Você está na página 1de 238

EDILENE COFFACI DE LIMA

Com os Olhos da Serpente:


Homens, Animais e Espíritos nas Concepções
Katukina sobre a Natureza

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo como requisito
parcial para a obtenção do grau de doutor em
Antropologia.

Orientadora: Profª Drª Manuela Carneiro da


Cunha

São Paulo
2000
Resumo

Na concepção katukina (da família lingüística pano) uma pessoa é resultado de


processos sócio-fisiológicos que modelam seu corpo e o processo como um todo é
orientado pela busca de uma relação equilibrada com a alteridade, seja representada por
homens, animais ou espíritos. O equilíbrio almejado envolve desde a moderação que
deve orientar o trato quotidiano, as restrições alimentares, os cuidados relativos ao
sepultamento dos defuntos até a iniciação e a prática xamânicas. Este trabalho pretende-
se, primeiramente, como uma etnografia desses processos. As relações que os Katukina
estabelecem com animais e espíritos não são essencialmente diversas daquelas que
estabelecem entre si e busca-se explorar o caráter relacional dessas fronteiras. Entre os
Pano, como tantas etnografias têm destacado, a concepção de humanidade não se
encerra nas fronteiras dos grupos. A partir dos Katukina, intenta-se sustentar que se
pode estendê-la além dos próprios humanos. A extensão, entretanto, não deve ser
entendida como completa indiferenciação, como se entre homens, animais e espíritos
não se estabelecessem quaisquer demarcações. Ao contrário, as concepções katukina
que permitem saber sobre as relações entre essas três classes auxiliam justamente a
manter separados domínios que, apesar de distintos, se comunicam. Incidentalmente os
materiais katukina são cotejados àqueles disponíveis sobre os demais grupos de sua
família lingüística, com o objetivo de destacar como atualizam temas comuns.

Abstract

For the Katukina (panoan linguistic family), a person is the result of socio-physiological
processes that model his or her body. This process is oriented by the search of a
balanced relation with the other, represented by men, animals or spirits. The desired
equilibrium involves the moderation that should ideally guide everyday relationships,
alimentary restrictions as well as special cares related to burials and shamanic practice
and initiation. The aim of this work is to present an ethnography of these processes. The
relations established by the Katukina with animals and spirits are not essentially
different from those established among themselves. This work explores the relational
character of these frontiers. As ethnographies have shown, the notion of humanity for
the Panoan is not concomitant with the limits of the social groupings. Based on the
experience of the Katukina, it is argued that this notion can be extended beyond
humanity itself. This extension, however, cannot be understood as complete
indistinctness, as if, between men, animals and spirits, no demarcations were
established. On the contrary, Katukina conceptions permitting knowledge of the
relations between these three classes help us to keep separate domains that, although
distinct, communicate among them. Furthermore, Katukina material is compared to
those available about other groups of their linguistic family, with the aim of pointing out
how they present common themes.
3

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..................................................................................................................7

A GÊNESE E OS OBJETIVOS DA PESQUISA.................................................................................7


Em campo......................................................................................................................17
Notas técnicas................................................................................................................25
Sinopse dos capítulos.....................................................................................................26

CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................28

SITUAÇÃO DOS KATUKINA...................................................................................................28


De lá pra cá: a migração dos Katukina ..........................................................................33
Estratégias de mudança .................................................................................................42
A cidade e as aldeias......................................................................................................46

CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................52

A PESSOA KATUKINA...........................................................................................................52
O corpo .........................................................................................................................54
As paixões do corpo.......................................................................................................57
Os alimentos do corpo ...................................................................................................59
Restrições alimentares e ciclo de vida ............................................................................61
Restrições alimentares e estados liminares.....................................................................62
Confusão homem/animal................................................................................................69
Os sabores do corpo ......................................................................................................72
O descontrole do corpo e a fuga do yushin .....................................................................79

CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................85

A MORTE E OS DESTINOS DOS MORTOS .................................................................................85


Os presságios da morte e a morte...................................................................................87
O enterro, o cemitério, o luto lingüístico ........................................................................91
As posses do defunto: destruir, distribuir, trocar ............................................................99
Os destinos pós-morte.................................................................................................. 103
Ex-endocanibais? ........................................................................................................ 115

CAPÍTULO 4 ...................................................................................................................... 126

QUEM TEM A PALAVRA: O XAMANISMO KATUKINA ............................................................ 126


O xamanismo dual ....................................................................................................... 128
O sopro mágico ........................................................................................................... 131
Tornando-se um shoitiya.............................................................................................. 132
Os segredos das cobras................................................................................................ 133
As mulheres, os filhos................................................................................................... 144
De feitiços e venenos.................................................................................................... 149
4

De rezas e remédios..................................................................................................... 156


Os rezadores e os cantos de cura.................................................................................. 161

CAPÍTULO 5 ...................................................................................................................... 174

A ORDEM NA NATUREZA.................................................................................................... 174


Os moradores da floresta............................................................................................. 175
Yoina, os mamíferos terrestres e arbóreos .................................................................... 180
A perda do estatuto selvagem....................................................................................... 190
Rono, as cobras ........................................................................................................... 194
Entre humanos?........................................................................................................... 198
Cobras, xamãs e caçadores.......................................................................................... 207

CONCLUSÃO..................................................................................................................... 216

APÊNDICE 1 ...................................................................................................................... 223

TERMINOLOGIA DE PARENTESCO ....................................................................................... 223

APÊNDICE 2 ...................................................................................................................... 228

GRAFIA DE PALAVRAS KATUKINA ...................................................................................... 228

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 229


5

Agradecimentos

. Para o desenvolvimento da pesquisa contei com financiamentos obtidos de diferentes


instituições: Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFPR, FUNPAR, FAPESP e
CAPES/PICDT.
. Ao Professor Paulo Vanzolini pela disponibilidade e pela permissão de acesso ao
acervo do Museu de Zoologia da USP. A Mariana Vanzolini (LISA/USP) por ter
intermediado meu encontro com seu pai e, depois, ajudado a confeccionar parte do
material ilustrativo que levei a campo.
. Em Cruzeiro do Sul, Jerry Barroso e Epitácio conduziram-me pela BR-364. Cleidison
(UFAC), Dagmar, in memorian, Rafael e Nildo fizeram-me favores essenciais e foram
companhias não menos essenciais.
. Em Rio Branco, Luiz e Vera Sena acolheram-me com amizade. Marcelo Iglesias e Bia
Mendonça foram também companhias imprescindíveis. Na Comissão Pró-Índio, Malu,
Gilse e Mikel Idiazabal, além da Vera, foram sempre solícitos. No CIMI contei com a
gentileza de Éden Magalhães.
. Em São Paulo, no PPGAS e no NHII, Ivanete Ramos, Roseli de Oliveira, Eleni Leão e
Camila Forjaz agilizaram procedimentos burocráticos.
. Maraci emprestou-me o apartamento enquanto cumpria os créditos. Luiz Henrique de
Toledo e Soraya Gebara e Piero e Carolina Leirner hospedaram-me outras vezes e
fizeram as idas e vindas a São Paulo serem mais prazerosas.
. No caminho entre vários lugares e virtualmente contei com a ajuda de Rui e Cristina
Wolff, Clarice Cohn, Mariana Pantoja Franco e João Valentin Wawzyniak.
. A todos os colegas do Departamento de Antropologia da UFPR por terem autorizado
meus afastamentos para pesquisa de campo e redação da tese e, principalmente, por
terem assumido minhas atividades enquanto estive ausente. Márnio Teixeira Pinto,
Marcos Lanna, Andréa de Oliveira Castro, Ciméa Bevilaqua, Míriam Hartung e
Christine de Alencar Chaves deram estímulo intelectual e muita amizade. Dividindo
atividades e confrontando idéias, vou descobrindo com todos as dimensões do trabalho
coletivo.
. Dominique Gallois e Mauro W. Barbosa de Almeida compuseram a banca do Exame
de Qualificação, a partir de seus comentários ganhei fôlego para repensar e concluir o
trabalho.
. Eliane Camargo, Philippe Erikson e Oscar Calávia leram versões preliminares de
alguns capítulos e ajudaram-me com informações e comentários generosos. Foi
fundamental ainda a troca de idéias com Elsje Lagrou, Javier Ruedas, Maria Sueli de
Aguiar, Miguel Carid e Laura Pérez. Certamente a elaboração deste trabalho teria sido
muito mais difícil sem suas palavras e seus textos. A todos agradeço também por terem
facilitado o acesso a materiais que me faltavam.
. Recebi de minha orientadora, Manuela Carneiro da Cunha, o convite inicial para
pesquisar no Acre e, desde então, o estímulo constante. No longo período que trabalhei
a seu lado aprendi certamente mais do que posso registrar aqui.
. Manoel e Therezinha, pai e mãe, Maristéla, Márcia e Cláudia, irmãs queridas, por
terem sido pacientes com minha ausência e com a ansiedade que acompanhou a
elaboração da tese.
6

. Mani e Txapa, Mame e Vari, Kako e Penanai, Sharan e Kene, Yaka, Txoki, Mampo e
Retxa, na aldeia do rio Campinas, e Tsomi, Rira, Pawa e Roni, na aldeia do rio
Gregório, facilitaram meus caminhos, além de terem sido excelentes anfitriões. Através
deles, agradeço a todos.
. Ao Eduardo, que acompanhou tudo desde o princípio. Dedico-lhe agora este trabalho.
7

APRESENTAÇÃO
A gênese e os objetivos da pesquisa

Este trabalho é a continuação da pesquisa entre os Katukina, da família


lingüística pano, que iniciei em 1991. Além da mera sucessão temporal, os temas
abordados aqui constituem o aprofundamento – embora por caminhos distintos –
daqueles que tratei na dissertação de mestrado, defendida em 1994. No trabalho
anterior, que permanece como a única etnografia1 disponível sobre os Katukina,
busquei, por um lado, oferecer uma descrição da organização social (parentesco,
onomástica, regras de residência) e, por outro, discutir as relações que os Katukina têm
mantido ao longo de sua história com outros grupos indígenas da região – Yawanawa,
Marubo e Kulina –, tomando-as, sobretudo, como via de acesso privilegiada à maneira
como os Katukina representam os seus "outros" e, ao mesmo tempo, a si mesmos.
Os dois temas – a organização social e a identidade étnica – vinham então
mobilizando a atenção dos etnológos dedicados a pesquisar os grupos pano, devido,
respectivamente, à ocorrência de um sistema de parentesco de feição kariera (Melatti
1977; Kensinger 1995a), pouco comum na Amazônia, e a uma longa história de fusões e
fissões que fazia com que cada um deles fosse designado não por um, mas por vários
etnônimos, formando o que Townsley (1988) definiu como um "quadro
caleidoscópico". As contingências históricas do contato com os brancos, embora não
pudessem ser ignoradas, pareciam simplesmente insuficientes para dar conta desses
processos, muito mais internos e endêmicos do que parecia ser o caso em outras
sociedades indígenas das terras baixas sul-americanas.
As etnografias elaboradas até então insistiam em um ponto capital: a atração
irresistível do exterior. A partir dessa atração compreendia-se porque os grupos pano se
apresentavam tantas vezes como compósitos, agregados de diferentes parcelas. O estudo
das relações interétnicas revela-se ainda mais fecundo analisando o conceito de nawa,
usado pelos Pano tanto para a auto- quanto para a alo-referência. Assim, nawa serve, ao

1
A língua katukina foi descrita e analisada em três teses acadêmicas, ver Barros (1987) e Aguiar (1988 e
1994).
8

mesmo tempo, como auto-denominação, uma vez que compõe uma parte significativa
dos etnônimos pelos quais são conhecidos os grupos dessa família lingüística –
Kaxinawa ("povo morcego"), Yawanawa ("povo queixada"), Marinawa ("povo cotia") e
outros mais –, e como termo genérico aplicado aos estrangeiros, sejam outros grupos
panófonos ou os Kulina ou os brancos. Tendo em conta esse panorama, Erikson
(1992:251) escreveu: "a política externa sempre constituiu, sem dúvida alguma, um
domínio crítico na área pano, em que sempre se cultivou a arte de conviver com os
estrangeiros". O conceito de nawa era central para entender essa "política externa", dado
que, embora pudesse representar o pólo oposto do locutor, não encarnava a "antítese da
humanidade" (Erikson 1990:80 e 1996:78).
Iniciei minha pesquisa com os Katukina preocupada com essas duas temáticas.
Resumidamente, no que diz respeito ao sistema de parentesco, no lugar do kariera,
encontrei um sistema variante do dravidiano, muito comum na Amazônia. Quanto à
"atração pelo exterior" ou à "política externa", nada de fora parecia indiferente aos
Katukina. Na história do grupo, passada e recente, não faltam relatos de contatos com
grupos indígenas vizinhos, em especial com os Kulina, Yawanawa e Marubo.
Confirmando o que se sabe de outros grupos pano, os Katukina não fazem coincidir a
fronteira da humanidade com os limites de seus grupos locais, o que certamente
contribui para o estabelecimento de numerosas relações interétnicas (Lima 1994a).
A pesquisa subseqüente, cujo resultado apresento, foi estabelecida a partir de
uma nova questão: considerando que a categoria nawa organiza conceitualmente a
relação de alteridade no plano sociológico – intra e inter-grupal, uma vez que a utilizam
para definir tanto o "nós" (adiante veremos que "katukina" não é uma auto-
denominação) quanto os "outros" – como os Katukina interagem com os elementos que
estão fora desse esquema classificatório? Tratava-se de buscar compreender como se
delimitavam e fixavam as fronteiras entre os humanos e os não-humanos, fossem
animais ou espíritos. Meu ponto de partida era a simples presunção de que se existe um
sistema para tratar da alteridade sociológica, deveria haver também um sistema para
tratar da alteridade cosmológica. Vislumbrava explorar esta questão a partir do exame
da classificação taxonômica e dos significados simbólicos das espécies animais na
cosmologia do grupo.
No caminho muitas coisas se perderam completamente, algumas simplesmente
foram reduzidas e outras ainda adensadas. A principal modificação foi feita na parte
relativa à classificação taxonômica dos animais. Inicialmente prevista para ocupar o
9

centro do trabalho, deslocou-se, pouco a pouco, para a borda, ainda que isso não a tenha
destituído de importância. O deslocamento do lugar da taxonomia da fauna deve-se
tanto a problemas operacionais no decorrer da pesquisa (tive problemas com a
identificação científica das espécies animais, em particular dos répteis, a partir de fichas
com ilustrações) quanto à atenção que os próprios Katukina davam aos meus interesses.
No caso, o aspecto formal da taxonomia parecia interessar menos que seus aspectos
simbólicos. Em campo, as interdições alimentares, a possibilidade de transmutações dos
animais em espíritos, os perigos para quem mata ou maltrata determinadas espécies,
entre outras coisas, eram muito mais destacados pelos próprios Katukina.
Evidentemente era impossível compreender suas asserções sobre os não-humanos,
fossem animais ou espíritos, sem refletir sobre como os Katukina compreendem a si
mesmos. Assim, em campo, tive que redefinir parte de meus interesses e passei então a
explorar a sua própria noção de corpo e de pessoa, que era fundamental para
compreender todo o resto.
No mais, a ênfase que os Katukina insistiam em dar ao simbolismo dos animais,
levou-me a explorar o caráter fundamentalmente contextual dos sistemas taxonômicos.
O uso que faço do plural por si só indica que não há entre eles um único esquema
classificatório, mas vários deles, organizados de acordo com critérios morfológicos,
pragmáticos e simbólicos. Ainda que fosse importante não desconsiderar a morfologia
para entender a classificação que os Katukina elaboram da fauna, parecia-me muito
mais importante conhecer suas próprias concepções sobre o conjunto dos "seres da
natureza".
Como ocorre em outros grupos amazônicos, as concepções katukina sobre o que
são homens, animais e espíritos podem se entrecruzar. Uma pessoa é resultado de
processos sócio-fisiológicos que modelam seu corpo e o processo como um todo é
compreendido pela manutenção de uma relação de equilíbrio com a alteridade, seja
representada por homens, espíritos ou animais, e que envolve desde a moderação que
deve orientar o comportamento quotidiano, os cuidados relativos ao sepultamento dos
defuntos, os tabus alimentares até a iniciação e a prática xamânicas. Este trabalho
pretende-se, primeiramente, como uma etnografia desses processos.
As relações que os Katukina estabelecem com animais e espíritos não são
essencialmente diversas daquelas que estabelecem entre si e passei a explorar o caráter
relacional dessas fronteiras. Ampliando assim o sentido da proposição de que, entre os
Pano, a concepção de humanidade não se encerra nas fronteiras dos grupos (Erikson
10

1990:80 e 1996:78). Se a maleabilidade da fronteira étnica dos grupos pano parecia- me


suficientemente estudada, tratava-se de entender, a partir de um deles, como se traçava a
própria fronteira da humanidade. Ao longo do trabalho, busco sustentar que, do mesmo
modo como a humanidade não se circunscreve aos próprios Katukina, pode-se estendê-
la além dos próprios humanos. A extensão, entretanto, não deve ser entendida como
completa indiferenciação, como se entre homens, animais e espíritos não se
estabelecessem quaisquer demarcações. Ao contrário, as concepções katukina que
permitem entender as relações entre essas três classes, como tentarei mostrar, auxiliam
justamente a manter separados domínios que, apesar de distintos, se comunicam. A
possibilidade de comunicação evidentemente é variável e dependente dos contextos e
planos em que se efetua e que acabam por definir o quanto é arriscada ou segura.
É fácil reconhecer aqui a inspiração dos trabalhos sobre a "corporalidade" e a
"noção de pessoa" em grupos indígenas sul-americanos (Carneiro da Cunha 1978;
Seeger et alii 1987 [1979]). Essa temática, cuja fertilidade pode ser atestada pela
quantidade de trabalhos que estimulou e continua a estimular (Erikson 1996; Teixeira-
Pinto 1997; Vilaça 1999), orientou-me na tentativa de readequar meus interesses de
pesquisa e de complementar partes do que havia escrito antes. Ao sistema de
parentesco, descrito em termos formais na dissertação de mestrado, faltava acrescentar
as concepções dos próprios Katukina sobre os laços que os unem. Além disso,
compreendendo o corpo como o suporte das diferenças, cabia investigar também como
os humanos se diferenciam entre si – crianças e adultos ou leigos e xamãs, por exemplo
–, dos mortos, dos animais e dos espíritos. Os desdobramentos recentes dessa mesma
temática, com a teoria do "perspectivismo" ou "multinaturalismo" (Viveiros de Castro
1996a), proposta por um daqueles que participou de sua formulação anterior, certamente
contribuiu, como se verá ao longo do trabalho, na leitura que faço dos processos de
fabricação do corpo e da pessoa katukina.
Como se não bastasse elaborar a etnografia desses processos, mais tarde, no
momento da redação da tese, a preocupação em oferecer uma perspectiva comparativa
se impôs. O relato etnográfico não é fácil de combinar com a ambição comparativa, mas
as semelhanças dos materiais katukina com os disponíveis sobre os outros grupos da
mesma família lingüística eram muitas e acabei optando por explorá-las. Como escreveu
Erikson (1994:7), parafraseando Patricia Lyon, até pouco tempo atrás os Pano eram "a
última família lingüística conhecida do último continente conhecido". Desde a década
de 1980 esse cenário está bastante modificado. O número de etnografias dedicadas aos
11

grupos pano aumentou significativamente e acabei beneficiando-me deste novo boom


acadêmico.2 Além de favorecer a organização dos materiais katukina coletados em
campo, o diálogo com outras pesquisas permite inseri-las num contexto mais amplo de
preocupações da etnologia pano. De maneira menos sistemática, tentei também situá-los
na etnologia sul-americana.

*****

Estimados em aproximadamente 40 mil falantes, os grupos pano concentram-se


nas fronteiras do Peru com a Bolívia e com o Brasil. Baseando-se em critérios
lingüísticos, Erikson (1992:240-242; 1994:5-6; 1996:42-44) distinguiu oito
subconjuntos principais no bloco pano:

– Os Pano meridionais, que inclui os Chacobo, os Pacaguara, os Karipuna e os


Kaxarari, mais separados geograficamente dos demais, localizados na Bolívia e no
Brasil, no estado de Rondônia.

– Os Shipibo-Conibo-Shetebo, ocupam as margens do rio Ucayali, no Peru, estão em


contato com os colonizadores praticamente desde os primeiros anos da conquista. O
meio ecológico ribeirinho em que se encontram foi já pensado como explicação
determinante para as divergências que apresentam estes grupos em relação aos demais
na mesma família lingüística, localizados no interflúvio.

– Os Yaminawa formam um conjunto heteróclito distribuído dos dois lados da fronteira


entre o Brasil e o Peru, e um pequeno grupo encontra-se ainda do lado boliviano. Como
ocorre em quase todos os grupos da família pano, a denominação de Yaminawa é um
tanto fugidia e internamente multiplicam-se os etnônimos: Bashonawa, Xixinawa,
Yawanawa, Sharanawa, Marinawa, Parquenawa, entre outros (Townsley 1988 e Calávia
1995).

– Os Amahuaca, inclui vários subgrupos que possuem autodesignações terminadas em -


nawa ou -bo, localizados no Peru e no Brasil. As relações dos Amahuaca com os

2
Apenas para oferecer uma idéia, em quinze anos, de 1985 a 2000, foram defendidas mais de 20
dissertações e teses acadêmicas (em lingüística e em antropologia) sobre grupos pano. Erikson et alii
(1994) organizaram uma bibliografia pano que é periodicamente atualizada e pode ser consultada
eletronicamente.
12

Yaminawa sempre foram bastante simbióticas e, apesar da rivalidade, os dois grupos


chegavam a migrar conjuntamente (Townsley, 1988).

– Os Kaxinawa, distribuídos dos dois lados da fronteira entre o Brasil e o Peru, são os
mais estudados dos grupos pano. Desde o trabalho pioneiro de Capistrano de Abreu,
passando pelos escritos do Padre Tastevin (1926, 1928) até as etnografias
contemporâneas (Deshayes & Keifenheim 1982, Kensinger 1995a, McCallum, 1989,
Aquino e Iglesias 1994, Lagrou 1998, Deshayes 2000), os Kaxinawa têm ocupado um
lugar de destaque na etnologia pano. Há mesmo quem veja neles o modelo de uma
sociedade proto-pano (Keifenheim 1992), sobretudo por causa de seu dualismo. Entre
todos os grupos pano, os Kaxinawa são certamente os mais endogâmicos e auto-
centrados.

– Os Cashibo, conhecidos contemporaneamente como Uni, que é sua auto-


denominação. O mais beligerante dos grupos pano, os Cashibo estão divididos em pelo
menos três grupos dialetais, sendo o Cacataibo o mais conhecido. A imagem de
ferocidade dos Uni, divulgada em grande parte pelos Shipibo-Conibo entre os
franciscanos, fez com que chegassem a ser conhecidos como o único grupo pano que
praticava o canibalismo guerreiro (ou o exocanibalismo), um equívoco que Frank
(1994) convincentemente desfez a partir da análise de registros históricos. Pelo menos
desde o início deste século os Uni vêem adotando costumes Shipibo-Conibo, de forma
nem sempre pacífica (Wistrand 1968).

– Na denominação de Pano medianos ou centrais estão incluídos os Marubo, Katukina,


Yawanawa, Shanenawa, Poyanawa, Nuquini, distribuídos em território brasileiro nos
estados do Acre e do Amazonas, e os Capanawa, no Peru. Até onde é possível saber
com certeza, os três primeiros grupos mantiveram e ainda mantêm estreitas relações
(Lima 1994a; Carid 1999). O mesmo ocorria entre os Poyanawa e os Nuquini (Castello
Branco 1950). Ligações menos seguras conectam os Katukina e os Marubo no passado.
Aqui, os elos que ligam os dois grupos foram recolhidas de fontes exclusivamente orais.
Há poucos anos os dois grupos passaram a manter contatos estreitos e mesmo a afirmar
que num passado bastante remoto formavam um único grupo. Discuti, a partir do ponto
de vista katukina, essa aproximação com os Marubo na dissertação de mestrado (Lima
1994a). Soube recentemente que a perspectiva Marubo desses encontros não é diversa,
eles se reconhecem também como parentes distantes dos Katukina (J. Ruedas,
13

comunicação pessoal). Nesse sentido, chama a atenção que, como veremos abaixo, nem
os Katukina nem os Marubo se reconhecem nas denominações pelas quais são
conhecidos e apresentam internamente diversas unidades nomeadas, dentre as quais
quatro são coincidentes.

– Os Mayoruna, distribuídos dos dois lados da fronteira brasileira e peruana, entre os


quais se contam os Matis, os Matses e os pouco conhecidos Kulina-pano, Korubo, Maya
e outros grupos não-contatados. No Brasil, estão localizados principalmente nas
imediações dos rios Ituí, Curuça e Quixito, no vale do Javari.

Distribuição dos povos de língua pano

AM Amahuaca
AR Arara
AT Atashuaca
CB Cashibo
CO Conibo
CP Capanawa
KB Korubo
KN Kaxinawa
KP Kulina Pano
KR Karipuna
KT Katukina
KX Kaxarari
MB Marubo
MG Mangerona
MN Marinawa
MS Mastanawa
MT Matis
MY Mayá
MZ Matsés
NK Nukuini
NW Nawa
PC Pacaguara
PO Poyanawa
RE Remo
SH Shipibo
SR Sharanawa
YA Yamiaca
YM Yaminawa
YW Yawanawa

Adaptado de Erikson (1992:242)

No mapa da distribuição dos povos de língua pano (acima) tentei circunscrever


cada um dos subconjuntos. Contudo, alerto que os contornos delimitados são apenas
aproximativos, não constituem fronteiras territoriais fixas. As vantagens da visualização
dos subconjuntos no mapa parecem compensar eventuais distorções. Assim, fica claro o
descolamento do bloco dos Pano Meridionais dos demais membros de sua família
14

lingüistica3. Do mesmo modo, pode-se perceber facilmente que os Kaxinawa estão


rodeados por Yaminawa de todos os lados. Não poderia ser de outra forma, uma vez que
"Yaminawa" ("povo do machado") é um etnônimo que os próprios Kaxinawa costumam
aplicar aos demais grupos panófonos4.
De um lado, cabe repetir Erikson (1996:43) e alertar de que esses oito
subconjuntos não devem em sentido algum serem entendidos como etnônimos. Por
outro, é necessário chamar a atenção para o problema dos etnônimos, comum em vários
grupos amazônicos que não se reconhecem nos termos pelos quais são conhecidos, mas
que apresenta um grau maior de dificuldade entre os Pano. Os nomes pelos quais são
conhecidos os grupos reunidos nesses subconjuntos não são necessariamente auto-
denominações. Assim, restringindo o exemplo apenas aos Pano Medianos, que aqui nos
interessa mais de perto, "Katukina" é um etnônimo que ocorre também em um outro
grupo indígena localizado nas proximidades do rio Juruá, mas no seu baixo curso, no
estado do Amazonas: aos Katukina da família lingüística katukina. Entre os Pano, o
mesmo etnônimo serve ainda oficialmente para designar os Shanenawa e em registros
históricos do início deste século (Tastevin 1926) aplicava-se também aos Yawanawa.
Aqui será usado exclusivamente para referir-se aos moradores das terras indígenas do
rio Campinas e do rio Gregório, entre os quais foi conduzida a pesquisa, os únicos que o
adotaram, embora não o reconheçam como auto-denominação. Estes três grupos – os
Katukina dos rios Gregório e Campinas, os Shanenawa e os Yawanawa – sempre
estiveram próximos um dos outros e teceram complexas relações no passado, que
reverberam ainda no presente (Lima 1994a; Carid 1999), o que provavelmente explica
essa confusão etnonímica. O epicentro destas relações é ocupado pelos Yawanawa que,
há pelo menos um século, têm pontilhado uma rede de alianças, mas também de
conflitos, entre seus vizinhos na região do alto rio Gregório.
O termo "Katukina", adotado pelos moradores dos rios Campinas e Gregório,
serve mais às relações externas, algo compreensível uma vez que a origem de seu uso é
igualmente externa: trata-se, segundo eles próprios, de um nome "dado pelo governo"
(Lima 1994a:19). Internamente, os Katukina identificam-se a partir de seis etnônimos:
Varinawa (povo do Sol), Kamanawa (Povo da Onça), Satanawa (Povo da Lontra),

3
Segundo Erikson (1992:240), os Chacobo, Pacaguara, Karipuna e Kaxarari estão mais próximos do
território originário dos Pano, uma vez que o território em que se encontram atualmente foi
"provavelmente povoado por sucessivas ondas de migração vindas do Guaporé".
15

Waninawa (Povo da Pupunha), Nainawa (Povo do Céu) e Numanawa (Povo da Juriti).


Os quatro primeiros são encontrados também entre os Marubo que, como os Katukina,
não reconhecem uma única denominação étnica (Melatti 1977). Essa coincidência dos
etnônimos nos dois grupos, acrescida das semelhanças culturais e lingüísticas – a
inteligibilidade mútua das línguas marubo e katukina é estimada em 50% (Melatti
1981:37) –, é tentadora para conjecturar que os dois grupos talvez tenham sido um só no
passado. Esta mesma possibilidade foi discretamente sugerida por Melatti (1998), que
escreveu: "… o povo Marúbo parece resultar da reorganização de sociedades indígenas
dizimadas e fragmentadas por caucheiros e seringueiros no auge do período da
borracha. Mas esse movimento de dispersão e reorganização pode remontar a tempos
mais antigos, como sugerem nomes de seções marúbo em outros povos pâno vizinhos".
Evidentemente, aos antropólogos é recomendada prudência, tanto mais quando se
considera a carência de maiores registros históricos e de estudos lingüísticos e
arqueológicos.
Contudo, enquanto os antropólogos têm de ser cautelosos, os Katukina afirmam
a união pretérita com os Marubo e localizam a fissão que deu origem aos dois grupos,
como conhecidos contemporaneamente, em um período anterior ao contato com os
brancos, portanto, antes da segunda metade do século XIX.
Voltando ao problema da denominação, uma das hipóteses levantada por
Tastevin no início deste século (1924) é de que os Katukina são uma reunião de grupos
outrora independentes, arrasados pelo contato com os brancos e que se uniram para
tentar resistir. Em poucas palavras e usando o vocabulário da época, o missionário
espiritano (Tastevin 1924:213) definiu-os como "panos de todas as raças". Sejam ou não
resultado da fusão de grupos reduzidos e abatidos pelo contato, os Katukina
contemporâneos, que se identificam nos seis etnônimos acima mencionados, contam
seguramente com mais de um século de história em comum. Em outro trabalho (Lima
1994a:50) defini esses etnônimos como clãs, não tendo em vista os rígidos parâmetros
africanos, mas interpretando-os como unidades que permitem retraçar uma
"ancestralidade suposta ou presumida", ou seja, os atuais Varinawa se vêem como
descendentes dos antigos Varinawa, os Kamanawa como descendentes dos antigos
Kamanawa e assim por diante. Contribuindo para complicar um pouco mais o quadro,

4
O etnônimo "Yaminawa" é certamente um dos mais confusos no mosaico pano. Para uma boa
apreciação das várias interpretações que esse etnônimo já recebeu, ver Calávia (1995:202-203).
16

restam dúvidas em torno da regra de filiação aos clãs, pois enquanto uns afirmam a
matrilinearidade, outros destacam a patrilinearidade. Em todo caso, para que não me
estenda em detalhes, resta dizer que tais unidades, contemporaneamente, pesam pouco
na organização da vida social5. Além desses etnônimos não há qualquer outra auto-
denominação. É claro que os Katukina contam com um termo que os define como
"gente", noke, mas não o usam de maneira inclusiva nem anexam a ele qualquer epíteto
que possa identificar os seres humanos prototípicos – no caso seria o kuin (livremente
traduzido como "real" ou "verdadeiro"). Independentemente de indagações reificadoras,
noke designa corriqueiramente o "nós", "a gente", um sujeito plural. Assim, uma frase
como neno noke oshavai, "nós dormimos aqui"/"a gente dormiu aqui", pode incluir sem
nenhum problema qualquer não-katukina que tenha repartido com eles o espaço de
repouso.

Feitos esses esclarecimentos, voltemos aos subconjuntos pano. Philippe Erikson


(1992:240; 1996:41) foi cuidadoso quando destacou que agrupou os diversos grupos em
oito subconjuntos principais tendo em vista "critérios essencialmente lingüísticos".
Atendo-me ao caso dos Pano Medianos, apontei parcialmente seus contatos históricos
um pouco acima, mas cabe acrescentar que as coincidências propriamente culturais não
são desprezíveis – algo que se poderá confirmar ao longo do trabalho. Entre os
subconjuntos, o mesmo autor notou que as semelhanças culturais, ainda que não
exploradas sistematicamente, também são grandes. Um dos exemplos mencionados pelo
autor dá conta de que os Mayoruna e os Chacobo, separados por mais de mil
quilômetros de distância, fabricam paneiros quase idênticos e designam-nos
respectivamente como kakan e kakano (Erikson, 1993b:48). Um outro exemplo sugere a
semelhança do xamanismo dos Shipibo-Conibo com o que é praticado pelos Marubo
(Erikson 1992:241) – mais adiante mostrarei que o xamanismo katukina pode ser
acrescido aí. Sabe-se desde Oppenheim (1936) que os grupos conhecidos como
Katukina, os Marubo e os Yawanawa usavam tatuagens faciais idênticas, uma
informação que é endossada pelos atuais membros desses grupos. Kärsten (1991), um
arqueólogo que estudou mais detidamente os grupos pano ribeirinhos, elencou diversos

5
A rigor uma pessoa tem que se casar fora de seu próprio clã, mas, tendo em vista que há dúvidas sobre a
regra de filiação, algumas situações tornam-se confusas. Assim, pode acontecer de marido e mulher
(primos cruzados) identificarem-se como membros de um mesmo clã, devido ao fato de que cada um
deles traça diferentemente a filiação: um afirma a patri- e outro a matrilinearidade (Lima 1994a:51).
17

traços culturais comuns entre os grupos pano, embora não os tenha explorado
sistematicamente.
A perspectiva comparativa incorporada neste trabalho tem como fim explorar
tais correspondências, buscando não apenas a simples identificação de cada uma delas,
mas, principalmente, a forma como ajudam a esclarecer um ou mais aspectos entre os
Katukina e no conjunto da família lingüística. Pondero, entretanto, que o intuito
comparativo não adere a nenhuma proposta culturalista de delimitar aquilo que é
"característico" dos povos de língua pano. Se decidi incorporar ao trabalho essa
preocupação comparativa foi, por um lado, porque, como já escrevi, isso favorece a
organização dos materiais katukina, por outro, porque permite reunir informações
acumuladas nos últimos anos e que estão dispersas.
Por fim, esclareço que, ao longo do texto, continuarei fazendo referências a
questões abordadas na dissertação de mestrado (Lima 1994a). Para evitar repetições,
optei, em determinadas passagens, apenas por remeter diretamente ao texto original.
Quando julguei que isso era pouco esclarecedor ou quando necessitava adensar ou
corrigir o que havia registrado antes, apenas resumi o que já estava lá e complementei a
informação. Espero que minha preocupação em oferecer uma redação econômica, não
prejudique a compreensão das questões discutidas agora.

Em campo

Se não é difícil agora identificar os tropeços e obstáculos do percurso e delimitar


os contornos do trabalho, cabe admitir que nem sempre foi assim. Quando estava entre
os próprios Katukina fui diversas vezes invadida pela sensação de que se desvirtuavam
todos os meus planos originais. Como reconheceu Bateson, em Naven – numa passagem
mostrada pela orientadora na tentativa de me dar alento –, senti-me diversas vezes sem
saber o que exatamente pesquisava e, ao final da pesquisa de campo, o conjunto de
informações reunidas me parecia muito fragmentado e lacunar. Se há mais de sessenta
anos Bateson julgou que devia partilhar suas incertezas metodológicas com o restante
dos colegas, só posso pensar o mesmo nos dias de hoje, quando o trabalho de campo
depende muito menos de empatia e empenho, que são ainda imprescindíveis, do que de
negociações de toda ordem entre os antropólogos e os grupos estudados. Essas
afirmações não devem ser entendidas como uma crítica aos nativos nem como uma
destituição da tarefa de tentar traduzir sua sociedade nos termos da nossa; a vaga
18

antropológica pós-moderna tem seus méritos, mas não me oferece ainda um modelo. O
relato que segue busca contextualizar como se desenrolou a pesquisa de campo e,
embora não justifique eventuais lacunas ao longo do trabalho, pode ao menos torná-las
compreensíveis.

Desde que iniciei a pesquisa entre os Katukina, em 1991, minha permanência em


campo totalizou dezoito meses, passados em sua quase totalidade entre os Katukina da
TI do rio Campinas. Destes, nove meses foram dedicados ao desenvolvimento da
dissertação de mestrado. Em 1994, poucos meses após a defesa do mestrado e sem ter
ingressado ainda no doutorado, voltei a campo por um período de dois meses, entre
setembro e novembro. Esta viagem tinha como objetivo coletar informações diversas
sobre os conhecimentos e usos que os Katukina fazem dos recursos naturais –
classificação da fauna e da flora, conhecimento do comportamento dos animais, usos,
estratégias de caça, entre outros – como parte do Projeto Enciclopédia da Floresta,
coordenado por minha orientadora, Manuela Carneiro da Cunha. Dos períodos que
passei em campo, este foi certamente o mais penoso: no final do primeiro mês, contraí
malária e, simultaneamente, leishmaniose. Por teimosia, uma dose excessiva de apatia e
falta de meios de transporte, permaneci em campo por mais um mês, sem conseguir
avançar significativamente na pesquisa. Fosse minha primeira viagem e não teria mais
voltado.
No ano seguinte ingressei no doutorado e retornei ao Acre em dezembro, ainda
como parte do projeto Enciclopédia da Floresta. Não cheguei a ir até a aldeia, pois o
período de chuvas amazônicas me impediu de chegar lá. Permaneci em Cruzeiro do Sul,
trabalhando com alguns Katukina que colaboravam na pesquisa e tentando obter as
informações que me faltaram na viagem anterior.
Voltei a campo apenas um ano e meio depois, uma vez que fui admitida como
professora na UFPR e não podia ainda afastar-me das atividades didáticas. Só consegui
retornar ao Acre na segunda metade de 1997, por um período de quatro meses, entre
agosto e dezembro.
Transcorridos quase três anos sem que fosse até a aldeia do rio Campinas,
quando cheguei assustei-me com tantas mudanças num período relativamente curto de
tempo. As mudanças percebi desde o caminho, um trecho longo da BR-364 estava
asfaltado, a viagem foi breve e os carros transitavam em número bem maior do que era
comum da última vez em que lá tinha estado – ocasião em que saí a pé da aldeia,
19

caminhando mais da metade do percurso, justamente por falta de carros. Já na aldeia, a


primeira coisa que estranhei foi que não reconhecia muitas das pessoas que me
recebiam. Teria eu esquecido das pessoas com quem já convivera? Certamente não. Boa
parte delas estavam morando lá havia menos de um ano, vindas da aldeia do rio
Gregório. De novembro de 1994 a agosto de 1997 a população da aldeia do rio
Campinas aumentou quase 70%, era natural meu estranhamento. Sobre essa onda
migratória, suas causas e seus efeitos, escrevo no próximo capítulo.
Nesse retorno logo percebi também as mudanças na arquitetura local. As casas
construídas completamente de paxiúba e cobertas de palha contavam-se nos dedos.
Algumas já eram construídas totalmente com madeira serrada, de tábuas, outras
combinavam tábuas e paxiúba e seus proprietários economizavam algum dinheiro para
terminá-las, substituindo toda a paxiúba e, se possível, cobrindo com telhas de flandres,
deixando o velho telhado de palha. Até a conclusão de minha pesquisa de campo não
haviam conseguido, mas sei que desde 1999 vários deles têm a casa com o telhado novo
(Idiazabal 1999).
Instalei-me inicialmente na casa de Mani e Txapa, os mesmos que me
hospedaram em anos anteriores. Agora a casa deles estava na sede da aldeia, nas
proximidades do igarapé Martim, onde se localiza também uma das escolas e o posto de
saúde. O Martim, como é chamado, é o local mais freqüentado e agitado da aldeia e dali
era mais fácil deslocar-me para visitar outros aglomerados domésticos.
Fui bem recebida, como sempre. Todos queriam saber como tinha passado, se
tinha o mesmo marido, se já tinha filhos e por aí vai. Se havia o inconveniente de ter
que responder tantas vezes às perguntas repetidas, era também um bom recomeço de
convivência, devolvendo a pergunta poderia me atualizar da vida social no período em
que estive ausente. Alguns dias passaram-se assim, estava me atualizando. Não demorei
a perceber, entretanto, que meus próprios interesses de pesquisa não iam muito adiante.
Se perguntava algo a respeito do comportamento de algum bicho, se mostrava as
ilustrações de animais ou os cantos de aves, os Katukina se entretiam, mas me
respondiam com evasivas e logo perguntavam por que me interessava por esses
assuntos. Tentava responder, falava dos períodos em que estive lá antes, explicando que
era uma continuidade de meus estudos, de minha curiosidade já conhecida por eles. Não
adiantava muito. Ainda que os Katukina me recebessem bem e parecessem
sinceramente felizes em rever-me, as evasivas persistiam.
20

Causava-me estranheza ainda maior que Mani, meu hospedeiro, adotasse o


mesmo comportamento. Mani, que nos anos anteriores havia sido tão gentil, paciente e
solícito, e que por vezes parecia mesmo me ver como uma interlocutora, alguém com
quem expunha não só suas certezas mas também suas dúvidas, estava, como os demais,
silenciando às minhas perguntas e minando completamente minhas tentativas de obter
qualquer nova informação ou confirmações de antigas.
Isso certamente me aborrecia e mais ainda o fato de não entender por que as
coisas se passavam daquela maneira. Lembro-me bem do dia em que as coisas
começaram a se esclarecer. Em 7 de setembro resolvi visitar Txoki, que mora nas
proximidades do Martim, mas não na beira da estrada. Como era feriado, encontrei-o
em casa à toa. Começamos a conversar, ele não desviou dos assuntos que eu mesma
sugeri e permitiu-me ligar o gravador. Fiquei surpresa, não só permitiu que gravasse
nossa conversa como respondeu como pôde e de bom grado a todas as perguntas que
fiz, algumas talvez afoitas demais, como que querendo suprir a falta de informações
significativas que me acompanhava há 17 dias, desde que havia chegado na aldeia.
À noite tentei confirmar com Mani algumas informações da conversa que tivera
com Txoki. Vendo que tinha novidades, Mani me perguntou quem me ensinara aquilo
sobre o que lhe indagava. Como não se tratava de nenhum segredo, disse que foi Txoki,
o seu companheiro de rezas. Dali em diante tudo mudou significativamente e pude
entender o silêncio às minhas investidas. Silêncio que se encerrou a partir daquele dia e
que se justificava por uma trama obscura, que Mani tentou me explicar e que vou tentar
resumir.

Em 1995 um austríaco naturalizado brasileiro, conhecido como Rogério (mas


cujo nome é Ruedger Von Reininghaus), que se dizia representante da organização não-
governamental Selva Viva, contatou os Katukina, querendo saber da medicina local, em
particular a respeito do uso de plantas medicinais. Em troca da promessa de
providenciar remédios e construir um posto de saúde, Rudiger pediu aos Katukina para
listarem o nome das plantas e o uso que faziam delas. O mesmo procedimento e as
mesmas promessas foram feitas também aos Poyanawa e aos Shanenawa. A listagem
seria apenas o começo da aproximação com os Katukina, mais tarde Rudiger planejava
coletar amostras das espécies listadas. Dois anos depois, na primeira metade 1997, teve
início o debate, na Assembléia Legislativa do Acre (ALEAC), sobre aquela que ficou
conhecida como a "Lei da Biodiversidade". No clamor do debate e antes da aprovação
21

da Lei, foi criada uma Comissão de Sindicância na ALEAC justamente para investigar
as atividades do Senhor Reininghaus. Em meio a um burburinho generalizado, de
repercussão nacional, dois Katukina foram chamados a depor na Comissão de
Sindicância, presidida pelo deputado estadual Edvaldo Magalhães, autor oficial da nova
Lei. Fernando Rosa (Kapi) e Nilo Carneiro (Tapo) depuseram em Cruzeiro do Sul, na
Câmara dos Vereadores. A convocação dos dois causou um certo pânico entre os
Katukina. Sem conhecerem as rotinas jurídicas e políticas de nossa sociedade, os
Katukina pensaram que eram acusados nas investigações, ao invés de testemunhas. Essa
confusão era partilhada não apenas por eles, mas também pelos regionais, vizinhos seus,
entre os quais corria o boato de que os Katukina estavam arrolados nas investigações
por plantarem maconha! Algo que a maioria deles sequer imaginava o que era.
Para não me estender em detalhes, os Katukina ficaram bastante temerosos com
o desfecho que poderia ter toda aquela história e decidiram, pouco antes de minha
chegada, não aceitar mais pesquisadores entre eles. Pesquisadores que se tornaram todos
suspeitos de "roubarem" seus conhecimentos, uma idéia que os políticos locais, de
diferentes matizes ideológicas, alardearam por toda parte e que se incorporou no
imaginário local. Até prova em contrário, os pesquisadores todos são mal-
intencionados, espiões ou ladrões, tanto mais se estrangeiros.6
Por tudo isso é que todos estavam evitando ajudar-me dessa vez, foi o que Mani
me explicou naquela noite. Singelamente disse que, apesar da decisão que os Katukina
tomaram, nem ele nem ninguém tinha coragem de me mandar embora e que estavam
satisfeitos de me ter de volta entre eles. Txoki certamente tinha passado por cima de um
acordo estabelecido entre eles, por isso se permitiu conversar determinados assuntos
comigo.
Compreendi perfeitamente seus motivos e tentei explicar que nada iria suceder
aos dois depoentes arrolados, certamente como testemunhas, nas investigações. Foi
então que Mani pediu para que eu fosse até a cidade averiguar se não havia mesmo nada
contra eles na Polícia Federal e no Fórum. Não tive como negar, não faltavam carros
para que pudesse ir e voltar rapidamente. Após selar esse compromisso, na mesma
noite, eu e Mani retomamos nossas conversas de sempre e começaram a ser confirmadas
as informações que havia obtido com Txoki.

6
Para uma apreciação mais detalhada sobre as suspeitas que pesam contra os pesquisadores e também
sobre a Lei da Biodiversidade no Acre, ver Calávia (1998).
22

No dia seguinte fui até Cruzeiro do Sul, conversei com agentes da polícia federal
e com um promotor. Embora tivessem alguma lembrança das denúncias e da passagem
da Comissão de Sindicância da ALEAC pela cidade, ninguém sabia informar nada.
Voltei à aldeia e comuniquei que estava tudo certo, nada pesava contra eles. Isso esfriou
o ânimo de todos e mudou completamente o tratamento que vinha recebendo desde
minha chegada. Tudo voltava ao normal. Algumas pessoas diziam que iriam manter a
decisão de não aceitar mais pesquisadores entre eles, com exceção de mim mesma e de
Maria Sueli Aguiar, uma lingüista que iniciou sua pesquisa há mais tempo ainda. Uma
decisão que, espero, não se cumpra.
O esclarecimento que trouxe da cidade e o retorno à normalidade fez com que
aumentassem as críticas à "liderança" naquele período, que, como me dei conta depois,
vinha manipulando a versão de que os Katukina eram suspeitos na investigação movida
pela ALEAC para tentar conter as insatisfações que pesavam internamente contra ele.
Como não poderia deixar de ser, abstive-me de intervir nesse desdobramento
imprevisto, embora não seja ingênua a ponto de pensar que minha interferência (ao
trazer os esclarecimentos da cidade) tenha sido pequena. Seja como for, penso que cedo
ou tarde isso acabaria acontecendo – membros de organizações não-governamentais já
vinham tentando esclarecer os katukina de que eles eram testemunhas e não acusados
nas investigações –, apenas calhou de ser mais cedo do que a "liderança" então pensava.
"Liderança" que, a propósito, continuou por mais um bom tempo em seu posto e sem se
opor à minha presença.
Entre os meses de abril e junho de 1998 voltei uma vez mais aos Katukina.
Nesta viagem planejei ampliar e verificar as informações obtidas na viagem anterior e
também visitar a aldeia do rio Gregório, o que nunca tinha feito até então. Mas esta
viagem acabou tendo outros desdobramentos, que se não me impediram de desenvolver
completamente o que tinha planejado, mudaram um pouco o curso dela. De abril até o
final de maio permaneci na aldeia do rio Campinas. Entretanto, não pude sair
imediatamente para a aldeia do rio Gregório. Estive em Rio Branco por uma semana,
acompanhando quatro rapazes numa reunião na Procuradoria Geral da República para
tratar do asfaltamento da BR-364 (Rio Branco-Cruzeiro do Sul), que se iniciou em 1996
e cujas obras estavam já próximas da aldeia – a rodovia atravessa por 18 km a Terra
Indígena do rio Campinas, em toda sua extensão leste-oeste. Até àquela data nenhuma
iniciativa por parte dos Governos Federal e Estadual havia sido tomada para minimizar
os impactos sócio-ambientais que serão causados aos Katukina, diretamente atingidos,
23

nem aos demais grupos indígenas do alto Juruá e do Vale do Javari, que serão afetados
indiretamente pelo empreendimento – conforme estabelecido no diagnóstico do Projeto
de Proteção do Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas II (PMACI II). O EIA-
RIMA (Estudo de Impacto Ambiental - Relatório de Impacto ao Meio Ambiente),
elaborado pela empresa paranaense STCP Engenharia de Projetos Ltda, nada havia
previsto a este respeito e o governo estadual e a FUNAI local fizeram vistas grossas ao
parecer negativo emitido pelo então Departamento de Patrimônio Indígena da FUNAI
de Brasília.7
Pode-se ter uma idéia da atenção dada às questões sócio-ambientais pelo
Governo do Acre naquele período apenas considerando o fato de que a licença de
instalação da obra transcorreu, num dado momento, junto com o andamento da própria
obra. Àquela altura, o EIA-RIMA era considerado como mera formalidade. O parecer
da FUNAI inicia-se questionando este impropério e continua apontando outros, tais
como: (i) apesar de serem definidas dezesseis terras indígenas afetadas direta e
indiretamente pelo asfaltamento da rodovia, informações específicas foram fornecidas
apenas sobre duas delas – as terras indígenas Katukina do rio Campinas e Kaxinawa da
Colônia Vinte e Sete; (ii) as informações um pouco mais detalhadas (e aqui apenas
considerando que nada foi dito a respeito das outras quatorze) sobre estas duas terras
indígenas justifica-se pela proximidade da estrada, entretanto, não se sabe por que a
distância foi o critério exclusivo para, assim, incluir ou excluir uma dada terra indígena
da área de abrangência; (iii) ao final, o estudo não traz nenhum tipo de aconselhamento
sobre a obra, não descreve em detalhes quais são os impactos nem recomenda qualquer
ação que possa mitigar seus efeitos negativos. Estes três problemas citados apenas
ilustram e resumem o parecer, que acaba por concluir que "é grave a situação dos
índios, e não só dos Katukina, frente às interferências decorrentes do asfaltamento da
BR-364" e por recomendar que fosse elaborado um EIA-RIMA exclusivo do
componente indígena.
Voltando à pesquisa de campo, os Katukina, que ajudaram a construir a BR-364
e não querem impedi-la completamente, decidiram buscar explicações e pedir para que
fossem tomadas providências para protegê-los, pois o aumento do tráfego de
automóveis e o maior fluxo de pessoas estranhas transitando em suas terras estavam

7
Sobre as questões envolvendo o asfaltamento da BR-364 (entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul) e os
Katukina e demais populações indígenas do alto rio Juruá ver Aquino (1997a) e Lima (1998 e no prelo).
24

lhes causando problemas (roubos, invasões de caçadores, riscos de atropelamento e até a


tentativa de rapto de uma criança). As obras na rodovia avançavam a cada ano e, em
1997, o asfaltamento chegou a três quilômetros da fronteira oeste da TI do rio
Campinas. Antes que as obras fossem retomadas, em 1998, os Katukina pediram para
que eu os acompanhasse até Rio Branco, pedido a que atendi prontamente.
Ao retornar de Rio Branco, fui novamente à aldeia do rio Campinas, para ajudar
a contar os resultados da viagem a Rio Branco aos demais Katukina8. Em seguida,
finalmente, saí para a aldeia do rio Gregório.
Fiquei apenas duas semanas na aldeia do rio Gregório, mas essa foi uma viagem
extremamente proveitosa. A avaliação positiva que faço desta curta estadia deve-se ao
fato de que, entre outras coisas, pude entender melhor como se constituem as relações
entre os moradores das duas aldeias e quais são os julgamentos recíprocos. Sempre
soube o que os moradores do rio Campinas pensam sobre o rio Gregório, mas faltava-
me a perspectiva recíproca.
Cabe ainda destacar que a pesquisa de campo foi durante um longo período
conduzida em português, embora fizesse esforços para aprender o katukina. Meu
domínio lingüístico foi então limitado, mas ao final destes meses podia entender grande
parte do que os Katukina falavam entre si, embora não conseguisse interagir
fluentemente na língua deles. Aliás, este é um outro aspecto positivo da viagem à aldeia
do rio Gregório. Convivendo menos com o brancos, seus moradores falam
precariamente o português, e, forçada pelas circunstâncias, acabei descobrindo que
podia comunicar-me em Katukina.

8
Da viagem a Rio Branco resultou o compromisso do Ministério Público em acompanhar o caso. Como
desdobramento desse compromisso, ocorreu em 3 de julho de 1999 uma audiência pública em Cruzeiro
do Sul, na qual foi invalidado o componente indígena do EIA-RIMA. O atual governo do Acre, através
do DERACRE (Departamento de Estradas e Rodagem do Acre) encomendou um novo EIA-RIMA,
exclusivo do componente indígena, à FUNTAC (Fundação de Tecnologia do Estado do Acre). Este foi
concluído em maio deste ano e, em vários aspectos, comporta as mesmas insuficiências do trabalho
anterior. No último dia 7 de julho aconteceu uma reunião entre representantes do Ministério Público
Federal, do Governo do Acre, da FUNAI, dos Katukina e de organização não-governamentais. Mais
uma vez foi anulado o componente indígena do EIA-RIMA. Ao DERACRE foi estabelecido um prazo
de noventa dias para apresentar um novo estudo. Este será o terceiro. O asfaltamento da rodovia no
trecho Tarauacá-Rodrigues Alves, que abrange a TI do rio Campinas, está paralisado desde 1997.
25

Notas técnicas

Por fim, não posso deixar de mencionar alguns detalhes técnicos relativos à
identificação científica das espécies animais, particularmente dos mamíferos, das aves e
das cobras, que será apresentada no quinto capítulo. Para a identificação de todos, servi-
me de ilustrações contidas nos livros de Emmons (1990), Hilty & Brown (1986),
Amaral (1977) e Lancini (1979). A identificação dos mamíferos a partir das ilustrações
fez-se facilmente, praticamente não ocorreram variações entre as diversas pessoas que
me ajudavam, fossem homens ou mulheres, crianças ou adultos. No que diz respeito à
identificação das aves, combinei o uso de ilustrações com gravações de cantos. Como se
sabe, as aves são muitas vezes mais ouvidas do que vistas (Gianini 1991) e nas situações
em que havia dúvidas, optei pela identificação a partir do registro sonoro. Usando
apenas ilustrações, a identificação científica das cobras foi bastante comprometida. A
partir de uma consulta ao inventário das cobras que ocorrem no Acre, disponível no
Museu de Zoologia da USP, montei um catálogo com ilustrações. Entretanto, as
alterações de tamanho (reduções e ampliações) e mesmo de cor pareciam confundir os
Katukina e não permitiam uma identificação exata das espécies. As variações
individuais das informações eram muitas, mas não tive como contornar esse problema.
Uma técnica possível seria, segundo Berlin (1992:202-203), o uso de peles preparadas
para a identificação das serpentes. O próprio Berlin, contudo, afirma que o preparo das
peles provoca distorções que alteram radicalmente a aparência natural, especialmente
quando se trata de répteis. De qualquer forma, não foi por este motivo que não segui a
orientação de usar pele de cobra para identificação. Pareceu-me extremamente difícil
obter exemplares de pele das mais de quarenta espécies que ocorrem no Acre e levá-los
a campo. Além disso, algumas das serpentes que ocorrem no Acre – justamente as que
mais interessavam por relacionarem-se ao xamanismo –, não são abatidas pelos
Katukina e merecem mesmo muita reverência, o que tornaria temerário fazer a
identificação usando a pele de cobras mortas. Era imprevisível a reação dos Katukina
diante da pele de cobras que eles próprios temem matar. O trabalho em
etnoherpetologia, sobretudo no que diz respeito à identificação científica das espécies,
não me parece mais possível sem a parceria com um especialista ou com uso de vídeos
ou de visitas a serpentários. No quinto capítulo, apresento a nomenclatura científica
apenas dos diversos mamíferos, aves e cobras que foram inequivocamente identificados
a partir das ilustrações ou dos cantos. As identificações duvidosas foram suprimidas.
26

Para as posições genealógicas, utilizei a notação inglesa: F = pai, M = mãe, S =


filho, D = filha, Z = irmã (eZ = irmã mais velha; yZ = irmã mais nova), B = irmão (eB =
irmão mais velho; yB, irmão mais novo), C = filhos, H = marido, W = esposa.

Sinopse dos capítulos

No primeiro capítulo reuni informações sobre a situação atual dos Katukina no


que diz respeito às condições econômica, política e demográfica de suas aldeias.
Embora as informações nele contidas possam ser lidas independentemente do restante
da tese, achei importante apresentá-las e discuti-las. Por um lado porque permite ao
leitor situar os Katukina no contexto contemporâneo. Por outro, e mais decisivamente,
porque no intervalo entre os anos de 1994 e 1998 houve um intenso fluxo migratório
dos moradores da aldeia do rio Gregório para a aldeia do rio Campinas. Os
deslocamentos entre as aldeias são recorrentes na história katukina e relatórios da
FUNAI (1979 e 1982) tinham-nos registrado antes. Como pude acompanhar em campo
o fluxo migratório em sua fase final, pareceu-me proveitoso discuti-lo. As várias
explicações dadas pelos próprios Katukina para justificar os deslocamentos são valiosas
para pensar a dinâmica territorial e cultural do grupo após mais de um século de contato
com os brancos.
No segundo capítulo trato da noção de corpo e de pessoa katukina. Inicio a
exposição apresentando a concepção katukina de que todas as pessoas são animadas por
dois espíritos – o do corpo propriamente dito (yora vaka) e o do olho (wero yushin). Em
seguida abordo como se constrói o parentesco além de seus limites formais, i.e., como
se define o grupo de consubstanciais. Para isso, exponho tanto o conteúdo quanto as
implicações sociológicas das diversas restrições alimentares e formas de conduta que
operam para mantê-lo coeso.
Nas quatro primeiras seções do terceiro capítulo ofereço uma etnografia da
morte e dos destinos dos mortos. Na última seção, a partir da análise dos materiais
katukina, e apoiando-se também em etnografias sobre os Marubo, os Kaxinawa e os
Yawanawa, mostro como os diferentes destinos dos espíritos após a morte – em
particular do espírito do olho, que celestialmente troca de pele e adquire um novo corpo
– são fundamentais para sustentar uma oposição radical entre vivos e mortos. Desta
forma, questionando a interpretação de Erikson (1986) de que vigora nos grupos pano
uma relação de continuidade entre essas duas classes.
27

O xamanismo é examinado no quarto capítulo. Inicialmente esclareço a


diferenciação que os Katukina estabelecem entre romeya e shoitiya, respectivamente
traduzidos como xamã e rezador. Dado que atualmente há em atividade apenas
especialistas do segundo tipo, concentrei-me nele para abordar como se estabelece a
iniciação aos conhecimentos xamânicos e as concepções e práticas que os sustentam.
Os capítulos precedentes objetivam situar os Katukina em seu meio e mostrar,
além das implicações sociológicas, como suas concepções exigem um permanente
cuidado em equilibrar suas relações com a alteridade, seja representada por animais ou
espíritos. No quinto e último capítulo sistematizo como são concebidas as relações que
estabelecem com os animais a partir do exame da taxonomia da fauna, especialmente
dos mamíferos e das cobras. Embora nos esquemas classificatórios os critérios
morfológicos sejam prevalecentes, o entendimento deles não supõe a objetivação da
natureza nos mesmos moldes da ciência ocidental. Ao contrário, como se verá, certas
características morfológicas podem mesmo indicar como um dado animal interfere no
domínio humano. Após apresentar a taxonomia dos mamíferos e das cobras, discuto o
simbolismo das espécies animais. Concluo o trabalho resumindo e destacando os
principais problemas que foram apresentados ao longo do texto.
No mais, inclui dois apêndices no final. O primeiro resume a terminologia de
parentesco katukina. Como a análise das temáticas tratadas exigiu diversas vezes a
referência ao sistema de parentesco, avaliei que seria útil ao leitor ter ao menos um
esboço dele. No segundo apêndice apresento a grafia das palavras katukina.
28

CAPÍTULO 1
Situação dos Katukina

Os Katukina totalizavam em julho de 1998 uma população de 318 pessoas,


distribuída em duas terras indígenas: a TI do rio Campinas e a TI do rio Gregório. A
primeira possui uma área de 32.623 hectares e está localizada nos municípios de Ipixuna
(AM) e Tarauacá (AC), embora Cruzeiro do Sul seja o centro urbano mais próximo, está
a aproximadamente 60 quilômetros. A segunda, localizada no município de Tarauacá,
soma 92.859 hectares, mas os Katukina ocupam apenas a sua porção norte, pois ao sul
estão os Yawanawa, com os quais dividem a totalidade das terras.1
Todos os Katukina são fluentes em sua própria língua e poucos falam também o
português.2 Embora possa parecer surpreendente, nunca superei a impressão de que, em
termos proporcionais, o domínio do português talvez tenha sido maior no passado. A
maioria dos homens adultos, com níveis variáveis de dificuldade para entender e falar,
pode comunicar-se em português. Contudo, as poucas mulheres que dominam o
português como os homens são mais velhas. As mais jovens, na faixa etária estimada
entre 15 e 30 anos, entendem o português apenas precariamente, e falam com muito
mais dificuldade ainda. Para explicar essa situação só me ocorre pensar que com o fim
do regime dos seringais – que dato em meados da década de 1980, pois, ao menos para
os Katukina, coincide com a demarcação de suas terras –, as mulheres ficaram ainda
mais afastadas do mundo dos brancos, de relações externas e públicas francamente
masculinas, e essa brecha precipitou o refluxo do uso da língua estrangeira. Convivendo
compulsoriamente entre famílias de seringueiros, as mulheres antes obrigavam-se a
falar português. Nos dias de hoje, desobrigaram-se. Trata-se, como disse, de uma
impressão e não asseguro que os lingüistas dedicados ao estudo da língua katukina a
endossem.

1
A TI do rio Gregório foi a primeira demarcada no Acre, em 1983, e homologada definitivamente em
1991. A TI do rio Campinas foi demarcada em 1984, homologada em 1993, embora apenas na metade
de 1999 tenha sido definitivamente registrada no Serviço de Patrimônio da União.
2
Não quantifiquei o número de falantes da língua nativa e do português. De todo modo, segundo Aguiar
(1994:283), apenas 10% dos Katukina são bilíngues, fluentes em sua própria língua e em português. Os
90% restantes são monolíngues.
29
30

Essa dificuldade, sobretudo das mulheres e crianças, de interagirem em


português sempre é destacada pelos próprios Katukina e fundamenta uma certa
insatisfação com a adoção do ensino bilíngüe nas escolas. O fato de os professores
ensinarem também a língua nativa desagrada aos pais de algumas crianças e causa
debates em reuniões sobre o funcionamento da escola na aldeia do rio Campinas.
Muitos prefeririam ver os professores iniciarem seus filhos apenas ao aprendizado do
português. A língua nativa eles próprios se encarregariam de ensinar. Na escola residem
os saberes exteriores – essenciais nos dias de hoje –, vindo do mundo dos brancos, o que
sustenta a idéia de que nela deveria ser veiculada exclusivamente a língua falada pelos
brancos.
Na aldeia do rio Campinas os grupos domésticos são compostos de duas a sete
casas que se distribuem ao longo da beira da estrada a uma distância variável de cinco a
quinze minutos de caminhada um do outro. Pouco a pouco, desde que se iniciou o
asfaltamento da BR-364, aumentando o trânsito de veículos, alguns moradores têm
afastado suas casas das margens da rodovia, tentando ficar longe do barulho e do risco
de acidentes. Na aldeia do rio Gregório quase todos os grupos domésticos estão
distribuídos na margem direita desse rio, próximos da pista de pouso e das instalações
da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). Apenas dois deles encontram-se em locais
um pouco mais afastados e na margem esquerda. Em ambas aldeias, uma pista é que
acaba por definir a distribuição espacial dos grupos domésticos.
No último período em que estive em campo não havia uma "liderança" política
estabelecida entre os moradores do rio Gregório. Os mais velhos, preocupados com a
situação, discutiam essa ausência e procuravam algum jovem que tivesse talento e gosto
e que pudesse assumir o cargo. Além de qualquer outro atributo, nos dias de hoje uma
"liderança" precisa dominar o português e estabelecer contatos com organizações
governamentais e não-governamentais. Como o líder político tinha também se
transferido para a aldeia do rio Campinas – foi o último a mudar-se, no final de 1997,
encerrando um fluxo migratório que discuto adiante –, os mais velhos estavam ainda
ensaiando alguma solução. Na prática, cumpriam coletivamente um "mandato-tampão"
enquanto não chegavam a empossar nenhum dos pretendentes.
Na única vez em que escrevi sobre a política na aldeia do rio Campinas, disse
que havia uma "crise", uma indecisão entre as opções de adotarem uma "liderança
moderna" ou uma "chefia tradicional" (Lima 1994a:13). O dilema foi superado e os
Katukina acabaram escolhendo a primeira alternativa. Mas isso não se deu de forma
31

simples. Penso que a maciça transferência de moradores do rio Gregório para a aldeia
do rio Campinas, acabou apressando uma solução. Atualmente não há uma única
"liderança", como acontecia antes, mas quatro. Para falar dessa solução é necessário
saber que dentro da TI do rio Campinas há quatro localidades distribuídas ao longo da
rodovia: Campinas, Martim, Samaúma e Bananeira, no sentido oeste-leste. Em cada
uma delas, distribuem-se os agrupamentos domésticos que têm como composição básica
um casal rodeado de seus filhos e filhas solteiros, filhos casados e netos.3 Pois bem, as
três primeiras localidades têm um representante político que coletivamente encaminha
todos os assuntos de interesse que lhes dizem respeito. O Bananeira é englobado pelo
Samaúma em seus encaminhamentos, isso se explica por alguns vínculos de parentesco
e também porque parte da população é branca, afins de um índio casado com uma
branca. Os Katukina fundaram recentemente a Associação Índigena dos Agricultores
Katukina, a AIAKA, e quem assumiu o cargo de coordenador acabou sendo o último
líder da aldeia do rio Gregório, Orlando Assis (Vino), que centraliza todos os
encaminhamentos dos outros três representantes.
Confirmando que um dos principais atributos dos "líderes" é a capacidade de
estabelecer relações externas, todos têm seus vínculos, diversos entre si. O representante
atual dos moradores do Samaúma é o professor Benjamin (Shere) que há seis anos
freqüenta os cursos de formação escolar oferecidos pela CPI-AC (Comissão Pró-Índio
do Acre), que também assessora a escola e confecciona parte do material didático
utilizado nas aulas; o representante do Martim, Nilo (Tapo), vinculou suas relações
externas ao Padre Heriberto, da Diocese de Cruzeiro do Sul, e consegue através dele
obter algumas obras (a escola e o posto de saúde de alvenaria no Martim foram
construídos por seu intermédio) e instrumentos de trabalho (a cada ano o Padre
Heriberto doa aos Katukina terçados, enxadas, botas e chapéus); e Fernando (Kapi) foi
durante um longo período membro da diretoria da União das Nações Indígenas do Acre
(UNI-AC), morou em Rio Branco quase cinco anos. No começo deste ano, Kapi foi
empossado como chefe do Posto Indígena da FUNAI em Cruzeiro do Sul. Entre todos,
o coordenador da recém-constituída AIAKA tem vínculos menos fixos com
organizações não-governamentais e governamentais, mas, ainda bastante moço, foi
quem conduziu a expulsão dos brancos das terras do rio Gregório, junto com a

3
Nos dias de hoje a residência pós-marital é majoritariamente patrilocal. Os próprios Katukina admitem
que esse é um arranjo recente, pois no passado os rapazes é que se deslocavam para as proximidades da
casa de seus sogros.
32

"liderança" yawanawa, quando a demarcação foi encaminhada em 1983. É bem


conhecido por todos os indigenistas no Acre, fala português com segurança e sua
oratória, que maneja bem nas duas línguas, agrada a todos – um dos atributos
"tradicionais" que todos identificam no "líder contemporâneo". Seu pai, Washime, foi
chefe da aldeia do Campinas anos atrás. Na década de 1970, quando se iniciou a
construção da rodovia, foi ele quem negociou com o Exército a permanência dos
Katukina no local.
A nova fórmula de organização política parece estar vigorando com algum
sucesso. Soube no início deste ano que os Katukina conseguiram fazer com que o
Governo do Estado atendesse a reivindicação de construir no Campinas e no Samaúma
uma escola e um posto de saúde. Com as novas instalações, as crianças e demais
pessoas não precisam mais deslocar-se à sede da aldeia para assistirem aulas ou serem
atendidas por um agente de saúde.
Até 1998 a atuação da FUNAI entre os Katukina era praticamente inexistente,
limitava-se à expedição de certidões de nascimento no escritório de Cruzeiro do Sul. Os
moradores da aldeia do rio Campinas, para implementar iniciativas em áreas essenciais,
como educação e saúde, estabeleceram parcerias com organizações não-
governamentais, como a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) e o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). Sem se confundir com as ações do último, há ainda a
atuação do Padre Heriberto, da Diocese de Cruzeiro do Sul. Na aldeia do rio Gregório,
os serviços de educação escolar e saúde estão nas mãos dos missionários da MNTB.
No rio Campinas a maior parte dos recursos financeiros de que os Katukina
dispõem para se abastecerem de artigos industrializados (machados, terçados,
querosene, roupas etc) é proveniente da aposentadoria dos índios mais velhos, que têm
direito ao benefício como trabalhadores rurais. Um salário mínimo mensal chega a
manter, com dificuldades certamente, mais de três famílias. Poucos são aqueles que
conseguem vender algum excedente agrícola nos mercados de Cruzeiro do Sul. Embora
estejam próximos da cidade, os Katukina não têm meios de transporte próprios e o custo
do frete para deslocarem-se com seus produtos agrícolas até a cidade é muito alto. Sem
contar que o valor dos produtos que plantam (macaxeira, banana, inhame, batata-doce,
entre outros) é muito baixo. No rio Gregório poucos são os índios que se aposentaram.
A longa distância, combinada com a falta de meios de transporte, até Tarauacá ou
Cruzeiro do Sul, cidades nas quais são feitos os pagamentos mensais, faz com que
alguns desistam do benefício. Pelo mesmo motivo, não conseguem comercializar sua
33

produção agrícola. Para suprir a falta de artigos industrializados, alguns empregam-se


em pequenos serviços para os missionários da MNTB, recebendo como pagamento as
mercadorias de que necessitam.

