anhinga 92, 244, 341 ater, Trochilus 269, 372 Callithrix melanochir 195, 197, 375, 379
atricapillus, Anabates 381
389
anhinga, Plotus 92, 254, 341 bonariensis, Tanagra 45, 390, 403 Callithrix personatus 128, 157
Anhuma 244, 254, 269 atro-purpurea, Ampelis 198, 207 campestris, Picus 399
bonduc, Guilandina 210
ani, Crotophaga 40, 45. 100 atrox, Vipera 193 Bonnetia palustt·is 86 Camurupi 250
Aninga (planta) 123, 182, 277, 341 aurata, Hyla 456 Borbolêtas 53, 120, 440, 441, 442 Camutanga 43, 154, 195
Anolis gracilis 369 aura, Vultur 46, 86 Bougainvillea brasiliensis 37, 77, 257, 456 Cana brava (v. Ubá)
Anolis viridis 369 auricapilla, Tanagra 430 Bradypus torquatus 66, 183 canadensis, Loxia 385, 386
Anta 30, 129, 156, 175, 197, 258, 266 Avicennia tomentosa 72, 123, 169, 179 Canário 394, 404
Bradypus tridactylus 183
256, 383 avicularia, Aranea 44 brasilia, Tanagra 38, 52, 133, 253, 386 cancrivorus, Ursus 409
Anum branco 100 Azolla 450 brasiliensis, Bougainvillea 37, 77, 257, Cancroma cochlearia 342
Anum coroia (v. Anu grande) 52 Azulão 394 Cançanção 133, 316, 371
Bacurau 53, 85, 103, 243
456
Anum prêto 40, 45, 100 brasiliensis, Cactus 369 Canela 68
Anu-grande 52 Baga 31 brasiliensis, Caesalpinia 57, 66 Canguçu 224
aperea, Cavia 382 Bagre 46, 259, 331 brasiliensis, Emberiza 394, 404 Caninana 14 5
Apeiba cimbalaria 334 Baiagu (veja "Papa-ostras") 87, 92, 134 Canis mexicanus 409
brasiliensis, Falco 93
Aplysia 217 Baleias 32, 228, 465 brasiliensis, Felis 168, 456 Canna 52
aquilus, Pelecanus (v. Fragata) 16, 203, Balistes vetula 331 brasiliensis, Lepus 40 Canna indica 37
211 Bálsamo peruviano 316 brasiliensis, Lutra 128, 197, 259, 378 Capim da praia 210
arabicus, Costus 68 Bambusa 81, 110 brasiliensis, Tanagra 386 Capim de zabelê 367, 371
aracari, Ramphastos 56, 80, 349, 387 Banana 303 brasiliensis, Tinamus 193, 198, 302, 364, capistrata, Tanagra 404
Araçá 303 Banana do mato 349 Capivara 258, 265, 365
371, 379
Araçaris 56, 80, 349, 387 Banisteria 57, 79, 80, 350 brasiliensis, Turdus 341, 381 Caprimulgus 53, 85, 103, 188, 243
Aracuã 212 Barba de pau 44, 252, 277, 359, 389 Caranguejo 327
Braúna 217
A ranea avicularia 44 Barba de velho (v. Barba de pau) Brejeúba (v. Côco de airi guaçu) Caprimulgus semitorquatus 131
Aranha caranguejeira 44, 136 Barbado (veja Guariba) 71, 78, 111, 157, Bromelia 42, 57, 109, 172, 230, 260 Caprimulgus aethereus 177, 440
Arapaçus 58, 366, 376, 380 195. 197 Bromelia ananas 26 Caprimulgus diurnus 401
Araponga 44, 45, 50, 76, 79, 388 Barriguda 233,260, 286, 365, 369, 389, 455 Caprimulgus grandis 269, 275
Buccinum 337
Arara azul 84 Batata 303 Bufo agua 44, 450 Caprimulgus leucopterus 440
Araras 241, 242, 244. 266, 273 Batuíras 134 Bufo bimaculatus (v. Bufo agua) 44 Capsicum 31, 331, 365
Arara vermelha 83, 105, 157, 187, 189 Bauhinia 57, 58, 195, 350 Bufo cornutus 369 Capueira 188, 242, 243, 365
ararauna, Psittacus 83 Begonia 260, 350 Bufo crucifer 730 Cará-cará 93
Araribá 68 Beija-flôres 250 Bufo margaritifer 370 Caracará branco 420
Araticum 303 Beija.flor de chifre 412 Bugío (v. Guariba e Barbado) Cará do mato 303
Aratu 180, 332 Beija.flor de coleira 412 Bulia 337 Carão 237, 420
Araucaria 26, 414 Beija-flor prêto 269, 372 busarellus, Falco 91 Caraúna (v. Ibis verde)
Arca 337 bellas, Bignonia 41 Butua 68 carauna, Numenius 237
Ardea nycticorax 102 Bem-te-vi 40, 91, 404 butyracea, Cocos 25 Caravela (veja Physalia) 15, 18, 476
Ardea pileata 127 Berne 147 Byssus 222 Caraya (v. Guariba prêto)
Ardea stellaris 412 Beroe 476 Cabeça-de-pedra (v. Passarão) Cardium 337
Ardea virescens 342 bicarinatüs, Coluber 77, 140 Caburé (ou Caboré) 36, 87, 188 Cardo santo 185
Areré (v. lrerê) Bicho de pé 90, 213, 380, 443 caretta, Testudo 167, 335
Cação, 250, 331
Argemone mexicana 185 Bico chato 100 Cacaueiro 32 Caribe 358
argentea, Sterna 55 bicolor, A/cedo 187 Carica 25, 245, 303
Cachimbau 272
Aricuri (v. Côco de aricuri) bicolor, Trochilus 53 carpinifolia, Sida 95
Cachimbo (veja Cachimbau)
Ariranha 128, 197, 259, 378 Bicudo 381 Cachorro do mato 428 Carrapato 386. 444
Aristolochia ringens 453 Bignonia 37, 57, 66, 67, 82, 102, 240, carunculata, Ampelis 45
cactorum, Psittacus 396, 444
Aristolochia marsupiiflora 454 275, 350, 368, 372, 389, 442 Cactus 42, 49, 57, 83, 88. 124, 230, 396, Cascavel (cobra) 186, 398, 444
Aroeira 230 Bignonia bellas 41 399, 446 caspia, Sterna 55
aromatica, Linharia 379 Bignonia coriacea 37 Cactus brasiliensis 369 Cassia sp. 395, 396, 402, 419, 442
Artocarpus integrifo/ia 26 Biguá (Corvo marinho) 70 Cactus pendulus 277 Cassia uniflora 86
Arum 49 Biguatinga (v. Anhinga) Caçaroba 225, 249 Cassicus cristatus 250, 291
Arum esculentum 224 bilineatus, Cophias 186
526 VIAGEM AO BRASIL '
