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LUTO E CLÍNICA PSICOLÓGICA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE UMA

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Autor: Túlio Luiz Santos Pereira Henriques


Orientadora: Dra. Ellen Fernanda Gomes da Silva

INTRODUÇÃO

O fazer clínico contemporâneo no âmbito da psicologia tem sido marcado pela


complexificação das demandas, fundamentada por rupturas existenciais demarcadas, por
exemplo, pela morte. Através do presente texto, temos como objetivo refletir sobre
essas rupturas, especificamente as que sejam permeadas pela problemática do luto e
aparecem como demanda na clínica psicológica. A significação da perda contada em
fases por Colin Murray Parkes (1998) nos situará o olhar ao mundo vivido – lebenswelt
– da paciente por nós atendida, mas este recurso não visa engendrar a situação clínica
por nós proposta em uma pretensa teoria do luto, e sim contextualizá-la nas reflexões
aqui presentes. Para tanto, lançaremos mão de um diário de bordo escrito por nós em
consequência à atendimentos feitos em uma clínica-escola para cumprimento de estágio
curricular.
Pretendemos também articular as nossas vivências nesse período com
compreensões pertinentes à prática clínica humanista-fenomenológica, bem como
emprestar à terapêutica do luto um fazer para além da técnica.
Virgínia Moreira (2013), precursora desta possibilidade compreensiva, sinaliza
em linhas gerais tal prática:
o que tenho nomeado como psicoterapia humanista-fenomenológica é um
desenvolvimento contemporâneo da terapia centrada na pessoa, originado na
interseção de duas grandes escolas de pensamento: a psicologia humanista,
que apareceu nos Estados Unidos no fim da primeira metade do séc. XX,
com expoentes como Carl Rogers, Rollo May, Fritz Perls, Abraham Maslow
e outros; e a tradição da psicopatologia fenomenológica, representada por
pensadores como Ludwig Binswanger, Eugene Minkowsi e Arthur Tatossian,
entre outros. Do ponto de vista filosófico, esta psicoterapia humanista-
fenomenológica tem suas bases na fenomenologia de Maurice Merleau-
Ponty. (2011, pag. 36)
Uma prática clínica que parte de tal fundamentação transita desde um olhar para
além da pessoa (subvertendo a ideia de pessoa interna, antropocêntrica, à ideia de
pessoa em mútua constituição com o mundo, conforme Merleau-Ponty), passando pelo
redimensionamento do conceito rogeriano de tendência atualizante – aqui reconhecida
como tendência atualizante mundana, oriunda da dialética circular merleau-pontyana,
“enquanto uma dialética sem síntese, que nunca se fecha em uma tese, que está sempre
em movimento” (Moreira, 2013. Pag 45-46), até a necessidade de aprofundamento da
reflexão sobre as atitudes facilitadoras para um processo de mudança construtiva da
personalidade que ainda seriam condições necessárias, mas que para algumas situações
clínicas não raras, situações estas mais profundamente estruturais, não seriam mais
suficientes.
Nesse sentido, a prática clínica humanista-fenomenológica nos indica processos
interventivos ou possibilidades compreensivas da relação psicoterapeuta-cliente-mundo,
que acrescentam à prática essencialmente humanista em psicoterapia o que Moreira
(2013) chama de atitudes críticas facilitadoras para aprofundar o processo terapêutico,
quais sejam:
1. Descrição: trata-se de um retorno à essência do vivido, ao significado anterior
da experiência imediata que, segundo Amatuzzi (2016, pag. 62) não se encerra em um
fato, mas, antes e sobretudo, em uma possibilidade compreensiva. Em síntese, a busca
desse significado anterior e ao mesmo tempo imanente da existência desencadeará a
expressão de significados outros, em um continuum, em direção à complexidade;
2. Fala primária: o significado anterior da experiência imediata ou Lebenswelt
(mundo vivido) se manifesta através do surgimento da fala primária ou “fala autêntica”.
Este é o caráter intencional da psicoterapia que, em meio aos atravessamentos
intersubjetivos oriundos de tal insurgência, se explicita na aparição do inusitado, do
inesperado e, assim, dentro do contexto da originariedade de tal fala, abre-se luz sobre
um processo transformador e construtivo para a pessoa.
3. Ver e Ouvir fenomenologicamente: o sentido de ver e ouvir
fenomenologicamente se constitui de um caráter estritamente compreensivo. Significa
ver o que subjaz à fala, e desta ao silêncio, e o que está por trás do silêncio, e deste à
fala. Ou seja, ver o invisível contido em todo revelado e o visível no que é inamostrado,
sendo este o que ainda está por se desvelar ou que já tenha ganhado presença na
narrativa do cliente. Para Amatuzzi(1990) ouvir não é um ato de inteligência ou do
pensamento, mas uma participação existencial em um movimento de gestação ou parto
no plano do sentido.
4. Redução fenomenológica: para que uma relação se dê, de modo que esta se
explicite para além de uma técnica, importa que a sua natureza repouse em uma atitude
que demarque um parêntese em todos os significados a priori que me constituem
enquanto psicoterapeuta, para que haja um encontro existencial de pessoa para pessoa.
Ainda que a redução fenomenológica não se complete, conquanto assevera Merleau-
Ponty, cumpre que tentemos dá-la aspecto de aproximação, visto que seja uma
impossibilidade nos vislumbrarmos como entes dissociados do mundo.
5. Intuição eidética: é a busca sempre intuitiva e nunca encerrada em si mesma
do significado da experiência do outro enquanto outro em seu mundo vivido
(Lebenswelt). Tal significação perfaz o enlace intersubjetivo dos mundos vividos do
cliente e do psicoterapêuta (Moreira, 2013. pág. 47)
A partir destas considerações introdutórias intentamos discutir a experiência
clínica junto a Lúcia, dentro de uma compreensão humanista-fenomenológica. Com
isso, buscamos refletir as significações do luto, da morte e do morrer em psicoterapia,
através de um olhar que atravesse a terapêutica do luto e encontre o outro enquanto
possibilidade de ser na existência, na compreensão do significado do seu lebenswelt ou
mundo vivido.

1. DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA CLÍNICA

1
Lúcia chega à clínica-escola em busca de ajuda devido aos recentes
acontecimentos da sua vida que a levaram a um quadro de intenso sofrimento. Suas
expressões são vazias, seu olhar disposto ao longe e a sua aparência parece cansada.
Lúcia queixa-se de que sua vida “perdeu o sentido” depois do suicídio do seu marido,
fato este ocorrido há algumas semanas. Diz que procura um profissional de psicologia
porque “não sabe o que fazer” e deseja dá um sentido ao seu sofrimento ou mesmo uma
direção para poder suportar a dor que emerge e seguir, dessa forma, a sua vida.

1
Nome fictício para preservação da identidade da pessoa real, conforme código de ética do
psicólogo.
Lúcia nos relata que é fruto de um relacionamento adolescente e que sua mãe foi
expulsa de casa pela sua avó logo após a comunicação da notícia de que estava grávida.
A sua infância, em primeiro momento, não é um ponto constante em sua fala e tão logo
pudemos depreender que a sua mãe teve uma gravidez complicada. Nos encontros
subsequentes revela que sua mãe transferiu a responsabilidade de sua criação a outras
pessoas. Tinha um relacionamento difícil com sua mãe de criação e este era mais um
ponto relevante de sua narrativa, de modo que decidiu sair de casa cedo e foi morar com
a avó. Em contrapartida, a relação de afeto mútuo com o seu pai de criação é algo que
deve ser também salientado e que a revigorava na seara difícil de sua existência até
então.
A primeira grande experiência de sofrimento de sua infância gira em torno de
uma “visão de algo que se mexia no telhado e posteriormente na janela”. Por isso não
consegue dormir sozinha e tem bastante dificuldade até hoje para tal. Conhece seu
falecido marido no encontro de jovens da igreja católica, pessoa com quem estabelece
um vínculo com muita cumplicidade. Tem o seu primeiro filho depois de alguns anos,
motivo de muita alegria e realização enquanto pessoa. “Quando tudo parecia bem”, dá-
se outra significativa experiência em sua vida: seu pai de criação vem a falecer. Passa
por dias difíceis, mas com a ajuda primordial do seu companheiro consegue se
reestabelecer. Tinha uma vida que chamou de “tranquila”, com percalços corriqueiros
de uma vida a dois. Faziam planos de vida e de morte, tiveram seus filhos no percurso
natural das coisas, visitavam os amigos e família raras as vezes, pois seu marido
trabalhava muito e o convívio ia se tornando cada vez mais reduzido.
O envolvimento do seu companheiro com o trabalho era notável, tanto que Lúcia
supõe que um acontecimento relacionado ao mesmo, fato de “muita humilhação”, foi
fundamental para que ele desencadeasse o ato de suicídio, acontecimento que
caracteriza mais um grande episódio de dor profunda na sua existência. Ela descreve a
experiência da morte do seu marido com riqueza de detalhes, desde o ambiente na
fatídica noite, até os sentimentos que ora experimentava. Desde então vive “sem
sentido” e procurou o serviço de psicologia para “saber o que fazer” em meio às
consequências desta tragédia. Teve dificuldade inicial relacionada ao sono, pois não
conseguia dormir sozinha. Dificuldades essas que geraram desconfortos com alguns
amigos e parentes que se dispuseram a ajudá-la nesse sentido.
2. INTERVENÇÕES HUMANISTAS-FENOMENOLÓGICAS A PARTIR DOS
DIÁRIOS DE BORDO