De lá pra cá: a migração dos Katukina

Transcorridos quase trinta anos desde a formação da aldeia do rio Campinas, os


Katukina ali residentes não deixaram de manter contatos com aqueles moradores do rio
Gregório e vice-versa.4 Para isso têm de vencer um percurso que exige três dias de
caminhada pela rodovia (BR-364) até o ponto em que esta alcança o rio Gregório, na
localidade chamada São Vicente, e mais dois ou três dias de barco, varejando, até a
aldeia. Comenta-se que há varadouros pela floresta, porém essa alternativa torna a
viagem mais cansativa, pois ao mesmo tempo em que se caminha, tem-se de abrir o
caminho, uma vez que esse acesso é pouco utilizado. De tal forma que o número de dias
gastos em viagem acaba sendo o mesmo. O trecho da rodovia entre o São Vicente, no
rio Gregório, e a aldeia do rio Campinas, é de terra e no período de verão o trânsito de
carros e caminhões pode diminuir o tempo da viagem. De carro e com a estrada seca
chega-se ao rio Gregório em aproximadamente quatro horas. Alguns motoristas que
transportam mercadorias entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul costumam oferecer
transporte sem qualquer custo às pessoas que viajam pela estrada e os Katukina acabam
assumindo-se como caroneiros.
As visitas entre as aldeias dos rios Gregório e Campinas, apesar do longo
percurso, sempre foram freqüentes e algumas pessoas chegam a morar temporariamente
em uma e na outra. Contudo, entre 1994 e 1997 houve um forte fluxo migratório de
moradores da aldeia do rio Gregório para a aldeia do rio Campinas, apesar do
reconhecimento unânime de que a primeira apresenta melhores condições ecológicas,
sobretudo um estoque maior de peixes e animais de caça. Na aldeia do rio Gregório é
possível no verão (maio a outubro), mergulhar para pegar peixes e coletar ovos de
tracajá, coisas impossíveis de serem feitas no rio Campinas, já que este é estreito, fundo
e sem praias, enquanto o rio Gregório é largo, raso e tem praias. Nestas são plantados
amendoim, feijão e melancia, vegetais ausentes do cardápio dos moradores da aldeia do
rio Campinas. No período do inverno (novembro a abril), os homens caçam antas e

4
Um relato mais extenso da história katukina pode ser encontrado em Lima (1994a).
34

capivaras no rio Gregório e nos igarapés afluentes, animais raramente encontrados na


aldeia do rio Campinas.
Aos olhos dos moradores do rio Campinas, a aldeia do rio Gregório é
particularmente atraente no verão e, eventualmente, algumas pessoas, logo após terem
brocado e derrubado a mata para fazerem os roçados, vão passear por lá enquanto
aguardam que as árvores sequem para proceder à queimada. Em 1994 cheguei na aldeia
do rio Campinas em agosto e fiquei dois dias entre poucas pessoas, as demais tinham
ido passear no rio Gregório, aproveitando a disponibilidade de carros naquele período.
Inversamente, um passeio na aldeia do rio Gregório durante o inverno não é um bom
programa, o acesso torna-se penoso tanto pela completa ausência de carros que possam
oferecer uma carona quanto pela lama que se acumula na estrada, ao que se acrescenta
ainda o volume das águas para quem sobe o rio varejando em pequenas canoas.
A análise dos dados sobre a população katukina no intervalo de pouco mais de
20 anos, conforme a tabela e o gráfico abaixo, mostra que a aldeia do rio Campinas teve
um acréscimo populacional da ordem de 120%, enquanto a do rio Gregório aumentou
apenas 27%. A disparidade dos números reflete não um crescimento vegetativo desigual
– seria de 1,35% para o rio Gregório e de 6% para o rio Campinas, a média total é de
3,9% –, mas a migração recente que ocorreu da primeira para a segunda e que pude
acompanhar apenas em seu final– se é que realmente acabou.
As mudanças de uma aldeia para a outra foram registradas antes em relatórios da
FUNAI (1979 e1982) e certamente dependem da avaliação que os Katukina fazem da
situação (social, econômica e política) de cada uma delas no período. A aldeia do rio
Campinas teve um acréscimo populacional de quase 70% entre os anos de 1994 e 1998
e sua população, mesmo em termos relativos, nunca foi tão grande quanto hoje
(conforme tabela abaixo).
35

POPULAÇÃO KATUKINA5
Ano T. I. rio Gregório T.I. rio Campinas Total

1977 75 100 175


1982 110 77 187
1994 160 130 290
1998 98 220 318

População Katukina
250
200
150
100
50
0
1977 1982 1994 1998

T. I. rio Gregório T.I. rio Campinas

As linhas do gráfico deixam claro que entre os anos de 1982 e 1994 as duas aldeias
tinham um crescimento quase paralelo. Entretanto, em seguida, no intervalo entre 1994
e 1998, a desproporção aparece de forma abrupta com a elevação da população da
aldeia do rio Campinas e com o declínio da população do rio Gregório.
A primeira e uma das principais justificativas dada pelos próprios Katukina para
tão expressiva migração é a dificuldade de acesso da aldeia do rio Gregório, que
provoca a carência de artigos industrializados – sal, sabão, querosene, tecidos, redes,
entre outros – dos quais dependem hoje em dia. Uma outra, é a maior facilidade para
obterem a aposentadoria em Cruzeiro do Sul, da qual obtêm o dinheiro para comprar as
mercadorias de que necessitam. O Posto da FUNAI em Tarauacá, que atende, entre

5
Os dados dos anos de 1977 e 1982 constam de relatórios da FUNAI. No ano de 1997, os dados da
população do rio Campinas foram recolhidos por mim mesma e aqueles da população da aldeia do rio
Gregório, constam de um levantamento da Associação dos Agricultores Yawanawa do rio Gregório
(apud CPI 1998). Os dados relativos à população das duas aldeias em 1998 foram também recolhidos
por mim.
36

outros grupos indígenas, aos Katukina do rio Gregório, foi durante um longo período
administrado por índios Yawanawa e tem ainda em seus quadros pessoas ligadas a estes.
Segundo os Katukina, os Yawanawa têm dificultado os procedimentos burocráticos para
que possam obter suas aposentadorias. Como discuti em um trabalho anterior (Lima
1994a), as relações entre os Katukina e os Yawanawa sempre oscilaram entre a
hostilidade guerreira e a amizade comedida e são centrais para o entendimento de
eventos recentes da história Katukina. A própria constituição da aldeia do rio Campinas
é creditada, entre outros fatores, a desentendimentos com os Yawanawa6. Agora, por
motivos surpreendentes, as tensões entre os dois grupos reaparecem para explicar o
forte fluxo migratório.
Sejam ou não os Yawanawa mais uma vez focais na história katukina, uma
questão que deixo para depois, a distância que separa a aldeia do rio Gregório de centros
urbanos nos quais se abastecem de artigos industrializados é realmente grande e
justifica, inclusive, o fato de que alguns velhos, que não querem se transferir dali,
desistam de requerer a aposentadoria7. Da aldeia até São Vicente, de canoa, gastam-se
dois dias para descer o rio. De São Vicente até Tarauacá, caminhando pela BR-364, são
mais três ou quatro dias. A possibilidade de um motorista de boa vontade oferecer
carona só pode ser considerada entre os meses de julho e setembro, quando então a
viagem pode ser feita em três horas. Levando em conta que, seja verão ou inverno, a
distância que separa a aldeia do rio Campinas de Cruzeiro do Sul pode ser vencida em
poucas horas, a proximidade de um centro urbano como justificativa para a recente
migração não deve ser desprezada.
Neste sentido, chama a atenção na tabela demográfica acima que em 1977 e em
1998, os dois anos em que a população da aldeia do rio Gregório foi inferior à do rio
Campinas, havia alguma expectativa em torno da consolidação da BR-364. Em 1977,
apenas cinco anos após a fundação da aldeia do rio Campinas, a estrada, embora fosse
completamente de terra, tinha o tráfego livre entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul no
período do verão. Da década de 1980 até 1994, por falta de manutenção, longos trechos
da estrada foram invadidos pela vegetação e a ligação terrestre entre as duas cidades foi
interrompida. De Cruzeiro do Sul alcançava-se de carro, no máximo, o riozinho da

6
Carid (1999:43-45) afirma que a centralidade que os Katukina atribuem aos Yawanawa não tem sua
"contrapartida simétrica" entre os últimos, que não os acusam de quaisquer problemas. O que,
indiretamente, tende a confirmar a posição dominante dos Yawanawa.
37

Liberdade. A partir de 1995 foi dado início ao asfaltamento da rodovia, com todos os
problemas no licenciamento da obra de que falei antes, e novamente decresceu a
população da aldeia do rio Gregório. Em poucas palavras, suspeito que a variável
"rodovia" deva pesar significativamente na decisão sobre o local de moradia entre os
Katukina, na escolha entre uma ou outra das aldeias.
Sem que me falte prudência, resta dizer que é difícil ponderar o peso relativo
também das alterações de humor entre os próprios Katukina e entre eles e os Yawanawa
e outros episódios que talvez me tenham escapado. Com freqüência ouvia as pessoas
dizendo que se mudariam do Campinas pelos motivos mais banais: uma briga com um
irmão, com um outro vizinho qualquer e mesmo por conta de uma bicicleta quebrada
após ser emprestada. As alternativas aventadas nestas situações era a mudança em
direção à aldeia do rio Gregório ou às aldeias marubo no rio Ituí. Essa última alternativa
nunca se concretizou e pareceu-me apenas uma ameaça. Como toda a pesquisa de
campo foi realizada quando o fluxo era voltado em direção à aldeia do rio Campinas,
não tenho como precisar em que medida a mudança numa situação de desacordo
doméstico é realmente levada a sério. Em qualquer caso, a mudança de aldeia figura
como uma alternativa sempre presente.
A possibilidade da mudança ser motivada por desentendimentos com os
Yawanawa, também não deve ser desconsiderada. Relatei antes (Lima 1994a:131) o
caso de um homem, Yupa, que se transferiu com sua família (esposa e filhos) para a
aldeia do rio Campinas, após um rapaz yawanawa comunicar-lhe o desejo de casar-se
com uma de suas filhas. Como Yupa não desejava o casamento, decidiu ficar longe do
rapaz, temendo que ele raptasse sua filha. Quando voltei ao rio Campinas, Yupa não
estava mais lá, encontrei-o morando novamente no rio Gregório. O caminho de volta foi
feito devido a desentendimentos com os moradores da primeira, onde ele morou por
pouco mais de um ano. Situações como essa inscrevem-se ainda num âmbito bastante
doméstico, no qual a decisão sobre a mudança do local de moradia envolve apenas
poucas pessoas.
Ainda que a disputa por mulheres seja sempre lembrada nas antigas rixas com os
Yawanawa, acredito que num plano político mais amplo é que estão situadas as
contendas contemporâneas. Como bem observou Carid (1999:46), os dois grupos

7
Os Yawanawa contaram a Carid (1999:8 nota 9) do caso de um velho Katukina que, indo para Tarauacá
receber o benefício, não suportou o esforço e morreu no meio do caminho.
38

moradores do rio Gregório têm tomado decisões divergentes em importantes eventos


recentes. O principal deles diz respeito à presença dos missionários da MNTB.
Os missionários chegaram no rio Gregório em 1972. Pouco depois de
estabelecerem a missão entre os Katukina, construindo as instalações de moradia e
atendimento aos índios e a pista de pouso, decidiram fixar-se, após serem convidados
(Pérez 1999:25), também entre os Yawanawa. A chegada da missão entre os Katukina
fez com que muitos homens que estavam trabalhando na construção da BR-364,
empregando-se no desmatamento, voltassem ao rio Gregório. O pagamento efetuado
pelos missionários a quem trabalhasse na construção das instalações e da pista de pouso
seria mais vantajoso do que aquele pago pelos vários empreiteiros contratados pelo
Exército para construírem a estrada. De mais a mais, havia também a garantia de
atendimento à saúde – comenta-se que na década anterior um epidemia de sarampo
havia matado muitas pessoas – e escola às crianças, serviços inacessíveis até então. A
Missão encontra-se estabelecida ainda hoje entre os Katukina, mas não entre os
Yawanawa.
No início de 1986, um jovem yawanawa, Biraci Brasil, à época com 21 anos,
que havia estudado na cidade para formar-se pastor, voltou à aldeia e decidiu expulsar
os missionários – seus estudos tinham possibilitado também contatos com indigenistas
que o informaram a respeito dos direitos indígenas –, assumindo mais tarde o posto de
chefia. Ao que parece a decisão de expulsar os missionários não era unânime entre os
próprios Yawanawa, mas Biraci conseguiu sustentar o que tinha planejado. A partir de
então, os Yawanawa estabeleceram parcerias com organizações não-governamentais,
com a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) em particular, para suprir, ao menos em
parte, o atendimento que era feito pelos missionários. Professores e agentes de saúde
foram treinados em cursos oferecidos em Rio Branco e voltaram à aldeia a fim de
implementar a educação escolar e o atendimento à saúde. Com o tempo, os Yawanawa
desenvolveram uma estratégia de relações com o exterior bastante bem sucedida, ao
menos no sentido de que garantiram uma certa autonomia financeira, e têm atualmente
implementado várias parcerias com empresas nacionais e internacionais. As principais
parcerias foram estabelecidas com a empresa Couro Vegetal da Amazônia, com a
Aveda, uma indústria de comésticos norte-americana, e com a Hermès, a famosa grife
francesa (Carid 1999:9-10). Enquanto isso, os Katukina mantêm-se atrelados à Missão
para obter tudo o que precisam: instrução escolar, atendimento médico, remédios,
vestimentas, panelas e combustível, entre outras coisas. As mercadorias eles obtêm
39

como pagamento pelos pequenos serviços, como a manutenção da pista de pouso e a


lavagem de roupas, nos quais se empregam para os missionários. Esse sistema tem
semelhanças óbvias com a economia do seringal e nele os missionários ocupam o lugar
dos patrões. Só os velhos aposentados não são completamente dependentes das
atividades desempenhadas para a Missão.
Uma vez que a pista de pouso está localizada na aldeia katukina, os visitantes da
aldeia yawanawa, que chegam quase todos de avião, têm de passar por ali. A chegada
freqüente de pessoas em visita aos vizinhos deixam os Katukina algo enciumados. Ouvi
de muitas pessoas que todos que chegam ao Gregório sobem o rio em direção à aldeia
yawanawa, pouco se importando com a presença deles próprios ali, embora ofereçam
hospedagem e comida àqueles que não podem concluir a viagem no mesmo dia. Uma
das primeiras perguntas que me foi feita, em tom solene, quando cheguei ao rio
Gregório foi se tinha mesmo ido até lá exclusivamente para visitá-los. Após ouvirem a
resposta afirmativa, disseram-me que eu era a primeira pessoa a permanecer
exclusivamente entre eles, a querer partilhar a convivência quotidiana, enfim, a
conhecê-los; todos os outros visitantes teriam por eles um certo desprezo. Ouvi o
desabafo, em diferentes versões, praticamente todos os dias em que permaneci na
aldeia. A retórica era exagerada. Os homens especulavam se não seria possível
oficializar a divisão das terras entre os dois grupos e interditar o uso da pista de pouso
aos Yawanawa e seus visitantes. Afinal, tinham-na construído e conservavam-na com
seus próprios esforços e não era justo que não obtivessem qualquer compensação. Se
quisessem usufruir do transporte aéreo, que os Yawanawa construíssem a sua própria
pista. Segundo Carid (1999:8, n.9), no final de 1998, os Katukina ("em teoria
esporeados pelos missionários") enviaram cartas a algumas instituições comunicando os
conflitos envolvendo a pista de pouso e sugerindo cobrar um pedágio por seu uso. O
mesmo autor soube mais tarde que tudo não passara de um mal-entendido e que as
coisas acabaram se resolvendo sem maiores transtornos.
À decisão divergente de romperem ou manterem-se junto aos missionários,
parece-me, deve ser creditada boa parte dessas contendas atuais entre os dois grupos,
pelo menos no que diz respeito aos próprios Katukina. Segundo estes, por várias vezes
os Yawanawa tentaram convencê-los a fazer o que eles já haviam feito antes, isto é,
expulsar os missionários, mas eles resistiram. A certeza de que a manutenção dos
missionários é a decisão correta, pelo menos por enquanto, fundamenta-se não tanto na
40

fidelidade religiosa8, mas no medo de se encontrarem posteriormente desamparados em


casos de necessidade, sobretudo em se tratando de socorro médico. Como os Yawanawa
buscam ainda socorro na Missão nos casos mais graves de doença, essa certeza é
continuamente reforçada. O conselho que um de meus hospedeiros no rio Gregório
disse que ouviu de um velho yawanawa guarda o bom humor nativo, mas é revelador
das ponderações que os Katukina fazem acerca da presença da Missão: "Segure os
americanos de vocês, que nós ficamos sem os nossos e precisamos nos socorrer aqui".9
Pragmaticamente, os Katukina ponderam qual é a relação "custo/benefício" da
permanência da Missão. Reconhecendo-se dependentes dos missionários, refletem que o
melhor é mantê-los por ali. A parceria com organizações não-governamentais, bastante
desejada, poderia ajudá-los a tornarem-se mais autônomos, a terem seus próprios
professores e agentes de saúde – como ocorre entre os Yawanawa e entre os próprios
Katukina do rio Campinas – e a buscarem novas alternativas econômicas. Porém,
desconfiam com toda razão que a presença dos missionários repele tais parcerias.
Continuando com a versão katukina dos fatos, um dos argumentos lançados
pelos Yawanawa para convencê-los a expulsar os missionários seria a excessiva
interferência na "cultura" do grupo, na tentativa de convertê-los ao cristianismo. Aqui

8
A transferência de mais da metade dos moradores do rio Gregório para a aldeia do rio Campinas entre os
anos de 1994 e 1998 parece ter impulsionado os missionários em seu trabalho de evangelização, pois
ouvi de várias pessoas que antes os cultos evangélicos não eram realizados. Até 1994 não tive
conhecimento de nenhuma pessoa que se identificasse ou apontasse alguém como "crente". O máximo
que sabia então era de "conversões provisórias", de alguns meses apenas, e que se encerravam pela
dificuldade em aderir ao código moral que interdita relações extra-conjugais e o uso de rapé, cigarro ou
cachaça. Naquela data não tinha ainda visitado a aldeia do rio Gregório, os moradores do rio Campinas é
que me informavam de que lá ninguém tinha aderido à fé cristã. Ao contrário, quando retornei a campo
em 1997 o quadro já estava alterado e os moradores do rio Campinas informavam que toda a aldeia do
rio Gregório estava convertida. Às vezes me falavam com ares de estupefação: os missionários
conseguiram, afinal! Outras com um claro deboche. Certa vez, numa rodada de futebol no Martim,
algumas pessoas ligaram um aparelho de som e todos se reuniram para ouvir a pregação dos
missionários que tinha sido gravada por lá. Ficavam tentando reconhecer a voz de seus próprios parentes
nos cantos e leituras evangélicas. Ao final, o riso foi geral, não tinha quem se contivesse nem se
esforçasse para se conter. Faltavam poucos dias para eu ir visitar a aldeia de lá e todos riam e diziam:
"você vai ter de rezar também!". Pela primeira vez tive a impressão de uma incipiente oposição entre a
população das duas aldeias, como "crentes" e "não-crentes". Quando cheguei ao rio Gregório, os cultos
eram realizados duas vezes por semana, improvisados na casa de meu hospedeiro, para onde todos os
moradores afluíam para participar. Neles, o missionário lia e comentava passagens bíblicas na língua
nativa e, juntos, todos entoavam canções evangélicas. Como estive por poucos dias no rio Gregório, não
me aventuro a discutir qual o sentido da conversão para os Katukina. Destaco apenas que na metade de
1998 havia uma preocupação muito grande com a possibilidade do apocalipse, o fim do mundo na
virada do ano 2000. Negando a conversão, ouvi de jovens mulheres que ali ninguém era crente, pois
faltava a adesão ao código moral de que falei acima. No caso, falavam particularmente da conduta
sexual.
9
Segundo me disseram os próprios Katukina, os missionários socorrem ainda os Yawanawa nos casos
mais graves, mas esses devem pagar pelos medicamentos que utilizam, repondo o estoque. Aos
Katukina não é cobrada qualquer taxa pelo atendimento.
41

não são poucas as pessoas que orgulhosamente replicam que têm mais "cultura" que
seus vizinhos, que são todos fluentes na língua nativa e realizam suas "brincadeiras"10
com absoluta liberdade. Além disso, lembram que o número de pessoas convertidas à
religião dos missionários entre os Yawanawa seria bastante superior àquele existente
entre eles próprios.
Desta controvérsia em torno da aceitação e da recusa da atuação missionária,
surge uma segunda justificativa, que não exclui a primeira, para a migração dos
moradores da aldeia do rio Gregório para a do rio Campinas. Além da atração pela
proximidade de Cruzeiro do Sul e das mercadorias disponíveis em seu comércio,
algumas pessoas teriam tomado a decisão de transferir-se de aldeia após alguns
Yawanawa tentarem expulsar os missionários por sua própria iniciativa e serem
impedidos pelos Katukina. Sem apoio para a operação, os Yawanawa teriam ameaçado
expulsar todos, os próprios katukina e os missionários, ficando com a totalidade das
terras. Cansadas e temerosas com os desentendimentos, algumas pessoas decidiram
mudar o local de moradia.
O fluxo dos Katukina da aldeia do rio Gregório para a aldeia do rio Campinas,
pelo que pude saber entre aqueles que residem na primeira, só não foi maior porque
alguns homens, chefes de família, preocupados com a possibilidade da aldeia esvaziar-
se completamente ou mesmo desfazer-se, decidiram nela permanecer. Uma decisão
calculada e orientada pelo temor de que se todos fossem para a aldeia do Campinas, os
Yawanawa seriam capazes de cumprir o que haviam prometido e acabariam por ocupar
toda a extensão de terra demarcada11 e eles ficariam restritos às terras disponíveis no rio
Campinas. Além de que, pensaram, se todos decidissem morar na aldeia do rio
Campinas, não restaria qualquer alternativa para afastar-se de um contexto adverso, já

10
As"brincadeiras" são jogos que opõem homens e mulheres disputando pedaços de cana-de-açúcar e
mamão ou ameaçando uns aos outros com fogo ou lama. São formas abreviadas de antigos rituais que
duravam vários dias, nos quais se consumia muita caiçuma azeda (fermentada). Hoje, quando são
realizadas, as "brincadeiras" não duram mais do que dois dias, geralmente um final de semana e não se
consome a caiçuma azeda, uma vez que as mulheres deixaram de fazê-la em função das brigas que
aconteciam entre os homens bêbados. Para mais detalhes sobre as "brincadeiras" entre os Katukina, ver
Lima (1994a). Os Marubo (Montagner Melatti 1985), os Kaxinawa (McCallum 1989) e os Yawanawa
(Carid 1999) têm também suas "brincadeiras", que são muito parecidas com a dos Katukina.
11
Evidentemente é difícil saber se a ameaça foi real ou se é fruto de um certo exagero dos Katukina
quando o assunto diz respeito às suas divergências com os Yawanawa. Seja como for, em 1998,
voltando para Curitiba após visitar a aldeia do rio Gregório, passei por Rio Branco e encontrei um
yawanawa que me perguntou se era mesmo verdade que boa parte dos moradores da aldeia katukina do
rio Gregório tinha mudado para o rio Campinas. Quando lhe confirmei o fato, fui surpreendida pelo seu
comentário de que, feitas mais algumas mudanças, os Yawanawa poderiam ficar com a totalidade da
terra demarcada!
42

que, como escrevi acima, nas situações de desacordo interno uma das alternativas é
transferir-se de aldeia. A terça parte dos Katukina que ainda hoje permanece no rio
Gregório elaborou então um claro discurso de “defesa” do território – ainda que, para
isto, tenha que se privar do acesso aos recursos industrializados e benefícios (como a
aposentadoria e auxílio-maternidade) obtidos pelos que estão próximos da cidade.
Sendo necessário destacar que a "defesa" deve ser compreendida tanto em relação aos
conflitos com os Yawanawa quanto àqueles existentes entre eles próprios.12
De uma mulher ouvi um argumento mais afetivo para permanecer na aldeia do
rio Gregório, que não contradiz aquele mais combativo dos homens. Para Roni a
mudança para a aldeia do rio Campinas não a atraía, preferia viver no local onde
nasceram sua avó, sua mãe e tantos parentes seus. O fato de sua própria mãe ter também
se transferido para a outra aldeia não lhe era indiferente, afinal, tinha saudades. De todo
modo, ela continuava dizendo que permaneceria ali por toda sua vida, tanto mais porque
aqueles que se foram para a aldeia do rio Campinas a qualquer hora poderiam mudar de
idéia e decidir voltar. Com a decisão de permanecer ali, Roni ajudava guardar a terra na
qual nasceram seus parentes mais antigos.
Esclarecido que os conflitos entre os próprios Katukina e entre eles e os
Yawanawa podem contar como variáveis importantes na decisão de transferência para a
aldeia do rio Campinas, resta dizer que pouco antes do maciço fluxo migratório, em
1994, o último xamã (romeya) katukina, Tobi (cujo nome em português era Tobias),
morreu na aldeia do rio Gregório e, sem atendimento xamânico, muitas pessoas
passaram a se consultar com Armédio, um índio Jaminawa-Arara (pano) residente em
Cruzeiro do Sul. Não ouvi de ninguém a possibilidade de a morte de Tobi ter pesado
também no desencadear das mudanças, mas parece-me importante não ignorá-la.

Estratégias de mudança

No início deste capítulo comentei as diferenças ecológicas entre as duas aldeias.


Basicamente, a aldeia do rio Gregório oferece uma maior fartura de peixes e animais de

12
Kensinger (1995b) escreveu sobre a dinâmica territorial dos Kaxinawa do lado peruano e observou que
nas situações em que as facções não conseguem resolver suas diferenças, a fissão acaba acontecendo.
Quando nenhum acordo é possível, restam duas alternativas aos dissidentes: ou mudam-se para uma
outra aldeia já constituída ou fundam uma nova aldeia rio acima. Entretanto, os Kaxinawa relutam em
adotar essa última alternativa, uma vez que implica em afastar-se mais dos centros urbanos aos quais
recorrem para obter recursos importantes nos dias de hoje.
43

caça e também de certos vegetais que são plantados em suas praias na vazante do rio. A
fartura de peixes e animais é atribuída à longa distância que separa a aldeia dos centros
urbanos. A aldeia do rio Campinas tinha também um estoque considerável de animais
de caça quando, no início da década de 1970, os Katukina a constituíram, é o que se
comenta, mas esse minguou ano após ano pela pressão humana acentuada, devido à
proximidade de um projeto de colonização e da cidade, sem contar com o trânsito de
veículos pela rodovia. Agora que a população da aldeia do Campinas alcançou o seu
maior índice, o desaparecimento dos animais de caça é ainda mais incômodo. A
situação alimentar esteve realmente complicada em 1997, pois além do estoque de caça
não ser farto como no rio Gregório, os roçados tinham sido esgotados. As plantações
foram feitas no ano anterior contando com um número determinado de pessoas para
alimentar, mas que foi aumentado com a chegada dos novos moradores, esgotando-se
por isso muito antes do previsto. Sem uma raiz de macaxeira para remediar a fome, a
farinha, comprada de brancos vizinhos ou em Cruzeiro do Sul, é que constituía a base
da alimentação diária. Um ano depois, com os novos roçados prontos, o abastecimento
de macaxeira já estava normalizado. Mesmo assim, antes de partir para o rio Gregório
muitas pessoas cobiçavam uma carona aérea comigo, argumentavam que queriam rever
seus parentes, mas lembravam também que o "rancho" deveria estar melhor por lá.
Como pude conferir, realmente estava e não houve um só dia em que as pessoas não
tivessem um bom peixe ou qualquer outra carne para comer. Um bando de queixadas,
tão pouco freqüente nas proximidades das casas no rio Campinas, passou a poucos
metros da sede da aldeia.
Esse contraste ecológico entre as duas aldeias pesou na decisão de muitas
pessoas no momento de escolher seu local de moradia. No auge do fluxo migratório,
alguns pessoas que estão ainda hoje no rio Gregório, estiveram no rio Campinas fazendo
uma sondagem para refletirem melhor sobre as vantagens da transferência. Assim, Vepa
e Voka passaram uma breve temporada na casa de Kene e Sharan. Decidiram voltar
após várias incursões de caça malsucedidas de Vepa. Como nenhum dos dois tinha
idade suficiente para requerer a aposentadoria, a mudança de uma aldeia para outra era
ainda mais desvantajosa. Com fome e sem dinheiro, segundo Voka, era melhor a
alternativa de continuar sem dinheiro, mas também sem fome.
Houve quem tentasse resistir à mudança. Mekon nem pensava em se mudar para
a aldeia do rio Campinas quando chegaram no rio Gregório o seu cunhado (o marido de
sua irmã), acompanhado do filho (naquela época, chefe da aldeia do rio Campinas) e de
44

outros homens. Tinham ido lá convidá-lo para viver entre eles e oferecer ajuda para
fazer a mudança. Conforme Mekon, tentaram convencê-lo a mudar-se argumentando
que seria fácil aposentar tanto ele quanto sua esposa. Mekon não estava disposto a
mudar-se, mas acabou hesitando. Seu cunhado e os demais visitantes, percebendo sua
resistência, propuseram um acordo: levariam Mepe, a esposa de Mekon, e seus filhos,
após conseguirem aposentá-la mandariam recado para que ele fosse ao Campinas ver se
diziam a verdade. Mepe acompanhou então seu irmão, deixando Mekon com sua
segunda mulher no rio Gregório. Passado pouco tempo, Mekon recebeu o recado de que
Mepe já estava aposentada e foi encontrá-la.
Chegando na aldeia do rio Campinas, Mekon também conseguiu, com a ajuda
dos parentes de sua esposa, encaminhar todos os procedimentos burocráticos e obteve a
aposentadoria em Cruzeiro do Sul, mas resistia ainda em consolidar a mudança. Pensava
que seria possível ir e vir de dois em dois meses da aldeia do rio Gregório até Cruzeiro
do Sul, parando no caminho na aldeia do rio Campinas, para receber os pagamentos13 e
comprar os artigos de que necessitassem. Aborrecia-o a vida menos farta na aldeia do
rio Campinas. Certo dia, quando estava quase decidido a voltar a viver no rio Gregório,
seu cunhado chamou-o para caçar e propôs um novo trato: aceitaria que ele e sua esposa
retornassem apenas se a caçada fosse fracassada; caso contrário, ele deveria concordar
em permanecer. Seu cunhado, como todas as pessoas, reconhecia que nas imediações do
rio Gregório a vida era realmente mais farta, mas tentou mostrar-lhe que ali ninguém
morria de fome. Naquele dia, Mekon e seu cunhado mataram uma paca e um macaco.
Novamente, Mekon cumpriu o trato, construiu uma nova casa, na vizinhança da de seu
cunhado, onde passou a morar com suas mulheres e filhos. Pouco tempo depois, duas de
suas filhas se casaram com filhos de seu cunhado, o irmão de sua esposa. Um arranjo
matrimonial perfeito, considerando que, entre os Katukina, a união preferencial é entre
primos cruzados. Para a aldeia do rio Campinas havia acompanhado-o também uma de
suas sogras, uma viúva que acabou arrumando um novo casamento com um morador
dali. Naquele momento não havia mais como pensar em voltar.
Com raras exceções, quase todas as pessoas que se mudaram para o rio
Campinas foram convidadas pessoalmente a fazê-lo, isto é, algum parente seu foi até o
rio Gregório lhe falar das vantagens da transferência, como aconteceu com Mekon.

13
Não sei como as coisas se passam atualmente, mas até 1998 o INSS suspendia o pagamento das
aposentadorias aos beneficiários que não fossem recebê-las em intervalos de dois meses.
45

Quando não, recebeu um recado com o convite e resolveu ir sondar a vida por lá, como
foi o caso de Vepa e Voka, que escrevi acima.
Contudo, as mudanças não se fizeram ao contentamento de todos. Quem ficou
na aldeia do rio Gregório queixa-se bastante da ausência de parentes que até outro dia
estavam próximos. Em determinadas situações, há mesmo quem vá buscar seus parentes
de volta. Situações desse tipo aconteceram com alguns rapazes solteiros. Como é de se
imaginar, os rapazes têm mais liberdade e mobilidade que as moças. Com a desculpa de
visitar uma tia ou um tio, alguns deles, foram à aldeia do rio Campinas. Como
esticavam indeterminadamente a visita, após receberem sucessivos recados chamando-
os de volta, acordaram com os pais por lá, obrigando-os a acompanhá-los.
Quando os jovens tinham mulher e filhos (e, portanto, mais autonomia para
tomar decisões desse tipo sozinhos), ficava mais difícil aos pais intervirem para tentar
conter a mudança. Em pelo menos dois casos, os avós acabaram ficando com um dos
netos. Numa das situações de que soube, o rapaz tinha decidido acompanhar sua sogra,
que foi convidada pessoalmente por sua irmã, a fazer a mudança. Os pais do rapaz
primeiramente tentaram dissuadi-lo da transferência de moradia, ao perceberem que não
conseguiriam, "pediram" para ficar com um de seus netos. Numa outra situação, um
rapaz, não tão jovem, mudou-se, com sua mulher e filhos, para o rio Campinas, onde
seu pai já morava havia pelo menos sete anos. Pouco tempo depois, seu sogro, um dos
homens que decidiu ficar no rio Gregório para conter o esvaziamento da aldeia, foi
visitar sua filha, com a desculpa de que queria notícias dela. Chegando lá, tentou
convencer todos a voltarem. O rapaz tentou negociar, argumentou que voltaria após
ajudar seu próprio pai em algumas atividades, um homem velho que tinha apenas filhas
para acompanhá-lo. Desconfiado de que aquela justificativa servia apenas para iludi-lo –
afinal, seu genro tinha uma casa recém-construída –, o homem voltou para casa levando
uma neta. Quando o visitei no rio Gregório, ele disse-me bravo que se seu genro
quisesse a filha, teria de ir buscá-la! Até hoje ele não foi.
O vínculo entre avós e netos, como se verá adiante, é bastante reforçado entre os
Katukina, que chegam a assumir que os primeiros são mesmos responsáveis pela
educação das crianças. De todo modo, a motivação de ficar com um dos netos me
parece mais orientada estrategicamente, para tentar atrair os seus próprios filhos de
volta, do que com fins pedagógicos.
No intervalo entre 1994 e 1998 aconteceu apenas uma transferência de um
morador da aldeia do rio Campinas para a do rio Gregório, tratava-se de uma viúva que
46

foi morar com sua irmã pouco tempo depois de ter perdido o marido. Soube que após
1998 as mudanças cessaram, ninguém foi ou voltou em nenhum dos dois sentidos. Mas,
evidentemente, é impossível prever qual será o desdobramento dessa migração recente.
Não arrisco nenhum palpite, mas não me surpreenderia que algum evento pudesse fazer
refluir a direção dos deslocamentos. Todos têm parentes nas duas aldeias e não há
problema algum em alternar estadias entre uma e outra. Em outras épocas era a aldeia
do rio Gregório que concentrava a maioria da população katukina e a ação coordenada
de alguns de seus moradores para evitar o seu esvaziamento completo indica a decisão
de zelar por sua manutenção. Mesmo porque, suspeito que a existência de duas aldeias,
nas quais todos podem alternar períodos de estadias, atende bem às expectativas dos
próprios Katukina. A esse respeito escrevo a seguir.

A cidade e as aldeias

Em Cruzeiro do Sul os Katukina conseguiram montar uma boa infra-estrutura


nos últimos anos. Na margem direita do rio Juruá (o centro da cidade está na margem
esquerda), compraram cinco casas que abrigam os visitantes da cidade. Há seis anos
atrás eles tinham uma única casa, obtida por intermédio do padre, e se muitas pessoas
estivessem na cidade, eram obrigadas a comprimirem-se em aproximadamente
quarentas metros quadrados. Com a obtenção das aposentadorias, famílias aparentadas
se associaram e dividiram o pagamento da compra das casas. Hoje então quem vai a
Cruzeiro do Sul, seja por que motivo for, tem como se instalar com um pouco mais de
tranqüilidade, embora não se possa falar em conforto. Os principais motivos que levam
as pessoas à cidade é o atendimento médico e o recebimento da aposentadoria.
Conforme a disponibilidade de carros, o último motivo não chega a exigir a
permanência de mais de um dia e às vezes as casas sequer chegam a ser ocupadas, pois
as pessoas, sobretudo as mais velhas, preferem a vida na aldeia. Durante todo o período
de campo, nenhum katukina morava na cidade e, atualmente, sei que apenas Fernando
(Kapi) está residindo em Cruzeiro do Sul, uma vez que ele assumiu o cargo de chefe de
posto da FUNAI.
A desenvoltura de alguns Katukina na cidade, sobretudo para cumprirem rotinas
burocráticas que me eram estranhas (como a solicitação e o recebimento da
aposentadoria e do auxílio-maternidade), chamou-me a atenção. Às vezes faziam
verdadeiros périplos entre o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, o Fórum, o posto da
47

FUNAI e do INSS e o estabelecimento bancário. Como qualquer pessoa, obviamente


cansavam-se da demora no atendimento e de tantos procedimentos por vezes repetitivos,
mas os Katukina estão longe de achar aquilo tudo um rotina impossível de ser cumprida.
Com um detalhe, entretanto: sempre estão acompanhados de algum parente. É raro que
alguém se disponha a viajar sozinho da aldeia à cidade. O motivo não é outro senão o
medo. A multidão de pessoas falando um língua que pouco compreendem é assustador.
Não me esqueço de uma vez em que, aguardando o vôo para vir embora, fui procurada
no hotel em Cruzeiro do Sul por um rapaz pedindo para que eu o acompanhasse ao
mercado de peixe. Ele tinha um domínio razoável do português e não imaginei que
pudesse estar temeroso com alguma coisa. O fato é que estava, pois disse-me mais tarde
que em presença de muitas pessoas falando uma língua que lhe era estranha, sentia-se
confuso. Sem compreender a situação, o primeiro sentimento que lhe vinha à mente era
o temor. Pelo mesmo motivo acontecia de pessoas adultas abandonarem o hospital
enquanto estavam em tratamento ou acompanhavam crianças doentes.
Os Katukina tentam ser discretos na cidade. Em dias de pagamento vão
imediatamente ao estabelecimento bancário e, em seguida, ao comércio, sempre
vestidos de suas melhores roupas14. Esse esforço de apresentar-se bem, sem contrastar
demais em aparência com os brancos, às vezes é vão e, nesse caso, desagrada bastante.
Uma vez estávamos chegando no porto de Cruzeiro do Sul, vindo da aldeia, quando,
bem próximo, caiu bêbado um índio jaminawa-arara morador da cidade. Um branco que
presenciava a cena, virou-se para um rapaz katukina e falou: "ajuda lá o teu parente". O
rapaz se indignou: "tu pensa que ele é meu parente? Não é não!". Seguimos em frente e
ninguém tomou a iniciativa de tentar ajudar o bêbado que, se não era parente, era
conhecido deles.
Em Cruzeiro do Sul moram alguns índios Jaminawa-Arara, a maior parte deles
concentrados num terreno, que soube ser da FUNAI, no bairro do Aeroporto Velho.
Alguns Poyanawa e Nuquini também têm suas casas na cidade, dispersas entre si, pois

14
O tema das roupas aqui remete ao recente artigo de Vilaça (1999) sobre xamanismo e contato
interétnico, em particular à discordância da autora com a análise de Turner de que sob as roupas os
Kayapó ocultam o seu interior mais verdadeiro. Tendo a concordar com a análise de Vilaça, para os
Katukina vestir-se à Ocidental é tornar-se um tanto "branco", o que não contradiz a nudez nem a
"indianidade". Estendendo-me em detalhes, os Katukina não andam mais nus, embora se incomodem
muito com as roupas quando estão na aldeia. Vestir-se como índio talvez hoje não seja andar nu, mas
andar mal-vestido. Numa ocasião ocorreu a suspensão da aposentadoria de vários velhos que, na
tentativa de solucionar o problema, planejaram ir à cidade maltrapilhos para convencer os funcionários
do INSS de que eles eram verdadeiramente índios e, portanto, precisavam do dinheiro para, entre outras
coisas, comprar roupas para apresentarem-se como manda o figurino regional.
48

são em sua maioria de homens e mulheres casados com brancos. Os Katukina


relacionam-se mais com os primeiros, mas não chegam a solicitar favores ou
hospitalidade quando vão à cidade. Em 1994 aconteceu o contrário. Um casal
Jaminawa-Arara, originalmente do rio Bagé, solicitou a um morador do rio Campinas,
ao professor Shere, permissão para viver entre eles. Pela proximidade da cidade, o casal
julgava vantajoso morar entre os Katukina, e não entre seus próprios parentes no rio
Bagé. O rapaz não viu maiores problemas e autorizou-os a fazer a mudança. Mais tarde,
quando o casal já estava providenciando a construção da casa, Shere teve que voltar
atrás em sua permissão, pois os demais moradores da aldeia não concordaram com a
autorização dada precipitadamente, sem consulta aos demais. A negativa não se baseava
em nenhuma antipatia étnica. Simplesmente os mais velhos alegavam que os Jaminawa-
Arara tinham terras demarcadas no rio Bagé, que não precisavam das suas para ter um
lugar para viver. Além de que, se concordassem com a permanência daquele casal,
teriam depois de concordar com as previsíveis solicitações de seus parentes para
também instalarem-se ali e esse era um risco que deveriam evitar.
O modelo que os Katukina mais comentam e repudiam da "vida de índio" na
cidade não é, entretanto, o de seus conhecidos de Cruzeiro do Sul. Nessa temática
sempre são lembrados os Jaminawa do rio Iaco, que passam longos períodos em Rio
Branco (Calávia 1995). Alguns katukina que já estiveram na capital em tratamento
médico ou em cursos de formação espalharam nas duas aldeias a notícia de que os
Jaminawa vivem permanentemente na cidade, sem lugar para morar e sem comida,
bêbados e mendigos. O modelo não poderia ser mais negativo e sempre é lembrado para
reafirmar a autonomia da vida na floresta. A idéia de viver na cidade, caindo bêbados
pelas ruas ou esmolando é absolutamente estranha aos Katukina.
Esta breve exposição da presença dos Katukina na cidade tem como propósito
apenas chamar a atenção para a posição intermediária da aldeia do rio Campinas, entre a
aldeia do rio Gregório e a cidade de Cruzeiro do Sul. Independentemente dos vários
motivos que podem explicar o recente fluxo migratório, esse posicionamento é
estratégico. O que estou querendo destacar é que, pouco a pouco, a aldeia do rio
Campinas está consolidando-se como um middle ground, um território intermediário
entre a cidade de Cruzeiro do Sul, fonte de artigos industrializados, e a aldeia do rio
Gregório, carente destes mesmos artigos mas abundante em recursos da floresta. A
posição geográfica da aldeia do rio Campinas sugere que pensemos a disposição
sincrônica das aldeias do rio Gregório, do rio Campinas e da cidade de Cruzeiro do Sul
49

como um gradiente. Em poucas palavras, no rio Gregório há abundância de recursos


naturais e na cidade têm-se abundância de artigos industrializados. Na aldeia do rio
Campinas, surge a possibilidade de contrabalançar os dois extremos, pois se os artigos
industrializados e os recursos da floresta não são fartos na aldeia do rio Campinas,
nenhum deles é absolutamente escasso e esta aldeia firma-se como o espaço de
suprimento eqüitativo dos bens e produtos de que necessitam. Ao final, a aldeia do rio
Campinas acaba constituindo-se como uma tentativa de combinação do "melhor dos
dois mundos".
A cidade, apesar de atrair pelo volume de bens industrializados em circulação,
também amedronta. Sempre que se fala da cidade, destaca-se uma característica: o
excesso. Há muitas pessoas, muitas mercadorias, muito calor… Ao mesmo tempo, o
excesso da cidade revela uma falta: a da generosidade. Na cidade paga-se para morar,
comer e até beber água. Para os Katukina, a profusão de "coisas bonitas" disponíveis na
cidade contrasta com a ausência de um dos valores mais apreciados em suas relações
pessoais: a generosidade, a partilha. Mais do que um lugar em que se podem conjugar
os recursos da floresta e da cidade, a aldeia do rio Campinas constitui-se então como um
espaço em que se pode usufruir destes recursos de acordo com seus próprios valores – o
que, evidentemente, não exclui as acusações internas de sovinice.
Ao sugerir uma leitura sincrônica da posição entre as três localidades, excluo
sumariamente uma leitura diacrônica, evolutiva mesmo, do gradiente, como se a
proximidade da cidade revelasse uma identificação maior dos Katukina com os bens e
valores "civilizados", opostos ao mundo "selvagem" de partes mais remotas da floresta,
como poderia ser o caso da aldeia do rio Gregório. Embora essa leitura diacrônica seja
uma vez ou outra encontrada no discurso dos próprios katukina, não explica outros
eventos recentes, como o encontro e a aproximação com os Marubo do rio Ituí, que
discuti noutro lugar (Lima 1994a e b). Os Marubo, como se sabe, encontram-se no vale
do Javari, numa área bem mais remota e de difícil acesso que o rio Gregório, e mantêm
vários costumes que os Katukina reconhecem como seus. Se fosse possível explicar a
proximidade da cidade como um "desejo de civilização", como explicar que aos olhos
dos Katukina os Marubo apareçam como uma proto-sociedade katukina, que só não
existe ainda hoje pelo fato deles próprios terem se aproximado excessivamente dos
brancos? Não é um exagero afirmar que os Katukina vêem nos Marubo a matriz de sua
própria sociedade, que se desvirtuou ao aproximar-se da nossa. A "teoria da
aculturação" que encontrei entre os Katukina não lhes concede perdão.
50

A interpretação da aldeia do rio Campinas como um território intermediário, no


qual é possível contrabalançar os recursos da floresta e da cidade, remete à interpretação
de Keifenheim (1997) sobre os Kaxinawa do lado peruano. Entretanto, enquanto me
ative a desenvolver a idéia apenas salientando a posição geográfica estratégica e as
vantagens ecológicas e econômicas, a autora, que igualmente definiu o território
kaxinawa em Balta como uma "zona intermediária", relaciona-o ao tema da identidade.
Segundo Keifenheim (op. cit.: 148), a presença dos índios isolados que perambulam
entre as fronteiras brasileira e peruana desencadeou a crise da identidade tradicional,
pois antes os Kaxinawa sempre se relacionavam com o mundo exterior recorrendo a
intermediários. Assim, para obterem artigos do mundo dos brancos, os Kaxi recorriam a
outros grupos pano, por eles chamados indistintamente de Yaminawa, termo que tem a
sugestiva tradução de "povo do machado". Entretanto, nos dias de hoje, ante a
proximidade dos "selvagens", os próprios Kaxi passaram a ocupar o lugar de
intermediários e a viver o dilema de incorporá-los como cunhados ou submetê-los como
escravos. Sendo a primeira alternativa defendida pelos mais velhos e tradicionalistas e a
segunda pelos mais jovens, influenciados pelo modelo "civilizador" divulgado por
militares, comerciantes e missionários.
Esse dilema experimentado contemporaneamente pelos Kaxinawa não tem lugar
entre os Katukina, seja porque é improvável a presença de grupos indígenas isolados nas
imediações de suas terras, seja porque, de forma mais decisiva, a identidade do grupo
não tem os contornos tão rígidos como os que são descritos em vários trabalhos sobre os
primeiros (Kensinger 1995a; Deshayes & Keifenheim 1982, Keifenheim 1990). Os
contatos dos Katukina com os Yawanawa, os Marubo e mesmo com os Kulina
certamente reconhecem gradações e oscilações (Lima 1994a:117-149), mas as relações
com o exterior, sem intermediários, sempre foram constitutivas de sua identidade – algo
que Erikson (1993b) registrou como um fenômeno generalizado entre os grupos pano.
Para se ter uma idéia, vínculos de parentesco reais conectam os Katukina aos
Yawanawa e vínculos algo virtuais associam-nos aos Marubo (Lima 1994 a e b e Carid
1999). Esclarecida brevemente a maleabilidade das fronteiras da identidade katukina,
insisto que a idéia da aldeia do rio Campinas como um território intermediário deve ser
associada apenas à sua posição geográfica e às suas vantagens ecológicas e econômicas.
Ainda que me pareça possível relacioná-la ao tema da identidade, não o farei aqui. Por
ora limito-me a dizer que opções excludentes e estanques não costumam vigorar entre
os Katukina. Esquemas dicotômicos como "nós"/"outros" ou "civilizados"/"selvagens",
51

como poderia ser o caso, sempre se desfazem em favor de um terceiro termo, que
conjugue algo dos dois outros. A interpretação da constituição da aldeia do rio
Campinas como um território intermediário denota essa elaboração. Mas, no momento,
deixo apenas essas impressões como o registro de um projeto futuro.
52

CAPÍTULO 2
A pessoa katukina

Potencialmente, tudo que existe na terra tem yushin, um espírito, uma força vital
que anima os seres viventes, mas não apenas eles. Algumas substâncias e processos
físicos têm também yushin, como é o caso da água (hene yushin), do fogo (txi'i yushin),
dos remédios (raonti yushin). Os animais têm yushin e sua ancestralidade humana, da
qual falarei no último capítulo, não deixa dúvidas a esse respeito. Como é comum entre
os ameríndios, alguns dos personagens dos mitos katukina, dos shenepavo ("tempos
antigos"), que os velhos gostam de contar no início da noite são todos seres-espíritos e
referidos como, por exemplo, mari yushinvo (seres-espíritos cotia), kapa yushinvo
(seres-espíritos coatipuru), todos com capacidades humanas.
Os seres humanos têm dois espíritos que os animam. Um é ligado ao corpo e
chamado yora vaka, que chamaremos de "espírito do corpo", embora "sombra do corpo"
seja sua tradução literal. Na linguagem quotidiana yushin é a palavra mais usada quando
se faz referência ao yora vaka. A sombra (vaka) do corpo (yora) é a contrapartida
visível do espírito invisível e é chamada de noke yushin, "nosso espírito". Além do
espírito do corpo, os humanos têm também o espírito do olho, wero yushin – chamado
também de yushin kuin, "espírito verdadeiro". Seu indício mais forte é o brilho dos
olhos. Em termos esquemáticos, o espírito do corpo comporta a história e a memória
individual enquanto o espírito do olho é singular e abstrato. Os destinos post mortem de
cada um dos espíritos refletem as diferenças existentes entre eles. Enquanto o yora vaka
permanece na terra, principalmente nas proximidades da sepultura onde jaz seu corpo, o
wero yushin segue rumo ao céu e alcança a imortalidade.
Yora vaka e wero yushin são irremediavelmente atrelados ao corpo e sem
qualquer um deles, anula-se a possibilidade de vida. O wero yushin, entretanto, dissocia-
se episódica e temporariamente do corpo. As alucinações induzidas pelo consumo da
ayahuasca (oni) são viagens do wero yushin desgarrado do corpo. Nos sonhos o wero
yushin desgarra-se também, à revelia da vontade consciente de seu portador. As coisas
que se vêem nessas viagens ao outro mundo podem pressagiar eventos terrenos. Assim,
53

sonhos com beija-flores (pino) e jibóias (mana rono) anunciam a chegada de pessoas
distantes e sonhos eróticos prenunciam caça farta. É possível através dos sonhos prever
também doenças, acidentes, mortes. Um rezador antes de uma sessão de cura tenta saber
os sonhos do doente e de seus familiares diretos e algumas vezes estabelece o seu
diagnóstico a partir deles.
Nem tudo que se vê em sonhos converte-se em anúncios e diagnósticos. De todo
modo, sejam as visões do mundo dos sonhos induzidas ou não pelo consumo de
ayahuasca e rapé, elas são sempre fonte de conhecimento. Mani, como qualquer
rezador, estimulava seus sonhos com aspirações noturnas de rapé. Já habituado com
minha presença e curiosidade constantes, uma manhã ele me disse que tinha sonhado
com um veado preto (txasho txeshe). Perguntei ingenuamente o que aquele sonho queria
dizer e, expressando surpresa, ele me respondeu: "Nada. Eu nem sabia que veado preto
existia!". De todo modo, esclareceu que o tal veado preto deveria mesmo existir, ainda
que fosse desconhecido dos homens na terra.
O yushin, entendido agora simplesmente como uma essência vital, independente
da agência ao qual está ligado, pode ser chamado também de shamitsa. Não consegui
traduzir esta palavra, que me parece ser a combinação de duas outras, sham- + itsa, sem
que eu saiba determinar o sentido da primeira. Quanto à segunda, na língua katukina,
itsa designa os cheiros característicos dos corpos, assim, por exemplo, yawa itsa é o
cheiro do queixada, mas não consegui ir além disso. Tentei inúmeras vezes
compreender em que o yushin é diverso do shamitsa mas obtive sempre a afirmação de
que não diferem entre si, apenas são designados por termos diferentes. Pelo que pude
entender, uma vez que apenas os rezadores me falaram espontaneamente do segundo,
esse termo é usado no contexto da reza, em linguagem ritual, em substituição a yushin.
De fato, como veremos adiante, a linguagem usada nas sessões de cura é diversa
daquela usada quotidianamente. Seja como for, fica o registro uma vez que não tenho
notícias da ocorrência da palavra shamitsa em outras línguas pano. O mais próximo
disso, e que oferece uma pista bastante interessante, é a definição kaxinawa de itsa,
perfume, que pode ser traduzido, segundo Deshayes (2000:177), como "sentir-se forte"
e "parecer um outro". No caso específico, o autor comenta dos cuidados que os homens
tomam antes de penetrarem a floresta para caçar, em particular, dos perfumes que usam
para não serem reconhecidos como humanos.
54

O corpo

O corpo (yora) é formado basicamente por carne (nami), ossos (shao) e sangue
(imi). Nele também circulam substâncias que são comuns ao pequeno grupo da família
elementar – pai, mãe e filhos. Dele emanam fluídos e líquidos – como suor e saliva –
que são como materializações destas substâncias.
Na teoria da concepção dos Katukina, como de tantos grupos amazônicos, o
corpo é resultado da troca de fluídos corpóreos entre homens (sêmen) e mulheres
(sangue), através de repetidas relações sexuais. O sêmen acumula-se no ventre feminino
e, misturado ao sangue menstrual, dá forma a um novo corpo. Além disso, admite-se
que uma pessoa possa ter mais de um genitor masculino. Quantos forem os parceiros de
uma mulher após o início da gravidez, tantos serão os pais da criança.
As pessoas que compartilham as mesmas substâncias são solidariamente
abstinentes e, em casos de doença, como será tratado adiante, devem adotar a mesma
dieta alimentar. Particularmente, devem evitar a ingestão de carne de caça, porque o que
os consubstanciais comem pode afetar o doente. Aqui, consubstanciais são, ao mesmo
tempo, comensais. Irmãos de um mesmo pai e de uma mesma mãe têm corpos
substancialmente iguais, por isso devem resguardar-se uns pelos outros. Meio-irmãos
têm também de se resguardar reciprocamente, ainda que apenas parcialmente seus
corpos sejam formados das mesmas substâncias. Os filhos resguardam-se pelo pai e pela
mãe e estes por aqueles. A rigor, todos os genitores masculinos têm que se resguardar
no caso de doença de um filho, seja ele quem "fez" ou quem "ajudou a fazer" a criança,
como os Katukina costumam dizer. De um modo geral, entretanto, abstém-se apenas
aquele que assumiu a criança – o que não exclui a possibilidade de um co-genitor
imprudente ser apontado como culpado por alguma morte, o que não gera maiores
conseqüências.
Para situar os Katukina na literatura amazônica, arrisco-me a aproximar a sua
noção de grupo de substância daquela que têm os Apinajé (Da Matta 1976) e os Wari'
(Vilaça 1992), por exemplo, entre os quais os laços de substância são reforçados pela
comensalidade e co-residência e diluídos à medida em que se distanciam fisicamente
uns dos outros. Porém, essa aproximação precisa ser calibrada, pois há ligeiras
divergências. Assim, de acordo com concepção katukina em vigor, a
consubstancialidade, embora se deva desdobrar em comensalidade, não é logicamente
dependente da co-residência. Ouvi de diversas pessoas que parentes próximos (pais,
55

filhos e irmãos), ainda que vivendo longe uns dos outros, deveriam resguardar-se entre
si. Isto decerto causa problemas, dada a distribuição da população entre duas aldeias.
Quando a pessoa doente tem parentes diretos morando em outra aldeia ou em viagem, a
situação realmente pode ficar complicada. A distância de alguém que, sem saber que
tinha um familiar doente, comeu alimentos proibidos e contribuiu, involuntariamente,
para agravar seu estado de saúde foi lembrada nas situações mais graves. Em um dos
casos que soube, a pessoa morreu, pois os esforços dos rezadores para recuperá-la
tinham sido nulos diante da distância que separava o doente de um irmão, residente na
aldeia do rio Gregório, que, por desconhecer a situação, não estava seguindo a dieta.
Apesar de e por causa desses pormenores, é preciso afirmar que o traço da
fronteira do grupo de consubstanciais é fluido e será tanto mais marcado quanto mais
grave for a situação. Assim, um período de resguardos, alimentar e sexual, observados
de forma ortodoxa pelos parentes diretos e co-residentes que resulte na rápida
recuperação da pessoa doente, não trará à lembrança a provável liberdade com que deve
ter se comportado um parente que vive na outra aldeia naquele mesmo período. Ao
contrário, quando um resguardo ortodoxo não dá conta de recuperar o doente, sempre
ocorre a possibilidade de um parente que, estando distante, involuntariamente contribui
para o agravamento da situação. O que faz a lembrança parecer muito com a tentativa de
elaborar uma resposta, um diagnóstico para a tragédia imposta pela morte.
Sem querer negar a concepção dos Katukina de que, mesmo distantes, os
parentes devem abster-se em caso de doença, suspeito que o vai e vem constante de
pessoas em visita entre as duas aldeias está relacionado à dificuldade que têm em
admitir que a distância pode de fato separá-los substancialmente. Talvez seja isso que os
move tanto entre as duas aldeias, na tentativa de se manterem permanentemente em
contato e informados uns sobre os outros.

Paralelamente à interdição do consumo de determinadas carnes em casos de


doença, está a proibição, extensiva ao pai, mãe e irmãos da pessoa doente, de ter
relações sexuais. As proibições de carne e de sexo, além de sugerirem a equivalência
entre sexo e caça tão difundida entre os grupos amazônicos1, relaciona-se à tentativa de
interceptar o contato com substâncias alheias ao pequeno grupo da família nuclear e que
estão contidas em secreções do corpo, yoran pae, que, neste caso, tanto pode ser o

1
Entre os Katukina sonhos eróticos, desde que mantidos em segredo, anunciam caça farta, o que replica a
equivalência entre atividade sexual e cinegética.
56

sêmen como secreções vaginais e também o sangue, já que a atividade sexual é vetada
aos homens e mulheres igualmente. Tudo se passa como se a família elementar tivesse
que se conter em si mesma até a superação do período crítico.
O uso corriqueiro que os Katukina fazem do pae, que aparece acima, abrange os
fluidos e líquidos de humanos, plantas e animais. Assim, genericamente, a saliva e o
muco nasal são pae – donde se entende porque a gripe pode ser designada pelo mesmo
termo –, secreções do olho são wero pae. Do mesmo modo, o veneno das cobras é
chamado de rono pae e a secreção do sapo kampo, usada como estimulante cinegético,
sobre o qual escreverei adiante, é chamado kampo pae. O mesmo termo ocorre em
outros grupos pano. Entre os Yawanawa, Pérez (1999:160 n. 195) informou que pae
"designa o conjunto de doenças personificadas em determinados yushin". Por sua vez,
Lagrou (1998:72) traduziu o pae como "força" entre os Kaxinawa, enquanto Deshayes
(2000:57) definiu-o como "uma influência particular, seja da pimenta ou do
alucinógeno". O ayahuasca, neste grupo, é chamado nishi pae (op cit.:56). Os contextos
particulares em que o pae é mencionado sempre envolvem os cuidados corporais e o
xamanismo. As traduções do termo nos grupos mencionados, por mais diversas que
pareçam, ajudam a sustentar que pae, ao menos entre os Katukina, pode ser entendido
literal e genericamente como fluidos ou secreções corporais. Em situações determinadas
o seu uso não tem outra conotação a não ser indicar literalmente o fluido de que se fala.
Noutras pode ter algumas associações negativas, é o que se passa quando indica uma
doença como a gripe, por exemplo. Ao final, na concepção katukina, pae é entendido
como algo que concentra e, ao mesmo tempo, serve como vetor das propriedades
imateriais dos corpos, em particular do yushin.
O resguardo obrigatório entre as pessoas que partilham as mesmas substâncias
deve prolongar-se por toda a vida. Havendo uma pessoa doente, pai, mãe, filhos e
irmãos devem adotar a mesma dieta alimentar. Nas palavras de Txoki: "… irmão é o
mesmo sangue só. O mesmo sangue teu, o teu irmão tem também. O meu menino é o
mesmo meu sangue e é o sangue da mãe dele. Então se meu filho estiver doente, se a
gente come, a caça dá mal nele". Igualmente, os filhos devem resguardar-se em caso de
doença do pai ou da mãe. Entretanto, marido e mulher não fazem resguardo um pelo
outro. Seus filhos foram concebidos pela combinação de suas substâncias, que são
diversas, por isso ambos devem resguardar-se por eles, mas não um pelo outro.
Voltemos então à definição do grupo de substância. A concepção de que marido
e mulher não são entre-abstinentes precisa ser qualificada. Em caso de doença de um
57

dos cônjuges, do marido, por exemplo, tem-se como estabelecido que a esposa não
precisa seguir a mesma dieta alimentar dele, mas precisa sim abster-se de sexo. Pelas
sucessivas relações sexuais os cônjuges tornam-se consubstanciais. Obviamente, a
suspensão das relações sexuais nessa situação deve acontecer entre eles e também com
outros parceiros. As relações extra-conjugais, bastante toleradas entre os Katukina,
passam então a ter um conteúdo negativo. Assim, em contato com fluídos corpóreos de
outros parceiros, uma mulher que tenha relações extra-conjugais ameaça ainda mais a
saúde do marido enfermo.
Do que foi exposto é possível dizer que a noção de consubstancialidade
reconhece gradações e pode descolar-se da co-residência. A co-residência não é
condição suficiente para definir o grupo de consubstanciais: embora possa ser
necessária em alguns casos, a abstinência sexual que têm de observar os cônjuges é o
exemplo mais claro disso. Os níveis que elenco abaixo sintetizam tais gradações, mas
adianto que não pretendo com isso esgotar as possibilidades nem submeter a concepção
dos Katukina a uma rigidez que não lhe é própria. O nível inicial e fundamental da
consubstancialidade reúne pais, filhos e irmãos, que se esforçam para se manterem
próximos ou ao menos informados sobre a vida uns dos outros, com o fim de garantirem
sua coesão pela adoção dos resguardos alimentar e sexual previstos nas situações de
doença. O segundo nível é formado pelos filhos e seus co-genitores que idealmente
devem seguir as mesmas abstenções daqueles no nível acima, o que apenas
excepcionalmente se verifica na prática. Marido e mulher reúnem-se apenas no terceiro
e último nível de consubstancialidade, um que exige a abstenção de sexo em caso de
doenças, mas não a adesão ao resguardo alimentar. Além desses níveis, cessam as
relações de substância.
A economia dos Katukina para circunscrever o grupo de consubstanciais chama
a atenção. Embora eventualmente (sobretudo em contextos políticos) todos possam se
definir como "parentes" – noke kaivo, "nós que crescemos juntos" –, os limites estreitos
do grupo de substância adequa-se bem à parcimônia com que quotidianamente os
termos de afinidade, potencial e efetiva, são usados.

As paixões do corpo

Até onde sei os Katukina não dispõem de um termo genérico que designe as
doenças. Fazem-se referências à maioria delas enunciando o principal sintoma ou vários
58

deles, como teshotae, diarréia, okoiki, tosse, mampoti nanae, dor-de-cabeça, yonatae e
shana, febre, matxi, frio e nishon, tontura/loucura. Assim, para descrever a condição
física de alguém é possível dizer "shana pishtxa, matxi kuin", i.e., "pouca febre, muito
frio". Algumas doenças que se tornaram conhecidas após o contato com os brancos
receberam denominações exclusivas, como toro tae e pae, gripe, txoran tae, catapora. A
malária, certamente a doença que mais aflige os Katukina atualmente, não foi nominada
e é descrita por seus sintomas, como no exemplo anterior. Dores são chamadas
genericamente como isinai, mas o uso mais comum é referir-se à parte do corpo que
dói, como, yora isinai, dor no corpo (todo), mampo isinai, dor de cabeça, tae isinai, dor
no pé, poshto isinai, dor-de-barriga. As dores podem acompanhar os estados
patológicos, mas não como condição essencial deles. Esforços físicos continuados ou
acidentes provocam dores sem serem por isso considerados como doenças.
A ocorrência aguda de um ou mais dos sintomas descritos acima, a ponto de fazer
uma pessoa perder o apetite e a disposição, levando-a à completa prostração, é chamada
de vopiai. Em português vopiai é traduzido livremente como "muito doente". Alguém
que não tem plena consciência de si nem dos outros e que está, portanto, à beira da
morte. Vopiai designa o moribundo e, ao mesmo tempo, o morto, já que os Katukina
usam o mesmo termo para falar de ambos os estados. 2
As doenças vêm sempre de fora: ou pelo desguardo da dieta alimentar ou por
"sustos" ou ainda pela ação de feitiçaria.3 Em todos os casos, entende-se que um agente
externo rompeu o equilíbrio entre o corpo e seus espíritos, o do corpo e do olho. Mesmo
alguns acidentes são interpretados como tendo origem externa, causados pela ação dos
yushin. Na maior parte das vezes, entretanto, os acidentes são vistos como fatos
ordinários, que fazem parte da vida. O conjunto mais completo de causas de doenças é
aquele relativo ao desguardo alimentar.

2
O tema da morte será no próximo capítulo.
3
Kensinger (1995a:211-212) afirma que, entre os Kaxinawa, as doenças são concebidas de duas
maneiras: de causas naturais e causadas por agentes externos. As primeiras são tratadas pelos
herbalistas, as segundas pelos xamãs.
59

Os alimentos do corpo

A carne de caça é considerada pelos Katukina parte fundamental da alimentação.


Um cardápio diário que não inclua carne é sinônimo de fome. A carne sempre é
consumida acompanhada da macaxeira. Outros vegetais, embora não devam faltar, são
tidos como alimentos que remediam a fome, mas não a saciam. Entre estes constam o
milho (sheki), a batata-doce (kari), o inhame (poa) e a taioba (yovi), que podem
anteceder ou suceder, mas nunca acompanhar a carne. Além da macaxeira, a banana
verde é o único vegetal que pode acompanhar a carne, mas numa receita específica: o
nami pasa, mingau de carne. Os ingredientes deste prato são as vértebras, as vísceras
(coração e fígado) e o sangue do animal abatido, que são postos juntos no fogo.
Assegurado o cozimento, acrescenta-se a banana verde ralada, que permanece no fogo
por pouco tempo, o suficiente apenas para que seja misturada à carne. Todos os
ingredientes juntos ganham uma consistência pastosa. Numa variação desta receita, há
também o tsatsa pasa, o mingau feito de peixe com banana verde ralada. O pasa, seja
de carne de caça ou de peixe, come-se acompanhado de macaxeira.
Os Katukina são aficionados por carne e a sua dieta é pouco restritiva se
comparada à de outros grupos amazônicos, como os Achuar (Descola 1986) ou os
Parakanã (Fausto 1997), por exemplo. A carne é considerada tanto mais saborosa
quanto mais gordura (shene) tiver, porcos e queixadas são assim bastante apreciados.
Confirmando o que já foi dito de outros grupos pano, os Katukina são "lipófilos
apaixonados" (Erikson 1996:197) e, em determinados contextos, gordura, saúde e
beleza devem ser entendidos como sinônimos. Igualmente, podem ser equacionadas a
magreza e a doença, embora em casos de doença uma das primeiras providências seja
justamente suspender o consumo de carne – e quanto mais gordurosa for, pior –, como
tratarei adiante. Compreende-se mesmo que ao longo da vida haja uma acumulação
contínua de gordura (shene) no corpo e os homens velhos são chamados sheneya (com
gordura). Por sua vez, pessoas magras (concebidas como fracas) são txo'o, o mesmo
termo usado para irmão(ã) mais novo(a), o que, se não esclarece muito a respeito das
preferências alimentares e da lipofilia, explicita a hierarquia envolvida na terminologia
de parentesco.
Passemos então aos tabus alimentares existentes entre os Katukina e às
implicações decorrentes de seu desrespeito. Começo pela carne de caça, mais apreciada
60

e também mais cercada de restrições; a seguir, abordo as restrições aos alimentos de


origem vegetal.
Todo animal edível é classificado pelos Katukina como pite kuin, que é
traduzido como "comida verdadeira". Dentre os mamíferos, os Katukina comem:
capivara (ame), paca (ano), paca-de-rabo (kestavo), veado (txasho), porquinho (hono),
queixada (yawa), anta (awa), macaco-preto (iso), guariba (ro'o), soim (shipi), macaco-
da-noite (nesho), zogue-zogue (paka roka), macaco-prego (shino kuin), cairara (shino
mana), paruacu (roka voshpo), macaco-de-cheiro (wasa), macaco-soim (shipi) tatu
(yawish), tatu-canastra (pano), tatu-rabo-de-couro (kansho) e coatipuru (kapa). Destes,
os mais apreciados são a queixada e o porquinho, pela grande quantidade de gordura
que têm.
Outros animais são controversos quanto ao uso alimentar, não devido a
idiossincrasias individuais mas à própria dubiedade de seu estatuto alimentar. É o caso
da irara (voka), da onça-vermelha (kaman honshi) e do coelho (maka pantxoya). O
coelho no sistema classificatório katukina é chamado maka pantxoya, literalmente "rato
com orelhas", o que talvez explique a controvérsia em torno dele, pois os ratos
normalmente não são consumidos. A onça-vermelha e a irara, segundo várias pessoas,
constituem acréscimos à dieta, pois não eram edíveis até poucos anos atrás. Os velhos
dizem que antigamente não comiam onça-vermelha, receando ficarem fracos. Em minha
última permanência na aldeia do rio Campinas, uma onça-vermelha foi abatida por um
caçador yawanawa, casado com uma katukina, que a levou para casa. Entretanto, não
foram poucas as pessoas que se recusaram a comer e boa parte da carne acabou sendo
dada aos brancos, para não ser completamente desprezada.
Os Katukina não comem mambira (vi'i) tamanduá-bandeira (sha’e), preguiça
(nain), rato (maka), mucura (pisi mashon), bule-bule, cuandu (isan), cachorro-do-mato
(kaman), gato-do-mato (ketsi), onça-pintada (kaman keneya) e ariranha (hene kaman).
Todos são considerados repulsivos, com exceção da preguiça chamada posan, que não é
comestível por não ser considerada um animal, mas a transformação de um espírito,
yushin.
As aves apropriadas como alimento são: jacu (kevo), nambu (koma, nambuzinho
(tere sene), surulinda (shori), japó (hanon), saracura (txashkon), aracuã (anakara),
jacamim (nea), juriti (noma), macucao (yapanshoa), tucano (shoke) e arara (shawan,
mira, kana).
61

Embora não tenha tido condições de fazer um levantamento exaustivo dos


peixes, quase todos são consumidos, sejam os de couro ou os de escamas. A exceção
categórica é o candiru, que aprecia sangue e costuma morder as pessoas enquanto se
banham. Mesmo poraquês (koni) e piranhas (maki), que são desprezados como
alimentos em grupos pano vizinhos – como os Kaxinawa (Aquino e Iglesias 1994:112)
e os Yawanawa (Pérez 1999:59) –, os Katukina comem sem ver aí algum problema. De
um modo geral, os peixes de couro, por terem mais gordura, são mais apreciados. Dos
bichos aquáticos, os bodós (ipu), caranguejos (shanka) e camarões (mapi) são também
consumidos, principalmente no verão, quando as mulheres os procuram em suas tocas e
em paliçadas.
No início do verão, homens e mulheres coletam o anfíbios chamados txaki que
desovam nos igapós. O preparo do txaki é simples: após escaldado, deve ser cozido por
um curto período. O período de desova do txaki (txaki txini, "tempo do txaki) é oportuno
também para abater jacarés e coletar tartarugas de igapó, uma vez que esses buscam
também alimento ali – os jacarés comem txaki e as tartarugas de igapó, os ovos deles.
Entre os anfíbios, os Katukina comem ainda o toa (canoeiro) e o pano.

Restrições alimentares e ciclo de vida

Alguns dos animais e peixes listados acima são consumidos exclusivamente por
pessoas de uma certa classe de idade. É o caso do soim (shipi), que segundo os Katukina
só pode ser comido por pessoas velhas (sheneya). Há duas explicações para essa
restrição: alguns dizem que se crianças e jovens comerem o soim terão logo cabelos
brancos e também muita preguiça, outros dizem que crianças não podem comer devido
ao pequeno tamanho do soim e que elas não cresceriam e teriam muita preguiça. De
qualquer forma, poucas vezes o soim é caçado, embora seja visto com freqüência na
mata e nas capoeiras nas proximidades das casas. Alguns homens dizem que só o
matam como último recurso, pois oferece pouca carne. Igualmente, as crianças não
podem comer tartaruga de igapó (nensa) e tatu-rabo-de-couro (kansho). Se as crianças
comem tatu-rabo-de-couro não tomam banho e se comem tartaruga de igapó, além de
não tomarem banho, querem ficar expostas ao sol. Araras, periquitos e papagaios
também não são alimentos adequados às crianças. Todas essas aves têm as pernas curtas
e a carne dura, o que, na concepção dos Katukina, pode impedir o crescimento da
meninada. Entre os peixes, é dito que a piranha (maki) não deve ser consumida por
62

crianças e jovens de até aproximadamente vinte anos, pois causa dores nas costas que,
no futuro, os impedem de trabalhar.4 O mandim-pintadinho (yoma) e o mandim-dourado
(kanai), se consumidos por crianças e jovens, causam preguiça.
Estas proibições são justificadas por referência aos hábitos e características que
reconhecem nos animais: a agitação dos macacos faz com que as crianças não durmam à
noite e o cheiro dos buracos onde são encontrados os tatus-rabo-de-couro é associado à
sujeira e à falta de banhos, que está relacionada à preguiça e ao desmazelo. Entretanto,
na outra ponta, temos animais cujo que podem despertar hábitos e características
apreciados. Esfregar o tutano do veado (txasho napo) nas pernas das crianças pode fazer
com que aprendam mais rápido a andar. Passar o sangue do tatu-canastra (pano imi) na
testa das crianças, pode fazer com que vivam muitos anos. Comer a cabeça do pica-pau
(voi mampo) prepara os meninos para, no futuro, derrubarem árvores, acertando as
partes ocas, facilitando assim a abertura dos roçados.
Curiosamente, os Katukina parecem ter abandonado a prática de tentar despertar
nas crianças as qualidades valorizadas em alguns animais. Em todo período de campo,
não vi tutano de veado ser esfregado nas pernas das crianças nem pica-pau ser abatido
para que os meninos comessem a cabeça. Seja como for, insiste-se muito na proibição
de crianças comerem a carne de animais cujas características são desprezadas ou
perturbadoras. Inúmeras vezes vi crianças chorando, pedindo aos pais ou avós para que
lhes deixassem comer, ao menos um pequeno pedaço, alguma carne que lhes era
proibida, mas nunca vi terem seus pedidos atendidos.

Restrições alimentares e estados liminares

A maior parte dos animais também sofrem restrições de consumo associados ao


estado de saúde das pessoas e ao período de gravidez. Durante a gravidez e enquanto os
filhos têm poucos anos de idade, os pais e a própria criança não devem comer carne de
nenhum tipo de macaco, caso contrário a criança fica agitada e chora muito à noite.
Durante todo o período da gravidez uma mulher deve abster-se de consumir a carne de
animais de casco (shakaya), como todas as espécies de tatu, jabotis e tartarugas, além de
arraias e bodós, seres que têm sua morada debaixo da terra e em paliçadas ou que se

4
Os Yawanawa interditam a todos o consumo de piranha pelos mesmos motivos (Pérez 1999:59).
63

remexem na terra, que podem dificultar o parto.5 Mulheres menstruadas (imiya, "com
sangue") devem evitar comer o fígado (taka) de todos os animais, senão há um aumento
do fluxo menstrual. Pelo mesmo motivo na menstruação e no resguardo pós-parto
devem beber pouca água. Nesses períodos, recomenda-se que as mulheres, para suprir a
sede, bebem preferencialmente caiçuma de macaxeira (atsa matxu). Crianças e adultos,
quando gravemente doentes (vopi), não podem comer a carne de nenhum mamífero,
como paca, veado, tatu, porquinho, queixada, cutia, coatipurus e macacos. As
interdições alimentares são extensivas a seus parentes diretos – pai, mãe, filhos e irmãos
– que, como eles, devem alimentar-se exclusivamente de vegetais, peixes e aves. Após o
parto aplica-se a mesma dieta, por um período aproximado de duas semanas, à mãe e ao
pai da criança recém-nascida. A persistência da doença e, em casos extremos, a morte
freqüentemente são atribuídos ao não cumprimento das restrições alimentares.
A observação da dieta, entretanto, é bastante difícil em alguns casos. Certa vez
acompanhei as dificuldades de seguir a dieta de uma jovem solteira, Avo, grávida
daquele que seria seu primeiro filho. Em um intervalo relativamente longo de tempo,
considerando o aspecto nutricional, todas as carnes disponíveis em sua casa eram
interditadas para o seu próprio consumo. Em um dia mataram um tatu-rabo-de-couro
(kansho), que ela e também as crianças da mesma casa, não puderam comer. Mais
alguns dias e foi apanhada uma tartaruga (konsha, não identificado), que ela novamente
não pôde comer. Numa terceira vez, a casa vizinha mandou para a casa de Avo um
pedaço de tatu (yawish anipa), que também lhe foi interditado. Passados quatorze dias
sem que ela pudesse comer quaisquer dos animais disponíveis na casa em que morava,
seu irmão matou um jacaré (kape), mais uma vez um bicho de casco (shakaya), que Avo
não deveria comer. Mas, desta vez, ela não resistiu e comeu. Não houve censuras nem
reprimendas por parte dos adultos que a viram quebrando a dieta. A irmã do pai de Avo,
Mampo, uma mulher rígida na observação de sua própria dieta e na de seus filhos e
netos, disse-me simplesmente que "não tinha outra coisa para comer" e que se
houvessem complicações no parto de Avo, por ela ter comido carne de jacaré, o rezador
seria chamado para "rezar jacaré". O diagnóstico das dificuldades do parto estava
estabelecido com meses de antecedência. De fato, poucos foram os partos que
acompanhei ou que pude saber, em que os rezadores não tivessem que ser chamados às

5
Encontra-se uma interdição semelhante entre os Marubo (Montagner Melatti 1985:211-212), os
Yaminawa (Townsley 1988:122) e os Yawanawa (Pérez 1999:61-62).
64

pressas para dar conta dos excessos alimentares das gestantes. No caso de Avo, isto
acabou não acontecendo, pois uma queda no último mês da gravidez fez com que ela
perdesse a criança.
Certamente, a observação estrita dos tabus alimentares não diz respeito
exclusivamente à capacidade individual de resistir aos alimentos proibidos. A densa
rede de relações de parentesco e a teoria da concepção nativa interferem aqui. Como
afirmei anteriormente, durante o período pós-parto, o pai, a mãe e os irmãos da criança
recém-nascida não podem comer a carne de nenhum mamífero. Nos casos de
paternidade múltipla, a manutenção da coesão entre consubstanciais é assunto bastante
delicado, sobretudo em se tratando do período pós-parto. Como garantir que genitores e
co-genitores masculinos seguirão a dieta prevista no período pós-parto? Se o genitor for
o marido, a dieta possivelmente será seguida. Caso contrário, não há qualquer garantia.
As complicações de saúde e mesmo as mortes de crianças neste período são creditadas
ao desrespeito às interdições alimentares.6
Em minha última viagem a campo, vi uma criança nascer e acompanhei a dieta
de seus pais, marido e mulher, que estava sendo perfeitamente seguida. Aconteceu,
entretanto, da criança adoecer e, apesar das rezas e de remoção dela para o hospital de
Cruzeiro do Sul, acabar morrendo. A princípio, nenhuma explicação foi apontada.
Meses depois soube que a mãe da criança, na gravidez e durante um período prolongado
de ausência de seu marido, manteve relações sexuais com um outro rapaz, casado, que
teria "ajudado a fazer" a criança. Porém, este não seguiu as restrições alimentares no
período pós-parto, o que ocasionou a sua morte.
É possível imaginar que os co-genitores não se sintam responsáveis pela criança
que "ajudaram a fazer" e que não sigam a dieta para não exporem publicamente
relacionamentos clandestinos. Ambas as possibilidades são perfeitamente admissíveis,
com a ressalva de que não se aplicam em alguns casos. Na maior parte das vezes, aquele
que assume a criança é o mesmo que se abstém.
Foi o que se passou com Vari, Wesi e Mame. Em 1994, recém-chegados da
aldeia do rio Gregório, Vari e Wesi eram casados. Ela, Vari, engravidou, mas pouco
tempo depois do anúncio de sua gravidez separou-se de Wesi, que voltou para a aldeia
do rio Gregório sozinho – Vari não voltou, pois tinha sua mãe na aldeia do Campinas.
Ainda no período de gestação, Vari casou-se com Mame e após o parto, o casal seguiu à

6
Do mesmo modo como foi registrado por Abelove & Campos (1981) entre os Shipibo.
65

risca as restrições alimentares. Neste caso, o co-genitor foi quem seguiu a dieta pós-
parto e dificilmente admitir-se-ia que Wesi, separado de Vari e morando distante dela,
tivesse seguido a dieta cabível a um genitor. A propósito, em minha viagem à aldeia do
rio Gregório, na qual fui acompanhada de Vari e Mame, reencontrei Wesi e acabei, por
puro esquecimento, criando uma situação constrangedora. Após saber que sua atual
mulher estava grávida, perguntei para Wesi, na frente de Mame, se ele já tinha outro
filho. Ele, de cabeça baixa, respondeu-me que não. Transcorridos três anos desde o
nascimento do filho de Vari, Wesi ainda não conhecia a criança que tinha ajudado a
conceber.
A quebra da dieta do genitor no período pós-parto é também bastante comum
pelo fato de que entre os Katukina é freqüente, pelo menos nos dias de hoje, que as
mulheres solteiras tenham seus filhos sozinhas (tanto mais se já tiverem filhos), sem que
nenhum homem assuma publicamente a paternidade. Neste caso, qualquer enfermidade
que a criança apresentar será atribuída à falta daquele(s) que ela diz ser o(s) genitor(es)7
– já que, como admitem, as mães dificilmente desrespeitam a dieta no período pós-
parto, talvez porque estejam enfraquecidas e são cuidadas permanentemente por suas
mães e/ou avós, as quais providenciam a sua comida. O que acaba por delinear uma
rede acusatória que providencia diagnósticos.
A proibição de comer a carne de todos os mamíferos no resguardo pós-parto é
relaxada se, dias após a cicatrização do umbigo, a criança não apresenta qualquer
problema de saúde, em um período variável de 10-20 dias, quando os pais passam a
poder comer quase tudo, com exceção das espécies de macaco e coatipuru.
No que diz respeito às relações de substância, como escrevi antes, sempre que
uma pessoa adoece, seja uma criança ou um adulto, pai, mãe e irmãos não devem
consumir a carne de qualquer mamífero, tartaruga e jacaré. Formados pelos mesmas
substâncias, entende-se que os distúrbios fisiológicos de um afete, de algum modo,
todos os membros da família elementar e todos têm então que observar a mesma dieta
daquele que está debilitado fisicamente. O que resulta no dia-a-dia em recados sobre a

7
A paternidade não assumida tem se tornado fonte de conflitos públicos durante a realização do batismo
cristão. Um padre da Diocese de Cruzeiro do Sul, o padre Heriberto, visita os Katukina com
regularidade e providencia os batismos anualmente. As mães que desejam batizar seus filhos, têm de
encaminhar ao padre o nome da criança, o dela própria e o do pai. Entretanto, na realização do
sacramento, os homens arrolados como genitores, recusam-se a participar e, então, o batismo não é
realizado – já que o padre se recusa a fazê-lo sem a concordância do pai. Quase sempre os homens
envolvidos nessa situação são casados e dizem temer a reação de suas esposas. Numa das vezes que
66

saúde das pessoas circulando por todos os lados. Considerando, por exemplo, a
virilocalidade atual dos Katukina, as filhas casadas moram em agrupamentos
residenciais distantes de seus parentes diretos e, no caso de adoecer seriamente, alguém
deve imediatamente comunicar a seus pais e irmãos, para que estes observem a mesma
dieta e acompanhem a progressão de seu estado de saúde. No caso de haver meio-
irmãos, o que é bastante comum, estes também devem ser avisados. Eu mesma, nas
visitas diárias que fazia a diferentes agrupamentos residenciais, fui portadora de
inúmeros recados desse tipo.
O resguardo alimentar incide também sobre alguns dos animais domésticos
introduzidos entre os Katukina após o contato com os brancos. Galinhas e patos são
apropriados ao consumo em qualquer tempo, estejam as pessoas sadias ou enfermas,
como ocorre com as demais aves. Aliás, quando alguma pessoa está doente, a criação de
galinhas no terreiro é providencial e pode diminuir rapidamente, visto que não só ela,
mas várias outras pessoas devem se abster de carne de caça. Embora o consumo de
carne bovina seja pequeno (alguns katukina não apreciam mesmo o sabor desta carne),
diz-se comumente que a carne de boi (voi) não está sujeita a qualquer tipo de interdição.
Já o consumo de carne de ovelha (txasho) e porco doméstico (hono) é orientado pelas
mesmas interdições previstas para os animais silvestres que citei no início deste tópico.
O boi é chamado de voi entre os katukina, a troca do b pelo v parece ser simplesmente
uma adequação à fonologia da língua. A ovelha é chamada de txasho, o mesmo termo
com o qual designam o veado, e o porco doméstico é chamado de hono, o mesmo termo
utilizado para o porco silvestre.8 O fato de ovelha e porco doméstico terem correlatos
silvestres parece explicar a interdição de consumo a que estão sujeitos em casos de
doenças, pois são as interdições previstas para o veado e o porco silvestre na mesma
situação.

