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São Paulo
2000
Resumo
Abstract
For the Katukina (panoan linguistic family), a person is the result of socio-physiological
processes that model his or her body. This process is oriented by the search of a
balanced relation with the other, represented by men, animals or spirits. The desired
equilibrium involves the moderation that should ideally guide everyday relationships,
alimentary restrictions as well as special cares related to burials and shamanic practice
and initiation. The aim of this work is to present an ethnography of these processes. The
relations established by the Katukina with animals and spirits are not essentially
different from those established among themselves. This work explores the relational
character of these frontiers. As ethnographies have shown, the notion of humanity for
the Panoan is not concomitant with the limits of the social groupings. Based on the
experience of the Katukina, it is argued that this notion can be extended beyond
humanity itself. This extension, however, cannot be understood as complete
indistinctness, as if, between men, animals and spirits, no demarcations were
established. On the contrary, Katukina conceptions permitting knowledge of the
relations between these three classes help us to keep separate domains that, although
distinct, communicate among them. Furthermore, Katukina material is compared to
those available about other groups of their linguistic family, with the aim of pointing out
how they present common themes.
3
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................7
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................28
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................52
A PESSOA KATUKINA...........................................................................................................52
O corpo .........................................................................................................................54
As paixões do corpo.......................................................................................................57
Os alimentos do corpo ...................................................................................................59
Restrições alimentares e ciclo de vida ............................................................................61
Restrições alimentares e estados liminares.....................................................................62
Confusão homem/animal................................................................................................69
Os sabores do corpo ......................................................................................................72
O descontrole do corpo e a fuga do yushin .....................................................................79
CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................85
CONCLUSÃO..................................................................................................................... 216
Agradecimentos
. Mani e Txapa, Mame e Vari, Kako e Penanai, Sharan e Kene, Yaka, Txoki, Mampo e
Retxa, na aldeia do rio Campinas, e Tsomi, Rira, Pawa e Roni, na aldeia do rio
Gregório, facilitaram meus caminhos, além de terem sido excelentes anfitriões. Através
deles, agradeço a todos.
. Ao Eduardo, que acompanhou tudo desde o princípio. Dedico-lhe agora este trabalho.
7
APRESENTAÇÃO
A gênese e os objetivos da pesquisa
1
A língua katukina foi descrita e analisada em três teses acadêmicas, ver Barros (1987) e Aguiar (1988 e
1994).
8
mesmo tempo, como auto-denominação, uma vez que compõe uma parte significativa
dos etnônimos pelos quais são conhecidos os grupos dessa família lingüística –
Kaxinawa ("povo morcego"), Yawanawa ("povo queixada"), Marinawa ("povo cotia") e
outros mais –, e como termo genérico aplicado aos estrangeiros, sejam outros grupos
panófonos ou os Kulina ou os brancos. Tendo em conta esse panorama, Erikson
(1992:251) escreveu: "a política externa sempre constituiu, sem dúvida alguma, um
domínio crítico na área pano, em que sempre se cultivou a arte de conviver com os
estrangeiros". O conceito de nawa era central para entender essa "política externa", dado
que, embora pudesse representar o pólo oposto do locutor, não encarnava a "antítese da
humanidade" (Erikson 1990:80 e 1996:78).
Iniciei minha pesquisa com os Katukina preocupada com essas duas temáticas.
Resumidamente, no que diz respeito ao sistema de parentesco, no lugar do kariera,
encontrei um sistema variante do dravidiano, muito comum na Amazônia. Quanto à
"atração pelo exterior" ou à "política externa", nada de fora parecia indiferente aos
Katukina. Na história do grupo, passada e recente, não faltam relatos de contatos com
grupos indígenas vizinhos, em especial com os Kulina, Yawanawa e Marubo.
Confirmando o que se sabe de outros grupos pano, os Katukina não fazem coincidir a
fronteira da humanidade com os limites de seus grupos locais, o que certamente
contribui para o estabelecimento de numerosas relações interétnicas (Lima 1994a).
A pesquisa subseqüente, cujo resultado apresento, foi estabelecida a partir de
uma nova questão: considerando que a categoria nawa organiza conceitualmente a
relação de alteridade no plano sociológico – intra e inter-grupal, uma vez que a utilizam
para definir tanto o "nós" (adiante veremos que "katukina" não é uma auto-
denominação) quanto os "outros" – como os Katukina interagem com os elementos que
estão fora desse esquema classificatório? Tratava-se de buscar compreender como se
delimitavam e fixavam as fronteiras entre os humanos e os não-humanos, fossem
animais ou espíritos. Meu ponto de partida era a simples presunção de que se existe um
sistema para tratar da alteridade sociológica, deveria haver também um sistema para
tratar da alteridade cosmológica. Vislumbrava explorar esta questão a partir do exame
da classificação taxonômica e dos significados simbólicos das espécies animais na
cosmologia do grupo.