INDICE '
ALFABETICO 527
Cassicus haemorrhous ll6, 250, 277, 359 Cobra de duas cabeças 194 dactylifera, Phoenix 71
Cassicus persicus 250, 252, 349 coriacea, Bignonia 37
Cobra verde 427 coriacea, Testudo 167 Dançadores 144
Casuarina 90 Côco (da Bahia) 71, 85, 204 Dasyprocta aguti 193, 198, 385
Catauá 331 cornuta, Palamedea 244, 254
Côco de airi açu 205 cornutus, Bufo 369 Dasypus 122, 198 '
catenata, Agama 455 Côco de airi mirim 206 Dasypus gigas 268, 292, 364
cathartica, Allamanda 101, 390, 394 cornutus Trochilus 412
Côco de aricuri 205, 210, 219 coronatus, Psittacus 43 Dasypus maximus 268 (v. Dasypus gigas)
Caübi 68 Côco de guriri 205, 210, 219 degener, Falco 420
Cavia aguti (v. Dasyprocta agutl) Côco de imburi 204 Coruja do campo 413
Corrupio do mar 231 Delphinus phocaena 14, 476
Cavia aperea 382 Côco indaiá-açu 204 Dendêzeiro 463
cavia rupestris 394, 447 Coruja de igreja (v. Suindara)
Côco de palmito 158,204 Dendrocolaptes 58, 366, 380
caudata, Pipra 430 Côco de pati 204 Corujão 269
Corvo marinho (veja Biguá) 70, 123 Dendrocolaptes trochilirostris 376
caudata, Pteris 395, 442 Côco de piaçaba 205, 231, 334 dentata, Perdix 242
Caulinia tenella 450 Corous cyanoleucus 412
Côco de pindoba 204 depressa, Testudo 340
caynensis, Tantalus 343, 382 Côco de tucum 82, 206 Corous cyanopogon 373, 452
Coryphaena 475 Dicholophus cristatus 411, 420
cayanus, Cuculus 38 Cocos 135, 348, 350 dichotoma, Mertensia 94, 206
cayennensis, Oriolus 250 Cocos butyracea 25 Costus arabicus 68
cotinga, Ampelis 207 Diclidurus albus 330
cayennensis, Tanagra 386 Cocos lapidea (v. Côco de piaçaba) dicolorus, Ramphastos 48, 185, 291, 387
cayennensis, Vanellus 45, 61, 76, 89, 420 Cocos nucifera 71, 85, 95, 178, 204 Cotinga purpúrea 198, 207
Crax alector 109, 198, 266, 273, 297, 364 Dicotyles torquatus 156
Cebus robustus 197 Coelogenys paca 193, 198 Dicotyles labiatus 156, 197, 243, 254, 300
Cebus xanthosternus 273, 368, 372, 378 Coendu (v. Porco-espinho) Crejoá 207
Crescentia cujete 104, llO, 295 Didelphis 242
Cedro 174 Colhereiro 91, 397, 400, 420 discolor, Felis 168
Cecropia 110, 135, 146, 157, 238, 240, 294 Coirana 79 cristata, Penelope 451
cristatus, Cacicus 250, 291 diurnus, Caprimulgus 401
Cecropia peltata 146 collaris, Hirundo 61 dominica, Anas 420
Cegonha 396 cristatus, Dicholophus 411, 420
Coluber 145, 364 Crocodilus sclerops 120, 301, 358, 419 Donax 337
Celastrus ilicifolia 455 Coluber bicarinatus 77, 140 Dourado (marinho) 475
Cerambyx longimanus 199 Crotalus horridus 186, 398, 444
Coluber formosus 194, 330 Crotophaga ani 40, 45, 100 Dracaena draco 483
Gereis silisquastrun 482 Coluber fulvius 60, 330 Dracontinum pertusum 49, 350, 355
Certhia cyanea 37 Coluber merremii 346 Crotophaga major 52
crotophagus, Falco 222, 420 Dragoeiro 483
ceroicornis, Prionus 302 Coluber plumbeus 79 dufresnianus, Psittacus 43, 154, 195, 250
Cerous mexicanus 408 cruentatus, Psittacus 45
Coluber venustissimus 330 Echinus 216, 223
Chama 337 Crumatã 250
Coluber versicolor 364 Echinus pentaporus 231
Charadrius 46, 134 Columba geoffroyi 249 crucifer, Bufo 370
Crypturus 302 Echites variegata 86
Chauá 43, 154, 195 Columba jamaicensis 249 Elaps corallinus 330
Chimachima 222 Cuculus cayanus 38
Columba leucoptera 452 Elaps ibiboca 329
Chingolo (v. Tico-tico) 394 Cuculus guira 100
Columba locutrix 358, 430 Cuculus tenebrosus 83 Elater noctilucus 85, 185, 353
Chlorophanes spiza 202 Columba minuta 250 elegans, Tanagra 144
Chochi 85 Columba oenas 244 Cuieira 104, llO, 295
Cuirana 67 Ema 410
Chopim (v. Vira-bosta) Columba rufina 225, 249 Emberiza bra•iliensis 394, 404
Chora-lua (v. Mli.e-da-lua) 188, 242 cujete, Crescentia 104, llO, 295
Columba speciosa 188 Embira branca 295
Chorão 448 cunilaria, Strix 413
Columba squamosa 390, 444 Embira jangadeira (v. Pau-de-jangada)
Chororão 198, 364 Conchas marinhas e fluviais 337 cuphea 337
Cupim, 47, 76. 399, 419, 449 Epidendrum 42, 49, 57. 350, 429
chrysomelas, Hapale 366, 373, 375 concolor, Felis 242, 258, 423 Erythrina 25, 37
Ciconia americana 77, 396 curassavica, Asclepias 39
Conocarpus racemosa 72, 123, 169, 179, Curculio imperialis 32 erythrocephala, Pipra 144
cimbalaria, Apeiba 334 220 erythrogaster, Psittacus 59, 250
Cinchona 316 Curculio palmarum 302
constrictor, Boa 72, 207, 257, 265, 350, Curiango ("criangu") 103, 401 erythrophthalmus, Anabates 381
cincta, Ampelis 207 398
Curica 179, 220, 332 esculentum, Arum 224
Cipó verde (cobra) 77 Conus 337 Escaravelho hércules 166
Cipó cravo 58 Convolvulus 125, 138, 159 Curicaca 397, 400, 420
Cipó verdadeiro 195 Cutia 193, 198, 385 Espadarte, 157, 250
Copaíba 139, 316 cyanea, Nectarinia 37, 144 espelho, Pomba 249
Ciriba 253 Copaíva (v. Copaíba)