No caso dos alimentos de origem vegetal, a noção de consubstancialidade não


interfere e a restrição alimentar é individualizada, apenas a pessoa adoentada deve
abster-se de alguns alimentos. Alguém com gripe (toro tae), por exemplo, não deve

presenciei o batismo, uma mulher, desejosa de batizar sua filha, irritou-se com a recusa do pai dela e
agrediu-o na presença de todos.
8
Havia ovelhas na aldeia do rio Campinas em 1991. Atualmente, os Katukina desta aldeia criam galinhas,
patos e porcos. Em 1997, tentaram criar gado, mas a tentativa resultou em alguns desentendimentos
entre eles – os bois perseguiam as crianças e sempre havia a ameaça de invadirem os roçados. Na aldeia
do rio Gregório, os Katukina criam galinhas, patos, porcos e bois. Para evitar problemas com o gado, os
roçados são feitos em lugares distantes das casas ou na margem oposta do rio.
67

comer mamão, abacaxi, banana, cana-de-açúcar e inhame. Os quatro primeiros por


serem alimentos doces e o inhame devido à sua consistência viscosa. Tanto a
viscosidade do inhame quanto o sabor doce do mamão, do abacaxi, da cana-de-açúcar e
das bananas causariam o aumento da secreção nasal. Para evitar o aumento do muco
nasal, uma pessoa gripada deve também evitar peixes pegos com tingui (asha). Entre os
alimentos de origem animal, como vimos antes, os peixes não são interditados aos
doentes. Mas, neste caso, pela interferência do componente vegetal, o peixe pego com
tingui apresentaria a mesma viscosidade do inhame, dada a consistência pastosa do
tingui quando dissolvido na água. Em casos de diarréia (tesho tae), uma pessoa deve
abster-se apenas de alimentos doces.
A macaxeira só é interditada para o consumo na dieta para picada de cobra, de
que falarei abaixo. Entretanto, no preparo culinário, algumas vezes, a carne de caça é
cozida junto com a macaxeira e se houver alguma pessoa muito doente (vopi), deverá
abster-se de ambas. Neste caso, é como se as propriedades da carne capazes de debilitar
ainda mais o enfermo tivessem contaminado a macaxeira, dado o cozimento conjunto,
tornando-a imprópria ao consumo.
A mais rigorosa de todas as dietas é a indicada para as pessoas picadas de cobra.
O resguardo combina a abstinência de carne de quase todos os animais, peixes e aves e
também vegetais e deve ser seguida por todos os parentes diretos – pai, mãe e irmãos –
da pessoa acidentada. Estas podem comer apenas carne de jacaré (kape) e nambu
(koma), uma única variedade de macaxeira (poto atsa) e uma única variedade de banana
(poto mani, banana-chifre-de-bode). A dieta só é relaxada com a completa recuperação
daquele que se acidentou. Há também rezas específicas para o tratamento de acidentes
ofídicos, mas não as vi sendo executadas. Em campo acompanhei o tratamento de um
cachorro picado por uma surucucu. Seu dono fez com que ele obedecesse as restrições
alimentares, não lhe oferecendo nenhum tipo de carne, e também preparou alguns chás
com plantas da mata.
Dado o repertório vasto de restrições alimentares, sejam relacionadas ao ciclo de
vida ou a estados patológicos, na maior parte do tempo há pessoas em resguardo em
todos os agrupamentos residenciais. Mas após discorrer sobre tantas interdições é
inevitável afirmar que a observação estrita de cada uma delas, por todas as pessoas, é
improvável e motivo de desentendimentos diários.
Numa das casas em que estive hospedada na aldeia do rio Campinas, Mampo,
uma viúva, acompanhava regularmente a dieta de seus netos, o que significa dizer que
68

ela vigiava de perto o que as mães de seus netos permitiam que as crianças comessem e
o que elas próprias comiam. Entretanto, aconteceu de um de seus netos adoecer, uma
criança de pouco mais de um ano. O garoto contraiu uma forte gripe e estava, portanto,
impedido de comer alimentos doces. Mampo acompanhava o estado de saúde do
menino e aconselhava sua filha a não lhe dar bananas. Numa das saídas de Mampo da
casa, a mãe do menino acabou permitindo que ele comesse bananas, já que ele viu
outras pessoas comendo e não parou de chorar enquanto não ganhou um pedaço. Mais
tarde o menino teve febre e vomitou e Mampo acabou descobrindo que sua filha havia
relaxado a dieta.
O esmero de Mampo com a saúde de seus netos e a fiscalização dos cuidados
que lhe são dedicados pelos seus próprios pais não é incomum. As avós (e também os
avôs) estão sempre prontos a defenderem as crianças das reprimendas de seus próprios
pais.
A fiscalização constante dos cuidados às crianças e a conseqüente repreensão da
mãe do garoto, como foi dito, não é incomum: ao contrário. Em sua própria trivialidade,
esse episódio permite que se recupere a positividade da dieta.
De nossa própria perspectiva, o resguardo pode ser definido negativamente
como privação ou restrição e, num plano imediato, ele certamente o é. Até onde pude
saber, os Katukina não têm uma palavra para "resguardo". No caso de ser convidada a
comer algo que momentaneamente lhe é interditado uma pessoa responderá: pimaiki (pi,
comer + ma, sufixo de negação + iki, fecho de frase, segundo Barros 1987), que pode
ser traduzido como "não quero/não vou comer". Se estiver fora de sua própria casa, para
desfazer o mal-estar que a recusa de um convite desse tipo acarreta, emenda-se
rapidamente fornecendo uma justificativa que, em geral, remete ao seu próprio estado
de saúde ou de seus consubstanciais. Aí as respostas mais freqüentes são: en yome pake
tae ("meu filho nasceu"), en papan vopiai ("meu pai adoeceu") ou ea tesho tae ("eu
estou com diarréia"). A justificativa para a recusa do convite parece-me mais importante
que a recusa em si mesma. O resguardo existe como positividade, enquanto medida
profilática9, proteção de si ou de outrem contra investidas externas. O resguardo não
responde exclusivamente ao plano imediato. De certa forma o resguardo é todo
orientado prospectivamente, garantindo a continuidade do grupo de substância.

9
Kensinger (1995a:202-203) também interpreta os tabus alimentares dos Kaxinawa como medida
preventiva.
69

Confusão homem/animal

A ingestão de alimentos proibidos, como temos visto, pode causar o


agravamento do estado de saúde de uma pessoa já enferma ou dificuldades no parto se
uma mulher estiver grávida. Em casos de doença, os Katukina identificam alguns
distúrbios recorrentes de acordo com o animal ingerido. Assim, temos:

Animal consumido Distúrbios

Paca, paca-de-rabo, cotia, tatus, Enrijecimento da barriga, dores de barriga,


jaboti e jacaré diarréia e vômitos

Macacos e coatipuru Dor de cabeça, tontura e agitação, mordidas

Anta, capivara, queixada, porco e Salivação, tremores, febre e olhar parado em


veado ponto fixo

Os sintomas indicados para cada animal ingerido estão associados a


características do comportamento e hábitos dos animais que os katukina passam a
reconhecer nas pessoas doentes. Pacas, tatus, cotias e jacarés são bichos de hábitos
rastejantes e de casco ou que vivem em tocas, subterrâneas ou não. A interpretação dos
Katukina associa tais hábitos ao abdômen e tudo se passa como se o bicho tivesse
mesmo se instalado no corpo, provocando o enrijecimento da barriga. Em conversas,
pessoas que já tiveram uma doença atribuída ao consumo de um desses animais
apertavam a própria barriga e indicavam que tudo se passa como se suas entranhas
fossem devoradas. Por sua vez, os distúrbios provocados por animais do segundo grupo,
macacos e coatipurus, são associados ao comportamento agitado desses bichos. Uma
associação que certamente justifica o fato de que as crianças são as mais acometidas por
essa doença. Por fim, os distúrbios provocados pelos animais do terceiro grupo (anta,
capivara, queixada, porco e veado) não são facilmente dedutíveis e nenhuma homologia
de comportamento ou de hábitos me foi indicada. Só me ocorre pensar que todos esses
bichos saltam nos cursos d'água quando são acuados, o que talvez justifique a
ocorrência de febre e os tremores de frio, mas não os demais sintomas. O bater dos
dentes característico dos queixadas também podem ser associados ao tremores. Nesses
casos, é como se a pessoa doente e o animal tivessem se confundido, como se houvesse
sido estabelecida uma identidade entre eles. O consumo da carne desses animais fora
70

das situações controladas faz com que as substâncias animais se confundam com as
humanas, em prejuízo dos próprios homens.
Os mesmos animais listados acima foram relacionados em outros grupos pano a
distúrbios muito parecidos. Entre os Kaxinawa, segundo Lagrou (Lagrou 1998:57 e 90),
o excesso de salivação e os tremores são reconhecidos como sintomas da "doença da
queixada" e a agitação e agressividade (particularmente, as mordidas) definem a
"doença dos macacos". A autora definiu a concepção kaxi de doença como um
"processo de tornar-se outro", que se aplica estreitamente aos Katukina.
O sangue concentra a substância animal (da mesma maneira como a humana) e a
carne (nami) deve ser então evitada em determinados períodos. O relato de um episódio
de campo pode ajudar a esclarecer um pouco a idéia. Em minha primeira permanência
mais prolongada entre os Katukina, em 1992, fui surpreendida na casa em que me
hospedava pela chegada de um garoto à minha procura, com um grande pedaço de paca
que ele me entregou assim que me viu. Como naquela época tinha um domínio precário
da língua, o garoto virou-se para meu hospedeiro e pediu para que eu desse em troca
algumas latas de conserva, que todos na aldeia sabiam que eu levava para os dias mais
difíceis. Atendi prontamente, embora a troca me parecesse excessivamente desigual
para ele.
Antes que o garoto partisse, pedi para que ele explicasse ao meu hospedeiro o
que se passava em sua casa, já as pessoas de lá tinham um paca e queriam minhas latas
de conserva. A resposta foi simples. O pai do garoto tinha saído para caçar pela manhã e
quando voltou para casa, com a paca em mãos, sua filha caçula tinha adoecido. A febre
alta da menina fez com que o pai, a mãe e os irmãos da garota desprezassem a paca que
acabara de ser caçada. Parte dela foi distribuída na vizinhança e a outra parte destinada à
troca proposta comigo e que poderia ajudar a remediar a fome que todos sentiam na sua
casa. Meu hospedeiro então explicou que o sangue da carne da paca poderia complicar a
saúde da menina. Argumentei que a conserva que o garoto havia levado também era de
carne e, logo, continha sangue embutido de um animal. Dois contra-argumentos foram
lançados para me contradizer: primeiro, que carne de gado não está sujeita a interdições
(como vimos acima) e; em segundo lugar, não se tratava de carne fresca, o animal do
qual foi feita a conserva havia morrido há muito tempo.
O sangue fresco do animal veicula então suas características e por isso deve ser
evitado em situações determinadas. Mas deve ser destacado que as doenças provocadas
pela quebra da dieta alimentar atingem, a princípio, apenas o corpo físico (yora), não se
71

trata de uma atração por espíritos. A paca, por exemplo, instala-se no abdômen de uma
pessoa e devora suas entranhas. Sem os devidos cuidados a fragilidade de seu corpo é
que proporciona que seus espíritos, o do corpo (yora vaka) e o do olho (wero yushin), se
retirem e provoquem a sua morte.
Para finalizar, pelo menos por ora, animais e vegetais são interditados ao
consumo, em ocasiões definidas, com distintos argumentos. Os vegetais o são devido a
propriedades internas, como consistência e sabor10. Por seu turno, os animais o são por
razões que transcendem suas características imediatas – excetuando-se aqueles animais
que citei no início deste capítulo, que podem despertar características desprezadas ou
apreciadas. Os animais, ex-humanos, são possuidores não só de espíritos mas também
de substâncias que, de alguma maneira, interagem e circulam entre os homens, mas cuja
interação e circulação podem resultar no inverso da caça, i.e., os homens podem ser
transformados em presas.
O esquema da contra-predação, identificado em tantos grupos amazônicos, faz-
se presente então entre os Katukina. Entretanto, apesar do reconhecimento da
ancestralidade humana dos animais não são previstos rituais de dessubjetivação das
presas antes do consumo. Tudo se passa como se os Katukina investissem numa aposta
– como todas de resultado incerto. Caso uma pessoa adoeça tendo consumido carne, um
especialista xamânico é chamado para tratá-la, para afastar o espírito do animal
agressor. Mas isso se faz depois, nunca antes.
A mesma coisa parece suceder com outros grupos lingüisticamente aparentados.
Entre os Kaxinawa (Kensinger 1995a:193-206; Lagrou 1998), os Yaminawa (Townsley
1988), os Marubo (Montagner Melatti 1985) e os Yawanawa (Pérez 1999:56-73) os
tabus alimentares são relativamente bem estudados e muitas das doenças são concebidas
como vingança dos animais. Entretanto, salvo engano, em nenhum destes grupos são
previstos rituais de purificação das presas antes do consumo. Neste contexto, os
especialistas xamânicos nunca são mencionados. Os cuidados requeridos no trato da
presa são de responsabilidade do caçador e de quem a prepara. Ambos preocupando-se
com o sangue: o primeiro deve evitar que o bicho perca muito sangue quando é abatido
e a mulher, que se dedica ao preparo culinário, eliminando dele todo o vestígio de
sangue. Ainda que a hemofobia dos Katukina, e dos demais grupos citados, tenha

10
Não quero dizer com isto que a classificação dos sabores não tenha condicionantes culturais – na
próxima seção deste capítulo irei escrever sobre como os sabores são concebidos –, apenas enunciei o
modo como os Katukina parecem elaborar tais proibições.
72

significativas reverberações simbólicas, exige-se tanto no abate quanto no preparo


culinário, habilidade técnica e não conhecimentos esotéricos. Confirmando o que
escreveu Erikson (1986:194-197): "os grupos pano caçam e consomem quotidianamente
com poucas restrições rituais (apenas minimizando sua 'sanguinidade')…".
Além da caça e do preparo culinário, outros contextos em que os cuidados com o
sangue são previstos, envolvem a menstruação e o parto. Mulheres menstruadas não vão
às pescarias de tingui, pois podem afugentar os peixes e, portanto, comprometer o
empreendimento coletivo. No parto as mulheres são amparadas apenas por seus parentes
do sexo feminino, o pai não participa do nascimento da criança e só pode vê-la após ter
sido limpa. Se ficar próxima dela ou pegá-la antes disso, arrisca-se a ficar panema
(yupa). A participação masculina no parto só é prevista no caso de haver complicações.
Mesmo assim essa participação será restrita aos especialistas xamânicos, que aspiram
rapé antes de colocarem-se em contato com a gestante em dificuldades.

Os sabores do corpo

Até aqui fiz algumas referências à classificação dos sabores, em particular ao


doce (vata). Como este é um tema ao qual sempre terei de voltar, vou tentar resumir os
problemas que dele decorrem.
Entre os Katukina, como é generalizado entre os grupos pano (Erikson 1993b), a
oposição fundamental é aquela entre substâncias doces (vata) e amargas (muka). Nesta
ordem porque o primeiro termo já foi mencionado, pois se fosse mesmo para
hierarquizá-los o doce estaria à frente do amargo apenas se considerássemos as
preferências gustativas, mas não suas propriedades. De um modo geral, as substâncias
amargas são mais benéficas ao corpo.
Seguramente, algumas das substâncias classificadas como doce são: mamão
(shompa), abacaxi (kankan), cana-de-açúcar (tavata), banana (mani), batata-doce (kari),
mel (vata), caranguejo (shanka) e camarão (mapi). Nos dias de hoje essa categoria
inclui também açúcar e sal (ambos vata), balas e biscoitos. Embora me pareça muito
mais complicado falar dos odores, suspeito que ao menos um deles possa ser associado
ao doce, trata-se daquele que os Katukina classificam como inin, cheiroso.11 Esta

11
Erikson (1996:194) observou que a oposição doce/amargo entre os Matis é duplicada no domínio dos
odores: o acre ou almiscarado sendo o amargo (chimu) e o suave, bata (doce). Entre os Katukina tenho
segurança para indicar a associação indireta apenas entre vata (doce) e inin (cheiroso). Os demais odores
73

suspeita deve-se ao fato de que as substâncias tidas como cheirosas devem ser evitadas
do mesmo modo como os alimentos doces. De seu próprio repertório, os Katukina me
indicaram algumas plantas e também a resina chamada sempa, que são cheirosas (inin).
As demais substâncias que me foram indicadas são todas industrializadas: sabonetes,
xampus ou perfumes. Uma pessoa gripada, por exemplo, não deve usar nenhum desses
produtos pois podem, do mesmo modo que os alimentos doces, causar o aumento do
muco nasal.
Entre as substâncias amargas, os remédios (rao) extraídos de plantas da mata são
as mais mencionadas. Há, inclusive, uma categoria de plantas utilizadas para tratar
constipação que é designada por muka. Os remédios industrializados são também
amargos e aqui o mais destacado e conhecido dos Katukina, dada a alta incidência de
malária na região, é o quinino. Além dos remédios, são classificados como amargo o
emético feito da secreção do sapo kampo, a ayahuasca (oni), o tabaco (rome) e o rapé
(rome poto).
Ao lado do doce e do amargo, os Katukina mencionam ainda as substâncias
tsimu: a tradução mais próxima que me ocorre é o sabor adstringente. Inequivocamente,
estão incluídos nesta categoria as bananas verdes e o caju. Dos três sabores, o tsimu é o
que menos desperta a atenção dos Katukina e tenderia a defini-lo como neutro, não
fosse o fato de que talvez ele possa ser englobado pelo amargor. A possibilidade de
conceber o tsimu como neutro, retirei-a da observação quotidiana de que era o menos
marcado entre os três sabores, o que menos interferia no bem-estar ou no mal-estar das
pessoas. Até onde sei, em nenhuma situação o tsimu deve ser evitado. Já a possibilidade
do muka poder englobar o tsimu vem do fato de que, embora bananas verdes sejam
assadas e consumidas a qualquer tempo, são-no mais nas situações de debilidade física,
quando se está impedido de consumir substâncias doces. Justamente nos momentos em
que as substâncias amargas são mais recomendadas. Além disso, em outros grupos
pano, o tsimu foi definido como amargo – tal é o caso dos Matis (Erikson 1996:194-
200) e dos Yawanawa (Pérez 1999).

são o pisi, traduzido como podre e o itsa que é utilizado para descrever os cheiros próprios dos corpos.
Assim, o cheiro de um bando de queixada é yawa itsa. Ainda que o cheiro de um bando de queixada não
seja dos mais agradáveis, não é equivalente à podridão. Certa feita um rapaz que acabara de trabalhar ao
sol reuniu-se, com o corpo ainda suado, a um grupo de pessoas para descansar. Uma mulher logo disse:
Yawa itsa, indicando que seu cheiro não lhe agradava, metaforicamente fazendo referência à queixada.
Testei a classificação dizendo: Pisi!, como quem quer dizer que ele estava fedido. Ela prontamente me
corrigiu: "Não. É só cheiro do corpo (yora itsa), não é podre (pisi ma)".
74

Os alimentos doces são bastante apreciados por todos, mas predomina a


concepção de que seu consumo é mais cobiçado e adequado às mulheres e crianças. De
fato, os alimentos doces de origem vegetal são todos plantados pelas mulheres.
Camarões (mapi) e caranguejos (shanka) são também coletados pelas mulheres e
crianças nos igarapés durante a estação seca. A despeito do sabor delicado que têm, pelo
menos ao paladar nativo, uma mulher casada que esteja sempre à procura de camarões e
caranguejos acaba por denunciar a imprevidência do marido que não deve estar
satisfatoriamente abastecendo sua família com carne.
Com exceção dos remédios, fitoterápicos ou industrializados, de que homens e
mulheres fazem uso de acordo com suas próprias necessidades e de maneira equânime,
as substâncias amargas são predominantemente masculinas. O kampo é, antes de
qualquer outro uso que se faça dele, um estimulante cinegético – tanto assim que com o
mesmo fim é aplicado nos cachorros. O uso que as mulheres fazem dele é bastante
distinto do que fazem os homens. As sessões de ayahuasca, pouco realizadas mesmo
pelos homens, não são freqüentadas pelas mulheres, que não tomam o alucinógeno. Não
há um impedimento formal que justifique a ausência feminina, as próprias mulheres
parecem temer as visões proporcionadas pelo consumo do cipó. Certamente todas elas
sabem dessas visões por seus pais, maridos, irmãos e filhos, que acabam indiretamente
sugerindo a abstinência. Tabaco e rapé todos os homens experimentam ao longo da
vida, mas uso contínuo dos dois só é feito pelos especialistas xamânicos. O fato de a
antropóloga fumar parecia indiferente, tanto mais porque se tratava de um "cigarro
fraco", pouco atraente ao paladar de rezadores e, talvez por isso mesmo, bastante
cobiçado por todos os outros homens. A propósito, poucas mulheres quiseram
experimentar de meu cigarro, ainda que dissessem que o achavam cheiroso (inin) – seria
doce? –, bastante diferente daquele que fumam os rezadores.
Entre as substâncias amargas utilizadas pelos homens ainda hoje é preciso
estabelecer algumas diferenciações. A secreção do kampo (Phyllomedusa bicolor) é,
como dito acima, primeiramente um estimulante cinegético e o seu uso em grandes
quantidades é feito exclusivamente pelos jovens; homens mais velhos, mulheres e
crianças utilizam-no em dosagens menores. Os Katukina afirmam que antes as mulheres
e crianças recebiam com mais freqüência aplicações de uma variedade "mais fraca" do
emético, retirada do sapo shawan kampo (Phyllomedusa tarsius), pouco utilizada hoje
em dia. A aplicação é feita queimando a pele com uma ferpa de paxiúba aquecida e, em
seguida, depositando na queimadura a secreção do kampo. A fim de aguçar os sentidos
75

para empreender uma caçada, um rapaz pode chegar a receber mais de cem aplicações
de kampo, que formam uma fileira que se inicia no pulso de um dos braços, percorre o
peito até alcançar o umbigo, donde segue, no lado contrário, até alcançar a extremidade
do outro braço. Mesmo que seja corrente a idéia de que essa super-dosagem é a mais
indicada para tornar um homem um exímio caçador ou para retirar-lhe o panema (yupa),
a prática evidentemente responde a idiossincrasias pessoais. Há um rapaz – que eu
saiba, o único atualmente – que nunca experimentou do kampo como estimulante
cinegético, o que quer dizer que o usou apenas em doses menores. Este rapaz também
nunca caçou e supre sua família com peixes. O desejo que ele mesmo, sua mulher, seus
filhos e sua mãe, uma viúva, têm de carne de caça depende da generosidade alheia, em
particular de uma irmã que é casada com um dos melhores caçadores da aldeia do rio
Campinas. Há outros rapazes que fizeram a super-aplicação do kampo uma única vez,
logo que iniciaram suas atividades como caçador. Depois disso limitaram-se a receber
as dosagens menores. Por último, há um grupo que de tempos em tempos recorre ao
kampo para garantir uma performance mais vantajosa na caça. Nos intervalos entre as
aplicações esses rapazes recebem também as dosagens menores.
A resistência de alguns homens à aplicação da super-dosagem do kampo não se
deve creditar a dúvidas quanto à sua eficácia, mas aos efeitos que têm de suportar. Por
volta da décima aplicação, a boca fica amarga, uma sensação de calor invade o corpo e
os olhos e a boca começam a inchar. Há quem desfaleça antes do final das aplicações.
Cheguei a ver certa vez mais de noventa aplicações no peito e nos braços de um
homem, mas ele mesmo admitia que seria possível dobrar este número se suportasse
fazer duas fileiras de aplicações. Ele só havia feito uma – o que, aos olhos de alguns, já
era um exagero.
Fora do contexto da caça, com maior ou menor freqüência, homens e mulheres
fazem uso do kampo. A partir, aproximadamente, dos sete anos de idade todos recebem
de duas a cinco aplicações nos braços ou nas pernas. Este uso moderado do kampo é
feito para aliviar alguns males do corpo, como diarréias e febres, que tiram o ânimo de
qualquer pessoa para o desempenho das atividades mais simples. Mas, ainda que se
queira debelar o incômodo físico que diversas patologias causam, o uso do kampo
parece-me muito mais determinado pela avaliação moral que se faz do desânimo que
proporcionam. Afinal, depois de ser recomendado como estimulante aos caçadores, o
kampo é recomendado àqueles que padecem de preguiça (tikish). A avaliação
sumamente negativa que os Katukina fazem da preguiça foi já identificada em outros
76

grupos pano. Como Erikson (1996:283) bem observou entre os Matis, "a falta de zelo
característica do estado de chekeshek (preguiça) é percebida como uma ausência de
reação ao estímulo social, uma resposta negativa ao imperativo social, antes que como
um torpor sui generis". Tanto mais válida essa afirmação se considerarmos que, entre os
Katukina, homens e mulheres aplicam o kampo, como antídoto anti-preguiça, em
distintas partes do corpo: os homens aplicam-no nos braços e as mulheres, nas pernas. A
derrubada de grandes árvores exige braços fortes e a rotina quase diária da colheita e,
sobretudo, do transporte da macaxeira (às vezes também dos filhos) requer força nas
pernas.
Como estimulante cinegético ou como antídoto anti-preguiça, o kampo deve ser
aplicado por uma segunda pessoa, por alguém que não padeça do mal que se quer
debelar. Assim, não é qualquer homem que pode aplicar o kampo num caçador
empanemado, tem de ser um caçador bem-sucedido. Como se o caçador trouxesse
inscrito em seu próprio corpo a sua condição e pudesse transferi-la para outros. Ni'i,
filho de um rezador, procurou Kene para "tomar kampo", preterindo o seu próprio pai,
um rezador experiente que, comenta-se, jamais tocou numa espingarda e, portanto,
jamais matou qualquer bicho12. Do mesmo modo, uma mulher tida como trabalhadeira é
que deverá fazer a aplicação do emético numa jovem preguiçosa. Existe a possibilidade
de auto-aplicação, mas é reservada apenas às pessoas mais velhas.
No que diz respeito ainda ao kampo, cabe dizer que os especialistas xamânicos
fazem uso dele apenas na forma moderada, para debelar algum mal físico ou a preguiça
de que falei acima. Embora não esteja excluída a possibilidade de um rezador caçar – o
que faz com muito menos freqüência e sucesso que os demais –, seu domínio é outro.
Um rezador interage com seres metafísicos que o iniciam e mantêm no aprendizado
constante de cantos e rezas e, para isso, a cota de amargor que traz em seu corpo
provém do tabaco, em forma de fumo e de rapé. Caso receba uma grande dosagem de
kampo, o rezador expulsa de seu corpo o objeto mágico que o credencia a estabelecer
relações sobrenaturais. 13
No passado, uma outra fonte de amargor usado como estimulante cinegético
eram as picadas das formigas hanin, recomendada àqueles que quisessem aguçar os
sentidos para abater aves. Essas formigas formam seus ninhos em árvores ocas. O

12
Diferentemente então dos Yaminawa que recebem aplicações de kampo das mãos do koshuiti (Calavia
1995:32).
13
O xamanismo será tratado adiante.
77

caçador mal-sucedido no abate de aves deveria submeter-se às suas picadas, colocando,


um após o outro, os dois braços dentro do ninho. Para que resistisse à prova dolorosa, o
caçador ia à mata acompanhado de um outro homem, incumbido de segurá-lo enquanto
deixava-se picar pelas formigas, para que não desistisse ao primeiro grito de dor.
Entre todos os panólogos, Erikson (1996) é certamente o que mais abordou a
polissemia da polaridade doce/amargo e associou o segundo termo também ao ardor, às
picadas e perfurações – as tatuagens faciais, outrora usadas por quase todos os grupos
pano, são emblemáticas aqui. Tomando de empréstimo suas análises menciono um
outro estimulante utilizado pelos Katukina para combater a preguiça, que talvez possa
ser associada ao amargor, trata-se da urtiga mansa (vakish). O vakish é usado quando as
crianças se recusam a desempenhar as atividades previstas para sua idade – buscar água
no igarapé, cuidar dos irmãos menores, entre outras. Vi o vakish ser usado uma única
vez. Com um braço a criança foi segura e com o outro o vakish foi passado
superficialmente em seu corpo. A mulher que o passava repetia insistentemente as
tarefas que a menina deveria ter feito naquele dia que passou fora de casa entre crianças
de sua idade. Faz-se pouco uso do vakish, mas ele constitui uma ameaça constante: a
possibilidade dele ser usado é sempre lembrada às crianças que insistem em não
obedecer às ordens das pessoas mais velhas. De todo modo, as "surras de urtiga" são
previstas apenas nos casos de preguiça e não por qualquer outro motivo. Para fazer uso
dele é também necessária uma boa dose de auto-crítica já que, como nas aplicações de
kampo, se pretende que as qualidades – disposição para as atividades domésticas,
produtivas – da pessoa que manipula o vakish sejam transferidas para a criança.
Uma pedagogia tão ou mais terna é encontrada também entre os Matis, que só
admitem que as crianças apanhem ritualmente quando os mariwin visitam a aldeia e
golpeiam com varas de palmeiras as crianças entre dois anos e a adolescência (Erikson
1987b). Do mesmo modo que as "surras de urtiga" dos Katukina, os Matis pretendem
que as varadas dos mariwin combatem a preguiça.14
Como presenciei a "surra de urtiga" uma única vez, não tenho como assegurar se
é usada também para disciplinar os meninos, mas suspeito que seja um recurso do qual

14
Segundo Kensinger (1995a), os Kaxinawa também evitam punir as crianças com agressões físicas. O
maior castigo que alguém pode receber é o ostracismo.
78

lançam mão com mais freqüência apenas na educação das meninas. 15 De todo modo, ao
combate da preguiça com o uso do vakish talvez possa ser agregado o seu significado
como um estimulante da fertilidade. Essa hipótese retiro de Erikson (1987b:108-9): o
autor notou entre os Matis que, além das crianças e adolescentes, as varas dos mariwin
são dirigidas também às mulheres grávidas e àquelas que entraram na menopausa. A
depreciação da preguiça certamente expressa a recusa desse comportamento que frustra
a vida social, o que outra coisa não faz a infertilidade. Erikson (1987b:109) ouviu um
adolescente matis dizer, sem rodeios, que "nos dias de hoje, as mulheres são muito
preguiçosas para fazerem amor". Nesse sentido, é bastante sugestiva a informação de
que na "brincadeira do fogo", entre os Yawanawa, os homens ameaçam atingir as
mulheres com ramos de urtigas, as quais respondem ameaçando atear-lhes fogo com
folhas de palmeiras em chamas (Carid 1999:104). Tanto mais sugestiva a informação
porque nos registros sobre as "brincadeiras" em vários grupos pano, sempre é destacado
o forte componente sexual.16
Desta breve exposição o que se há de reter é que embora seja possível equilibrar
as dosagens de doçura (vata) e de amargor (muka), o segundo termo é o mais marcado e
associado à boa disposição e à sociabilidade. O fato de o amargor estar associado a
domínios francamente masculinos, como a caça e o xamanismo, não libera as mulheres
à doçura. A plenitude da vida, física e socialmente falando, supõe o amargor.
Não deixa de ser interessante notar que, nos dias de hoje, quando as acusações
de preguiça são tão freqüentes entre homens as mulheres, as tatuagens (titsa), emblemas
do "amargor picado", foram completamente transformadas. Se antes as tatuagens faciais
eram feitas em meio a rituais de passagem e implicavam profundos valores sociológicos
e ontológicos (Erikson 1996 e no prelo b), a sua versão contemporânea exprime um
certo individualismo. Quase todos os rapazes ostentam no peito, nos braços, nas pernas
ou nos ombros desenhos de peixes ou aves. Fazem as tatuagens uns nos outros, com
tinta de caneta e agulha. À diferença das velhas tatuagens, cujo desenho era o mesmo
entre os membros de um mesmo grupo, agora busca-se a diferenciação máxima. Ainda
que de forma anticlimática, as tatuagens exibidas hoje pelos rapazes atualizam a

15
Considero aqui apenas o uso pedagógico da urtiga mansa. Fora deste contexto, há relatos do uso da
urtiga mansa em ritos de caça entre os Marubo (Montagner Melatti 1985:289-291), os Matis (Erikson
1996:203) e os Kaxinawa (Lagrou 1998).
16
Além dos Yawanawa (Carid 1999), as "brincadeiras" foram registradas antes entre os Sharanawa
(Siskind 1973), os Marubo (Montagner Melatti 1985), os Kaxinawa (McCallum 1989) e os Katukina
(Lima 1994a).
79

concepção difundida entre os Pano de que a fabricação do corpo exige processos


dolorosos.

O descontrole do corpo e a fuga do yushin

Predomina entre os Katukina uma certa atitude de moderação. Na rotina da vida


na aldeia as pessoas devem evitar todo o tipo de excesso: falar baixo, não ser voraz com
a comida, não se prolongar em banhos, ser paciente – o que, absolutamente, não quer
dizer que os Katukina sejam todos casmurros. O comportamento moderado é
francamente adotado pelas pessoas mais velhas que ao longo dos anos desenvolvem
uma disciplina de moderação – que é, aliás, o ideal das pessoas maduras. Uma pessoa
feliz, satisfeita com sua própria vida, e com a de seus filhos e netos, é mekiti. A
etimologia dessa palavra pode sugerir mesmo o ideal de moderação: meki é "reto" e -ti é
um sufixo instrumental.17 Felicidade e retidão parecem andar juntos. Ao mesmo tempo,
uma certa inclinação hertziana é identificada, dado que meki designa também o lado
direito.
Os mais velhos estão sempre orientando seus filhos jovens a serem contidos, a não
se envolverem em brigas, ainda mais nos dias de festa, quando há algum forró na aldeia
e bebidas alcóolicas disponíveis18. "A gente não gosta de gente valente (vatxini)", foi
uma frase que ouvi repetidas vezes. A depreciação da valentia, entendida claramente
como violência, é tanta que os Katukina admitem até recursos pouco ortodoxos para
combatê-la, ao menos nas situações mais graves. Conta-se que no tempo das correrias
dos peruanos, um katukina, Kamarate, aliou-se aos invasores, ajudando-os a
localizarem as malocas dos próprios katukina e de grupos vizinhos e matando ele
mesmo os seus próprios parentes. Quando cessaram as perseguições, os peruanos
voltaram para sua terra e Kamarate voltou também ao seu grupo, mostrando-se
arrependido e pedindo para que o aceitassem de volta. Obviamente havia muito rancor

17
Aguiar (1994:100) definiu o sufixo -ti na língua katukina como um classificador de itens lexicais
padrão (ILPs) como objetos inanimados. O uso do -ti, como o identifiquei, parece-me próximo daquele
que fazem os Kaxinawa. Segundo Camargo (1997:157-160), o -ti serve tanto como um instrumental
(marcando "que a ação é feita por intemédio de") quanto como um localizador.
18
O consumo de bebidas alcóolicas na aldeia do rio Campinas cresceu muito desde que iniciei a minha
pesquisa há nove anos, embora não me pareça haver casos de alcoolismo. Os homens bebem nos forrós
e fins-de-semana todo tipo de bebida: cachaça, conhaque, o que tiver, mesmo que seja álcool, diluído em
água. A caiçuma azeda (alcoolizada) deixou de ser elaborada pelas mulheres, segundo elas, em reação às
brigas que ocorriam quando os homens a consumiam.
80

pelo banho de sangue que ele ajudara a causar, mas havia também medo e, ante o temor
da reação de Kamarate caso a resposta fosse negativa, decidiram aceitá-lo de volta.
Entretanto, não havia sossego com Kamarate por perto, tamanha sua valentia, e alguns
homens que se sentiam ameaçados decidiram matá-lo, para que pudessem restabelecer a
paz entre eles. Txoki, uma das pessoas que me relatou o fato, arrematou e compôs a
moral da história: "A gente não gosta de gente valente, é melhor matar logo… gente
valente não atura. Gente valente, os outros têm medo dele. Os outros matam logo,
porque ele é valente, valente, vive procurando briga". O fim justifica o meio. Ao final, a
moderação não se deve confundir com a covardia. O episódio é um tanto obscuro e é
fácil pensar que se Kamarate foi mesmo aliado de um dos maiores inimigos que os
Katukina já enfrentaram em sua história, devia ser odiado e não faltavam pessoas
desejosas de vingar-se. Ainda assim, a versão divulgada atualmente sobre Kamarate
ajuda a expor um dos valores que os Katukina mais prezam. Voltemos ao dia-a-dia.
Se a moderação é o ideal de pessoas maduras, é curto o caminho para a
compreensão de que as crianças são as mais vulneráveis aos seus próprios excessos,
sobretudo porque não sabem ainda se controlar: correm, gritam, querem comer de tudo
e brincar por horas a fio nos igarapés. O problema é que isso tudo pode expô-las em
demasia à ação dos agentes externos. Aos pais e avós cabe justamente ensinar as
crianças a serem comedidas, discipliná-las e, para isso, é preciso que sejam pacientes.
Uma parte significativa dos diagnósticos de doenças que afligem as crianças
imputa aos pais o malefício, por pura falta de paciência em ensinar-lhes o
comportamento adequado e os valores que lhe são associados. O fato, por exemplo, de
uma criança desejar comer alimentos que não são permitidos é tido como absolutamente
normal, não o é os pais permitirem, compactuando de alguma maneira com o
desregramento da criança. Numa situação dessas há que se ter paciência, desviar a
atenção da criança, entretê-la com brincadeiras, carinhos e confortos. Os avós quando
vêm seus filhos próximos de perder a paciência com seus netos, repreendem-nos e
pegam a criança para si. Quando são ainda crianças que mamam, as avós oferecem-lhes
o peito seco para chupar, numa tentativa de acalmá-las. O risco que se quer evitar com a
impaciência dos pais é justamente que eles respondam ao excesso da criança com um
outro excesso: gritando ou batendo. As crianças não são ainda seres plenos – nem social
nem física nem espiritualmente, pois esse principiar de tudo faz os laços muito tênues –
e os sustos que levam com a reação mais violenta de seus pais podem romper os
vínculos que ligam seus corpos a seus espíritos, fazendo com que as crianças fiquem
81

ainda mais agitadas, choronas e febris, podendo vir a desenvolver outros sintomas.
Mani, que é um rezador, diz que nessas situações o yora vaka, espírito do corpo,
daquele que gritou ou bateu na criança "cai em cima", sobrepujando o próprio espírito
dela, que se enfraquece e ameaça abandoná-la.
As acusações contra os pais são freqüentes e os mais velhos repreendem
publicamente os jovens quando se excedem com seus filhos. Aconteceu um dia de um
garoto de aproximadamente 11 anos, Rai, passar um dia inteiro fora de casa, brincando
com outras crianças de sua idade. Quando retornou, sua mãe, Retxa, exagerou e, além
de gritar muito, reclamando a falta dele para ajudá-la em certas atividades, bateu forte
no menino. Mampo, mãe de Retxa e avó do menino, interveio exigindo que ela se
controlasse, ainda que concordasse que seus argumentos fossem corretos. No dia
seguinte o garoto fugiu de casa sem levar roupas nem rede, acompanhou um grupo de
rapazes e meninos do agrupamento residencial vizinho que foi para uma caçada por dois
dias na mata. Na data prevista para o retorno do grupo de caçadores, Retxa, bastante
aborrecida, foi esperar o menino na casa de seus vizinhos. Assim que Rai chegou o
homem mais velho dali, seu tio materno, começou a ralhar com ela, a "dar conselhos"
sobre como deveria orientar-se para conseguir controlar seu filho – de fato, um menino
bastante agitado e esperto. Mais tarde, em sua casa, foi a vez dele "ouvir conselhos"
sobre a maneira correta de comportar-se, dentro e fora de casa. Como o garoto teve
febre dois dias depois, não demorou para que Mampo se lembrasse dos últimos
acontecimentos e responsabilizasse sua filha.
Aqui abro uma parêntese para observar que nessas "sessões de aconselhamento"
as pessoas adotam uma performance um tanto padronizada. Alguém toma a palavra e
enquanto não finda, não deve ser interrompida. Essas "sessões de aconselhamento" são
um tanto imprevistas e aquele que toma a palavra fala firme e seguidamente, em um
mesmo tom de voz e sem olhar para seu interlocutor. Esse permanece em silêncio e tem
de prestar atenção no que está sendo dito. De um modo geral, há sempre alguma
hierarquia envolvida entre aquele que toma a palavra e seu interlocutor, como tio
materno/sobrinha ou mãe/filho, como nos exemplos acima. Entretanto, a mesma
convenção orienta algumas situações conflituosas em que se encontram pessoas em uma
mesma posição hierárquica, trate-se de alguma queixa ou de um desagravo. Presenciei
uma mulher que, um dia, após sua filha apanhar do marido e voltar para sua casa,
procurou o sogro de sua filha para expor sua insatisfação com o comportamento do
genro. A mulher falou por mais de vinte minutos seguidos, sem mirá-lo de frente.
82

Quando encerrou sua fala inflamada, o homem, claramente constrangido, limitou-se a


prestar-lhe solidariedade, a dizer que não endossava o comportamento do filho.
Voltando à educação infantil, o máximo que se admite para censurar o
comportamento das crianças de colo, sem colocá-las em risco, são palmadas leves em
seu corpo. O mesmo se passa com as meninas, entre 5 e 11 anos, mas, para essas, há o
vakish (urtiga mansa) de que falei antes. A possibilidade de a agressão física romper os
vínculos que atam um corpo aos espíritos surge em outros contextos que não envolvem
relações entre pais e filhos. Assim são também interpretadas as agressões físicas de um
marido em sua mulher – que eu saiba inexistentes entre casais maduros e episódicas
entre casais jovens.19 Em um dos casos que soube, as pessoas comentavam da magreza
de uma certa mulher e apontavam seu marido como o culpado, já que ele a agredia por
qualquer razão, segundo os comentários. Os desentendimentos do casal chegaram ao
ponto do pai do rapaz intervir numa briga em favor dela.
No limite toda ação violenta e descontrolada, não só entre pais e filhos e marido e
mulher, pode acarretar distúrbios naquele que é agredido. Não se trata de mero distúrbio
físico, a debilidade física daquele que é agredido apenas denota a fragilidade do vínculo
entre seu corpo e o espírito de seu corpo, invadido pelo seu agressor. A magreza e a
tristeza aparecem intimamente combinados e compõem um quadro de vulnerabilidade
capaz de levar rapidamente à doença e mesmo à morte.
A paciência e polidez não devem faltar pois pode-se, mesmo sem querer,
desestabilizar o equilíbrio entre corpos e espíritos. Para ilustrar uma situação de
agressão não-intencional, Mani contou-me que certa vez foi chamado às pressas para
"rezar uma criança" que estava doente e a mãe responsabilizava o agente de saúde pelo
agravamento do estado dela. A menina tinha febre, o agente de saúde recolheu amostras
de sangue, examinou e com o resultado positivo em mãos, levou o quinino para que ela
tomasse. Como a criança resistia a tomar o remédio, o agente de saúde imobilizou-a
com um dos braços e com o outro apertou seu maxilar, forçando-a a abrir a boca para
engolir os comprimidos. Poucas horas passaram-se e a menina piorou (certamente

19
A partir de exemplos recolhidos entre os pano, Erikson (1986:191) sustenta que a agressão às mulheres
é prevista ritualmente com o objetivo de estimular a reprodução. Entre os Amahuaca, as mulheres
apanham quando não conseguem engravidar e, entre os Matis, quando entram na menopausa. Os casos
de agressão dos homens contra as mulheres que soube entre Katukina nunca envolveram o contexto da
reprodução, antes eram tidos como brigas conjugais corriqueiras, devidas principalmente a ciúmes. As
mulheres são unânimes em afirmar que hoje os homens as agridem menos do que outrora, mas não
consegui saber se antes as agressões eram ritualizadas e relacionadas à reprodução. Atualmente há uma
forte censura aos homens que batem em suas mulheres.
83

devido aos efeitos colaterais do quinino) e Mani foi chamado para acudi-la. Lá
chegando a mãe do menino narrou o acontecido e Mani rezou para espantar o yora vaka
do agente de saúde que, segundo ele, estava "em cima dela" e a afligia. Quando acabou
seu relato, Mani aconselhou-me a agir com moderação quando fosse medicar as pessoas
da casa onde estava, três delas com malária, já que um dos agentes de saúde tinha
deixado os remédios comigo e pedido para que eu os ministrasse, na tentativa de que
seus pacientes, devido ao mal-estar que o quinino provoca, não desistissem do
tratamento.
Os exemplos acima destacam que o bem-estar das pessoas resulta de
comportamentos orientados pela contenção que, no limite, envolvem a coletividade
toda. Não só os pais têm de ser pacientes com seus filhos, todos têm de ser pacientes
uns com os outros, sob risco de desestabilizar os laços que unem os espíritos que os
animam. No contexto da falta de moderação, toda doença é resultado de um
comportamento anti-social que ignora os valores que devem orientar o trato entre as
pessoas.
Ainda no que diz respeito aos excessos, os Katukina listam ainda uma doença
causada pela presença prolongada das crianças nos igarapés. O prolongar-se em banhos
e brincadeiras pode provocar a febre chamada waka shana, i.e., "quentura/febre d'água".
Essa modalidade de febre é mais comum em crianças, mas acomete igualmente adultos
que caem acidentalmente nos igarapés.
As crianças de colo são as mais vulneráveis às investidas de agentes externos que
podem desestabilizar os vínculos entre seu corpo e seus espíritos, ainda frágeis. Pode
acontecer, entretanto, de uma criança receber todos os cuidados e atenção possíveis e
ainda assim permanecer agitada. Os distúrbios do sono, em particular, fazem saber da
vulnerabilidade: gemidos, falas, sustos e choros durante o sono são indícios de
perturbação que devem ser rapidamente contornados e as crianças são cuidadosamente
acordadas no meio da noite por seus pais. Mesmo em pessoas adultas os distúrbios do
sono são fonte de preocupações. Como notou McCallum (1998:232), escrevendo sobre
os Kaxinawa, é como se houvesse "uma quebra na separação entre os diferentes
domínios da realidade habitados pelo corpo – o mundo consciente, da vigília, e o
'mundo dos sonhos'". O espírito do olho, aquele que viaja em sonhos e alucinações,
pode-se deixar levar. Na segunda viagem a campo, em 1992, tive malária e uma febre
muito alta talvez tenha feito com que delirasse, pois, ao acordar, meus hospedeiros
84

disseram-se preocupados com o fato de eu ter falado durante a noite e aconselharam-me


a ir embora para junto de meus parentes caso não melhorasse após as rezas.20
Em se tratando de crianças, os Katukina recorrem de maneira freqüente a um
recurso chamado vunkun aki para tentar conter a agitação noturna. Enquanto se
preparam para dormir, os pais (a iniciativa é quase sempre da mãe) cortam mechas de
seus próprios cabelos e de seus filhos, caso os tenham, e queimam, atritando entre as
mãos as mechas queimadas, esfregando em seguida por todo o corpo das crianças e, ao
final, fazendo-as cheirarem suas mãos. Intenta-se com o vunkun aki acalmar as crianças,
restabelecendo o sono tranqüilo. O vunkun aki, ao lado das restrições alimentares, é a
expressão mais forte do grupo de consubstanciais.

20
Uma forma eufemística de dizer que temiam pela minha morte. Como veremos adiante, na iminência da
morte, os parentes chamam o moribundo pelos termos de parentesco adequados e pelo nome, na
tentativa de que o wero yushin não parta em definitivo.
85

CAPÍTULO 3
A morte e os destinos dos mortos

"Ici il faut entrer dans biens des explications pour faire


comprendre aux indiens les beautés du Ciel, car eux ne sont
guère séduits par ce qui les attend là-haut" (Tastevin 1924:90)

Do passado os Katukina selecionam dois períodos nos quais inúmeras mortes


ocorreram entre eles, num intervalo curto de tempo. No primeiro deles, as mortes são
devidas à perseguição dos peruanos em busca da goma do caucho, no tempo das
famosas correrias. Nenhum dos atuais Katukina foi vítima das correrias, mas quase
todos souberam delas por seus pais e avós, sobreviventes desse período de fuga pela
mata. Das matanças, comentam os corpos decepados, mutilados e dependurados nas
vigas das casas comunais que ainda usavam. Dos sobreviventes, os Katukina contam do
horror de dias consecutivos perdidos na mata, com fome e frio; em situações mais
dramáticas, falam de pessoas escondidas em buracos de tatu-canastra à espera de que o
inimigo se afastasse.
O outro período de muitas mortes é lembrado atualmente por várias pessoas e
deve ter acontecido, aproximadamente, no final da década de 1960, quando a aldeia do
rio Gregório foi acometida pelo que parece ter sido uma epidemia de sarampo. Mampo
diz ter perdido, nesse período, seu pai, sua mãe e um filho. Muitas pessoas morreram
desamparadas: sem qualquer atendimento médico, sem qualquer remédio, "à mingua" –
como se usa falar no português castiço. Havia só os velhos xamãs para atender os
doentes, mas eram incapazes de debelar a doença. Sempre que se fala do surto de
sarampo comenta-se da chegada, alguns anos depois, da MNTB no rio Gregório, em
1972, com remédios e vacinas.
Por certo os Katukina não ignoram que as mortes em profusão, nos dois períodos
mencionados, foram produto do enredo histórico em que se viram envolvidos a partir do
contato com os brancos, produto de uma violência tangível – as correrias – e de outra
intangível – os vírus. Mas os Katukina contam também de um período mais recuado no
86

tempo, remoto, em que a morte ainda não existia e que, após um erro deles próprios,
passou a existir.
Em dois mitos os Katukina contam como perderam a oportunidade de conseguir
a vida eterna. No primeiro deles, narrado por Mai em 1992, os homens perderam a
"pedra" (shoko nane, "pedra-jenipapo", numa tradução literal) que lhes garantiria a vida
eterna, que acabou ficando em poder das cobras:

Logo que nós surgimos, outros nawa gritaram:


- "Como é que vocês vão viver daqui pra frente?"
Os nawa tinham a pedra do céu e um deles falou:
- "Vem pegar essa pedra, para vocês não morrerem."
E ninguém foi buscar essa pedra. O nawa gritou de novo. Nós respondemos:
- "O que é?"
E o nawa gritou de novo... Os Katukina mandaram um menino pequeno ir buscar esta
pedra. Quando o menino chegou lá onde os outros nawa estavam e aquele que tinha
chamado, falou que não daria a pedra para o menino, porque ele era pequeno e
poderia jogar a pedra dentro d'água. Então o nawa falou:
- "Já que vocês perderam a minha pedra… Eu queria dar a pedra para vocês, mas
perderam [a oportunidade de ter] a minha pedra. Agora vocês não vão ser muitos,
porque a minha pedra ia ajudar a aumentar a população de vocês. Mas vocês já
perderam… Agora, quando um morre, outro nasce, assim vocês vão viver a vida inteira
e não vai aumentar a população de vocês."
Aí quem pegou essa pedra foi o calango, a cobra, o mulateiro. Por isso que a cobra, o
calango e o mulateiro não morrem, somente trocam a pele. Como nós não pegamos
essa pedra, a gente morre. Se tivéssemos pego esta pedra, a gente ficava bem velhinho,
trocava o cabelo, a pele e ficava novo.

No segundo mito, contado por Mani em 1997, a morte já havia irrompido entre
eles. Um dia, uma certa mulher perde seu filho, ela lamenta a dor de tê-lo perdido.
Enquanto chorava apareceu Koka Notowani, um demiurgo, que, na tentativa de aplacar
seu sofrimento, retira o coração da criança e assopra sobre ele. A criança ressuscita, a
mãe assusta-se com o feito do demiurgo e começa a chorar. Koka Notowani irrita-se
com o choro da mulher, pois tentou aliviar a sua dor, mas ela chora, o que indica
tristeza. Aborrecido, ele vai para o céu e desiste de restabelecer a vida na terra,
ressuscitando pessoas mortas. Duas oportunidades de obterem a vida eterna e dois
deslizes que privaram os Katukina de viverem ilimitadamente.1

1
É digno de nota que os Marubo têm um mito que sugere a fusão desses dois mitos katukina sobre a
imortalidade. De acordo com Melatti (1985:130-1), os Marubo recusaram-se "a aceitar de Roka as
pupunhas gigantes que produziam o ano inteiro e o jenipapo cuja tinta fazia sair a pele, levando o
usuário a retornar à juventude. Roka retirou-se da terra, estabelecendo-se no Shoko nai [camada celeste
em que revivem os mortos]. Os Marubo só chegam à sua presença e gozam das dádivas após morrerem e
somente se vencem os obstáculos do Vei vai [caminho do céu]". No céu, Roka é o responsável pela troca
de pele dos mortos (Montagner Melatti 1995). Retornarei ao tema da troca de pele no céu no final deste
capítulo, por ora chamo a atenção para o fato de que a "pedra" que garantiria a vida eterna aos Katukina
era a "pedra-jenipapo" e que wani, que aparece no nome do demiurgo, designa a pupunha.
87

Aos Katukina restou apenas a perspectiva de uma "ressurreição celeste"2, já que


os mortos, ao adentrarem o céu, adquirem uma nova pele. Koka Notowani recepciona o
wero yushin quando chega ao céu, retira seu coração, assopra sobre ele e fá-lo eterno.
Assim os mortos ganham uma nova vida e não sentem saudades.3

Os presságios da morte e a morte

A proximidade da morte pode ser antecipada por alguns presságios. Homens e


mulheres indistintamente podem prever a morte de qualquer pessoa, mas os presságios
apontam mais para a morte de pessoas estreitamente aparentadas. O canto do oshko
(Columbea plumbea) do mesmo modo que o canto de um outro pássaro chamado
txontxon shene (não identificado) nas proximidades de casa indicam a morte de algum
morador do local.
Há um conjunto de sonhos que pressagiam mortes, acidentes e doenças, de
outras pessoas mas também do sonhador. Assim, se no sonho aparecer uma peça de
roupa flutuando no rio, isso indicada a morte de uma outra pessoa; se a peça de roupa
for identificada como da pessoa que sonha, está sugerindo a sua própria morte. Do
mesmo modo, é presságio de morte o sonho em que uma árvore cai sobre alguém. A
morte de crianças são indicadas em sonhos em que elas aparecem sendo engolidas por
uma grande cobra. Um sonho em que a pessoa é flechada ou furada com uma faca alerta
para o risco de ser picado por uma cobra. Homicídios podem ser antevistos pelo sonho
de que um gavião ataca a pessoa que será morta. Relacionado ao anterior, é possível
antever também quem será o assassino se sonhar com alguém matando caça grande,
sinal de que o caçador do sonho será o assassino. Sonhos eróticos com parceiros
brancos pressagiam doenças venéreas.
As experiências oníricas expostas rapidamente acima têm uma interpretação
fixa, invariável. Outros sonhos, entretanto, são menos padronizados e podem ser
livremente interpretados. O rezador Mani disse ter sonhado certa vez com labaredas de
fogo debaixo das sepulturas (shano mana), nas quais muitas pessoas queimavam. O

2
Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:446), que a usou para tratar da relação troca de
pele/imortalidade entre os Tupi.
3
Recolhi também um outra versão, ligeiramente diferente. Ne'e diz que os mortos ganham nova vida e
não sentem saudades porque um outro demiurgo, Koka Pino Txari, retira a pele das pessoas para fazer
um novo corpo. Em relação à versão do corpo do texto, muda o demiurgo e a parte do corpo que permite
restituir a vida.
88

sonho antecipava que muitas pessoas adoeceriam e foi confirmado, segundo ele.
Mampo também sonhou com sepulturas, mas ao invés do fogo ardendo, viu água
borbulhando (tokoi, o mesmo verbo para ferver/cozinhar) da superfície da sepultura. A
água que borbulhava era de um corpo em decomposição, de alguém recém-sepultado,
mas ela não conseguia reconhecê-lo. Mampo interpretou o sonho como a proximidade
da morte de seu neto, que estava muito doente e que a preocupava. Logo que acordou,
Mampo, em lágrimas, contou seu sonho para todos os moradores da casa. No mesmo
dia, como o garoto não melhorava, apesar dos esforços dos rezadores chamados para
tratá-lo, ela levou-o para Cruzeiro do Sul em busca de tratamento médico. É digno de
nota que nesses dois sonhos, que serão retomados adiante, a morte foi associada ao fogo
e ao cozimento, visto que os Katukina, e outros grupos pano, foram no passado endo-
canibais – embora alguns deles hoje o neguem.
Importa pouco saber se as experiências oníricas realmente orientam os Katukina
em sua vida prática. No caso de Mampo, não tenho dúvidas de que esse foi o caso.
Entretanto, soube de uma pessoa que sonhou ser furada na testa com uma faca e, apesar
disso, não evitou entrar na floresta e se arriscou a ser picada por uma cobra. Acabou
sendo picada por uma surucucu e a posteriori comentou sua imprudência por não se ter
orientado pelo sonho. Positiva ou negativamente, os dois casos relatados sugerem a
centralidade dos sonhos na explicação dos infortúnios na vida.
A possibilidade de alguém prever sua própria morte não é descartada. Esse
parece ter sido o caso de Joel, mestre dos dois mais ativos rezadores atuais, que
pressagiou sua própria morte, na década de 1980, mas não teve como evitá-la. As
pessoas hoje não sabem dizer se Joel teve sonhos em que viu sua própria morte. Um dos
rezadores que recebeu ensinamentos dele, Mani, afirmou que Joel costumava dizer que
sua vida seria curta, que morreria logo, e que seria melhor apressar-se no aprendizado.
De fato, Joel acabou morrendo precocemente.
A morte instaura a ruptura e é vivida, pelos parentes mais próximos
principalmente, como um momento dramático.4
Dos moribundos, à beira da morte, diz-se que estão vopi, que é traduzido
livremente como muito doente. Por sua vez, a etimologia de vopi sugere (E. Camargo,

4
Em todo período de campo não presenciei a morte de nenhuma pessoa adulta. A etnografia que segue é
então o resultado de vários relatos combinados sobre a experiência de perder um parente. As situações
mais próximas da morte que pude acompanhar, de pessoas muito doentes (vopi), confirmavam as várias
versões que tinha ouvido e revelavam também a intensidade do drama.
89

comunicação pessoal) sua tradução literal como "comer cabelo" (voo, cabelo + pi,
comer), que, infelizmente, não posso deslindar satisfatoriamente.5
Alguém vopi não come, não tem plena consciência de si nem dos outros. O
corpo descontrola-se. A iminência da morte é percebida por todos pelo olhar do
moribundo: os olhos apequenam-se e perdem o brilho, o wero yushin está partindo.
Certa vez havia uma criança recém-nascida bastante doente e todos os que a viam
comentavam "wero pishtxa" (olho pequeno), uma sentença curta e simples, como se a
morte da criança fosse algo irremediável. Felizmente, a mãe inconformada conseguiu
salvá-la, levando-a às pressas para o hospital de Cruzeiro do Sul. O estado crítico de
saúde da criança era indicado também pelo fato de que havia um rezador atendendo-a
durante o dia, com o sol a pino, um expediente cumprido apenas em situações de
emergência, como era o caso.
A palidez, como os olhos pequenos e sem brilho, indicam também a debilidade
física e, ao mesmo tempo, espiritual. De pessoas muito pálidas, principalmente devido a
doenças, comenta-se que estão "sem sangue" (imi yama). Sendo o sangue o principal
vetor das substâncias, como vimos no capítulo anterior, compreende-se que a palidez
indica a falta delas e, por conseguinte, o risco de morte.6
Os parentes mais próximos acodem o doente: dão-lhe água, alimentam-no,
trocam suas roupas e limpam seus corpos. Mais que isso, dão também conforto e
suplicam por sua permanência neste mundo. Como vimos antes, seguem também a dieta
do enfermo. Não há propriamente um ritual ou lamento fúnebre.
Acompanhei o sofrimento de Maya e de seus parentes para mantê-la viva, na
aldeia do rio Campinas. Ela, uma mulher de mais de 50 anos mas ainda bem disposta e
alegre, caiu doente repentinamente: tinha dores de cabeça, febre alta e vômitos. Dois
rezadores acompanhavam-na também, mas tinham dificuldade em estabelecer o
diagnóstico, suspeitavam, entre outras coisas, que a mãe de Maya, morta havia pouco
tempo, estivesse tentando atraí-la para junto de si. Essa última suspeita era ainda maior
porque Maya, no auge de seu descontrole e delirante, sentava-se na rede e com a voz
vacilante, dizia: "Ewa, ewa" (mãe), "papa, papa (pai)" e apontava com os braços para a

5
Estranha etimologia essa do vopi. Entre os Kaxinawa, quando o endocanibalismo ainda era praticado,
todo corpo era consumido, exceto o cabelo que era raspado e queimado (Lagrou 1991:112).
6
Aqui é importante destacar que os Katukina falam de espíritos (yushinvo) que chupam o sangue das
pessoas durante a noite. Fiz esta associação entre a palidez ou a falta de sangue identificada entre alguns
doentes e os espíritos hemofágicos, após encerrar o trabalho de campo. De modo que não tenho como
assegurar se os Katukina a endossam.
90

floresta repetidas vezes, como se quisesse partir. Então, Ronti, a irmã de Maya,
chamava-a pelo termo de parentesco, deitava-a novamente, punha-se na frente dela,
dava-lhe água, segurava-lhe a mão, tentando acalmá-la. A recusa de comer, a invocação
de seus pais e o estado de completa prostração de Maya anunciavam a sua morte e, mais
do que isso, o desejo mesmo da morte. "Ela quer morrer" era o que se ouvia das pessoas
que a acompanhavam e que se ouve sempre que um doente não reage positivamente aos
cuidados que lhe são dispensados. Como a suspeita de que a mãe de Maya era quem
estava tentando atraí-la e potencialmente poderia matá-la, Ronti chamou o único filho
de Maya que estava em uma outra casa, distante dali, na tentativa de que ele sim poderia
dar forças para que ela não sucumbisse ao apelo de sua falecida mãe. A chegada dele de
fato fez com que Maya restabelecesse o controle.7 Ao lado dela, em pé, Mame ficou
segurando sua mão por longos minutos. Quando Maya tinha já recobrado
completamente a consciência, sua irmã levou-a para o quarto, limpou e trocou suas
roupas e fez com que ela se deitasse numa outra rede, limpa. A situação estava
controlada.
O gesto descontrolado e aflito de apontar para a floresta é repetitivo, ocorre em
diferentes situações em que se vislumbra a proximidade da morte. Em 1994 acompanhei
o difícil parto de Vari. Numa manhã, após dois dias sentindo contrações, Vari
descontrolou-se: levantou-se da rede, apontou para a mata e arriscou alguns passos
apressados. Ela insistia em sair, aos gritos, e seus parentes correram para segurá-la e
deitá-la novamente na rede. Os dias de sofrimento e a tentativa de fuga para a floresta
denunciavam a debilidade de seu estado físico e a proximidade da morte. Amparada por
uma irmã classificatória, por sua mãe, por sua avó materna e por um rezador, Vari teve
finalmente a criança.
Na floresta habitam não só os animais, nela perambulam também os espíritos de
pessoas mortas. Nos casos em que se suspeita de mortos tentando atrair os vivos, como
aconteceu com Maya, o momento de aflição é uma batalha em que rivalizam parentes
vivos e mortos, ambos querendo atraí-los para o seu próprio lado (Carneiro da Cunha
1978).

7
A tentativa de recuperar o wero yushin do moribundo com a invocação dos termos de parentesco
adequados assemelha-se à maneira como os Katukina tentam controlar os homens bêbados, pois agem
da mesma maneira. Notei a semelhança apenas depois de encerrar o trabalho de campo, de modo que
não posso dizer se os Katukina admitiriam a aproximação que faço entre as duas situações. De todo
modo, Kensinger (1995a:209) afirma que, entre os Kaxinawa, o espírito do olho também abandona o
91

É certo que nem toda morte é atribuída à atração dos espíritos de pessoas mortas,
o sentido dessa afirmação às vezes tem de ser tomado genericamente. De todo modo,
nos casos em que tentam resistir à própria morte, os parentes mais próximos são ainda a
referência à qual os moribundos se apegam para tentar não sucumbir. Yaka contou-me
da morte de sua cunhada, acometida na madrugada de vômitos e diarréia e longe da casa
de seus pais. Antes que amanhecesse seu marido foi chamá-los para que ajudassem a
acudi-la. Quando chegaram, entretanto, já era tarde. A jovem, segundo Yaka, que a
amparou por todo o tempo, teria morrido chamando por seus pais: Papa, papa, ea
vopiai! Ewa, ewa, ea vopiai! ("Pai, pai, eu estou morrendo! Mãe, mãe, eu estou
morrendo!").

O enterro, o cemitério, o luto lingüístico

Consumada a morte, iniciam-se os preparativos para o sepultamento do defunto.


Não há propriamente um funeral, a simplicidade é mesmo o que mais destaca as
exéquias. Na única morte que pude acompanhar em campo, a criança morreu na casa de
um rezador, para onde os pais a tinham levado na tentativa de salvá-la. A casa do
rezador era mais próxima do cemitério do que a casa dos pais da criança falecida e de lá
mesmo o corpo foi levado ao cemitério e sepultado. Como a criança, uma menina de
aproximadamente quatro anos, morreu no começo da noite, foi sepultada apenas no dia
seguinte. A notícia de sua morte espalhou-se pela aldeia rapidamente e, embora todos
comentassem o fato, ninguém se dirigiu para o local onde o corpo estava sendo velado
para acompanhar o enterro. Da vigília noturna participaram apenas os pais e irmãos da
criança morta e os familiares do rezador, na casa de quem ela havia morrido. Estes
passaram a noite ao lado dela, com porongas acesas, e o sepultamento aconteceu com os
primeiros raios de sol do dia seguinte. Encerrado o sepultamento, os pais e irmãos
voltaram para suas casas. As informações obtidas sobre o velório e enterro de pessoas
adultas repetem o mesmo padrão.
Do enterro participam apenas as pessoas responsáveis pelo sepultamento e, vez
ou outra, os familiares mais próximos. Os coveiros são recrutados entre os homens
jovens na faixa de idade entre 15 e 25 anos. Nenhuma explicação foi-me dada para

corpo quando as pessoas estão bêbadas, e não apenas em sonhos e alucinações como me admitiram os
Katukina.
92

justificar essa preferência, imagino que seja devido à perigosa proximidade com o
defunto. No auge do vigor físico, os jovens talvez defendam-se melhor de suas possíveis
investidas. No caso de enterros de adultos, se os coveiros são consangüíneos ou afins
não parece ser determinante, embora a presença dos afins fosse mais constante. No caso
do enterro de crianças, que mobiliza poucas atenções, os coveiros são, com mais
freqüência, seus consangüíneos.
Os coveiros são os mesmos que conduzem o defunto, deitado em sua rede
suspensa em uma vara, até o cemitério. Lá abrem uma cova profunda, aproximadamente
da altura dos ombros de uma pessoa adulta, para evitar tanto o cheiro da decomposição
do corpo do defunto quanto os urubus que podem ser atraídos por ele. No cemitério, as
sepulturas são mais ou menos alinhadas. Os mortos são enterrados com a cabeça em
direção ao nascente, a leste, para que o wero yushin não se perca a caminho do céu. Nas
palavras de Mani, assim o wero yushin "acha o rumo mais fácil". O leste está associado
ao lugar que os Katukina surgiram em tempos míticos, antes de atravessarem um grande
rio sobre o jacaré gigante, e, ao mesmo tempo, à criação da vida.
Crianças e adultos contam com cemitérios distintos, da mesma maneira como
ocorre com os Marubo (Montagner Melatti 1985: 87), embora as razões nunca tenham
se tornado claras para mim. Minhas sugestões de que as crianças não tinham ainda seus
espíritos bem fixados ao corpo e por isso deveriam ser separadas dos adultos, foram
sempre negadas. O único argumento que foi lançado para explicar a separação dos
cemitérios é absolutamente casual. Segundo várias pessoas, logo que a aldeia do
Campinas foi formada, Washime perdeu um filho pequeno e sepultou-o no local onde
hoje é o cemitério das crianças. A partir de então, todos os pais que perdiam filhos
pequenos passaram a enterrá-los no mesmo local onde Washime tinha enterrado seu
filho. Eventualmente crianças mortas são enterradas também nas proximidades da casa
de seus pais. Este foi o caso do filho de Kako e Penanai que morreu com menos de um
mês de idade. Kako providenciava o sepultamento da criança no cemitério, quando seu
próprio pai, avô paterno da criança, disse que sentiria muita saudade dela e que preferia
enterrá-la nas proximidades de casa.
Na aldeia do rio Campinas, muitas pessoas buscam tratamento médico no
hospital de Cruzeiro do Sul e, caso não resistam, acabam sendo enterradas no cemitério
da cidade. No cemitério de Cruzeiro do Sul, as ruas e avenidas não são necessariamente
alinhadas em direção a leste como na aldeia. Os Katukina sabem disso mas nada podem
fazer para tentar impor o padrão que estabeleceram entre eles. Transladar o corpo até a
93

aldeia, para poder enterrá-lo do modo como julgam correto, é mais difícil e dispendioso
do que arrumar ou pagar por um caixão para enterrá-lo na cidade e a orientação a leste
do sepultamento acaba sendo preterida.
Os corpos enterrados no cemitério de Cruzeiro do Sul ou qualquer outra cidade
nunca são visitados. Já aqueles sepultados no cemitério da aldeia recebem visitas todos
os anos em 2 de novembro, Dia de Finados, mas não são todas as pessoas que se
dispõem a freqüentar o local. Sem qualquer constrangimento, muitas pessoas
reconhecem temer o cemitério, pois ao seu redor perambulam os espíritos das pessoas
mortas.
Na aldeia do rio Campinas o cemitério está a alguns metros da beira da estrada,
nas proximidades de um local conhecido como Nova Olinda, onde os Katukina se
instalaram no início da década de 1970, quando foi fundada a aldeia do rio Campinas. O
lugar é evitado durante a noite e não foram poucas as pessoas que assumiram jamais
passar por ali sozinhos ou, se corajosos, que aceleravam o passo muito mais do que
normalmente.
Os cemitérios dos adultos e das crianças são visitados exclusivamente no Dia de
Finados ou quando há enterros. No restante do tempo é um lugar ermo e mal cuidado, já
que a vegetação invade a área das sepulturas – diferente, portanto, dos cemitérios
Marubo que são, segundo Montagner Melatti (1985:88), periodicamente conservados.
No cemitério das crianças, por exemplo, há alguns anos caiu uma grande árvore que
encobriu e impediu o acesso a algumas das sepulturas. A queda da árvore só foi
descoberta em um Dia de Finados, quando o cemitério recebeu visitas, mas ninguém se
propôs a tentar removê-la dali. A árvore caiu e ali ficou, as sepulturas encobertas
simplesmente deixaram de ser visitadas. Do mesmo modo, as sepulturas de crianças que
foram enterradas nas proximidades da casa de seus pais deixam de ser cuidadas e
visitadas no caso de os pais mudarem-se de local.
No Dia de Finados as pessoas que têm parentes diretos enterrados no cemitério
da aldeia e, portanto, sepulturas para zelar, vão todas juntas ao cemitério, ninguém se
arrisca a ir sozinho. Os moradores mais próximos do cemitério aguardam a chegada dos
mais distantes para que possam todos ir e voltar juntos.
Chegando ao cemitério, cada um acode para limpar a sepultura do parente que
lhe cabe. Cada um cuida da sepultura de um consangüíneo, de seus pais, mães, irmãos e
filhos, não da sepultura de afins ou de parentes classificatórios. Jamais vi ou ouvi dizer
que alguém tenha feito a manutenção da sepultura do marido, da esposa, do cunhado, do
94

genro ou da nora.8 Os consangüíneos destes é que devem fazê-lo. Primeiramente, é


arrancado o mato que cresce ao redor e acima da sepultura. Em seguida, refaz-se o
monte de terra e consertam-se as cruzes já velhas ou trocam-nas por novas. Por fim,
velas são acesas nas duas extremidades da cruz. Algumas cruzes são pintadas com as
inscrições "Jesus Cristo" e "Unido com Cristo". Nenhum nome, nenhuma data. A
ausência de nomes nas cruzes parece estar de acordo com a evitação de se pronunciar os
nomes dos mortos. Se em vida faz-se um largo uso dos nomes (Lima 1997), após a
morte evita-se sempre pronunciá-los. Tratando-se dos nomes cristãos, os Katukina
antepõem ao nome o termo "finado".
A identificação das sepulturas faz-se não pelos nomes (sejam nomes katukina ou
nomes cristãos), mas pela memória dos parentes que enterraram o morto. Em 1997
acompanhei um rápido imbróglio sobre uma sepultura mal identificada. Tina, órfão de
pai e mãe desde criança e hoje um rapaz de seus vinte e poucos anos, construiu uma
grande cruz para fixar aos pés da tumba de seu pai. Ele chegou ao cemitério e começou
a capinar uma certa sepultura. Poucos minutos passaram-se e o burburinho começou,
algumas pessoas suspeitavam que Tina estivesse zelando a sepultura de outrem, a
sepultura de seu pai estaria ao lado. Ele insistiu que cuidava daquela sepultura havia
anos e então Rono, que participou do sepultamento do pai de Tina, interveio dizendo
que o rapaz tinha razão. Desfeito o mal-entendido, Tina pôde continuar o serviço.
As cruzes e velas parecem indicar uma certa adesão ao cristianismo, mas
figuram mais como adereços da cerimônia oficial. Durante todo o período de
permanência no local não se ouvem preces cristãs nem lamentações.9 Uma única vez vi
alguma comoção. Ao entrarmos na área do cemitério das crianças, Penanai, que tinha
ido visitar a sepultura de seu irmão mais novo, não se conteve, apoiou-se na cruz e
chorou silenciosamente. A morte do garoto era recente, contava apenas três meses, e,
como me disseram depois, ela ainda tinha saudades. Penanai chorou sozinha, todos
viram mas ninguém se aproximou para consolá-la, nem mesmo seu marido que limpava
uma sepultura ao lado. Após alguns minutos, ela recompôs-se e providenciou a
conservação da sepultura.
O lamento silencioso de Penanai aos pés da sepultura de seu irmão e a
desenvoltura com que as demais pessoas tratavam de limpar a sepulturas de seus

8
Estive em campo no Dia de Finados nos anos de 1994 e 1997.
9
Isto na aldeia do rio Campinas. Não sei como as coisas se passam na aldeia do rio Gregório, dada a
presença lá dos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil.
95

próprios parentes, sem maiores delongas, reportam a dois sentimentos distintos perante
a morte. O período seguinte à morte de um parente querido é sempre marcado como de
muita dor e todo o esforço deve ser feito para apagar a lembrança do parente morto,
caso contrário o saudoso sucumbe ele próprio. Esse período é particularmente perigoso
não só porque o yora vaka do morto pode visitar seus parentes vivos, mas também
porque aqueles que ficaram podem abandonar-se à tristeza. Das mortes de que soube, a
única atribuída a suicídio ocorreu poucos dias depois de uma mulher perder seu filho.
Entregou-se à tristeza, era a justificativa que sempre ouvia. Transcorrido um tempo
maior da perda, a imagem e a lembrança do falecido esvanece ou ocorre rapidamente,
como se aqueles que ficaram já se tivessem acostumado a viver sem a presença do
falecido. Ambos os sentimentos são marcados de forma distinta até mesmo
lingüisticamente. Para referir-se a alguém que morreu há pouco tempo e de quem ainda
se sente falta, o termo usado é vopishina. Para referir-se àqueles que se foram há mais
tempo e para os quais a dor da ausência foi superada, o termo usado é vopiyamenta.10

Aqui abro um longo parêntese para tratar da repercussão lingüística da morte.