No caminho muitas coisas se perderam completamente, algumas simplesmente
foram reduzidas e outras ainda adensadas. A principal modificação foi feita na parte
relativa à classificação taxonômica dos animais. Inicialmente prevista para ocupar o
9
centro do trabalho, deslocou-se, pouco a pouco, para a borda, ainda que isso não a tenha
destituído de importância. O deslocamento do lugar da taxonomia da fauna deve-se
tanto a problemas operacionais no decorrer da pesquisa (tive problemas com a
identificação científica das espécies animais, em particular dos répteis, a partir de fichas
com ilustrações) quanto à atenção que os próprios Katukina davam aos meus interesses.
No caso, o aspecto formal da taxonomia parecia interessar menos que seus aspectos
simbólicos. Em campo, as interdições alimentares, a possibilidade de transmutações dos
animais em espíritos, os perigos para quem mata ou maltrata determinadas espécies,
entre outras coisas, eram muito mais destacados pelos próprios Katukina.
Evidentemente era impossível compreender suas asserções sobre os não-humanos,
fossem animais ou espíritos, sem refletir sobre como os Katukina compreendem a si
mesmos. Assim, em campo, tive que redefinir parte de meus interesses e passei então a
explorar a sua própria noção de corpo e de pessoa, que era fundamental para
compreender todo o resto.
No mais, a ênfase que os Katukina insistiam em dar ao simbolismo dos animais,
levou-me a explorar o caráter fundamentalmente contextual dos sistemas taxonômicos.
O uso que faço do plural por si só indica que não há entre eles um único esquema
classificatório, mas vários deles, organizados de acordo com critérios morfológicos,
pragmáticos e simbólicos. Ainda que fosse importante não desconsiderar a morfologia
para entender a classificação que os Katukina elaboram da fauna, parecia-me muito
mais importante conhecer suas próprias concepções sobre o conjunto dos "seres da
natureza".
Como ocorre em outros grupos amazônicos, as concepções katukina sobre o que
são homens, animais e espíritos podem se entrecruzar. Uma pessoa é resultado de
processos sócio-fisiológicos que modelam seu corpo e o processo como um todo é
compreendido pela manutenção de uma relação de equilíbrio com a alteridade, seja
representada por homens, espíritos ou animais, e que envolve desde a moderação que
deve orientar o comportamento quotidiano, os cuidados relativos ao sepultamento dos
defuntos, os tabus alimentares até a iniciação e a prática xamânicas. Este trabalho
pretende-se, primeiramente, como uma etnografia desses processos.
As relações que os Katukina estabelecem com animais e espíritos não são
essencialmente diversas daquelas que estabelecem entre si e passei a explorar o caráter
relacional dessas fronteiras. Ampliando assim o sentido da proposição de que, entre os
Pano, a concepção de humanidade não se encerra nas fronteiras dos grupos (Erikson
10
*****
2
Apenas para oferecer uma idéia, em quinze anos, de 1985 a 2000, foram defendidas mais de 20
dissertações e teses acadêmicas (em lingüística e em antropologia) sobre grupos pano. Erikson et alii
(1994) organizaram uma bibliografia pano que é periodicamente atualizada e pode ser consultada
eletronicamente.
12
– Os Kaxinawa, distribuídos dos dois lados da fronteira entre o Brasil e o Peru, são os
mais estudados dos grupos pano. Desde o trabalho pioneiro de Capistrano de Abreu,
passando pelos escritos do Padre Tastevin (1926, 1928) até as etnografias
contemporâneas (Deshayes & Keifenheim 1982, Kensinger 1995a, McCallum, 1989,
Aquino e Iglesias 1994, Lagrou 1998, Deshayes 2000), os Kaxinawa têm ocupado um
lugar de destaque na etnologia pano. Há mesmo quem veja neles o modelo de uma
sociedade proto-pano (Keifenheim 1992), sobretudo por causa de seu dualismo. Entre
todos os grupos pano, os Kaxinawa são certamente os mais endogâmicos e auto-
centrados.
comunicação pessoal). Nesse sentido, chama a atenção que, como veremos abaixo, nem
os Katukina nem os Marubo se reconhecem nas denominações pelas quais são
conhecidos e apresentam internamente diversas unidades nomeadas, dentre as quais
quatro são coincidentes.