Cleome 101, 123 cyanoleucus, Corous 412 Esquilo 45
Copaifera otficinalis 139, 316 Eugenia 76, 350
Climena 442 Cophias bilineatus 186 cyanogaster, Psittacus 198
Clittoria 219 cyanopogon, Corous 373, 452 Eugenia pedunculata 122. 124
Cophias holosericeus 452 Evolvulus phylicoides 86
Clusia 210 cyanotropus, Procnias 145
Coqueiro 71, 95, 178, 204 cayanus, Cuculus 38 faber, Hyla 456
Coati 197 Coral falsa 194, 330
cochlearia, Cancroma 342 Cyperus 238 Falco brasiliensis 93
Coral verdadeira (cobra) 59, 330 Falco busarellus 91
Cobra coral (v. Coral) corallinus, Micrurus 59, 330 Cypraea 337
Cypselus 61, 258 Falco crotophagus 222, 420
528 VIAGEM AO BRASIL ÍNDICE ALFABÉTICO 529

Falco degener 420 Gardenia 79 halidetos, Falco 278 Irerê ("aréré') 92, 420
Falco furcatus 85, 132 Garoupa 226 Haliaeus forficatus (veja Fragata) Issara 291
Falco guianensis 377 garrulus, Phasianus 212 Hapale chrysomelas 366, 373, 375 Jaca 26
Falco haliaetos 278 Gato mourisco 198, 424 Heliconia 27, 42, 110, 134, 349, 352 Jacarandá 57, 333
Falco nudicollis 355, 363, 387 Gato pintado 198 Heliconius 441 jacana, Parra 45
Falco palustris 91 Gaturamo 32 Helix 337 Jabiru (v. Jaburu)
Falco plumbeus 86, 132 Gavião de penacho 266 Helix ampulacea 78 Jaburu 77, 278, 396, 426
Falco tyrannus 266 Gavião do sertão 355, 363, 387 Helix ovalis 78 Jabuti 199, 359
fatuellus, Simia 65, 71 Gavião tesoura 85 hercules, Scarabaeus 166 Jabuticaba 292
Felis brasiliensis 168, 141, 456 geoffroyi, Columba 249 Herva de bicho 70 jacana, Parra 45, 52, 274, 341
Felis concolor 242, 258. 423 Genipa americana 107. 274, 289, 349 Herva moura 68 ]açanã (v. Piaçoca)
Felis discolor 168 Genipapeiro (v. Jenipapeiro) Hesperia 398 ]acaranda 57, 350
Felis maroura 198, 425 Gibão de couro 256 Hirundo collaris 61 Jacarandá 67, 331
Felis onca 30, 134, 156, 423 Giboia (v. Jiboia) Hirundo jugularis 256 Jacaré 102, 120, 121, 123, 159, 173, 182,
Felis pardalis 197, 424 gigas, Dasypus 268, 292, 364 Hirundo leucoptera 188, 256 196, 301 , 358, 419
Felis tigrina 198 Goiabeira 26, 122, 414 Hirundo melanoleuca 256 ]acchus leucocephalus 144
Felis yaguarundi 198, 425 Golfinhos 14, 476 Hirundo minuta 61 ]acchus penicillatus 241 , 341, 375
Ferreiro (rã) 134, 456 Goiaba 122 Hirundo pelasgia 328 jacchus, Simia 241 , 467
ferruginea, Strix 87, 188 gracilis, Alnolis 369 hirundo, Sterna 55 ]acquinia obovata 150
Feto 42 Gralha (veja "Quem-quem") Hirundo violacea 152 Jacu 451 (v. Jacupemba)
Fetos arborescentes 206, 355 Gralha azul 412 holosericeus, Cophias 452 Jacupemba 56, 152, 198, 242, 297
Ficus 230. 294, 350 Gralhão (veja Gavião do sertão) horridus, Crotalus 186, 398, 444 Jacutinga 110, 198, 267, 297
Figueira 100 Grammistes 331 Hyla aurata 456 Jacurutu 158
figulus , Turdus 413 grandis, Caprimulgus 269, 275 Hyla faber 134, 456 Jaguaretê (v. Onça pintada)
Filix 42, 206, 277, 394 Grapirá (v. Fragata) Hyla luteola 155 jamacaii, Oriolus 401
Fincudo 235 Graúna (v. Pássaro prêto) hypoxanthus, Ateies 78, 108, 244, 349, 364, jamaicensis, Columba 249
Flamingo (veja "Guará") Graúna (árvore) 67 366, 388 Jandaia 157
flammea , Strix 467 Gravatá 109 ibiboboca, Micrurus 329 Jaó (v. Juó)
flaveola, Nectarinia 222 grossa. Loxia 380, 386 Ibis de cara nua 91 Japu 250, 291
flavescens, Picus 59 Grumbari 67 lbis verde 343, 382 Japuí 250, 252, 349
flavirostris, Sterna 239 Gryllus 445 Jaquá (sic) 67
Icica 210
foetida , Agave 32, 37, 81 , 403, 492 Guacani (v. Cachimbau) idomeneus, Papilio 53 Jaqueira 26
Fôgo-apagou 390, 444 Guache 116, 250, 277, 359 Iletx 350, 371. 455 Jaracatiá (v. Mamão-do-mato)
forficatus, Haliaeus (v. Fragata) Guaçu-birá 153, 156, 197 ilicifolia, Celastrus 455 Jararaca 186. 193, 207
Formigas 47 Guaçu-pitá 76, 156, 392 Imbaúba 146, 294 Jararaca-de-rabo-branco 452
formosus, Coluber 194, 330 Guaçupucú 408 Jararaca verde 186
Imbiú 67
Fragata 16, 203, 211 Guaiamu 72 Imbuzeiro 303. 455 Jararacuçu 194
Franga d'água azul 37, 341 Guandirá (veja Vampiro) Imburi (côco de) 204 Jarraticupitaia 67
Fringilla magellanica 404 Guará (v. Lôbo) imperialis, Curculio 32 ]atropha 350
Fringilla nitens 145, 390, 394 Guará (ave) 92 Inambú 123, 291 , 125, 302, 366 ]atmpha manihot 31 , 56, 276
Fringilla ornata 413 guarauna, Numenius 237 ]atropha urens 133, 316, 371
Fringilla pileata 390, 394 Indaiá-açu 204
Guariba 51 , 71 , 78, lll , 128, 375, 383 indica, Canna 37 Jauarété 30
fruticosa, Wikstroemia 86 Guariba prêto 409 indica, Mangifera 32, 463 Jenipapeiro 107, 274, 289, 349
Fucus 17, 21, 124, 152, 225, 479 Guazupitá (veja Guaçu-pitá) Jequitiranaboia (veja Fulgora)
Fulgora laternaria 354 Inga (v. Ingá)
guianensis, Falco 377 Ingá 303, 350 Jiboia 72, 207, 265, 398
fulvius, Coluber 60, 330 guianensis, Perdix 188, 242, 243, 365 Intanha 369 Jequitibá 174 .