Uma ação pretérita é corriqueiramente marcada na língua katukina pelo marcador
aspecto-temporal -va'i, como na seguinte oração: "ea nashiva'i", "eu tomei banho".
Entretanto, -va'i jamais é usado para falar da morte de alguém. Assim, a sentença
"*kokan vopiva'i", que seria "tio materno morreu", não é admitida. Neste caso, será dito
"kokan vopishina". Vopi é simplesmente o verbo "morrer", mas é usado também (e aqui
traduzo livremente) com o sentido de "agonizar" e "adoecer seriamente". Entre os
Katukina, do mesmo modo como ocorre entre os Kaxinawa (Lagrou 1998), a morte é
entendida como um processo e o mesmo verbo é passível de ser usado em situações que
envolvam um morto ou um moribundo. Quanto ao uso de -shina, este mesmo marcador
aspecto-temporal foi identificado entre os Chacobo, um grupo pano localizado na
Bolívia, e também com o sentido de passado recente11. Igualmente, entre os Kaxinawa,
segundo Camargo (1988:138, n. 9), -xin é usado para tratar de ações que se passam

10
Essa distinção temporal assemelha-se àquela entre morto-recente e morto-ancestral existente entre os
Waiãpi (Gallois 1988:182-183).
11
Agradeço a Philippe Erikson (comunicação pessoal), que pesquisa entre os Chacobo, esta informação.
Cabe dizer ainda que enquanto os Katukina usam o marcador -va'i para passado recente (em geral), os
Chacobo usam -yamenta, o mesmo marcador que os primeiros usam para passado distante. Nos
trabalhos acadêmicos sobre a língua katukina foram identificados apenas três tempos verbais: ai
(presente), va'i (passado) e kai (futuro), conforme Barros (1987) e Aguiar (1988:47-49 e 1994:135-137).
O uso de -yamenta indicando o passado distante está registrado apenas nas cartilhas produzidas pelos
próprios Katukina (André Shere 1993:16) e pela MNTB (1977:23).
96

durante a noite12. A diferença fundamental é que o marcador aspecto-temporal usado


nestes dois grupos serve para tratar de eventos acontecidos num passado imediatamente
anterior e não há três meses como ouvi entre os Katukina.
Pelo fato de o sufixo -shina ser usado entre os Katukina exclusivamente no
contexto da morte, pretendo que possa ser entendido como um luto lingüístico: indica a
morte recente de alguém e, ao mesmo tempo, a dor decorrente da perda. Ao final,
vopishina denota nada mais que a presença da ausência, isto é, a falta que ainda se sente
de quem se foi. Transcorrido o tempo, alguém pode dizer "kokan vopiyamenta", "tio
materno morreu há muito tempo/faz tempo", um enunciado que traz embutido a idéia de
superação da dor ou que a ausência não se faz mais presente.
Esta pretensão é ainda mais justificada pelo fato de que entre os Katukina o
verbo para "lembrar" e "pensar" e também para "ter raiva/enraivecer", "sentir saudade"
e "entristecer" é também shina, embora gramaticalmente o verbo (shina) e o sufixo (-
shina) para marcar a morte recente não se confundam.
Há outras ocorrências do verbo shina entre grupos pano. Townsley (1988:116)
registrou o uso de shina entre os Yaminawa e afirmou que o verbo (que tem o sentido
também de "lembrar", "pensar") é usado para tratar de reflexões conscientes e
intencionais. Entre os Matis, Erikson (1996:152 e 289) associou o sina à tristeza e à
nostalgia provocadas pelas mortes. Os Katukina parecem situar-se entre os dois usos da
palavra. No dia-a-dia shina remete ao pensamento consciente e à volição13. Já no
contexto da morte, parece mais próximo daquele que fazem os Matis, quando então se
perde de vista a idéia de intencionalidade. No contexto da morte, as características
negativas normalmente associadas ao shina apontam para a ausência de
intencionalidade e mesmo para um certo descontrole de quem experimenta o
sentimento/lembrança. A duplicidade da concepção dos Katukina, talvez esteja
realmente mais próxima daquela que têm os Chacobo, entre os quais, segundo Balzano

12
Em Kaxinawa, segundo Eliane Camargo (comunicação pessoal), o marcador -xin indica uma ação que
se desenrola à noite, mas também na escuridão. De acordo com a sugestão da lingüista, vopishina talvez
indique o fato de o morto não poder ver, pois o yushin dele se foi.
13
É digno de nota que fora do contexto do luto, shina é tido também como um sentimento negativo que
pode invadir as pessoas que o experimentam, fazendo-as perderem a razão. O mais recomendável em
situações de desacordo, aborrecedoras, em que se é tomado pelo shina, é controlar-se, comedir-se até
que a raiva seja superada. As pessoas deparam-se com esse sentimento quotidianamente e, em situações
mais tensas, devem organizar-se para não serem completamente envolvidas por ele. Um
desentendimento sério entre dois vizinhos acabou causando a mudança de moradia de um deles que,
depois de externar em altos brados todo o seu descontentamento, decidiu mudar-se de casa, pois estava
raivoso (shina tae).
97

(1991), shinána é não apenas o locus do pensamento, mas também da emoção. Neste
sentido, cabe também lembrar dos Uni, que, segundo escreveu Frank (1994: 229 n.91),
não diferenciam entre o pensamento e as emoções: "o que mais os ocupa é a diferença
entre o "pensar bem" e o "não pensar" (ou pensar e sentir mal), i.e., sentir emoções anti-
sociais como o ódio".
Entre a consciência e o afeto, o significado oscilante de shina pode ser
relacionado ainda à própria dúvida que os Katukina expressam a respeito da localização
do pensamento em seus corpos. Às vezes a sede do pensamento é localizada na cabeça,
presumivelmente no cérebro. Enquanto Txapa me ensinava a fazer camas-de-gato14,
Mashi assistia e, após me ver em pouco tempo manusear corretamente o cordão e dar-
lhe as formas conhecidas, comentou "mampo roapa", "cabeça boa". Outras vezes,
entretanto, o pensamento foi localizado no coração (vointi). Mani, embora demonstrasse
um certa dúvida com a pergunta inesperada, afirmou que o pensamento reside no
coração, pois a partir dele as veias e o sangue percorrem o corpo em todas as direções,
no corpo o coração ocuparia o "centro". Além de que, a cessação de seus batimentos
anunciam o fim da vida, a perda da consciência. Na versão sobre a vida post mortem
que ouvi de Mani, é justamente assoprando o coração do yushin do olho que Koka
Notowani, o demiurgo, restitui a vida, fazendo com que o morto não pense em seus
parentes vivos e sinta saudades. Outros pessoas localizavam duplamente a sede do
pensamento. Txoki, descrevendo-me a maneira como elabora suas rezas (shointi), disse
que pensa "com a cabeça e com o coração". Entre os Marubo, o coração, definido
claramente como a sede do pensamento, é denominado corriqueiramente como witi, mas
em linguagem ritual é chinã (Montagner Melatti 1985:108).15

14
Entre nós cama-de-gato é um brinquedo em que jogam dois ou mais participantes, retirando uns das
mãos dos outros um cordão (atado nas pontas) com formas simétricas. Os Katukina jogam-no
individualmente, manuseando habilmente o cordão com as duas mãos, algumas vezes usando também a
boca para segurá-lo. As formas dadas ao cordão representam quase sempre a anatomia de corpos
humanos ou animais.
15
Os Matis também têm dúvidas atualmente sobre a localização do pensamento em seus corpos. Segundo
Philippe Erikson (comunicação pessoal) os Matis localizam o pensamento no coração, mas admitem que
passaram a localizar na cabeça ao saber que assim fazem os brancos. Kensinger (1995a:243-244)
escreveu que nas décadas de 1950 e 1960 os Kaxinawa não localizavam o conhecimento em nenhuma
parte específica do corpo: "o corpo todo pensa e sabe". Entretanto, vinte e cinco anos mais tarde, os
Kaxinawa passaram a reconhecer o cérebro e o coração como sedes do pensamento. Segundo o autor
(op. cit.:244), "o conhecimento do cérebro resulta da leitura, da escrita e do aprendizado escolar. O
conhecimento do coração vem da introdução do cristianismo". Entre os Uni, o pensamento localiza-se
no coração (Frank 1994:229 n.91).
98

Voltando ao dia de finados, a ida de Penanai ao cemitério ajuda também a


explicar a resistência dos Katukina a freqüentarem o lugar. É como se ela tivesse sido a
pessoa escalada para visitar e limpar a sepultura oficialmente no Dia de Finados. Nem
seus pais nem seus irmão a acompanharam, não é preciso tantas pessoas exporem-se ao
risco que a visitação, de alguma maneira, comporta. É suficiente que vá ao menos um
parente direto, os demais ficam em casa ou aproveitam o feriado para fazer visitas aos
vivos.
No Dia de Finados importa apenas o cumprimento do calendário cristão – e os
katukina são pródigos em observar dias santos e datas cívicas –, não fora isso e as
sepulturas jamais seriam visitadas.
Apesar do risco que a visita ao cemitério comporta, não há muitas precauções a
serem tomadas. Se não me tiver escapado algum detalhe, o fundamental é tomar um
banho e trocar de roupa após a faxina da sepultura. Pensando nisso, alguns moradores
distantes do cemitério e dispostos a prolongar-se em visitas após o cumprimento da
obrigação, levam sempre peças de roupa sobressalentes e deixam-nas na casa de um
conhecido que more próximo ou a caminho do cemitério. Encerrado o serviço, dirigem-
se à casa daqueles que guardaram as roupas sobressalentes, tomam um banho e trocam
de roupa.16 Assim podem passar o resto do dia sem voltar para casa e sem temer
qualquer tipo de contaminação. Desconhecendo o risco, fui ao cemitério e quando todos
tinham acabado o serviço, voltei para a casa de meus hospedeiros, peguei meu caderno e
comecei a tomar algumas notas. Txapa, a dona da casa, aproximou-se e mandou-me não
só tomar banho e mudar de roupa quanto lavar a roupa que vestia naquele momento.
Diante das várias perguntas que fiz após ouvir sua ordem, ela lançou-me um certo olhar
incrédulo, como se não compreendesse tamanha demora em obedecê-la. Ela resolveu
então acompanhar-me ao porto e pacientemente explicou que alguém que vai ao
cemitério e, em seguida, não toma banho e troca de roupa, continua expondo-se ao
perigo de ser atacado pelos espíritos dos defuntos, capazes de causar o que os Katukina
chamam de shanon mana yonatai, "doença da sepultura", um tipo de febre dificilmente
debelada.

16
O banho frio também é recomendado pelos Marubo após o sepultamento e visitas ao cemitério
(Montagner Melatti 1985:222).
99

As posses do defunto: destruir, distribuir, trocar

A rigor, os pertences de uma pessoa morta devem ser enterrados junto com ela
ou destruídos. Entretanto, há alguns anos pairam dúvidas sobre o destino que deve ser
dado a alguns objetos de valor, manufaturados, e de difícil reposição pelo custo que
têm, como relógios e panelas.
Mani contou-me que na morte de sua filha, em 1985, estavam enterrando-na
com seus sapatos, roupas e relógio. Então, um branco que os acompanhava disse que
não era certo enterrarem objetos de valor com o defunto. Nesse caso, o relógio. Ele
concordou, mas não quis ficar com nada de sua filha e o relógio acabou sendo
"herdado" pelo sogro da falecida. Já os utensílios domésticos de sua filha, Mani juntou e
trocou, entre os brancos vizinhos, por um casal de bacorinhos.
As alternativas sobre o que fazer com os pertences dos defuntos são várias e a
única coisa consensual é de que os parentes diretos, aqueles mais identificados e
afeiçoados ao morto, devem dispor das posses do defunto. O despojamento dos
pertences do morto deve-se tanto ao fato de que podem trazer sempre a lembrança dele,
entristecendo ainda mais seus parentes, quanto porque pode ser um chamariz ao yora
vaka. A tristeza sentida pela ausência do morto pode acabar provocando entre alguns
dos parentes o desejo da morte. Mani, de que falei acima, disse que nos dias seguintes à
morte de sua filha, teve "vontade de morrer".
Se no passado todos os pertences eram enterrados junto com o defunto ou
destruídos, hoje as alternativas são mais amplas. A mulher de Ronta morreu no hospital
de Cruzeiro do Sul e foi enterrada nesta cidade. Txapa, a irmã de Ronta, providenciou a
incineração das roupas, redes e cobertas dela. O próprio Ronta juntou as panelas e
pratos e levou para a aldeia do rio Gregório e deu para os moradores de lá. Seja qual for
a alternativa – queimados, trocados ou distribuídos os pertences do morto–, o fim que se
busca é o mesmo: afastar as posses do defunto daqueles que viveram próximos a ele.
As casas antigamente eram abandonadas quando da morte de algum adulto em
seu interior ou quando ocorriam mortes sucessivas de crianças. Na aldeia do rio
Campinas, o abandono das casas era bastante freqüente até há uns cinco anos atrás. Uma
única morte não provocava a transferência, mas mais do que isso já tornava a
permanência no local insustentável. Nos últimos anos a mudança de casa motivada pela
morte parece estar diminuindo, talvez devido às recentes inovações nos materiais usados
para sua construção, madeira serrada ao invés da paxiúba, o que faz a casa mais pesada
100

para ser transportada ou mais cara para se construir uma nova. Quando permanecem na
casa as pessoas evitam pendurar suas redes no mesmo local em que o defunto dormia.
Dormir no mesmo local é risco certo de atraí-lo, melhor evitar. As inovações
arquitetônicas são recentes, poucas das novas casas contabilizaram alguma morte. Por
isso é difícil saber como os Katukina resolverão o problema da proximidade com seus
mortos.
Ao contrário dos bens materiais, dos quais os parentes mais próximos devem se
desfazer, os nomes dos defuntos, embora evitados, são preservados e,
consecutivamente, repostos. Tratei da onomástica katukina em outro lugar (Lima 1997)
e se volto ao assunto, é apenas para destacar que a reposição de um nome ancestral
assume invariavelmente o sentido de homenagem ao parente morto, uma certa garantia
de continuidade da sua lembrança, já que todo o resto é marcado, com a morte, pela
descontinuidade. Esse esforço de repetição dos nomes é o que explica as diferenças
mais salientes entre a onomástica katukina e aquela dos outros grupos pano:
particularmente a transmissão oblíqua e cruzada dos nomes de ancestrais, enquanto os
demais pano a realizam de forma alternada e paralela. Quando, por exemplo, se
transmite o nome do MB ou da FZ a um filho (a) – preterindo então a transmissão dos
nomes entre as gerações alternadas, como é mais comum –, invariavelmente a pessoa
que tem o seu nome transmitido já é morta e, em casos mais evidentes, morreu
prematuramente, sem ter deixado filhos, o que quer dizer que não tinha potencialmente
condições de ter o seu próprio nome transmitido. O irmão incumbe-se então da tarefa,
transmitindo o nome a seu próprio filho.

Mame

Mame

Mame

Diagrama 1

No exemplo acima, a irmã do primeiro Mame apressou-se em transmitir seu


nome ao seu filho, fazendo assim uma transmissão oblíqua. Como Mame havia tido
uma filha, mais de quinze anos depois, seu nome foi transmitido também a seu neto.
Embora a filha do falecido Mame tenha transmitido o nome do pai de forma alternada,
101

agiu com os mesmos propósitos da irmã de seu pai. Ambas intentavam preservar o
nome de um parente querido.
Retornar à onomástica permite também que se esclareçam os casos de pessoas
que têm mais de dois nomes, já que algumas têm três ou quatro. Nesses casos, trata-se
pura e simplesmente de uma acumulação de nomes de pessoas mortas e que são
transmitidos a uma criança a fim de que se garanta a permanência deles. Uma
transmissão mais econômica – de um só nome ou de dois, para satisfazer o desejo do pai
e da mãe – certamente facilitaria, como os próprios Katukina o admitem, mas poderia
em poucas gerações implicar na extinção do nome de um parente querido que se
gostaria de preservar.

Txombi

Ino Hante

Hante Ino Txombi

Diagrama 2

Logo que nasceu, a pequena Hante Ino Txombi (ver Diagrama 2) recebeu apenas
os dois primeiros nomes, provenientes da parentela de cada um de seus pais. Todavia,
com a morte da avó materna de seu pai, Txombi, que não tinha ainda o seu nome
transmitido, foi decidido que a garota receberia um terceiro nome. Se os dois primeiros
nomes foram transmitidos alternadamente, o último foi de maneira oblíqua, proveniente
da terceira geração ascendente, o nome da FMM. Ainda esclarecendo o exemplo, a
ordem dos nomes da menina não é constante e cada um de seus parentes costuma usar
apenas um deles, de forma um tanto idiossincrática, preferindo obviamente aquele
relacionado à sua própria parentela. De tal maneira que o pai da garota pode preferir
chamá-la de Ino ou, mais recentemente, de Txombi, enquanto sua mãe pode, ao mesmo
tempo, chamá-la de Hante.
A conservação dos nomes em oposição ao despojamento das posses do defunto
parece articular-se à concepção que os Katukina guardam de cada um dos espíritos, o do
102

olho (wero yushin) e o do corpo (yora vaka). Do último tentam manter uma certa
distância, o que justifica a evitação de freqüentar o cemitério e a despojamento de suas
posses, pois que se relaciona à sua malignidade. No que diz respeito ao wero yushin, os
Katukina tentam reter o que as pessoas têm de mais definitivo, o seu próprio nome,
numa tentativa de perpetuar a memória do falecido. Quando proponho a associação
entre nomes e wero yushin não a compreendo de forma transcendente, apenas identifico
uma característica que têm em comum: os wero yushin são eternos, como o são também,
idealmente, os nomes.
A interpretação que proponho contrasta com aquela de Townsley (1993:445)
para os Yaminawa, que associa os nomes ao espírito do corpo (diawaka). Segundo o
autor, a repetição cíclica dos nomes, de acordo com regras fixas (entre gerações
alternadas e paralelas), pode ser considerada como a reencarnação do diawaka de um
avô(ó) particular. Considerando a onomástica pano (os nomes sendo transmitidos entre
gerações paralelas e alternadas), a sugestão de Townsley parece-me confusa por dois
motivos: (i) não explica como as coisas se passam na transmissão de nomes inter-vivos,
já que não há reencarnação sem morte; (ii) a onomástica pano tem sido caracterizada em
diversos trabalhos como extremamente coletivadora, devido ao "efeito kariera" que é
capaz de produzir, e não me parece possível que os nomes possam ser individualizados
de tal maneira.
Voltando à onomástica katukina, a interpretação nativa quer que a transmissão
dos nomes seja a garantia da perpetuação dos defuntos, quer arrumar uma solução
pacífica para contornar a ruptura imposta pela morte. Contudo, distanciando-se um
pouco do ponto de vista nativo, parece-me possível supor que o efeito da transmissão
onomástica seja uma vez mais cancelar a sua existência. Independente dos caminhos
genealógicos percorridos – provenientes da primeira, segunda ou terceira gerações
ascendentes, paralelos ou cruzados –, todo o esforço deve ser feito para que não sejam
abandonados os nomes que receberam em tempos prístinos.17 O apego aos nomes
confunde-se com o apego às pessoas e é exatamente essa confusão de afetos que permite
a desvinculação do nome de seu referente morto. Encerrada a existência de uma pessoa,
seus parentes esforçar-se-ão para garantir que o mesmo não se passe com o nome que,
num período determinado, a teve como referente, mas que deverá ter outros

17
Atribui-se a Tarakawati, o jacaré gigante que no início dos tempos "serviu como ponte" aos Katukina
na travessia do grande rio, o recebimento do estoque onomástico que os Katukina usam ainda hoje.
103

indeterminadamente. Ao cabo de algumas gerações a amnésia genealógica intervém e


são esquecidas as pessoas mortas que um dia usaram aqueles nomes. Como se
pudéssemos dizer que o esforço é prospectivamente vão, que a garantia de perpetuação
do nome é justamente tomá-lo de quem já se foi e passá-lo a outrem. Os nomes
permanecem, mas não as pessoas que os usaram temporariamente. Num certo sentido,
tudo se passa como se as pessoas fossem possuídas pelos nomes, sejam quantos forem,
ao invés de possuí-los.18
Afora o uso do marcador aspecto-temporal -shina para indicar a morte recente, o
despojamento das posses e a evitação do nome do defunto, não soube de outras
expressões de luto entre os parentes próximos. Nos dias de hoje o luto é perceptível
apenas por uma certa melancolia, denotada no olhar e no falar, uma contenção maior do
que o normal. Talvez houvesse no passado expressões mais marcantes do luto. Um mito
narra o caso de um homem que teve seu cabelo raspado após perder um filho, uma
prática que era freqüente entre os Yawanawa (Carid 1999). No caso da morte de um dos
cônjuges, parece-me que não há impedimento algum para que se faça um novo
casamento. Acompanhei o caso de um homem bastante velho que tinha duas irmãs
como esposa – a mais nova, a propósito, tinha sido anteriormente esposa de seu irmão já
falecido. Uma delas, a mais velha, morreu. Pouco tempo depois, morreu a segunda.
Estimo que aproximadamente uns seis meses depois de ficar completamente viúvo, ele
estava casado novamente, desposou uma mulher também viúva.

Os destinos pós-morte

Encerrada a vida, os dois espíritos, o yora vaka e o wero yushin, dissociam-se do


defunto. No período que sucede a morte, o yora vaka, chamado mais freqüentemente
apenas como yushin, fica próximo da sepultura e também vagando pela floresta e nas
imediações das casas durante a noite e nos roçados durante o dia. Transcorrido um
tempo maior, limita-se a circular entre o cemitério e a floresta, deixando de importunar
aqueles com quem conviveu, em suas casas e, finalmente, desaparece.

18
Paradoxalmente, a idéia de que os nomes "possuem" as pessoas, talvez possa ser aplicada à onomástica
dos Yaminawa estudados por Townsley (1988:199). Isso se considerarmos a afirmação do autor de que
os nomes "são independentes dos indivíduos aos quais foram temporariamente vinculados. A
continuidade do sistema de parentesco (kin-category) depende disso. Vinculados [os nomes] aos
indivíduos na infância, devem ser desvinculados após a morte".
104

De todos os locais possíveis de se encontrar um yushin, o menos perigoso é a


casa e o mais perigoso é o cemitério, embora os encontros com yushin comportem
sempre algum risco. Nas casas, os yushinvo (vo é um sufixo pluralizador) apenas fazem
barulho, batem nas panelas, puxam o punho da rede e os cabelos das pessoas, jogam
barro em cima da casa e outras traquinagens. Os cachorros podem ver os yushinvo e
anunciam sua presença com seus latidos noturnos. Eventualmente, os yushinvo deitam-
se com as pessoas que dormem nas redes. O aparecimento de hematomas no corpo, sem
que se saiba o motivo, são atribuídos aos yushinvo, que podem chupar o sangue das
pessoas durante a noite19. Várias pessoas diziam ter sentido a presença de yushin de
pessoas mortas, sobretudo em dias de lua clara, mas não os conseguiam ver, assim que
os procuravam, eles desapareciam. Outros dizem tê-los visto realmente e os descrevem
como humanos do tamanho de uma criança de aproximadamente dez anos, alguns são
menores, gordinhos e com adereços de palha de jarina e com as faces decoradas com
desenhos azuis feitos com a resina conhecida por sempa ou com urucum (mashi). Ao
contrário dos Yaminawa (Townsley 1988:115) e Kaxinawa (McCallum 1996:229) que
têm os yushinvo como figuras monstruosas e repulsivas, os Katukina, embora os temam
e designem tudo o que consideram feio pela mesma palavra, descrevem alguns deles
também como seres belos, sobretudo devido à decoração de seus corpos.
Nos roçados durante o dia os yushinvo raramente são vistos, apenas é sentida a
sua presença. Txapa disse ter sido "empurrada" mais de uma vez por um yushin no
roçado, quando voltava para casa com o paneiro repleto de macaxeira. Algumas pessoas
haviam morrido em sua casa enquanto estavam sob os cuidados de seu marido, Mani, e
isso explicava a presença do yushin. Após mais uma queda atribuída ao yushin, Txapa
irritou-se, deixou o paneiro no lugar em que caiu e mandou seu marido ir buscá-lo. Mais
tarde convenceu-o de que o melhor seria abandonar o lugar.
Uma outra característica sempre apontada nos yushinvo é de que eles gostam de
se mostrar comendo besouros (hoso) e uma espécie de pirilampo (yushin tapi), seus
alimentos prediletos. Por isso os Katukina não os matam, pois temem represálias da
parte dos yushinvo. Um local que tenha muitos besouros e pirilampos denuncia a
presença dos yushinvo ou, pelo menos, a possibilidade deles rondarem por ali em busca
de alimento. De todo modo, a partilha de um mesmo espaço com um yushin não é

19
Carneiro (1964:8) e Siskind (1973a:149) também mencionam que o yushin chupa o sangue das pessoas,
respectivamente, entre os Amahuaca e os Sharanawa.
105

recomendável, sobretudo se houver crianças no local, pois passam a ficar perturbadas,


agitadas, com dificuldade de respirar e podem desenvolver alguma doença mais séria.
Quando não desaparecem repentinamente, os yushinvo transformam-se em
bichos e insetos. As borboletas (shai pero) são, para os Katukina, transmutações de
yushin, razão pela qual os mais velhos não permitem que as crianças persigam ou
toquem as borboletas. Matar uma borboleta então é muito pior, pois pode levar a pessoa
à loucura (nison). Uma espécie de aranha, grande e preta (yutan), é também um yushin
transformado. Na mata, a transmutação mais comum do yushin é na forma de um bicho-
preguiça (posan). Há quem diga ter atirado em um yushin e ter visto surgir no local uma
preguiça morta. Os yushinvo mais barulhentos e perturbadores corporificam-se em
macaco-preto.
Já no cemitério os riscos de encontrar um yushin são bem mais graves. Próximos
das sepulturas, os yushin tornam-se agressivos, perseguem e atacam as pessoas: chupam
o sangue, a pessoa "fica só osso", e provocam a surdez20. Para sobreviver a um ataque
desses, só com a ajuda de um xamã extremamente experiente. Na floresta durante a
noite, há o risco de ser também atacado. Ne'e, um velho da aldeia do rio Campinas, diz
ter sido atacado por um yushin há anos atrás, quando procurava pupunhas nas
imediações do cemitério da aldeia do rio Gregório. Salvou-se com o atendimento que
recebeu de Tobi, um falecido xamã, mas restaram seqüelas do ataque, desde então ele
passou a ouvir com dificuldade.
O wero yushin, espírito do olho, tem um destino completamente diferente
daquele do yora vaka: desvinculado do corpo, segue rumo ao céu. Há um único
caminho para se chegar ao céu, mas na travessia da grande ponte, suspensa sobre o rio
que liga a terra ao céu, os wero yushinvo devem atravessar pontes distintas, em
conformidade com cada um dos clãs que compõem a sociedade Katukina. Os Varinawa
têm a ponte dos Varinawa, os Kamanawa têm também sua própria ponte e assim por
diante. Tinha observado em trabalho anterior (Lima 1994a:50-51), que os clãs katukina
não pareciam operar socialmente na organização das relações entre as pessoas –
diferentemente das seções Marubo (Melatti 1977) ou Kaxinawa (Kensinger 1995a), por

20
Em um artigo de 1924 em que fala de um grupo conhecido como Katukina no rio Gregório (e que
suspeito que seja, dadas as semelhanças, o mesmo que pesquiso hoje), Tastevin comenta também que os
ataques dos yuchin aos vivos são fontes de doenças e que uma vez agarrado ao corpo de alguém, sugam-
lhe todo a sua carne e o seu sangue.
106

exemplo. De fato, os clãs aparecem mais explicitamente apenas no destino do wero


yushin, na ponte específica que cada um deve atravessar.
Apesar de serem seis os clãs katukina21, são mencionadas apenas quatro pontes
interligando a terra ao céu: a ponte de pupunha (wani tapan) serve aos Waninawa, a
ponte de taboca (paka tapan) aos Varinawa, a ponte de assaí (panan tapan) aos
Numanawa e a ponte de samaúma (shono tapan) aos Kamanawa. As três primeiras
pontes são extremamente finas e qualquer desequilíbrio pode interromper a viagem do
wero yushin rumo ao céu, encerrando definitivamente sua existência. Assim, os
Kamanawa, o povo da onça, estão em vantagem pois dispõem da maior e mais larga das
pontes, feita de samaúma (shono tapan). Para os Satanawa e Nainawa não foram
mencionadas quaisquer pontes e prevalecia mesmo uma incerteza sobre como faziam a
travessia do grande rio. Satanawa quer dizer "povo da lontra", de um bicho aquático
portanto, e alguns disseram que a ponte era dispensável, o wero yushin, nesse caso, iria
nadando22. Nainawa quer dizer "povo do céu" e novamente a ponte parecia ser
dispensável. Seja como for, não se questiona a possibilidade de membros dos clãs
nainawa e satanawa chegarem ao céu, apenas restam dúvidas sobre a forma como isso é
feito.23
As pontes que conduzem o wero yushin ao céu não variam apenas em largura,
também em comprimento. Não chegam ao céu aqueles que, em vida, foram sovinas
(yohashi), pois as pontes que os servem têm apenas a metade do comprimento daquelas
destinadas para a travessia de pessoas generosas. Como se quem muito sovina, acabasse
tendo a sua ponte sovinada. A ponte apresenta-se apenas parcialmente e impede a
continuidade da travessia. O wero yushin de uma pessoa avarenta, seja homem ou
mulher, fica então no meio do caminho, sem conseguir atravessar para a outra margem
do grande rio, e é atacado por cupins (nakash) que encobrem todo o seu corpo, deixando

21
Atualmente há dúvidas sobre a regra de filiação que opera para determinar o pertencimento aos clãs,
enquanto uns afirmam a matrilinearidade, outros afirmam a patrilinearidade. Quando uso a denominação
de "clãs" para as unidades que compõem a sociedade katukina, faço-o apenas como o reconhecimento
de uma "ancestralidade suposta ou presumida", como o fiz em trabalho anterior no qual esse assunto foi
mais detalhado (Lima 1994a:49-52).
22
Entre os Marubo os membros da seção Satanáwabo não fazem o caminho terrestre, chegam ao céu pelo
"caminho da água" (Montagner Melatti 1985:82).
23
Nos dias de hoje é difícil saber o funcionamento ideal do modelo, mas não se deve duvidar da seriedade
com que os Katukina tratam do assunto. Certa vez, enquanto conversava com Mani sobre o destino dos
mortos, fui surpreendida pela pergunta: "E os brancos, vão para o céu de barco?". Ele falava sério e
queria a confirmação dessa possibilidade, que tinha ouvido de um seringueiro anos atrás – um sujeito
fabulador certamente, que contou a Mani do acesso dos brancos ao céu após ouvir Mani lhe contar
107

visíveis apenas os órgãos genitais. Outros wero yushinvo a caminho do céu, quando
passam por ali e vêem os avarentos cobertos de cupim, transformados mesmo em
cupinzeiros, dão-lhes pancadas com pedaços de pau antes de tentarem a travessia.
O sentido da avareza para os Katukina transborda as nossas concepções
dicionarizadas. Uma pessoa avara, mesquinha, sovina, não apenas conserva o que tem
para si, apegando-se excessivamente às suas posses. Ela faz isso e mais. O sovina é
acima de tudo um dissimulado. Yohashikonawa, o sovina paradigmático, tinha um
imenso roçado com macaxeira, milho e banana. Naquele tempo (shenepavo, "tempo dos
antigos") os Katukina não tinham nenhum cultígeno e foram pedir a Yohashikonawa um
pedaço de maniva, uma touceira de banana e sementes de milho. Yohashikonawa não se
furtou a dar. Ele deu, mas não sem antes cozinhá-los, impedindo que germinassem. Os
Katukina demoraram a descobrir o estratagema e pediram de novo e, mais uma vez, ele
não se recusou a dar. Descoberta a verdade, o engodo sob a aparência de generosidade,
os Katukina aliaram-se a um homem-grilo que roubou então de Yohashikonawa aquilo
que ele sovinava: as manivas, as touceiras e as sementes in natura, adequadas ao
plantio.
Antes de tudo, um sovina, yohashi, é um mentiroso, yohai: alguém que finge dar
quando não dá ou que diz não ter quando tem. Em qualquer das alternativas, sonega a
verdade. Celestialmente, o sovina é vítima de sua própria conduta. Ao espírito do olho
de um avarento não falta a ponte, mas, assim como manivas, touceiras e sementes
cozidas não servem para ser plantadas, uma ponte pela metade não serve à travessia.
Um outro mito descreve a avareza como falsa generosidade. Havia uma velha
viúva, que só tinha um filho para ampará-la. Um dia o rapaz teve vontade de comer
pamonha e a velha, para satisfazer seu desejo, foi até a casa de um vizinho pedir um
bocado de espigas de milho. O vizinho não negou, mas instruiu sua mulher a dar apenas
umas poucas espigas. No roçado, a esposa dele encheu o paneiro da velhinha com
pedaços de lenha e, para escondê-los, dispôs as espigas de milho por cima. A velha
ficou satisfeita e deu-se conta de que tinha sido enganada apenas quando chegou em sua
casa. Seu filho ficou bastante aborrecido com a avareza do vizinho e planejou a
vingança na mesma moeda. No ano seguinte o rapaz fez um imenso roçado de milho.
Quando o milho estava maduro, o rapaz e sua velha mãe convidaram todos para uma

sobre as pontes katukina. Mani não duvidava da versão do seringueiro, já que para ele os brancos são
todos ricos.
108

festa, para beber caiçuma de milho do roçado farto. O vizinho avaro foi convidado e a
festa ainda não tinha acabado quando ele resolveu ir embora, sozinho, durante a noite. O
filho da velha então se prontificou a providenciar algo que pudesse iluminar o caminho
dele pela floresta escura. Iniciava-se a sua vingança. Usando do mesmo método
empregado pela mulher do sovina quando sua mãe pediu as espigas de milho, o rapaz
pegou um rolo de cernambi, mas colocou apenas um pouco de sempa, a resina que
mantinha o fogo acesso, o restante abasteceu com areia. O homem foi embora sem
perceber o engodo. Antes que chegasse em sua casa e próximo ao cemitério, o fogo que
iluminava seu caminho, apagou. Foi então que aconteceu um ataque de yushin, diversos
deles, que arrancaram toda a pele (reshvi) do sovina, dos pés à cabeça, e esticaram-na,
amarrando nas árvores. O sovina não morreu, mas desde então, sem pele, não pôde mais
comer, nada do que ele comia parava em sua barriga. No mesmo instante em que comia,
defecava.
Recentemente Descola (1998:38) afirmou achar difícil falarmos em uma "moral
amazônica" nos mesmos termos em que falamos de uma "moral judaico-cristã" e
destacou que parece haver apenas dois princípios incontestáveis na região: a
condenação da avareza e o controle de si. Entre os Katukina, não há dúvidas de que
ambos são absolutamente reconhecíveis. O controle de si é facilmente identificável,
basta lembrarmo-nos do comportamento comedido e moderado que deve orientar o trato
entre as pessoas, evitando em situações críticas sucumbir à raiva que leva ao
descontrole. De todo modo, quero chamar a atenção aqui particularmente para o
primeiro. Com exceção da condenação da avareza, os demais comportamentos entre os
vivos não têm qualquer repercussão celestial, não se prevêem castigos divinos ou coisas
assim.24 O fato de justamente a avareza ser o único comportamento passível de
interditar o acesso ao céu revela o quanto sua condenação deve orientar as relações
terrenas.

Se os avarentos estão impedidos de chegar ao céu, o acesso dos generosos não é


completamente franqueado. Como foi dito antes, a queda da ponte pode interromper a
travessia do wero yushin. Um sapo gigante, txoro, ameaça também cozinhar o wero

24
Diferentemente, portanto, dos Marubo, que têm o acesso ao céu interditado devido a vários preceitos
morais: adultérios, roubos, casamentos incestuosos, preguiça e gula (Montagner Melatti 1988:152 e ss).
109

yushin, jogando-o em um grande caldeirão de água fervente, devorando-o em seguida.25


Há quem diga que o wero yushin de crianças muito pequenas, que ainda não andam nem
falam, não chegam ao céu, pois são incapazes de vencer os perigos do caminho.26 Por
sua vez, crianças um pouco maiores, capazes de desenvolverem ao menos parte de suas
ações sozinhas, chegam ao céu como se fossem adultas.
Quando vence todo o percurso e chega ao céu, o wero yushin lança na terra uma
tartaruga grande que eventualmente é encontrada por seus parentes vivos. No céu o
wero yushin é recebido por Koka Notowani que lhe retira o coração (ou a pele,
conforme a versão) e assopra, criando-lhe um novo corpo, sem memória,
dessubjetivado, despojado da lembrança dos parentes vivos. Os demiurgos, conforme a
versão que se considere, que recebem os mortos e lhes proporcionam um novo corpo,
são afins: Koka Notowani e Koka Pino Txari. Koka é o termo de parentesco utilizado
para designar o tio materno. 27
A saudade atormenta vivos e mortos. Se na terra os vivos tentam escapar da
lembrança do morto e da malignidade que a atração pelo yora vaka representa,
despojando-se de seus pertences e evitando aproximar-se das sepulturas; no céu o wero
yushin é despojado de seu próprio corpo para não lembrar de seus parentes vivos.28 Em
vida um corpo é modelado pela partilha de substâncias (yoran pae), que delineia uma
relação de continuidade entre parentes diretos. Com a morte, a descontinuidade irrompe

25
O padre Tastevin, no artigo de 1924 ao qual já fiz referência na nota 20, comenta rapidamente de um
habitante do céu, que ele grafou como Tyuvu, que cozinha os mortos num grande caldeirão e alimenta-se
de seus ossos. Em um outro artigo, Tastevin (1926) menciona que um velho kaxinawa lhe contou que
subiu ao céu e viu lá o Inka, como se fosse um esqueleto vivo, comendo o coração de um homem. O
próprio Tastevin relaciona o Tyuvu dos Katukina com o Inka dos Kaxinawa, destacando que ambos se
alimentam de corpos defuntos. Contemporaneamente, McCallum (1996: 62) também menciona que "a
alma pode ser devorada por espíritos-monstros".
A idéia dos Katukina de que o wero yushin é jogado num caldeirão de água fervente, tem seu
contraponto no banho da imortalidade (com ou sem fogo) registrado entre tantos grupos Tupi-Guarani
(Viveiros de Castro 1986:420-421). Contudo, entre os Katukina não se trata de um "banho mágico", mas
de um cozimento literal, da elaboração culinária do wero yushin, que acaba por ser canibalizado
celestialmente e por perder em definitivo a chance de alcançar a vida eterna. Se nos grupos Tupi a
canibalização celeste é garantia de imortalidade, para os Katukina é justamente o contrário, é a perda
dela.
26
Igualmente, para os Marubo as crianças de até três anos são incapazes de chegar ao céu. Segundo
Montagner Melatti (1985:110 e 112) os berõ yochibo de crianças ficam nas coxas de suas mães.
27
Os dois demiurgos não exercem qualquer controle sobre a vida na terra, embora às vezes os Katukina
os traduzam como "Deus" e "Jesus Cristo". O mesmo não fazem os missionários da MNTB (talvez
tenham feito no passado, mas não tenho como assegurar isso). Nas pregações em língua Katukina que
presenciei na aldeia do rio Gregório, "Deus" e "Jesus Cristo" eram mencionados sempre em português.
O que não deixa de ser adequado, uma vez que no Cristianismo se postula uma relação de
consangüinidade com os deuses, não de afinidade. Seríamos todos, afinal, "filhos de Deus" não seus
"sobrinhos".
28
Carid (1999:146) comenta algo muito parecido a respeito do destino pós-morte entre os Yawanawa.
110

duplamente: com o perecimento do corpo sepultado e, simbolicamente, com a troca de


pele do wero yushin. O wero yushin, transformado assim pela aquisição de um novo
invólucro, reúne-se aos wero yushinvo de seus parentes falecidos e ali permanece
eternamente.
Do mesmo modo como acontece na terra, o wero yushin também envelhece no
céu: com o transcorrer do tempo, sua pele torna-se enrugada e flácida e seus cabelos
ficam brancos. Entretanto, no céu há uma renovação periódica de seu corpo, com a troca
de sua pele e do cabelo, o wero yushin retorna sempre à juventude. A possibilidade
mítica da imortalidade concretiza-se celestialmente.

Os trovões (nai vanai) marcam a chegada de wero yushin ao céu e também a


movimentação de todos eles. A etimologia de nai vanai, "conversa (vanai) do céu
(nai)", quer significar justamente a realização da vida celestial. Esse é um dos motivos
pelos quais boa parte dos Katukina não gostam dos dias consecutivos de chuva no
inverno.29 O barulho dos trovões, ou das conversas do céu, fazem-nos saudosos de seus
parentes e alguém que insiste em sua própria saudade, pode acabar reunindo-se aos
defuntos.
Certa vez chovia, era início do inverno, e conversava com Txoki sobre o tema da
caça. Incomodado com a chuva e os trovões enquanto conversávamos, ele me
perguntou: "você gosta mais do verão ou do inverno?". Respondi prontamente que
gostava mais do verão e ele concordou comigo, falando da saudade que sentia de seus
parentes mortos nos dias de chuva – Txoki perdeu, em menos de cinco anos, um irmão
classificatório, uma filha e um neto. Continuei a conversa obliquamente: "mas no
inverno todos dizem que é melhor, tem mais caça, todos comem bem…". Ele concordou
e rindo disse: "Katukina é como gia (um anfíbio que coaxa no inverno): fica chamando
chuva, mas quando a chuva vem fica tudo aperreado. No verão, de barriga vazia, a gente
fica feliz. No inverno, de barriga cheia, fica tudo triste". Para os Katukina, o inverno é
que mais se parece com a "ilusão do paraíso". A fartura de pouco serve se a
comensalidade que unifica os parentes não pode ser atualizada.
Voltando ao destino pós-morte, os wero yushinvo dos falecidos abrigam-se todos
junto de seus parentes na nai shovo, a casa do céu, e não têm nenhuma das

29
Townsley (1988:117) comenta o mesmo entre os Yaminawa.
111

preocupações terrenas. Os mortos mantêm-se apenas bebendo uma "água doce"30, com
o sabor parecido com o do abacaxi (kankan)31. O céu dos Katukina, como escreveu
Tastevin (1924:91), "não tem nada de atraente". A viagem final dos mortos acaba tendo
como destino a indiferenciação, o wero yushin de um falecido aporta numa sociedade
estéril. Ali os mortos não caçam, não plantam, não casam, não têm filhos.32 Como se
pudéssemos repetir aos Katukina as mesmas palavras de Carneiro da Cunha (1978:145)
a respeito dos Krahô: "a sociedade dos mortos é sociedade morta".
A esterilidade da vida celeste traz de volta o tema da polaridade doce/amargo e
parece-me razoável postular que a preguiça, tão desprezada na vida terrena, orienta a
vida celeste. No céu nada se produz, não há casamentos, nem filhos. Os Katukina não
comentaram que os mortos são preguiçosos, mas não me parece imprudente conceber o
céu como o reino da doçura e daí à preguiça, como vimos no capítulo anterior, o
caminho é curto. Os mortos nutrem-se no céu bebendo apenas a água doce, o suco do
abacaxi, falta o amargor para contrabalançar. Como se o amargor e a masculinidade da
vida terrena cedessem definitivamente lugar à doçura e à feminilidade da vida celeste.
De mais a mais, a esterilidade celeste não deve surpreender se pensarmos que os vários
compartimentos do céu reúnem apenas os consangüíneos.
Em seu mito de origem os Katukina contam que todos os nawa (povos de língua
pano) surgiram num mesmo lugar e, após atravessarem um rio muito largo sobre o
dorso de um jacaré gigante, dispersaram-se cada qual para um lado. No céu é mantida a
divisão primordial: os mortos de todos os povos vão para o céu e lá têm suas casas
separadas umas das outras. As pontes conduzem a distintas moradias e os mortos vivem
no céu entre consangüíneos. A constituição celeste de um reino pan-pano, identificada
em outros grupos (apud Erikson 1993b:49), não se faz presente aqui.

Apesar da perenidade da vida celeste, há, episodicamente, guerras no céu,


embora nenhuma razão me fosse apontada para isso. Nuvens avermelhadas ao cair da

30
Em tempos prístinos, de acordo com Mani, toda a água da terra era adocicada. Deixou de ser após o
demiurgo Koka Notowani, ver uma criança engasgar ao beber água, quando então a transformou em um
líquido insípido.
31
O mesmo ocorre com os mortos yaminawa que, segundo Townsley (1988:120), têm o abacaxi como
seu alimento predileto.
32
Uma concepção do céu bastante negativa é também encontrada entre os Yaminawa estudados por
Townsley. Segundo o autor (1988:119), no céu dos Yaminawa não há sequer linguagem humana. Essa
negatividade do céu, seja dos Katukina ou dos Yaminawa, tem seu contraponto entre os Kaxinawa
(McCallum 1996:49; Lagrou 1998:281) e os Yawanawa (Carid 1999:140-149 e Pérez 1999:128) que o
concebem como um lugar em que há muitas festas.
112

tarde indicam desacordos entre os moradores do céu. Certa vez olhava para nuvens
desse tipo e meu anfitrião disse "wero yushin shina tae", "os espíritos do olho estão
raivosos". O tom avermelhado indica que os wero yushinvo estão em guerra, as nuvens
ficam manchadas de sangue.
Embora reserve a possibilidade de alcançar postumamente a vida eterna tão
desejada, o céu não goza de muito prestígio. Um breve episódio pode esclarecer esse
ponto. Certa feita, Maya acabara de chegar da aldeia do rio Gregório e parecia
impressionada pela pregação dos missionários a respeito do fim do mundo na virada do
milênio. O fim do mundo, na versão que divulgava, representaria o fim de todos os
homens, índios e brancos. A "salvação", aqui compreendida como um lugar reservado
no céu, só aconteceria àqueles que se convertessem ao protestantismo pregado pelos
missionários. As pessoas que a ouviam prestavam muita atenção, mas pareciam
incrédulas. Entre todos, Mani resolveu contestar e disse que os brancos podem bem ir de
barco para o céu (ver nota 23), mas se o mundo acabasse, não haveria a menor diferença
ser branco ou índio, afinal, o céu não reserva aos mortos o melhor dos mundos e, no fim
das contas, todos restam apenas bebendo a "água doce". A concepção do céu como um
paraíso reservado aos convertidos, àqueles que se "salvaram", não repercute
positivamente aqui.
A despeito das agruras do dia-a-dia e da finitude incontornável, a boa vida é a
terrena. Não fosse e os mortos não sentiriam saudades. Após a morte, o mais próximo
que existe da vida terrena não é a vida celeste, mas a aquática. Nas profundezas das
águas os mortos reproduzem a mesma vida que na terra, acompanhados dos hene
yushinvo, "espíritos da água". Contrastando a vida no céu, na terra e na água, Mani
comentou sobre o destino pós-morte: "No caminho do céu tem ponte de muito perigo,
tem nakash (cupim), tem txoro (o sapo gigante). Debaixo d'água é como na terra, é
bonito. Debaixo d'água é como na terra, não tem tristeza". No mundo aquático,
idealizado a partir do mundo terreno, o wero yushin não sente saudades dos parentes
que deixou e, então, sequer precisa que algum demiurgo retire seu coração para moldar-
lhe um novo corpo.
O desvio do wero yushin para o mundo aquático é um evento contingente. O
canto noturno de um pássaro chamado txontxon shene33 anuncia a proximidade da

33
Apenas o canto noturno do txontxon shene é indicativo de morte, o canto diurno desse pássaro não
comunica nenhum presságio. Entre os Kaxinawa, txutxun é o rouxinol (Icterus icterus), cf. Aquino e
Cataiano (no prelo).
113

morte, mas apenas daqueles que têm o wero yushin conduzido para as profundezas das
águas. Nenhum atributo distintivo, nenhum motivo especial, nada me foi apontado para
explicar as razões que justificassem que, dentre os mortos, apenas uns poucos pudessem
ser "premiados" com a vida aquática pós-morte. Soube diretamente que vão para
debaixo d'água apenas aqueles que tiveram a morte anunciada por txontxon shene.
Entretanto, por razões que serão expostas abaixo, suspeito que esse destino talvez possa
ser menos aleatório.
Os Katukina são bem-humorados, sempre fizeram brincadeiras comigo sobre os
temas que eu já dominava e permitiam também que eu as fizesse. Um dia ouvi uma
mulher censurando seu marido, um rezador, por ter negado algo a uma terceira pessoa,
acusava-o de sovinice. O tom da acusação não era grave e parecia-me mais que a
mulher estava tentando fazê-lo mudar de idéia. Resolvi fazer uma brincadeira ao
rezador acusado e disse que, após sua morte, os cupins lhe cobririam o corpo a caminho
do céu – um eufemismo que, outras vezes, tinha sido usado contra mim mesma. Meu
interlocutor riu, em seguida respondeu-me: "meu caminho é outro". Quis continuar a
conversa, mas não obtive sucesso nem naquele dia nem em outros. Isso era coisa sobre a
qual não se deveria falar, ele justificava-se para interromper minhas tentativas.
Não tenho efetivamente como assegurar minha suspeita, mas se a vida aquática é
reservada a poucos, parece-me que seus habitantes são prioritariamente os especialistas
em assuntos xamânicos, os próprios xamãs e os rezadores. Como veremos no próximo
capítulo, os especialistas xamânicos são homens eleitos a partir de um contato
sobrenatural com grandes serpentes, moradoras das profundezas das águas, que lhes
revelam os conhecimentos acerca do mundo sobrenatural. A relação estabelecida entre
os eleitos e o espírito da serpente (rono yushin) é descrita como de conjugalidade e o
próprio espírito da serpente é descrito como uma mulher sedutora. Além disso, ouvi
algumas vezes que os xamãs e rezadores podem transformar-se em cobras após a morte.
A existência de um mundo subaquático paralelo ao terreno e as uniões dos
xamãs com mulheres-espíritos são recorrentes na literatura pano. Algumas vezes os dois
temas aparecem juntos; outras vezes, separados. Um mito relatado, com pequenas
variações, entre os Sharanawa (Siskind 1973:138-140), os Yaminawa (Calávia
1995:XL-XLI) e os Kaxinawa (Tastevin 1926; Lagrou 1998:132 e Deshayes 2000:182-
185) fala justamente de um homem que abandonou sua família para acompanhar uma
belíssima mulher-serpente que o atraiu para debaixo d'água, um lugar de muita beleza.
Nos três grupos, essa viagem ao mundo subaquático explica a origem do conhecimento
114

do ayahuasca. Um outro mito dos Yaminawa conta como nas profundezas das águas
eles conseguiram, por intermédio das grandes cobras d’água, além da ayahuasca, outros
bens apreciados, como o ferro e as mercadorias (Calavia 1995:XIII). Na etnografia
sobre os Sharanawa, Siskind (1973: 133) registrou que sob o efeito do ayahuasca os
homens vêem lindas mulheres e destacou que o desejo sexual se faz presente nas
alucinações. Na concepção kaxinawa, segundo Lagrou (1998:132) o mundo aquático é
"paralelo ao mundo terreno" e a anaconda é capaz de metamorfosear-se em gente e
capturar pessoas para sua morada.34.Consta ainda que os xamãs kaxi podem se
transformar em cobras após a morte (McCallum 1996:60). Mais recentemente,
Deshayes (2000:182) escreveu: "Os Huni Kuin pensam que certos feiticeiros têm a
capacidade de se mover no fundo d'água. Instilando certas substâncias em seus olhos e
em suas articulações, eles podem viver dentro d'água como os peixes".
Entre os Shipibo-Conibo, Saladin d'Anglure e Morin (1998:60) escreveram a
respeito do "casamento místico" entre os xamãs (meraya) e mulheres-espíritos,
moradoras das profundezas das águas. Um meraya assim descreveu o mundo aquático
aos autores: "Lá embaixo é exatamente como em nosso mundo, é como se eu tivesse
uma segunda família, na qual eu sou esposo, cunhado, genro…". O mesmo tipo de
união mística foi anotada rapidamente por Montagner Melatti (1985:409-410), que
soube de um xamã marubo que chegou a ter um filho com sua "esposa" e que foi reunir-
se à sua "família espiritual" após ter morrido. Entretanto, não localizou espacialmente
onde se deu essa reunião. Noutra passagem (op. cit.: 488), a autora escreveu que os
xamãs chegam ao céu sem passar pelo caminho do perigo, mas não detalhou se é ali que
encontra seus parentes místicos.
Estes exemplos, recolhidos de grupos que têm diferentes graus de contato entre
si, permitem mostrar como os temas do mundo subaquático e do "casamento místico"
estão espalhados no conjunto da família lingüística e recebem diferentes elaborações.
Uns, que elaboram com mais vagar o tema do mundo subaquático, como os Kaxinawa e

34
A possibilidade de seres metafísicos abduzirem pessoas para debaixo d'água foi mencionada também
entre os Yawanawa. Segundo Pérez (1999:138) sonhos de afogamento anunciam a morte. Precisamente
a morte de alguém pelos waka yushin ou ene yushin (espíritos da água/cursos d'água). As crianças são as
maiores vítimas desses raptos. Entretanto, nos trabalhos sobre os Yawanawa (Perez 1999 e Carid 1999)
não há qualquer menção à existência de um mundo aquático ao qual pode se dirigir o espírito do olho de
um morto. Do mesmo modo como não há também nos trabalhos sobre os Kaxinawa –- pelo menos não
entre os contemporâneos (Kensinger 1995a; McCallum 1989 e 1996, Lagrou 1998). Os Katukina, que
explicitamente me indicaram essa alternativa, falam poucas vezes em abduções por seres metafísicos. O
caso de desaparecimento de uma criança no rio Gregório, supostamente engolida por uma cobra, não
remeteu diretamente ao tema e, infelizmente, quando me foi relatado, não me ocorreu perguntar.
115

Yaminawa, nada dizem sobre as uniões de xamãs com mulheres-espíritos. Outro, como
é o caso dos Marubo, admite a possibilidade dos xamãs efetivarem a união carnal e
mesmo a reprodução com essas "esposas", mas não fala da reunião póstuma do xamã
com sua família no mundo subaquático. A terceira possibilidade, encontrada entre os
Shipibo-Conibo – a mais assemelhada às concepções katukina –, concilia os dois temas,
mas não é possível saber com segurança se os xamãs após a morte reúnem-se às suas
"famílias místicas" na profundeza das águas. O exercício comparativo baseia-se em
simples analogias; contudo, permite tornar menos especulativa a suspeita de que a
viagem final dos xamãs e rezadores, ao menos entre os Katukina, deva ser em direção
ao mundo aquático, confirmando postumamente a relação com seus moradores.
Desafortunadamente faltaram-me informações, mas se a profundeza das águas é
a morada dos xamãs e rezadores mortos, que se transformam mesmo em grandes cobras,
não seria o caso de perguntar – como fez Langdon (1992) escrevendo sobre os Siona –
se eles morrem realmente?

Ex-endocanibais?

De tudo o que foi exposto sobre os procedimentos funerários e a escatologia


katukina, resta saber o que foi feito do famoso endocanibalismo pano. O indício mais
forte do consumo dos parentes é identificado apenas (mas significativamente) em dois
sonhos expostos anteriormente, sem interpretação fixa: no primeiro há fogo queimando
abaixo da sepultura; no segundo água borbulhando – tokoi, o mesmo verbo para
ferver/cozinhar – da superfície da sepultura, presumivelmente de um corpo em
decomposição. Ambos foram interpretados como presságios de morte. Admitindo o
endocanibalismo como prática generalizada entre os grupos pano no passado – o que
está longe de dar conta dos fatos concretos, como veremos a seguir –, o fogo e o
cozimento são do domínio culinário-escatológico e a sepultura converte-se rapidamente
no grande camburão em que o corpo era cozido até a carne soltar-se completamente dos
ossos, mais tardes calcinados e consumidos com mingau de banana. Entretanto, nos dias
de hoje restam os corpos depositados sob a terra, não consumidos por seus parentes,
desguarnecidos em túmulo profano, já que se pretende que o endocanibalismo pano era
também um mecanismo de defesa contra os assaltos inimigos, fossem humanos fossem
vermes (Erikson 1986:198). A cova profunda hoje protege os corpos dos urubus, os
116

próprios Katukina destacam esse detalhe, mas, por fim, acabam por ser devorados na
terra.
Coincidentemente, os dois sonhos resumidos acima são de pessoas que têm
versões opostas sobre o endocanibalismo, uma afirma e a outra nega. Para evitar que
adiante alguns juízos, vejamos logo o que dizem aqueles que o afirmam, em seguida
aqueles que o negam.
Entre as pessoas que admitem a prática endocanibal, a cerimônia funerária é
descrita sumariamente e repete o que foi registrado a respeito de outros grupos pano.
Consumada a morte, o defunto era pranteado por todos, em seguida depositado em um
grande camburão, com os pés amarrados ao pescoço, e cozido por aproximadamente um
dia. Findo o cozimento, os ossos eram triturados e misturados com mingau de banana e
consumidos. Nada me foi dito sobre o que era feito do caldo e da carne do defunto.
A versão que nega o endocanibalismo é um pouco mais detalhada. Em comum
com a versão anterior tem a negativa do sepultamento, uma prática que teria sido
adotada apenas a partir do contato com os brancos. Nesta versão, a consumação da
morte fazia-se acompanhar da construção de uma grande fogueira, sobre um buraco
cavado na terra, em que o corpo era queimado. Para sua cremação o corpo era
preparado: cortavam-lhe as mãos e os pés e retiravam todas as vísceras. Ao final, tudo
era queimado, com exceção do fígado (taka) que deveria ser enterrado, para evitar o
cheiro forte que emanaria caso fosse disposto no fogo. Entretanto, esse detalhe apenas
impedia que o cheiro fosse mais forte do que já era realmente e que causava o abandono
do local de moradia. Caso respirassem aquele cheiro, todos adoeceriam. Enquanto ardia
na pira funerária, o defunto era acompanhado apenas de duas ou três pessoas que o
manipulavam com grandes varas para acelerar sua combustão, as demais dispersavam-
se na mata. Embora não tenham sido indicadas quais eram as pessoas que permaneciam
junto ao morto nem qual o parentesco que as relacionavam, deveriam estimá-lo, caso
contrário seu corpo não se consumia nas chamas. O corpo deveria ser queimado até que
dele não restasse mais nada, quando então era abandonado completamente por aqueles
que ali permaneceram.
Fosse o defunto apenas incinerado ou incinerado e consumido por seus parentes,
ambos os tratamentos são "anti-putrefação" (Chaumeil 1997:87). Por certo isso ajuda a
explicar o simbolismo dos dois sonhos expostos antes, que associam a sepultura ao fogo
e ao cozimento, como que dissimulando o processo de putrefação inevitável nos dias de
hoje.
117

À primeira vista as duas versões não negam parte da análise de Erikson (1986)
de que o endocanibalismo pano seria, na verdade, um contra-exocanibalismo, uma
medida para evitar que os defuntos fossem comidos por outros. Sem comê-los, a mesma
interpretação mantém-se apropriada.
A interpretação de Erikson (1986) do endocanibalismo pano como medida
defensiva sustenta-se, entre outras coisas, na acusação de vários grupos pano de que
grupos indígenas vizinhos seriam canibais, algo que é afirmado explicitamente pelos
Sharanawa estudados por Siskind (1973:155). Em outro trabalho (Lima 1994a:120-121)
interpretei dessa maneira a repetitiva afirmação dos Katukina de que, no passado,
vizinhos seus seriam canibais. Entretanto, essa afirmação, tem de ser matizada, o que
não fiz anteriormente, pois não é uma acusação de exocanibalismo, mas de
endocanibalismo! A acusação, dirigida a grupos supostamente localizados nos rios
Jordão e Tarauacá, é caricatural e sempre se destaca a perspectiva da antropofagia
alimentar, tanto assim que se reforça a idéia de que comem a carne e não os ossos dos
mortos. Como se pode perceber no breve diálogo em que três pessoas me falaram do
assunto:

(…)
Mampo: Quando uma pessoa tá com febre, já mata pra comer…Xarapim [neta
homônima de Mampo] tá com febre… mata logo.
Mame: Pega alguma doença, aí come que é pra não deixar emagrecer.
Eu: Não pode ficar magro não?
Retxa: Não, eles não gostam…

Meus interlocutores destacavam a crueldade do canibalismo, insinuando que os


supostos índios dos rios Jordão e Tarauacá (seriam Kaxinawa?) antecipavam a morte de
uma pessoa adoentada para que pudessem dispor de carne gorda. Pondero que essa
versão bem pode ser tributária de valores que os Katukina passaram a experimentar
após o contato com os brancos. Seja como for, lembro que a magreza é deplorada entre
os grupos pano e que o fato relatado, a antecipação da morte de um doente, já foi
registrado em alguns deles, como é o caso dos Marubo (Montagner Melatti 1985) e dos
Amahuaca (Dole 1974:306). Montagner Melatti (op. cit.: 206-207), que soube da prática
da eutanásia entre os Marubo, registrou que um dos motivos para abreviar a vida de um
agonizante era o sentimento de vergonha de seus familiares, explicado por sua magreza,
devido justamente aos padrões de beleza vigentes no grupo.
118

Entre os Katukina, a interpretação do endocanibalismo como contra-


exocanibalismo só se sustenta se retomarmos a justificativa de depositarem hoje em dia
os mortos em covas profundas para protegê-los dos urubus.
Ainda na análise de Erikson, a variedade das práticas funerárias
(endocanibalismo, cremação e enterro) entre os Pano aparece relacionada à guerra. Há,
segundo o autor, uma gradação de procedimentos: "o mínimo de guerra corresponde ao
enterro, o máximo ao auto-consumo (1986:200). A idéia de reciclagem dos defuntos via
endocanibalismo aplicar-se-ia com mais propriedade aos grupos que entabulavam
relações próximas e contínuas com o exterior e que, por isso, corriam o risco de serem
exocanibalizados. Como exemplo, o autor cita os Cashibo, um dos mais belicosos
grupos pano, entre os quais os endocanibalismo seria generalizado. No pólo oposto
estariam os Matis, que mesmo antes do contato teriam renunciado ao rito endocanibal e
também aos conflitos guerreiros.
Voltando aos Katukina, não se trata de escolher entre uma ou outra das versões,
afirmativa ou negativa à existência do endocanibalismo, mesmo porque não seria de
todo improvável que pudessem coexistir ou que uma sucedesse a outra. Confrontando as
versões, a dispersão das pessoas enquanto o cadáver era queimado, na segunda, é
consistente com a baixa freqüência das pessoas nos dias de hoje tanto ao sepultamento
quanto ao cemitério, mas contradiz o consumo ritual do cadáver previsto na primeira,
dos partidários do passado endocanibal. Entretanto, se admitirmos a simples incineração
como o tratamento funerário substituto do endocanibalismo e que apenas parentes mais
próximos comiam o defunto – como acontecia entre os Kaxinawa (McCallum 1996:70)
–, estes talvez fossem os mesmos que manipulavam com varas o morto, a fim de
acelerar sua incineração, dado que se pretende que estes deveriam ser afeiçoados à
pessoa morta.
Mas não é apenas a existência de duas versões, que embaralha as cartas do ritual
funerário – qualquer que seja, já abandonado. O que pensar da amputação das mãos e
dos pés e da retirada das vísceras do defunto? Entre os Arara, um povo caribe do Xingu,
esse era justamente o tratamento dado ao inimigo de guerra, com o acréscimo de que a
cabeça era decepada (Teixeira-Pinto 1997). Sem nos afastarmos tanto cultural e
geograficamente, os Uni, quando ainda guerreavam, decepavam a cabeça e amputavam
os antebraços e as pernas de seus inimigos. A cabeça era suspensa em postes atrás das
119

casas comunais que usavam.35 Os antebraços e as pernas eram cozidos, para que se
separasse facilmente a carne dos ossos, com os quais fabricavam flautas e pontas de
flechas que, segundo consta, tinham um "poder mágico extraordinário" (Frank
1994:147). Entre os próprios Katukina o tratamento dado aos defuntos na segunda
versão das práticas funerárias no passado, pode ser relacionado àquele dado à caça,
sobretudo às maiores. Porcos, queixadas e veados, antes de serem partidos, têm suas
patas amputadas e as vísceras retiradas. Entre os Yawanawa, a amputação dos braços e
pés é o tratamento dado a um personagem mítico que foi capturado, morto e devorado
pelos "espíritos da terra", maiyushinvo.36 Em todos esses exemplos, os corpos
parcialmente esquartejados, sejam de inimigos ou de caça, são sempre de "outros".
A divergência das versões sobre as práticas funerárias entre os Katukina no
passado – que deixo como parte inconclusa dada a impossibilidade de saber se eram
excludentes ou coexistentes – talvez apenas esteja trazendo à tona uma questão mais
complicada, que diz respeito ao estatuto dos mortos no mundo dos vivos (Carneiro da
Cunha 1978). As análises disponíveis até agora têm destacado que o rito endocanibal
entre os grupos pano não seria uma forma de opor vivos e mortos, em alguns casos
pretende-se mesmo que os mortos não são perigosos (Erikson 1986) e que o
endocanibalismo seria, na verdade, um ato de amor e compaixão (McCallum 1996:70).
Se esse bem pode ser o caso dos Matis e dos Kaxinawa, tenho minhas dúvidas no que
diz respeito aos Katukina.
Ainda que decidíssemos tomar a segundo versão do rito funerário, que fala
apenas em cremação do defunto, como fantasiosa, como interpretar os detalhes acerca
do esquartejamento parcial do corpo, do mesmo modo como inicialmente se prepara a
caça? Mesmo que se queira tomar esses detalhes como fictícios, por que representar os
mortos dessa maneira? Vivos e mortos opõem-se na concepção dos Katukina mais do
que parece ser o caso entre outros grupos pano. Fossem os Katukina endocanibais ou
não, hoje os objetos pessoais do morto continuam sendo destruídos e podem provocar a
mudança dos locais de moradia, devido ao medo que os espíritos dos mortos suscita. O

35
Observo que a incerteza sobre os ritos funerários dos Katukina no passado vêm desde os escritos de
Tastevin. Em um artigo de 1928, o missionário francês conta que ouviu de um Katukina no rio Acurauá
que eles guerreavam com os Kulina e os comiam em cerimônias grandiosas que duravam vários dias.
Os inimigos tinham suas cabeças "separadas do tronco e colocados sobre lanças como troféus" (:212).
Contudo, o próprio Tastevin pondera que ignora "o que há de verdadeiro nesta história".
36
Agradeço a Laura Pérez (comunicação pessoal), que pesquisou entre os Yawanawa, essa informação.
Os Katukina têm uma versão muito parecida deste mito (ver no quinto capítulo), mas dela não consta o
tratamento culinário dado ao personagem morto.
120

medo dos espíritos dos mortos está longe de ser exclusividade dos Katukina. Entre os
Kaxinawa, McCallum (1996:60) informa que os moradores de um aldeia recém-
fundada, que não dispõe ainda de cemitério, preferem viajar e enterrar o morto em outra
localidade a inaugurar um novo cemitério. Se não fossem perigosos não seriam
necessárias tantas precauções. Para afirmar que os espíritos do mortos não são temidos
entre os Matis, Erikson (1986: 199) contou de um jovem que identificou, sem receios,
um barulho como sendo de um espírito, que estaria no local apenas verificando a
exatidão de suas palavras. Os Katukina também fazem chacotas corriqueiramente, riem
e dizem com um certo deboche que os yushinvo rondam o lugar; mas nas situações em
que há mesmo um morto envolvido, o tom e a postura mudam solenemente. Lembro-me
de uma noite em que a cunhada de Mani pediu para que parássemos de conversar sobre
os espíritos dos mortos, sob pena de atraí-los.
Há dois aspectos a serem ainda discutidos, que dizem respeito à morfologia
social e ao destino pós-morte. No que diz respeito ao primeiro, Erikson chama a atenção
para o sistema de parentesco a fim de reforçar sua tese de que vivos não se opõem
radicalmente entre os "grupos pano". Cito-o integralmente:

"(…) há uma diferença muito marcada entre os Pano e outros grupos amazônicos, que
se pode talvez atribuir à sua estrutura social quase-linhageira (pseudo-kariera). Qualquer
que seja, o morto não é comido porque é inimigo, como é o caso entre os Guayaki (H.
Clastres 1968). É exatamente o contrário: se se come o morto é precisamente porque ele
não é um inimigo, mas pode vir a ser caso não seja reciclado (como será igualmente o
nome…)" (1986:200).

Contudo, os contornos australianos do sistema de parentesco de tantos grupos


pano não se verifica entre os Katukina, nem a reciclagem, via gerações alternadas, dos
nomes se faz tão simetricamente, como vimos antes. Não é o caso de discutir em
detalhes aqui o sistema de parentesco Katukina (ver apêndice 1). De todo modo, ele
pode ser definido como uma variante do dravidiano, com o reconhecimento de três
critérios básicos de classificação: nível geracional, gênero e distinção entre
consangüíneos e afins. Entretanto, diferentemente dos Matis e de outros grupos pano, os
Katukina mantêm a distinção entre consangüíneos e afins apenas nas três gerações
centrais, neutralizando-a nas duas distais37 (Lima 1994a). O perfil kariera de alguns
grupos pano (além dos Matis, podemos citar os Kaxinawa, Marubo e Yaminawa) define
seus contornos com o uso recíproco dos termos de parentesco entre as gerações
121

alternadas. Às vezes generalizado como característico de todos os povos de língua pano,


o perfil kariera, que tem na onomástica seu suporte mais evidente, não se verifica entre
os Katukina.38
O cálculo sociocentrado do kariera está implicitamente destacado na citação
acima, justamente para fazer sobressair a idéia de reciclagem dos mortos, mais ou
menos como os Matis fazem com os nomes (Erikson 1993a). A hipótese é bastante
sedutora, além de elegante, mas não está claro o que o autor quer dizer com a idéia de
"reciclagem dos mortos"39. Haveria aí a idéia de reencarnação, como quer a
interpretação de Townsley (1993) a respeito da repetição dos nomes entre os
Yaminawa? Outros grupos sul-americanos, penso particularmente em alguns povos de
língua jê, reciclam seus nomes sem que se possa postular com isso a neutralização das
relações entre vivos e mortos (Carneiro da Cunha 1978).
Comparados aos Matis ou aos Kaxinawa, a organização social dos Katukina
acaba por parecer "fluída" e podemos então passar ao segundo aspecto que mencionei, o
destino dos mortos. O despojamento do defunto, para que se complete a integração à
vida celeste, é duplo. Os procedimentos funerários executados pelos parentes do morto
conformam apenas a primeira parte do processo de despojamento. A segunda parte
completa-se com a chegada do yushin do olho ao céu e com intervenção de um
demiurgo que lhe proporciona um novo corpo, dessa vez, imperecível. Em sua análise
sobre a morte entre os Kaxinawa, McCallum (1996: 51) – comparando-os com os
"Tupi" (em particular com os Araweté) e dessa comparação tirando conseqüências
maiores que não cabe discutir aqui40 – afirma: "os Kaxinawa costumavam tomar a si a
responsabilidade de despojar da memória a carne e os ossos. O lugar da transformação
do mortal em imortal era a terra, não o céu, o 'interior' não o 'exterior', e os agentes da

37
Como ocorre também entre os Uni (Frank 1994: 182-184) e os Shipibo-Conibo (Kensinger 1995a: 171
e 174)
38
Não excluo a possibilidade de que esse perfil kariera tenha existido no passado, uma vez que há
"vestígios" dele. Assim, nos casos em que a transmissão onomástica se faz paralela e alternadamente, o
pai ou a mãe, aquele que escolheu o nome do pai ao filho ou da mãe à filha, chama seu (sua) filho(a)
pelo mesmo termo de parentesco que reserva a seu pai ou a mãe. Entretanto, a transmissão onomástica
repercute no sistema de parentesco apenas nestes casos. Quando a transmissão onomástica se faz entre
gerações adjacentes e cruzadas não há qualquer eco no sistema terminológico (Lima 1994a e 1997).
39
Cabe dizer a idéia de "reciclagem dos mortos" foi apresentada por Erikson apenas neste artigo de 1986,
o primeiro que escreveu após ter feito pesquisa de campo entre os Matis. Em artigos posteriores, o autor
não retornou ao tema. De todo modo, dialogo com essa idéia aqui pelo fato de que o artigo de 1986
marcou a etnologia sul-americana por defender a tese de que vivos e mortos não se opõem radicalmente
entre os grupos pano. E, em razão dessa tese, tem sido citado em alguns trabalhos sobre a morte nas
sociedades indígenas sul-americanas (Chaumeil 1992 e 1997).
40
Para um comentário crítico ao artigo de McCallum (1996), ver Vilaça (1998).
122

transformação eram homens, não deuses". O despojamento do morto entre os Katukina


se faz não por um dos termos, mas por ambos: no céu e na terra, interior e exteriormente
e pelas mãos dos homens e dos deuses. Antes abordei os procedimentos funerários
feitos na terra e pelas mãos dos homens. Aqui cabe destacar que a partir da troca de pele
no céu, os mortos conquistam a imortalidade tão desejada por intermédio de um
demiurgo que já havia tentado fazê-los eternos na própria terra. Um demiurgo, não custa
lembrar, que é designado justamente como koka, um termo de afinidade reservado aos
irmãos da mãe. A presença de Koka Notowani (ou de Koka Pino Txari) como anfitrião
celeste dos mortos, não apenas sugere a ruptura desses com os vivos. Faz mais do que
isso: marca decisivamente a compreensão da morte como cisão radical entre vivos e
mortes e da alteridade paradigmaticamente como afinidade (Carneiro da Cunha 1978;
Viveiros de Castro 1993 e no prelo).