AM Amahuaca
AR Arara
AT Atashuaca
CB Cashibo
CO Conibo
CP Capanawa
KB Korubo
KN Kaxinawa
KP Kulina Pano
KR Karipuna
KT Katukina
KX Kaxarari
MB Marubo
MG Mangerona
MN Marinawa
MS Mastanawa
MT Matis
MY Mayá
MZ Matsés
NK Nukuini
NW Nawa
PC Pacaguara
PO Poyanawa
RE Remo
SH Shipibo
SR Sharanawa
YA Yamiaca
YM Yaminawa
YW Yawanawa
3
Segundo Erikson (1992:240), os Chacobo, Pacaguara, Karipuna e Kaxarari estão mais próximos do
território originário dos Pano, uma vez que o território em que se encontram atualmente foi
"provavelmente povoado por sucessivas ondas de migração vindas do Guaporé".
15
4
O etnônimo "Yaminawa" é certamente um dos mais confusos no mosaico pano. Para uma boa
apreciação das várias interpretações que esse etnônimo já recebeu, ver Calávia (1995:202-203).
16
restam dúvidas em torno da regra de filiação aos clãs, pois enquanto uns afirmam a
matrilinearidade, outros destacam a patrilinearidade. Em todo caso, para que não me
estenda em detalhes, resta dizer que tais unidades, contemporaneamente, pesam pouco
na organização da vida social5. Além desses etnônimos não há qualquer outra auto-
denominação. É claro que os Katukina contam com um termo que os define como
"gente", noke, mas não o usam de maneira inclusiva nem anexam a ele qualquer epíteto
que possa identificar os seres humanos prototípicos – no caso seria o kuin (livremente
traduzido como "real" ou "verdadeiro"). Independentemente de indagações reificadoras,
noke designa corriqueiramente o "nós", "a gente", um sujeito plural. Assim, uma frase
como neno noke oshavai, "nós dormimos aqui"/"a gente dormiu aqui", pode incluir sem
nenhum problema qualquer não-katukina que tenha repartido com eles o espaço de
repouso.
5
A rigor uma pessoa tem que se casar fora de seu próprio clã, mas, tendo em vista que há dúvidas sobre a
regra de filiação, algumas situações tornam-se confusas. Assim, pode acontecer de marido e mulher
(primos cruzados) identificarem-se como membros de um mesmo clã, devido ao fato de que cada um
deles traça diferentemente a filiação: um afirma a patri- e outro a matrilinearidade (Lima 1994a:51).
17
traços culturais comuns entre os grupos pano, embora não os tenha explorado
sistematicamente.
A perspectiva comparativa incorporada neste trabalho tem como fim explorar
tais correspondências, buscando não apenas a simples identificação de cada uma delas,
mas, principalmente, a forma como ajudam a esclarecer um ou mais aspectos entre os
Katukina e no conjunto da família lingüística. Pondero, entretanto, que o intuito
comparativo não adere a nenhuma proposta culturalista de delimitar aquilo que é
"característico" dos povos de língua pano. Se decidi incorporar ao trabalho essa
preocupação comparativa foi, por um lado, porque, como já escrevi, isso favorece a
organização dos materiais katukina, por outro, porque permite reunir informações
acumuladas nos últimos anos e que estão dispersas.
Por fim, esclareço que, ao longo do texto, continuarei fazendo referências a
questões abordadas na dissertação de mestrado (Lima 1994a). Para evitar repetições,
optei, em determinadas passagens, apenas por remeter diretamente ao texto original.
Quando julguei que isso era pouco esclarecedor ou quando necessitava adensar ou
corrigir o que havia registrado antes, apenas resumi o que já estava lá e complementei a
informação. Espero que minha preocupação em oferecer uma redação econômica, não
prejudique a compreensão das questões discutidas agora.