As sessões seguintes seguiram-se após atendimento no plantão psicológico da


clínica-escola. O atendimento inicial, via plantão, também foi feito por nós e a pedidos
da cliente nós a acompanhamos no processo de psicoterapia. As situações clínicas aqui
relatadas se darão em primeira pessoa para que prezemos a pessoalidade dos encontros e
para que mantenhamos o viés fenomenológico das narrativas, bem como de suas
respectivas análises.

1ª SESSÃO: Nesse encontro a paciente chorou e narrou acerca da saudade que


tem do seu marido e o desejo de "ir embora", de estar junto a ele mais uma vez onde ele
estivesse. Quando a indaguei sobre tal sentimento, afirma que não deseja se matar,
visto os seus filhos serem parte importante de seu caminho e eles só tinham a ela para
recorrer, mas que queria estar perto do seu marido. Ela intercala o assombro com a
morte dele com outros momentos de sofrimento em sua infância, também relacionados
à problemática da morte e do morrer. A morte permeia o seu discurso até o final da
sessão, quer seja no que diz respeito à morte do outro, quer seja no que se refere a
morte de si (quando nos fala de uma espécie de fechamento de possibilidades de viver a
vida, algo que ela liga à falta de sentido).

Ao tentar se aproximar da experiência de Lúcia, de seu mundo vivido, muitos


sentimentos ainda me acometeram e todos eles emergiram do fato do estranhamento ao
problema da morte e do morrer. A sua dor, de fato, me encontrava, de modo que o
trânsito entre a minha atitude natural e a minha atitude fenomenológica, através da
redução fenomenológica, ganhava alguns contornos de inquietação. Por outro lado,
perceber a minha inquietação ao longo do encontro paradoxalmente me deixava mais
sereno, visto que fui percebendo a minha disposição para sentir-com a minha cliente e
isto, por isso mesmo, me exigia abertura frente ao inesperado.
Merleau-Ponty(2011) nos assinala que a redução fenomenológica nunca se
completa e a sua não completude é também o seu maior ensinamento, o que, de certo
modo, nos suscita a compreensão de que distanciar-se do nosso mundo vivido também
significa a atitude para considerá-lo, na medida em que testemunhamos o outro em sua
narrativa, nas emanações de seu sofrimento. É o ato de ouvir que nos abre para o mundo
e para o outro (Amatuzzi, 1990) e nesse momento a possibilidade derradeira de ouvi-la,
de confirmá-la enquanto outro, caminhando com ela em seu mundo vivido, deixando
que o silêncio – manifestação de minha aceitação incondicional perante a sua dor e,
antes e sobretudo, à sua existência – foi o que nos guiou na coexistência de nossos
lebensweltens. Percebi de igual modo que Lúcia manteve-se em alerta durante todo o
encontro denotando um estado de crise conforme Parkes (1998), fato que oferece ao
indivíduo a oportunidade e a obrigação de abandonar velhas concepções sobre o mundo
e, assim, descobrir novas. A tragédia a colocara em um lugar novo de relação com o
mundo e a convidou a visitar antigas dores presentificada alí em silêncio e palavra.