O tema da troca de pele ou da aquisição de um novo corpo no céu não é novo


entre os grupos pano, que eu saiba foi mencionado pela primeira vez entre os Marubo
(Montagner Melatti 1985:66 e Montagner 1996b:27) e, do mesmo modo como ocorre
entre os Katukina, associado ao esquecimento do mundo dos vivos41. Entre os próprios
Kaxinawa ocorre também, uma vez que uma outra antropóloga dedicada ao estudo deste
grupo menciona que o yuxin do olho, no céu, "adquire um novo corpo e novas roupas" e
que no canto para despedir o morto, seus parentes o exortam a ir "vestir a roupa amarela
do Inca no céu" (Lagrou 1998: 26 e 143). 42 Mais recentemente o tema foi identificado
entre os Yawanawa (Carid 1999:140-147), entre os quais o huru yuxin tem o corpo
pendurado como uma roupa numa árvore e purificado por um beija-flor.43
A idéia do duplo despojamento que identifiquei entre os Katukina talvez possa
ser estendida aos Marubo, Kaxinawa e Yawanawa. Entretanto, todos os grupos

41
Esse mesmo efeito "amnésico" é destacado pelos próprios Marubo (Montagner Melatti 1985-85-86)
para justificar o endocanibalismo, como ocorre também entre os Kaxinawa (Kensinger, 1995:234) e os
Amahuaca (Dole 1974).
42
As análises de Cecília McCallum (1996) e Elsje Lagrou (1998) sobre a morte divergem particularmente
neste aspecto, mas não devo me estender em comparações sobre as análises a respeito dos Kaxinawa.
43
Observo que o beija-flor é chamado pelos Katukina de pino e compõe o nome de um dos demiurgos
que recepciona os mortos no céu, Koka Pino Txari. No apêndice de mitos no final de sua dissertação de
mestrado, Carid (1999: 195-197) oferece duas versões sobre o yama vai (caminho dos mortos) dos
Yawanawa e na primeira delas consta que é após ter a tatuagem fixada em seu rosto por Txapa (um
bufão que recepciona os mortos no céu) que o morto esquece os parentes na terra – reaparece então o
efeito "amnésico" da troca de pele que comentei na nota um pouco acima. Destaco esta versão aqui para
chamar a atenção para o jenipapo com o qual é feita a tatuagem. Tanto entre os Katukina quanto entre os
Marubo (Montagner Melatti 1985) o jenipapo foi oferecido em tempos remotos como meio de obterem a
vida eterna, que eles, entretanto, recusaram (cf nota 1).
123

mencionados, diferentemente dos Katukina, têm um sistema de parentesco "australiano"


e afirmam com mais convicção o passado endocanibal. Se a organização social dos
Katukina pode ser tida como "fluida" e suas versões sobre os ritos funerários do passado
podem ser consideradas vacilantes, o mesmo não se passa com os demais grupos
citados.
A estreita vinculação do endocanibalismo com a organização social, para supor a
neutralização ou mesmo a continuidade entre vivos e mortos, talvez não possa ser tão
generalizada, mesmo entre os grupos pano de feição kariera. O duplo despojamento
nesses grupos permite recuperar um tanto de individualismo que está envolvido no
processo da morte e no destino do morto e, principalmente, rever a posição que os
mortos ocupam em relação aos vivos. No caso dos Marubo (as informações disponíveis
sobre o processo da morte neste grupo são as mais parecidas com a etnografia da morte
elaborada aqui a respeito dos Katukina), o caminho do céu, ainda que seja definido pelo
pertencimento a cada uma das seções, está cheio de perigos que os espíritos dos mortos
têm que vencer por suas próprias virtudes (Montagner Melatti 1985). Em todos os
grupos citados há uma transformação radical do corpo, tão radical que não perecem
mais, ao contrário, vivem eternamente. Se o destino do yushin do olho pode ser
considerado irrelevante para a ação do funeral, como disse Townsley (1988:115) a
respeito dos Yaminawa, não o é para a compreensão do conjunto de problemas postos
pelo fato da morte.
A observação de Townsley (op. cit.) destacada acima ajuda a explicar também a
negativa de Erikson (1986) à oposição entre vivos e mortos. Penso que dois motivos
relacionados conduziram a análise do autor na direção oposta: primeiramente, o parco
desenvolvimento de etnografias dedicadas aos Pano até então; em segundo lugar, os
poucos trabalhos disponíveis concentravam-se quase que exclusivamente (se não
exclusivamente) no rito endocanibal, deixando de lado, talvez como questão menor, os
destinos dos espíritos que animam os corpos. Destinos que julgo fundamentais para
compreender o que afirma a escatologia katukina.

Como deve estar claro, a leitura que faço das concepções sobre a morte entre os
Katukina evoca, além do tema da afinidade potencial, diretamente a teoria do
perspectivismo ou multinaturalismo proposta por Viveiros de Castro (1996a), numa
continuidade de suas reflexões sobre a corporalidade ameríndia. Sem querer me
estender em detalhes, no perspectivismo certos seres da natureza – espíritos, animais,
124

plantas, astros e mesmo artefatos – são dotados de uma subjetividade semelhante à


humana. A atribuição de subjetividade aos não-humanos dota-os de "pontos de vista"
que, então, se vêem como pessoas e interagem com os humanos nestes termos. Um
ponto de vista partilhado por uma comunidade de espécies que vai além dos humanos
propriamente ditos altera radicalmente os termos como cada um deles compreende as
relações em que estão situados. Nas palavras do autor (:117): "tipicamente, os humanos,
em condições normais, vêem os humanos como humanos, os animais como animais e os
espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem os
humanos como animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vêem os humanos
como espíritos ou como animais (predadores)". A idéia central é a de um "espírito
humano" comum que unifica, enquanto o corpo diferencia: "não há mudança 'espiritual'
que não passe por uma transformação corporal" (:131). Sugerindo a aplicabilidade do
perspectivismo aos estudos sobre a descontinuidade ontológica entre vivos e mortos,
Viveiros de Castro afirma: "a distinção fundamental entre vivos e mortos passa pelo
corpo e não, precisamente, pelo espírito; a morte é uma catástrofe corporal que
prevalece como diferenciador sobre a comum 'animação' dos vivos e dos mortos"
(:134).
Tendo em conta essa sugestão e retornando aos Katukina, acredito que há
argumentos suficientes para se postular uma separação radical entre os vivos e os
mortos. Se o corpo faz a diferença, como a literatura etnológica sul-americana vem
salientando há algum tempo (Seeger et alii 1987[1979]), não me parece possível
postular, entre os Katukina, a neutralização das relações entre vivos e mortos nem sua
continuidade. Na concepção katukina – que é, aliás, bastante difundida entre outros
grupos pano – todo corpo possui dois espíritos principais – o do corpo propriamente
dito, yora vaka, e o do olho, wero yushin – e ambos são transformados a partir do
perecimento do corpo. É compreensível a afirmação de que um corpo só se mantém
com seus dois espíritos, mas não deve passar desapercebido que a forma corporal dos
espíritos antes da morte do próprio corpo é irrelevante, simplesmente presume-se que se
confundem. Entretanto, com a "catástrofe corporal" causada pela morte, a forma física
do espírito, por falta de expressão melhor, ganha importância. Desalojado de seu
receptáculo, os espíritos passam então por transformações que são propriamente
corporais. Por um lado temos as transformações do espírito do corpo (yora vaka): como
um bicho-preguiça, como um ser infante de corpo robusto e adornado, como um
macaco-preto ou em sua forma hedionda nas proximidades do cemitério ou qualquer
125

outra como se apresente. O yora vaka de um morto é como um fantasma, mas não é
concebido como um ser incorpóreo. Por outro, e que me parece mais importante, temos
a revivificação do espírito do olho (wero yushin), marcada pela modelação de um novo
corpo, cancelando a sua subjetividade, os seus afetos terrenos.
Para finalizar, é necessário dizer que um dos demiurgos mencionados na
recepção do céu, Koka Pino Txari, que assopra o coração do wero yushin de um
falecido, modelando seu novo corpo, é o mesmo que, em tempos primordiais, já havia
transformado os homens em animais, instaurando uma primeira descontinuidade –
retomarei esse tema no quinto capítulo. De tudo o que foi exposto até aqui, é claro que a
construção dos corpos depende de processos socio-fisiológicos que envolvem a
moderação da voz, dos gestos e da alimentação, entre outras coisas. Mas, se alguma
liberdade interpretativa for permitida, talvez seja o caso de pensarmos o demiurgo como
um gestor de transformações corporais, um "estilista cósmico"44, sempre envolvido com
a aparência externa dos corpos, mas sem alterar significativamente a sua essência que
persiste plenamente humana.

44
De um modo mais literal, Kako preferiu associar, no contexto da morte, Koka Pino Txari ao "médico-
cirurgião", dado que ambos "fazem operações" para restituir a vida.
126

CAPÍTULO 4
Quem tem a palavra: o xamanismo Katukina

"C'est Rono-yonchi, l'Esprit Serpent, qui enseigne aux sorciers


l'art de guérir, l'art de lancer des sorts, le moyen de monter au
ciel et de causer avec Kana, Tyuru et les sprits des morts. C'est
sur les bords de l'Acuraua qu'il est apparu à Mame: ce qui veut
dire sans doute que c'est là qui Mame a fait son apprentissage
de guérisseur. Rono-yonchi était monté dans un arbre, il était
d'une beauté éblouissante, semblable à l'arc-en-ciel, il enseigne
à Mame à absorber par le nez le tabac torréfié en poudre, à
fabriquer la liqueur de honé, à l'absorber sans qu'elle fasse de
mal, à chanter les mélodies sacrées, à faire les incantations, etc,
etc" (Tastevin 1924:92)

Neste capítulo, discuto a iniciação às atividades xamânicas, as práticas de cura e


os atributos dos xamãs (romeya) e rezadores (shoitiya) entre os Katukina. Shoitiya é
apenas uma das denominações possíveis para "rezador", as outras são: koshoitiya, kosa
e hewen vanaya. Shoiti é simplesmente a palavra com a qual designam os cantos de
cura, que acrescida do atributivo ya, designa os rezadores. Assim, sua tradução mais fiel
é "com os cantos de cura" ou, traduzindo livremente, "donos de canto". Kosho é o verbo
soprar ou o substantivo sopro, que acrescido do sufixo instrumental -ti e do atributivo
ya, denota alguém que atua "por intermédio do sopro". Embora as traduções de shoitiya
e koshoitiya sugiram claramente a diferenciação das técnicas de que lançam mão cada
um dos especialistas, os dois termos são usados comumente como sinônimos. Não
obtive tradução para o termo kosa e hewen vanaya pode ser traduzido como " com a
palavra (vana, palavra/fala; ya, atributivo) dele (hewen)". 1 Xamãs e rezadores têm
distintos papéis, atributos e status frente ao conjunto da aldeia.

1
Esta pluralidade de termos para designar os especialistas xamânicos não é exclusividade dos Katukina,
ocorre também entre os Yawanawa, vizinhos seus no rio Gregório, os Kaxinawa e os Shipibo-Conibo.
Segundo Pérez (1999:38), os Yawanawa designam os especialistas xamânicos como xinaya, shuintia,
tsimuya, niipuya, yuvehu e kushuintia, além do romeya, emprestado dos Katukina. Na tentativa de
esclarecer cada um deles, a autora vincula-os a determinadas técnicas: "o xinaya e o shuintia com o
shuanka (reza); o yuve com o meka (canto); o kushuintia com o kushuaka (assopro); o niipuya com os
rau (folhas do mato)". E continua com uma importante observação: "mas não é estranho constatar que
um especialista determinado conheça vários ou todos estes métodos e os utilize, de forma que adune em
si quase todas as possibilidades de denominações existentes". Entre os Kaxinawa, conforme Lagrou
127

Antes de iniciar, entretanto, é necessário dizer que conheci apenas rezadores –


treze, no total. Atualmente não há mais xamãs (romeya) entre os Katukina. O último
deles, Tobi, morreu há cinco anos na aldeia do rio Gregório. O fato de não haver
nenhum xamã em atividade nos dias de hoje não implica que seu papel tenha
desaparecido em definitivo nem que não se possa falar em xamanismo. A primeira
negativa é dos próprios Katukina. Circula entre eles a expectativa de que novos xamãs
surgirão, o próprio Tobi teria profetizado que algum sucessor surgiria após a sua morte,
mas até agora ninguém reivindicou o seu lugar. O filho de Tobi, Notxo, recebeu
ensinamentos dele e é um dos rezadores, shoitiya2, da aldeia do rio Gregório. Contudo, a
distinção que se faz entre xamãs e rezadores não é genética em sentido algum – não se
postula que rezadores, por acúmulo de conhecimentos, possam se tornar xamãs nem que
o papel do xamã seja transmitido hereditariamente – e ninguém me apontou Notxo
como o sucessor de Tobi. "Ele é só rezador mesmo", era o que as pessoas sempre
diziam quando indiretamente sugeria a possibilidade de Tobi ter revelado todos os seus
conhecimentos a seu filho.
Quanto à segunda negativa, parece-me perfeitamente admissível falar em
xamanismo, ainda que o lugar do xamã nos dias de hoje esteja vago. A vacância,
entretanto, não implica em rompimento ou ausência de trato com as coisas do outro
mundo. Nos capítulos anteriores tentei mostrar como as relações que os Katukina
estabelecem entre si e seus cuidados com os alimentos, como se portam, o que e como
comem, estão todas permeados pelo cuidado de se conservar o equilíbrio com a
alteridade representada pelos yushinvo, de humanos e animais, vivos e mortos. Não me
atrai sequer a idéia de falar em "xamanismo sem xamãs". Para isso seria necessária a
adesão a um certo essencialismo que restringe o campo xamânico apenas àqueles
especialistas que vagueiam por toda a geografia cósmica e são capazes de sugar objetos
patogênicos os mais diversos do corpo dos doentes, o que não é o caso. A presença ativa
e abundante dos rezadores de algum modo estabelece o trato especializado com a

(1998) há o huni dauya (especialistas em remédios doces), o huni mukaya (especialista em remédios
amargos) e o yuxian (mediador entre homens e espíritos). Entre os Shipibo-Conibo, Saladin d'Anglure e
Morin (1998:50), falam da existência do onánya (xamã, que recebe assistência dos espíritos das plantas,
em particular do tabaco e da ayahuasca), do meraya (grande xamã, que conta com o auxílio de espíritos
superiores e viajam por outros mundos) e do yobé ("que controla a técnica de dardos mágicos com vistas
a fins ofensivos ou defensivos).
2
Daqui em diante farei uso apenas de shoitiya para referir-me aos rezadores, esse é o termo usado com
mais freqüência pelos próprios Katukina.
128

alteridade de que falávamos.3 O título de mediador de dois mundos, comumente


outorgado aos xamãs, cabe perfeitamente aos rezadores katukina. Certamente em menor
extensão, mas menor extensão, não é o mesmo que nenhuma.
Feitas as devidas ressalvas, a maior parte das informações disponíveis neste
capítulo trata da atuação dos rezadores.

O xamanismo dual

A falta de xamãs nos dias de hoje deixou descobertas algumas assistências que
somente eles podem realizar. Mas antes que me adiante em informações, vejamos como
se diferenciam os dois especialistas.
Primeiramente, xamãs e rezadores diferenciam-se no tipo de assistência que
podem (e mesmo devem) oferecer: coletivas, no primeiro caso; individuais, no segundo
– embora o xamã possa também realizar consultas individuais, mas não o contrário. No
que diz respeito à assistência coletiva, os xamãs poderosos podem com seus cantos
atrair a caça para a aldeia: queixadas, porcos e macacos – atraídos com canções
específicas para cada espécie. Saber os cantos que atraem os animais, entretanto, não faz
de um homem um xamã. Um dos rezadores katukina conhecia e permitiu que eu
gravasse dois desses cantos, um para atrair queixadas e outro para macacos. Mas o fato
dele conhecê-los e poder entoá-los não tinha qualquer relação com a eficácia deles, pois
apesar dele saber a letra e a entonação corretas – que aprendeu apenas ouvindo o
falecido xamã – , desconhecia os segredos específicos da comunicação dos xamãs com
os animais.4 E, se é possível expressar-se assim, os animais não o ouviam.
Apenas os xamãs sabem curar e vingar feitiços, ainda que estes feitiços sejam
direcionados individualmente – entre os Katukina as acusações, quase sempre, são feitas
aos Yawanawa. No mais, fazendo uso do ayahuasca (oni), os poderes dos xamãs
permitem também viagens cósmicas, com seu corpo transmutado em bichos, nas quais
aprendem mais e mais acerca do mundo sobrenatural, ganhando poderes renovados que,
pretende-se, devem ser usados em benefício da coletividade.
Já no que diz respeito às assistências individuais, a diferença sempre salientada é
aquela das técnicas. Os xamãs, por sucção, podem extrair objetos patógenos que afligem

3
Essa idéia aplica-se melhor a grupos em que falta o especialista em assuntos xamânicos, como é o caso
dos Parakanã (Fausto 1997:303).
4
Já seus próprios cantos de cura, ele não permitiu que eu gravasse.
129

seus pacientes. Estes objetos são de vários tipos: vo’o shoko ("pedra-cabelo", numa
tradução literal e que são chumaços de cabelo), paka (ponta de lança feita de taboca) e
shao (pedaços de ossos) ou mesmo rome (traduzido como pedra, embora não se
confunda com shoko). Todos eles enviados por feitiço, que somente ele pode curar.5 Os
atributos dos rezadores, como eles próprios salientam, são bem mais modestos.
Aos rezadores cabe o tratamento individual de todos os distúrbios fisiológicos,
exceto aqueles causados por feitiço. Estes distúrbios fisiológicos incluem gripe, corisa,
dores no corpo, dores de cabeça, febre, vômitos e diarréia. Várias pessoas doentes
consultam um rezador antes de se dirigirem ao agente de saúde da aldeia ou ao hospital
de Cruzeiro do Sul à procura de tratamento médico.6 Isto porque, embora os distúrbios
fisiológicos atormentem o corpo, eles podem ter suas causas originadas fora dele. Como
vimos nos capítulos anteriores, as causas mais freqüentemente apontadas são:
desrespeito a alguns dos tabus alimentares e a presença de espíritos de pessoas mortas
tentando atrair pessoas queridas para junto de si. Como há variação no grau de
conhecimento dos rezadores, não é indicado aos homens pouco instruídos no domínio
xamânico tratarem as causas do segundo tipo.
Há duas modalidades de cura. A primeira e mais freqüente consiste em cantos
mágicos durante a noite, intercalados com sopros e aspirações de rapé, sobre o corpo do
doente. Os cantos ou rezas (shoiti) atraem os espíritos que auxiliam na cura e, por isso,
toda a assistência deve ser feita durante a noite, pois durante o dia a movimentação das
pessoas dispersa a concentração do rezador, que não pode assim convocar os espíritos.
A realização das sessões de cura durante o dia ocorre apenas em situações excepcionais,
quando alguém está sob risco de vida iminente. Na segunda modalidade, o rezador
canta, durante toda a noite, sobre potes pequenos (shomo7) com caiçuma ou mesmo leite

5
O romeya katukina parece-me bastante assemelhado, sobretudo em sua dieta e em suas técnicas, ao
romeya dos Marubo (Montagner Melatti 1985:401 e ss) e ao mukaya dos Kaxinawa (Lagrou 1998:105-
112). Se os xamãs Katukina e Marubo são conhecidos por ter rome em seus corpos, os xamãs katukina
têm o muka, amargor, também materializado em objetos mágicos, como pedras e dardos.
6
Na aldeia do rio Gregório as coisas se passam de um modo um pouco diferente, provavelmente devido à
presença da MNTB. Nos quinze dias que estive na aldeia do rio Gregório não presenciei nenhuma
sessão de cura, embora saiba que são ainda realizadas. A rotina da MNTB prevê o atendimento diário à
saúde em dois horários. Se na aldeia do rio Campinas os rezadores são os primeiros a serem procurados
em casos de doenças, parece-me que no rio Gregório são os missionários. Os rezadores são requisitados
apenas nas situações em que os remédios não surtem o efeito esperado.
7
Como entre os Yawanawa (1999:120 n. 163), o shomo dos Katukina é um pote de cerâmica bojudo, de
aproximadamente 20 cm de altura, com o gargalo estreitado e sem decoração. São bem menores que os
chomo dos Shipibo-Conibo (Gerbhart-Sayer 1986; Illius 1994) que chegam a ter 80 cm de altura e 1 m
de diâmetro e são decorados com desenhos. Os shomo dos Katukina são mais parecidos com os chomo
dos Marubo – num artigo de Montagner Melatti (1977) consta a foto de um exemplar que tem 36 cm de
130

em pó, que ao raiar do dia é dado ao doente para beber. No caso de coceiras e
ferimentos ou dores em partes localizadas do corpo, a caiçuma previamente rezada é
esfregada sobre a pele da pessoa doente. O rezador não precisa entoar os cantos de cura
sobre o doente nem estar próximo dele.
A opção de rezar sobre o corpo do doente ou sobre os potes de caiçuma depende
também da gravidade da situação.8 Na primeira alternativa a reza surte efeito mais
rápido, o que justifica o fato de ser usada com mais freqüência, embora possa ser
preterida se ocasionar, por exemplo, o choro de uma criança numa situação que exige
pouca pressa. Há quem diga que escolher uma ou outra das opções é o mesmo que
escolher entre a injeção ou os comprimidos, sendo que a primeira, embora possa ser
incômoda, debela com maior rapidez o mal.
A rigor os xamãs podem praticar todas as modalidades de cura que os rezadores,
mas não o contrário: os rezadores não são capazes de extrair objetos patogênicos nem de
atrair os animais em viagens cósmicas.9

altura e 30 de diâmetro –, embora não tenham a base pontuda e sejam um pouco menores. No mesmo
artigo, a autora registrou também que há entre os Marubo o oni chomo, utilizados em sessões de
ayahuasca (oni), que é menor que o primeiro. Na última vez que estive em campo, em 1998, havia
poucos shomo em uso nas aldeias katukina, embora várias mulheres saibam ainda fabricá-los. Pouco a
pouco os shomo estão sendo substituídos (as panelas já foram há mais tempo) por pequenas moringas de
alumínio (que se assemelham à forma do shomo), encontradas com facilidade no comércio das cidades
da região.
8
De acordo com Pérez (1999:120-121), os Yawanawa também rezam sobre a caiçuma e sobre o corpo do
doente. Ainda que a autora não tenha presenciado a segunda forma, suspeita que é um recurso ao qual
recorrem apenas nos casos considerados mais graves.
9
A presença de dois especialistas xamânicos foi já identificada em outros grupos amazônicos. Até onde
sei, na família pano, os Marubo, também distinguem xamãs (romeya) e curadores/rezadores (quechitxó),
cf. Montagner Melatti (1985:252, 401). Segundo Calávia Saez (1995:106), os Yaminawa brasileiros
distinguem niumuã ("doutor") e koshuiti ("segundo doutor"). O autor afirma que há uma diferença de
grau entre eles e o niumuã teria maiores poderes dado sua habilidade para matar. Hugh-Jones (1996a)
estabeleceu um padrão para diferenciar os xamãs dos donos-de-canto entre os povos arawak e tukano do
alto rio Negro, tomando em consideração o treinamento, a cura, os atributos, as obrigações e o status
social. Entretanto, os dois especialistas xamânicos dos Katukina não se adequam bem à tipologia
estabelecida pelo autor. Assim, por exemplo, Hugh-Jones, na cura, localiza o xamã como alguém que
efetua os ritos de cura "fora de casa", sendo "fisicamente ativo" e "em contato direto com o paciente", ao
passo que os donos-de-canto permanecem "dentro de casa", são "fisicamente passivos e sem contato
com seus pacientes." Essa caracterização não se aplica aos xamãs e rezadores katukina. Como vimos
antes, os rezadores não mantêm contato com seus pacientes apenas em casos de dores e feridas em
partes localizadas do corpo. Na maior parte das vezes, entretanto, atuam diretamente sobre o paciente,
fora ou dentro de sua própria casa. Não é raro que um rezador passe longos dias fora de sua casa,
atendendo os doentes nos locais onde eles próprios moram. A respeito do status social, Hugh-Jones
caracteriza os xamãs como pessoas mais jovens, fisicamente ativas e temidas enquanto os donos-de-
cantos são mais velhos, fisicamente inativos e respeitados. Entre os Katukina, xamãs e rezadores são
pessoas mais velhas e respeitadas, embora isso não os livre de algum temor. Quando de sua morte, Tobi
era o mais velho entre todos os Katukina.
131

O sopro mágico

Cantar é uma atividade que caracteriza indistintamente xamãs e rezadores.


Todos os procedimentos relativos à cura necessariamente supõem a entonação ritmada
de certas palavras. Contudo, os cantos são entrecortados por pausas para aspirar rapé
(rome poto) e sopros, muitos sopros, buscados no fundo do peito, e que depois de horas
entremeiam-se com as palavras, distorcendo-as a ponto de torná-las incompreensíveis.
Shoitiya e koshoitiya, como vimos, são utilizados muitas vezes como sinônimos,
sem se ater às técnicas – canto de cura e sopro, respectivamente – que a tradução de
cada um dos termos sugere. Entretanto, os Yaminawa da fronteira peruana, que
apresentam também os dois termos, diferenciam shuiti e koshuiti. Segundo Townsley
(1988:138 e 1993: 457), os primeiros seriam os cantos de feitiçaria e os segundos
seriam os cantos de cura. Shuiti teria sua raiz na onomatopéia "shoo-shoo-shoo"
associada a uma respiração descontrolada. Já o koshuiti teria sua raiz na onomatopéia
"kosh, kosh, kosh" associada aos sopros dos xamãs, regulados por uma respiração
controlada. Uma das razões dos botos (kosho) serem temidos é justamente que seus
sopros são descontrolados enquanto sua designação vernácula sugere o contrário. Os
Katukina, que também designam o boto e o sopro de kosho, não me apresentaram essa
distinção e usam os dois termos, shoiti e koshoiti, como sinônimos. Entre os Yawanawa,
segundo Pérez (1999:150-152), alguns especialistas xamânicos são designados também
como kushuintia e a técnica usada por eles é o sopro. Embora essa seja a técnica por
excelência para veicular feitiços, é usada também em terapias curativas e a autora
pondera que o sopro não é em si mesmo "uma técnica para produzir dano, seu efeito
depende da intenção do kushuintia". As variações nas concepções dos três grupos são
significativas, mas a sinonímia que os Katukina fazem do shoitiya e do koshoitiya
parece-me mais próxima à concepção dos Yawanawa que não têm o sopro como algo
essencialmente maléfico. Seja como for, entre os Katukina, os sopros não devem ser
desconsiderados, são parte indissociável dos cantos de cura e aparecem em mitos e no
destino pós-morte, sempre relacionados à criação da vida.
No mito de Shoma Wetsa, que trata do surgimento dos diversos povos que
habitam a terra, a velha mulher de metal, enquanto ardia na fogueira aconselhou seu
filho a retirar cipó e, em seguida, a mascar e assoprar em direção do nascente, para que
surgissem novos habitantes na terra, katukina como ele. Ele não ouviu direito e fez tudo
ao contrário: tirou o cipó, mascou e assoprou em direção ao poente, fazendo surgir os
132

diferentes nawa: kulina e brancos, peruanos e brasileiros. Mais tarde, para corrigir o
erro, ele mascou um pequeno pedaço de cipó e assoprou em direção do nascente e então
se fez acompanhar de outros Katukina. (Lima 1994a:170-177 e André Katukina e Sena
1998:18-33)
No capítulo anterior foi descrito o mito de restituição da vida após a morte de
uma criança. A mãe dela chorava quando apareceu Koka Notowani, que a ressuscitou. A
mãe, assustada, chorou. O demiurgo, surpreendido assim com o choro da mulher vendo
a filha viva, pensou que a tivesse entristecido e resolveu ir para o céu restituir a vida
entre os wero yushinvo, espíritos do olho. A partir de então, o wero yushin de uma
pessoa morta, após vencer todos os obstáculos para chegar ao céu, é recebido por Koka
Notowani que assopra seu coração e faz com que o morto ganhe uma nova vida, um
novo corpo imperecível.
As grandes cobras, imortais por terem ficado com a pedra que garante a vida
eterna e que ocupam o papel principal na eleição de xamãs e rezadores, como veremos a
seguir, são conhecidas também por sopros fortes, verdadeiros estrondos, quando sobem
à superfície das águas.

Tornando-se um shoitiya

Inicio esta sessão com um excerto de meu próprio diário de campo, no dia 14 de
outubro de 1997, quando Mekon, um aprendiz de rezador, me relatou sua iniciação aos
segredos das rezas (shoiti). Após a exposição de seu próprio relato, aponto aspectos
significativos.
Mekon começou dizendo que há muito tempo seu avô (txaitxo) contava uma coisa que
ele não acreditava, mas depois que aconteceu com ele, ele passou a acreditar: o
encontro com a cobra grande. Mekon morava no igarapé da Burra, acima do Sete
Estrelas. Um dia pegou a canoa e foi caçar paca. A Mashi, sua segunda mulher (Mekon
tem duas mulheres), o acompanhava. Ele saiu viajando até chegar em um lago. Já
próximo do lago, ele viu rastro de capivara.
Tinha uma canarana alta no lago. Ele pegou uma vara para cutucar a canarana. No
meio da canarana tinha um buraco e ele pensou que uma capivara ou um jacaré
pudesse estar ali. Ele então cutucou o buraco: uma, duas, três vezes. Na última vez que
ele cutucou, a canarana subiu bem alto.
No mesmo instante o corpo dele ficou cheirando cobra, ele teve vontade de vomitar,
estava zonzo. A Mashi ficou olhando para ele. Ele não sabia o que estava sentindo.
Resolveu cutucar a canarana de novo e os olhos dele rodaram, ficou tudo escuro.
Não havia mais jeito de continuar a caçada. Ele sentia-se tão zonzo que a Mashi foi
quem varejou no caminho de volta. Quando chegou em casa, Mekon sentia que estava
bêbado, como se tivesse bebido cachaça.
133

Ele queria tomar banho e dormir. Mepe, sua primeira mulher, quando soube o que
aconteceu, mandou ele cheirar rapé (rome poto), para tornar-se rezador. Ele disse que
não queria, mas cedeu e tomou o rapé que ela ofereceu.
Quando Mekon dormiu, apareceu no sonho um homem. Este homem dizia que Mekon
tinha fugido dele, que não era uma cobra o que ele tinha visto:
— "Você teve medo. Se tivesse me cutucado bem forte eu daria um monte de coisas
boas para você, mas você só me triscou".
Ainda no sonho, Mekon explicava que não correu de medo, mas sim porque sentiu
coisas estranhas em seu corpo. O homem do sonho dizia novamente:
— "Era eu. Se você tivesse me cutucado com mais força você veria coisas boas, mas
você teve medo. Daqui uns dias você vai ser curador".
Então, no sonho, ele começou a aprender as rezas. De repente, um menino chorou e
ele acordou.
Mekon contou o sonho para a Mepe e a Mashi. Mepe disse:
— "Está vendo? Você vai ser rezador".
Passou um mês e o filho do sogro dele (ou seja, irmão da Mepe) adoeceu. A Mepe fez
caiçuma para ele rezar. Ele não queria, mas resolveu rezar para "experimentar". Ele
rezou como havia aprendido no sonho e a Mepe levou a caiçuma para o doente beber.
O menino tomou a caiçuma e logo dormiu. Quando acordou, o menino estava todo
suado, não tinha mais febre. Mekon havia curado o garoto. Perguntei se era o homem
do sonho que ensinava a reza. Ele disse que este homem lhe havia dado uma mulher
que o ensinava a rezar.

Partirei da experiência de Mekon para mostrar como três aspectos repetem-se no


relato de outros rezadores: (i) o encontro com a "cobra grande"; (ii) o sonho que revela
os segredos da cura; (iii) a iniciativa da mulher de Mekon para que ele se tornasse um
rezador.

Os segredos das cobras

Seja para tornar-se um romeya (xamã) ou um shoitiya (rezador/curador), um


homem deve encontrar uma cobra que lhe revela os segredos da cura. Caçando, a
caminho de casa ou mariscando, a cobra aparece no caminho de um homem, que sente
estranhas sensações em seu corpo – mudança de cheiro (o corpo cheira a cobra),
turvamento da visão, tonturas e calafrios. Estes encontros com as cobras são
interpretados como eleição, uma indicação de que a pessoa foi escolhida para deter os
conhecimentos de cura. O tamanho da cobra (muito grande/grande) parece determinar a
quantidade de segredos que pode revelar e se o homem poderá atuar como xamã
(romeya) ou rezador (shoitiya).10

10
Diferentemente então dos Marubo. Segundo Montagner Melatti (1985:262), um contato sobrenatural é
necessário para que um homem se torne xamã, mas não para que se torne um rezador. Para este último
basta que receba um treinamento especial.
134

A visão da "cobra grande" é controversa entre os próprios rezadores Katukina:


alguns afirmam não tê-la visto realmente, mas apenas sentido sua presença. Este parece
ser o caso de Mekon, que durante todo o tempo que conversamos afirmava não ter visto
a cobra, viu apenas a canarana subindo entre as águas – supostamente levantada pela
cobra. Foi o suficiente: as alterações produzidas em seu corpo indicavam que havia sido
eleito. Mani, um rezador mais experiente e ativo do que Mekon, afirma também não ter
estado diante de uma cobra, pelo menos não de uma cobra viva. Durante uma caçada,
ele encontrou pelo caminho a carcaça de uma grande jibóia. Do mesmo modo como no
relato de Mekon, Mani afirma ter tido sensações nunca antes experimentadas: tremores
e calafrios e, especialmente, a visão de luzes multicoloridas.11 Ambos concordam que o
encontro com a cobra é fundamental no processo de eleição de um rezador, ainda que
nenhum deles tenha efetivamente encontrado.
Para compreendermos o nexo estabelecido pelos Katukina entre as cobras e o
conhecimento xamânico é necessário lembrarmos o mito katukina que narra a origem da
vida breve. Neste mito os Katukina contam como seus ancestrais ouviram um homem
(nawa) chamá-los, falando que se fossem ao encontro dele, receberiam uma "pedra" que
os tornaria imortais. Depois de algum tempo, os Katukina decidem mandar uma criança
ao encontro do tal homem. Entretanto, ele se recusa a entregar a "pedra" à criança, com
receio de que ela não reconhecesse seu valor e a desprezasse. Irritado, este nawa
sentenciou: "já que vocês não quiseram a minha pedra, você não vão ser muitos, pois
minha pedra ia ajudar a aumentar a população de vocês. Mas vocês perderam [a
oportunidade]. Agora, quando um morre, outro nasce, assim vocês vão viver a vida
inteira e não vai aumentar a população de vocês". A "pedra" capaz de imortalizar os
homens acabou ficando em poder das cobras, por isso elas trocam de pele, sem nunca
morrerem. Os Katukina dizem: "se tivéssemos pego esta pedra, a gente ficava bem
velhinho, trocava o cabelo, a pele e ficava novo". Aos Katukina restou apenas a
perspectiva de uma "ressurreição celeste", já que os mortos, ao adentrarem o céu,
adquirem uma nova pele, para que tenham um nova vida e não sintam saudades.
Além das cobras, uma espécie de lagarto e uma árvore conhecida regionalmente
como mulateiro também obtiveram a garantia da imortalidade. As cobras, o mulateiro e
o lagarto asseguraram a vida eterna e a troca de pele (casca) periódica entre eles marca a
excepcional capacidade de renovação e rejuvenescimento. A precariedade e

11
É digno de nota que essas sensações são parecidas com aquelas provocadas pela ingestão do ayahuasca.
135

provisoriedade da vida katukina, parece possível supor, é contornada pelos xamãs e


rezadores que obtêm parte de seus conhecimentos de cura por intermédio das cobras,
detentores do rome e, por isso, imortais.
Os desenhos labirínticos do couro da cobra, muito apreciados pelos Katukina12,
são também relacionados ao conhecimento xamânico. As pessoas costumam dizer: "tal
cobra tem desenho, tem rome" (rono keneya romeya). Beleza e conhecimento aparecem
então intimamente associados.13
A tradução de rome como "pedra" é feita livremente pelos Katukina, mas apenas
para remeter à dureza ou à solidez, pois a pedra propriamente dita é designada por
shoko. Entretanto, no vernáculo, rome sugere pistas interessantes, pois esta palavra é
usada também para designar o tabaco, que é a principal substância utilizada nos ritos de
cura e romeya (com o tabaco/"pedra") designa o xamã.14

Aqui, novamente, abro um parêntese para tratar de questões lingüísticas. A


etimologia de rome exposta acima, ainda que adequada e aceita pelos próprios
Katukina, pode ter outras derivações. Vejamos. As cobras têm rome e por isso são
portadoras dos conhecimentos xamânicos. Mas são portadoras destes saberes porque
obtiveram o shoko nane, a "pedra-jenipapo", que lhes proporcionou a vida eterna. O
rome e o shoko nane confundem-se e essa confusão só se desfaz voltando os olhos a
outros grupos pano. Existe a possibilidade de que a tradução de rome como "pedra"
possa ser tomada ao pé da letra.
Em seu trabalho sobre o xamanismo yawanawa, Pérez (1999:154) informa que
em determinadas rezas alguns "seres-aliados" são invocados para combater a doença e
aparecem como o "velho do machado de pedra", ruweya sheneki. Neste caso, ruwe

12
Mas não só o desenho do couro dos boídeos são apreciados, também de algumas cobras peçonhentas.
Certa vez, eu e duas mulheres encontramos uma cobra (que parecia ser uma jararaca) no caminho. Mais
tarde, uma das mulheres (a que tinha matado a cobra) contou o acontecido para um homem e querendo
descrevê-la para que ele pudesse ajudar a identificá-la, dizia insistentemente: kene roapa kuin, i.e.,
"desenho verdadeiramente bonito".
13
Em outros grupos pano, há uma estreita associação entre beleza, conhecimento xamânico e visões.
Entre os Shipibo-Conibo (Gebhart-Sayer 1986) e os Kaxinawa (Lagrou 1996 e 1998), as belas visões
são expressas nos desenhos geométricos, pelas mulheres, que os elaboram a partir dos cantos dos xamãs.
Nos dias de hoje os Katukina parecem ter restringido as elaborações de suas visões aos cantos. De todo
modo, os desenhos geométricos talvez tenham existido em maior quantidade no passado, pois são ainda
encontrados nas peneiras, peças de cerâmica e nas pinturas corporais.
14
Montagner Melatti (1985:401) afirma que romeya, que é a designação marubo para xamã, está
relacionada a romeoá, flor de tabaco. Discordo da tradução sugerida pela autora por dois motivos: (i) ya
entre os Katukina e os Marubo (e entre vários grupos pano) é um atributivo e (ii) rome tem um
significado maior do que o tabaco propriamente dito.
136

designa o machado de pedra. A mesma autora afirma que a pedra é um elemento de


poder e nas rezas yawanawa são feitas alusões ao machado de pedra – trata-se de uma
arma para combater as doenças.15 Entre os Matis, dwë designa atualmente o terçado e
shotko é o termo usado para o machado. Nem sempre foi assim. Segundo Philippe
Erikson (comunicação pessoal), dwë era usado primeiramente para o machado de pedra,
passou depois a designar o machado de ferro, mais tarde o metal e é nos dias de hoje o
termo reservado ao terçado. Os próprios Katukina designam o machado de pedra como
roe. Os termos para machado de pedra dos Katukina – roe – e aquele dos Matis – dwë –
apresentam ligeiras diferenças fonéticas. As semelhanças entre o roe e o shoko dos
Katukina e o dwë e o shotko dos Matis são um tanto evidentes. Feitas essas
considerações, penso que talvez seja possível supor que o rome dos Katukina, que
atualmente designa o tabaco, seja um termo anteriormente utilizado para o machado de
pedra16. Esta possibilidade, apenas ensaiada rapidamente aqui, parecerá mais plausível
se não nos esquecermos que entre os Yawanawa o machado de pedra (ruwe) é sempre
mencionado, como uma arma, nas rezas. Tanto mais porque os ritos de cura executados
pelos Katukina, e por outros grupos pano, como veremos adiante, são concebidos como
um embate entre os especialistas xamânicos e seres sobrenaturais.

Retornando à iniciação xamânica, as alterações sensoriais – olfato e visão,


principalmente – diante de uma grande serpente seriam indicativas de que ela "jogou" o
rome em um homem e o rome penetrou em seu corpo, o que o capacita, de alguma
maneira, a estabelecer relações sobrenaturais. Os xamãs teriam rome em grandes
quantidades, o que não só explica a tradução de sua designação vernácula como sua
superioridade em relação aos rezadores, que o têm em menor quantidade. 17 Os antigos
xamãs são lembrados por terem muito rome e pelo fato de poderem retirá-los e colocá-
los em seus próprios corpos a qualquer momento, exibindo suas habilidades diante de
uma platéia aturdida.

15
Cabe destacar que, segundo Pérez (199:154 n.192), os Yawanawa fazem menção à quentura da pedra e,
por isso, chegam a chamá-la de "machado de fogo". Diferentemente então dos Katukina que sempre
destacavam a dureza quando falavam do rome. Na concepção dos Katukina os raios são pedras (shoko)
que caem do céu. Assim, o tema da quentura está de algum modo também presente. Há alguns anos atrás
um raio caiu nas proximidades de uma casa e seus moradores escavaram o local à procura de alguma
pedra.
16
Agradeço a Philippe Erikson por ter chamado minha atenção para esta hipótese.
17
Alguma contradição surge nas várias descrições sobre a eleição xamânica e há quem diga que para
adquirir os poderes da grande serpente, para possuir o rome, é necessário tocar a cobra com a ponta de
uma flecha ou um pedaço de pau ou ainda amarrar um pedaço de cipó no corpo dela.
137

A permanência do rome no corpo, entretanto, não é definitiva, deve ser garantida


com uma rotina sem sobressaltos e uma dieta alimentar. No que diz respeito à rotina, a
principal precaução a ser tomada é evitar sustos, emoções repentinas. Ocorrências tão
banais como o latido inesperado de um cachorro ou mesmo o grito de uma criança
podem dissipar o rome. Quanto à dieta, os aprendizes e também os rezadores
experientes devem evitar os alimentos doces (vata), como mel, açúcar, mamão, abacaxi,
cana-de-açúcar e algumas qualidades de banana.18 O caranguejo (shanka), igualmente,
deve ser evitado, devido ao sabor e ao cheiro adocicados. Tempos atrás, lado a lado da
evitação de alimentos doces estava a proscrição de consumir pimenta. A dieta dos
xamãs é mais rigorosa e, além de prever com mais convicção a abstenção de alimentos
doces, supõe a restrição de relações sexuais. Essas abstenções são correlatas àquelas
indicadas nos casos de doença, que foram abordadas anteriormente. Em ambos os casos,
a dieta deve ser entendida como medida preventiva, uma tentativa de se preservarem as
substâncias que mantêm o corpo são, íntegro. No caso dos xamãs e rezadores, de
preservar o rome, a substância que permite a comunicação com os espíritos que os
auxiliam.
Rezadores e xamãs, diferentemente dos outros homens, não fazem aplicação de
kampo, o estimulante cinegético, ou o fazem com menos freqüência e em menor
quantidade. Como em outros grupos amazônicos, os especialistas em assuntos
xamânicos são algo panema.19 Quando rezadores usam o kampo, aplicam-no apenas em
pequenas quantidades (no máximo fazem cinco aplicações), a fim de eliminar algum

18
Em vários grupos pano o sabor amargo aparece relacionado ao poder xamânico. Entre os Kaxinawa os
xamãs são chamados de huni mukaya ("homem que tem amargor") (Kensinger 1995a:213-218). Erikson
(1996:203 e ss) observou que a maior parte das substâncias usadas no contexto místico deixam um gosto
amargo na boca, como a ayahuasca e o tabaco. Entre os Matis a oposição bata (doce)/chimu (amargo)
excede o contexto xamânico e todos os homens evitam alimentos doces, enquanto procuram ingerir os
amargos.
19
A caracterização dos especialistas xamânicos como panema, remete à incompatibilidade entre os papéis
de xamã e caçador entre os Kaxinawa. Os antropólogos que estudaram este grupo destacam como o
papel de xamã exclui sumariamente aquele de chefia (Deshayes 1992; Lagrou 1998; Kensinger 1995a),
dado que o chefe é concebido como um hiper-caçador. Embora, genericamente, essa incompatibilidade
simbólica pareça adequada aos Katukina, há, na história do grupo, casos que a contradizem. No artigo
em que retirei a epígrafe deste capítulo, o xamã Mame a que Tastevin (1924) faz referências é descrito
também como o chefe, o responsável pela reunião de grupos pano abatidos pelo contato e que estavam
dispersos. Mais recentemente, na fundação da aldeia do rio Campinas, foi também um especialista
xamânico, um rezador, que conduziu as negociações com os militares que trabalhavam na construção da
rodovia a fim de ali poderem se estabelecer, assumindo em seguida o posto de chefe. Entre os
Yawanawa, o famoso Antônio Luiz também acumulou os papéis de chefe e rezador (xinaya), conforme
consta nos trabalhos de Carid (1999) e Pérez (1999). Para um recenseamento de vários casos de acúmulo
dos papéis de chefe e xamã entre grupos pano, inclusive entre os Kaxinawa, ver Carid (1999:76-82).
138

mal-estar físico. O kampo, do mesmo modo como os alimentos doces, podem dissipar o
rome.
A eleição ao xamanismo independe do desejo ou da aspiração dos indivíduos,
uma vez que o contato sobrenatural, nesta etapa, não é uma prerrogativa do desejo ou da
decisão voluntária do indivíduo. Após o encontro com a cobra, um homem passa a ter
sonhos de revelação, os segredos de cura são aprendidos. Os rezadores com os quais
pude discutir estes assuntos disseram-me que sonharam com um homem que lhes
oferecia ayahuasca ou rapé para consumirem juntos. Em seguida, este homem dava-lhes
uma mulher com a qual se uniam e que, desde então, sempre os acompanhava,
ensinando-lhes a identificar as doenças e suas respectivas curas. Alguns dos rezadores
identificam claramente Rono Yushin como uma "esposa". Mani, que reza há quase 30
anos, afirmou que Rono Yushin é muito bonita, deslumbrante, e ora se parece com sua
primeira mulher ora com sua mulher atual, embora não seja nem uma nem outra. O
homem que ofereceu a Mani a mulher que até hoje o acompanha, exaltou suas
qualidades, cobriu-a de elogios, para que ele a aceitasse. Entre outras coisas, segundo
Mani, esse homem teria dito que ela "foi criada com os brancos e sabe muitas coisas".
Uniões de especialistas xamânicas com mulheres-espíritos foram já registradas
na literatura pano. Recentemente Saladin d'Anglure e Morin (1998) escreveram um
artigo sobre o "casamento místico" entre xamãs e espíritos entre os Shipibo-Conibo.
Segundo os autores, uma parte significativa das abstinências que um xamã tem de
observar, particularmente a sexual, deve-se ao ciúmes da esposa onírica. Dessa união os
xamãs têm também filhos oníricos. Caso ocorra a separação entre o xamã e a mulher-
espírito, os filhos ainda o acompanham, auxiliando-o em suas atividades. Saladin
D'Anglure e Morin observaram que as "uniões místicas" entre xamãs e mulheres-
espíritos são pouco comuns na Amazônia, os registros existentes na literatura são mais
numerosos entre os siberianos20. Contudo, entre os Pano, há pelo menos um registro

20
Os autores citam os Chimane da Bolívia e dois grupos de língua harankbut do sudoeste peruano
(Saladin D'Anglure & Morin 1998:56). Sem pretender ser exaustiva, observo que se pode acrescentar a
estes grupos, os Wari', os Siona e os Campa. Entre os Wari', segundo Vilaça (1992:83 e 1999:248) a
iniciação xamânica é marcada pelo compromisso futuro de uma "união mística", uma vez que uma
menina é oferecida ao iniciando. A união carnal com a esposa onírica só se efetiva com a morte do
xamã. Caso ocorra antes, ele morre. Na Amazônia colombiana, o xamã siona, segundo Langdon
(1992:132), transforma-se em jaguar e visita suas famílias "no outro lado", onde "tem esposa e filhos
jaguares". Além destes grupos, cabe citar que numa região próxima dos Shipibo-Conibo, os Piro
identificam a "mãe da ayahuasca" como uma mulher bonita, que auxilia os xamãs na identificação e cura
das doenças. A abstinência de sexo que os xamãs têm de observar deve-se ao "ciúmes" da "mãe da
ayahuasca", mas Gow (1991:238) alertou que não a concebem como uma "esposa", como parece ocorrer
também entre os Campa do alto Tambo.
139

dessas uniões. Entre os Marubo, Montagner Melatti (1985:409-410) escreveu que do


relacionamento íntimo entre os xamãs e os yobe (espíritos benevolentes), os primeiros
podem vir a constituir uma "família espiritual". Nos resumos biográficos que ofereceu
dos especialistas xamânicos, consta o caso de um xamã, Tomás, que selou seu
casamento místico quando tinha apenas 18 anos. Sua esposa mística auxiliava-o nos
ritos de cura e acompanhava-o nas viagens extáticas. Dessa união o casal gerou um
filho. O xamã Tomás teria reunido-se à sua família mística após sua morte21. À
diferença dos Katukina e dos Marubo, o "casamento místico" na concepção dos
Shipibo-Conibo marca não o princípio, mas o resultado de um "longo processo de
preparação e aprendizagem" (Saladin d'Anglure & Morin 1998:56).
Marque o princípio ou o fim de uma carreira xamânica, o tema do casamento
com seres metafísicos traz à tona a dualidade do xamã. Nesse caso específico, penso na
"fidelidade" que tem de manter com suas duas "famílias", o que faz dele mesmo um ser
duplo. Embora, pelo menos nos dias de hoje, as restrições que devem ser observadas
pelos especialistas xamânicos katukina me pareçam bem mais amenas do que as que são
observadas pelos Yaminawa do lado peruano, acredito ser possível estender aos
primeiros o que disse Townsley a respeito dos segundos: "tornar-se um xamã é tornar-se
um tipo radicalmente diferente de ser humano" (1988:133). O autor não faz qualquer
menção ao tema dos "casamentos místicos" entre os Yaminawa, mas descreve que os
xamãs retêm em seu corpo o yushin das substâncias que ingerem e, desde então, podem
comunicar-se com eles, que se tornam seus "familiares". A "familiarização" com seres
metafísicos não é, contudo, meramente uma questão de aquisição de conhecimentos,
trata-se antes de uma "transformação substancial".
Tomando de empréstimo a "transformação substancial" de que fala Townsley,
apenas saliento que a compreendo como uma transformação propriamente corporal. Por
um lado, porque me parece que assim os próprios Katukina a entendem. A eleição
xamânica, como escrevi antes, é marcada primeiramente por uma alteração que se faz
sentir no próprio corpo: o olfato, a visão, todas as sensações se alteram . Por outro lado,
porque a manutenção das relações com seres sobrenaturais, faz-se igualmente por
cuidados corpóreos, com a seleção de substâncias que mantêm ou expulsam o rome, o

21
Noutro registro sobre um grupo pano aparece a figura feminina que inicia um homem ao
conhecimentos xamânicos, mas não é possível saber se se trata de uma "união mística". Carid
(1999:120) assim escreveu sobre os Yawanawa: "se ele [um homem] sonhar que um pajé lhe entrega um
objeto ou uma mulher belamente desenhada o agarra pela mão e ele não rejeita, significará que está
pronto para pôr em prática o que aprendeu".
140

objeto mágico que possibilita a comunicação com os espíritos. A interrupção de uma


carreira xamânica, temporária ou definitiva, pode mesmo pensada a partir da falta de
cuidados com o corpo, sobretudo por conta das substâncias que se ingerem. Recordo-me
que certa fez uma pessoa não soube me informar se um homem era ainda um shoitiya,
sua dúvida devia-se ao fato de que o homem costumava beber cachaça, uma substância
que repele o rome e que, portanto, impossibilita o contato sobrenatural.
As uniões místicas conduzem-nos também, e uma vez mais, ao tema da
afinidade potencial (Viveiros de Castro 1993 e no prelo) entre os ameríndios. Aqui, não
é demais chamar a atenção, os Katukina são de um simbolismo que dispensa maiores
desconstruções, não é preciso muitos malabarismos analíticos para que se alcance o
significado implícito do que afirmam. Em poucas palavras, o conhecimento xamânico é
obtido a partir do estabelecimento de uma relação de aliança com seres sobrenaturais. A
afinidade comanda as relações exteriores de xamãs e rezadores que passam a ser
acompanhados de suas "esposas".

Voltando à eleição xamânica entre os Katukina, no primeiro sonho, em um


cenário de trevas, os atuais rezadores dizem ter visto muitos doentes: pessoas prostradas
nas redes, com febre, diarréia, tremores, tosse, vômitos. A mulher, encarnação do rono
yushin (espírito da serpente), ensinava-lhes então as palavras mágicas que deveriam ser
ditas e que eles passavam a repetir uma a uma. Pouco tempo depois, os doentes estavam
bons: sentavam-se, bebiam água, comiam, penteavam os cabelos – o que indicava que já
estavam curados.
Um sonho como este sela definitivamente a eleição para tornar-se um shoitiya. A
partir de então, o homem procura um rezador mais experiente que possa iniciá-lo nos
segredos e na prática das rezas, além de passar a consumir quantidades maiores de rapé
que estimulam novos sonhos com o "espírito da serpente", com o qual deve aprender
novas rezas.
Apenas um dos rezadores, Ne’e, afirma não ter feito sua iniciação desta maneira.
Ao invés de ter visto uma cobra, ele teria sido picado por uma (no caso, uma imi rono,
"cobra sangue", numa tradução literal) e, durante sua recuperação, teria sido eleito por
intermédio dos sonhos.22

22
Montagner Melatti (1985) fala que os xamãs marubo são iniciados após uma doença causada por
agentes sobrenaturais. Ela fornece uma pequena biografia dos xamãs que conheceu, e, entre eles, consta
que um se tornou xamã após ter visto uma sucuriju (:407) e outro após ser picado por uma surucucu
141

Embora sejam raros os relatos de eleição xamânica que contradigam a exposição


acima, nem todos que se depararam com uma grande cobra e tiveram sonhos indicativos
de sua própria eleição tornaram-se shoitiya ou romeya. É difícil saber quantos foram
eleitos e não atenderam aos chamados, i.e., não se empenharam eles próprios em
aprofundar os conhecimentos xamânicos. Se um homem encontra uma cobra, tem um
primeiro sonho, mas não se empenha em aprofundar seus conhecimentos, o rome é
perdido. Ninguém precisa saber. O que define a permanência do rome no corpo de um
eleito é sua própria dedicação23: "é preciso interesse", como me disse Mani.
Certa vez soube que um jovem rapaz tinha encontrado uma jibóia na mata,
durante uma caçada. A mulher dele (na ocasião, uma índia arara), que o acompanhava,
quem tinha me dado a informação, completando que ela tinha pedido para que ele
matasse a cobra, mas não foi atendida. Eles seguiram caminho. Durante a noite, o rapaz
acordou suado e temeroso com o sonho que havia tido. No sonho, Mai, um dos
rezadores mais velhos da aldeia, ia ao seu encontro, oferecendo-lhe ayahuasca (oni) para
beberem juntos. Então, ele acordou, relatou o sonho a sua mulher e voltou a dormir.
Mais alguns minutos e ele estava acordado de novo. O sonho se repetia. Ele sabia que se
tratava de um contato sobrenatural, um chamado para tornar-se rezador, resultado do
encontro com a cobra. Mas ele decidiu recusar o chamado e não se tornou rezador.
Há casos mais dramáticos. Kako, também um jovem rapaz, foi mariscar com
tingui, acompanhado de muitas outras pessoas, em um igarapé na aldeia do rio
Gregório. Finda a pescaria todos foram embora, mas ele decidiu permanecer mais um
pouco, à procura de algum peixe que ainda aparecesse. Em cima de um balseiro caído
no igarapé, ele viu passar lentamente uma cobra gigantesca. Olhou-a fixamente, viu seu
corpo deslizando sob as águas. De repente, começou a sentir tremores e calafrios,
turvamento na vista, o odor de seu corpo estava alterado – sensações indicativas de sua
eleição. Sem saber como controlar-se, Kako desceu do balseiro e foi ao encontro da

(:415). Entre os Sharanawa, Siskind também menciona o caso de um rapaz que recebeu os ensinamentos
para tornar-se xamã após ter sido picado por uma cobra (1973a:165)
23
Entre os Katukina a carreira xamânica se define então de duas formas: primeiramente pelo contato
sobrenatural e, posteriormente, pelo próprio interesse daquele que foi eleito pelos espíritos.
Diferentemente dos Yaminawa (Calávia 1995:107) e dos Yawanawa (Pérez 1999), entre os quais é
necessário exclusivamente dedicar-se voluntariamente ao aprendizado. Entre os Shipibo-Conibo consta
que uma carreira xamânica pode, entre outras formas, ser definida muito cedo, ainda no ventre materno
ou pouco tempo após o nascimento da criança. Na primeira alternativa trata-se de casos de mulheres
fecundadas por espíritos, em sonhos eróticos. Na segunda, um xamã elabora uma mistura de leite
materno com uma planta alucinógena e dá para a criança beber, preparando-a para exercer mais tarde a
prática xamânica (Saladin d'Anglure e Morin 1998:51).
142

cobra, que a esta altura já estava imóvel. Ele então pegou seu terçado e desferiu vários
golpes na cobra. Correu para sua casa alarmado, sem saber se a tinha matado. Lá
chegando, contou o acontecido a seu pai, que lhe explicou que a cobra deveria estar
atraindo-o para conhecer os segredos xamânicos. Se ele não quisesse, deveria desculpar-
se e fazer algum pedido (para que tivesse força para abrir roçados ou sorte na caça, por
exemplo), jamais deveria tê-la machucado. Na mesma noite, Kako sonhou que sofria
um acidente. Alguns dias se passaram e o acidente aconteceu. Sozinho pela mata,
caçando, Kako tropeçou na raiz de uma árvore, caiu desajeitadamente e a espingarda
detonou, acertando seu braço. Socorrido pelos missionários da MNTB, levado para a
cidade de Tarauacá, Kako teve o braço direito amputado. A cobra enviara-lhe o castigo.
O acidente de Kako constitui algo como uma "história exemplar". Foi-me
relatado espontaneamente por várias pessoas para dizer dos castigos que as cobras são
capazes de enviar àqueles que as agridem. Algumas especulavam se não teria sido o
xamã Tobi, morto havia pouco tempo, o responsável pela vingança.
Não há qualquer problema em recusar a carreira xamânica, em declinar o
chamado de rono yushin, mas aqueles que a atacam são punidos. Os Katukina não
matam jibóias (mana rono), sucuris e outras cobras de grande porte, pois acreditam que
se assim fizerem, terão de volta a vingança da cobra morta que lhes poderá causar a
morte ou deficiências físicas irreversíveis. Contrariamente, então, a outros grupos pano
– como os Sharanawa (Siskind 1973a:165-166), os Yaminawa (Townsley 1988:133 e
Calávia Saez 1995:107-108), os Kaxinawa (Lagrou 1998:76) e os Yawanawa (Pérez
1999) –, que para obter os poderes das grandes cobras, matam-nas e também comem
partes de seu corpo.24
Aqueles que aceitam de bom-grado o contato sobrenatural e desejam mesmo
seguir uma carreira de rezador (por razões que veremos adiante), devem aprofundar
seus conhecimentos seja solitariamente ou com a ajuda de rezadores mais experientes
ou ambas as formas ao mesmo tempo, como é mais comum. Se solitariamente, um
homem passa a consumir rapé todas as noites, a fim de estimular a ocorrência de sonhos
com Rono Yushin, o espírito da serpente, que o instrui sobre as doenças e os cantos de

24
De todo modo, mesmo em grupos nos quais é corrente a prática de matar a cobrar para obter seus
conhecimentos, sejam relacionados à caça sejam ao xamanismo, não está excluída a possibilidade de
vingança em algumas situações. Deshayes (1992:104 e 2000:33) relatou o caso de um homem que, à
beira de um lago, foi mordido várias vezes por uma anaconda, mas que conseguiu defender-se
golpeando-a com uma faca e matando-a. A anaconda é áglifa, não consegue inocular seu veneno. Apesar
143

cura. Na companhia de um rezador mais experiente, o aprendiz consome também rapé e,


algumas vezes, ayahuasca, e aprende com ele os cantos apropriados para cada doença e
também os sintomas que devem ser observados nos paciente. De uma maneira mais
informal, um aprendiz pode também acompanhar um rezador mais experiente sempre
que este for consultar um paciente. Assim, o aprendiz, na sessão de cura, posta-se ao
lado do rezador e ouve atentamente seus cantos de cura. Após acompanhar seu instrutor
várias vezes, ele passa também a participar, entoando o mesmo canto ao mesmo tempo.
No caso de Mekon, o aprendiz de que falei antes, o rezador mais experiente que o estava
instruindo em conhecimentos aprofundados sobre as rezas e as curas era Tsomi, seu
sogro, pai de Mepe.
O processo para tornar-se um xamã segue quase que paralelo ao do rezador.
Entretanto, não é qualquer cobra grande que faz de um homem um xamã, apenas duas:
vino rono e teshoika, as maiores moradoras das profundezas das águas. Além disso,
tendo encontrado a cobra e recebido o rome, um homem não precisa acompanhar um
outro xamã experiente para instruí-lo, o conhecimento todo lhe é transmitido por Rono
Yushin de uma só vez, poupando-lhe longos períodos de aprendizado.25 Entre os xamãs
fala-se menos em aprendizado e mais em treinamento. Com o consumo do ayahuasca e
rapé e observando as restrições alimentares e sexuais, um homem consegue manter o
rome ativo em seu corpo, sem precisar receber qualquer outra instrução.26
É previsto também que os shoitiya façam uso do ayahuasca para estimular as
visões, os encontros com Rono Yushin, mas o mais comum é o uso do rapé (rome poto,
"pó de tabaco"). O uso que os Katukina fazem do ayahuasca atualmente parece-me
sensivelmente inferior ao que fazem outros grupos pano, em particular, os Shipibo-
Conibo (Árevalo Valera 1986; Illius 1992), os Kaxinawa (Kensinger 1995a), os

disso o homem que a matou delirou toda a noite, sonhava que várias cobras o perseguiam a fim de
afogá-lo no lago.
25
Esta informação contradiz o que consta do trabalho de Pérez (1999:42) sobre o xamanismo yawanawa,
no qual consta que entre os Katukina um mestre transmite seu poder – materializado em pedras ou
dardos mágicos – ao iniciando. Os Katukina nunca mencionaram este fato. De todo modo, se pudermos
conceber Rono Yushin como mestre, é exatamente isso o que se passa. Neste caso, a transmissão do
poder do mestre ao iniciando não pode ser tomada literalmente.
26
O que contraria parcialmente o que já foi observado em outros grupos pano. Entre os Kaxinawa
(Kensinger 1995a), Yaminawa (Townsley 1988 e Calávia Saez 1995), Sharanawa (1973) e Yawanawa
(Pérez 1999), os xamãs recebem instruções de outros mais experientes. Segundo Montagner Melatti
(1985:416), é previsto que, entre os Marubo, após um contato sobrenatural, normalmente ocorrido num
período de doença, os homens recebam treinamento para tornar-se rezador. Contudo, a autora soube de
seis homens que atuaram como xamãs sem terem passado por qualquer período de aprendizagem. Entre
os Shipibo-Conibo, segundo Árevalo Valera (1986:152), há três alternativas para iniciar-se ao
xamanismo: por herança, por eleição dos espíritos e voluntariamente (com ou sem mestre).
144

Yaminawa (Calávia Saez 1995) e os Yawanawa (Pérez 1999). Pelas inúmeras conversas
que tive com os Katukina sobre o assunto, suspeito que as beberagens de cipó foram
maiores no passado, especialmente em um período em que havia cinco romeya em
atividade ao mesmo tempo, há mais de vinte anos atrás. De todo modo, o pouco uso do
ayahuasca não é exclusividade dos Katukina e na literatura pano consta mesmo que
certos grupos não o usavam. Este é o caso dos Uni que, de acordo com Frank
(1994:202), tradicionalmente não bebiam ayahuasca, passaram a fazê-lo há pouco
tempo, após alguns homens terem recebido treinamento xamânico com seus vizinhos, os
Shipibo-Conibo.
Por toda área pano, segundo Erikson (1993:48), o tabaco é mais usado como
alucinógeno xamânico do que o ayahuasca. Essa preferência pelo tabaco aplica-se
estritamente aos Katukina. Um dos rezadores, afirma que abandonou completamente o
uso do ayahuasca para entoar suas rezas. Mani, que usa exclusivamente o rapé nas
sessões de cura em que é convidado, reclama que sente a face anestesiada quando toma
cipó, o que torna difícil pronunciar as palavras corretamente após consumi-lo, pois "a
boca fica mole".27 Os rezadores são todos tabagistas contumazes e não agüentam muitas
horas sem rapé ou cigarro. Durante o dia não saem para lugar algum sem levar seus
apetrechos para suprir o desejo tabagista: papel, fumo de corda e uma pequena faca ou o
rapé e o inalador.28 Outros homens fumam também, mas a maior parte deles apenas
episodicamente. O rapé é mais usado do que o cigarro para estimular sonhos e visões e
também nos ritos de cura. De todo modo, é dito que a fumaça e o cheiro do cigarro
desagradam e espantam os yushinvo.

As mulheres, os filhos

Como afirmei antes, a eleição ao xamanismo independe de aspirações


individuais e, após o encontro sobrenatural, alguns podem mesmo declinar em seguir

27
Segundo Ruedas (1999) o rapé (romepoto) é associado ao espírito que ensinou os Marubo a falarem e
que controla a fala. Em todas as ocasiões em que a linguagem é importante, os Marubo cheiram rapé
para assegurar que poderão falar com eloqüência. Nesse sentido, destaco também que os dois homens
que visitaram os Marubo no rio Ituí disseram-me que lá o ayahuasca deve ser "mais fraco", dado que
não misturam ao cipó a folha conhecida como "chacrona". Ainda assim, ambos evitaram beber o
alucinógeno.
28
O inalador de rapé é como uma forquilha, feita com ossos de animais, como paca e macaco, e unidos na
ponta com resina de abelha. Abastecido de rapé o inalador, uma de suas pontas deve ser posta no nariz e
a outra na boca para que seja assoprada.
145

uma carreira como xamã ou rezador. Vimos dois casos, de dois jovens, de recusa à
carreira xamânica, com desfechos diferentes. Há, entretanto, aqueles que almejam uma
carreira xamânica e apontam razões claras para isso.
O temor de perder um parente – filhos e netos, principalmente – e o desejo de
"saber mais" ou tornar-se "sabido" (tanai kuin) são sempre apontados como motivações
primeiras para tornar-se rezador – com predominância da primeira. Mani lembra-se que
começou a rezar no ano em que nasceu sua filha, em 1969. Ele já tinha visto uma jibóia
(mana rono) morta na mata e vivendo em um seringal no rio Tauari, longe de seus
parentes, temeu que um dia precisasse de ajuda para tratar sua pequena filha – ele já
havia perdido um filho nestas circunstâncias – e não pudesse contar com ninguém. Mani
acabou decidindo iniciar-se nos conhecimentos mágicos das rezas (shoiti), pois se sua
filha adoecesse, poderia morrer, visto que não tinha ninguém – nem rezadores nem
médicos – nas proximidades para tratá-la. Decisão tomada, ele passa a cheirar rapé para
provocar sonhos que o pusessem em contato com Rono Yushin, o espírito da Serpente,
para que lhe ensinasse a reconhecer as doenças e aprender a tratá-las.
A decisão sobre o prosseguimento da carreira xamânica após o contato
sobrenatural pode não ser solitária, outras pessoas, em particular as mulheres, podem
intervir antes que a decisão final seja tomada. Como vimos, após Mekon ter encontrado
a "cobra grande" e voltado para sua casa atordoado, foi sua mulher quem sugeriu que
ele deveria ser um rezador e quem providenciou o rapé para que ele cheirasse antes de
dormir, tentando assim estimular seus sonhos. Foi ela também quem fez caiçuma para
ele rezar e, depois, levou-a para que o doente – seu próprio irmão – bebesse. Em suas
atitudes, Mepe indicava seu interesse e concordância com a futura carreira de rezador de
seu marido e, no relato de Mekon, podemos entender que seu estímulo foi mesmo
fundamental. E este não foi o único caso que pude saber. Do mesmo modo, Mani,
aquele que começou a rezar no mesmo ano em que nasceu sua filha, afirma que
conseguiu vencer a vergonha de rezar na frente das outras pessoas, quando estava
apenas aprendendo, devido ao incentivo de sua primeira mulher. Ainda hoje, após mais
de dez anos de separação, Rono yushin às vezes surge nos sonhos de Mani com a
aparência dela, quem primeiramente o incentivou.
Diferentemente das mulheres sharanawa (Siskind 1973a:165) e piro (Gow
1991:241), não soube de nenhuma mulher katukina que demonstrasse descontentamento
com a carreira xamânica de seu marido. A única vez que ouvi uma reclamação, esta
dirigia-se à mãe de uma criança doente que sempre requisitava os préstimos de um
146

rezador, porém a mulher dizia que as rezas de seu marido de nada adiantariam se ela
não parasse de bater em sua filha, razão pela qual, segundo ela, a criança não
apresentava melhoras.
A interferência das mulheres em decisões masculinas permite recuperar de
alguma maneira a presença feminina em papéis nos quais estão, na maior parte das
vezes, ausentes, como é o caso do xamanismo. Se pensarmos que a motivação primeira
para um homem decidir tornar-se rezador é zelar pela vida de seus parentes,
principalmente filhos e netos, é possível entender a ativa presença feminina: elas, as
mães, são tão ciosas da vida de seus filhos e demais parentes quanto o são os homens,
que em boa parte das vezes tornam-se rezadores após a paternidade. Ademais, comenta-
se difusamente que no passado existiram mulheres que seguiram a carreira xamânica.29
Uma presença que, entre os Sharanawa, foi definida por Siskind (1973a) em
termos negativos, já que a autora relata um caso de iniciação xamânica em que a mulher
do rapaz se opunha fortemente, devido ao longo período de abstinência alimentar e
sexual que ele tinha de observar. Para Siskind, a escolha da carreira xamânica é
estritamente pessoal, "o único papel que não é estabelecido pelo parentesco"
(1973a:165-168).
Entre os Katukina, seria arriscado afirmar categoricamente o contrário, ou seja,
que o xamanismo é estabelecido pelo parentesco. Apesar disso, o parentesco deve ser
reconhecido como uma dimensão ativa no processo de decisão sobre a dedicação às
atividades xamânicas: o temor de ver parentes desamparados em casos de doença,30 sob

29
Os Yawanawa comentam de uma mulher katukina que exercia a prática xamânica (Pérez 1999:27). O
exercício feminino do xamanismo é sempre mencionado na literatura pano. Há rumores também de uma
mulher que atuava como xinaya (rezador) entre os próprios Yawanawa. Entre os Kaxinawa, Tastevin
(1926) diz ter conhecido duas mulheres que tinham "comércio com os espíritos". A respeito do mesmo
grupo, Kensinger (1995a:217) afirma que qualquer pessoa com propensão para sonhar, seja homem ou
mulher, pode tornar-se xamã. Ele próprio soube de uma "pequena xamã" que morreu em meados de
1960. Mais recentemente, Lagrou (1998:68-69) conheceu uma mulher que atuava como yuxian
(mediadora entre os yuxinvo e os seres humanos). Montagner Melatti (1985:405-407), igualmente,
relatou o caso de uma mulher que atuava como romeya entre os Marubo. Entre os Shipibo-Conibo,
Saladin d'Anglure e Morin (1998:50) recolheram vários nomes de mulheres xamãs em genealogias de
gerações anteriores, mas notaram que dificilmente elas alçavam a condição de meraya (grande xamã).
As mulheres shipibo-conibo, mesmo contemporaneamente, atuam mais como parteiras e especialistas
em plantas medicinais.
30
O parentesco parece também pesar significativamente na decisão de seguir uma carreira xamânica entre
os Yawanawa. Retiro de Pérez (1999:15), que pesquisou entre eles, o seguinte conselho que um homem
recebeu de seu instrutor em assuntos xamânicos: "Olha, tu não é mais criança pra tu brincar, tu já tem
mulher e eu sei que tu vai ter muitos filhos e daqui mais um tempo você vai precisar de rezar, de curar e
se você não aprender agora você vai recorrer a outras pessoas ou então procurar até mesmo os cariú com
os remédios dele, que eles vão te sovinar, e você vai ficar chorando sem poder fazer nada, então você
vai ter que aprender".
147

o risco de morte, e o estímulo que os homens recebem de suas mulheres atestam sua
importância.
Voltando aos Katukina, ainda que o desempenho do papel de rezador não esteja
associado a tantas abstinências, como parece ocorrer com os xamãs sharanawa (Siskind
1973a:165), o dia-a-dia não é dos mais fáceis e se não são as mulheres que reclamam,
um rezador pode sentir-se às vezes cansado e pouco recompensado. Inúmeras vezes vi
os rezadores acordados na madrugada, se não para cuidarem de seus pacientes, para
lembrarem-se do conteúdo de seus sonhos. A vigília forçada, mantida com aspirações
frequentes de rapé, é sempre necessária para manter o contato com rono yushin que os
auxilia na descoberta das causas e curas das doenças. Um rezador tem de lembrar dos
ensinamentos revelados em sonhos e, assim, acaba por fazer da noite o seu período de
maior atividade.
Uma das coisas que mais chama a atenção nos shoitiya katukina é o altruísmo:
interrupções freqüentes de suas atividades quotidianas para atender chamados de
parentes preocupados com seus doentes, vigílias prolongadas que resultam em poucas
horas diárias de sono, falta de gratificação material. Quanto a este último aspecto, os
shoitiya dizem que no passado eles eram melhor gratificados: sendo os rezadores
pessoas mais velhas e, portanto, com menor força física para o desempenho de
determinadas atividades, recebiam como agradecimento por sua atuação pedaços de
caça, lenha fendida para suas mulheres prepararem a comida, ajuda na hora de construir
uma nova casa. Hoje, eles dizem, as gratificações são menos freqüentes e incluem
também artigos industrializados comprados na cidade: bermudas, camisas e pedaços de
tabaco31 – que algumas vezes acabam sendo úteis para realizarem novas curas.
Do mesmo modo como ocorre com os Yaminawa (Calávia Saez 1995:105), o
abandono das atividades xamânicas é perfeitamente admissível, mas nenhum rezador
apontou seu próprio cansaço ou insatisfação com a pouca recompensa como
justificativas possíveis. Sobre este assunto posso dizer pouco, pois não conheci
rezadores inativos ou ex-rezadores. De todo modo, os esforços requeridos pela atividade
e o conseqüente cansaço, foram apontados algumas vezes para que os rezadores
lamentassem o fato de não poderem dedicar-se a outros interesses. Mani, por exemplo,
faz questão de mencionar que seus "estudos" como rezador o conduziram a desconhecer

31
Até 1994 alguns homens ainda plantavam tabaco e abasteciam-se por sua própria conta com fumo e
rapé. Em 1997, entretanto, todos haviam "perdido a semente" e compravam o tabaco na cidade.
148

"saberes" da sociedade dos brancos que são também bastante valorizados: os principais
são a escrita e a leitura. No início dos anos 70, quando da abertura da BR-364, o BEC
montou uma escola para alfabetização de adultos. Ele estava apenas no começo de suas
atividades xamânicas e freqüentou a escola – aprendeu algumas letras, a ler algumas
palavras e assinar o nome –, mas não conseguiu ir adiante porque sua concentração
deveria ser dirigida a outros saberes: a lembrança dos sonhos e a melhor maneira de
elaborar os cantos de cura. Em outros tempos, quando morava no rio Gregório, Mani
quis converter-se ao protestantismo dos missionários americanos, mas como precisava
fazer uso do rapé, para dar continuidade a suas atividades como rezador, desistiu de ser
"crente".
Quando considerada, a possibilidade de desistência do xamanismo envolve uma
razão mais forte: o fracasso. A morte de um doente que estava em tratamento –
principalmente quando a dieta do próprio doente e de seus parentes diretos estava sendo
seguida – talvez seja o maior desestímulo que um rezador possa ter, tanto mais se o
morto for um filho ou um neto. Assim como a perspectiva da morte desassistida de um
parente pode motivar um homem para iniciar a carreira xamânica, o fato da morte pode
também desmotivar. O reconhecimento do fracasso conduz os rezadores algumas vezes
ao ceticismo quanto à real eficácia de suas rezas e à validade de seus esforços. Um
ceticismo passageiro, é verdade: passados alguns meses, refeito da tristeza e diante de
chamados insistentes para tratar os doentes, um rezador pouco a pouco reinicia suas
atividades. Além disso, o esquema tautológico de explicação do fracasso não está
ausente e, mesmo que tardiamente, alguma explicação sempre surge e acaba por marcar
a gradual reaproximação dos assuntos xamânicos.
Em caso de morte, a vontade de desistência não é exclusiva do rezador que se vê
fracassado, vencido pela sentença mítica de que a morte os acompanharia e de que a
vida eterna escapara-lhes das mãos. Diante da perda de parentes queridos, os Katukina
costumam dizer que têm "vontade de morrer", de desistir da própria vida. No fim das
contas, o abandono temporário das atividades xamânicas por rezadores que se sentiram
fracassados coincide com o período de luto do vopishina, quando ainda se está tomado
pela tristeza e nostalgia causadas pela morte recente de alguém muito próximo.
A inscrição dos especialistas xamânicos no socius é um tema pouco
desenvolvido na literatura etnológica sul-americana. Já é um lugar-comum a afirmação
de que os xamãs e outros especialistas xamânicos fazem surgir o indivíduo (próximo da
concepção ocidental) na coletividade, o ser auto-centrado que se descola da existência
149

ordinária das pessoas comuns (Seeger et alii 1987[1979]:25). Não pretendo negar essa
generalização, certamente a quantidade de trabalhos que o tema da corporalidade
inspirou dão provas de sua fecundidade. De todo modo, pouca atenção tem sido dada às
motivações que orientam alguns a se disporem a alterar completamente sua rotina –
penso não só na iniciação mas, sobretudo, na prática quotidiana do xamanismo – a fim
de garantir o bem-estar da coletividade.
Deixando de lado os casos de grupos em que, potencialmente, todos os homens
são xamãs ou daqueles que não reconhecem a existência de especialistas xamânicos,
para alguns grupos indígenas tem sido destacado que qualquer pessoa pode ter um
contato sobrenatural que a credencia a ter acesso ao conhecimento xamânico, como
ocorre entre os próprios Katukina. Se tantas pessoas estão expostas aos contatos
sobrenaturais, por que apenas algumas acabam por seguir a carreira xamânica? Aqui,
parece-me, faltam explicações. A resposta dos próprios Katukina, ao menos a resposta
consciente, é buscada na dimensão subjetiva do parentesco, no medo de verem
desamparados parentes queridos. Essa resposta, a mesma dos xamãs piro (Gow
1991:238) e yawanawa (Pérez 1999:15), não invalida a afirmação a respeito da
individualização dos especialistas xamânicos; não se trata tanto de uma negativa quanto
da identificação de uma ênfase desproporcional. Parece-me importante destacar que se
os especialistas xamânicos são descolados da malha social é justamente na tentativa de
mantê-la homogênea.32 Entre os Katukina, xamãs e rezadores, enquanto indivíduos, não
representam o oposto da sociedade; ao contrário, almejam ser a sua proteção. Menos
que uma abstração sociológica, que é igualmente importante, a individualização com
vistas à garantia do bem-estar da coletividade surge como uma explicação nativa.