Em campo
antropológica pós-moderna tem seus méritos, mas não me oferece ainda um modelo. O
relato que segue busca contextualizar como se desenrolou a pesquisa de campo e,
embora não justifique eventuais lacunas ao longo do trabalho, pode ao menos torná-las
compreensíveis.
da Lei, foi criada uma Comissão de Sindicância na ALEAC justamente para investigar
as atividades do Senhor Reininghaus. Em meio a um burburinho generalizado, de
repercussão nacional, dois Katukina foram chamados a depor na Comissão de
Sindicância, presidida pelo deputado estadual Edvaldo Magalhães, autor oficial da nova
Lei. Fernando Rosa (Kapi) e Nilo Carneiro (Tapo) depuseram em Cruzeiro do Sul, na
Câmara dos Vereadores. A convocação dos dois causou um certo pânico entre os
Katukina. Sem conhecerem as rotinas jurídicas e políticas de nossa sociedade, os
Katukina pensaram que eram acusados nas investigações, ao invés de testemunhas. Essa
confusão era partilhada não apenas por eles, mas também pelos regionais, vizinhos seus,
entre os quais corria o boato de que os Katukina estavam arrolados nas investigações
por plantarem maconha! Algo que a maioria deles sequer imaginava o que era.
Para não me estender em detalhes, os Katukina ficaram bastante temerosos com
o desfecho que poderia ter toda aquela história e decidiram, pouco antes de minha
chegada, não aceitar mais pesquisadores entre eles. Pesquisadores que se tornaram todos
suspeitos de "roubarem" seus conhecimentos, uma idéia que os políticos locais, de
diferentes matizes ideológicas, alardearam por toda parte e que se incorporou no
imaginário local. Até prova em contrário, os pesquisadores todos são mal-
intencionados, espiões ou ladrões, tanto mais se estrangeiros.6
Por tudo isso é que todos estavam evitando ajudar-me dessa vez, foi o que Mani
me explicou naquela noite. Singelamente disse que, apesar da decisão que os Katukina
tomaram, nem ele nem ninguém tinha coragem de me mandar embora e que estavam
satisfeitos de me ter de volta entre eles. Txoki certamente tinha passado por cima de um
acordo estabelecido entre eles, por isso se permitiu conversar determinados assuntos
comigo.
Compreendi perfeitamente seus motivos e tentei explicar que nada iria suceder
aos dois depoentes arrolados, certamente como testemunhas, nas investigações. Foi
então que Mani pediu para que eu fosse até a cidade averiguar se não havia mesmo nada
contra eles na Polícia Federal e no Fórum. Não tive como negar, não faltavam carros
para que pudesse ir e voltar rapidamente. Após selar esse compromisso, na mesma
noite, eu e Mani retomamos nossas conversas de sempre e começaram a ser confirmadas
as informações que havia obtido com Txoki.
6
Para uma apreciação mais detalhada sobre as suspeitas que pesam contra os pesquisadores e também
sobre a Lei da Biodiversidade no Acre, ver Calávia (1998).
22
No dia seguinte fui até Cruzeiro do Sul, conversei com agentes da polícia federal
e com um promotor. Embora tivessem alguma lembrança das denúncias e da passagem
da Comissão de Sindicância da ALEAC pela cidade, ninguém sabia informar nada.
Voltei à aldeia e comuniquei que estava tudo certo, nada pesava contra eles. Isso esfriou
o ânimo de todos e mudou completamente o tratamento que vinha recebendo desde
minha chegada. Tudo voltava ao normal. Algumas pessoas diziam que iriam manter a
decisão de não aceitar mais pesquisadores entre eles, com exceção de mim mesma e de
Maria Sueli Aguiar, uma lingüista que iniciou sua pesquisa há mais tempo ainda. Uma
decisão que, espero, não se cumpra.
O esclarecimento que trouxe da cidade e o retorno à normalidade fez com que
aumentassem as críticas à "liderança" naquele período, que, como me dei conta depois,
vinha manipulando a versão de que os Katukina eram suspeitos na investigação movida
pela ALEAC para tentar conter as insatisfações que pesavam internamente contra ele.
Como não poderia deixar de ser, abstive-me de intervir nesse desdobramento
imprevisto, embora não seja ingênua a ponto de pensar que minha interferência (ao
trazer os esclarecimentos da cidade) tenha sido pequena. Seja como for, penso que cedo
ou tarde isso acabaria acontecendo – membros de organizações não-governamentais já
vinham tentando esclarecer os katukina de que eles eram testemunhas e não acusados
nas investigações –, apenas calhou de ser mais cedo do que a "liderança" então pensava.
"Liderança" que, a propósito, continuou por mais um bom tempo em seu posto e sem se
opor à minha presença.
Entre os meses de abril e junho de 1998 voltei uma vez mais aos Katukina.