furcatus, Falco 85, 132 guianensis. Psittacus 44, 62 Jissara (v. Côco de palmtto)
Gafanhotos 445 integrifolia, Artocarpus 26
Guigó 195, 197, 375, 379 Ipê 66 João de barro 413
Gaivota 20, 46, 55. 134, 219, 311 Guilandina bonduc 210 João-corta-pau 85
Galbula magna 149 Ipê amarelo 67, 82, 101
guira, Cuculus 100 lpê-tabaco 67 João -grande (veja Fragata)
Gallinula martinicensis 37, 341 Guirapariba 355 jubata, Myrmecophaga 30, 166, 197, 399,
Gambá 242 Ipê-una 67
Guriri (côco) 55, 205, 210, 219 Jpecacuanha 68 409
Gameleira 230, 294 gurnardus, Trigla 14 Judeu (peixe) 476
ipecacuanha, Pombalia 68
Garça branca grande 77, 128 guyanensis, Tanagra 386 jugularis, Hirundo 256
Garça branca pequena 77, 128 Ipecutiri 127
Gypogeranus africanus 412 Ipomaea 447 Jundiá 250
Garça noturna 102 Haematopus 87, 92. 134 Juó 125, 134, 136, 354, 366, 379, 386
Garça real 127 1pomoea littoralis 21 O
haemorrhous, Cassicus ll6, 250, 277, 359 Irara 197 Jupati 266
I I
530 VIAGEM AO BRASIL INDICE ALFABETICO 531

Juriti (jurití) 249 Loxia torrida 394 maximus Dasypus 268 Mutum 109, 198, 266, 273, 297, 364
Juru 195, 458, 459 lunatus, Pelopaeus 78, 88 maximus, Phyllostomus 451 Mycetes caraya 409
labiatus, Dicotyles 156, 197, 243, 300 luteola, Hyla 155 Medusa pelagica 16, 278, 476 Mycetes ursinus 71, 51, '128, 157, 197, 383
Lacerta ameiva 72 Lutra brasiliensis 128, 197, 259, 378 Melaleuca 90 Mycteria americana 278, 396, 426
Lacerta litterata 72 Macaco (v. Mico) Melancia 26 mydas, Testudo 167, 328
Lacerta teguixin 51, 125, 374, 454 Macaquinho prêto (v. Sauim prêto) melanocephalus, Procnias 131 Myiothera 366, 394, 399
lachesis muta 137, 186 Macaco de bando 273, 372, 368, 378 melanochir, Callithrix 195, 197, 375, 379 Myrmecophaga jubata 30, 166, 197, 399,
laertes, Papilio 440 Maçaranduba 67 melanogaster, Plotus 341 409
Lagartixa (das casas) 88 Maçaricos 45, 70, 123, 134 melanoleuca, Hirundo 256 Myroxylon peruiferum 316
Lagartixa de coleira 88, 380 macao, Psittacus 83, 105, 157. 187 melanonotus, Psittacus 207 Myrthus 262, 350
Lagarto 353, 363 macavuanna, Psittacus 44, 77 Melastoma 135, 274, 350 Mytilus 337
Lampyris 185, macroura, Felis 198, 425 Melro 253 Nacunda 401
Lanius picatus 429 macrourus, Anabates 381 menelaus Papilio 440 naevia, Tapera 85
Lanius pitangua 40, 91 Mactra 337 menstruus, Psittacus 135, 207 naso. Vespertilio 188
Lantana 27, 39 Macuca 193, 198, 302, 364. 371, 379 Mergulhão (Sula) 73, 328, 474 Nasua 197
lapidea, Cocos 231 maculosus, Tinamus 95 Mergulhão (de água doce) 341 Nectarinia cyanea 37, 144, 207
Laranja da terra 77 Mãe·da·lua (veja Urutau) 177, 188, 243, Mero 226 Nectarinia flaveola 222
Laranjeiras 37 269, 275, 440 merremii, Coluber 346 Nerita 337
Larus 134. 219 magellanica, Fringilla 404 Mertensia dichotoma 94 nestor Papilio 440
Larus marinus 20, 55, magna, Galbula 149 Metrosideros 90 nigra, Rhynchops 152, 157, 237
Larus ridibundus 46, 55 magna, Tanagra 386 mexicana, Argemone 185 nitens, Fringilla 145, 390, 394
Larvas comestíveis 260 Maitaca 135, 207 mexicanus, Canis 409 Noctilio 242
latemaria, Fulgora 354 Maitaca de cabeça vermelha 198 mexicanus, Cervus 408 Noctiluca miliaris 18
Laurus 67, 68, 350 Majole 68 Mico-de-chifre 66, 71 noctilucus, Elater 85, 185, 353
leucocephalus, Jacchus 144 major, Crotophaga 52 Micos 197, 378 noctivagus, Tinamus 125, 134, 136, 354,
leucocilla, Pipra, 144 Mamoeiro 25, 245, 303 Micrurus corallinus 59, 3]0 366, 379, 388
leucogaster, Sula 70 Mamão do mato 365 miliaris, Noctiluca 18 nucifera, Cocos 71, 85, 95, 178, 204
leucophthalmus, Anabates 376, 381 Manati (v. Peixe·boi) Mimosa 57, 67, 68, 96, 350, 371. 389 nudicollis, Falco 355, 363, 387
leucoptera, Columba 452 Mandioca 31, 56 minuta, Columba 250 nudicollis, Procnias 44. 45, 50, 76, 79,
leucoptera, Hirundo 188, 256 Mandioca brava 175 minuta, Hirundo 61 388
leucoptera, Penelope 110, 198, 267, 297 Mangifera indica 25, 32, 463 minuta, Sterna 55 Numenius carauna 237
leucopterus, Caprimulgus 440 mango, Trochilus 241 Miriqui 78, 108, 244, 349, 364, 366, 388 nycticorax, Ardea 102
Lecythis ollaria 26, 82, 101, 257, 294. 350 Mangues 72, 169, 179, 220, 230 misya, Pyrrhula 394 Nymphaea 89, 121
leilus, Papilio 441 Mangueira 25. 32, 463 mitratus, Psittacus 198 obovata, Jacquinia 150