2ª SESSÃO: Lúcia chega à sessão neste dia com um aspecto mais sereno em
relação aos primeiros encontros. Consegue falar dos acontecimentos de sua semana de
maneira mais articulada, mesmo que em alguns momentos se refira ao seu ex-marido,
bem como ao seu pai de criação e a emoção interrompesse as suas palavras por
momentos marcados por silêncios mais ou menos longos. Eram eles, pelas suas
palavras, duas partes que a faltavam. Remetemo-nos, portanto, ao fato de o sentimento
de “ir embora” ter significações mais profundas e abrangentes que propriamente o fato
de ir ao encontro do seu marido onde quer que ele estivesse, pois o sentimento de morte
(o que não quer dizer necessariamente “vontade de morrer”, mas a essência mesma da
perda e os seus desdobramentos na relação com o seu ex-marido e, assim, nas relações
outras de sua vida) a acompanha desde a infância. Com o prosseguimento da sessão
nos traz um fato novo: ainda hoje chupa dedo quando está ansiosa ou com medo de
algo ou simplesmente triste. Adverte, entretanto, que não se trata de algo intencional:
“quando percebo, já estou com o dedo na boca”. Logo após este relato, fala um pouco
da sua infância sofrida, permeada pela falta do carinho da mãe. Meus pensamentos
borbulhavam e as minhas intuições procuravam “ligar uma coisa à outra”, mesmo que
me esforçasse para apenas ouvi-la e à possibilidade estar junto a ela naquela
experiência...
Penso que o discurso amoroso da minha cliente, ao narrar a importância de seus
entes queridos expressa, pouco a pouco, a sua experiência frente ao luto. Havia nessa
sessão um dizer fundante de sentidos e significados, desvelador de vivencias
fenomenologicamente (e não cronologicamente) pretéritas que demonstram nesse
discurso amoroso, o sentido mais original ou, no dizer de Amatuzzi (1989), mais
autêntico do discurso. O testemunho desse fato, evidenciado por uma comunicação
total, desde suas imanencias pré-verbais até o que se revela interventivamente no âmbito
verbal, cumpre o que para Merleau-Ponty (2011, PAG. 35) seria uma “tomada de
posição no mundo das significações”. De outro modo, exteriorizar as personagens
principais que figuram em suas experiências de perda e sofrimento como partes
primordiais de si, como “partes que faltam”, nos apontam uma outra possibilidade de
compreensão. A minha presença emprestada ao acolhimento da narrativa de sua
experiência a possibilitava entrar em contato com experiências outras e a se sentir aberta
à divisão do fardo.
Segundo Moreira (2013, pág. 6):
Na experiência clínica o que vejo é que, frequentemente, isto por si só já
representa muito para o paciente, que sofre sempre de uma extrema solidão,
por mais que esteja cercado de pessoas. Sua solidão é, frequentemente, fruto
da sensação de não ser compreendido em sua dor. Dividir a carga desta dor
passa a ser, então, um primeiro momento na psicoterapia tendo um grande
significado.

Havia uma tentativa de evitação falas e lembranças que se referissem ao seu


marido, mas, paradoxalmente, como assinala Parkes (1998, pág. 59) “para evitar pensar
em uma coisa, temos de pensar nessa coisa. Isto é, em algum nível, permanecemos
conscientes do perigo que estamos tentando evitar”. Dessa forma, penso que o
acolhimento e significação da perda, bem como o dar-se conta de outras possibilidades
de sentido perante o sofrimento da minha paciente, signifique caminhar-com ela à
essência da experiência mesma até o limite do que essa experiência signifique em sua
vivência.