Nesta viagem planejei ampliar e verificar as informações obtidas na viagem anterior e
também visitar a aldeia do rio Gregório, o que nunca tinha feito até então. Mas esta
viagem acabou tendo outros desdobramentos, que se não me impediram de desenvolver
completamente o que tinha planejado, mudaram um pouco o curso dela. De abril até o
final de maio permaneci na aldeia do rio Campinas. Entretanto, não pude sair
imediatamente para a aldeia do rio Gregório. Estive em Rio Branco por uma semana,
acompanhando quatro rapazes numa reunião na Procuradoria Geral da República para
tratar do asfaltamento da BR-364 (Rio Branco-Cruzeiro do Sul), que se iniciou em 1996
e cujas obras estavam já próximas da aldeia – a rodovia atravessa por 18 km a Terra
Indígena do rio Campinas, em toda sua extensão leste-oeste. Até àquela data nenhuma
iniciativa por parte dos Governos Federal e Estadual havia sido tomada para minimizar
os impactos sócio-ambientais que serão causados aos Katukina, diretamente atingidos,
23
nem aos demais grupos indígenas do alto Juruá e do Vale do Javari, que serão afetados
indiretamente pelo empreendimento – conforme estabelecido no diagnóstico do Projeto
de Proteção do Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas II (PMACI II). O EIA-
RIMA (Estudo de Impacto Ambiental - Relatório de Impacto ao Meio Ambiente),
elaborado pela empresa paranaense STCP Engenharia de Projetos Ltda, nada havia
previsto a este respeito e o governo estadual e a FUNAI local fizeram vistas grossas ao
parecer negativo emitido pelo então Departamento de Patrimônio Indígena da FUNAI
de Brasília.7
Pode-se ter uma idéia da atenção dada às questões sócio-ambientais pelo
Governo do Acre naquele período apenas considerando o fato de que a licença de
instalação da obra transcorreu, num dado momento, junto com o andamento da própria
obra. Àquela altura, o EIA-RIMA era considerado como mera formalidade. O parecer
da FUNAI inicia-se questionando este impropério e continua apontando outros, tais
como: (i) apesar de serem definidas dezesseis terras indígenas afetadas direta e
indiretamente pelo asfaltamento da rodovia, informações específicas foram fornecidas
apenas sobre duas delas – as terras indígenas Katukina do rio Campinas e Kaxinawa da
Colônia Vinte e Sete; (ii) as informações um pouco mais detalhadas (e aqui apenas
considerando que nada foi dito a respeito das outras quatorze) sobre estas duas terras
indígenas justifica-se pela proximidade da estrada, entretanto, não se sabe por que a
distância foi o critério exclusivo para, assim, incluir ou excluir uma dada terra indígena
da área de abrangência; (iii) ao final, o estudo não traz nenhum tipo de aconselhamento
sobre a obra, não descreve em detalhes quais são os impactos nem recomenda qualquer
ação que possa mitigar seus efeitos negativos. Estes três problemas citados apenas
ilustram e resumem o parecer, que acaba por concluir que "é grave a situação dos
índios, e não só dos Katukina, frente às interferências decorrentes do asfaltamento da
BR-364" e por recomendar que fosse elaborado um EIA-RIMA exclusivo do
componente indígena.
Voltando à pesquisa de campo, os Katukina, que ajudaram a construir a BR-364
e não querem impedi-la completamente, decidiram buscar explicações e pedir para que
fossem tomadas providências para protegê-los, pois o aumento do tráfego de
automóveis e o maior fluxo de pessoas estranhas transitando em suas terras estavam
7
Sobre as questões envolvendo o asfaltamento da BR-364 (entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul) e os
Katukina e demais populações indígenas do alto rio Juruá ver Aquino (1997a) e Lima (1998 e no prelo).
24
8
Da viagem a Rio Branco resultou o compromisso do Ministério Público em acompanhar o caso. Como
desdobramento desse compromisso, ocorreu em 3 de julho de 1999 uma audiência pública em Cruzeiro
do Sul, na qual foi invalidado o componente indígena do EIA-RIMA. O atual governo do Acre, através
do DERACRE (Departamento de Estradas e Rodagem do Acre) encomendou um novo EIA-RIMA,
exclusivo do componente indígena, à FUNTAC (Fundação de Tecnologia do Estado do Acre). Este foi
concluído em maio deste ano e, em vários aspectos, comporta as mesmas insuficiências do trabalho
anterior. No último dia 7 de julho aconteceu uma reunião entre representantes do Ministério Público
Federal, do Governo do Acre, da FUNAI, dos Katukina e de organização não-governamentais. Mais
uma vez foi anulado o componente indígena do EIA-RIMA. Ao DERACRE foi estabelecido um prazo
de noventa dias para apresentar um novo estudo. Este será o terceiro. O asfaltamento da rodovia no
trecho Tarauacá-Rodrigues Alves, que abrange a TI do rio Campinas, está paralisado desde 1997.