Lepas 337 manihot, Jatropha 31 , 56, 276 Miuá (veja Anhinga) 254 obovata, Plumeria 453
Lepidium 32 Maracajá 197, 424 Mocó 394, 447 occidentale, Anacardium 122, 172, 230
Lepus brasiliensis 40 Maracujd 57, 350, 354, 402 molle, Schinus 230 ochrocephalus, Psittacus 179, 220, 332,
Lichen rangiferinus 218 Maracanã 44, 62, 68, 77 Mono (veja Miriqui) 420
Licuri 443 marail, Penelope 56, 152, 198, 242, 297 Morcegos 218, 239, 242, 259, 398, 451 oenas, Columba 244
ligtu, Alstroemeria 59 Maranta 49 Morcêgo branco 330 Oenothera 388
lineatus, Picus 59 marcgravii, Elaps 317 moschata, Anas 43, 127, 157, 198, 242. 244 officinalis, Copaifera 139, 316
lineola, Loxia 394 margaritifer, Bufo 370 moschitus, Trochilus 395 officinalis, lpecacuanha 68
Linharia aromatica 379 marginatum, Asplenium 376 Mosquitos 235 Oiticica 174, 200
liniferum, Arum 123, 182, 277, 341 Marimbondos 78, 146, 337, 338, 387 Moura (Erva) 68 óleo-pardo 67
littoralis, 1pomoea 210 marinus, Larus 20, 55 Murta 262 ollaria, Lecythis 26, 82
littoralis, Remirea 169 marítima, Remirea 210 Murex 337 anca, Felis 30, 134, 156, 423
Lôbo 409 Mariquina 44. 50 (v. Sauí vermelho) Musa 25 Onça parda ("vermelha") 242, 258, 371.
loculator, Tantalus 77, 396 Marreca 221 Mus pyrrhorinos 403 423
locutrix, Columba 358, 430 Marreca viúva 92, 127, 131 , 228 Muscicapa 256, 366 Onça pintada 30, 134, 156, 241, 278, 353
loeflingi, Crotalus 398 Martim·pescador 120, 123 Muscicapa mastacalis 384, 385 376, 423
longimanus, Cerambyx 199 Martim-pescador de barriga côr-de-fer- Muscicapa rivularis 348 Onça preta 156, 168, 456
Lontra (veja Ariranha) rugem 187 Muscicapa rupestris 256 Onça vermelha (v. Onça parda)
Loricaria plecostomus 272 martinicensis, Gallinula 37, 341 Muscicapa tyrannus 406 Opetiorynchos turdinus 381
Loxia canadensis 385, 386 Maruim 39 Muscicapa vociferans 181, 358 orellana, Bixa 107. 289
Loxia crispa 394 mastacalis, Muscicapa 384 Mustela 197 Oriolus cayennensis 250
I
Loxia grossa 380, 386 Mateiro 76 muta, Lachesis 137, 186 Oriolus haemorrhous 277
Loxia lineola 394 Mauritia 276 Mutucas 132, 399 Oriolus jamacaii 401
ÍNDICE ALFABÉTICO 533
532 VIAGEM AO BRASIL

pelagica, Procellaria 10, 476 pileata, Fringilla 390, 394 Psidium pyrijerum 26, 122, 114
Oriolus persicus 252 Psittacus amazonicus 179, 220, 332, 420
Oriolus violaceus 45, 390 pelasgia, Hirundo 318 Pimenteira, 31, 331, 365
Pelecanus aquilus 16, 203, 211 Pindoba (côco de) 204 Psittacus arara una 83 ,
Ormosia coccinea 87 Psittacus cactorum 396, 444
ornata, Fringilla 413 Pelopaeus lunatus 78, 88 Pinna 337
peltata, Cecropia 146 Pintassilgo 404 Psittacus coronatus 43
ornatus, Trochilus 45 Psittacus cruentatus 45, 59, 380
orphoeus, Turdus 88 pendulus, Cactus 277 Piper 350
Penelope 257 Pipra 386 Psittacus cyanogaster 198
Ostrea 337 Psittacus dufresnianus 43, 154, 195, 250
Ouriço do mar 216, 223 Penelope cristata 451 Pipra caudata 430
Penelope leucoptera 110, 198, 267, 297 Pipra erythrocephala 144 Psittacus erythrogaster 59, 250
ovalis, Helix 78 Psittacus guianensis 44, 62
Paca 193, 198 Penelope marail 56, 152, 198, 242, 297 Pipra leucocilla 144
Penelope parraqua 212 Pipra pareola 144 Psittacus macao 83, 105, 157. 187
paca, Coelogenys 193, 198 Psittacus macavuanna 44, 77
Palmeira 39 penetrans, Pulex 90, 213, 380 Pipra strigilata 144
penicillatus, ]acchus 240, 340, 375 Piqui 67 Psittacus melanotus 207
Palamedea comuta 244, 254 Psittacus menstruus 135, 207
palmarum, Curculio 302 pentaporus, Echinus 231 Piranha (veja Caribes)
Perca punctata 331 Piririgua 100 Psittacus mitratus 198
palmarum, Tanagra 331 Psittacus ochrocephalus (v. Psittacus
Palmito (côco de) 158, 204 Perdix dentata 242 pitangua, Lanius 91
Perdix guianensis 188, 242, 243, 365 Pitangueira 122, 124, 303 amazonicus)
palustris, Bonnetia 86 Psittacus passerinus 250
palustris, Falco 91 Perdiz (veja Codorna) 95 Pissandó (v. Côco de guriri)
Periquitos 157. 366 Pita 492 (v. Agave foetida) Psittacus pulvurulentus 195, 458, 459
papa, Vultur 372 Psittacus severus 239, 241, 380
Papa-capim 396 Peroba 68, 174 Pitanga 122
persicus, Cassicus 252, 250, 349 pitangua, Lanius 40, 91 Psittacus squamosus 250
Papa-formigas 366 Psittacus vinaceus 420
Papa-môscas 256, 366, 384, 385 personatus, Callithrix 128, 157 Pitomba 67
pertusum, Dracontium 49, 355 Platalea ajaja 91 , 397, 400, 420 pulsatrix, Strix 269
