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:ntura urbana
aime lerner

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Acupuntura urbana
Jaime Lerner

Acupuntura
urbana

EDITORA RECORO
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO

2003
Em alguns casos, as intervenções se dão mais
por necessidade que por desejo, para recuperar fe-
ridas que o próprio home~ produziu na nature-
za, como as pedreiras. Com o tempo, estas feridas
criaram uma outra paisagem. O aproveitamento
destas paisagens e das correções do que o homem
havia feito de errado é acupuntura de excelentes
resultados. Um exemplo claro, ótimo, é a Ópera de
Arame, em Curitiba. Ou ainda a retirada da free-
way em São Francisco.
Aliás, os sistemas de transporte geraram boas
acupunturas urbanas pelo mundo. Elas estão pre-
sentes nas belas entradas das seculares estações
do metrô de Paris, nas estações de Norman Foster,
em Bilbao, e nos tubos do Sistema Expresso, em
Curitiba.

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Smart car, smart bus

Muitas são as discussões sobre o transporte do fu-


turo. A discussão maior é centrada no automóvel
do futuro, e as feiras do automóvel são cada vez
mais avançadas. Vi, há uns três anos, uma exposi-
ção no MoMA que procurava explorar o aspecto
de tecnologia e do desenho do carro do futuro.
Mas o verdadeiro smart car ainda não apare-
ceu. Quando ele é avançado no design não é avan-
çado no "engine". E os carros que têm um motor
evoluído, híbrido em relação às várias possibili-
dades de energia, não são avançados no design.
E mais, os que são adequados à cidade, menores,
com baixa velocidade, não o são em relação à es-
trada. Ora, se há necessidade de dois carros, por
que não pensar os dois num carro só, carro+bike,
ou ainda um carro de estrada que tenha um carro
urbano no porta-malas.
O smart bus já existe. Éaquele que tem algu-
mas condições essenciais. Pista exclusiva (não ne-

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cessariamente pintada, mas um espaço próprio)
freqüência máxima na operação. Embarque e de~
sembarque no mesmo nível, com pagamento da
tarifa antes de entrar no ônibus e linhas diretas
intercaladas.
Não tenho dúvidas de que o transporte do fu-
turo é o de superfície. Mais rápido de implantar,
custo até 100 vezes menor por quilômetro, e que
pode ser perfeitamente integrado às linhas de me-
trô existentes. O caminho é dar ao ônibus a mes-
ma (ou melhor) performance que um metrô, ou
seja, "metronizar a superfície': ,
A smart bike também j~ temos. E a que não
se mistura com o tráfego normal, nem atrapalha
a calçada. É a bicicleta em seu próprio caminho,
ao longo dos rios, canais, traçados ferroviários.
Mas será uma smart bike se for possível utilizá-la
como um guarda-chuva: abrir e usar quando ne-
cessário.
O smart taxi é o que menos concorre com o
ônibus e o metrô. fé o que dá mais alternativa ao
cidadão. Isso significa que ele não poderia com-
petir com os outros meios de transporte. O smart
taxi é o que alimenta o transporte público, entre-
gando
, .
o passageiro
. no ponto do sistema mais
prox,mo, evitando a procura do mesmo espaço e
do mesmo itinerário. Para ser alimentado, ele terá

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,. . .
Oc10 cr1at1vo
X
mediocridade laboriosa

Épossível fazer as coisas certas antes das coisas er-


radas? Segundo um principio universalmente con-
sagrado, a mediocridade laboriosa às vezes ganha
da criatividade preguiçosa. Porque, para quem não
se questiona, para quem não exerce constante-
mente a autocrítica dos seus atos, sempre é mais
fácil executar idéias recebidas.
A mediocridade laboriosa, os vendedores de
complexidade, os acumuladores de dados desne-
cessários e as pesquisas infindáveis e não-conclu-
sivas ganham cada vez mais espaço. Mas, às vezes,
apenas um gesto criativo é uma acupuntura tão
poderosa que faz avançar.
Quando estávamos implantando em Curitiba
uma das melhorias importantes de seu sistema de
transporte, era imperioso conseguir-se o embar-
que no mesmo nível. A primeira batalha era con-
seguir fazer um ônibus biarticulado, um ônibus
com grande capacidade. Tínhamos que convencer

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os fabricantes de chassis que isso era .
que haveria mercado para isso. Passivei, e
Consegui com o Karlos Rischbieter, ex-m·1 .
n1stro
da Fazenda e ex-membro do Conselho da Volv
uma reunião com a diretoria da Volvo, em Got o,
ern..
burgo, Suécia. Montamos um estudo que fazia
uma avaliação das cidades que teriam necessidade
de soluções de superfície e um estudo de viabifi..
dade técnica para mostrar como isso poderia fun-
cionar em Curitiba.
Qual não foi nossa surpresa ao vermos que uma
poderosa estrutura como aquela não tinha mais
que uma pasta de recortes de jornais sobre trans-
porte de massa. Foi uma vergonha para eles. Tanta
vergonha tiveram que, dois meses depois, o vice-
presidente veio ao Brasil comunicar-me que esta-
vam dispostos a começar a desenvolver o chassi
em Curitiba, on-line com a equipe de Gotemburgo.
Desenvolvido o chassi, o teste era feito de ma-
drugada para ver se funcionaria com aquele com-
primento nas nossas ruas e canaletas exclusivas
para ônibus. O biarticulado era um baita ônibus;
carregava 270 suecos {e 300 brasileiros). Foi uma
grande vitória.
Mas o importante também era conseguir agili-
dade no pagamento da passagem e no embarque.

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para isso, era indispensável que o passageiro pa-
e antes de entrar no ônibus e que o embarque
gass
e desse no mesmo nível da plataforma. o paga-
s 1 •
n,ento foi facilmente reso v1do, com uma catraca
na entrada da estação-tubo. Já a operação de em-
barque também tinha que ser perfeita, para man-
ter a agilidade e evitar acidentes. Portanto, era es-
sencial um impecável encaixe entre ônibus e tubo.
o número de soluções complexas e caras que
tentaram nos vender foi grande. Uma delas era fa-
zer a aproximação do ônibus ao tubo de embarque
por meio eletrônico. Todas as soluções que nos
apresentavam eram extremamente caras. Tão caras
quanto o custo da própria frota.
Até que o arquiteto Carlos Ceneviva chamou o
motorista que era o chefe de operações, Roberto
Nogari, e perguntou se ele seria capaz de encostar
o ônibus na estação tubo com a porta exatamente
na plataforma de embarque. O motorista não ti-
tubeou e encostou perfeitamente.
Ceneviva perguntou se ele e os demais motoris-
tas eram capazes de repetir sempre aquela ope-
ração com a mesma precisão. O motorista deu a
solução de imediato. Um pequeno risco feito no
vidro do ônibus e outro pequeno risco na estação-
tubo. Quando os dois coincidiam, estava feita a

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operação, com perfeição, agilidade e segura
. . ~ . nça
para os passageiros. 0 sistema ,unc1ona há ll an
, .d
e nunca houve um so ac1 ente.
os
Foi uma acupuntura criativa e uma grande vi-
tória sobre a mediocridade laboriosa.

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