25
Notas técnicas
Por fim, não posso deixar de mencionar alguns detalhes técnicos relativos à
identificação científica das espécies animais, particularmente dos mamíferos, das aves e
das cobras, que será apresentada no quinto capítulo. Para a identificação de todos, servi-
me de ilustrações contidas nos livros de Emmons (1990), Hilty & Brown (1986),
Amaral (1977) e Lancini (1979). A identificação dos mamíferos a partir das ilustrações
fez-se facilmente, praticamente não ocorreram variações entre as diversas pessoas que
me ajudavam, fossem homens ou mulheres, crianças ou adultos. No que diz respeito à
identificação das aves, combinei o uso de ilustrações com gravações de cantos. Como se
sabe, as aves são muitas vezes mais ouvidas do que vistas (Gianini 1991) e nas situações
em que havia dúvidas, optei pela identificação a partir do registro sonoro. Usando
apenas ilustrações, a identificação científica das cobras foi bastante comprometida. A
partir de uma consulta ao inventário das cobras que ocorrem no Acre, disponível no
Museu de Zoologia da USP, montei um catálogo com ilustrações. Entretanto, as
alterações de tamanho (reduções e ampliações) e mesmo de cor pareciam confundir os
Katukina e não permitiam uma identificação exata das espécies. As variações
individuais das informações eram muitas, mas não tive como contornar esse problema.
Uma técnica possível seria, segundo Berlin (1992:202-203), o uso de peles preparadas
para a identificação das serpentes. O próprio Berlin, contudo, afirma que o preparo das
peles provoca distorções que alteram radicalmente a aparência natural, especialmente
quando se trata de répteis. De qualquer forma, não foi por este motivo que não segui a
orientação de usar pele de cobra para identificação. Pareceu-me extremamente difícil
obter exemplares de pele das mais de quarenta espécies que ocorrem no Acre e levá-los
a campo. Além disso, algumas das serpentes que ocorrem no Acre – justamente as que
mais interessavam por relacionarem-se ao xamanismo –, não são abatidas pelos
Katukina e merecem mesmo muita reverência, o que tornaria temerário fazer a
identificação usando a pele de cobras mortas. Era imprevisível a reação dos Katukina
diante da pele de cobras que eles próprios temem matar. O trabalho em
etnoherpetologia, sobretudo no que diz respeito à identificação científica das espécies,
não me parece mais possível sem a parceria com um especialista ou com uso de vídeos
ou de visitas a serpentários. No quinto capítulo, apresento a nomenclatura científica
apenas dos diversos mamíferos, aves e cobras que foram inequivocamente identificados
a partir das ilustrações ou dos cantos. As identificações duvidosas foram suprimidas.
26
CAPÍTULO 1
Situação dos Katukina
1
A TI do rio Gregório foi a primeira demarcada no Acre, em 1983, e homologada definitivamente em
1991. A TI do rio Campinas foi demarcada em 1984, homologada em 1993, embora apenas na metade
de 1999 tenha sido definitivamente registrada no Serviço de Patrimônio da União.
2
Não quantifiquei o número de falantes da língua nativa e do português. De todo modo, segundo Aguiar
(1994:283), apenas 10% dos Katukina são bilíngues, fluentes em sua própria língua e em português. Os
90% restantes são monolíngues.
29
30
simples. Penso que a maciça transferência de moradores do rio Gregório para a aldeia
do rio Campinas, acabou apressando uma solução. Atualmente não há uma única
"liderança", como acontecia antes, mas quatro. Para falar dessa solução é necessário
saber que dentro da TI do rio Campinas há quatro localidades distribuídas ao longo da
rodovia: Campinas, Martim, Samaúma e Bananeira, no sentido oeste-leste. Em cada
uma delas, distribuem-se os agrupamentos domésticos que têm como composição básica
um casal rodeado de seus filhos e filhas solteiros, filhos casados e netos.3 Pois bem, as
três primeiras localidades têm um representante político que coletivamente encaminha
todos os assuntos de interesse que lhes dizem respeito. O Bananeira é englobado pelo
Samaúma em seus encaminhamentos, isso se explica por alguns vínculos de parentesco
e também porque parte da população é branca, afins de um índio casado com uma
branca. Os Katukina fundaram recentemente a Associação Índigena dos Agricultores
Katukina, a AIAKA, e quem assumiu o cargo de coordenador acabou sendo o último
líder da aldeia do rio Gregório, Orlando Assis (Vino), que centraliza todos os
encaminhamentos dos outros três representantes.