7ª SESSÃO: Em um primeiro momento pude perceber que a minha cliente não


estava muito disponível para falar. Mas todo silêncio também revela uma mensagem.
Ela dizia que doía e que viver se tornara apenas um detalhe doloroso. Lúcia dá ênfase
mais uma vez a questão das datas comemorativas e tudo o que elas significam e
significaram para a sua família. Chora copiosamente. Externa seu pesar de maneira
livre: ela estava ali, naquela relação e podia dizer da sua dor: ela afirmara que ali
podia chorar sem que a julgassem. Ficamos um bom tempo em silêncio. E nos
momentos de choro eu desejava dizer algumas palavras. Parecia que ela estava imersa
em suas lembranças. Ela então relembra mais alguns fatos de sua vida com seu marido
e de todos os detalhes simples que os envolviam. Ela ia falando cada vez mais baixo,
quase num tom desesperado...

Percebi, em meio a essas experiências narradas que Lúcia procurava o seu


marido e quando o encontrava nas datas comemorativas e não o achava se desesperava.
Era um querer se aproximar e ao mesmo tempo se afastar da memória e a saudade
presentificada nos nossos encontros era o que nos dava a conhecer falas originariamente
vividas e sentidas, diria até poéticas, no sentido de nos dar à luz nesses momentos de
comunicação intensa caminhos possíveis para um acolhimento mais construtivo de
nossas destinações.
Parkes (1998, pág. 63) se refere à essas experiências como procura:

as situações de dor trazem um desejo persistente e obstrutivo pela pessoa que


morreu, e a preocupação com pensamentos que somente causam mais dor.
Então, eu me pergunto: por que uma pessoa iria viver uma emoção tão inútil
e desprazerosa? Penso que a resposta a esta questão dá a chave ao
entendimento de toda essa fase do luto e a muito do que lhe é subsequente.

Penso que a experiência com Lúcia nos mostra caminhos para uma resposta a
essa pergunta: a vivência da dor até as últimas consequências e a minha presença
enquanto terapeuta para que caminhássemos no ponto de comunhão e entrelace
intersubjetivo de nossos mundos vividos, nos possibilitou descobertas enriquecedoras, o
que nos indica, por isso, a reflexão crítica sobre o acolhimento do sofrimento no âmbito
técnico da Terapia do Luto.
Caminhar na direção do significado da situação vivida, por meio do que se
conhece por intuição eidética, foi um caminho no próprio encontro que foi
desabrochando sem que eu precisasse procurar por ele. Ela era a dor mesma
presentificada no fluxo vivencial da situação clínica. Lúcia transitava entre a saudade e
a revolta. O seu silêncio descrevia os seus sentimentos de modo que ela percebia que eu
estava disponível para acolher a sua experiência. O caráter de encontro existencial,
portanto, estava sendo anunciado instante a instante e as elaborações teóricas se
tornavam singelas diante da complexidade da experiência vivida/relatada. Lúcia
começava a se sentir compreendida, ou seja, ela já confirmava a minha presença e a
relação em si em seu caráter intersubjetivo, conforme Moreira (2013, pág. 6):

“Em um segundo momento o cliente não somente dividirá a carga, mas


também se sentirá compreendido pelo psicoterapeuta – ele deixa de estar só
em seu lebenswelt. Quando se permite receber a visita do psicoterapeuta em
seu lebenswelt, o que o paciente vivencia objetivamente e subjetivamente,
este pode não somente ser compartilhado, mas também compreendido”.

Possani (201, pág. 70) descreve esse momento frutífero da relação terapêutica
como experiência de mutualidade e nos revela por este caminho que:

A experiência de mutualidade promovida pela empatia não me torna igual ao


outro, ao contrário, lança-me ao estranhamento. [...]Diante disso, é necessário
movimento que sustenta a permanência da condição empática, mas que refaz
eu e outro, mantendo eu mesmo e o estranho. O movimento é o gesto que
gera o si mesmo para mim e para o outro com quem empatizo. É nesse
sentido que é possível que eu tenha um gesto pelo outro, sem roubar-lhe, sem
romper a comunicação. Assim, posso promover a continuidade de ser (minha
e dele), na medida em que, no estranhamento, recupero-me da mutualidade –
e esse se torna movimento contínuo.