Papa-ostras 87, 92, 134 Pteris caudata 395, 442
Papagaios 50, 320 Peruá 331 plecostomus, Loricaria 272
peruifemm, Myroxylon 316 plexippus, Papilio 441 Pteris paradoxa 379
Papagaio verdadeiro 420 Pulga 238
Papa-vento 369, 455 petasophorus, Trochilus 412 Plotus anhinga 92, 254, 341
Petraea volubilis 264 Plotus melanogaster 341 Pulex penetrans 90, 213, 380
Papilio (var- esp.) 440, 441 pulsatrix, Strix 269
Papilio 53 Phaeton aethereus 475 Plotus surinamensis 341
Phalaena agrippina 368, 388 Plumbago 211 pulvurulentus, Psittacus 195, 458, 459
pardalis, Felis 197, 424 punctata, Perca 331
pareola, Pipra 144 Phasianus garrulus 212 plumbeus, Coluber 79
phocaena, Delphinus 14, 476 plumbeus, Falco 86, 132 Putumuju 68
Parra jacana 45, 52, 274, 341 pyriferum, Psidium 26, 122, 414
parraqua, Penelope 212 Phoenix dactylifera 71 Plumeria obovata 453
Pholas 337 Pocassu (v. Caçaroba) pyrrhorinos, Mus 403
Passarão 77, 396 Pyrrhula misya 394
Pássaro prêto 25J phylicoides, Evolvulus 86 Podiceps 341
Polygonum 70 Queixada (porco) 156, 197, 243, 254, 300
passerinus, Psittacus 250 Phyllanthus 277
Phyl!ostoma (v. Phyllostomus) 53 Pomba amargosa 358, 430 Quem-quem 373, 452
Passiflora 57, 350, 354, 402 Quero-quero 45, 61, 76. 89, 420
Patella 337 Phyllostomus 53, 451 Pomba espelho 249
Phyllostomus maximus 451 Pomba trocaz 188 Quiruá (veja Crejoá)
Pati (v. Côco de pati)
Phyllostomus spectrum 218, 239 Pomba verdadeira 188 Rãs 155, 353
Pato almiscarado 43, 127, 157, 198, 242,
Physalia 15, 18, 476 Pombalia ipecacuanha 68 Rabo de junco 475
244 racemosa, Conocarpus 72, 123, 169, 179,
Pato de crista 400 Physalis (veja Physalia) Pontederia 121, 274
Pato do mato 43, 127, 157, 198, 242, 244 Piabanha 192, 250, 365 Porco espinho 144 220
Piaçaba (v. Côco de piaçaba) Posoqueria 336 Ramphastos aracari 56, 80, 349, 387
Pau-brasil 57, 66 Ramphastos dicolorus 48, 185, 291 , 387
Pau d'arco 286 Piaçoca 45, 52, 274 Potamogeton tenuifolius 450
Piau de capim 171 Pothos 459 Ramphastos toco, 412, 413
Pau de embira 285
Picapara (v. Peca-para) Preá 382 rangiferinus, Lichen 218
Pau de estôpa 283, 285
Picapau 366 Preguiça comum 183 Rapôsa 428
Pau-de-jangada 333
Picapau branco 129, Preguiça de coleira 66 Remirea littoralis 169, 210
Pau de leite 389
Paullinia 150, 350 Pica-pau do campo 399 Pristis serra 157, 250 Rhea americana 410
Pavó 59, 138 picatus, Lanius 429 Prionus cervicornis 302 Rhexia 40, 52, 274, 350
Pavoncinho (veja "Quero-quero") 45, 61 Picus 366 Procelaria 230 Rhizophora 25, 72, 220, 230
Picus flavescens 59, 138 Procellaria pe.lagica 14, 476 Rhynchops nigra 152, 157, 237
Peca-para 341
Pecari 37 Picus campestris 399 Procnias (veja Araponga) Ricinus 31 , 152
pedunculata, Eugenia 122, 124 Picus lineatus 59 Procnias melanocephalus 131 ridibundus, Larus 46, 55
Picus melanopterus 129 Procnias nudicollis 44, 45, 50, 76, 79, 388 ringens, Aristolochia 453
Pêga 241
Picus robustus 59, 138 Procnias cyanotropus 145 rivularis, Muscicapa 348
Peixe-boi (veja "manati") 150, 171
pileata, Ardea 127 Procyon 409 Robalo 192, 250
pelagica, Medusa 16, 278, 476
534 VIAGEM AO BRASIL ÍNDICE ALFABÉTICO 535
robustus, Cebus 197 Socó-boi 342 Tamareira 71 Tié-piranga 47, 57, 131, 244, 253
robustus, Picus 59, 138 Sofrê 401 Tanachura (v. Tanajura) Tigre 166
Rôla 249 Solanum 367 Tanagra 37 tigrina, Felis 198
rosalia, Simia 44, 50, 71 Sophora 124, 210 Tanagra auricapilla 430 Tillandsia 44, 252. 277, 359, 384
rosea, Vinca 211, 213 Sovi 86, 132 Tanagra bonariensis 45, 390, 403 Tinamus 291, 350
ruber, Tantalus 92 speciosa, Columba 188 Tanagra brasilia 38, 52, 133, 253, 386 Tinamus brasiliensis 193, 198, 302, 364,
rufifrons, Anabates 402 spectrum, Phyllostomus 218, 239 Tanagra brasiliensis 386 371, 379
rufina, Columba 225, 249 spiza, Nectarinia 207 Tanagra capistrata 404 Tinamus maculosus 95
rufiventris, Turdus 53, 210 splendens, Salvia 39 Tanagra cayennensis 386 Tinamus noctivagus 125, 134, 136, 354,
rupestris, Cavia 394 Spondias tuberosa 337 Tanagra elegans 144 366, 379. 388
rupestris, Muscicapa 256 Spondylus 337 Tanagra guyanensis 386 Tinamus variegatus 198, 364
Sabacu 342 Squalus 250, 331 Tanagra magna 386 Tingui 150
Sabiá-cica 198 squamosa, Columba 390, 444 Tanagra palmarum 331 Tiriba 45, 59, 380