Confirmando que um dos principais atributos dos "líderes" é a capacidade de
estabelecer relações externas, todos têm seus vínculos, diversos entre si. O representante
atual dos moradores do Samaúma é o professor Benjamin (Shere) que há seis anos
freqüenta os cursos de formação escolar oferecidos pela CPI-AC (Comissão Pró-Índio
do Acre), que também assessora a escola e confecciona parte do material didático
utilizado nas aulas; o representante do Martim, Nilo (Tapo), vinculou suas relações
externas ao Padre Heriberto, da Diocese de Cruzeiro do Sul, e consegue através dele
obter algumas obras (a escola e o posto de saúde de alvenaria no Martim foram
construídos por seu intermédio) e instrumentos de trabalho (a cada ano o Padre
Heriberto doa aos Katukina terçados, enxadas, botas e chapéus); e Fernando (Kapi) foi
durante um longo período membro da diretoria da União das Nações Indígenas do Acre
(UNI-AC), morou em Rio Branco quase cinco anos. No começo deste ano, Kapi foi
empossado como chefe do Posto Indígena da FUNAI em Cruzeiro do Sul. Entre todos,
o coordenador da recém-constituída AIAKA tem vínculos menos fixos com
organizações não-governamentais e governamentais, mas, ainda bastante moço, foi
quem conduziu a expulsão dos brancos das terras do rio Gregório, junto com a
3
Nos dias de hoje a residência pós-marital é majoritariamente patrilocal. Os próprios Katukina admitem
que esse é um arranjo recente, pois no passado os rapazes é que se deslocavam para as proximidades da
casa de seus sogros.
32
4
Um relato mais extenso da história katukina pode ser encontrado em Lima (1994a).
34
POPULAÇÃO KATUKINA5
Ano T. I. rio Gregório T.I. rio Campinas Total
População Katukina
250
200
150
100
50
0
1977 1982 1994 1998
As linhas do gráfico deixam claro que entre os anos de 1982 e 1994 as duas aldeias
tinham um crescimento quase paralelo. Entretanto, em seguida, no intervalo entre 1994
e 1998, a desproporção aparece de forma abrupta com a elevação da população da
aldeia do rio Campinas e com o declínio da população do rio Gregório.
A primeira e uma das principais justificativas dada pelos próprios Katukina para
tão expressiva migração é a dificuldade de acesso da aldeia do rio Gregório, que
provoca a carência de artigos industrializados – sal, sabão, querosene, tecidos, redes,
entre outros – dos quais dependem hoje em dia. Uma outra, é a maior facilidade para
obterem a aposentadoria em Cruzeiro do Sul, da qual obtêm o dinheiro para comprar as
mercadorias de que necessitam. O Posto da FUNAI em Tarauacá, que atende, entre
5
Os dados dos anos de 1977 e 1982 constam de relatórios da FUNAI. No ano de 1997, os dados da
população do rio Campinas foram recolhidos por mim mesma e aqueles da população da aldeia do rio
Gregório, constam de um levantamento da Associação dos Agricultores Yawanawa do rio Gregório
(apud CPI 1998). Os dados relativos à população das duas aldeias em 1998 foram também recolhidos
por mim.
36
outros grupos indígenas, aos Katukina do rio Gregório, foi durante um longo período
administrado por índios Yawanawa e tem ainda em seus quadros pessoas ligadas a estes.
Segundo os Katukina, os Yawanawa têm dificultado os procedimentos burocráticos para
que possam obter suas aposentadorias. Como discuti em um trabalho anterior (Lima
1994a), as relações entre os Katukina e os Yawanawa sempre oscilaram entre a
hostilidade guerreira e a amizade comedida e são centrais para o entendimento de
eventos recentes da história Katukina. A própria constituição da aldeia do rio Campinas
é creditada, entre outros fatores, a desentendimentos com os Yawanawa6. Agora, por
motivos surpreendentes, as tensões entre os dois grupos reaparecem para explicar o
forte fluxo migratório.
