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RELATO DE EXPERIÊNCIA
INTRODUÇÃO
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Lúcia chega à clínica-escola em busca de ajuda devido aos recentes
acontecimentos da sua vida que a levaram a um quadro de intenso sofrimento. Suas
expressões são vazias, seu olhar disposto ao longe e a sua aparência parece cansada.
Lúcia queixa-se de que sua vida “perdeu o sentido” depois do suicídio do seu marido,
fato este ocorrido há algumas semanas. Diz que procura um profissional de psicologia
porque “não sabe o que fazer” e deseja dá um sentido ao seu sofrimento ou mesmo uma
direção para poder suportar a dor que emerge e seguir, dessa forma, a sua vida.
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Nome fictício para preservação da identidade da pessoa real, conforme código de ética do
psicólogo.
Lúcia nos relata que é fruto de um relacionamento adolescente e que sua mãe foi
expulsa de casa pela sua avó logo após a comunicação da notícia de que estava grávida.
A sua infância, em primeiro momento, não é um ponto constante em sua fala e tão logo
pudemos depreender que a sua mãe teve uma gravidez complicada. Nos encontros
subsequentes revela que sua mãe transferiu a responsabilidade de sua criação a outras
pessoas. Tinha um relacionamento difícil com sua mãe de criação e este era mais um
ponto relevante de sua narrativa, de modo que decidiu sair de casa cedo e foi morar com
a avó. Em contrapartida, a relação de afeto mútuo com o seu pai de criação é algo que
deve ser também salientado e que a revigorava na seara difícil de sua existência até
então.
A primeira grande experiência de sofrimento de sua infância gira em torno de
uma “visão de algo que se mexia no telhado e posteriormente na janela”. Por isso não
consegue dormir sozinha e tem bastante dificuldade até hoje para tal. Conhece seu
falecido marido no encontro de jovens da igreja católica, pessoa com quem estabelece
um vínculo com muita cumplicidade. Tem o seu primeiro filho depois de alguns anos,
motivo de muita alegria e realização enquanto pessoa. “Quando tudo parecia bem”, dá-
se outra significativa experiência em sua vida: seu pai de criação vem a falecer. Passa
por dias difíceis, mas com a ajuda primordial do seu companheiro consegue se
reestabelecer. Tinha uma vida que chamou de “tranquila”, com percalços corriqueiros
de uma vida a dois. Faziam planos de vida e de morte, tiveram seus filhos no percurso
natural das coisas, visitavam os amigos e família raras as vezes, pois seu marido
trabalhava muito e o convívio ia se tornando cada vez mais reduzido.
O envolvimento do seu companheiro com o trabalho era notável, tanto que Lúcia
supõe que um acontecimento relacionado ao mesmo, fato de “muita humilhação”, foi
fundamental para que ele desencadeasse o ato de suicídio, acontecimento que
caracteriza mais um grande episódio de dor profunda na sua existência. Ela descreve a
experiência da morte do seu marido com riqueza de detalhes, desde o ambiente na
fatídica noite, até os sentimentos que ora experimentava. Desde então vive “sem
sentido” e procurou o serviço de psicologia para “saber o que fazer” em meio às
consequências desta tragédia. Teve dificuldade inicial relacionada ao sono, pois não
conseguia dormir sozinha. Dificuldades essas que geraram desconfortos com alguns
amigos e parentes que se dispuseram a ajudá-la nesse sentido.