Sabiá-da-praia 88 squamosus, Pisittacus 250 Tanagra silens 381, 386 toco, Ramphastos 412, 413
Sabiá-laranjeira 53, 210 Stachytapherta 88 Tanagra violacea 32 Todus 100, 148
Sabiá-do-mato-virgem (v. Sebastião) stellaris, Ardea 412 Tanajura 47 tomentosa, Avicennia 179
Sagui (veja Sauim) Stellio torquatus 88, 380 Tangará 430 torquatus, Bradypus 66
Saí 207 Stentor 71 Tantalus albicolis 397, 400, 420 torquatus, Stellio 88, 380
Saí-açu 128, 157 Sterna 46. 134, 240· Tantalus cayennensis 343, 382 torrida, Loxia 394
Saíra 144 Sterna argentea 55 Tantalus loculator 77, 396 Traíra 192, 365
Salix babilonica 468 Sterna caspia 55 Tantalus ruber 92 trichas, Sylvia 222
Salmo friderici 465 Sterna flavirostris 239 Tapera naevia 85 tridactylus, Bradypus 183
Salsa da praia 210 Sterna hirundo 55 Tapicuru (ave) 92 Trigla gurnardus 14
Salvia 39, 351 Sterna minuta 55 Tapicuru verde (v. Ibis verde) Trigonocephalus 186
Salvia splendens 39 Sterna stolida 16 Tapicuru (árvore) 257 Tringa 134
Samambaia 94, 395, 442 stolida, Sterna 16 Tapiireté (v. Anta) trochilirostris, Dendrocolaptes 376
Sangue de boi (veja Tié-piranga) Strelitzia 42 Tapirus 249, 256, 383 Trochilus ater 269, 372
Sanhaço de coqueiro 331 strigilata, Pipra 144 Tapirus americanus 30, 129, 175, 197, 258, Tmchilus bicolor 53
Sapo cururu 44, 450 Strix aluco 85 266 Trochilus cornutus 412
Sapos 370 Strix cunicularia 413 Tapiti 40 Trochilus mango 241
Sapo-marinheiro 275 Strix ferruginea 36, 87, 188 Taquaruçu 81, 110, 384 Trochilus moschitus 395
Sapucaia 12, 82, 101, 257 Strix flammea 467 Tartarugas 211 , 234, 151 Trochilus ornatus 40
sapphirinus, Trochilus 39 Strix pulsatrix 269 Tartaruga "de pente" 167, 335 Trochilus petasophorus 412
Sauim 144, 244, 340 Strombus 337 Tartaruga de concha mole 167 Trochilus sapphirinus 39
Sauim cinzento 241, 341, 375, 467 Subideira (v. Arapaçu) Tartarugas de água doce 238, 340 T rochus 337
Sauim prêto 356 366, 373, 375 Suçuapara 408 Tartarugas do mar 167, 328, 335 Trogon 58, 387
Sauim vermelho 44, 50, 71 , 80 Suçuarana (v. Onça parda) Tatu-açu (v. Tatu canastra) Trogon viridis 79, 158
Scarabaeus hercules 166 Suiriris 404 Tatu canastra 268, 292, 364 Tropeiro (v. Sebastião)
Schinus molle 230 Sula 474 Tatu-peba 122 Tsiu 145, 390, 394
Sciurus aestuans 45 Sucuriuba 265, 301 Tatu verdadeiro 193, 198 tuberosa, Spondias 436
sclerops, Crocodilus 120, 301 , 358, 419 Sucurupora 250 teguixin, Lacerta 51, 125, 374, 454 Tucanos 48, 185, 291 , 387
Scomber 331 Suindara 467 Teiú 51. 125, 374, 453 Tucano grande 412, 413
Sebastião 181, 358 Sula leucogaster 70 Tellina 337 Tucúm 82
Sepepira 68 surinamensis, Plotus 341 tenebrosus, Cuculus 83 Tuidara (v. Suindara)
Sergueira 67, Surucuá 58, 79, 158, 387 tenella, Caulinia 432 Tuiuiú (v. Jaburu)
Seriema 411, 420 Surubim 250 tenuifolius, Potamogeton 450 Turbo 337
serra, Pristis 157, 250 Surucucu 137, 186 Térmitas (v. Cupim) turdinus, Opetiorynchos 381
Serrador (v. Fringilla ?iitens) Sy lvia 380 Tesoura (pássaro) 406 Turdus brasiliensis 341 , 381
severus, Psittacus 239, 241 , 380 Sylvia trichas 222 Testudo caretta 167, 335 Turdus figulus 413
Sida carpinifolia 95 Tabuiaiá (v. Cegonha) Testudo coriacea 167 Turdus orphoeus 88
silens, Tanagra 381 tabulata, Testudo 199, 359 Testudo depressa 340 Turdus rufiventris 53, 210
siliquastrum, Gereis 482 Tagetes 443 Testudo mydas 167, 328 Turnera ulmifolia 89
Silurus 46, 259, 331 Talha-mar 152, 157, 237 Testudo tabulata 199, 359 tyrannus, Falco 266
Simia fatuellus 65, 71 Tamanduá bandeira 30, 166, 197, 301, Theobroma 32 tyrannus, Muscicapa 406
Simia jacchus 241, 467 399, 409 Tico-tico 394 Ubá 135, 231, 237, 240, 297
Simia rosalia 44, 50, 71, 80 Tamanduá-cavalo (v. Tamanduá ban- Tico-tico rei 390 Ulex 21
Siri 72, 230, 277 deira) Tié (v. Tié-piranga) ulmifolia, Turnera 89
536 VIAGEM AO BRASIL

uniflora, Cassia 86 Vespertilio naso 188


urens, ]atropha 133, 316, 371 vetula, Balistes 331
Uricana 195, 336 viduata, Anas 92, 127, 131, 228, 420
ursinus, Mycetes 51, 71, 128, 157, 383 vinaceus, Psittacus 420
Ursus cancrivorus 409 Vinca 1·osea 211, 213
Urtica 133, 316 Vinhático 339
Urtiga 316 Violacea, Hirundo 157
Uru (veja Capueira) 185 violacea, Tanagra 32
Urubu (comum) 228 violaceus, Oriolus 45, 390, 403
Urubu de cabeça vermelha 46, 86, 244 Vipera atrox 193