De feitiços e venenos

Feita a opção pela carreira xamânica, um homem não passa a gozar de nenhum
privilégio. Mesmo após seus primeiros anos de aprendizado e tendo já o
reconhecimento dos demais, ele deverá cumprir as mesmas obrigações morais, sociais e

32
Gow (1991:241) já notou o campo contraditório em que trafegam os xamãs piro. Os homens iniciam-se
nas atividades xamânicas com vistas a proteger seus parentes. Contudo, os conhecimentos para protegê-
los devem ser obtidos fora do circuito do parentesco, o que os faz serem também temidos e, certamente,
individualizados.
150

econômicas de todas as pessoas. O conhecimento que detém das coisas do outro mundo
não lhe confere regalias no plano terreno.
De todo modo, ainda que os rezadores devam se orientar pelos mesmos
constrangimentos que os demais, seus conhecimentos podem eventualmente serem
postos em jogo em casos de conflito. Foi assim que Txoki, um ativo rezador da aldeia
do rio Campinas, ameaçou mudar-se para a aldeia do rio Gregório e deixar sem
atendimento xamânico pessoas com as quais se envolveu em conflitos por causa de um
boi.
No mais, o uso que os rezadores fazem de seus conhecimentos são julgados
pelos mesmos imperativos morais que seriam acionados em situações quotidianas, em
particular no que diz respeito à sua generosidade (ou não) em atender aos chamados
para tratar de doentes. Há rezadores que freqüentemente se recusam a atender tais
chamados e causam assim um certo burburinho na aldeia por sua avareza. Entretanto,
nunca soube de conflitos que envolvessem os rezadores e seus pacientes. No máximo,
soube de rancores devido à recusa contínua e injustificada de um rezador em atender aos
pedidos de ajuda.
Muito já foi escrito sobre a ambivalência dos xamãs em sociedades indígenas
amazônicas. Para limitarmo-nos aos grupos pano, os xamãs sharanawa (Siskind
1973a:166-68), kaxinawa (Kensinger 1995a:217) e yaminawa (Townsley 1988:131-32)
ocupariam todos esta posição ambígua. Da mesma maneira, entre os Katukina, admite-
se que os xamãs e também os rezadores têm poderes para matar. Todavia, a capacidade
de matar não é exclusiva deles nem de todos eles.
Os Katukina nunca me permitiram muita liberdade para tratar deste assunto. Seja
como for, soube que um falecido rezador conhecia os meios que provocam a morte, mas
ninguém nunca o apontou, pelo menos para mim, como culpado de alguma morte. Hoje
alguns dos rezadores que receberam ensinamentos dele são suspeitos de conhecerem
tais cantos, mas evidentemente eles negam.
Como não poderia deixar de ser, os cantos de feitiçaria devem ser entoados
longe da vista e dos ouvidos de todos, na floresta. Para que o feitiço seja eficaz é
necessário, além dos cantos, que se tenha algo da vítima, um fio de cabelo, um pedaço
de unha ou qualquer objeto de uso pessoal dela. Partes do corpo, como cabelo ou unha,
ou roupas da vítima que são convertidos em veículos poderosos das palavras mágicas
que conduzem à morte. Os cantos de feitiçaria podem ser também entoados sobre
151

pegadas ou secreções do corpo da vítima, suor, saliva, urina e fezes. Nesse caso, trata-se
de uma estratégia arriscada, já que é necessário segui-la.
As acusações de feitiçaria envolvendo pessoas adultas são um tema delicado e as
pessoas sempre evitavam, ao menos para mim, entrar em detalhes que justificassem os
motivos claramente ou acusar alguém diretamente. Há também uma ênfase excessiva
dos Katukina em querer caracterizar a feitiçaria como prática do passado. Ouvi a
seguinte frase de Mani, mas versões ligeiramente modificadas me foram ditas por outras
pessoas: "Tinha muita gente que só morria de rao. Nesse tempo não tinha
FUNAI...Quando eu era pequeno, do tamanho desse menino [aponta para um garoto de
doze anos], só morria gente de rao." A justificativa sempre dada é de que as pessoas se
irritavam pelos motivos mais banais e logo tramavam a vingança lançando mão de
feitiçaria. O fim da feitiçaria teria permitido também o aumento populacional e a
reunião de vários parentes em paz na aldeia. Nas palavras de Kako, "antigamente nós
mesmos não gostávamos um do outro. Hoje já está tudo reunido, todos os parentes. Foi
assim que o pessoal acabou com essas coisas, não aceita mais essas coisas."33
Por qualquer desentendimento a feitiçaria era lançada. Os Katukina costumam se
explicar dizendo que desde que suas terras foram reconhecidas pela FUNAI, na primeira
metade da década de 1980, a feitiçaria tornou-se "proibida". Entretanto, não me parece
que esta foi uma "proibição" imposta ou sugerida por pessoas de fora (os funcionários
do órgão tutor, por exemplo). Antes, parece-me uma interpretação própria dos Katukina,
de que se eles foram reconhecidos oficialmente pela "lei dos brancos" deveriam orientar
suas condutas por estas mesmas leis. Evidentemente, a compreensão e adesão ao
conjunto de leis brasileiras é bastante precária e a interpretação dos katukina para o
assunto não é exaustiva. Proibidas ou não, as acusações persistem e dizem respeito ao
passado recente e também aos dias atuais.
Filho e genro de rezadores, o mesmo Kako que caracteriza feitiçaria como coisa
do passado, contou-me da morte de uma jovem há alguns anos atrás e acusou um
shoitiya já falecido de tê-la matado. A feitiçaria teria sido feita pela recusa dela em
abandonar seu marido e casar-se com ele. O mesmo rezador teria enfeitiçado e matado
uma outra mulher que também não o quis como marido.

33
A mesma caracterização da feitiçaria como prática do passado, que impedia o crescimento
populacional, pode ser encontrada também entre os Kaxinawa, vide a fala de um líder de aldeia
reproduzida em Lagrou (1998:106), e os Yawanawa (Perez 1999:151).
152

A acusação de feitiço mais próxima que pude acompanhar envolvia


inusitadamente uma criança no lugar da vítima. Api, à época uma criança de três anos,
era bastante afeiçoado a Txapa, sua avó materna classificatória (MMZ) e, por isso,
passava a maior parte do dia em sua casa. Às vezes passava dias seguidos sob seus
cuidados e recusava-se a acompanhar sua mãe quando ela ia buscá-lo. Uma manhã Api
acordou com erupções avermelhadas por todo o corpo. Aos meus olhos aquilo parecia
uma intoxicação alimentar. Entretanto, aos olhos de Txapa era feitiço, as erupções na
pele indicariam visivelmente que o garoto tinha rome em seu corpo, alguém teria lhe
"jogado pedras". A suspeita dela era que o feitiço teria sido lançado por ninguém menos
que seu próprio marido que, segundo ela, tinha ciúmes de vê-la tão dedicada à criança.
Na minha frente Txapa acusou Mani, que se defendeu como pôde e acusou o avô
paterno da criança pelo feitiço, devido ao ciúme também, já que o menino passava
muito tempo longe dele, justamente em companhia dela. Um pouco depois de ser
acusado, Mani conversou comigo e dizia-se magoado com a suspeita de sua mulher. Só
é capaz de neutralizar o feitiço quem o tenha feito e Mani dizia que iria "rezar o
menino" para convencer Txapa de que estava enganada. Ambos os acusados eram
rezadores e, tentando buscar uma solução para situação, Txapa reuniu-os e fez com que
rezassem e assoprassem o corpo do menino. A sessão foi rápida e diferiu bastante das
sessões de cura "convencionais" que pude ver. Ao invés das rezas, a técnica usada por
ambos foi o sopro. Txapa colocou uma brasa dentro de uma vasilha de cerâmica, na
qual os rezadores aqueciam suas mãos e passavam-nas no corpo do menino, no peito,
braços e pernas, como se retirassem dele algum objeto invisível. Por vezes esfregavam
as mãos em seus próprios corpos, no peito e nas axilas, e, em seguida, no corpo de Api.
No dia seguinte Api estava recuperado, as erupções avermelhadas em seu corpo
desapareceram, e ninguém soube ao certo qual dos dois acusados conseguiu livrar o
menino do feitiço, uma vez que ambos o atenderam quase ao mesmo tempo.
Mais recentemente, em julho de 1997, um mês antes de minha chegada, morreu
na aldeia do rio Campinas, recém-chegado da aldeia do rio Gregório, um homem
acusado de diversas mortes por feitiçaria, mas que não era rezador. Enquanto estava
agonizante, nenhum rezador se dispôs a atendê-lo, a tentar salvá-lo da doença que o
afligia. Os rezadores com os quais pude conversar sobre o assunto, afirmavam
categoricamente, sem qualquer constrangimento, que o tinham deixado sem assistência
devido às mortes que esse homem supostamente teria provocado. Cinco meses depois,
no meu último dia de permanência na aldeia, um dos rezadores (que já tinha afirmado
153

desconhecer as técnicas para matar) foi se despedir de mim na casa em que estava
hospedada e admitiu, conversando com as pessoas dali, que o havia matado com
feitiçaria. Enquanto eu fazia um esforço imenso para tentar entender o que ele dizia, já
que algumas passagens me escapavam, a platéia permanecia muda ante o monólogo
imprevisto – o que foi decisivo para que eu adotasse o mesmo comportamento. Pouco
depois, o assunto mudou sem que ele fosse questionado uma única vez. Mais tarde
confirmei com uma mulher se eu havia mesmo entendido o que o rezador acabara de
assumir. Era mesmo certo, ele havia se auto-proclamado um feiticeiro, e vingativo
também, já que se justificava com uma extensa lista de pessoas que se suspeitava que
teriam sido mortas pela sua vítima – entre elas, o pai da mulher que me confirmava a
informação. Insisti na conversa tentando obter mais detalhes, mas minha interlocutora,
sem querer alongar-se no assunto, pediu para que eu não comentasse o que acabara de
ouvir com ninguém, repetindo o surrado argumento de que "feitiçaria é proibido".
A "proibição" de falar em feitiçaria impede detalhamentos. De todo modo, para
os propósitos deste tópico, cabe dizer que os feitiços podem ser conhecidos e
manipulados por qualquer pessoa34, rezador ou não, e há suspeitos entre os próprios
Katukina, embora na maior parte das vezes eles estejam entre os Yawanawa. O mesmo
se aplica ao envenenamento, uma vez que as plantas utilizadas não são de conhecimento
exclusivo dos rezadores. Um rapaz de seus vinte e poucos anos falou-me de uma planta,
que cresce nas proximidades dos igarapés, utilizada como veneno. Para prepará-lo basta
retirar as folhas, secá-las ao fogo, triturá-las até que se transformem num fino pó e
colocar na comida de quem se quer matar.
Aqui é necessário esclarecer alguns detalhes. Das conversas que tive com
inúmeras pessoas sobre feitiços e envenenamentos, uma única palavra foi utilizada para
definir os dois procedimentos: rao. Este mesmo termo designa ainda as plantas
medicinais. Dada a polissemia de rao, talvez seja possível supor que uma planta sirva
como vetor do feitiço. Retiro esta hipótese de um artigo de Tournon e Reátegui (1984)
sobre a botânica dos Shipibo-Conibo, entre os quais o rao é também traduzido como
"planta medicinal". Segundo os autores, o rao pode ser usado tanto com fins benéficos
quanto maléficos e toda planta tem sua parte imaterial que pode, do mesmo modo como

34
A idéia de que os feitiços podem ser feitos por qualquer pessoa encontra-se também entre os Yaminawa
estudados por Calavia (1995:157), entre os quais, "a agressão mágica, mesmo agora que não tem mais
niumuã, está na mão de qualquer um". Entre os Kaxinawa, Lagrou (1995) afirmou que o "xamanismo da
cobra é um recurso acessível a todos".
154

sua contrapartida material, ser manipulada pelos especialistas xamânicos. Entre os


Kaxinawa, Lagrou (1998:61 e 110) também observou a polissemia do dau que pode
significar veneno, encanto e remédio, além de ornamento. Mais recentemente, Deshayes
(2000:31) observou que os dau dos Kaxinawa "são ao mesmo tempo os remédios e os
venenos" e tanto podem servir para causar quanto para curar uma doença.

A cura do feitiço só é possível se feita pelo próprio feiticeiro ou pelos xamãs.


Como dificilmente alguém admite ser feiticeiro, a primeira alternativa de cura do feitiço
nunca é considerada ou deve sê-lo apenas em situações excepcionais, como a do menino
Api. Já a segunda alternativa é sempre lembrada. As pessoas comentam dos antigos
xamãs como verdadeiros mestres em extrair objetos patogênicos de todos os tipos de
corpos enfeitiçados. Entretanto, não há mais xamãs na aldeia do rio Campinas nem na
do rio Gregório. Nos últimos três anos, os Katukina de ambas aldeias têm buscado
tratamento para as doenças causadas por feitiço na cidade de Cruzeiro do Sul, com
Armédio, um índio Jaminawa-Arara (pano) residente nesta cidade. Armédio é neto de
Crispim, o xamã de que Carneiro da Cunha (1998:12 e ss) falou em um artigo recente,
com quem diz ter feito seu aprendizado. Além dos Katukina, Armédio tem sua clientela
formada pelos índios Jaminawa-Arara dos rios Bagé e Cruzeiro do Vale, pelos
Poyanawa e Nuquini, do rio Môa, e por moradores, índios e brancos, da cidade de
Cruzeiro do Sul. Do mesmo modo que os Katukina, os Jaminawa-Arara do rio Bagé
estão envolvidos numa longa história de relações interétnicas, pacíficas ou não, com os
Yawanawa (Carid 1999). Isso talvez explique o fato de que Armédio tenha algumas
vezes acusado os Yawanawa de lançar feitiços em seus pacientes Katukina.35
A avaliação dos poderes de Armédio se dá de duas maneiras entre os Katukina.
As pessoas que não têm qualquer trato com os assuntos xamânicos, os leigos, o definem
como um romeya e destacam sobretudo a sua capacidade de extrair objetos patogênicos
do corpo das pessoas, como faziam os antigos xamãs. Por sua vez, os rezadores não o
confirmam como um romeya autêntico e isso porque seus conhecimentos não provêem ,
segundo eles, de fontes indígenas. Estive em Cruzeiro do Sul conversando com
Armédio, que estranhamente destacou que suas técnicas de cura, aprendidas com seu

35
Sobre as relações entre os Katukina e os Yawanawa, ver Lima (1994a:125-133) e Carid (1999:43-46 e
ss).
155

avô, não são de origem indígena. Diferentemente de Crispim36, Armédio não toma
ayahuasca nas sessões de cura e suas influências vêm, segundo ele, do espiritismo, "das
sete almas perdidas". Embora eventualmente Armédio tome ayahuasca junto com os
fiéis do Santo Daime em Cruzeiro do Sul, afirma não extrair daí nenhuma inspiração
para as curas que efetua.
Uma boa parte das acusações de feitiçaria veiculadas entre os Katukina, como
disse há pouco, são atribuídas aos Yawanawa, seus vizinhos no rio Gregório, mas é
preciso não esquecer que isso não exclui as acusações internas. Segundo Carid
(1999:43-45), as acusações que constantemente os Katukina fazem aos Yawanawa,
sejam de feitiço, sejam de raptos de mulheres, não têm sua contrapartida simétrica entre
os segundos, que não acusam os primeiros por quaisquer problemas. Do lado
Yawanawa, segundo consta, as acusações de feitiçaria são "fundamentalmente
intratribais" (Pérez 1999:40). Ao mesmo tempo em que acusam os Yawanawa, os
Katukina temem serem reconhecidos como feiticeiros na região. Em 1993, quando um
rapaz marubo, Matxumba, adoeceu enquanto visitava a aldeia do rio Campinas, várias
pessoas temeram por sua morte. O temor justificava-se pelo fato de que se o rapaz
morresse ali, isso levantaria entre seus próprios parentes a suspeita de ter sido morto por
feitiçaria entre as pessoas que tinham prometido acolhê-lo na visita, o que poderia gerar
retaliações. Na tentativa de restabelecer a saúde do visitante, um rezador dedicou-se sem
sucesso a seu tratamento. Vendo a saúde do rapaz piorar dia-a-dia, algumas pessoas
convocaram-me a tratá-lo, o que fiz, por sugestão dos próprios Katukina, buscando
entre os regionais remédios para malária. Matxumba melhorou e a expressão de alívio
era evidente entre as pessoas que o hospedavam.
Seja feitiço seja envenenamento, deve haver proximidade física entre a vítima e
seu agressor. No caso de pessoas supostamente vitimadas por feitiçaria lançada pelos
Yawanawa, isso se dá em visitas que membros dos dois grupos costumam fazer uns aos
outros. Em um dos últimos casos que soube, uma mulher adoeceu logo após uma dessas
visitas. Estranhamente, ela apresentou sintomas da doença que os Katukina traduzem
como "loucura", ninsu, que se define pelo completo descontrole dos atos e gestos, como
se a pessoa perdesse completamente a consciência. No caso em questão, a mulher

36
Crispim difundiu o uso da ayahuasca e deixou outros herdeiros de seus conhecimentos entre os
seringueiros do alto rio Juruá, conforme informam os trabalhos de Araújo (1998) e Franco & Conceição
(1999). É interessante chamar a atenção para o fato de que nestes trabalhos não constam referências à
extração de objetos patogênicos, talvez essa técnica não fosse usada por Crispim ou era com menos
freqüência do que hoje o seu neto, Armédio, faz uso.
156

chorava, gritava, não reconhecia seus parentes, nem sequer suas filhas, e tentava a todo
momento fugir em direção à floresta. Na tentativa de fazê-la recuperar o controle de si
mesma, sua irmã e seu cunhado, levaram-na para a aldeia do rio Campinas, da qual ela
tinha saído após perder seu marido. Mas os episódios de ninsu persistiam e os rezadores
que a atendiam não conseguiam curá-la. Foi então que seus parentes levaram-na para
consultar-se com Armédio, em Cruzeiro do Sul, que interveio com sucesso em sua
recuperação, extraindo de seu corpo diversos objetos patogênicos.
Aproximadamente na mesma época, mulheres yawanawa apresentaram a mesma
doença, também definida como ninsu, e foram inicialmente atendidas por pastores
evangélicos convocados à aldeia pelas "lideranças" e, mais tarde, na cidade de Tarauacá,
onde teriam sido exorcizadas na Igreja do Reino de Deus. Entre os Yawanawa, segundo
Pérez (1999:10), várias explicações foram cogitadas para explicar o caso, mas
prevaleceram as acusações de feitiçaria contra outros grupos (a autora não revela quais
eram os suspeitos). Uma explicação possivelmente excepcional, uma vez que, segundo a
mesma autora (op. cit.: 40), as suspeitas de feitiçaria costumam ser internas ao próprio
grupo.

De rezas e remédios

O conhecimento de plantas de uso medicinal não dá lugar a nenhum especialista,


não há a figura do herbalista, como reconhecida entre os Kaxinawa (Kensinger 1995a),
os Shipibo-Conibo (Tournon 1991:181) e os Yawanawa (Pérez 1999:86). De um modo
geral, os rezadores possuem um conhecimento mais aprofundado sobre as plantas
utilizadas medicinalmente, mas não costumam prescrevê-las ou prepará-las aos doentes
nas sessões de cura. A maior parte das vezes que vi sendo usadas algumas plantas, essas
eram indicadas por pessoas sem qualquer conhecimento xamânico, fossem homens ou
mulheres. Dando mostras de que muitas pessoas conhecem várias plantas de uso
medicinal, Retxa, uma mulher de quase trinta anos, mandou seu filho de doze anos
procurar uma delas na mata, nas proximidades de uma das casas em que estive
hospedada, para que pudesse fazer uma infusão para tratar o inchaço de meu pé após
uma queda. Outras vezes vi crianças ainda mais novas saírem para buscar as plantas
indicadas por pessoas mais velhas. Não houve uma única vez em que estivesse na mata
com outras mulheres que elas não tivessem me mostrado uma infinidade de plantas
usadas nos tratamentos os mais diversos.
157

À parte o conhecimento público de alguns "remédios", outros são conhecidos


apenas por um número limitado de pessoas. O mais comentado é o meyo, capaz,
segundo os Katukina, de esterilizar definitivamente as mulheres. Seu conhecimento é
ainda mais difícil porque consiste na combinação de diferentes partes (folhas, casca e
raiz) de quatro plantas. Qualquer mulher que queira utilizá-lo deve pedir a uma das
pessoas que o conhecem para prepará-lo. Todas são velhas e podem recusar-se a
prepará-lo caso julguem que a mulher ainda é jovem para cessar de ter filhos. Mai,
pensando que eu perguntava do meyo com algum interesse em tomá-lo, disse-me que eu
sequer tinha filhos e, por isso, não me mostraria as plantas nem me falaria de seu
preparo.
O meyo sozinho não surte qualquer efeito. É prescrita uma dieta para as
mulheres que não desejam mais ter filhos. Após tomar a primeira dose do meyo, uma
mulher não deve ter relações sexuais e é recomendável que fique afastada da presença
masculina. A mulher não pode consumir a carne de nenhum dos animais de caça nem
alimentos doces. Sua dieta limita-se a peixes e aves acompanhados de macaxeira.
Enquanto se alimenta, a mulher que tomou o meyo deve manter-se de costas para o
nascente. O leste, como foi indicado no capítulo anterior, está associado ao surgimento
da vida e como se quer justamente deixar de trazer novos seres à vida, as mulheres
literalmente viram-lhe as costas. Passado um mês, a mulher repete a dose de meyo e
segue a dieta pelo mesmo período, findo o qual está encerrado seu tratamento.
Paralelas às freqüentes consultas dos doentes aos rezadores e ao uso esporádico
de plantas medicinais estão as consultas aos agentes de saúde, enfermeiros e médicos
nas aldeias e nos hospitais da região. Na aldeia do rio Campinas, agentes de saúde e
rezadores convivem proximamente e sem maiores atritos. Dois dos agentes de saúde
são, inclusive, filhos de rezadores. O único desentendimento maior foi descrito no
segundo capítulo, em que um rezador responsabilizava um agente de saúde pelo
agravamento do estado de saúde de uma menina, devido à forma brusca como ele a
tinha obrigado a ingerir os remédios.
Os dois sistemas – o xamânico e o ocidental – não parecem rivalizar. De todo
modo, na tentativa de debelar algum mal físico, o tratamento inicia-se quase sempre
pelos rezadores. Um doente muitas vezes reveza-se entre vários deles até conseguir
curar-se. A fabilidade de um rezador, quando não tem maiores conseqüências, é sempre
admitida. Um rezador pode mesmo recomendar o doente a procurar outro rezador.
Nestes casos, suspeita de seu próprio diagnóstico, que o faz entoar cantos de cura
158

inócuos, ou faz o diagnóstico e admite desconhecer o canto de cura apropriado. Txoki e


Mani são parceiros solidários e reconhecidos em situações desse tipo. Nas palavras de
Txoki: "Cada pessoa tem o seu trabalho. Se o paciente chega aqui, passa dois, três,
quatro dias… se eu rezo nela e não teve jeito, mando lá pro compadre Zé (Mani). Se lá
no compadre Zé passou três, quatro dias… se não teve jeito, passa pro João. Aquela
pessoa que sabe mais do que a outra, reza e fica bom. Assim que a gente vem trazendo".
É certo que em situações mais graves não é possível revezar-se entre rezadores
por períodos prolongados. Nessas situações, se não há a possibilidade de deslocar-se
para Cruzeiro do Sul em busca de tratamento médico, vários shoitiya rezam ao mesmo
tempo. Cada um entoa o seu próprio canto de cura, escolhido a partir de seu diagnóstico,
numa estratégia clara de debelar a doença no menor prazo de tempo possível. Num dos
casos de que soube, quatro rezadores – Mani, Txoki, Rono e Peho – reuniram-se em
torno de Vimi para tentar salvá-lo. Sem sucesso, em menos de três horas do início da
sessão de cura o menino morreu. Mais tarde o diagnóstico foi estabelecido. O estado de
saúde do menino agravou-se rapidamente devido ao fato de que seu irmão mais velho,
que partira naquele mesmo dia para uma expedição de caça e que não pôde ser avisado
da doença porque ninguém sabia ao certo a direção em que ele tinha saído e também
porque era noite, havia matado e consumido carne de veado.
Nos casos em que não há tanta pressa, é comum que um doente recorra aos
tratamentos médico e xamânico ao mesmo tempo. Essa é uma possibilidade freqüente
nos casos de malária. Acompanhei por diversas vezes a seguinte situação. Uma pessoa
apresenta uma febre persistente e um rezador é convocado para tratá-la.
Desacompanhada de outros sintomas, a febre pode ser causada por quedas e sustos e
pela aspiração da fumaça que emana de porongas iluminadas por querosene. O rezador,
após consultar o doente e seus familiares, estabelece o diagnóstico. Passados alguns dias
de rezas sem que o doente apresente melhoras, o agente de saúde é chamado. Recolhe
amostras de sangue do doente e caso o resultado seja positivo, indica os remédios. O
início do tratamento médico não interrompe, entretanto, o tratamento xamânico.
Na aldeia do rio Campinas, pelo menos até 1998, o medicamento disponível para
tratar malária era o quinino, o qual encontra uma restrição de uso muito grande devido
aos efeitos colaterais que provoca (náuseas, vômitos e tontura), fazendo muitas vezes
com que uma pessoa sinta-se mais debilitada após a ingestão dos remédios do que
159

antes.37 Entre todos os remédios que os Katukina conhecem e usam, o quinino é


certamente aquele que ocupa a posição mais ambígua, faz bem ao mesmo tempo que
mal. É usado para curar uma enfermidade, mas os cuidados do rezador não são
dispensados, pois o quinino provoca outras. Nestes termos, o quinino ajusta-se
perfeitamente ao neologismo que foi criado para designar os remédios, raonti, que é
etimologicamente ligado ao rao. Como escrevi há pouco, o rao é um conceito
polissêmico relacionado tanto à cura das doenças quanto às suas causas, designa tanto as
plantas medicinais quanto os feitiços e envenenamentos. Como boa parte das plantas
medicinais, o quinino é também muka.
Apesar dos problemas identificados no quinino, os Katukina reconhecem nele
um meio de cura eficaz. Para debelar os efeitos colaterais que provoca, um doente
diagnosticado com malária permanece sob os cuidados de um rezador.
Se o quinino, apesar de sua reconhecida eficácia, ocupa o pólo negativo da
coexistência dos sistemas de cura xamânico e ocidental, as injeções ocupam o extremo
positivo. Tão muka quanto é o quinino, as injeções supõem perfurações e picadas que,
como escrevi antes, são associadas ao amargor (Erikson 1996). As lembranças das
epidemias de sarampo e varíola e de outras doenças que, de tempos em tempos,
ceifavam muitas vidas, certamente não podem ser desconsideradas na tentativa de
explicar a atitude voluntária com que as pessoas se dispõem a receber injeções de
antibióticos e vacinas. Entretanto, sem querer minimizar seus sentimentos, parece-me
que a valoração extremamente positiva das injeções relaciona-se mais às propriedades
terapêuticas das perfurações. Por um lado, é evidente que nem todas as pessoas
distinguem entre antibióticos injetáveis e vacinas, apenas sabem que ambos requerem as
picadas para serem injetados. De outro, recordo-me que nas campanhas de vacinação, a
cada grito de uma criança ao receber a picada, seguia-se o riso de um adulto e a
confirmação da satisfação: roapa! ("muito bom"). Quando alguma criança impunha
resistência aos enfermeiros, os próprios adultos apressavam-se a tomar a vacina,
orgulhosos de darem o exemplo. No mais, suspeito que as injeções são tanto melhores
quanto em maior número, como o kampo. Pelo menos foi isso que acabei concluindo ao

37
As avaliações negativas ou, ao menos, as suspeitas quanto à boa indicação dos remédios, podem ser
percebidas na resistência que os Katukina opõem ao uso de alguns deles, sobretudo ao quinino. Não
foram poucas as vezes que vi pessoas, diagnosticadas com malária, abandonarem ou sequer começarem
o tratamento devido ao receio dos efeitos colaterais produzidos pelo medicamento. Um dos agentes de
saúde da aldeia do Campinas, microscopista treinado pela FNS para diagnosticar malária,
160

receber uma caixa com quarenta ampolas para o tratamento da leishmaniose e, ante meu
desalento, ser confortada com elogios à eficácia das injeções.
O quinino e as injeções sintetizam as possibilidades de confluência dos sistemas
de cura xamânico e ocidental, nos seus pólos negativo e positivo, igualmente
sustentados pelas elaborações dos próprios Katukina. A esse respeito, Txoki joga com
as palavras e justifica a convivência dos saberes xamânico e médico: "a gente não sabe
o que é que o branco sabe. O que o branco não sabe, índio sabe. É assim com todas
nações, uns sabe aquilo, outro não sabe aquilo. Olha, o que médico sabe, índio não sabe.
E trabalho que índio faz, médico não sabe." A fala de Txoki, certamente confusa por sua
expressão em português, quer destacar a complementariedade entre os dois sistemas de
cura, mas em diversas situações o que os rezadores fazem é reduzir um sistema ao
outro. O sistema médico ocidental é interpretado em analogia com o sistema xamânico.
É o que se passa nas duas situações descritas abaixo.
Em comum os sistemas xamânico e ocidental têm a possibilidade de matar, ao
invés de curar. O alerta de médicos e agentes de saúde de que os remédios devem ser
ministrados com cautela e bem guardados, pois se ingeridos em excesso podem "até
matar", é interpretado em analogia com as rezas. Muito embora essa analogia seja um
tanto exagerada, já que o consumo acidental de remédios é involuntário enquanto que a
possibilidade de as rezas matarem nem sempre o sejam, dada a possibilidade de
feitiçaria.
Em outra situação, as pessoas lembram que o período de aprendizado de
médicos é longo, como o é também o dos rezadores. O agente de saúde mais elogiado
da aldeia do rio Campinas, Ni'i, é justamente aquele que está há mais tempo em
atividade e que freqüentou diversos cursos de treinamento. Quando ele comunicou, em
uma reunião, que estava abandonando suas atividades por falta de remuneração, várias
pessoas lamentaram sua desistência e expuseram sua desconfiança em ter de ficar sob os
cuidados de agentes de saúde pouco experimentados.
Ni'i reclamava de que desde o início de suas atividades como agente de saúde,
em meados de 1980, nunca tinha sido remunerado e que abandonaria as atividades para
poder se dedicar mais aos seus próprios afazeres (roçado, caça), que não estava
conseguindo conciliar com os atendimentos e visitas que tinha de fazer às pessoas.

freqüentemente dizia-se desestimulado e queixava-se da falta de cuidado de seus pacientes que


agravavam seus quadros de saúde por se oporem ao uso do quinino.
161

Contrariamente aos rezadores, que eventualmente recebem algum tipo de pagamento,


quase sempre em mercadorias, os Katukina entendem que os agentes de saúde devem
ser remunerados pelo poder público.
Em um aspecto muito particular as prescrições de rezadores e médicos não são
bem modeladas. Duas das doenças endêmicas da região do alto Juruá, malária e
hepatite, atingem o fígado e os médicos da região costumam recomendar o consumo de
alimentos doces para regularizar o funcionamento hepático e reduzir a hipoglissemia.
Os rezadores recomendam exatamente o contrário, que se suspenda o consumo de
alimentos doces.
Em 1997 uma equipe de saúde visitou a aldeia do rio Campinas e atendeu os
doentes. Na ocasião, uma menina de três anos foi diagnosticada com malária, o exame
detectou quatro cruzes de falsiparum. Alarmados, médicos e enfermeiros
providenciaram os comprimidos de quinino e fizeram a garota comer uma banana – um
alimento doce que normalmente não se deve oferecer aos doentes –, para que fossem
melhor digeridos. Poucos minutos depois, certamente devido à dose maciça de
medicamentos que recebeu, a menina prostrou completamente. Ainda com a presença
da equipe médica na aldeia, a mãe da menina chamou um rezador para vê-la. Quando
ele pediu explicações sobre o que teria causado o agravamento do estado de saúde da
menina, a mãe dela lembrou-se da banana que o médico a tinha feito comer para digerir
melhor os comprimidos. Em meio a um burburinho generalizado, com a equipe médica
responsabilizando os agentes de saúde pela gravidade do estado da criança e esses, por
sua vez, responsabilizando a mãe dela por não ministrar os remédios que eles já haviam
prescrito, o consumo da banana é que acabou sendo considerado o causador do mal. A
criança teve de ser levada para tratamento em Cruzeiro do Sul. Para que houvesse
tempo de removê-la, a equipe médica atendeu-a emergencialmente ministrando glicose!

Os rezadores e os cantos de cura

Como disse no início, são treze atualmente os shoitiya entre os Katukina: nove
na aldeia do Campinas e quatro na aldeia do rio Gregório, todos homens com idade
superior a 50 anos. Evidentemente há diferenças no grau de conhecimento de cada um
deles, já que alguns rezam há mais de 30 anos enquanto outros são ainda aprendizes. O
critério de "tempo de serviço" é muitas vezes evocado pelos Katukina para
reconhecerem a profundidade e a extensão dos conhecimentos de um rezador. Washime,
162

o mais antigo rezador da aldeia do rio Campinas, é visto por muitos, senão por todos,
como o shoitiya mais poderoso da aldeia – embora em todo o período de minha
permanência em campo eu o tenha visto atuar uma única vez.
Mas "tempo de serviço" não é um critério absoluto para reconhecer poderes a
um shoitiya. Mani, o mais ativo rezador da aldeia do rio Campinas, junto com Txoki,
reza há 30 anos e reconhece que Rono, que reza há apenas 10 anos, sabe tanto quanto
ele – embora Rono humildemente se coloque numa posição inferior. A discordância
entre os dois baseia-se em dois critérios que podem ser ativados para avaliar o sucesso
de um rezador: (i) é o "tempo de serviço"; (ii) é o aprendizado feito com um rezador
mais experiente, que pode poupar tempo de reflexões solitárias na busca pela cura das
doenças. A discordância entre Mani e Rono, acerca da profundidade de seus
conhecimentos e de suas próprias possibilidades de sucesso, deve-se ao fato de que cada
um emprega um dos critérios para contrastar suas posições. Vejamos.
Como vimos, Mani diz ter começado a aprender a rezar em 1969, quando
morava em um seringal no rio Tauari. Naquela época, sem outros rezadores nas
proximidades, seu aprendizado consistia apenas em lembrar os sonhos nos quais Rono
yushin revelava-lhe os segredos de cura. No começo da década de 1970, Mani mudou-se
para o seringal Japurá, no riozinho da Liberdade, juntamente com outros Katukina, e lá
passou a ser instruído nos conhecimentos de cura por Me’o e, anos depois, pelo falecido
Kero, já na atual aldeia do rio Campinas. A experiência de acompanhar rezadores mais
antigos prolongou-se por algum tempo, mas boa parte dos conhecimentos de Mani,
segundo ele próprio, foram adquiridos sozinhos. Fazendo um largo uso do rapé, Mani
sonhava com Rono yushin, o Espírito da Serpente que se apresentava na forma de uma
bela mulher, que lhe revelava o segredos de cura. Noite após noite, ele sonhava e
acordava na madrugada, esforçando-se para não esquecer as palavras que lhe foram
reveladas em sonhos e que deveriam ser repetidas nas sessões de cura. Entre a vigília e
o sono ele formava seu repertório de rezas.
A trajetória de Rono como shoitiya e seu aprendizado é algo diferente. Há pouco
mais de 10 anos, Rono viu uma mana rono (jibóia) em cima de um balseiro, no caminho
para a casa onde morava, na aldeia do rio Gregório. Na mesma noite ele sonhou que
havia muitas pessoas doentes (com catarro, gripe, febre). Ainda no sonho, ele rezava e
as pessoas logo ficavam sadias. Certo de que o sonho o autorizava a atuar como um
shoitiya, Rono procurou Tsomi, o mais antigo de todos os rezadores Katukina, para lhe
ensinar os segredos das rezas. Além de sessões privadas de aprendizado, Rono
163

acompanhou por 10 anos Tsomi em alguns ritos de cura, de modo que seu aprendizado
foi quase todo monitorado. Com sua mudança para a aldeia do rio Campinas, o
acompanhamento direto com Tsomi foi interrompido e Rono passou a atuar sozinho.
Mani sempre chamava Rono para acompanhá-lo nos ritos de cura, mas ele dizia ter
vergonha de errar e ser corrigido.
Mani iniciou-se no conhecimento das rezas quase 20 anos antes de Rono,
embora este seja aproximadamente 10 anos mais velho que ele. Mani acredita que
ambos tenham o mesmo poder como rezadores. Rono, embora tenha começado a rezar
tardiamente, teria uma vantagem sobre ele devido ao fato de ter sido instruído por um
rezador bastante experimente, que o acompanhou por muito tempo. Já Rono acredita
que Mani é mais eficaz que ele próprio nos ritos de cura, pois, embora tenha aprendido
muito das rezas solitariamente, tem mais tempo de experiência.
A rigor, o aprendizado de um rezador estende-se indeterminadamente, pois os
sonhos sempre revelam novos cantos de cura e o próprio rezador diante de pacientes que
não reagem positivamente ao tratamento deve procurar novas formas de cura, isto é,
estimular sonhos que lhe revelem novos cantos. Um rezador pode também, nas
situações em que seus próprios cantos não surtem o efeito esperado, consultar um
rezador que tenha tido sucesso em curar alguma doença semelhante e pedir para que lhe
ensine os cantos de cura apropriados. Mas este é um domínio crítico do xamanismo
katukina.
Entre os rezadores, sobretudo entre os mais antigos, há acusações de falta de
generosidade e mesmo de engodo com os cantos de cura. Alguns rezadores, admitindo
que seus próprios cantos não são apropriados para tratar algumas doenças, queixam-se
de que os rezadores mais antigos não ensinam os cantos de cura que sabem, retendo-os
para si. Os queixosos dizem que eles fazem assim por medo de "ficarem para trás", isto
é, de serem ultrapassados em conhecimentos pelos aprendizes.38 As acusações chegam
ao ponto de um rezador afirmar que um outro, para não demonstrar avareza com os
cantos de cura, lhe ensinou, propositalmente, cantos "errados". O primeiro teria
descoberto que os cantos seriam "errados" após entoá-los numa sessão de cura e não

38
Segundo Pérez (1999:40), a transmissão dos conhecimentos esotéricos também não se faz sem algum
temor entre os Yawanawa. A autora afirma que uma das razões que justifica as desconfianças é que
esses conhecimentos podem voltar-se contra aquele que os transmite, pois o aprendiz pode usá-lo
tempos depois contra o seu mestre. Tanto mais porque as acusações de feitiçaria e envenenamentos são
em sua maioria internas ao grupo.
164

obter o resultado esperado, ou seja, o paciente não apresentar melhoras.39 Fossem os


cantos de cura "certos" e o paciente ter-se-ia restabelecido. A experiência deveria atestar
sua aplicabilidade.
Para entender essa "profissão de fé" empírica justamente num contexto em que,
aos olhos ocidentais, a realidade empírica falta, é preciso saber que cada canto de cura é
compreendido como fixo e imutável. A sua eficácia depende da repetição exata das
palavras que veiculam o poder mágico. Palavras trocadas ou fora do lugar obliteram o
livre fluxo dessa magia e podem mesmo, em algumas situações, representar um risco.
Assim, a fixidez e imutabilidade é que fundamentam a compreensão dos cantos de cura
como "certos" ou "errados".
Observo aqui que os Marubo e os Uni parecem conceber seus cantos de cura da
mesma maneira. Entre os primeiros, segundo Montagner Melatti (1985:366), "a letra do
cântico é imutável". A efetividade dos cantos de cura uni, segundo Frank (1994:201),
"parece diretamente dependente de sua repetição completamente inalterada. Os Uni
acreditam que a canção mesma, como seqüência específica de palavras, recitadas de
maneira 'própria' e imutável, contém o potencial que se realiza ao cantá-la".
Contrariamente aos Yaminawa que, segundo Townsley (1993:458), não têm textos
invariantes em seus cantos, embora uma seqüência narrativa de metáforas e imagens
seja minimamente estabelecida.
Retornando aos Katukina, lado a lado das acusações de engodo e avareza com os
cantos de cura está a concepção de que a transmissão dos conhecimentos de um rezador
ao outro acarreta a perda de poderes por parte daquele que os transmite.40 As palavras
repetidas nos cantos de cura não só veiculariam o poder xamânico, seriam elas próprias
fontes primeiras de poder e a partilha delas com outros resultaria na despotencialização
das palavras de seu possuidor. Estariam habilitados a transmitir os conhecimentos
xamânicos, sem risco de perda de poder, apenas rezadores bastante experimentados, que
já sedimentaram seus conhecimentos. Um dos rezadores, para exemplificar e tornar
mais claro tal concepção, comparou o tempo de aprendizado que ele teve para conhecer
as rezas com o tempo de estudo que tive para tornar-me professora: "A reza é como
você que está estudando… conhece bem, estuda tem mais de 12 anos, você sabe bem. É

39
Reforço que a avareza, do mesmo modo como foi tratada no capítulo anterior, pode significar não
apenas a retenção de algo que se detém, mas a falsa generosidade. A acusação é de que o rezador mais
experiente ensinou propositalmente cantos errados, guardando seus verdadeiros cantos para si.
165

assim. Quando a gente passa 12 anos, 30 anos, 40 anos, aí já sabe bem. Mas pouco
tempo.... com 10 anos não pode ensinar ainda não".
Ainda que seja arriscado transmitir conhecimentos imaturos, o fundamental é
que as acusações que os rezadores fazem entre si põem em cena a disputa por prestígio e
reconhecimento existente entre eles próprios. A disputa por prestígio fica ainda mais
evidente quando se trata de reivindicar os méritos pela cura dos doentes. É bastante
freqüente que os parentes de uma pessoa adoentada convide mais de um rezador para
tentar curá-la. Assim, ou eles rezam juntos ou alternam-se rezando em noites diferentes,
cada qual entoando os cantos de cura que julga apropriados. Mais tarde, com a
recuperação do doente, cada um deles reivindica a cura para si.
A concorrência entre os próprios rezadores pode igualmente ser percebida na
recusa de alguns deles em entoar os cantos de cura na presença de rezadores mais
experientes e também nos comentários que tecem sobre o estilo (entonação, rítmo) dos
cantos uns dos outros. No primeiro caso, da recusa, não são poucos aqueles que alegam
"vergonha" para não se exporem diante de rezadores mais experientes. Quando os
rezadores descrevem o período de aprendizado, o sentimento de "vergonha" (ravini) é
sempre lembrado. Aqui, a "vergonha" nada mais é que a insegurança provocada pelo
receio de errar e ser corrigido ou, pior, ser vítima de deboche, permitindo assim que
outro se coloque numa posição superior. Um sentimento que tem suas justicativas.
Rono, por exemplo, após mudar-se para a aldeia do rio Campinas, demorou a expor-se
diante de outros rezadores. Se ele estivesse realizando uma sessão de cura e chegasse
outro rezador no local, imediatamente interrompia seu canto. Pouco a pouco ele
começou a entoar os cantos de cura diante de outros. Um dia, entretanto, ele estava
"rezando" diante de Txoki e Mani, os dois mais requisitados e ativos shoitiya da aldeia
do rio Campinas, e, em seu canto, dizia que estava "espantando" o espírito do animal
que afligia a criança doente. Txoki e Mani, numa brincadeira duvidosa, começaram a rir
e a zombar dele, falando para Rono deixar que eles próprios "espantariam" o bicho. A
Rono, que é mais alto e encorpado do que Txoki e Mani, caberia, em seguida, "jogar o
bicho no igarapé". Aborrecido com a suposta brincadeira, Rono interrompeu seu canto e
foi embora.

40
Townsley afirma o mesmo a respeito da transmissão dos cantos de cura entre os Yaminawa do lado
peruano (1988:139).
166

No segundo caso, ou seja, de comentários sobre as formas dos cantos alheios,


ouvi a seguinte reclamação: "ele pensa que sabe mais do que eu, ele grita mesmo
[quando reza]. Ele pensa que passa por mim [canta rápido] e vai embora, com muita
força. Mas eu vou devagarzinho: tá, tá, tá, tá, tá....". Apesar disso, os dois rezadores
envolvidos neste comentário mantêm uma sólida parceria e pedem a colaboração um do
outro quando não estão conseguindo curar seus pacientes – o que não impede cada um
de reivindicar a cura para si mesmo.
Os cantos de cura, como já vimos, são revelados aos rezadores por Rono Yushin,
o Espírito da Serpente. Sendo assim, os rezadores possuem um acervo pessoal de
cantos, formado a partir da lembrança de seus próprios sonhos, e um outro acervo,
formado a partir de cantos ensinados por outros rezadores. Na medida em que novos
cantos são incorporados ao repertório, é possível afirmar que há uma renovação
constante do acervo comum de cantos de cura e a criatividade surge então como mais
uma das características dos rezadores. Uma característica que certamente responde às
suas idiossincrasias, mas também às mudanças em curso ao longo da história e que
alteraram até os flagelos que atingem os homens. Os Katukina afirmam que as doenças
de hoje são bem mais difíceis de tratar que aquelas de outrora e que algumas delas são
causadas por produtos que antes desconheciam. De tal maneira que o repertório de
cantos de cura conta atualmente com alguns para tratar dos efeitos colaterais dos
remédios, do consumo excessivo de açúcar e da febre causada pela fumaça de querosene
e óleo diesel queimados por porongas e tratores. 41 Aos Katukina aplica-se o mesmo que
escreveu Townsley (1984:76) a respeito dos Yaminawa: "tudo tem yoshi e quase tudo
tem sua canção".
Quando um rezador é requisitado para atender qualquer paciente, em sua própria
casa ou na casa dele, a primeira coisa que faz é perguntar ao doente (se estiver em
condições de responder) ou a seus parentes quais os sintomas observados. Em seguida,
o rezador quer saber o que o doente comeu, o que sonhou ou se caiu ou se assustou
antes de adoecer. Com base nas respostas, o rezador elabora o diagnóstico e inicia a
sessão de cura. No caso das doenças provocadas pelo consumo de carne, há para cada

41
Montagner Melatti (1985:262) afirmou que a criatividade é também uma qualidade fundamental para
um homem tornar-se xamã entre os Marubo, "para constantemente renovar, recriar e criar novos cantos
diante do aparecimento de novas enfermidades e epidemias". A incorporação de produtos
manufaturados ao universo xamânico foi também descrita por Siskind. A autora afirma, por exemplo,
que os Sharanawa definem a gripe "como uma doença peruana e os cantos de cura são sobre objetos
167

animal um canto específico. Assim, se concluir que a doença foi causada pelo consumo
de paca, o rezador entoa o canto de cura específico para a paca; se veado, o "canto do
veado"; se o queixada, o "canto do queixada" e assim por diante.42 No caso de doenças
provocadas por quedas em igarapés, as coisas se passam da mesma maneira, há o "canto
do igarapé". Se o doente ou um parente seu teve algum sonho interpretado como
prenúncio de doença ou morte, o rezador entoa os cantos específicos dos espíritos,
yushin.
Embora não tenho conseguido uma tradução desses cantos43, soube que neles os
rezadores, em suas próprias palavras, "espantam", "atacam" e "ameaçam" o espírito
(yushin) do animal causador da doença. Segundo soube, os rezadores podem chegar a
lançar mão de armas, como flechas, facas ou espingardas, na tentativa de combater o
agente agressor que provoca a doença em seu paciente. Na sessão de cura, o rezador,
através de seus cantos, enfrenta o espírito do animal, da água ou aquele que apareceu
em sonhos e faz com que, de alguma maneira, ele abandone o corpo do doente. Trata-se
de um embate entre o rezador e os agentes externos que desestabilizam os vínculos entre
o doente e seus espíritos, do corpo e do olho, e que podem, em situações mais graves,
ser completamente rompidos, conduzindo o paciente à morte.
Aqui é necessário voltar rapidamente à diferenciação entre os xamãs e rezadores
para destacar que embora os rezadores não tenham poderes para atrair animais para as
proximidades da aldeia, como fazem os xamãs propiciando a caça farta, eles podem se
comunicar no contexto da cura com seus espíritos. Os xamãs têm poderes avantajados
de comunicação que permite tanto atrair quanto afastar os espíritos dos animais, já os
rezadores conseguem apenas afastá-los.
No desentendimento entre Rono, Mani e Txoki que relatei há pouco, quando
falava do sentimento de vergonha dos rezadores principiantes, o primeiro estava
"espantando" o espírito do animal causador da doença no momento em que os outros
dois debocharam dele e sugeriram para que deixasse eles próprios "espantarem" o

peruanos: colares de miçanga, aviões, motores de barco e rádios" (1973a:160). Sobre este assunto ver
também Townsley (1988:152 e 1993:451 e 456).
42
Este procedimento é comum a outros grupos pano, como os Shipibo-Conibo (Illius 1992) e os Marubo
(Montagner Melatti 1985) e diverso do usado pelos Yawanawa, que tratam as doenças provocadas pelo
consumo de alimentos proibidos, sobretudo de animais de caça, apenas com plantas medicinais (Pérez
1999:61-62).
43
Não consegui a tradução dos cantos de cura. A maior parte dos rezadores não permitiu que eu fizesse
gravações e a única sessão de cura que um rezador me permitiu gravar, jamais foi traduzida. De um
lado, os especialistas (inclusive o rezador que autorizou a gravação) recusavam-se a traduzir; de outro os
leigos esquivavam-se alegando desconhecimento.
168

bicho. A Rono, fisicamente maior, caberia "jogar o bicho no igarapé". Deixando de lado
o desentendimento entre os três, a compreensão dos cantos de cura como um embate
entre os especialistas xamânicos e espíritos não é estranha a outros grupos pano, por
isso a referência à estratégia de "afastar" e "afogar" o espírito que atormentava a criança
doente. Montagner Melatti (1985:371-372) definiu os ritos de cura marubo como uma
"luta violenta" cujo principal objetivo é "atemorizar e expulsar a doença". Para
combater o yochi causador da doença, os xamãs e rezadores marubo podem dispor de
terçados, faca de taboca, fogo, fumaça e vento, entre outras coisas. Antes dela, Siskind
(1973) colecionou casos de cantos de cura cujos diagnósticos foram estabelecidos a
partir dos sonhos dos doentes. Em todos os exemplos que recolheu, os xamãs atuavam
com violência, enfrentando o espírito agressor com fogo, lanças e arcos e flechas. Nas
palavras da autora: "o xamã penetra no sonho, controla os espíritos dos animais e
resgata seus pacientes da interação mortal com estranhos" (:165). Entre os Shipibo-
Conibo, Illius (1992:67-71) observou que, nos cantos de cura, o nihue causador da
doença deve ser "quebrado", "separado", "fendido", "lavado" e "distribuído". Mais
recentemente, Pérez (1999:136) relatou que o xinaya (rezador) yawanawa se desfaz das
doenças trancando-as em casas, aprisionando-a em buracos e afogando-as. Em todos
esses grupos, a agressividade é o que marca a interação dos especialistas xamânicos
com os espíritos causadores das doenças. 44
A despeito dos ritos de cura serem concebidos como uma luta dos especialistas
xamânicos com os espíritos causadores da doença, a confrontação com o mundo dos
yushinvo não se faz sem algum cuidado, pois os primeiros não estão imunes à ação dos
agentes externos com os quais interagem. Neste sentido, cabe dizer nem todos os
rezadores estão aptos a tratarem as mesmas doenças. Em início de carreira, um rezador
atua apenas em casos mais simples de febre, diarréia, tosse. Mesmo assim, se o paciente
não apresentar melhoras é sinal de que talvez o diagnóstico não tenha sido bem
estabelecido e o mais recomendado é chamar outro rezador em seu lugar. A precaução
deve ser tomada não só com o objetivo de preservar o paciente, mas também a si
mesmo. Uma sessão de cura mal conduzida pode resultar em prejuízo ao próprio
rezador. No caso de um diagnóstico de espíritos de pessoas mortas tentando atrair

44
Chamo a atenção aqui para o fato de que a compreensão dos ritos de cura como um embate, entre os
próprios Katukina, os Shipibo-Conibo, os Marubo e os Yawanawa, é radicalmente diferente da
concepção dos Piro estudados por Gow (1991 e 1996:95), que nas sessões de cura intentam "amansar"
os agentes causadores das doenças.
169

parentes, por exemplo, não são todos os rezadores que se habilitam. Segundo Mani, que
há apenas alguns anos começou a "rezar" pessoas diagnosticadas com a ameaça dos
espíritos de pessoas mortas, há o risco de o rezador ser vencido pelo yushin se não
souber a forma exata de se comunicar. Nesse caso, não só a pessoa atormentada pelo
yushin pode sucumbir, como o próprio rezador, que passa a ser também atacado por ele
e corre o risco de morte. Se as sessões de cura são como um "embate", é compreensível
que haja a possibilidade de "derrota" do rezador, o que envolve não só o risco do
paciente como também dele próprio, demasiadamente exposto ao enfrentar o espírito
agressor.
Assim, por exemplo, a ousadia de um rezador que tenta socorrer um acidentado
com cobra sem conhecer profundamente os cantos de cura adequados, pode custar-lhe a
própria vida, pois ele pode ser picado fatalmente por uma. Nesse caso, o risco não é
contornado apenas com anos de estudo e treino para conhecer e debelar o mal causado
pelo veneno. Para "rezar" picadas de cobra é preciso ter sido picado por uma
particularmente poderosa e que tenha mostrado, durante a recuperação, o canto de cura
correto, o antídoto contra o seu próprio veneno.45 Dos nove rezadores em atividade na
aldeia do rio Campinas, apenas três afirmam saber os cantos de cura para picadas de
cobra. Entretanto, todas as pessoas que se acidentaram e foram socorridas na própria
aldeia, foram tratadas apenas por um deles, Washime, o mais velho do lugar.
Ser picado de cobra não é, entretanto, garantia de que seus segredos para debelar
o veneno serão revelados. Ne'e, o único rezador Katukina que disse ter recebido os
conhecimentos de cura de Rono Yushin após ter sido mordido por uma cobra, não
conhece os cantos específicos para tratar mordida de cobra. Mani, que já se acidentou
com cobras três vezes, desconhece também o seus segredos: "fui picado, mas as cobras
não me mostraram nada".
Logo que iniciei a pesquisa, os Katukina negavam que as palavras ditas nos
cantos pudessem ser compreensíveis. Somente após eu indicar que entendia algumas das
palavras, foi que soube que, embora conhecidas, as palavras não compunham um
discurso inteligível para leigos.46 Não porque se canta em outra língua, canta-se em
katukina, mas porque as palavras enunciadas ganham novo sentido nas rezas e as

45
Esta concepção dos Katukina é bastante diversa da que têm os Kaxinawa, entre os quais, segundo
Deshayes (2000:32), as pessoas mordidas por cobras venenosas devem ser socorridas por um huni
dauya, um herbalista. Apenas as pessoas mordidas por cobras não-venenosas, como jibóias e anacondas
(ver nota 24), devem receber o tratamento propriamente xamânico com o huni mukaya.
170

metáforas são abundantes.47 Do mesmo modo como ocorre entre os Marubo (Montagner
Melatti 1985:363-369), os Yaminawa (Townsley 1988:136-140 e Calávia 1995:112) e
os Yawanawa (Pérez 1999), os cantos de cura são em linguagem ritual e algumas
palavras ordinariamente utilizadas no quotidiano são substituídas por outras ou têm seus
significados alterados.48 No máximo, alguém indicava: "está rezando tatu", "rezando
veado", "rezando água", dependendo do diagnóstico da doença. O mesmo modo como
os Katukina esclarecem a respeito do tema das cantigas Kulina ("cantiga do jacaré",
"cantiga da queixada") que eles conhecem e ainda usam em alguns rituais. Com a
diferença de que as músicas kulina eles, de fato, não entendem.
As palavras proferidas pelos xamãs e rezadores transbordam o seu sentido usual,
pois o que eles vêem em seus sonhos e viagens xamânicas ultrapassa o plano da
experiência quotidiana. É por isso que eles são considerados sábios (tanai kuin) ou,
como traduzem os próprios Katukina, "sabidos": entendem as coisas mais
profundamente que os outros e vêem coisas que os outros não vêem. O esforço feito
pelos rezadores para lembrarem-se de seus sonhos consiste, segundo Txoki, exatamente
na busca da "melhor palavra" ou da "palavra bonita" (vana roapa), que dê conta da
excepcionalidade de suas vivências. Não é à toa que, como escrevi no início, uma das
designações possíveis para rezador seja justamente hewen vanaya, "a palavra dele".
Não deve ser coincidência que os rezadores sejam também aqueles que mais
conhecem os mitos. O acúmulo de conhecimento dos rezadores parece se expressar
também nos contatos que estabelecem com outros grupos indígenas. Poko e Mani, os
dois katukina que visitaram, por suas próprias iniciativas, os Marubo no rio Ituí, em
1992 e 1993, são rezadores. Antes, na década de 1960, eles já tinham visitado os Kulina
no médio rio Gregório, onde, aliás, aprenderam as cantigas de que falei antes.49

46
Do mesmo modo como Calávia Saez observou para os Yaminawa (1995:112).
47
No início deste século, Tastevin (1924) acompanhou uma sessão de cura entre os Katukina do rio
Gregório e afirmou que as palavras não tinham qualquer sentido na língua. Um espectador katukina
disse para Tastevin que não entendia a língua em que eram entoados os cantos e, mais, que não era o
xamã quem cantava: era Rono Yushin, o xamã apenas emprestava-lhe o corpo.
48
A este respeito observo que algumas das palavras apontadas como de uso ritual entre os Yaminawa e os
Marubo são de uso corrente entre os Katukina. Os exemplos que seguem são, coincidentemente, todos
de aves. Assim, o gavião cancão (Daptrius americanus), chamado srapei em linguagem quotidiana e de
beshtáo em linguagem ritual entre os Marubo (Montagner Melatti 1985:369), é chamado veshatao entre
os Katukina. Townsley (1988), por sua vez, observou que, entre os Yaminawa, o urubu chamado
corriqueiramente de kushu é chamado de shete no rito de cura. Entre os Katukina, esses dois termos são
utilizados quotidianamente, embora cada um deles designe aves distintas: kosho serve ao cujubim
(Pipile pipile) e shete ao urubu (Coragypts atratus).
49
Cabe dizer que as relações entre os Kulina e os Katukina parecem ser muito mais antigas. Segundo
Mani, o repertório de cantigas kulina conhecidas atualmente é bastante diferente daquele que sua própria
171

Quaisquer que tenham sido os desdobramentos destas "viagens mais conformes à nossa
definição usual", não resta dúvida de que elas conferem ou acentuam o prestígio do
rezador (Carneiro da Cunha 1998: 12).
Quando visitou as aldeias marubo no rio Ituí, em 1993, Mani diz ter feito uma
demonstração de suas rezas aos seus hospedeiros. Os Marubo teriam dito que suas
palavras eram bonitas, mas que ele precisava aprender mais. O tempo foi curto, por isso
acabou não aprendendo, segundo ele. Não deve ser improvável, entretanto, que tenha
incorporado palavras (e técnicas) marubo em suas rezas, já que incorporou algumas
delas em seu próprio vocabulário.50
A interpretação de Carneiro da Cunha (1998:12) de que as viagens são
experiências únicas, que podem acentuar o prestígio e mesmo substituir períodos de
aprendizagem xamânica tradicional, porque nelas têm-se a oportunidade de unir os
pontos de vista local e global, foi revista por Vilaça (1999). A autora observou as
estreitas relações que Crispim mantinha com os brancos e os incidentes que marcaram
sua biografia antes de voltar ao alto Juruá para, a partir dos Wari', propor uma nova
leitura. Cito-a:

"O que esta descrição sugere, é que as viagens, longe de constituírem trajetos
essencialmente visuais, como para nós (visitas a museus e outros lugares típicos),
representam sobretudo o estabelecimento de relações sociais intensas, uma vida em
comum (pacífica ou não) com pessoas desses outros mundos. É exatamente o que dizem
os Wari' quando descrevem suas viagens às cidades: eles falam das refeições que
partilharam com os brancos, das agressões físicas (…). Conclui-se que a aprendizagem
vem aqui da experiência ligada ao corpo e arrisco-me a dizer que é precisamente porque
constituem 'trajetos corporais' que essas viagens às cidades são equivalentes às viagens
xamânicas para os Pano" (1999:255)

A interpretação de Vilaça das viagens como "trajetos corporais" parece-me


bastante adequada, mas antes de comentá-la a partir dos Pano, em particular dos

mãe conhecia. De acordo com sua explicação, as canções que ele e Poko aprenderam há
aproximadamente trinta anos são mais novas.
50
O empréstimo de práticas xamânicas de outros grupos é um tanto comum entre os Pano e os exemplos
são abundantes na literatura. Entre os Yawanawa, Pérez (1999:28-30) comenta de um homem que se
iniciou com Tobias, o romeya katukina morto há seis anos na aldeia do rio Gregório. Um outro homem
(um Jaminawa-Arara residente entre os Yawanawa) recebeu instruções xamânicas do famoso Crispim,
de Antônio Luiz (um antigo chefe dos Yawanawa) e de um kaxinawa. Comenta-se que o próprio
Crispim obteve seus conhecimentos no Ceará e em Belém e Carlito Cataiano, um xamã kaxinawa
residente em Rio Branco, mistura técnicas aprendidas entre os Yawanawa e Katukina nos rios Gregório
e Tarauacá com outras aprendidas em rituais de umbanda que freqüentou em Belém e Manaus (Carneiro
da Cunha 1998:12-15). Há ainda o caso de Armédio, o neto de Crispim de que falei antes, que mistura
conhecimentos aprendidos com seu avô com outros do espiritismo. Entre os grupos pano do lado
peruano, há o caso dos Uni que se iniciaram no xamanismo com mestres shipibo-conibo (Frank
1994:202).
172

Katukina, faço algumas observações. Primeiramente, o principal argumento de Carneiro


da Cunha (1998) em seu artigo é que as viagens não oníricas, em geral rio abaixo, são
equivalentes às viagens oníricas. Um argumento que se aplica estreitamente aos
exemplos de Mani e Poko, como sugeri acima. Em segundo lugar, não se lê em
passagem alguma do mesmo artigo que as viagens (oníricas ou não) são meras
sucessões de imagens, como se dispensassem as relações sociais. De minha própria
leitura, observo que, embora a passagem citada acima possa sugerir a oposição dos
argumentos de Carneiro da Cunha (1998) e Vilaça (1999), ambos não são excludentes.
Esclarecidas as diferenças pontuais de interpretação e voltando ao artigo de
Vilaça (1999), observo que, no limite, ao menos no que diz respeito aos Katukina, toda
viagem supõe um "trajeto corporal", e não apenas as viagens à cidade, que interessam
mais diretamente à autora. Por um lado, nas viagens às aldeias marubo, que descrevi
acima, Poko e Mani, separadamente, iniciaram seus relatos falando do medo que
sentiram por terem penetrado um mundo desconhecido deles, sobretudo um mundo
repleto de pessoas com as quais não estavam genealogicamente vinculados. Ao poucos,
o temor foi cedendo. Aqui ambos destacaram o mesmo motivo para a diminuição do
medo: "aí me deram comida, tinha muito comida…". A comensalidade inaugura o
estreitamento das relações para ambos, que visitaram as aldeias marubo em diferentes
momentos, um após o outro. No caso de Mani, além da comensalidade, o seu próprio
nome vinculou-o putativamente como irmão de uma mulher, na casa de quem acabou
hospedando-se durante a estadia. Eufórico com as relações que teceu entre os Marubo,
Mani tentou casar, mas fracassou, uma de suas filhas com um filho de sua "irmã", um
rapaz que na volta o acompanhou à aldeia do rio Campinas (Lima 1994a:147-148). Por
outro, as viagens propriamente xamânicas, extáticas, podem ser também interpretadas
como "trajetos corporais". Após o encontro com uma cobra, a iniciação xamânica, como
foi exposto, ocorre com um sonho em que um homem oferece ayahuasca ou rapé para
consumirem juntos e com a oferta de uma "esposa" para acompanhá-lo, revelando os
segredos de cura e oferecendo auxílio. Do que pude entender, a relação carnal com sua
esposa onírica faz dela uma consubstancial. Os cuidados que os especialistas xamânicos
têm que observar com sua própria dieta alimentar, relaciona-se à manutenção do rome
em seus corpos, sem o qual perdem a capacidade de comunicação com os espíritos. Por
mais importantes que sejam as imagens entre os grupos pano, as viagens não são
experiências exclusivamente visuais – algo que se pode confirmar particularmente nas
etnografias sobre os Shipibo-Conibo (Gebhart-Sayer 1986; Illius 1994) e os Kaxinawa
173

(Lagrou 1998; Deshayes 2000), dois grupos que têm um grafismo extremamente
elaborado, relacionado em grande parte às imagens que os xamãs vêem em suas viagens
estimuladas pelo consumo do ayahuasca.
Para encerrar este comentário à interpretação de Vilaça (1999), lembro-me de
um rapaz que após ter acompanhado uma equipe de treinamento em saúde numa viagem
a diversas aldeias no alto Juruá, voltou ao rio Campinas dizendo que tinha visto uma
cobra gigantesca, o que subentendia a sua eleição à carreira xamânica. É possível
imaginar que o rapaz estivesse jogando com a duplicidade dos sentidos da viagem, para
fora e para dentro, horizontal e verticalmente. Contudo, questionado pelos rezadores
sobre os detalhes de sua eleição, o rapaz nada soube responder. Sobretudo, afirmou não
se lembrar das sensações que experimentou e de nenhum canto de cura que lhe foi
revelado. Acabou desacreditado por todos. Afinal, concordando que "a aprendizagem é
uma experiência ligada ao corpo", uma viagem que não deixa lembranças é uma viagem
que não aconteceu.
174

CAPÍTULO 5
A ordem na natureza

Ao longo do percurso etnográfico percorrido até aqui, vimos que a forma como
as pessoas se portam, falam e reagem estão todas permeadas pelo cuidado em equilibrar
suas relações com a alteridade. Uma queda, do mesmo modo que um susto, pode
desestabilizar os vínculos entre um corpo e os espíritos que o animam. Se fracassam as
tentativas de recuperação do equilíbrio, a morte irrompe e sucede um período crítico,
durante o qual tornam-se vulneráveis sobretudo as pessoas mais próximas do defunto,
que se podem deixar abater pela tristeza e sucumbir. Nestas situações, aos rezadores é
reservada a tarefa de apaziguar – se é que se pode falar em estratégias pacíficas sendo os
ritos de cura entendidos como embates – as relações com esses "outros" que ameaçam
os vivos. Para tanto, estabelecem alianças com seres tão sobrenaturais como aqueles que
ameaçam as pessoas que se propõem proteger. Como vimos, grande parte destas
ameaças são originárias dos espíritos dos animais que, com maiores ou menores
restrições, todos comem. A carne de caça é o alimento por excelência, qualquer refeição
desprovida dela é incompleta e, apesar dos riscos de contra-predação, não há rituais de
purificação das presas antes do consumo.
As várias implicações sociológicas dos resguardos alimentares, da morte e do
xamanismo foram tratadas nos capítulos anteriores. Agora busco sistematizar como são
concebidas as relações dos homens com os animais, a partir do exame da classificação
taxonômica e do simbolismo da fauna, em particular dos mamíferos e das cobras.
Contudo, adianto que a opção de abordar os sistemas taxonômicos não implica a
aceitação tácita de que constituem formas objetivas de conceituação da natureza. No
mundo ocidental, as ciências naturais parecem ter como certa essa afirmação. O
cuidadoso estudo de Keith Thomas (1989:61-109) já mostrou que as ciências naturais
têm a sua própria história e o peso que tem hoje o critério morfológico no âmbito
acadêmico é resultado dos esforços feitos pelos primeiros taxonomistas para
distanciarem-se dos critérios populares que, muitas vezes, reportavam-se a outros
175

domínios que não a morfologia. Tanto que a idéia de sistemas taxonômicos – assim, no
plural – pode não ser bem vista ou tida como inadequada.
Aqui tentarei mostrar como os conhecimentos e as elaborações dos Katukina
sobre as espécies naturais não estão desconectadas das concepções que têm de si
mesmos nem do restante da natureza. Além disso, ainda que o critério morfológico na
classificação da fauna possa ser (e, de fato, é) quantitativamente predominante, não
consta como único nem é hierarquicamente superior.1 Ao lado dele, e
concomitantemente, estão os critérios pragmáticos e simbólicos. A seguir faço uma
primeira aproximação aos sistemas taxonômicos dos Katukina, em seguida concentro-
me na exposição da classificação e do simbolismo dos mamíferos e das cobras.

Os moradores da floresta

O céu, a terra e a água são habitados por criaturas conhecidas e nomeadas pelos
Katukina. Em busca dos léxicos que designam cada um dos animais, os Katukina
estranhavam a minha própria ignorância em diferenciar alguns deles. Ante a minha
desculpa de que algumas daquelas criaturas não existiam "na minha terra", as pessoas
indagavam a respeito da inexistência delas por outras partes do mundo. Não que os
Katukina não saibam reconhecer que diferentes ambientes comportam apenas
determinadas espécies, mas julgam que, ao fim e ao cabo, uma certa homogeneidade
deve prevalecer. Já a minha desculpa de que algumas espécies rarearam no lugar onde

1
As críticas à primazia do critério morfológico nos estudos etnobiológicos são antigas na literatura
antropológica, mas os estudos que enfatizavam os critérios simbólicos dedicavam-se mais a espécies
animais tidas como "anômalas". Nessa discussão é sempre lembrado o estudo de Bulmer (1967) sobre a
classificação do casuar na Nova Guiné. O casuar, um pássaro parecido com o avestruz, é agrupado pelos
Karam em um taxon separado daquele reservado aos pássaros e aos morcegos. Algumas observações
sobre a morfologia do casuar – um pássaro que não tem asas visíveis, não voa, não tem penas e é muito
grande em relação aos demais –, pareceriam justificar o lugar único que ele ocupa na taxonomia karam.
Contudo, em grupos vizinhos aos Karam o casuar é agrupado juntamente com os demais pássaros, fato
que, segundo Bulmer, é suficiente para recusar o critério morfológico, ou simplesmente a aparência,
como um classificador único. O autor busca na cultura karam a justificativa para o status taxonômico
especial do casuar, sobretudo no domínio cosmológico, que faz dele um ser "quase-humano" (:20). Para
Bulmer, "procurar por uma explicação do status taxonômico especial do casuar em termos puramente
taxonômicos, por referência a aspectos objetivos de sua aparência e comportamento, não resolveria o
problema. (...) 'status taxonômico especial' é algo mais amplo, um status especial na cultura, ou na
cosmologia, em geral" (:13). A conclusão de Bulmer é correlata de uma advertência de Lévi-Strauss
(1989[1962]:70) de que "não basta identificar com exatidão cada animal, cada planta, cada corpo celeste
(...) – é preciso saber que papel cada cultura lhe atribui no interior de um sistema de significações". Em
contrapartida, a mesma conclusão distancia Bulmer de Berlin, Breedlove e Raven (1973), que citam o
casuar como um exemplo típico de aberração taxonômica, que sempre ocorre, segundo os autores,
devido "a uma série de fatores, mas a conspicuidade morfológica e/ou importância econômica parecem
ser as razões primariamente envolvidas" (:216).
176

moro, devido à intervenção humana, foi claramente compreendida. Os moradores da


aldeia do rio Campinas concordam que logo que eles chegaram ali, há quase trinta anos
atrás, a floresta ao redor abrigava muitos macacos-barrigudos, capivaras, antas e
queixadas. Atualmente, há muitos anos não são vistos macacos-barrigudos e as
capivaras, antas e queixadas tornam-se cada vez mais raras. O abate de alguma anta
chega a ser excepcional. O uacari e o soim-preto nunca existiram por ali, é o que dizem.
O uacari é encontrado nas imediações da aldeia do rio Gregório. Já o soim-preto não é
encontrado nas imediações de nenhuma das aldeias, eles existem apenas na margem
direita do rio Juruá.
Não há termos que designem o conjunto do reino animal ou vegetal. No reino
animal, as criaturas que compartilham a habitação neste mundo, embora não os mesmos
espaços, são agrupadas pelos Katukina em três categorias supragenéricas (formas de
vida, na terminologia de Berlin) linguisticamente nomeadas: yoina, tsatsa e rono.
Respectivamente, essas categorias correspondem, de forma aproximada, aos mamíferos
terrestres e arbóreos, aos peixes e às cobras. Nenhuma categoria desse tipo foi apontada
para designar as aves. 2
A princípio, a categoria supragenérica yoina3 só não comporta ratos, morcegos,
botos e o peixe-boi entre os mamíferos. Estes são agrupados em categorias genéricas e
específicas. Maka agrupa o conjunto dos ratos e também o coelho (Sylvilagua
brasiliensis) – chamado de maka pantxoya, que pode ser traduzido como "rato com
orelhas" (pantxo, orelhas; ya, atributivo). Individualmente o coelho é agrupado na
categoria genérica yoina, mas não a totalidade dos ratos. Os morcegos são todos
agrupados na categoria kanshi. O boto não é classificado junto com os mamíferos e
genericamente é chamado kosho, sendo reconhecidas duas espécies: kosho honshi (boto
vermelho, Inia geoffrensis) e kosho txeshe (tucuxi, Sotalia fluviatilis). O peixe-boi
(Trichechus inunguis) é designado especificamente como awa hene, que numa tradução
literal seria "anta d'água", embora os Katukina não permitissem com isso incluí-lo junto
com as "antas terrestres" (awa).
A categoria inicial tsatsa, peixes, não inclui alguns bichos aquáticos como
poraquês, arraias, bodós, caranguejos e camarões. Estes são agrupados em categorias
genéricas. Os Katukina reconhecem três espécies de poraquê (koni), seis de arraia (iwi)

2
Os Shipibo-Conibo agrupam todas as aves na categoria isa (Goussard 1983 e Tournon 1994).
3
O mesmo termo é usado pelos Shipibo-Conibo para designar a totalidade dos animais. A taxonomia
zoológica deste grupo foi descrita por Tournon (1994).
177

e sete espécies de bodes (ipu). A categoria tsatsa pode ser tripartida para agrupar os
peixes com escama (tsatsa posaya), os peixes de couro (tsatsa reshviya) e os peixes que
têm esporão (tsatsa pakaya). A categoria rono agrupa a totalidade das cobras, terrestres
e aquáticas. A única exceção é a espécie Typhlops reticulatus, uma serpente vermiforme
de hábitos subterrâneos, que é classificada na categoria genérica noin, que comumente
reúne as minhocas4. A classificação dos animais agrupados como yoina e rono será
abordada com mais vagar adiante. Antes, vejamos rapidamente como são classificados
as aves e as plantas.
Como disse antes, não há uma categoria que reuna a totalidade das aves. Na maior
parte das informações que obtive, as aves recebem denominação específica, como: kevo
(jacu), nea (jacamim), koma (nambu), vako (nambuzinho), hansi (mutum), shori
(surulinda), sene (nambu), shawan (arara), kana (arara), mira (arara), vawa (papagaio),
shoke (tucano), pisa (maçarico) e txashkon (saracura). Como ocorre com os mamíferos,
os nomes vernáculos designam, na maior parte das vezes, uma única espécie. De tal
modo que as araras, por exemplo, são reconhecidas por três nomes diferentes: shawan
(Ara araraona), mira (Ara manilata) e kana (Ara chloroptera). As corujas são também
conhecidas por três termos distintos: pupu (Otus choliba), que reúne pelo menos três
outras espécies, kete (Pulsatrix perpicillatta) e venon (Ciccaba sp). Mas alguns nomes
vernáculos servem também como categorias genéricas, pois neles os Katukina agrupam
diferentes espécies. Assim, txashkon agrupa quatro diferentes espécies: txashkon kuin
(Aramides cajanea), txashkon washa (Pardirallus maculatus), tama txashkon (Neocrex
erythrops) e kora txashkon (Pardirallus nigricans). A categoria txashkon abrange
espécies da família Rallidae no sistema de classificação ocidental. Há categorias
genéricas ainda para designar os urubus (shete), gaviões (tete), pica-paus (voin),
martim-pescadores (txarash) e beija-flores (pino). Os tucanos (shoke) são discriminados
dos araçaris (pisa). Entre os primeiros, as espécies mais mencionadas são: wi shoke
(Ramphastos swainsonii) e awa shoke (Ramphastos tucanus). Entre os araçaris, são
citados o pisa kuin (Pteroglossus torquatus) e o pasha pisa (Aulacorhynchus
haemotopyguns).
Os passarinhos são todos agrupados dentro da categoria genérica shai e
despertam pouco interesse dos katukina. Normalmente são referidos apenas como shai,

4
Segundo Amaral (1977:33), essa espécie é popularmente classificada como minhoca, tanto assim que
seus nomes mais comuns são fura-terras e minhocão.
178

mas alguns deles têm nomes específicos, como: vari (sol) shai, mani (banana) shai, shai
txeshe (preto), shai honshi (vermelho), shai punan (azul), shai washa (rajado), shai koro
(roxo), mai (terra) shai e tean (igarapé) shai. Aqueles que não têm nomes específicos
podem ser particularizados descrevendo uma característica morfológica, como shai
mampo honshi, "passarinho da cabeça vermelha".
Não há qualquer termo que designe o conjunto do reino vegetal. A floresta
primária é chamada ni'i kuin e as áreas de capoeiras são ni'i pasha, "floresta
verde/imatura". Não me dediquei em detalhe ao assunto, mas os nomes para designar as
espécies vegetais parecem ser abundantes. Assim, não há nenhum termo que agrupe a
totalidade das palmeiras, cada uma delas é designada por um nome que lhe é próprio.
Como exemplo temos jaci (shevo), aricori (pite), jarina (hepo), canaraí (tama) e paxiúba
(tao). As árvores podem ser designadas genericamente como hiwi, mas o mais comum é
o uso dos termos específicos que as designam, como kuran (caucho), keo
(maçaranduba), ako (cumaru-de-cheiro), shono (samaúma), kuman (miratauá) e patxo
(carapanaúba).
Faz-se uso também de categorias genéricas para designar espécies da flora,
embora me pareçam menos abundantes. Algumas palmeiras que oferecem frutos
comestíveis são designadas genericamente como isan. Algumas delas são: kevo isan
(abacaba), isan kuin (patauá), panan isan (assaí) e tikish isan (desconhecido o nome em
português). Os Katukina reconhecem vários tipos de cacau e ingá e cada uma das
espécies reconhecidas é agrupada na categoria genérica no'o e shena, respectivamente.
Quando se quer indicar uso da madeira como lenha, o termo genérico usado é karo.
Assim, shena karo é um ingazeiro cuja madeira serve como lenha. Os cipós em geral
são agrupados na categoria genérica hayansh. Já os cipós que têm propriedades
alucinógenas são denominados oni, os Katukina reconhecem seis espécies agrupadas
nessa categoria.
Uma parte significativa das plantas têm nomes próprios sem qualquer
significado explícito, uma outra parte, entretanto, têm seus nomes relacionados ao uso
que se faz delas. Assim, dois arbustos têm as seguintes denominações: awa mani iso
yama e mari iso yama. Awa mani designa corriqueiramente a banana-grande e mari, a
cotia; iso (urina) yama (não tem) quer dizer "não tem urina". As folhas desses arbustos
são usadas no tratamento para regularizar o funcionamento da bexiga que, devido ao
consumo de banana-grande ou de cotia, pode ser, segundo os Katukina, comprometido.
Esse tipo de nomenclatura pragmática não ocorre para designar elementos da fauna.
179

Não me aprofundei na pesquisa da fitoterapia katukina,5 de todo modo, entre as


várias plantas que me foram mostradas na mata é possível antever que uma parte
significativa delas é classificada de acordo com os sintomas que se querem debelar.
Assim, surge, por exemplo, a categoria inoto, que agrupa plantas utilizadas no
tratamento de constipação. Há várias delas: mapi (camarão) inoto, shanka (caranguejo)
inoto, wani (pupunha) inoto e varanshi (maracujá) inoto. Novamente, a designação da
planta refere-se ao uso que se faz dela. No caso das plantas acima, os primeiros nomes
fazem referência justamente ao alimento que seria o causador do mal. Dois outros
agrupamentos foram destacados: nitxinte e muka. O primeiro refere-se a um conjunto de
plantas que são usadas para que as crianças aprendam logo a andar. O segundo, muka,
para contornar o mal-estar que pode ser desencadeado pelo consumo de certos
alimentos. Como exposto no segundo capítulo, a onça-vermelha é controversa quanto ao
uso alimentar, algumas pessoas dizem que seu consumo faz as pessoas se sentirem
"fracas". Uma planta conhecida como kamani muka, pretende justamente desfazer o
mal-estar provocado pelo consumo da carne de onça-vermelha.6
Feita uma breve apresentação dos sistemas taxonômicos entre os Katukina,
passemos à análise da taxonomia dos mamíferos.