2. INTERVENÇÕES HUMANISTAS-FENOMENOLÓGICAS A PARTIR DOS
DIÁRIOS DE BORDO
2ª SESSÃO: Lúcia chega à sessão neste dia com um aspecto mais sereno em
relação aos primeiros encontros. Consegue falar dos acontecimentos de sua semana de
maneira mais articulada, mesmo que em alguns momentos se refira ao seu ex-marido,
bem como ao seu pai de criação e a emoção interrompesse as suas palavras por
momentos marcados por silêncios mais ou menos longos. Eram eles, pelas suas
palavras, duas partes que a faltavam. Remetemo-nos, portanto, ao fato de o sentimento
de “ir embora” ter significações mais profundas e abrangentes que propriamente o fato
de ir ao encontro do seu marido onde quer que ele estivesse, pois o sentimento de morte
(o que não quer dizer necessariamente “vontade de morrer”, mas a essência mesma da
perda e os seus desdobramentos na relação com o seu ex-marido e, assim, nas relações
outras de sua vida) a acompanha desde a infância. Com o prosseguimento da sessão
nos traz um fato novo: ainda hoje chupa dedo quando está ansiosa ou com medo de
algo ou simplesmente triste. Adverte, entretanto, que não se trata de algo intencional:
“quando percebo, já estou com o dedo na boca”. Logo após este relato, fala um pouco
da sua infância sofrida, permeada pela falta do carinho da mãe. Meus pensamentos
borbulhavam e as minhas intuições procuravam “ligar uma coisa à outra”, mesmo que
me esforçasse para apenas ouvi-la e à possibilidade estar junto a ela naquela
experiência...
Penso que o discurso amoroso da minha cliente, ao narrar a importância de seus
entes queridos expressa, pouco a pouco, a sua experiência frente ao luto. Havia nessa
sessão um dizer fundante de sentidos e significados, desvelador de vivencias
fenomenologicamente (e não cronologicamente) pretéritas que demonstram nesse
discurso amoroso, o sentido mais original ou, no dizer de Amatuzzi (1989), mais
autêntico do discurso. O testemunho desse fato, evidenciado por uma comunicação
total, desde suas imanencias pré-verbais até o que se revela interventivamente no âmbito
verbal, cumpre o que para Merleau-Ponty (2011, PAG. 35) seria uma “tomada de
posição no mundo das significações”. De outro modo, exteriorizar as personagens
principais que figuram em suas experiências de perda e sofrimento como partes
primordiais de si, como “partes que faltam”, nos apontam uma outra possibilidade de
compreensão. A minha presença emprestada ao acolhimento da narrativa de sua
experiência a possibilitava entrar em contato com experiências outras e a se sentir aberta
à divisão do fardo.
Segundo Moreira (2013, pág. 6):
Na experiência clínica o que vejo é que, frequentemente, isto por si só já
representa muito para o paciente, que sofre sempre de uma extrema solidão,
por mais que esteja cercado de pessoas. Sua solidão é, frequentemente, fruto
da sensação de não ser compreendido em sua dor. Dividir a carga desta dor
passa a ser, então, um primeiro momento na psicoterapia tendo um grande
significado.
Penso que a experiência com Lúcia nos mostra caminhos para uma resposta a
essa pergunta: a vivência da dor até as últimas consequências e a minha presença
enquanto terapeuta para que caminhássemos no ponto de comunhão e entrelace
intersubjetivo de nossos mundos vividos, nos possibilitou descobertas enriquecedoras, o
que nos indica, por isso, a reflexão crítica sobre o acolhimento do sofrimento no âmbito
técnico da Terapia do Luto.
Caminhar na direção do significado da situação vivida, por meio do que se
conhece por intuição eidética, foi um caminho no próprio encontro que foi
desabrochando sem que eu precisasse procurar por ele. Ela era a dor mesma
presentificada no fluxo vivencial da situação clínica. Lúcia transitava entre a saudade e
a revolta. O seu silêncio descrevia os seus sentimentos de modo que ela percebia que eu
estava disponível para acolher a sua experiência. O caráter de encontro existencial,
portanto, estava sendo anunciado instante a instante e as elaborações teóricas se
tornavam singelas diante da complexidade da experiência vivida/relatada. Lúcia
começava a se sentir compreendida, ou seja, ela já confirmava a minha presença e a
relação em si em seu caráter intersubjetivo, conforme Moreira (2013, pág. 6):
Possani (201, pág. 70) descreve esse momento frutífero da relação terapêutica
como experiência de mutualidade e nos revela por este caminho que:
REFERÊNCIAS
AMATUZZI, Mauro Martins. Por uma psicologia humana. São Paulo: Alínea, 2010.
PARKES, Colin Murray. Luto estudos sobre a perda na vida adulta. Summus
editorial, 1998.