É quando o outro se percebe compreendido que o inédito pode acontecer,


que o movimento em direção à complexidade se dá. E é justamente isto que traduz
um processo psicoterapêutico: o movimento para o encontro e para a comunhão de
significados. Dessa forma, as nuances que permeiam as falas ou os silêncios que
emergem insurgem como possibilidades de sentido e significação de mundo vivido.

3. DISCUSSÃO E CAMINHOS POSSÍVEIS PARA A COMPREENSÃO DO


FENÔMENO

O encontro com novos conhecimentos nos convida a repensarmos a nossa


prática, não para desqualificar os antigos ou mesmo negá-los, mas para dar-lhes outros
sentidos. E foi na fenomenologia que encontrei a possibilidade de descobrir outra
maneira de ser clínico. Partindo da perspectiva humanista-fenomenológica foi possível,
ao revisitar a experiência clínica junto a Lúcia, encontrar caminhos para se pensar uma
clínica que acolha o sofrimento, o luto.
A terapia do luto é um conjunto de estratégias terapêuticas que se debruça sobre
o fenômeno da perda, com objetivos e configurações a priori estabelecidas, bem como
uma temporalidade quase padronizada, intimamente associadas à uma tecnificação pura
da lida psicológica. Para Worden (2013) nesse tipo de tratamento, o terapeuta deve ser
especialista e as sessões devem se manter no foco. Seguindo essa linha compreensiva,
cabe ao terapeuta manter o cliente no foco do problema a ser trabalhado, o qual foi
previamente definido no contrato terapêutico.
Worden (2013, pág. 121) assinala: “descobri que é importante que os pacientes
falem diretamente com a pessoa morta no tempo presente, em vez de apenas falar
comigo acerca da pessoa falecida. Falar com a pessoa morta tem impacto maior do que
falar sobre ela. (WORDEN, 2013 apud POLSTER E POLSTER, 1973). Com efeito,
busca-se através dessas técnicas este acesso: trazer o paciente para o instante do
rompimento do vínculo. Aponta Worden (2013) que técnica da Cadeira Vazia, oriunda
da Gestalt-terapia, e o psicodrama são as técnicas psicológicas que, com efeito,
justificam esse modo de fazer.
Em uma perspectiva fenomenológica, no entanto, o modo de intervir acima
referido parece não dar conta da experiência mesma. O que sobressai é uma técnica
anteriormente dada e aplicada a todas as situações de luto. A compreensão da
experiência clínica com Lúcia nos possibilitou, desse modo, problematizarmos o
recurso à técnica terapêutica ora descrita, em virtude das significações e sentidos que
emergiram do encontro em si mesmo. A radicalidade ao modo de ouvir e ver
fenomenologicamente nos deu a conhecer possibilidades que estavam veladas e que se
apresentaram em forma de silêncio e de palavras que revelaram mais que o desespero e
as emanações comuns da dor, mas a condição ontológica do sofrimento humano. É o
ouvir que subverte as especificidades das chamadas patologias – representações
categorizadas da experiência subjetiva do sofrimento -, alcança o inaudível e o
irrevelado, penetrando na condição de possibilidade do existir.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, Mauro Martins. O resgate da fala autêntica: filosofia da psicoterapia e


da educação. São Paulo: Alínea, 1989.
AMATUZZI, Mauro Martins. O Que é ouvir. Estudos de psicologia, v. 7, n. 2, p. 86-
97, 1990.

AMATUZZI, Mauro Martins. Por uma psicologia humana. São Paulo: Alínea, 2010.

FONTGALLAND, Rebeca Cavalcante; MOREIRA, Virginia. Da empatia à


compreensão empática. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 23, p.
32-56, 2012.

MOREIRA, Virgínia. Revisitando as psicoterapias humanistas. São Paulo:


Intermeios, 2013.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 4. Ed. Martins Fontes,


2011.

PARKES, Colin Murray. Luto estudos sobre a perda na vida adulta. Summus
editorial, 1998.

POSSANI, Tania. A experiência de\'sentir com\'(Einfühlung) no acompanhamento


terapêutico: a clínica do acontecimento. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de
São Paulo.

WORDEN, J. William. Aconselhamento do luto e terapia do luto: um manual para


profissionais da saúde mental. São Paulo: Roca, 2013.

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