5
As poucas informações que acumulei sobre a botânica foram recolhidas em menos de dois meses, em
1995. Quando retornei a campo, em 1997, não consegui dar continuidade ao tema, pois as acusações de
biopirataria que pesavam contra a empresa Selva Viva, com a qual os Katukina ingenuamente
colaboraram, fizeram-nos bastante temerosos e melindrosos ao tratar o tema. Como expus na
apresentação, os Katukina pensavam ser acusados, e não testemunhas, na investigação promovida pela
Assembléia Legislativa do Acre. Sem querer correr o risco de ser vista também como suspeita pelos
Katukina, acabei desistindo de voltar à pesquisa da fitoterapia.
6
As categorias inoto, nitxinte e muka foram destacadas também entre os Marubo por Montagner Melatti
(1985: 304-306) e não se trata apenas de uma mesma terminologia, o uso indicado para as duas
primeiras é inclusive o mesmo. Há registro também da categoria muka entre os Yawanawa (Pérez
1999:67).
180

Yoina, os mamíferos terrestres e arbóreos

Yoina é uma categoria supragenérica que agrupa quase todos os mamíferos


encontrados na floresta. A listagem abaixo reúne os animais agrupados nesta categoria.

Shanshan (mucura, Philander opossum)


Pisi masho (mucura, Didelphis marsupialis)
Ano (paca, Agouti paca)
Kestavo (paca-de-rabo, Dinomys branickii)
Mari (cotia, Dasyprocta sp)
Txasho (veado, Mazama sp)
Awa (anta, Tapirus terrestris)
Yawa (queixada, Tayassu pecari)
Hono (caititu/porco do mato, Tayassu tacaju)
Ame (capivara, Hydrochaeris hydrochaeris)
Kapa (coatipuru, Scirius sp)
Tsanka (cotiara, Myoprocta pratii)
Pano (tatu-canastra, Priodontes maximus)
Yawish (tatu, Dasypus sp.)
Kansho (tatu-rabo-de-couro, Cabassous unicintus)
Shishi (coati, Nasua nasua)
Shama (bule-bule,Potos flavus)
Yoina Isan (cuandu, Coendu sp.)
Iso (macaco-preto, Ateles paniscus)
Ro’o (guariba, Alouatta seniculus)
Shino (Cebus sp.)
Wasa (macaco-de-cheiro, Saimiri sciureus)
Nesho (macaco-da-noite, Aotus sp.)
Txona (macaco-barrigudo, Lagothrix lagothricha)
Katxi taro (uacari vermelho, Cacajao calvus rubicundus)
Roka (paruacu e zogue-zogue)
Shipi (soim.)
Vi’i (mambira, Tamandua tetradactyla)
Kanshi meso (tamanduaí, Cyclopes didactylus)
Sha’e (tamanduá-bandeira, Mymecophaga tridactyla)
Posan (bicho-preguiça, Dradypus variegatus)
Nain (bicho-preguiça, Choloepus sp.)
Ketsin (gatos)
Kaman (onça, cachorro-do-mato, ariranha)
Sata (lontra, Galictis vittata)
Voka (irara, Eira barbara)
Tabela 1

De um modo geral, cada nome vernáculo agrupado na segunda coluna


corresponde a uma espécie dentro do sistema de classificação ocidental. Mas há
181

exceções, pois nove dos trinta e seis nomes vernáculos acima comportam mais de uma
espécie: txasho, kapa, yawish, roka, shino, shipi, mari, ketsin e kaman. Estes servem
como categorias genéricas que, complementadas com um determinante, definem
diferentes espécies. Assim, temos:

Txasho koro (veado-roxo, Mazama gouazoubira)


Txasho
Txasho honshi (veado-vermelho, Mazama americana)

Kapa koro (coatipuru-roxo, Sciurus aestuans)


Kapa Kapa txeshe (coatipuru-preto, não identificado)
Kapa honshi (coatipuru-vermelho, Sciurus spadiceus)

Yawish kuin (tatu-galinha, Dasypus novemcinctus)


Yawish Yawish anipa (tatu, Dasypus kappleri)
Mana yawish (tatu, não identificado)

Paka roka (zogue-zogue, Callicebus molloch)


Roka
Roka voshpo (paruacu, Pithecia pithecia)

Shino kuin (macaco-prego, Cebus apella)


Shino
Shino manan (macaco-cairara, Cebus albifrons)

Shipi osho (soim-branco, Callithrix argentata)


Shipi txeshe (soim-preto, Callimico goeldii)
Shipi
Shipi koro (soim, Callithrix sp.)
Shipi kopana (soim-bigodeiro, Saguinus imperator)

Mari honshi (cotia vermelha, Dasyprocta sp.)


Mari
Mari txeshe (cotia preta, Dasyprocta fuliginosa)

Ketsin kuin ou ketsin txeshe (gato-preto, Felis


Ketsin yagouarandi)
Ketsin keneya (gato-do-mato, Felis pardalis)

Kaman kuin ou kaman keneya (onça-pintada, Panthera


onca)
Kaman honshi (onça-vermelha, Felis concolor)
Kaman
Kaman txeshe (onça-preta, não identificada)
Hene Kaman (ariranha, Pteronura brasiliensis)
Hono Kaman (cachorro-do-mato, Atelocynus microtis)

Na tabela 1, cada uma das categorias taxonômicas reconhecidas tem um nome


que lhe é exclusivo. A única exceção parece ser pano, que designa o tatu-canastra, pois
o mesmo léxico serve também para designar uma rã e, na terminologia de parentesco,
designa a prima cruzada. Entretanto, os Katukina, que reconhecem tratar-se da mesma
182

palavra, não me indicaram qualquer homologia entre eles e eu mesma não fui capaz de
estabelecê-la.
Para as categorias em que se reconhece diversidade, a nomenclatura é binomial:
ao nome de base ou primário, é acoplado o nome secundário ou determinante. Assim,
em Kapa koro, o primeiro nome é o nome de base e o segundo o determinante – não
necessariamente nesta ordem. Os nomes secundários destacam, na maior parte das
vezes, características morfológicas dos animais. Os mais freqüentes fazem referência a
cor do animal, como: koro, roxo; honshi, vermelho; txeshe, preto. Keneya, usado para
definir a onça-pintada e o gato-do-mato, faz menção às manchas (desenhos) que ambos
têm na pele. Outros reportam-se ao tamanho: anipa, grande. Outros ainda remetem ao
habitat, como hene, igarapé, rio ou curso d’água e mana, terra.
Nomes específicos podem ser formados também pelo reconhecimento de uma
homologia morfológica e, nesse caso, há a combinação de dois nomes genéricos, como
em hono kaman – hono (porco) mais a categoria kaman – que designa o cachorro-do-
mato. A combinação pretende destacar a semelhança na cor acizentada da pelagem do
cachorro e do porco.7 Para dirimir a dúvida sobre qual das denominações é a mais
englobante, a inclusão do cachorro silvestre na categoria kaman foi indicada pelos
próprios Katukina. A combinação de dois nomes genéricos repete-se em outros
exemplos. Entre as aves, os Katukina reconhecem uma espécie de socó (Trigrisoma
lineatum) denominada ketsin aka. Ketsin normalmente designa o gato-do-mato e aka é o
nome primário reconhecido ao socó. A combinação desses dois termos se explica pelo
reconhecimento da similitude da coloração da pelagem do gato-do-mato e da plumagem
do socó quando jovem, ambos rajados de amarelo e preto. Esse é um caminho bastante
tortuoso da semântica da taxonomia katukina, uma vez que o gato-do-mato é chamado
ketsin keneya, sendo que o nome secundário, keneya ("com desenho"), é o que destaca o
rajado de sua pelagem, mas o nome primário, ketsin, é que foi selecionado para
especificar o rajado da plumagem do socó.8 Entretanto, cabe destacar que no caso do
socó, ketsin serve como nome secundário.
A combinação mais comum de dois termos genéricos para estabelecer o nome de
uma dada espécie ocorre com awa, que normalmente designa a anta, o maior mamífero

7
Os Achuar também compõem os nomes de algumas animais por homologia morfológica. (Descola
1989:123).
8
Os Shipibo-Conibo denominam o Trigrisoma lineatum como inon jaca, sendo que, entre eles, inon é o
nome dos felinos (Goussard 1983:169). A semântica parece ser a mesma que a dos Katukina.
183

terrestre. Como nome secundário, awa destaca o tamanho avantajado de uma espécie
comparada às outras do mesmo gênero. Assim, awa mani, uma banana e awa shoke, um
tucano, são as maiores espécies entre todos as reconhecidas nas categorias genéricas em
que são classificadas. Entretanto, escapam desta interpretação diversos colubrídeos
conhecidos como awa rono. Certamente os colubrídeos são as cobras mais encontradas
na região, mas estão longe de serem as maiores.
Ainda no que diz respeito à nomenclatura cabe destacar a categoria kuin. Entre
os Katukina e outros grupos pano, kuin é normalmente traduzido como "verdadeiro",
"legítimo". Na taxonomia katukina, kuin serve como nome secundário, de expressão
facultativa, para designar espécies prototípicas de um determinado gênero. Dessa
maneira, entre os mamíferos (mas há exemplos também entre as aves, os peixes e as
plantas), temos shino kuin (macaco-prego, Cebus apella), yawish kuin (tatu-galinha,
Dasypus novemcinctus) e kaman kuin (onça-pintada, Panthera onca)9. Essas espécies,
evidentemente, não são mais "verdadeiras" que as outras agrupadas nas mesmas
categorias genéricas de que fazem parte, o acréscimo desse termo apenas destaca a
distintividade em relação às demais.10 Ao invés de "verdadeiro", talvez seja o caso de
pensarmos a tradução de kuin como "propriamente dito". Teríamos então o "macaco
propriamente dito", o "tatu propriamente dito" e a "onça propriamente dita".11 Essa
tradução tem a vantagem de evitar a criação de oposições artificiais, que não exprimem
o esquema nativo. Involuntariamente, a idéia de que uma dada espécie é "verdadeira"
pode subentender a "falsidade" de uma outra espécie, quando não é disso que se trata.
Afinal, a onça-vermelha é kaman tanto quanto o é a onça-pintada.
A semelhança entre a taxonomia katukina e a ocidental contemporânea revela-se
mais facilmente nos casos em que a diversidade é nula ou pouco reconhecida. Então, a
cada categoria científica eqüivale uma etnocategoria. Excetuando-se os casos mais
óbvios, apenas as categorias txasho e o kapa parecem corresponder exatamente à

9
Os Kaxinawa do rio Jordão parecem fazer uso semelhante do kuin na classificação da fauna (Aquino e
Iglesias 1994:105).
10
O uso de nomes secundários que designam espécies prototípicas, com o sentido de "verdadeiro",
"legítimo" ou "genuíno", é bastante difundido nos sistemas taxonômicos não ocidentais. Berlin
(1992:108-112) fornece exemplos do mesmo tipo entre os Tzeltal, estudados por ele, e também entre os
Waiãmpi e Huambisa, na Amazônia, entre os Srê do Vietnã e os Kalã da Nova Guiné. A partir desses
exemplos e de uma observação de Hunn, o autor conclui que as espécies prototípicas são aquelas
"altamente visíveis, amplamente prevalecentes no meio e freqüentemente observadas". Os exemplos que
recolhi entre os Katukina, contudo, não corroboram essa afirmação. Segundo eles próprios, as onças-
vermelhas (kaman honshi) são muito mais vistas que as onças-pintadas (kaman kuin) e os macacos-
cairaras são mais encontrados que os macacos-pregos.
184

taxonomia ocidental. Assim, entre os cervídeos, os Katukina reconhecem duas espécies


que correspondem exatamente ao gênero Mazama da taxonomia científica: Txasho koro
(veado-roxo, Mazama gouazoubira) e Txasho honshi (veado-vermelho, Mazama
americana). As semelhanças, entretanto, encerram-se aí.
O reconhecimento da diversidade numa mesma família no sistema taxonômico
ocidental faz-se acompanhar do reconhecimento da diversidade pelo próprio sistema
taxonômico katukina. Assim, na taxonomia ocidental, os tatus (Dasypodidae) são
agrupados em quatro gêneros, sendo que um deles comporta três espécies e os outros
três apenas uma. Os Katukina, que não dispõem de uma categoria taxonômica que
agrupe todos os tatus, distinguem-nos em três apelações, pano e kansho, representantes
únicos de seu gênero, e yawish (que corresponde ao gênero Dasypus), que comporta três
espécies.
A respeito das correspondências entre os sistemas de classificação científico e
folk, Berlin et alii (1969) estabeleceram três possibilidades: (i) subdiferenciação; (ii)
correspondência um a um; e (iii) superdiferenciação. A subdiferenciação ocorre quando
uma categoria folk engloba duas ou mais categorias científicas, i.e., um único termo
vernáculo engloba várias categorias científicas. A correspondência um a um verifica-se
quando uma categoria folk coincide exatamente com uma categoria científica. Por fim, a
superdiferenciação ocorre quando várias categorias folk estão contidas em uma
categoria científica, i.e., os termos vernáculos discriminam mais que a categoria
científica.
Levando em conta tais possibilidades de correspondência, o sistema taxonômico
relativo aproximadamente aos mamíferos apresenta uma abundância de
superdiferenciação, como se vê abaixo:

Subdiferenciação
Shipi Callitrichidae
Callimicoridae

11
Agradeço a Manuela Carneiro da Cunha ter chamado minha atenção para essa elaboração.
185

Correspondência um a um
Ano Agoutidae
Kestavo Dinomyidae
Txasho Cervidae
Ame Hydrochaeridae
Kapa Sciuridae
Isa Erethizontidae
Naim Megalonychidae
Posan Bradypodidae

Superdiferenciação
Pisi masho
Shanshan Didelphidae
Makun

Shishi
Procyonidae
Shama

Yawa
Tayassuridae
Hono

Mari
Dasyproctidae
Tsanka

Vi'i
Sha'e Myrmecophagidae
Kanshi meso

Yawish
Kansho Dasypodidae
Pano

Iso
Roka
Shino
Ro'o
Cebidae
Wasa
Nesho
Txona
Katxi taro

Os casos de superdiferenciação superam os dois outros. Quantitativamente, a


superdiferenciação representa quase 70% do total.
As diferenças entre os sistemas taxonômicos ocidental e katukina são realmente
destacadas na categoria genérica kaman que, por essa razão, não foi disposta nos
186

quadros anteriores (relativos às correspondências estabelecidas por Berlin et alii 1969).


A categoria kaman agrupa cinco mamíferos que morfologicamente têm pouco em
comum, o que os assemelha parece ser apenas a preferência alimentar, pois são todos
carnívoros.12 Entretanto, a identificação de um critério não é tão simples, uma vez que
se a categoria Kaman fosse para agrupar todos os animais carnívoros, nela deveriam
estar também o coati e o bule-bule. Sem contar que teria ainda de comportar o gato-do-
mato, que, além de carnívoro, se assemelha bastante à onça-pintada.13
A categoria kaman agrupa espécies das famílias Canidae, Felidae e Mustelidae.
Entretanto, apenas algumas em cada uma delas. Assim, entre os felinos, as onças são
kaman, mas não o são os gatos. Estes são agrupados na categoria genérica ketsin. Entre
os mustelídeos, a ariranha (Ptenoruna brasiliensis) consta da categoria kaman, mas não
uma outra lontra (sata, Galictis vittata) e a irara (voka, Eira barbara). Aqui a busca de
correspondências, para mais ou para menos, com o sistema de classificação ocidental
torna-se improdutiva. Diante dessa situação, restam poucas alternativas senão admitir
que a arbitrariedade pode irromper discretamente no sistema, desfazendo a ordem mais
aparente (Descola 1989:123).
Os animais introduzidos após o contato com os brancos foram agrupados dentro
das categorias preexistentes. O cachorro doméstico foi agrupado na categoria kaman.
Por seu turno, o gato doméstico foi agrupado junto com o gato silvestre e é igualmente
designado como ketsin. A ovelha foi agrupada junto com o veado e é designada txasho.
O porco doméstico é designado hono, como seu correlato silvestre. Os únicos animais
que receberam uma denominação exclusiva foram o boi e o cavalo. O boi é chamado de
voi, a troca do b pelo v é uma clara adequação à fonologia da língua. O cavalo é
chamado ina.14

12
Todos animais agrupados na categoria kaman são denominados ino quando mencionados em narrativas
míticas. Segundo os próprios Katukina, ino era o nome antigamente dado a esses bichos. O mesmo
ocorre entre os Marubo que, segundo Melatti (1986:19), designam a onça corriqueiramente como kaman
e reservam o termo ino aos contextos ritualizados. A denominação desses predadores como ino é ainda
freqüente entre os Kaxinawa (Aquino e Iglesias 1994) e Shipibo-Conibo (Tournon 1994).
13
Da mesma maneira como fazem os Achuar (Descola 1989:122-123) e os Kayapó-Xikrin (Gianini
1991:42).
14
Segundo Tournon (1994), os Shipibo-Conibo designam como ina todas os animais domésticos. Entre
os Kaxinawa, conforme Camargo (comunicação pessoal), os animais domésticos obtidos através do
contato com os brancos são designados com os mesmos termos de seus correlatos silvestres, mas
justapostos ao termo ina. Assim, o veado é designado pelo termo txaxu e o carneiro pelo termo ina
txaxu; o porco silvestre é chamado hono, o correlato doméstico é ina hono e a anta é chamada awa,
enquanto a vaca é ina awa.
187

Voltando às correspondências entre os sistemas classificatórios nativo e


científico, como interpretar a alta incidência de superdiferenciação na taxonomia
katukina? Segundo Berlin et alii (1969), a ocorrência de uma classificação tão
específica relaciona-se à alta significação cultural dos elementos em questão ou à sua
utilidade prática. Tendo em consideração a taxonomia dos mamíferos entre os Katukina,
as conclusões dos autores parecem não se adequar ou se adequam num sentido muito
geral, uma vez que grande parte dos animais que recebem denominações específicas são
comestíveis e figuram em narrativas míticas. Contudo, essa é uma adequação tão ampla
que acaba por enfraquecer suas conclusões. 15 A comestibilidade e a figuração mítica, no
fim das contas, valem também para quase todos os animais listados na "correspondência
um a um".
A comparação entre os sistemas de classificação dos mamíferos entre os
Katukina e a ciência ocidental permite que se estabeleça alguma inteligibilidade entre
ambos e auxilia a organização das informações referentes ao primeiro. No entanto, não
pretendo de modo algum atestar que os sistemas taxonômicos são formas objetivas de
conhecimento da natureza. Mesmo porque coexistem outros sistemas taxonômicos entre
os Katukina. A taxonomia descrita até aqui opera a partir de processos cognitivos
abstratos, entendendo que a inclusão de um animal numa categoria responde a critérios
exclusivamente morfológicos. Entretanto, esquemas classificatórios paralelos (ou
alternativos) podem orientar-se por critérios simbólicos ou critérios pragmáticos.
Algumas vezes, inclusive, sobrepõe-se à taxonomia organizada morfologicamente –
como ocorre com a categoria shakaya que será exposta adiante. Vejamos como se
organizam esses sistemas paralelos.
Em sua primeira acepção, a categoria supragenérica yoina agrupa os animais em
conformidade com critérios marcadamente morfológicos, ainda que as vezes seja difícil
identificá-los, como ocorre com a categoria kaman. Entretanto os katukina admitem
também que a categoria yoina pode ser dividida para reagrupar os animais a partir de
critério pragmáticos: animais comestíveis (yoina) e não-comestíveis (yoina ma – isto é,
não-yoina; ma é morfema de negação – ou kaman). Nesta reordenação da classificação
dos animais, o campo semântico de yoina abrange, implicitamente, o significado de

15
Mais recentemente, Berlin (1992:119) reviu parte de suas conclusões (e de seus colaboradores) a
respeito das correspondências entre os sistemas de classificação nativos e científico e ponderou que a
significação cultural parece explicar com mais precisão os casos de superdiferenciação nas
classificações etnobotânicas. Nas classificações etnozoológicas a pretensão de "significação cultural"
torna-se menos clara.
188

carne comestível. A categoria yoina ma ou kaman, exposta no quadro abaixo, é


composta por animais não-comestíveis que os Katukina dizem ser "valentes".

Kaman keneya (Panthera onca)


Kaman txeshe (não identificado)
Kaman honshi (Felis concolor)
Hene Kaman (Ptenoruna brasiliensis)
Hono Kaman (Atelocynus microtis)
Ketsin (Felis pardalis)
Yoina ma ou Kaman Posan (Dradypus variegatus)
Nain (Choloepus sp.)
Isan (Coendu sp.)
Voka (Eira barbara)
Shama (Potos flavus)
Vi’i (Tamandua tetradactyla)
Sha’e (Mymecophaga tridactyla)
Tabela 2: Yoina ma

Entretanto, há que se permitir certa flexibilidade para o uso desta categoria, pois
dela constam pelo menos dois animais que são controversos quanto ao uso alimentar: a
onça-vermelha (kaman honshi) e a irara (voka). Além disso, ela omite o coelho (maka
pantxoya) que também é controverso. 16 Há variações individuais e conforme o hábito
alimentar daquele que comenta a classificação dos animais, estes dois animais pode ser
agrupados ora como yoina ora como yoina ma ou kaman.
Na acepção de animal não-comestível, a categoria kaman alarga a amplitude de
seu campo exposto anteriomente (agrupando onças, cães e ariranha), pois além dos
animais predadores, inclui espécies repelidas de uma perspectiva alimentar (como o
tamanduá-bandeira, por exemplo) e também uma espécie que é tida como a
transmutação de um espírito (yushin), como o posan (bicho-preguiça, Dradypus
variegatus).
Para não nos perdermos na exposição, yoina tem então duas acepções. Na
primeira abrange a quase totalidade dos mamíferos, à exceção de ratos, morcegos, botos
e peixe-boi. Em sua segunda acepção, yoina é carne comestível ou, o que dá no mesmo,
"caça".
Alternativamente, alguns dos animais agrupados como yoina (e aqui pouco
importa se na primeira ou na segunda acepção) podem ser agrupados numa outra

16
Este parece ser o "maca sshoya" que Tournon (1994:105) ouviu dizer dos Shipibo-Conibo que era um
rato comestível.
189

categoria, orientada por um critério morfológico mais determinante. Assim, surge a


categoria shakaya, que pode ser traduzida como "bicho com casco ou bichos de casco"
(shaka, casco/carapaça; ya, atributivo), que destaca a conspicuidade morfológica de
determinados bichos em comparação ao conjunto dos yoina. Nela estão agrupados
alguns dos animais que constam da tabela 1 e também alguns quelônios.17 Ao mesmo
tempo esta é uma categoria implicitamente orientada por critérios simbólicos, dado que
todos os bichos de casco nela agrupados são interditados ao consumo de mulheres
grávidas, porque têm o hábito de arrastar-se na terra ou de viver em buracos sob a terra.
Na explicação dos próprios Katukina, dado o costume de viver em buracos e de arrastar-
se sob a terra, esses bichos podem "prender" a criança no ventre da mãe, dificultando o
parto. A mesma explicação impede que as mulheres grávidas consumam arraias e
bodós, embora esses não estejam explicitamente incluídos nesta categoria. Como se os
Katukina reconhecessem em ambos os casos, uma homologia comportamental, mas não
morfológica.

Pano (tatu-canastra, Priodontes maximus)


Yawish anipa (tatu, Dasypus kappleri)
Yawish kuin (tatu-galinha, Dasypus novemcinctus)
Mana yawish (tatu, não identificado)
Shakaya Kansho (tatu-rabo-de-couro, Cabassous unicintus)
Manan shawe (jaboti/tartaruga da terra)
Waka shawe (tartaruga d’água)
Nensa (tartaruga de igapó, Phrynops sp)
Tanko (tracajá)
Tabela 3: Shakaya

Ainda no que diz respeito aos critérios simbólicos, acredito ser possível afirmar
a existência de uma categoria, não nomeada, implícita, que comporta todos os macacos
– já que explicitamente essa categoria não existe –, pois estes são indistintamente
interditados ao consumo de casais em couvade e de pessoas doentes. Os problemas
causados pelo consumo de macacos têm, inclusive, uma mesma sintomatologia. Como
vimos no segundo capítulo, pais de crianças recém-nascidas que comem carne de
macaco arriscam-se a deixá-las muita agitadas e perturbadas durante a noite.

17
Segundo Aquino e Iglesias (1994), os Kaxinawa do rio Jordão estendem o uso da categoria yoina a
vários mamíferos terrestres e arbóreos, aves e quelônios e dão-lhe o significado de "caça". A categoria
pode ser subdividida inúmeras vezes para agrupar os animais em conformidade com critérios
morfológicos Segundo os autores, há, por exemplo, categorias para designar as "caças grandes" (yuinaka
wapabu) e as "caças pequenas". Como ocorre com os Katukina, há também uma categoria que destaca
190

Tudo leva a crer que a existência de sistemas taxonômicos simultâneos e não


concorrentes, coincide com as observações de Descola (1989) sobre a etnobotânica dos
Achuar. O autor aponta a existência de três sistemas taxonômicos entre os Achuar: (1)
um sistema de categorias explícitas e ideais, que recorta o universo em classes
morfológicas, independente de qualquer utilização prática; (2) um sistema explícito e
pragmático, que agrupa em uma categoria nomeada vários elementos diferentes, mas
cuja utilização é a mesma; (3) um sistema de categorias implícitas ou latentes, não
nomeada e estruturada por um fim utilitarista ou simbólico.
Pela coexistência de diversos sistemas classificatórios torna-se mais evidente
que o estudo de taxonomias folk não esgota em si mesmo o problema da conceituação
que as sociedades nativas fazem de seu meio. Se, por um lado, o sistema organizado
morfologicamente faz supor uma objetivação da natureza; por outro, os sistemas
alternativos, sejam orientados simbólica ou pragmaticamente, entremeiam homens e
animais numa mesma rede, sem desvinculá-los objetivamente. Por ora, limito-me a estas
considerações, que serão retomadas adiante.

A perda do estatuto selvagem

Outrora os Katukina amansavam vários animais. Atualmente os caçadores


trazem ainda para casa filhotes de presas abatidas, que quase sempre são dados às
mulheres e às crianças, mas os cuidados que lhes dedicam são um tanto efêmeros e os
bichinhos acabam fugindo ou morrendo. Vi sendo criados macacos-pretos, soins, tatus,
jacus e corujas. Os soins e macacos-pretos são amarrados em seus primeiros dias de
permanência nas casas, para que não fujam. Quando seu dono julga que o bichinho já se
acostumou ao lugar, não o amarra, mas, ao deixar a casa sozinha, ele acaba escapando
novamente para a floresta. Entre todos, apenas um jacu me pareceu merecer o título de
amansado, pois foi o único que durou por alguns anos. Tive também notícias de uma
anta que foi amansada, há pouco tempo, na aldeia do rio Gregório.
Não tenho como assegurar se existe uma categoria para designar os animais
amansados. De todo modo, há termos específicos, usados como vocativos e em
referência, que os designam individualmente. Em casa os animais são designados por

os "bichos de casco" (yuinaka shakaiabu, entre os Kaxinawa), entretanto, os tatus não estão agrupados
nela, mas na categoria "caças pequenas".
191

nomes distintos daqueles que têm enquanto estão livres na floresta. A listagem abaixo,
que não se pretende exaustiva, oferece uma idéia dos animais que são potencialmente
amansados.

Animal Silvestre Manso


Cotia Mari Tima
Paca Ano Txintxo
Queixada Yawa Pantxo
Veado Txasho Reish
Porco Hono Pintxo
Capivara Ame Keton
Anta Awa Ronpa
Coati Shishi Kashka
Tatu Yawish Pawish
Guariba Ro'o Kashma
Macaco-prego Shino kuin Txitxon
Macaco cairara Shino manan Txi'imi
Paruacu Roka voshpo Rishi
Soim Shipi Txipi
Macaco-preto Iso Poshto
Coruja Pupu Veshpi
Periquito Txere Veski
Periquito Pitso Shoke
Tucano Shoke Wero pisi
Jacu Kevo Hewe
Jacamim Ne'a Rontxo
Mutum Hansi Koshte
Aracuã Anakara Kashka
Papagaio Vawa Koro
Bico-de-brasa Tekon Tawin
Koa (macho)
Jaboti Shawe
Maya (fêmea)
Tabela 5: De silvestre a amansado

Alguns desses termos são traduzíveis. Assim, pintxo, usado para o porco, faz
referência ao muru-muru, um de seus alimentos prediletos. Outros termos destacam
partes específicas do corpo do animal: poshto, como é chamado o macaco-preto
domesticado, é "barriga"18; veshpi, usado para designar a coruja, é "sobrancelha"; e a
queixada é designada como "orelha" (pantxo). O nome recebido pelo jacu, kewe, é
onomatopeico. Koshte e Maya, termos usados respectivamente para os mutum e para o
jaboti fêmea, são nomes pessoais, sem qualquer significado explícito. Curiosamente, os
Katukina designam o periquito (pitso) como shoke, que é o termo normalmente usado
para o tucano silvestre. Quando amansado, o próprio tucano é designado como wero pisi
192

("olho podre"). O coati e o aracuã são igualmente designados kashka, um termo que não
consegui traduzir nem entender porque se aplica a ambos.
Com as exceções da coruja e do bico-de-brasa, todos os animais listados acima
são comestíveis, sejam silvestres ou domesticados. Os Katukina, do mesmo modo como
outros grupos pano, não interditam ao consumo a carne de animais amansados.
Informações disponíveis sobre os Yaminawa (Calávia Saez 1995:29), Matis (Erikson
1996), Uni (Frank 1982) e Shipibo-Conibo (Illius 1985, Roe 1982:110) também
afirmam o consumo dos animais amansados; no caso dos três últimos grupos, em meio a
rituais. Entre os Shipibo-Conibo os animais eram até pouco tempo atrás criados com
vistas à realização do ritual Ani Shrati. Esse ritual era realizado pouco tempo depois da
primeira menstruação de uma menina, a qual tinha, durante a cerimônia, amputados o
clitóris e os pequenos lábios. O rito foi abandonado devido à censura feita por
missionários e viajantes desde os primeiros anos do contato. Illius (1985) informa,
entretanto, quem em 1983 um shipibo tradicionalista, após a primeira menstruação de
sua filha, realizou-o com algumas modificações: todos os elementos do ritual foram
performados, à exceção da excisão da menina. Por sua vez, Frank (1982) registrou que,
entre os Uni, uma anta amansada foi sacrificada durante um grande ritual, cujo principal
interesse envolvido era o próprio prestígio, intra e inter-local, de seu dono, tanto assim
que os inimigos constavam como convidados principais. O ápice do rito ocorreu com o
sacrifício da anta, mas todos os animais amansados disponíveis na aldeia (como
tucanos, araras e macacos) foram mortos na mesma ocasião.
Entre os Katukina, se algum dia existiram rituais que marcavam o sacrifício
desses animais, foram esquecidos. Não só as pessoas não mencionavam os rituais, como
nenhum detalhe foi mencionado a respeito do consumo dos animais que domesticam
ainda hoje. Uma anta domesticada por um morador da aldeia no rio Gregório, foi morta
e sua carne distribuída entre seus vizinhos, sem maiores cerimônias, antes da mudança
dele para a aldeia do rio Campinas. Seja como for, a menção acima de que no rito uni o
sacrifício de uma anta amansada denotava primeiramente o prestígio de seu dono pode
sugerir algumas interpretações.
Das antigas disputas com os Yawanawa, que tratei em trabalho anterior (Lima
1994a), alguns Katukina recordam-se de um episódio no rio Gregório em que a aldeia

18
Erikson (1996:119) observou entre os Matis o uso de poshtu como vocativo ao macaco barrigudo
(chuna, Lagothrix lagothricha).
193

foi invadida e os animais domésticos foram todos mortos por seus adversários. No caso,
os bichos que mencionaram não eram silvestres, mas porcos, patos e galinhas. Como
todos estes bichos têm correlatos silvestres, talvez seja o caso de interpretarmos,
emprestando a análise de Frank (1982), o episódio como uma "guerra simbólica",
destinada a enfraquecer o inimigo eliminando seus animais de criação. Segundo consta,
o episódio teve seu desfecho com a invasão da aldeia yawanawa pelos Katukina, os
quais também não feriram ninguém, mas só se retiraram após eliminar todos os animais
domésticos de seus vizinhos.
As informações de que disponho sobre o amansamento dos animais não me
permitem ir muito além, mesmo porque, dos animais de estimação que vi, apenas um
não fugiu ou morreu e, até minha última permanência em campo, não tinha ido parar
numa panela. A despeito da mudança de seu estatuto (de selvagem a manso), com a
troca dos nomes pelos quais são conhecidos, a afirmação dos Katukina de que sempre
comeram os animais amansados pareceu-me merecer crédito. Ninguém a contradisse e
todos os adultos recordam-se de ter comido algum bicho amansado pelo menos uma vez
na vida.
A comestibilidade dos bichos amansados certamente contraria o que se sabe
sobre a ampla maioria dos povos amazônicos, que com mais freqüência não comem os
bichos que criam e chegam a conceber essa possibilidade como algo ultrajante.
Escrevendo sobre o estatuto dos bichos de estimação na Amazônia, Erikson (1987b)
desenvolve a tese de que eles são "complementares semânticos" da caça. A partir do
exame de várias etnografias, o autor observou que os bichos de estimação e seus
correlatos silvestres entabulam relações conceitualmente diversas com os homens: "a
consangüinidade comuta-se em afinidade, a violência cede lugar à afeição e o homem
nutre o animal no lugar do inverso". No fim das contas, os animais de estimação
compensam e restauram a assimetria da relação dos caçadores com suas presas. 19

19
Teixeira-Pinto (1997:100-104) discute, a partir dos Arara (caribe) a validade da tese de Erikson (1987b)
e, negando-a, afirma: "o que compensa uma predação é um contra-predação". O argumento de Descola
(1998:30-35) para recusar a tese de Erikson vai no mesmo sentido. O autor equipara a caça à guerra e
observa que a incorporação de mulheres e crianças dos inimigos mortos não deve ser para compensar as
vidas que foram tiradas. Antes expressam uma "filosofia da predação" que busca no exterior a
"perpetuação do si". E conclui: "o que vale para a morte de um homem deveria valer a fortiori para a
morte de um animal, e isso me parece excluir a hipótese de que em um bom número de sociedades
amazônicas, a domesticação da caça possa ser aparentada com uma forma de compensação". As críticas
de Teixeira-Pinto (1997) e Descola (1998) são bastante consistentes. Resta, entretanto, o problema de
explicar por que os animais de estimação deixam de ser tidos como presas entre a maior parte dos povos
amazônicos.
194

Por falta de maiores informações não vou discutir aqui o amansamento dos
animais pelos Katukina. O fato deles terem como edíveis os animais de estimação, com
certeza, fazem-nos atípicos. Talvez seja mesmo o caso de fazê-los constar como mais
uma "exceção que confirma a regra", como Erikson (no prelo a) definiu os Campa
peruanos e Yupa colombianos que comem animais amansados sem maiores cerimônias.
Contudo, não me parece possível estender aos Katukina a análise que o autor faz acerca
da situação dos dois últimos grupos para entender por que comem animais que outros
repelem. Sem avalizar qualquer argumento do materialismo cultural, Erikson
(1987b:125 e no prelo a) observa que a situação dos Campa e dos Yupa é de "penúria
alimentar" e, a partir daí, explica a excepcionalidade que é comer animais amansados.
Ainda que a atual situação dos Katukina (particularmente da aldeia do rio Campinas)
não seja das mais satisfatórias, não chega à "penúria". Além disso, nos dias de hoje
parece-me que é excepcional não apenas como comê-los, mas, principalmente, chegar a
amansá-los. Como escrevi antes, com os cuidados efêmeros que lhes são dedicados, os
pequenos filhotes, antes que tenham tamanho para serem comidos, acabam fugindo ou
morrendo em poucas semanas. Se no passado os cuidados que recebiam eram mais
adequados, é impossível saber.

Rono, as cobras

A categoria supragenérica (usando a terminologia de Berlin 1974) rono agrupa


todos os ofídios. Corriqueiramente, os Katukina não distinguem as cobras peçonhentas
das não-peçonhentas, é necessário conhecer o contexto de suas conversas para saber se
falam de umas ou de outras. Assim, se as crianças pequenas aventuram-se em brincar
muito próximo de lugares cerrados, seus pais gritam Rono!, alertando-as do perigo de
haver cobras peçonhentas nas proximidades. O mesmo ocorre quando as crianças vão se
banhar no rio cheio, mas, nesse caso, estão alertando contra o perigo de haver cobras
grandes, boídeos, que, dizem, podem comer uma criança. Se indagados sobre a
designação para cobras peçonhentas, os Katukina dirão que é rono paeya. Pae designa
as diversas secreções corpóreas de humanos e animais e ya é um atributivo, donde
teríamos a tradução "cobra com secreção/veneno".
Os Katukina diferenciam as cobras peçonhentas das não-peçonhentas pelo
formato da cabeça. As cobras peçonhentas teriam a cabeça grossa e curta. Já as cobras
não-peçonhentas teriam a cabeça fina e alongada. Uma outra forma de diferenciar as
195

cobras peçonhentas e não-peçonhentas é pelo tamanho do rabo: as cobras de rabo curto


seriam peçonhentas enquanto as cobras de rabo longo não seriam peçonhentas.
Do mesmo modo como ocorre com outros animais, os nomes das cobras,
peçonhentas ou não, são, em alguns casos, descritivos de características morfológicas ou
fazem referência ao habitat. Como exemplos podemos citar: kene (desenho) rono, faz
referência aos desenhos na pele da cobra; amo (luz) rono, faz referência à policromia da
pele da cobra; vino (buriti) rono, faz referência ao habitat, pois dizem que esta cobra é
encontrada em buritizais. O nome de uma única cobra faz referência ao mal que é capaz
de causar em casos de acidente: imi (sangue) rono, o termo secundário indica a
hemorragia causada por seu veneno.
A palavra rono define a categoria "cobra", que acrescida de termos
complementares forma categorias específicas, assim temos, por exemplo: mana rono,
kene rono, imi rono. Entretanto, para algumas espécies há termos genéricos como shano
(surucucu), inpa pisi (jararaca) e itxi (cobra-coral)20 que as diferencia das demais, pois
não fazem uso do nome de base (rono), apesar de os Katukina a identificarem como
rono. Uma diferenciação posta no plano da linguagem, mas para a qual não encontrei
nenhuma explicação.
De todo modo, as cobras que recebem designações exclusivas têm certas
particularidades que são apontadas pelos Katukina, o que talvez explique a ocorrência
única destes termos. Assim, por exemplo, a cobra-coral (itxi) inocula o veneno nas
pessoas utilizando-se do rabo.21 A surucucu (shano) reproduz filhotes de várias espécies
de serpentes peçonhentas, exceto daqueles de sua própria espécie, i.e., a surucucu gera
filhotes de jararaca, entre outros, mas não de surucucu. Por sua vez, os filhotes de
surucucu são gerados pela jararaca (inpa pisi).
Os Katukina sempre mencionam sete espécies de cobras peçonhentas que são
conhecidas por todos: Shano, surucucu (Lachesis muta); Mana shano, surucucu de
barranco (Bothrox sp); inpa pisi, jararaca (Bothrox atrox); ino rono (não identificada);
imi rono (não identificada), kene rono (não identificada); itxi, cobra coral (Micrurus
sp.).

20
Os Katukina parecem não diferenciar a coral verdadeira (Micrurus sp) das falsas corais. Pelo menos
não as diferenciavam a partir das ilustrações.
21
É conhecida na literatura herpetológica a elevação do rabo entre algumas serpentes, inclusive entre as
corais verdadeiras. Os herpetólogos dispõem de duas explicações para explicar o fenômeno: o caudal
lure seria uma forma de as cobras atrairem suas presas, fazendo o rabo de chamariz; e o tail display
seria uma tática defensiva, elevando o rabo, a cobra surpreende seu predador com o bote (Greene 1973).
196

As cobras peçonhentas não figuram de nenhuma narrativa mítica, pelo menos


nenhuma delas foi citada nos mitos que coletei até agora. Elas são bastante temidas
pelos Katukina e eles as matam, independentemente de terem sido ou não ameaçados
por elas.
Além das cobras peçonhentas citadas acima, os Katukina afirmam existir na
região outras espécies de cobras venenosas, mais difíceis de serem encontradas: rono
peiya, cobra com asas/cobra voadora e rono mampo, cabeça de cobra. A primeira seria
uma cobra voadora. Ela não teria corpo nem rabo e seria formada apenas pela cabeça e
um par de asas. Haveria, segundo os Katukina, diversas espécies desta cobra, cada uma
deles com um formato de cabeça diferente: cabeça de surucucu, cabeça de jararaca,
cabeça de pico-de-jaca. Esta cobra, como as demais, é noturna e passa o dia dormindo
no alto das árvores e voa durante a noite, provocando um barulho que pode ser ouvido
de longe. Já a rono mampo, dizem os Katukina, é parecida com a rono peiya, mas
faltam-lhe as asas. Ela tem o formato de uma cabeça de cobra (que é, aliás, a tradução
literal de seu nome), não tem corpo nem rabo. Vive no alto das árvores e seu tamanho
não excede um palmo de comprimento. Ambas têm um veneno extremamente letal.22
Entre as cobras não peçonhentas, os Katukina reconhecem mais variedades:
diversos tipos de colubrídeos, todos chamados de awa rono, diferenciáveis apenas pela
cor, formando categorias subespecíficas: awa rono txeshe (awa rono preta, Clelia
cloelia), awa rono pasha (awa rono verde), awa rono honshi (awa rono vermelha).23 As
cobras não-peçonhentas de menor porte, como todos os tipos de awa rono, merecem
pouco a atenção dos katukina. Elas podem ser mortas, mas os Katukina não costumam
matá-las, visto que não oferecem nenhum perigo. O máximo que fazem para
defenderem-se é elevar e movimentar o rabo, ameaçando ferir com chibatadas quem as
ameace. A awa rono txeshe, conhecida regionalmente como papão-preto, costuma ser
preservada, visto que se alimenta de outras cobras peçonhentas.
Os Katukina listam ainda várias cobras de grande porte, provavelmente boídeos:
mana rono (Boa constrictor), wasa rono, kana rono, paka rono, mashi rono, itsa rono,
rono anipa, teshoika, sara, amo rono e vinho rono. No inventário das serpentes que
ocorrem no Acre, disponível no Museu de Zoologia (USP), constam apenas três

22
Os Amahuaca comentam também da existência de um ser monstruoso, portador de um veneno
extremamente letal: uma cobra com asas e que tem no peito as suas presas (Carneiro 1964:11).
197

boídeos. Ainda que tal inventário não seja exaustivo, suspeito que a variedade de nomes
para as cobras de grande porte deva-se à aplicação de diferentes nomes para cobras da
mesma espécie, em conformidade com o tamanho que apresentam.
As cobras não venenosas de grande porte figuram em vários mitos, dois deles
serão discutidos adiante, e despertam um profundo interesse entre os Katukina. Sempre
há alguém disposto a falar algo que as envolva, seja para relatar algum susto ocasionado
pelo encontro imprevisto com um grande cobra, seja para descrever detalhes de sua
morfologia, como o tamanho avantajado ou o brilho e os desenhos de sua pele, muito
embora os próprios Katukina admitam que encontros com cobras grandes são raros.
Todas as cobras de grande porte são agrupadas na categoria definida rono romeya. O
nome secundário, romeya é de difícil definição. Como já vimos tantas vezes, -ya é
sempre um atributivo. Por sua vez, rome, nesse contexto, designa um objeto de
propriedades metafísicas possuído pelas cobras e que habilita alguns homens a se
iniciarem nas atividades xamânicas. O encontro com uma grande serpente, seguido de
alterações sensoriais como o turvamento da visão e tremores, indicativos de que a cobra
transmitiu o rome, torna alguns homens eleitos ao xamanismo. Aqueles que não têm
interesse na carreira xamânica fazem pedidos de sorte caso encontrem uma grande
cobra, pedem sorte na caça ou com as mulheres, pedem também vigor físico para
abrirem os roçados. Já as mulheres que as encontram – uma possibilidade mais rara,
dada a restrição das atividades femininas às proximidades de suas casas –, fazem
pedidos de sorte e saúde, como os homens, e, caso tenham muitos filhos, de interrupção
da vida reprodutiva.24
Rome corriqueiramente designa também o tabaco, mas isso não o desvincula
completamente do contexto xamânico, uma vez que essa é a principal substância
utilizada pelos xamãs e rezadores. A propósito, além de designar as cobras de grande
grande porte, romeya designa os xamãs. Como não poderia deixar de ser, o melhor
esclarecimento a respeito de rono romeya foi-me dado pelos próprios Katukina, que
traduziram a categoria como "cobra-pajé".
As propriedades do rome são também um tanto ambíguas, dado que se admite
que uma das cobras agrupadas na categoria rono romeya, a jibóia (mana rono), pode

23
De acordo com Berlin e seus colaboradores (1976), as categorias subespecíficas são encontradas
raramente. Até onde pude saber, nos sistemas taxonômicos dos Katukina as categorias subespecíficas
são encontradas apenas entre os of'ídios.
198

tanto credenciar um homem ao conhecimento xamânico quanto torná-lo panema


(yupa25). A princípio essas duas possibilidades não me pareceram antitéticas, afinal, as
atividades xamânicas e a caça, como se verifica em tantos grupos amazônicos, não são
plenamente compatíveis. Entretanto, não é essa a interpretação dos Katukina. Uma
mana rono pode prejudicar o desempenho de um caçador (e também de seu cachorro)
sem com isso iniciá-lo aos segredos xamânicos. Nesse caso, como me foi dito, a jibóia
"só dá azar mesmo".
Não devo me estender em detalhes sobre as propriedades do rome e sua
vinculação com as grandes cobras, o que fiz no capítulo anterior. Importa aqui voltar à
questão da existência de sistemas classificatórios orientados simbolicamente, ao lado
dos sistemas orientados morfologicamente, do mesmo modo como já foi observado em
relação aos mamíferos. Seguindo os passos da herpetologia katukina, dizer que uma
dada cobra tem veneno e agrupá-la como rono paeya, não é menos objetivo do que dizer
que uma dada cobra tem rome, e classificá-la, portanto, como rono romeya.26 De mais a
mais, o reconhecimento de que algumas cobras têm peçonha não as destitui de
vinculações simbólicas. Para mantermos os exemplos no campo xamânico, só estão
habilitados a tratar com rezas os acidentes ofídicos pessoas que tenham sido mordidas
por cobras e que, no processo de recuperação, aprenderam seus segredos. Embora por
caminhos um tanto diversos, aqui, como no Ocidente, o antídoto é também o próprio
veneno.

Entre humanos?

"Ao contrário de Spencer, os Kachinaua acreditam que são os


animais que descendem do homem, e não o homem dos
animais. Estes só são homens encantados pelo efeito de um
sortilégio e que guardam, aliás, todas as suas qualidades
intelectuais e voluntárias; somente a forma externa mudou"
(Tastevin, 1926).

24
Lagrou (1998:243) menciona que, entre os Kaxinawa, há um "ritual da cobra" que controla a
fertilidade, pode-se fazê-lo tanto para intensificá-la quanto para esterilizá-la.
25
Da maneira como compreendi, yupa designa um estado que faz com que um caçador não perceba os
diversos sinais (ruídos, cheiros, vestígios alimentares) dos animais na floresta. Entre os Kaxinawa,
Deshayes (1992:101-103) descreve o yupa como "uma substância que tem o mesmo nome" e que, do
mesmo modo que ocorre entre os Katukina, compromete sua percepção na perseguição dos animais.
26
De acordo com Deshayes (2000:32), os Kaxinawa dividem as cobras em duas categorias: as cobras que
têm veneno e as cobras que têm "substância", no caso o muka.
199

Se se admite que critérios menos objetivos que a morfologia intervêm na


classificação, construindo conjuntos taxonômicos paralelos usados em diferentes
contextos, é hora de esclarecer que termos como "natureza" e "reino animal", entre
outros, foram mencionados aqui por um certo comodismo de linguagem, pela facilidade
de comunicação que proporcionam. Por certo, a não ser que tenham de fazer-se entender
pelos brancos em contextos político-reivindicatórios, os Katukina jamais usam tais
termos tão restritamente. A afirmação pode soar banal àqueles familiarizados com a
literatura etnológica sul-americana, seja como for, não há no vocabulário katukina
qualquer palavra que se aproxime do sentido que o ocidente atribui à "natureza", como
uma paisagem habitada por seres que têm uma existência objetiva indiferente às ações e
pensamentos humanos. Como se não bastasse chegar a essa conclusão indiretamente,
pelas concepções extremamente animadas que os Katukina constróem a respeito dessa
paisagem e de seus habitantes, recordo-me de um rapaz, militante do movimento
indígena regional, que me perguntou, de um modo extremamente singelo e discreto,
após voltar da Conferência Internacional de Meio Ambiente, a ECO-92, o que os
brancos querem dizer quando falam em "meio ambiente" e "natureza".
A pergunta do jovem katukina remete à velha inadequação da oposição
Natureza/Cultura para pensarmos as mesmas categorias entre os ameríndios. Se
natureza e cultura são categorias ontológicas, heurísticas, relacionais ou híbridas
continua a render debates na antropologia (Descola 1996; Viveiros de Castro 1996a; T.
Lima 1996). Por ora parece-me suficiente dizer apenas que não constituem esferas
ontológicas. Isso por si só já coloca um problema que não é pequeno para o estudos
etnobiológicos que se inclinam a pressupor a "natureza" como dada.
É exatamente o caráter não ontológico dessas categorias que permite identificar
a existência de classificações paralelas, orientadas por critérios simbólicos ou
pragmáticos, explícitas ou implícitas, organizando os vários elementos num mesmo
conjunto. Se não for assim, como entender a categoria rono romeya que reúne as cobras
que têm rome, um objeto de propriedades um tanto metafísicas que credencia os homens
a iniciarem-se nas atividades xamânicas? É importante ainda destacar que, ao menos
entre os Katukina, um conjunto taxonômico agrupado de acordo com critérios
morfológicos pode ter significativas derivações simbólicas. É o que se passa com os
animais cobertos pela categoria shakaya, que agrupa os bichos de casco, todos inedíveis
por mulheres grávidas.
200

O fato de existirem sistemas classificatórios, orientados simbólica ou


pragmaticamente, paralelos ou sobrepostos ao sistema taxonômico orientado
morfologicamente não é em si mesmo uma anomalia, apenas indica os pontos de
interação entre os conceitos de "natureza" e "cultura" de que falávamos. Mais
recentemente, Descola (1996), que observou o mesmo procedimento entre os Achuar,
resumiu o problema argumentando a favor do reconhecimento de dois esquemas
classificatórios, que em diferentes níveis lógicos ou conceituais podem ser indistintos: o
metafórico e o metonímico. O primeiro, identificado nas taxonomias folk de plantas e
animais, organiza-se a partir de princípios de similaridade morfológica. O segundo, que
ordena seus elementos por atributos ou propriedades, correlaciona humanos e não
humanos. Facilmente identificável cada um dos esquemas isoladamente, eles podem se
confundir quando confrontados. O mesmo autor observa que "se apenas a dimensão
semântica da nomenclatura for considerada, é freqüente um esquema metonímico que
governa a atribuição dos nomes, especialmente no nível dos taxa subgenéricos, nos
quais muitos determinantes referem-se às qualidades ou usos dos itens classificados".
Antes de comentar a afirmação, o que Descola está chamando de "taxa subgenérico" é o
que chamo de categoria específica. Não importa a terminologia que se use, a afirmação
coloca problemas importantes de serem abordados.
Uma parte significativa dos determinantes (ou nomes secundários), como vimos
no início deste capítulo, faz referência às cores de dados animais que são
reconhecidamente assemelhados. Assim, os Katukina reconhecem três espécies de
coatipurus: a vermelha, a preta e a roxa. Outros determinantes são estabelecidos por
homologia morfológica, como é o caso de hono kaman, que designa o cachorro
silvestre. Há, entretanto, determinantes que só podem ser compreendidos por referência
às concepções simbólicas dos Katukina. Este é o caso, por exemplo, de um pirilampo
designado como yushin tapi. Yushin é um termo corriqueiramente traduzido como
"espírito", como vimos antes. A sua ocorrência junto com o nome primário que designa
os pirilampos (tapi) não quer dizer que essa espécie em particular seja um espírito. Esse
pirilampo é tido como o alimento predileto do espírito de pessoas mortas, chamados de
yushin. Um lugar que tenha muitos yushin tapi deve ser evitado pois indica prováveis
encontros com os "verdadeiros" yushin de pessoas mortas que são, em menor ou maior
grau, prejudiciais aos humanos. A categoria rono romeya também só se compreende por
referência às concepções cosmológicas dos Katukina. Exemplos mais abundantes são
provenientes da classificação botânica, na qual, como foi exposta com poucos detalhes
201

no início deste capítulo, uma quantidade significativa de plantas têm seus nomes
secundários relacionados ao malefício provocado pelo consumo de algum alimento,
principalmente de carne de caça.
Seja pela existência paralela de sistemas classificatórios que põem em relevo os
critérios simbólicos ao lado de um outro sistema orientado por critérios morfológicos,
seja pela indicação de que a semântica dos nomes secundários revela importantes
interconexões entre homens, animais e espíritos, por ambas alternativas parece-me
difícil pretender estagnar as concepções katukina de natureza e cultura em nichos
ontológicos incomensuráveis. A origem dos animais é aqui fundamental para que se
compreenda como os dois termos se comunicam. A seguinte narrativa mítica me foi
contada por Mai na tentativa de esclarecer os tabus alimentares.

Não tinha caça, macaxeira, não existia nada. Só existia a floresta, mas dentro da
floresta não tinha nenhum tipo de bicho. Um dia, uma mulher chamou seu marido para
colher pama (fruta), no alto do pé. O marido estava lá em cima e a mulher ficou
embaixo esperando ele quebrar o galho para jogar para ela.. Lá em cima do pau ele
imitou macaco-preto. Assim que ele imitou, tinha um pau grande perto da pama, a
mulher estava embaixo e viu esse pau mexendo e de lá saiu só uma pessoa, um homem.
Era do pessoal que mora embaixo da terra (maeyushinvo). Essa pessoa saiu com uma
zarabatana. A mulher se escondeu. O marido dela, lá em cima, imitou de novo a
macaco-preto. O homem que saiu debaixo da terra assoprou com a zarabatana e
acertou na perna e depois no peito dele. O homem trepado na árvore imitou de novo o
macaco-preto e o maeyushin assoprou com a zarabatana e acertou no pescoço dele. Ele
começou a vomitar e caiu no chão. A mulher estava escondida vendo o que o
maeyushin estava fazendo com o marido dela. Quando ele caiu da árvore, maeyushin
colocou-o nas costas e entrou de novo no pau, para debaixo da terra. A mulher dele
saiu correndo para avisar seus parentes como foi e quem foi que matou o marido dela.
Quando chegou na maloca ela contou pro pessoal. Ela falou que havia sido um homem
que mora embaixo da terra. No outro dia, todos se reuniram e decidiram matar o
homem debaixo da terra, queriam vingar o parente morto. Saíram todos e foram
observar o pau de onde o homem tinha saído. Havia umas formigas pretas carregando
o cabelo do homem para fora de um buraco na terra. A mulher do homem morto falou
que tinha sido ali mesmo que tudo aconteceu. O pessoal começou a cavar buraco para
debaixo da terra. Todos homens e mulheres se reuniram, limparam em volta do pau
para cavar. Nesse tempo tinha um homem velho que colocou nome nos bichos todinhos.
Achou um bicho e colocou o nome de paca (ano). Cavaram mais e saiu um tatu
(yawish), depois saiu tatu canastra (pano). Esses bichos que foram debaixo da terra
procurar o povo do maeyushin. A paca não conseguiu ir. O tatu-canastra fez um buraco
bem grande embaixo da terra. Faltava só um pouco para chegar no maeyushinvo (povo
que mora embaixo da terra). Aí os Katukina reuniram todos. O tatu fez um buraco bem
pequeno para atravessar para a aldeia deles. Mandaram um calango para ver se o
homem estava em casa. O calango foi lá e encontrou somente uma velha. O calango
avisou o tatu canastra que só tinha uma velha lá. Aí mandaram o jabuti. Jabuti foi para
debaixo da terra e só viu a velha. Aí mandaram o veado ir olhar. O veado foi e só viu a
velha. Aí mandaram a tartaruga e o homem ainda não estava lá, só o velha.
Nesse tempo, a onça não estava pintada. O pessoal reuniu e resolveu pintar a onça e
o gato. Pintaram a onça com jenipapo e ela ficou toda malhada. Aí a cotia que tinha
pintado uma onça ficou com preguiça de pintar uma outra com jenipapo e colocou só
202

urucum, por isso que existe essa onça vermelha. Aí mandaram a onça para debaixo da
terra, ela viu a velha e matou a velha. A onça subiu e avisou que tinha matado a velha,
que o homem não tinha chegado. Aí o homem da tribo dos maeyushinvo não era
homem, era um gavião do tamanho de um avião. Aí pensaram: a gente tem que tomar
cuidado que esse homem vai querer matar a gente. Koka Pino Txari27 que avisou que
esse homem era gavião grande. Koka Pino Txari fez as pessoas virarem veado, paca,
anta, macaco-preto, cotia... Ele que deu nome dos bichos. Por isso que quando a
criança está doente não pode comer carne de caça.
Aí o gavião grande chegou. Logo que chegou entrou no buraco que levava para
debaixo da terra. Chegando lá viu a mãe dele morta no terreiro. Ele falou:
- "Foi o pessoal de cima que matou minha mãe, eu vou lá matar tudinho."
O pessoal escutou a zoada do gavião. Koka pinho txarí avisou:
- "Corram logo senão o gavião vai pegar vocês todos."
O gavião espantou todos os bichos. Aí os homens viraram veado, outro virou
queixada, paca... Só tinha bicho que tinha quatro patas, não tinha ave de pena. Aí Koka
Pino Txari arrancou os cabelos da perna e assoprou. Virou jacamim, jacu, nambu,
tucano, arara....

O perigo passou, alguns dos homens transformados em bichos retornaram à


forma humana, outros não, são ex-humanos. Estes, ainda que tenham aparência diversa
dos humanos, deixam entrever traços da humanidade perdida em seu comportamento. O
macaco cairara, o mesmo que em tempos míticos ensinou a cópula e os procedimentos
de parto aos Katukina – que antes de receberem suas lições tentavam penetrar as
mulheres pelo sovaco e pela parte posterior do joelho e, após terem aprendido a cópula,
cortavam o ventre da mulher para retirar o bebê –, é admirado por seus trejeitos
humanos, sabem quebrar o cacau e o levam à boca com as mãos, como se fossem
homens28. A cotia também sabe levar o alimento à boca usando as patas, ao invés de
levar a boca direto ao alimento, como fazem outros bichos. Pelo fato de ter pintado a
onça em tempos míticos há quem diga que até hoje as cotias não são predadas pelas
onças pintadas, apenas pelas onças vermelhas. Há ainda os bichos que compactuam
entre si. Uma ave chamada yawish takara (não identificada), antecipa com seu canto ao
tatu (yawish) a proximidade de algum caçador, alertando-o para que se esconda
rapidamente. O nome dessa ave por si só indica a vinculação solidária aos tatus. Vários
outros mitos falam desse processo de criação dos animais a partir dos homens. O sapo
toa é uma mulher incestuosa que foi abandonada por seu marido num toco no meio do
rio, após vê-la consumando a traição com seu próprio cunhado. O gavião chamado

27
Um demiurgo.
28
Os Katukina contam que o macaco cariara ensinou-os ainda a copularem apenas com as primas
cruzadas (pano), proibindo-lhes de abordarem sexualmente suas mães, avós, irmãs e filhas. Na versão
dos Kaxinawa sobre o aprendizado do ato sexual, os homens não sabiam copular porque pensavam que a
vagina fosse fechada e mesmo que fosse uma ferida. Após ver um macaco-prego copulando, um
203

wasiko é uma mulher desejosa de carne de queixada e que importunava seu genro
solicitando que matasse queixadas. Muitos outros mitos dão conta do mesmo processo
de geração dos animais a partir dos humanos.
A ascendência humana dos animais não é exclusivamente a inversão dos termos
ocidentais que atribui aos homens uma ascendência animal nem a revelação do que
pode haver de animal na essência humana (Rivière 1995). A própria condição humana é
o que deve ser destacada uma vez que circunscreve uma campo de comunicação entre
aqueles que a partilham.
A condição humana foi destacada por Descola, em sua etnografia sobre os
Achuar: "o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto
espécie, mas a humanidade enquanto condição" (1989:132). Partindo dessa afirmação,
Viveiros de Castro (1996a:119) observou: "a condição original comum não é a
animalidade, mas a humanidade. (…) os humanos são aqueles que permaneceram iguais
a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais". Uma
observação fundamental que o missionário Tastevin (1926), na passagem destacada na
epígrafe, teve a sensibilidade de reconhecer enquanto tratava de mitos kaxinawa.
É justamente esse "fundo comum de humanidade" que possibilita a comunicação
entre homens e animais e explica os tabus alimentares, como o próprio Mai, que narrou
o mito acima, fez questão de destacar. É também a aceitação ou o reconhecimento desta
partilha que faz com que as atividades desempenhadas na floresta, em particular a caça,
sejam tão melindrosas.
Os procedimentos de caça estão envoltos em cuidados e prescrições que, se
efetivamente burlados, comprometem a carreira de um caçador. O aprendizado das
estratégias de caça faz-se por longos anos, os garotos sempre estão sempre interessados
em ouvir os adultos contarem suas próprias façanhas. As primeiras tentativas de um
garoto para bater um animal inicia-se na tocaia. Além desta estratégia envolver menos
risco – no manejo da espingarda, por exemplo –, permite que o garoto observe de perto
o hábito dos animais. Nas primeiras incursões de caça a curso, o garoto irá
acompanhado, do pai, de um irmão mais velho ou qualquer outro parente próximo, que
deve orientá-lo na identificação dos muitos ruídos, odores e vestígios encontrados na

homem, Hidi Xinu, passou a deflorar várias mulheres. Foram tantas as cópulas que seu pênis inchou e
rompeu-se. Sedento de sexo, Hidi Xinu acabou morrendo (Camargo 1999:134-136).
204

floresta29. Para que a empresa da caça seja bem sucedida, os rapazes devem saber
identificar cantos de certas aves que podem alertá-los da proximidade de certas presas.
Assim, o canto da coruja chamada pupu (Otus colibba) anuncia a proximidade de
porcos e o canto do cancão (Daptrius americanus) a proximidade de um bando de
queixadas. Entretanto, ainda que todos esses conhecimentos seja indispensáveis para
qualquer candidato a caçador, é necessário também que se aprendam os cuidados que a
interação com os animais requer. Quando abate a primeira presa, por exemplo, um rapaz
não deve comê-la, sob o risco de tornar-se panema. Essa proibição é relaxada à medida
em que consegue abater outros animais. Então, o rapaz passa a poder consumir a parte
traseira do animal, recusando a dianteira. O caçador iniciante só poderá consumir
livremente todos os animais após ter firmado o seu status abatendo uma determinada
quantidade de presas, variável entre quatro e seis. Uma carreira promissora de caçador
pode se arruinar caso não sejam seguidas essas recomendações. Os bichos tornam-se
ariscos e o caçador apenas com as técnicas que domina, não consegue abatê-los.
Para livrar-se do panema (yupa) o melhor remédio, utilizado também nos
cachorros, é a aplicação da secreção do sapo conhecido como kampo (Phyllomedusa
bicolor), um estimulante cinegético. Há quem diga, como Kako, que o panema pode ser
também contornado com a ajuda das mulheres. Após sucessivas incursões de caça
fracassadas, um homem pede, em segredo, a uma mulher para bater em suas costas, seja
com suas próprias mãos ou com a parte lateral do terçado. A surra secreta, dada pela
mãe, irmã, esposa ou amante, ajuda a afastar o panema. Além do kampo e das surras,
uma certa dissimulação pode também render uma incursão mais proveitosa à floresta.
Quando sai para caçar a curso, algumas vezes um homem despede-se anunciando que
vai à mata, ea ni'i kai, não que vai abater um animal, visando assim iludir os animais,
que podem ouvi-lo, sobre as verdadeiras intenções do caçador.
Um homem potencializa sua capacidade cinegética com o kampo e com o uso de
colírios extraído do sumo de plantas, eventualmente dissimula sua partida quando vai à
floresta à procura de suas presas, familiariza-se desde cedo com o ciclo vegetal,

29
Atualmente as estratégias de caça são apenas essas duas: a tocaia e a caça a curso, com ou sem
cachorro. Outrora, segundo o velho Tsomi, os Katukina usavam também armadilhas: cavavam buracos
de dois ou três metros de profundidade, nas veredas em que passavam os animais, e fincavam no fundo
estacas afiadas, feitas de pupunha ou cana-brava. Por cima tampavam o buraco com galhos e folhas,
para que os bichos não percebessem a existência da armadilha e desviassem o caminho. Com o mesmo
fim, toda a terra retirada do buraco era removida do local. Essa estratégia envolvia pouco risco, tendo o
bicho caído na armadilha, bastava retirá-lo. Entre os Uni, Frank (1994:169) oferece uma descrição
idêntica de armadilha de caça.
205

podendo assim localizar mais precisamente os animais numa certa época. A combinação
de todos esses elementos, e outros de menor importância, fazem da caça certamente
uma atividade apreciada e prestigiosa. Mas se tantos requisitos e propriedades são
requeridos ao caçador é justamente porque a empresa da caça não é das mais fáceis.
Expondo-se na floresta, por trilhas cerradas e habitadas por seres que, ao menos em
aparência, não são seus semelhantes, o caçador arrisca-se também.
Se na cidade ou nas aldeias marubo que alguns homens visitaram, os Katukina
sentem medo e portam-se com precaução, tanto mais na mata, onde se está diante de
uma alteridade mais radical. Perder-se na mata, embora não seja uma possibilidade
levada muito a sério desde que se more no local há muito tempo, pode acontecer se o
caçador encontrar uma jabota ovada e passar a mão sobre a malha de seu casco. Assim
como o desenho do casco da jabota é labiríntico, o caçador ficará andando pela floresta
e retornando sempre ao mesmo lugar.30 Nessa situação o melhor é não passar a mão na
jabota ou então pegá-la e levá-la consigo. O risco de perder-se não é tanto demorar a
encontrar o caminho certo, mas sim demorar-se nessa tentativa e ver a noite chegar
dentro da mata. Poucos homens arriscam-se em caçadas noturnas, se o fazem estão
acompanhados de algum parceiro, parente ou amigo. Mesmo assim essa possibilidade é
considerada apenas excepcionalmente.
Ao voltar da mata um rapaz reclamou comigo, com muita raiva, que os brancos
estavam invadindo as suas terras para caçar durante a noite. Ele, que havia voltado
frustrado da mata, sem ter matado qualquer bicho, queixou-se: "a gente, Katukina, não
caça durante a noite que é para não faltar caça, os brancos caçam com lanterna que
deixa os bichos mansinhos, e acabam com tudo". Ouvi esse argumento ecológico uma
única vez. Com mais freqüência as pessoas comentam dos riscos da caça noturna, dos
sons que são ouvidos na mata, sem que se saiba de onde vêm, e que podem atrair o
caçador e fazê-lo arriscar a sua própria vida caso sejam respondidos.
Uma noite estava pronta para deitar-me quando uma mulher que morava na casa
vizinha foi pedir-me emprestada a lanterna para seu marido ir caçar. Tratava-se de uma
caçada oportunística, ele acabara de ver um tatu nas proximidades do igarapé enquanto
estava tomando banho e não queria perdê-lo. Emprestei rapidamente. Mais ou menos

30
O mesmo parece suceder entre os Kaxinawa, mas, nesse grupo, é a jibóia que, com seus desenhos, pode
atrair e desorientar o caçador. Segundo um informante de Lagrou (1998:96), o caçador imagina que
segue o caminho certo até perceber que anda "em círculos ao redor da jibóia, os círculos ficam menores
e menores até que você está ao alcance dela".
206

uma hora depois, antes que eu conseguisse dormir, ela voltou para devolver-me a
lanterna. Seu marido não tinha encontrado o tatu, ficou ainda na mata na espreita de
algum bicho que aparecesse, não muito longe de sua casa, mas voltou apressadamente
ao ouvir uns assobios que pareciam evocar o seu próprio nome.
Numa situação dessas, a resposta a um chamado que não se sabe de quem parte
pode encerrar o destino daquele que reconhece no outro um interlocutor. Responder ao
chamado seria assumir-se como segunda pessoa, o que implica em reconhecer o outro
como sujeito. Ocorre que a condição de sujeito "humaniza" o interlocutor desconhecido
e se chegar a saber o que ou quem o chamava, já o faz da perspectiva dele. Nas palavras
de Viveiros de Castro (1996a:135), o caráter relacional da perspectivas torna-se mais
claro: "a forma canônica desses encontros sobrenaturais consiste, assim, em intuir
subitamente que o outro é "humano", entenda-se, que ele é o humano, o que desumaniza
e aliena automaticamente o interlocutor, transformando-o em presa, i.e., em animal".
O caráter relacional das perspectivas é bastante claro no mito exposto
anteriormente, sobre a origem dos animais. Ainda que no princípio não existissem os
bichos, um homem imitou um macaco-preto em cima de uma árvore, enquanto coletava
frutos. Repetiu mais uma vez a imitação e, ao final, acabou morto como se fosse mesmo
um macaco-preto, atingido pelo dardo de uma zarabatana, assoprado por um espírito
(maeyushin) que o viu como presa, adotando então a perspectiva de um humano.
Restava, entretanto, uma testemunha, a mulher do falecido que comunicou aos seus
parentes a tragédia e acabou conclamando o conflito dos humanos contra os espíritos da
terra. Ameaçados pelo espírito que tinha a forma de um gavião gigantesco, um
demiurgo que àquela altura ainda vivia entre os homens, transformou todos os humanos
em animais, na tentativa de protegê-los. Não se sabe quando, mas superado o conflito,
parte deles retornou à forma humana.
Entre os Katukina nem todos os animais são igualmente dotados de um ponto de
vista, a ênfase recai naqueles que são caçados e em outros de que se diz que têm
espíritos poderosos. Seja como for, a possibilidade dos animais serem dotados de afetos
semelhantes aos humanos só se alcança indiretamente, nas várias restrições alimentares
e nos procedimentos de caça, por exemplo. Uma única pessoa me sugeriu
explicitamente a possibilidade dos bichos levarem sua própria vida, humanamente,
tendo suas próprias aldeias – de uma forma próxima àquela que Arhëm (1993)
encontrou entre os Makuna. Um exímio caçador, Ronta, sem querer se prolongar,
sugeriu-me numa ocasião que os bandos de queixadas vão para suas aldeias embaixo da
207

terra quando a pressão humana é exagerada. Por isso os bando de queixada estão cada
vez mais raros na aldeia do rio Campinas, sobretudo após a forte onda migratória dos
moradores do rio Gregório. Em contrapartida, são facilmente encontrados na última. Por
sugestiva que seja a afirmação de Ronta, o exemplo tem de ser matizado, pois entre
todos os animais de caça, o queixada é o único que explicitamente tem um chefe. Num
bando de queixadas, o chefe sobressai-se pelo tamanho avantajado em relação aos
demais e por posicionar-se sempre à frente. Durante uma expedição de caça, entretanto,
a identificação do chefe do bando não exige nenhum cuidado ou procedimento especial.
Um caçador sequer preocupa-se em matá-lo, pois todos têm como certo que isso é algo
impossível, o chefe sempre consegue escapar ileso.
Excetuando-se os animais de caça pareceu-me que outros bichos são
completamente dessubjetivados, em particular aqueles sem qualquer rendimento prático
ou simbólico, como os cuandus. O tema das "roupas" encobrindo a essência humana
comum, presente em várias cosmologias ameríndias, também não se faz presente aqui.
Não por falta de vocábulo, já que tari designa as roupas e não parece ser um
neologismo 31. O correlato das "roupas" é aqui a idéia de transformação ou, como me
disse Mani, a respeito das grandes cobras, "você pensa que é cobra, mas é gente". São
justamente as cobras que ocupam o centro do perspectivismo entre os Katukina.
Falemos delas então.