Urubu-rei 372 Vira-bosta 45, 390, 403, 420
Urucu 107, 289 virescens, Ardea 342
Urutau (veja "Mãe-da-lua") virgata, Anas 241
Vaga-lumes 85, 185, 353, 354 virgata, V erbena 454
Vampiro 218, 239, 451 viridis, Anolis 369
Vanellus cayennensis 45, 61, 76, 89, 420 viridis, Trogon 58, 79, 158
variegata, Echites 86 Vismia 350
variegatus. Tinamus 198, 364 Visnea 274
Veado campeiro 408 vociferans, Muscicapa 181, 358
Veado catingueiro (v. Guaçubirá) volubilis, Petrea 264
Veado galheiro (v.Guaçupucu) Voluta 337
Veado mateiro (v. Guaçu-pitá) Vultur aura 46, 86
ventricosa, Bombax 223, 260, 286, 365 Vultur papa 372
Venus 337 Wikstroemia fruticosa 87
venustissimus, Coluber 330 xanthosternus, Cebus 273, 368, 372, 378
Verbena virgata 454 yaguaroundi, Felis 198
versicolor, Coluber 364 Zabelê (v. Juó)
(Série Grande Formato)
Dúeçilo d6
AMÉRICO JACOBINA LACOMBE

A StRIB "BRABILIANA" que, lançada bA poaoo


mais de .20 an~, está quase no trecentésfmo volume,
é a maiOr, maiS vasta e mais completa bibllot-
de estudos brasileiros. O êxito iovulgar que d e v -
à simpatia com que o público acolheu essa loíclativa
e ao apoio franco e generoso que nos trowreram a.
aplausos . de uns e a colaboraQio valiosa de outnll,
nos animou a amgllar o plano primitivo, criando na
série "BRASILIANA uma seção especial de obras em
grande formato.
A experiência nos havia mostrado a inconvenl6ncla
de publicar, no formato regular dos livros dessa cole-
ção, certas obras que, pelo número e pela impor-
tância das gravuras, ser1am sacrificadas em volumes
de menores dimensões. Dai a resolução qae tomamoa
de publicar em volumes de formato maior essas obras.
que exigem, pela sua natureza, melhor ap1esentaçlo
material, difícil e, em certos casos, impossível de 1e
obter em volumes de proporções redundas.
VOLU.MES PUBLICADOS:
Vol. 1 - MAXIMILIANo- Príncipe de Wied Neuwied:
Viagem ao Brasil - Tradução de Edgard Süsseldnd
de Mendonça e Flávio Pope de Figueiredo - Refun-
dida e anotada por Oliverio Pinto. Edição ilustrada.
Vol. 2 - Dr. M.u ScHMIDT: Estudo• d6 Etnologlo
Bra.tileira. Peripécias de uma viagem entre 19"00
e 1901. Seus resultados etnológicos. Tradução direta
do alemão de Catarina Baratz Canabrava. Uustrado.
Vol. 3 - KARL voN DEN STEIN: O BrtUII Cenh"al
- Expedição em 1884 para exploraçllo do Rio Xingo.
Traduç!lo e notas de Catarina Baratz Canabrava.
Dustrado.
Voi. 4 - Padre ANTÔNIO CoLBACCHINI: 0• BororOI
Orientais (Orarimugadoge) - Cootribuiçllo da Mil-
são Salesiana de Mato Grosso ao estudo de Etno-
grafia Brasileira. Edição profusamente ilustrada.
Vol. 5 - PAUL LE COINTE: 0 Estado do Pará - a
terra, o ar e a água. E~tudo da fauna, flora e
minerais. Ilustrado.
Vol. 6 - GASTÃO CRULs: Hiléia Amazllnica. Ediçllo
ilustrada.
Vol. 7 - J. F. DE ALMEIDA PRADo: Tom01 Endsr.
Pintor austríaco na Côrte de D. João VI DO Rio
de Janeiro. Ilustrado.
Vol. 8 - MARIA GRAHAM: Diário de Uma Viagem
ao Brasil, e de uma estada nesse país durante parte
dos anos de 1821, 1822 e 1823. Trnduçilo e notas
de Américo Jacobina Lacombe. Dustrado.
Vol. 9 - LYCURGO SANTOS FILHO - Uma Comuni-
dade Rural do Brasil Antigo (aspectos da vida pa-
triarcal no Sertão da Bahia nos Séculos XVlll e
XIX). Dustrado.
Vol. 10 - ROBERTO C. SIMONSEN - Hist6ria Econ6-
mlca do Brasil. Nova ediçlio. Ilustrado.
Vol. 11 - Jod HoNóruo RonruGUEs - Teoria da
História do BrasU. Nova ediçlio revista. Uustrado.
Vol. 12 - R.AnroNDo MAGALHÃES JómoR - Deodoro,
a espada contra o Império. Em dois volumes
ilustrados.
Vol. 13 - CARLOS fuzziNI - Hip61ito da Cos!<J ti
o Correio Braziliense. Estudo biográfico do patriarca
da imprensa brasileira. Edição ilustrada.
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aspecto Político - Social - Econômico), por Lula
Amaral.
A Cidade de Silo Paulo (estudos de Geografia Ur-
bana). Direção do Prof. Amido de Azevedo.
Edição profusamente ilustrada.
Grande Geografia do Brasil. Organizada por ge6p-
fos brasileiros, sob a direçllo do Prof. Aroldo de
Azevedo.
Grande H ist6ria do Brasil. Organizada por historia-
dores nacionais, sob a direçilo do Prof. Amérioo
Jacobina Lacombe.

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Edições da
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639 - São Paulo

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