Cobras, xamãs e caçadores

Entre nós é bastante conhecido o temor que as cobras despertam.32 Apenas a


título de ilustração, na tradição judaico-cristã a cobra é tida "como o mais astuto dos

31
Tari é o mesmo termo usado pelos Shipibo para designar suas vestimentas tradicionais. Nesse grupo a
idéia de " roupa" para expressar a possibilidade de homens transformarem-se em animais e vice-versa
ocorre claramente. Segundo Roe (1982:122): "homens e mulheres podem mudar sua forma mudando
suas roupas. Uma cobra muda seu tari e transforma-se em homem". Do mesmo modo, entre os
Kaxinawa também está presente a metáfora da roupa (tadi) para indicar a transformação corporal
(Lagrou 1998:217-218)
32
Leach (1983:182) observa que os ingleses têm uma atitude hostil em relação às cobras. Essa hostilidade
deriva da anomalia que elas apresentam na classificação geral dos animais, pois os peixes vivem
somente na água; os pássaros voam, têm duas pernas e botam ovos; os bichos (mamíferos) têm quatro
pernas e vivem na terra; enquanto as cobras, embora se movam na terra, botam ovos e não têm pés.
Drummond (1981) analisa o simbolismo da serpente a partir de um mito arawak, "Os filhos da
serpente", e em um esforço comparativo que chega a abranger o Egito e a Grécia Antiga e o
Cristinanismo, conclui que o mito arawak que trata da serpente é apenas "um exemplo de um vasto
esquema mítico que metaforiza sexualidade e reprodução" (:643). Menos cauteloso, Willis (1994:246)
chega a afirmar que talvez a cobra seja "o mais fundamental de todos os símbolos animais".
208

animais" (Gênesis, 2,3). Mundkur (1976), um biólogo que fez um exaustivo estudo
sobre as representações acerca da cobra em diferentes culturas, sustenta que ela é o mais
poderoso dos símbolos animais, devido ao "poder de seu veneno". Na abordagem neo-
darwinista de Mundkur, os sentimentos de temor e, ao mesmo tempo, fascínio que as
cobras despertam estão geneticamente inscritos na fisiologia dos homens (e dos
primatas), resquícios adaptativos de nossos ancestrais, que teriam tido nas cobras seus
adversários mais temidos.
Esta generalização não passou despercebida na literatura antropológica. Lee
Drummond (1981), um antropólogo interessado no simbolismo das serpentes, foi um
dos primeiros a contestar as afirmações de Mundkur, argumentando que ele parece ter
se esquecido das inúmeras cobras não-venenosas, principalmente boídeos e pítons, que
citou em seu próprio inventário sobre o "culto da serpente".
As informações de que disponho sobre as serpentes entre os Katukina permitem
a mesma contestação, uma vez que dedicam a maior parte de seu interesse pelas cobras
às espécies não-peconhentas, em particular aos boídeos. Se fosse para escalonar o lugar
que as diferentes espécies animais ocupam nos mitos katukina, certamente as cobras
não-venenosas de grande porte, terrestres ou aquáticas, ocupariam o topo.
A troca periódica de pele é interpretada como indício de sua imortalidade e
fazem-nas prototípicas da vida eterna que, aliás, alcançaram por distração ou descuido
dos próprios Katukina, que a perderam, como no mito transcrito no terceiro capítulo. As
cobras, os calangos e o mulateiro trocam a pele de tempos em tempos e têm então uma
renovação periódica da vida. Entre os homens, a flacidez e o enrugamento da pele, o
embranquecimento dos cabelos e a perda do vigor físico estão aí para lembrar a
incontornável finitude do ser.
Imortais por deterem a "pedra" que garante a vida eterna, as cobras acumulam
ainda a posse dos conhecimentos xamânicos. Ambos as posses estão certamente
atreladas e as cobras, conhecedoras dos segredos xamânicos e da cura justamente por
viverem indeterminadamente, convertem-se no foco dos interesses dos Katukina. E não
se trata pura e simplesmente de uma metáfora para contrapor essas espécies
privilegiadas ante a existência finita dos homens. Seja para tornar-se um xamã ou
rezador, um homem tem de passar por um contato sobrenatural com uma grande
serpente que, lançando o rome em seu corpo, o capacita a ter acesso aos conhecimentos
xamânicos. Justamente por deterem conhecimentos fundamentais aos homens, as cobras
não são mortas pelos Katukina. Aquele que a mata ou maltrata, corre o risco de expor-se
209

à sua vingança. Recusar seu convite é perfeitamente admissível, não o é não saber
identificá-lo e agir com violência. A recusa violenta ao chamado de uma grande
serpente é replicada na mesma proporção, de forma também violenta. O xamanismo foi
tratado no capítulo anterior, menciono-o aqui apenas para pôr em relevo o forte
simbolismo das cobras entre os Katukina.
A jibóia é protagonista de um outro mito, agora relacionado à caça:

Tinha um rapaz que era panema, muito panema mesmo. Um dia ele foi caçar e não
conseguia matar nada. Ele encontrou uma cobra (mana rono, jibóia) na floresta e
resolveu matá-la para comer. No caminho de volta anoiteceu e ele teve que dormir na
floresta. Havia duas árvores: ele dormiu encostado em uma árvore e colocou a carne
da cobra que carregava encostada na outra. Quando ele acordou, mexeu no paneiro
onde estava a carne da cobra e ouviu um barulho. Ele pensou: Esta cobra virou o quê?.
A cobra tinha virado gente. Dali a pouco a cobra apareceu como um homem e falou:
— Eu vim caçando, fiquei perdido e dormi aqui.
Eles conversaram um pouco e combinaram de trocar os olhos: a cobra ficou com os
olhos dele e ele ficou com os olhos da cobra. O rapaz voltou então para sua casa. Lá,
ele ficava na beira do fogo e via passar muitos veados. Ele perguntava para seus
parentes de quem era aquela criação de veados, mas não era de ninguém. Ele matou
um veado e comeu. Depois passou muitos porcos. Ele matou para comer a carne.
A cobra havia pedido para ele não dizer para ninguém que tinha trocado os olhos
com ele.
O rapaz foi tomar banho e viu criação de jacaré. Depois viu criação de queixada.
Passou um pouco e já tinha uma criação de anta passando na frente dele. O tempo
passou e ele continuava vendo todos os bichos e matando-os com facilidade.
Um certo dia ele estava bêbado de caiçuma (atsa katxa) e alguém lhe perguntou por
que via as coisas assim, por que é que tantos bichos passavam sob a sua visão. Ele
estava bêbado e contou que tinha trocado os olhos com a cobra. Passado um tempo, ele
foi no mato mijar e a cobra apareceu e falou:
— Eu disse para você não falar para ninguém que trocou os olhos comigo.
Então eles destrocaram os olhos – ele ficou com seu próprio olho e a cobra com o
dela – e o rapaz ficou panema de novo.

A visão privilegiada após trocar de olhos com uma jibóia, fez com que o rapaz
adotasse o ponto de vista dela33. Então os bichos apareciam aos montes a seus olhos,
como se fossem domésticos – à sua frente passavam "criações" de veados, queixadas e
jacarés –, e tornavam-se presas fáceis. Transformada a sua visão, o rapaz deixou de ser
panema. Tornou-se, subitamente, um caçador bem-sucedido. Descuidado, como tantas
vezes são os personagens míticos, quebrou o segredo pactuado com a cobra e acabou
retornando à sua condição original de caçador empanemado.

33
A idéia presente no mito de que os olhos da cobra e do homem têm visões distintas, remete aos
Chewong da Malásia, citados por T. Lima (1996:32), entre os quais, "cada espécie natural possui um
tipo particular de olho".
210

A associação mítica das cobras com o sucesso na caça repercute no dia-a-dia34.


Há pouco falei do pedido de sorte na caça que fazem os homens que encontram uma
cobra grande e declinam o convite implícito à carreira xamânica. Alguns encontros com
cobras podem também tornar um homem panema.
Tendo em conta os dois mitos, especialistas xamânicos e caçadores, têm a
eficácia de suas atividades vinculadas simbolicamente à mesma origem, às cobras
grandes, terrestres e aquáticas, como se os animais estivessem todos sob sua guarda. Por
inferência parece-me perfeitamente possível conferir às cobras grandes o título de
"donas" dos animais, mesmo que os Katukina jamais tenham explicitamente comentado
essa possibilidade.
Arrisco esta interpretação, que restrinjo apenas aos Katukina, porque em outros
grupos pano podem-se igualmente recolher informações sobre a vinculação das cobras
tanto ao xamanismo quanto à caça. Às vezes, como ocorre com os Katukina, a
alternância entre a vinculação das cobras com o xamanismo ou com a caça ocorre no
interior do mesmo grupo; outras vezes, certas práticas relacionadas ao xamanismo em
um dado grupo aparecem atreladas à caça em um outro. Vejamos.
Há bastante tempo, graças à publicação de um artigo de Tastevin (1926), sabe-se
da dupla associação das cobras ao xamanismo e à caça na cosmologia kaxinawa. Nele o
missionário espiritano tanto fornece uma pequena versão da obtenção do ayahuasca por
intermédio de uma cobra, que seduziu um homem para debaixo d'água, quanto descreve
um rito de caça no qual os homens tocaiam e cercam uma jibóia e, apontando para as
manchas de sua pele, pronunciam o nome dos animais que desejam abater. Em
etnografias contemporâneas, Deshayes (1992:102) comentou que os homens devem
chupar a língua de uma jibóia para terem sorte na caça. Numa coletânea de mitos
kaxinawa (CPI-AC 1995:162-164), um deles destaca a vinculação entre a cobra e a
caça. Por sua vez, Lagrou (1988:62 e 76) registrou o consumo cru da carne, língua,
coração e olhos de jibóias, como parte do processo para obter os conhecimentos de caça
e feitiçaria. No que diz respeito aos primeiros, a mesma autora escreveu: "os caçadores
imitam as técnicas de caça e qualidades da jibóia mais que as da onça35. A jibóia é

34
Entre os seringueiros da região do alto Juruá olhos de jibóias são usados como amuleto para atrair
animais de caça, dinheiro e mulheres (Araújo 1998:83-84).
35
Cabe dizer que entre os Kaxinawa e os Yaminawa (Townsley 1993:457) o conhecimento xamânico
aparece também associado ao jaguar – uma associação que não encontrei entre os Katukina. Segundo
Deshayes (2000:186-188), tanto a cobra quanto o jaguar são seres intermediários, entre outras coisas,
211

famosa por seduzir a sua presa atraindo-a pela emissão de um som, por hipnotizar
através de seus olhos e por seu encantamento (dau) incorporado no desenho de sua
pele" (:96).
Enquanto entre os Yaminawa (Townsley 1988:133), excrementos da anaconda
são consumidos para que os homens obtenham os conhecimentos xamânicos, entre os
Amahuaca os homens comem os excrementos a fim de tornarem-se bons caçadores36
(Carneiro 1970). Por sua vez, Saladin d'Anglure e Morin (1998) destacaram, entre os
Shipibo-Conibo, a vinculação das cobras com os conhecimentos xamânicos. Roe
(1982:52), em seu trabalho sobre o mesmo grupo, fornece um mito em que as cobras
são vinculadas ao sucesso na caça. Neste mito, um caçador azarado encontra um
homem-cobra e após este manipular e assoprar sua zarabatana, torna-se um exímio
caçador. Erikson (1999), escrevendo sobre os Matis, associa estreitamente xamãs e
usuários de zarabatanas: "ambos operam por meio de pequenos dardos (visíveis ou
invisíveis) e o princípio místico, sho, é o que garante eficácia tanto das zarabatanas
quanto dos xamãs". A informação nada diz sobre a vinculação dos conhecimentos
xamânicos e de caça às cobras, mas sugere correlações importantes entre os dois
especialistas. Nesse sentido, talvez não seja mera coincidência o fato de que os
Yawanawa (Pérez 1999:38) designam seus cantos de cura de shuanka enquanto os
Katukina chamam como shonka as antigas zarabatanas. Além da semelhança, os dois
termos devem guardar outras conexões.
Na literatura pano alguns autores têm explorado a oposição entre xamãs e
caçadores. Assim, Deshayes (1992) definiu o chefe kaxi como um hiper-caçador,
antítese do xamã. Tão antagônicos (mas complementares) os dois papéis, que cada um
deles deve ser de uma das metades que compõem a sociedade kaxinawa. Escrevendo
sobre os Yaminawa, Townsley (1993:453-454) explorou a metáfora dos "caminhos",
presente nos mitos e cantos, para opor especialistas xamânicos e caçadores. O autor
descreve que atrás das casas na aldeia iniciam-se os caminhos largos e limpos em
direção à floresta. Estes caminhos, quanto mais distantes da aldeia, tornam-se mais
estreitos e cerrados. Neles os caçadores penetram à procura de suas presas, caminham

porque têm em comum os desenhos em seus corpos, são keneya. Na interpretação do autor os desenhos,
kene, são como "caminhos visuais" e possibilitam alcançar o "sentido profundo das coisas".
36
As inversões envolvem também certas práticas que não se relacionam às cobras. Assim, os Yaminawa
aspirantes a xamã submetem-se às picadas das formigas chamadas ani (Townsley 1988:133), uma prova
dolorosa à qual os homens katukina, no passado, passavam para ter sorte no abate das aves, como
escrevi no segundo capítulo.
212

tentando identificar todos os rastros, cheiros e sons. Finalmente, tentam atrair sua presa
imitando-a. Uma estratégia análoga é adotada pelos xamãs. Nas palavras do autor, "esta
mímica, por intermédio da qual os humanos momentaneamente dominam o não-
humano, tornando-se como ele, cria um campo de comunicação partilhado, e é
precisamente este o objetivo do canto do xamã".
Observo que essas oposições, certamente válidas para os grupos em que foram
propostas, não se devem confundir com o ponto para o qual tenho chamado atenção: a
vinculação dos conhecimentos cinegéticos e xamânicos às grandes cobras, jibóias e
anacondas. Aqui, a leitura que faço aproxima-se daquela que fez recentemente Calávia
(2000). Analisando as "mitologias do cipó" entre os Kaxinawa, Yaminawa e
Yawanawa, o autor observou como a ayahuasca, generalizadamente associada à cobra,
não é um "fenômeno exclusivamente xamânico", vincula-se também a propósitos
guerreiros e cinegéticos. Ao final, segundo o autor, "a cobra e o cipó se englobam
reciprocamente e englobam o conjunto dos animais da floresta". A despeito do fato de
que os mitos katukina que obtive em campo não agrupam diretamente, numa única
narrativa, as cobras e o cipó, o exame de outros mitos e das concepções e práticas
cinegéticas e xamânicas conduzem-me à mesma conclusão.
Se aceita a interpretação de que os animais estão sob o controle das cobras,
podemos correlacionar as atividades de xamãs e rezadores. Uma parte significativa das
patologias são concebidas como tendo origem alimentar. As aflições do corpo são, em
grande parte, resultado da quebra de resguardos alimentares. Os xamãs e rezadores,
responsáveis pelo restabelecimento dos doentes, adquirem seus conhecimentos por
intermédio justamente das cobras e aprendem a debelar o espírito do animais que
afligem os doentes. Embora tenham que saber localizar a sua presa identificando todos
os vestígios (rastros, cheiros e sons, principalmente), acabam, nos procedimentos de
cura atuando como caçadores às avessas, pois se o último tem de atrair a sua presa, o
que os rezadores fazem é justamente espantá-la, ameaçando matar os bichos à faca ou
com espingardas e também afogados, jogando-os nos igarapés. Como descrevi no
capítulo anterior, os cantos de cura dos Katukina – e também dos Shipibo-Conibo,
Yawanawa e Marubo – tematizam um confronto entre os rezadores e os yushinvo que
provocam as doenças.
Fora do contexto da cura, os xamãs (mas não os rezadores) têm também a
atribuição de atrair a caça para as proximidades da aldeia e o fazem entoando os
cânticos de cura que lhes foram ensinados pelas cobras e viajando pacificamente por
213

toda a geografia cósmica. Para isso, assumem a forma de animal, transmutando seu
corpo para comunicar-se além das fronteiras que lhe circunscreve a aparência humana.
Os riscos envolvidos nessas viagens xamanísticas são justamente perder o controle,
desfazer a paz imprescindível nestes encontros máximos de alteridade e render-se
indeterminadamente à forma animal. Dois mitos relatam a imprudência de alguns
homens numa sessão de ayahuasca:

Tinha um pajé (romeya) que estava tomando cipó, dizendo que ino yawa (uma
queixada valente, que come gente)37 já estava perto. Um outro homem disse:
— Ah! Pode vir, pode vir que a gente resolve.
Romeya disse:
— Tu não resolve nada...
O homem insistiu:
— Resolvo. Se você é um romeya mesmo, pode trazer a queixada pra cá que a gente
resolve.
Aí romeya tomou cipó de novo e viu que ino yawa já estava perto. O homem dizia:
— Pode trazer pra cá que a gente resolve. Deixa comigo que eu resolvo.
Romeya disse:
— Tu não resolve nada...
O cunhado deste homem disse ao romeya:
— Não, não traz a ino yawa pra cá, deixa ela voltar pra lá de novo.
O homem insistia:
— Traz pra cá! Traz pra cá que a gente resolve.
No outro dia, eles foram tomar cipó de novo. Ele falava do mesmo jeito. O cunhado
dele, com raiva dele, achava que ele estava mentindo. O romeya disse, de novo:
— Amanhã de manhã você vai lá espiar ino yawa, ver como ino yawa (os queixadas)
vêm.
Ele disse:
— Ah! Eu vou espiar lá, pra ver se é verdade mesmo.
Eles saíram, estava ainda escuro. Quando deu 7 horas da manhã o homem que
desafiou o pajé estava morto de cansado e ino yawa já estava perto. O homem falou pro
romeya que o acompanhava:
— Ino yawa já vem mesmo romeya e agora, como a gente faz?
O romeya respondeu:
— Resolve, que você estava dizendo que resolvia.
Aí ele, a família dele mais a família do cunhado dele subiram numa samaúma grande
que estava caída. Ele estava com um cipó na mão e subiram. O cunhado do homem
valente perguntava para o romeya:
— E agora romeya, como a gente faz?
— Não, agora tem que resolver com ino yawa.
Ino yawa derrubou as casas, tudo, comeu tudinho. Só ficou a família dele e a família
do cunhado dele. Quando acabou de comer essa gente tudinho, os ino yawa voltaram
pra mata de novo e os três acompanharam ino yawa: o homem valente, o cunhado dele
e o romeya. Foram embora, ninguém sabe pra onde eles foram, parece que viraram ino
yawa também.

37
Ino é o termo com o qual os Katukina denominam as onças miticamente e yawa designa a queixada.
Numa tradução literal teríamos então a "queixada-onça", destacando assim o potencial agressivo e
predador dessa "espécie" de queixada.
214

Desprezando o risco representado pelo bando de ino yawa, depois da tragédia, o


desafiante e seus companheiros acabaram rendendo-se à forma dele. Destino semelhante
teve um outro homem que, após uma provocação, foi à floresta caçar sob o efeito do
ayahuasca:

Um homem estava tomando cipó (oni). Enquanto isso, o cunhado dele foi atrás de
queixada, o cunhado dele matou não sei nem quantas queixadas. Então, o cunhado
chegou e ele disse:
— Tu já veio cunhado?
— Já vim. Eu já matei as queixadas, eu vou juntar tudinho para nós levarmos esses
bichos que eu matei. Você pode esperar aí que eu vou juntar a queixada tudinho.
Enquanto isso, o cunhado ficou juntando a queixada que ele matou e ele não esperou.
Chegou um outro homem que estava também caçando com o cunhado dele e disse:
— Ah! Nós matamos queixada, nós não matamos mais queixada porque você não
deixa a mulher, tem saudade da mulher e não foi caçar com a gente.
Ele ficou com raiva do outro e falou para a mulher dele:
— Mulher, eu vou para o lado que o bando da queixada foi, eu vou espiar, você
espera por aqui mesmo que eu venho logo.
Então, ele saiu sozinho. Pegou a flecha, o cachorro e saiu. O cunhado dele chegou e
perguntou dele:
— Cadê o cunhado?
A mulher disse que ele tinha saído. Ele disse para a irmã dele:
— Mas eu falei pro seu marido esperar aqui para a gente levar as queixadas.
Então ele saiu atrás de seu cunhado. O cunhado dele foi, gritou, mas ele escondeu,
escondeu no mato. A flecha dele estava quebrada e ele deixou no canto. O cunhado dele
foi atrás e gritou, gritou, gritou. Ele não respondia nada, nada, nada. O cunhado dele
resolveu voltar. No outro dia o cunhado dele foi atrás dele de novo.
No outro dia o cunhado dele foi atrás de novo, gritava e não respondia. E foi, foi,
rastejando a queixada todo o tempo. Onde a queixada dormia, ele dormia também no
toco do pau. O cunhado dele gritou, gritou, gritou e ele não respondia nada. Isto
porque ele foi embora, virou queixada. Hoje em dia ele ainda está com os queixadas.
Estes tempos que eu fui matar queixada, eu vi ele. O cachorro que viu. O nome dele é
Panan. Ele é o chefe das queixadas.

Além dos perigos da imprudência, o que essas duas narrativas sugerem é que os
especialistas xamânicos, no caso os bebedores de cipó, e os caçadores não se devem
confundir. Pode-se beber cipó para ver as caças que serão abatidas, mas ir à caça sob o
efeito do cipó é, de princípio, uma temeridade.
Voltemos à correlação entre especialistas xamânicos e caçadores. Os xamãs, em
suas viagens cósmicas, transmutam seus corpos, viram onças, macacos, queixadas, na
água tomam a forma de surubins. A transmutação física, como observou Viveiros de
Castro (1996a:133) não deve ser compreendida, entretanto, como um disfarce ou
fantasia, mas como meio de estabelecer a comunicação nesse campo intersubjetivo, para
"ativar os poderes de um corpo outro". Já o caçador em sua incursão pela mata conta
com seu próprio corpo, humano, e ativa seus poderes com as injeções de kampo –
215

substância que pode dissipar o rome do corpo dos xamãs e rezadores e que, por isso, é
usada por eles apenas em pequena quantidade – e com o sumo de plantas pingadas em
seus olhos, estimulantes cinegéticos que aguçam seus sentidos, a visão torna-se clara, a
audição e o olfato apurados fazem-no seguir as pistas certas.
Aqui também as cobras estão presentes, embora se trate agora de uma cobra
venenosa. Após retirar a secreção do dorso e das patas do kampo, uma pessoa deve
devolvê-lo vivo à mata. Caso mate o kampo, a surucucu aparece no caminho dessa
pessoa e ameaça matá-la, picando-a. As surucucus também fazem uso do kampo. Para
produzirem o seu próprio veneno as surucucus sugam com suas presas a secreção do
kampo, daí a vingança contra quem o mate.
Caçadores e especialistas xamânicos atuam em diferentes horários: enquanto os
primeiros vão à mata a procura de algum bicho com os primeiros raios de sol, os
segundos iniciam suas atividades apenas depois que o sol se põem. A noite é dos
espíritos (yushin), o que justifica o expediente invertido que ambos cumprem.
É bem verdade que nos dias de hoje os Katukina não contam mais com xamãs
poderosos nem com caçadores extremamente aplicados, os atuais não são comparáveis à
qualidade e quantidade deles que havia no passado – pelo menos é isso o que todos
comentam. Seja como for, contrapor os cuidados e formas de conduta ideais que ambos
têm de adotar ajuda a pôr em relevo a posição que cada um deles ocupa,
compreendendo-as como contraditórias, mas ainda assim vinculadas à mesma esfera de
conhecimento, controlada pelas cobras. Se os animais silvestres aparecem aos olhos da
jibóia como domésticos, é porque ela controla tanto o sucesso do caçador quanto dos
especialistas xamânicos que, seja nas sessões de cura seja tentando fazer a caça farta,
estão lidando com seres que estão sob o seu próprio domínio.
A vinculação dos conhecimentos das grandes cobras tanto à caça quanto ao
xamanismo, duas atividades opostas, parece suficiente para atribuir às cobras um lugar
estratégico na cosmologia katukina. Como xamãs e caçadoras emblemáticas, as cobras
permitem aos Katukina conhecerem melhor aquilo que, convencionalmente, chamamos
de "natureza".
216

CONCLUSÃO

Como se sabe, caminhos – para usar uma metáfora recorrente nos cantos
xamânicos dos Pano (Townsley 1988, Pérez 1999) – distintos podem conduzir a um
mesmo lugar. Na dissertação de mestrado afirmei (Lima 1994a:117) que se a xenofobia,
que tantas vezes se atribui aos ameríndios, não se fazia presente nem servia para definir
as relações que os Katukina teceram ao longo de sua história com grupos indígenas
vizinhos (Kulina, Yawanawa e Marubo), a idéia contrária, a xenofilia, também não era
adequada. Nem etnocêntricos nem relativistas extremados, a dinâmica do contato dos
Katukina com outros grupos reconhecia gradações e oscilações que não se podiam
ignorar. Dicotomias como interior/exterior, dentro/fora, "nós"/"outros" diluíam-se
facilmente. No caso específico, o conceito de nawa, usado pelos Katukina (e outros
Pano) tanto para referir-se a si mesmos quanto aos "outros" evidenciava a dificuldade de
sustentar a rigidez dicotômica. Agora, examinando as concepções katukina sobre as
relações entre humanos e não-humanos é como se a mesma resposta fosse adequada.
Mas afirmar isso categoricamente seria iniciar a conclusão pelo final do texto e o
procedimento mais adequado parece-me recolher e entrelaçar alguns fios soltos que
deixei pelo caminho.
Humanos e não-humanos têm uma característica em comum que permite,
independentemente da variabilidade de seus corpos, a comunicação: todos têm
igualmente yushin. A igualdade espiritual (ou metafísica) que delimita o campo
intercomunicativo não se desdobra, contudo, em livre tráfico. Justamente a
variabililidade dos corpos marca o recorte de tipos específicos. Tendo como referência a
perspectiva humana e leiga, ainda que possam eventualmente partilhar espaços comuns,
homens, animais e espíritos devem manter-se suficientemente afastados. Apenas os
especialistas xamânicos estão habilitados à interação mais próxima com não-humanos e,
mesmo assim, obedecendo certos cuidados.
Os processos de construção do corpo insistem justamente na diferenciação entre
humanos e não-humanos. Neste sentido, o ideal de moderação que pauta a vida
quotidiana e as restrições alimentares refletem a preocupação em ter o corpo sob
controle. Por um lado, entregar-se a excessos e ignorar a etiqueta social – falar alto e ser
217

voraz com a comida, por exemplo –, são formas que, em si mesmas, guardam a negativa
da sociedade e, por extensão, da humanidade. Por outro, após circunscrever o grupo de
parentesco de substância, as restrições alimentares demarcam fronteiras entre
humanidade e animalidade. O contrário, a não observação das restrições, faz a vítima
confundir-se e identificar-se com seu agressor. Assim, os pais que não evitam comer
carne de macaco enquanto têm filhos pequenos, acabam vendo-os assumir o
comportamento de um macaco. As crianças ficam agitadas e perturbadas, ameaçando
morder as pessoas, como se efetivamente tivessem estabelecido uma identidade com
aquele que a agride.
O conteúdo e as implicações sociológicas dos resguardos alimentares foram
discutidos no segundo capítulo. Observo agora que os resguardos alimentares servem
bem par exemplificar o campo intercomunicativo de que falava antes. Do mesmo modo
como o são os cuidados que os procedimentos de caça exigem. Ainda que entre um e
outro as coisas se passem diferentemente. No caso de desrespeito aos resguardos
alimentares, entende-se que o yushin do animal consumido imprudentemente invade a
pessoa, o que fragiliza os vínculos entre o corpo e seus espíritos – o do corpo
propriamente dito (yora vaka) e o do olho (wero yushin) –, podendo ocasionar então a
morte. Já no contexto da caça, os riscos de expedições noturnas por exemplo, trata-se de
uma atração pelos espíritos. Em qualquer das situações o resultado é o mesmo: a
identificação do humano com o não-humano.
Todas as interações com seres não-humanos, sejam animais ou espíritos,
implicam em alguns riscos. Se há um descompasso entre a forma corporal e a forma
espiritual, a interação é sempre arriscada. Nesse sentido, reforçando o que disse antes,
os mortos são uma ameaça e o que os antigos e os atuais procedimentos funerários
afirmam é o processo de alheamento do morto. Sem seu próprio corpo, humano, o
yushin de um falecido é ele mesmo um estranho.
O segundo e o terceiro capítulos abrangem esses processos: a construção do
corpo e da pessoa e sua destruição, na morte. No quarto capítulo tentei definir os
contornos da interação com o mundo dos espíritos a partir daqueles que, a rigor, têm as
credenciais específicas para isso, os xamãs e rezadores. Estes são homens eleitos por um
contato sobrenatural que, observando dietas específicas e submetendo-se a
treinamentos, facultam a comunicação com não-humanos. Aqui convém chamar a
atenção para algo que talvez tenha passado desapercebido. Enquanto toda interação
intraespecífica (i.e., entre humanos) exige a moderação e a polidez, fundamentadas na
218

premissa de que se deve usar mais da persuasão que da violência, a interação inter-
específica (i.e., com não-humanos) dos shoitiya nos ritos de cura se faz por princípios
contrários. A fim de recuperar seus pacientes, o shoitiya assume em seus cantos uma
postura violenta diante dos espíritos. As formas pacíficas de relação social exaltadas no
quotidiano cedem lugar à agressividade. No rito de cura, o shoitiya deve combater o
espírito agressor e, em um certo sentido, revela sua contraface de caçador.
Deste breve resumo compreende-se que os esquemas dicotômicos listados acima
são tão inadequados para pensar a construção da noção de corpo entre os Katukina
quanto o é a chave natureza/cultura para expressar as relações que mantêm com seu
meio. No último capítulo tentei explorar justamente a taxonomia da fauna – dos
mamíferos e das cobras em especial – a fim de ressaltar que os critérios de classificação
não são independentes das posições que cada um dos elementos ocupa em relação ao
outro. Assim, vimos que alguns animais podem ser agrupados explicitamente por
critérios morfológicos, como são aqueles que têm casco/carapaça, shakaya ou as cobras
que têm veneno, rono paeya. Contudo, o reconhecimento dessas características
específicas fazem-nos portadores de determinadas propriedades que interferem
diretamente no domínio humano. Os bichos de casco consumidos por mulheres grávidas
podem enclausurar a criança no ventre materno e causar dificuldades no parto.
Estabelece-se uma homologia entre a morfologia desses bichos, envolvidos em seu
casco, e da criança em formação, envolvida no útero da mãe. Por sua vez, apenas
homens mordidos por cobras venenosas estão habilitados a tratar acidentes ofídicos.
Estes exemplos permitem dizer que os critérios classificatórios ao mesmo tempo em que
objetivam, subjetivam.
Ainda que essas formas de classificação sejam partilhadas por todos, tanto assim
que orientam os resguardos alimentares, revelam sobretudo um ideal de conhecimento
xamânico. Isto porque os especialistas xamânicos – atualmente apenas os rezadores
(shoitiya) – podem interferir, com seus cantos de cura, diretamente nos casos em que as
interações dos diferentes domínios podem resultar em prejuízo aos humanos.
Contrastando o conhecimento ocidental e o ameríndio, Viveiros de Castro
(1999) escreveu que "o xamanismo é uma forma de ação que pressupõe um modo de
conhecimento ou um certo ideal de conhecimento". Um ideal distante da "epistemologia
objetivista de nossa tradição". Enquanto na "nossa tradição" a "forma do Outro é a
coisa", o conhecimento xamânico orienta-se pelo ideal oposto: "a forma do Outro é aqui
a pessoa". Todavia, a subjetivação de não-humanos, sejam animais ou espíritos, não
219

deve conduzir à apreciação ligeira da completa dissolução das categorias natureza e


cultura – como Århem (1993) concluiu ao falar da "ecosofia makuna". No fim das
contas, os xamãs, embora sejam capazes de cambiar seu corpo e sua visão, mantêm-se
sempre solidários ao seu "ponto de vista" (Viveiros de Castro 1996).
No caso do shoitiya katukina é exatamente disso que se trata: fiel aos
compromissos terrestres e humanos, a interação com esses outros sujeitos pressupõe
sempre o predomínio de seu ponto de vista. Se assim não fosse, os rezadores restariam
como os personagens míticos embriagados de ayahuasca de que falei no último capítulo,
imprudentes que deixaram prevalecer a perspectiva alheia. Como pode igualmente
suceder àqueles que se entregam à tristeza após perder um parente querido.
De tudo isso, resta que as categorias Natureza e Cultura, reificadas no Ocidente
mesmo quando se quer dissolvê-las – afinal, para que se dissolvam é preciso admitir sua
robustez –, são sobretudo relacionais. Fossem domínios ontológicos, estanques e
substantivos, não teríamos a transformabilidade dos corpos e pontos de vista na
cosmologia ameríndia – que redundam em tantas restrições quando se interage com
seres que, ao menos, em aparência não são seus semelhantes – sejam animais ou
espíritos, vivos ou mortos.
Convém destacar um segundo problema que foi algumas vezes enunciado no
texto, sem que tenha me dedicado a explicitá-lo. Trata-se do tema da afinidade
permeando todas as relações, internas ou externas à unidade social. Noto que esse tema,
embora antigo (o cativo tupinambá talvez seja ainda o melhor exemplo), teve impulso
nos últimos anos e várias etnografias têm-no abordado, direta ou indiretamente
(Carneiro da Cunha 1978; Viveiros de Castro 1986; Descola 1989). Entre os Pano, a
temática da afinidade se apresenta em tons fortes e parece ser o idioma que comanda as
relações interétnicas, tanto de grupos compósitos como os próprios Katukina, os
Yaminawa (Townsley 1988) e os Yawanawa (Carid 1999) quanto de grupos auto-
centrados e endogâmicos como os Kaxinawa, entre os quais o termo txai (primo
cruzado) é usado para dirigir-se a todos os estranhos (McCallum 1989:127).
Recentemente, no mesmo artigo que citei antes, Viveiros de Castro (1999)
escreveu a respeito da predominância das relações afins entre os ameríndios. Na
"armadura sociológica dos mitos", as aquisições culturais (fogo, armas…) são sempre
transmitidas por protagonistas "canonicamente relacionados como cunhados, como
sogros e genros…". Partindo dessa constatação, o autor concluiu: "a mitologia é um
discurso sobre o dado, o 'inato': dirige-se ao que deve ser tomado por garantido, a
220

condição inicial que a humanidade teve de enfrentar e contra a qual deve definir-se a si
mesma (…). Se tal é o caso, no mundo ameríndio a afinidade e a aliança – a troca – em
vez do parentesco – a criação ou a produção – seria o dado, a condição não-
condicionada".
Sem querer entrar diretamente no debate que se desenrola nas entrelinhas da
passagem citada, entre os Katukina as relações afins predominam nas narrativas míticas,
mas parecem igualmente comandar as relações atuais com o exterior, seja intra ou
interespecífica, com humanos ou não. Primeiramente, há um conjunto de termos de
afinidade efetiva (sogro/genro; sogra/nora; marido/esposa) que são amplamente usados,
mesmo nas situações em que seriam supostamente dispensáveis, i.e., nos casamentos
entre primos cruzados em que a terminologia de parentesco por si só denota a afinidade
(Apêndice 1). Um segundo aspecto a ser observado é que alguns personagens míticos
que outrora ensinaram e/ou transmitiram os itens culturais são hoje os anfitriões celestes
dos mortos. Por fim, Rono Yushin, portadora de todos os conhecimentos xamânicos e,
quiçá, controladora de toda a população da floresta, é como uma "esposa" daqueles que
instrui, dos xamãs e rezadores. Entre os Katukina, não são poucas as dimensões em que
as relações sociais são pensadas como relações de aliança. Talvez pudéssemos mesmo
dizer que a aliança engloba a sociedade e a humanidade, em seus próprios limites e além
deles.
Finalmente, cabem algumas palavras sobre os juízos comparativos entre os
Katukina e os demais Pano, incidentalmente distribuídos ao longo do texto. Em
primeiro lugar, chamam a atenção as semelhanças dos materiais katukina com aqueles
disponíveis acerca de outros grupos panófonos. Neste sentido, as várias semelhanças
sugerem que certas oposições consagradas na literatura devem ser minimizadas. Nem o
meio ecológico ribeirinho dos Shipibo-Conibo – opostos aos grupos do interflúvio –
nem a tendência endogâmica e autocentrada dos Kaxinawa – em oposição aos grupos
compósitos e "abertos" – são obstáculos suficientemente rígidos para impedir que
compartilhem concepções que são comuns a boa parte dos grupos de língua pano. No
caso dos Shipibo-Conibo, seu xamanismo parece bastante próximo daquele praticado
pelos Katukina e pelos Marubo, particularmente no que diz respeito às "uniões místicas"
dos xamãs com mulheres-espíritos. Por sua vez, o tema do mundo subaquático, entre
outros, aproxima os Kaxinawa dos Katukina, além dos Yaminawa, Sharanawa e dos
Shipibo-Conibo. Do mesmo modo como o destino post mortem do espírito do olho, que
ganha um novo corpo no céu, sendo este um tema que, em diferentes versões, aparece
221

entre os Katukina, Kaxinawa, Marubo e Yawanawa e que permite sustentar uma


oposição radical entre vivos e mortos. Além disso, as comparações permitiram agrupar e
destacar algumas informações coincidentes na literatura pano, mas que se apresentavam
relacionadas a fins diferentes em cada um dos grupos. Assim, no último capítulo, vimos
que certas práticas relacionadas à caça em um grupo associavam-se ao xamanismo em
outros – como se fossem marcadas por sinais invertidos. Isso quando não se destinavam
aos mesmos fins no interior de um mesmo grupo. O exame de alguns mitos e de
algumas práticas entre os katukina e outros Pano permitiram ver que a caça e o
xamanismo são miticamente vinculados às grandes cobras. Mesmo nas situações em que
as informações são aparentemente discrepantes e contraditórias, cada um dos grupos
atualiza temas comuns no conjunto da família lingüística.
Ao menos por enquanto não me parece possível elaborar uma resposta
consistente que explique tais diferenças e semelhanças entre os Pano. A tentativa de
relacioná-las às semelhanças e diferenças na organização social resultam pouco
produtivas. Assim, tomemos os exemplos das "uniões místicas" de especialistas
xamânicos com "mulheres-espíritos", que aparecem entre os Shipibo-Conibo (Saladin
D'Anglure 1998), os Marubo (Montagner Melatti 1985) e os Katukina. Disse antes que
o meio ecológico ribeirinho é insuficiente como fator determinante separando os
Shipibo-Conibo dos demais grupos de sua família lingüística. Independentemente disso,
a distância que separa o primeiro dos dois outros grupos é considerável. Contrastando a
organização social dos três grupos, os sistemas de parentesco shipibo-conibo e katukina
são mais assemelhados entre si do que com o dos Marubo. Enquanto os dois primeiros
apresentam um sistema variante do dravidiano, com a equação entre FF e MF e MM e
FM, os Marubo fazem a distinção em sua terminologia. Contudo, a preferência de
casamento novamente separa os Shipibo-Conibo dos Katukina e dos Marubo. Enquanto
nestes dois últimos grupos a união entre primos cruzados bilaterais é preferencial, os
Shipibo-Conibo reconhecem como legítimas apenas uniões de pessoas afastadas por
quatro gerações (Keifenheimm 1992)! Antes que se possa chegar a correlacionar as
concepções cosmológicas com a organização social, as diferenças internas à
organização social têm que ser ponderadas.
Noto que a possibilidade de correlacionar um aspecto presente em mais de um
grupo pano à plataforma oferecida pela organização social – pelo sistema de parentesco
em particular –, havia sido tentada por Erikson (1996) ao sugerir a associação entre
endocanibalismo funerário e um "sistema de parentesco quase-linhageiro (pseudo
222

kariera)". Há, creio, dificuldades para sustentar esta sua tese: os Uni, reputado o grupo
mais guerreiro e mais adepto do endocanibalismo funerário, não apresenta o perfil
kariera de tantos Pano e seu sistema de parentesco (Frank 1994) aproxima-se mais dos
Katukina, dos quais estão separados por centenas de quilômetros.
Por fim, antes que se faça o esforço de buscar correlações que fundamentem as
semelhanças e diferenças – sejam da escatologia, do xamanismo ou da cosmologia –, é
preciso notar quão problemática é a idéia de uma "organização social pano". Embora
poucas vezes se mencione, o panorama não é tão uniforme. Entre os grupos de feição
kariera há significativas variações: os Kaxinawa (Kensinger 1995a) apresentam metades
e seções, os Yaminawa (Townsley 1988) apenas metades, os Marubo (Melatti 1977)
apenas seções e os Sharanawa (Siskind 1973a) e Yawanawa (1999) não têm nem
metades nem seções. O destaque de tantos detalhes pode conduzir ao nominalismo, um
risco que prefiro evitar – mesmo porque contraria os objetivos que me conduziram até
aqui, em um percurso repleto de incidências comparativas. De qualquer forma, destaco
que é baixo o rendimento da correlação entre as várias semelhanças das concepções
cosmológicas (xamânicas e escatológicas) pano e a organização social. Talvez seja o
caso de buscá-la em outros domínios.

Para encerrar, os obstáculos apontados acima não impedem o reconhecimento de


que a fragmentação social dos Pano, dispersos em tantos grupos locais conhecidos por
etnônimos diversos, tem como contrapartida um tanto surpreendente a homogeneidade
cultural (Erikson 1993b). Uma homogeneidade que os próprios Katukina, aliás,
reconhecem. Eventualmente criam artifícios para ocultá-la – como fazem quando negam
suas semelhanças com os Yawanawa –, outras vezes preferem salientá-la – como ocorre
quando se trata dos Marubo. Aqui fiquei com a segunda alternativa, senão por uma
razão mais forte, porque se mostrou heuristicamente mais produtiva para os fins que me
propus.
223

APÊNDICE 1
Terminologia de Parentesco

O vocabulário de parentesco katukina possui uma estrutura dravidiana, ou seja,


todas as pessoas são classificadas a partir de três critérios básicos: nível geracional,
gênero e distinção entre parentes consangüíneos e afins (Dumont, 1975[1953]). Essa
estrutura é comum a outros grupos pano interfluviais. Entretanto, enquanto os Katukina
mantêm a bifurcação entre consangüíneos e afins exclusivamente nas três gerações
centrais, os demais estendem-na às duas gerações distais. É o que se passa entre os
Matis (Erikson, 1996), Matsés (Fields e Merrifield, 1989), Marubo (Melatti, 1977),
Kaxinawa (Kensinger, 1985 e McCallum, 1989), Yaminawa (Townsley, 1988) e
Yawanawa (Carid 1999). Nessa particularidade, os Katukina estão acompanhados dos
Amahuaca (Dole, 1979), Uni (Frank 1994) e Shipibo (Kensinger, 1991) que também
neutralizam a distinção terminológica, equacionando FF com MF e MM com FM.
Embora não caiba discutir aqui se sistemas dravidianos e australianos são mesmos
distintos um do outro (Viveiros de Castro 1996b), convém observar que os Matis,
Matsés, Marubo, Kaxinawa, Yaminawa e Yawanawa combinam uma terminologia de
referência dravidiana com uma terminologia vocativa "australiana" (kariera), isto é,
todos os termos de parentesco são recíprocos entre as gerações alternadas; ao passo que
entre os Katukina não.
A primeira distinção da terminologia katukina é de geração, expressa em cinco
níveis: +2, +1, 0, -1 e -2. A segunda geração ascendente e descendente coincidem com a
geração de Ego. Na geração 0 (zero), um conjunto de termos estabelece a idade relativa
entre irmãos reais e classificatórios. A distinção de gênero é expressa por termos
masculinos e femininos de relação, exceto na geração 0 (zero) para irmãos mais novos
(yB e yZ) e na geração -2. Nas três gerações centrais (+1, 0 e -1) uma oposição
subjacente à bifurcação dos termos faz a distinção entre consangüíneos e afins. Os
termos que constam dos diagramas estão em sua forma vocativa. Estes mesmos termos
são usados em referência, mas nasalizados: taitxon, itxan, papan, ewan, kokan e assim
por diante. Para as gerações -1 e -2 predomina o uso dos nomes pessoais e, assim, os
224

termos do diagrama para estas categorias são, na maior parte das vezes, usados em
referência.
Dado o pequeno número de critérios classificatórios, cada termo abrange um
número amplo de parentes. Assim, ego masculino usa o termo otxi não só para seu
irmão mais velho real quanto para aqueles classificatórios, que são filhos de sua ewa, ou
seja, de sua mãe real ou classificatória, visto que na primeira geração ascendente todas
as mulheres são ewa ou natxi dele.

+2 txaitxo itxa

+1 Papa Ewa natxi koka


(consangüíneo) (consangüíneo) (afim) (afim)
> otxi txitxo

0 Ego pano txai

< txo'o txo'o


(consangüíneo) (consangüíneo) (afim) (afim)
1 vake vake rira pia

2 vava vava
Diagrama 1: Terminologia de parentesco para Ego masculino

+2 txaitxo itxa

+1 papa ewa Natxi Koka


(consangüíneo) (consangüíneo) (afim) (afim)
> otxi t xitxo

0 Ego Tsave Txai

< Txo'o Txo'o


(consangüíneo) (consangüíneo) (afim) (afim)
1 Vake Vake rira pia

2 vava vava
Diagrama 2: Terminologia de Parentesco para Ego Feminino
225

Conforme consta do diagrama, na geração central três termos que estabelecem a


relação entre irmãos: otxi (eB), txitxo (eZ) e txo'o (yB e yZ), usados como vocativos e
em referência. Estes expressam relações hierárquicas, mas há também termos mais
igualitários entre irmãos, não dispostos no diagrama porque são usados exclusivamente
em referência, são eles: pui, irmãos do sexo oposto, e wetsa, irmãos do mesmo sexo.
A regra de casamento determina que um homem deve casar com uma mulher
que ele chama de pano, uma categoria que inclui a MBD e FZD; por outro lado, uma
mulher deve casar com seu txai, uma categoria que inclui o MBS e FZS. Após o
casamento, os cônjuges, sejam ou não da categoria de parentesco correta, dirigem-se um
ao outro como awin, "esposa", e vene, "marido". A troca direta de irmãs é apontada
pelos katukina como o ideal. Entretanto, nos limites da regra, é mais comum um grupo
de irmãos reais ou classificatórios casar com um grupo de irmãs reais ou classificatórias,
ou ainda um homem casar com uma pano patri ou matrilateral, não sendo possível
indicar uma tendência em apenas uma das direções. A sucessão matrimonial, decorrente
de separação ou viuvez, e a poliginia sororal são freqüentes.
O vocabulário de parentesco katukina não equaciona termos de parentesco
cruzados (expressos genealogicamente) com termos de afinidade (mediados por um
casamento). Há termos específicos para afins efetivos, embora a regra de casamento vá
aproximá-los dos termos para afins potenciais. De tal forma que, os termos usados para
o(a) sogro(a) potencial (MB e FZ) e efetivo são modificados após um casamento.
Reciprocamente, sogro (WF) e genro (DH) passam a relacionar-se usando o termo
rayose e sogra (HM) e nora (SW) aplicando o termo vavawan. Rayose e vavawan são
termos usados exclusivamente para designar relações de afinidade efetiva. Ambos os
termos são usados em referência e como vocativos.
Quando coincide com o ideal de casamento entre primos cruzados, os termos de
afinidade efetiva não denotam nada mais que a duplicação de um relação afim
estabelecida genealogicamente. Contudo, quando o cônjuge efetivo não pode ser
classificado como um cônjuge potencial (ou seja, não é um primo cruzado), os termos
citados acima permitem ocultar uniões formalmente impróprias, consangüíneas ou
assimétricas.1

1 O uso de termos específicos para afins efetivos está presente também entre os Marubo (Melatti
1977:102), os Kaxinawa (McCallum 1989:127), os Sharanawa (Siskind 1973:79-80), os Yaminawa
(Calávia 1995) e os Yawanawa (Carid 1999).
226

A terminologia de relação apresenta também termos lineais diferentes de termos


colaterais na geração +1, para sexo masculino. Assim, o termo usado para designar o F,
papa, por ego masculino e feminino, é diferente do termo aplicado ao FB, epa. De
maneira geral, pode-se acrescentar a palavra kuin (verdadeiro ou real), para diferenciar
termos lineais de termos colaterais. Entretanto os Katukina só fazem esse acréscimo se
indagados e normalmente não diferenciam um termo do outro. Assim, natxi kuin
especifica a tia paterna real, mas natxi, da forma como é empregado quotidianamente,
pode ser tanto a tia paterna real quanto a classificatória.
Os termos que constam dos diagramas acima são usados regularmente pelos
Katukina no curso quotidiano de suas vidas. Entretanto, há uma tendência a ampliarem
o uso dos termos a outras categorias além das indicadas e também a fazerem uso
recíproco dos mesmos. Assim, um homem pode empregar o termo papa não só a seu
próprio pai (F) quanto a seu filho (S), e o último usa o mesmo termo para dirigir-se ao
primeiro. De maneira correlata, uma mulher emprega o termo ewa à sua própria mãe
(M) e à sua filha (D) e papa a seu pai e ao BS. Esta prática associa-se a algumas formas
de transmissão onomástica, ocorre apenas quando se transmiti os nomes paralela e
alternadamente – quando o pai escolhe para seu filho o nome de seu próprio pai ou
quando a mãe transmite à filha o nome de sua mãe (Lima 1994a e 1997).
Além da estrutura resumida acima, outras oposições recortam todo o campo
social, sendo a primeira delas entre kaivo e kaivo ma, traduzidos informalmente como
"parentes" e "não-parentes". O uso destas categorias é polissêmico e depende do
contexto em que aparecem. Numa acepção restrita, kaivo confunde-se com o grupo de
substância e reúne apenas parentes diretos – pai, mãe, irmãos e filhos – opostos a todos
os demais, kaivo ma. Numa acepção ampliada, kaivo pode vir a designar a totalidade do
grupo local. Estendendo essas categorias ainda mais, kaivo alcança todos os Katukina,
opostos a outros grupos indígenas, kaivo ma.
Como indicado no corpo da tese, os Katukina estabelecem segmentações e todas
as pessoas são filiadas a uma das unidades nomeadas que compõem a totalidade do
grupo – Varinawa, Kamanawa, Nainawa, Waninawa, Satanawa e Numanawa. Essas
unidades organizam-se a partir de um princípio de unifiliação, mas, a esse respeito, os
Katukina estão em desacordo: enquanto uns afirmam a matrilinearidade, outros afirmam
a patrilinearidade.
227

Termos de parentesco katukina

Ego
Txaitxo FF, MF masculino e feminino
Itxa MM e FM masculino e feminino
Papa F masculino e feminino
Epa FB feminino e masculino
Ewa M, MZ masculino e feminino
Koka MB masculino e feminino
Natxi FZ masculino e feminino
Otxi elB masculino e feminino
Txitxo elZ masculino e feminino
Txo'o yB e yZ masculino e feminino
Pui B/Z do sexo oposto masculino e feminino
Wetsa B/Z do mesmo sexo masculino e feminino
Pano MBD e FZD masculino
Tsave MBD e FZD feminino
Txai MBS ou FZS masculino e feminino
Vake S, BS e D, ZD masculino e feminino
Pia ZS e BS masculino e feminino
Rari ZD e BD masculino e feminino
Vava SS, DS, DS, DD masculino e feminino
Rayose WF, WM e DH
Vavawan HF, HM e SW
Vene H
Awin W
228

APÊNDICE 2
Grafia de palavras Katukina

Na transcrição das palavras katukina, usei, na medida do possível, as letras


correspondentes em português. A língua katukina foi descrita e analisada nos trabalhos
de Aguiar (1988 e 1994) e Barros (1987).

a = pato
e = fechado
i = milho
h = é uma aspiração quase imperceptível
k = casa
m = mato
n = noite
o = boca
p = pouco
r = barato, eqüivale sempre ao r intervocálico, mesmo no início da palavra
s = sala, eqüivale sempre ao ss em português
sh = chave, xícara
t = tio
tx = Tcheco-Eslováquia
ts = assemelha-se a tx, mas é mais suave
u = unha
v = vento
w = "world", em inglês
y = "you", em inglês
' = oclusão glotal

Há uma proposta ortográfica elaborada pela MNTB (1977), que foi, de forma
aproximada, seguida aqui. Atualmente os professores katukina estão elaborando, sob os
auspícios do Setor de Educação da CPI-AC, uma ortografia de sua própria língua. É por
essa razão que uso o "sh", como exemplifiquei acima. De minha própria parte, tenderia
a trocá-lo pelo "x". Como os Katukina, certamente influenciados pela grafia proposta
pelos MNTB, usam o "sh" (no lugar do "x") em suas publicações (André Shere 1993),
acabei optando por essa alternativa.
229

BIBLIOGRAFIA

ÅRHEM, Kaj
1993 "Ecosofia Makuna". In. F. Correa, ed., La selva humanizada. Ecología alternativa en
el trópico húmedo colombiano. Bogotá, ICAN/FEN/Fondo Editorial CEREC.

ABELOVE, J. & CAMPOS, R.


1981 "Infancy related food taboos among the Shipibo", In. K. Kensinger, K. & W. Kracke,
eds., Foods taboos in lowland South America (Working Papers on South America
Indians, 3). Bennigton, Bennigton College. pp. 171-176.

AGUIAR, M. Sueli
1988 Elementos de descrição sintática para uma gramática do Katukina. Dissertação de
mestrado, UNICAMP.
1994 Análise descritiva e teórica do Katukina-pano. Tese de doutorado, UNICAMP.

AMARAL, Afrânio
1977 Serpentes do Brasil. Iconografia colorida. São Paulo, Melhoramentos/Edusp.

ANDRÉ SHERE, Benjamin


1993 Cartilha Katukina. Rio Branco, Comissão Pró-Índio (AC).

ANDRÉ SHERE, Benjamin & SENA, Vera


1998 Noke shoviti. Mitos katukina. Comissão Pró-Índio (AC)/Editora Poronga.

AQUINO, Terri V.
1997a "Proteção aos índios e ao meio ambiente, junto com a pavimentação da BR-364".
Página 20, n° 314, 13 de abril, p. 14.
1997b "Unidades de conservação contínuas protegem florestas do vale do Juruá". Página
20, n° 320, 20 de abril, p. 14.
1997c "Programa mínimo de proteção ambiental em favor das populações tradicionais do
Juruá". Página 20, n° 325, 27 de abril, p. 14.

AQUINO, Terri & CATAIANO, Carlito


no prelo "Aves Kaxinauá". In. M. Carneiro da Cunha & M. Almeida, eds., Enciclopédia da
Floresta. O Alto Juruá.

AQUINO, Terri V. & IGLESIAS, Marcelo P.


1994 Kaxinawá do rio Jordão. História, território, economia e desenvolvimento
sustentado. Rio Branco, Comissão Pró-Índio (AC).

ARAÚJO, Gabriela
1998 Entre almas, encantes e cipó. Dissertação de Mestrado, UNICAMP.

ARÉVALO VALERA, G.
1986 "El ayahuasca y el curandero Shipibo-Conibo del Ucayali (Perú)", América
Indígena, XLVI 1) : 147-161.
230

BALZANO, Silvia
1991 Fear and sadness among the Chacobo indians of Bolivia, 47th International
Congress of Americanists, New Orleans.

BARROS, Luizete G.
1987 A nasalização vocálica e fonologia introdutória à língua Katukina pano.
Dissertação de mestrado, UNICAMP.

BERLIN, Brent
1992 Ethnobiological classification. Principles and categorization of plants and animals
in traditional societies. Princeton, Princeton University Press.

BERLIN, Brent et alii


1974 "General Principles of classification and nomenclature in folk biology", American
Anthropologist, 75:214-242.
1969 "Folk taxonomies and biological classification". In. S. Tyler, ed., Cognitive
Anthropology. New York, Holt, Rinehart and Winston.

BULMER, Ralph
1967 "Why the cassowary is not a bird? A problem of zoological taxonomy among the
Karam of the New Guinea highlands", Man (n.s.) 2:5-25.

CALÁVIA, Oscar
1995 O nome e o tempo dos Yaminawa. Tese de Doutorado, USP.
1998 "Biopirataria: mitos, leis e políticas", Imprimatur@ Revista Virtual de Ciências
Humanas, 1.
2000 "Mythologies of the vine". In. L. E. L Porras & S. F. White, eds., Ayahuasca
Reader. Encounters with the Amazon's Sacred Vine, Santa Fé, New Mexico:
Synergetic Press. pp. 36-40

CAMARGO, Eliane
1997 "Elementos da base nominal em Caxinauá (pano)", Boletim do Museu Paraense
Emílio Goeldi, 13 (2):141-165.
1998 "La structure actancielle du Caxinaua", La linguistique, 34 (1). 137-150.
1999 "Alimentando o corpo. O que dizem os Caxinauá sobre a função nutriz do sexo",
Sexta-Feira. Antropologia, Artes e Humanidades, 4 : 130-137.

CARID, Miguel A.
1999 Yawanawa: da guerra à festa. Dissertação de Mestrado, UFSC.

CARNEIRO, Robert
1964 "The Amahuaca and the Spirit World". Ethnology, 3:6-11.
1970 "Hunting and hunting magic among the Amahuaca indians of the peruvian montaña",
Ethnology, IX : 331-341.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela


1978 Os mortos e os outros. Uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa
entre os índios Krahó. São Paulo, Hucitec.
1998 "Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução", Mana 4 (1) : 7-
22.
231

CASTELLO BRANCO, J. M. B.
1950 "O gentio acreano". Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 207:3-83.

CHAUMEIL, Jean Pierre


1992 "La vida larga: inmortalidad y ancestralidad en la Amazonía". In. M. S. Cipoletti &
J. Langdon, eds., La muerte y el mas alla en las culturas indigenas
latinoamericanas. Quito, Abya-Yala.
1997 "Le os, les flütes, les morts. Mémoire et traitement funéraire en Amazonie", Journal
de la Société des Americanistes, 83 : 83-110.

CPI-AC
1995 Shenipabu Miyui. História dos Antigos. Rio Branco, Comissão Pró-Índio.
1996 Atlas geográfico indígena do Acre. Rio Branco, Gráfica Kene Hewe/CPI.

DA MATTA, Roberto
1976 Um mundo dividido. A estrutura social dos índios Apinayé. Petrópolis, Vozes.

DESCOLA, Philippe & PÁLSSON, Gisli (eds.)


1996 Nature and society. Anthropological perspectives. London/New York, Routledge.

DESCOLA, Philippe
1989 La selva culta. Simbolismo y praxis en la ecología de los Achuar. Roma/Quito,
MLAL/Abya-Yala.
1996 Constructing natures: symbolic ecology and social practice”. In. Ph. Descola & G.
Pálsson. pp. 82-102.
1998 “Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia”, Mana 4 (1) : 23-
45.

DESHAYES, Patrick
1986 "La manera de cazar de los Huni Kuin", Extracta, 5 : 7-10.
1992 "Paroles chassées. Chamanisme et chefferie chez les Kashinawa", Journal de la
Société des Américanistes. LXXVIII(2) : 95-106.
2000 Les mots, les images et leurs maladies chez les indiens Huni Kuin de l'Amazonie.
Paris, Éditions Loris Talmart.

DESHAYES, Patrick & KEIFFENHEIM, Barbara


1982 La concepcion de l'autre chez les Cashinahua du Pérou. These de Troisieme Cycle,
Université de Paris VII – Jussieu.

DOLE, Gertrude
1974 Endocannibalism among the Amahuaca Indians of Eastern Peru. In. P. Lyon, ed.,
Native of South Americans: ethnology of the least known continent. Boston, Little,
Brown, Co.
1979 "Pattern and variation in Amahuaca kin terminology". In. K. Kensinger, ed., Social
Correlates of kin terminology (Working Papers of South American Indians, 1),
Bennington, Bennington College.

DRUMMOND, Louis
1981 "The serpent's children: semiotics of cultural genesis en Arawak and Trobriand
myth", American Ethnologist 8(3). pp. 633-660.
232

DUMONT, Louis
1975 Kariera et Dravidien. Paris, Mouton.

EMMONS, Louise
1990 Neotropical rainforest mammals. A field guide. Chicago/London, The University of
Chicago Press.

ERIKSON, Philippe
1986 "Alterité, tatouage et anthropophagie chez les Pano: la belliqueuse quête du soi",
Journal de la Société des Américanistes, LVII : 185-210.
1987a "Bats-moi mais tout doucement", L'Univers du Vivant, 20 : 99-115.
1987b "De l'apprivoisement à l'approvisionement", Techniques et Cultures 9.
1990 Les Matis d'Amazonie. Parure des corps, identité ethnique et organisation sociale.
These de docteur, Université de Paris X – Nanterre.
1993a "A onomástica Matis é amazônica?" In: E. Viveiros de Castro & M. Carneiro da
Cunha, eds., Amazônia: etnologia e história indígena, São Paulo,
NHII/USP/FAPESP. pp. 323-338.
1993b "Une nebuleuse compacte: le macro-ensemble pano", L'Homme, XXXIII (2-4):45-
58.
1994 "A bibliography's biography". In. Ph. Erikson et alii. Kirinboboan Kirika (Gringo's
books). An annotated panoan bibliography. Paris, Association d"Ethnolinguistique
Amérindienne, Amerindia, supplément 1.
1996 La griffe des aïeux. Marquage du corps et démarquages ethniques chez les Matis
d’Amazonie. Paris, CNRS/Peeters.
1999 Myth and material culture: matis blowguns, palm trees and ancestor spirits. Paper
prepared for Peter Rivière's fetschrift. Ms.

no prelo a The social significance of pet-keeping among amazonian indians. ms.


no prelo b Reflexos de si, ecos de outrem: efeitos do contato sobre a auto-representação matis,
ms.
ERIKSON, Philippe et alii
1994 Kirinboboan Kirika (Gringo's books). An annotated panoan bibliography. Paris,
Association d"Ethnolinguistique Amérindienne, Amerindia, supplément 1.
<http://www.u-paris10.fr/bibethno/21r.html>

FAUSTO, Carlos
1997 A dialética da predação e da familiarização entre os Parakanã da Amazônia
Oriental: por uma teoria da guerra ameríndia. Tese de doutorado, Museu Nacional.

FRANCO, Mariana C. Pantoja & CONCEIÇÃO, Osmildo


1999 Breves revelações sobre a ayahuasca (o uso do chá entre os seringueiros do alto
Juruá), Campinas, mimeo.

FRANK, Erwin H.
1987 "Das tapirfest der Uni Eine funktionale analyse, Anthropos 82 : 151-181. (tradução
não-publicada em francês por Isabelle Daillant)
1994 "Los Uni". In. F. Santos & F. Barclay, eds., Guía Etnográfica de la Alta Amazonía,
Quito, Flacso/IFEA. v. 2.
233

FUNAI
1979 Reestudo das áreas indígenas Poyanawa, Jaminawa e Campinas, Brasília, ms.
1982 Síntese Antropológica da Área Indígena do Rio Gregório, Brasília, ms.

FUNTAC
2000 Revisão do Componente Indígena. BR-364 Trecho Tarauacá Rodrigues Alves. Rio
Branco, ms.

GALLOIS, Dominique T.
1988 O movimento na cosmologia waiãpi. Criação, expansão e transformação do
universo. Tese de doutorado, USP.

GEBHART-SAYER, Angelika
1986 "Uma terapia estética. Los diseños visionários de la ayahuasca entre los Shipibo-
Conibo", América Indígena, XLVI (1) : 189-218.

GIANINI, Izabelle V.
1991 A ave resgatada: a impossibilidade da leveza do ser. Dissertação de mestrado, USP.

GOUSSARD, J. J.
1983 Étude comparée de deux peuplements aviens d'Amazonie Peruviènne (5ª Partie:
L'oiseau dans l'ethnoecosysteme conibo e dans l'ethnoecosysteme yaminahua).
Thèse. École Pratique des Hautes Etudes.

GOW, Peter
1991 Of mixed blood. Kinship and history in peruvian Amazonia. Oxford, Claredon Press.
1996 "River people: shamanism and history in western Amazonia. In. N. Thomas & C.
Humphrey, eds., Shamanism, history and the state. Ann Arbor, The University of
Michigan Press. pp. 90-113.

GREENE, Harry W.
1973 "Defensive tail display by snakes and anphisbaenians", Journal of Herpetology, 7 (3)
: 143-161

HILTY, Steven & BROWN, William


1986 A guide to birds of Colombia. Princeton, Princeton University Press.

HUGH-JONES, Stephen
1996a "Shamans, prophets, priest and pastors". In. N. Thomas. & C. Humphrey, eds.,
Shamanism, history and the state. Ann Arbor, The University of Michigan Press. pp.
32-75.
1996b "Bonnes raisons ou mauvaise conscience? De l'ambivalence de certains amazoniens
envers la consommation de viande", Terrain, 26 : 123-148.

IDIAZABAL, Mikel M.
1999 Relatório de viagem de assessoria. Terra Indígena Campinas / Katukina. Comissão
Pró-Índio do Acre/Setor de Agricultura e Meio Ambiente, ms.

ILLIUS, Bruno
1985 "Das Große Trinken. Heirat und Stellung der Frau bei den Shipibo-Conibo, Ost-
Peru" In. V. Völger & K von Welck, eds., Die braut. Geliebt - verkauft - getauscht -
geraubt. Zur Rolle der Frau in Kkulturvergleich, Número especial Ethnologica, 11,
vol. II. (tradução não-publicada em francês por Isabelle Daillant)
234

1992 "The concept of nihue among the Shipibo-Conibo of Eastern Peru". In. E. J.
Langdon & G. Baer, eds., Portals of power. Shamanism in South America.
Albuquerque, University of New Mexico Press. pp. 63-77.
1994 "La 'Grand Boa': arte e cosmología de los Shipibo-Conibo", Amazonía Peruana,
tomo XII, n. 24. pp. 185-212.

INGOLD, Tim (ed.)


1988 What is an animal? London, Unwin Hyman.

KÄSTNER, Klaus-Peter
1991 The historical ethnolinguistic family pano and its origin, extension and
characteristic cultural traits. 47th International Congress of Americanists, New
Orleans, ms.

KEIFFENHEIM, Barbara
1990 "Nawa: um concept clé de l'alterité chez les pano", Journal de la Société des
Américanistes, LXXVI: 79-94.
1992 "Identité et alterité chez les Pano", Journal de la Société des Américanistes,
LXXVIII: (2) : 79-93.
1997 "Futurs beaux-frères ou esclaves? Les Kashinawa découvrent les indiens non
contactés", Journal de la Société des Américanistes, 83 : 141-158.

KENSINGER, Kenneth
1995a How real people ought to live. The Cashinahua of eastern Peru. Illinois, Waveland
Press, Inc.
1995b Changing perspectives on Cashinahua residencial practices: 1955-1995. American
Anthropological Association, ms.

LANCINI, Abden R. V.
1979 Serpientes de Venezuela. Caracas, Graficas Armintano C.A.

LAGROU, Elsje
1996 "Xamanismo e representação entre os Kaxinawá". In. E. J. Langdon, ed., Xamanismo
no Brasil. Novas perspectivas. Florianópolis, Editora da UFSC. pp. 197-231.
1998 Caminhos, duplos e corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e
alteridade entre os Kaxinawa. Tese de Doutorado, USP.

LANGDON, Esther J.
1992 "Mueren en realidad los shamanes? Narrativa de los Siona sobre shamanes
muertos". In. M. S. Cipoletti & J. Langdon, eds., La muerte y el mas alla en las
culturas indigenas latinoamericanas. Quito, Abya-Yala.

LEACH, Edmund
1983 "Aspectos antropológicos da linguagem: categorias animais e insulto verbal", In. Da
Matta, R., org., Leach. São Paulo, Ática (Col. Grandes Cientistas Sociais), pp.170-
198.

LÉVI-STRAUSS, Claude
1989 O pensamento selvagem. Campinas, Papirus.
1991 O cru e o cozido. São Paulo, Brasiliense.
235

LIMA, Edilene C.
1994a Katukina: história e organização social de um grupo pano do alto Juruá.
Dissertação de Mestrado, USP.
1994b "Katukina, Yawanawa e Marubo: desencontros míticos e encontros históricos",
Cadernos de Campo, 4 : 1-19.
1997 "A onomástica katukina é pano?", Revista de Antropologia, 40 (2) : 7-30.
1998 "Os Katukina, a BR e o Futuro", Página 20, Rio Branco (AC), 28 de maio. (Coluna
Papo de Índio)
no prelo "BR-364: a saída para o Pacífico no caminho dos Katukina", Aconteceu Especial.
Povos Indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo, Instituto Socioambiental.

LIMA, Tânia S.
1996 "O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi",
Mana, 2 (2) : 21-47.

MCCALLUM, Cecilia
1989 Gender, personhood and social organisation amongst the Cashinahua of Western
Amazonia. Doctoral thesis, London School of Economics.
1996 "Morte e pessoa entre os Kaxinawá", Mana, 2 (2) : 49-84.
1998 "O corpo que sabe. Da epistemologia Kaxinawá para uma antropologia médica das
sociedades das terras baixas sul-americanas". In. P. C. Alves & M. C. Rabelo, eds.,
Antropologia da saúde. Traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de
Janeiro, Editora Fiocruz/Relume Dumará. pp. 215-245.

MELATTI, Júlio César


1977 "Estrutura social Marubo: um sistema australiano no Amazônia", Anuário
Antropológico/76:83-120.
1981 Povos Indígenas no Brasil, 5, Javari. CEDI, São Paulo.
1985 "A origem dos brancos nos mitos de Shoma Wetsa", Anuário Antropológico/84:109-
173.
1986 Wenia: a origem mitológica da cultura Marubo. Trabalho de Ciências Sociais, Série
Antropológica, 54.
1998 "Marúbo". Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil. Instituto Socioambiental.
<http://www.socioambiental.org/epi/marubo/marubo.htm>

MNTB
1977 Katukina. Cartilha de Leitura. Manaus, Missão Novas Tribos do Brasil.

MONTAGNER MELATTI, Delvair


1991 "Mani pei rao: remédios do mato dos Marubo", In. D. Buchillet, ed., Medicinas
tradicionais e medicina ocidental na Amazônia, CNPq/CEJUP/UEP, Belém.
1985 O mundo dos espíritos: estudo etnográfico dos ritos de cura Marubo. Tese de
Doutorado, UnB.
1977 "Cerâmica marubo", Cultura, 25 : 70-77.

MONTAGNER, Delvair
1996a "Cânticos xamânicos dos Marubo". In. E. J. Langdon, ed., Xamanismo no Brasil.
Novas perspectivas. Florianópolis, Editora da UFSC. pp. 171-195.
236

1996b A morada das almas. Representações das doenças e das terapêuticas entre os
Marubo. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi (Col. Eduardo Galvão).

MUNDKUR, B.
1976 "The cult of serpent in the Americas", Current Anthropology, 17 : 429-441, 446-455.

PEREIRA NETO, Antônio


2000 Análise do Documento "Revisão do componente indígena - BR-364. Trecho
Tarauacá-Rodrigues Alves', elaborado pela Funtac, de maio/2000. Rio Branco,
FUNAI, 23 de maio.

PÉREZ, Laura
1999 Pelos caminhos de Yuve: conhecimento, cura e poder no xamanismo yawanawa.
Dissertação de Mestrado, UFSC.

PMACI II
1994 Diagnóstico geoambiental e socioeconömico. Área de influência da BR-364, trecho
Rio Branco/Cruzeiro do Sul. Rio de Janeiro, IBGE/IPEA.

RIVIÈRE, Peter
1995 "AAE na Amazônia", Revista de Antropologia, 38 (1). pp. 191-203.

ROE, P.
1982 The cosmic zygote. Cosmology in the Amazon Basin. New Brunswick/New Jersey,
Rutgers University Press.

ROMANOFF, Stephen
1984 Matsés Adaptation in the Peruvian Amazon. Doctoral thesis, University of
Columbia.

RUEDAS, Javier.
1999 Marubo discourse genres and domains of influence. Annual Meeting of the Society
for the Study of the Indigenous Languages of the Americas, University of Illinois,
ms.

SALADIN D'ANGLURE, Bernard & MORIN, Françoise


1998 "Mariage mystique et pouvoir chamanique chez les Shipibo d'Amazonie péruvienne
et les Inuit du Nunavut canadien", Anthropologie et Sociétés, 22(2):49-74.

SCHETTINO, Marco P F
2000 Nota Técnica nº 068/2000. Revisão do Componente Indígena do EIA/RIMA da
Rodovia BR-364. Brasília, Ministério Público Federal, 26 de maio.

SEEGER, Anthony et alii


1987[1979] "A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras". In. J. Oliveira
Filho, ed., Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro, Marco
Zero. pp. 11-29.

SENA, Wagner Pereira


1996 Análise do EIA/RIMA referente a BR-364. DPI/FUNAI, Brasília, 11 de novembro.
(mimeo)

SISKIND, Janet
237

1973a To hunt in the morning. New York, Oxford University Press.


1973b "Visions and cure among the Sharanahua". In. M. Harner, ed., Hallucinogens and
shamanism. New York/London, Oxford University Press.

SOUZA, Moisés B.
no prelo O conhecimento de índios Kaxinawas sobre a herpetofauna (Ophidia - cobras e
Lacertilia -lagartos) no estado do Acre. In. M. Carneiro da Cunha & M. Almeida.
Enciclopédia da Floresta. O alto Juruá. Companhia das Letras.

STCP Engenharia de Construções Ltda.


1996a EIA – Estudo de Impacto Ambiental da BR-364, no Trecho Rodrigues Alves -
Tarauacá no Acre. Governo do Estado do Acre/DERACRE.
1996b RIMA – Relatório de Impacto Ambiental da BR-364, no Trecho Rodrigues Alves -
Tarauacá no Acre. Governo do Estado do Acre/DERACRE.

TASTEVIN, Constantin
1924 "Chez les indiens du Haut-Jurua", Missions Catoliques, t. LVI:65-67; 78-80; 90-93;
101-104.
1926 "Le Haut-Tarauaca". La Géographie, XLV:34-54 & 158-175.
1928 "Le Riozinho da Liberdade". La Géographie, XLIX:205-215.

TEIXEIRA-PINTO, Márnio
1997 Ieipari. Sacrifício e vida social entre os Arara. São Paulo, Hucitec/Anpocs/Editora
da UFPR.

THOMAS, Keith
1989 O homem e o mundo natural. Mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais (1500-1800). São Paulo, Companhia das Letras.

TOURNON, Jacques
1991a "La clasificacion de los vegetales entre los Shipibo-Conibo", Antropologica, 9:119-
151.
1991b "Medicina y visiones: canto de un curandero Shipibo-Conibo, texto y contexto",
Amerindia, 16 : 179-209.
1993 "Como los Shipibo-Conibo nombram e clasificam los animales, Revista
Antropologica, 11.
1994 "Los Shipibo-Conibo y la fauna acuática", Revista Antropológica, 12.

TOURNON, J. & Reátegui, U.


1984 "Investigaciones sobre las plantas medicinales de los Shipibo-Conibo del Ucayali",
Amazonia Peruana, 5 (10) : 91-118.

TOWNSLEY, Graham
1984 "Gasoline song: a shamanic chant of the Yaminahua, an amazonian group of the
peruvian lowlands", Cambridge Anthropology, 9 (2) : 75-79.
1988 Ideas of order and patterns of change in Yaminahua Society. Doctoral thesis,
Cambridge University.
1993 "Songs paths. The ways and means of shamanic knowledge", L’Homme, XXXIII (2-
4) : 449-468.
238

VILAÇA, Aparecida
1992 Comendo como gente. Formas do canibalismo wari'. Rio de Janeiro, Editora da
UFRJ.
1998 "Fazendo corpos: reflexões sobre a morte e o canibalismo entre os Wari' à luz do
perspectivismo", Revista de Antropologia, 41 (1) : 9-67.
1999 "Devenir autre: chamanisme et contact interethinique en amazonie brésilienne",
Journal de la Société des Américanistes, 85 : 239-260.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo


1986 Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/ANPOCS.
1993 "Alguns aspectos da afinidade no dravidianato amazônico". In: E. Viveiros de Castro
& M. Carneiro da Cunha, eds., Amazônia: etnologia e história indígena, São Paulo,
NHII/USP/FAPESP. pp. 149-210.
1996a "Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio", Mana, 2 (2) : 115-144.
1996b "Ambos os três: sobre algumas distinções tipológicas e seu significado estrutural na
teoria do parentesco", Anuário Antropológico/95, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
1999 The transformation of objects into subjects in amerindian ontologies. AAA Annual
Meeting, Chicago.
no prelo "Gut feelings about Amazonia: potential affinity and the construction of sociality".
In. L. Rival & N. Whitehead, eds., Beyond the visible and the material: the
amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford University Press.

WILLIS, R. (ed.)
1990 Signifying animals: Human meaning in the natural world. London, Unwin Hyman.

WISTRAND, Lila
1968 "Desorganización y revitalización de los Cashibo", América Indígena, XXVIII (3).
1969 "Un texto cashibo: el proceso de cremación", América Indígena, XXIX (4).

Você também pode gostar