Sejam ou não os Yawanawa mais uma vez focais na história katukina, uma
questão que deixo para depois, a distância que separa a aldeia do rio Gregório de centros
urbanos nos quais se abastecem de artigos industrializados é realmente grande e
justifica, inclusive, o fato de que alguns velhos, que não querem se transferir dali,
desistam de requerer a aposentadoria7. Da aldeia até São Vicente, de canoa, gastam-se
dois dias para descer o rio. De São Vicente até Tarauacá, caminhando pela BR-364, são
mais três ou quatro dias. A possibilidade de um motorista de boa vontade oferecer
carona só pode ser considerada entre os meses de julho e setembro, quando então a
viagem pode ser feita em três horas. Levando em conta que, seja verão ou inverno, a
distância que separa a aldeia do rio Campinas de Cruzeiro do Sul pode ser vencida em
poucas horas, a proximidade de um centro urbano como justificativa para a recente
migração não deve ser desprezada.
Neste sentido, chama a atenção na tabela demográfica acima que em 1977 e em
1998, os dois anos em que a população da aldeia do rio Gregório foi inferior à do rio
Campinas, havia alguma expectativa em torno da consolidação da BR-364. Em 1977,
apenas cinco anos após a fundação da aldeia do rio Campinas, a estrada, embora fosse
completamente de terra, tinha o tráfego livre entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul no
período do verão. Da década de 1980 até 1994, por falta de manutenção, longos trechos
da estrada foram invadidos pela vegetação e a ligação terrestre entre as duas cidades foi
interrompida. De Cruzeiro do Sul alcançava-se de carro, no máximo, o riozinho da
6
Carid (1999:43-45) afirma que a centralidade que os Katukina atribuem aos Yawanawa não tem sua
"contrapartida simétrica" entre os últimos, que não os acusam de quaisquer problemas. O que,
indiretamente, tende a confirmar a posição dominante dos Yawanawa.
37
Liberdade. A partir de 1995 foi dado início ao asfaltamento da rodovia, com todos os
problemas no licenciamento da obra de que falei antes, e novamente decresceu a
população da aldeia do rio Gregório. Em poucas palavras, suspeito que a variável
"rodovia" deva pesar significativamente na decisão sobre o local de moradia entre os
Katukina, na escolha entre uma ou outra das aldeias.
Sem que me falte prudência, resta dizer que é difícil ponderar o peso relativo
também das alterações de humor entre os próprios Katukina e entre eles e os Yawanawa
e outros episódios que talvez me tenham escapado. Com freqüência ouvia as pessoas
dizendo que se mudariam do Campinas pelos motivos mais banais: uma briga com um
irmão, com um outro vizinho qualquer e mesmo por conta de uma bicicleta quebrada
após ser emprestada. As alternativas aventadas nestas situações era a mudança em
direção à aldeia do rio Gregório ou às aldeias marubo no rio Ituí. Essa última alternativa
nunca se concretizou e pareceu-me apenas uma ameaça. Como toda a pesquisa de
campo foi realizada quando o fluxo era voltado em direção à aldeia do rio Campinas,
não tenho como precisar em que medida a mudança numa situação de desacordo
doméstico é realmente levada a sério. Em qualquer caso, a mudança de aldeia figura
como uma alternativa sempre presente.
A possibilidade da mudança ser motivada por desentendimentos com os
Yawanawa, também não deve ser desconsiderada. Relatei antes (Lima 1994a:131) o
caso de um homem, Yupa, que se transferiu com sua família (esposa e filhos) para a
aldeia do rio Campinas, após um rapaz yawanawa comunicar-lhe o desejo de casar-se
com uma de suas filhas. Como Yupa não desejava o casamento, decidiu ficar longe do
rapaz, temendo que ele raptasse sua filha. Quando voltei ao rio Campinas, Yupa não
estava mais lá, encontrei-o morando novamente no rio Gregório. O caminho de volta foi
feito devido a desentendimentos com os moradores da primeira, onde ele morou por
pouco mais de um ano. Situações como essa inscrevem-se ainda num âmbito bastante
doméstico, no qual a decisão sobre a mudança do local de moradia envolve apenas
poucas pessoas.
Ainda que a disputa por mulheres seja sempre lembrada nas antigas rixas com os
Yawanawa, acredito que num plano político mais amplo é que estão situadas as
contendas contemporâneas. Como bem observou Carid (1999:46), os dois grupos
7
Os Yawanawa contaram a Carid (1999:8 nota 9) do caso de um velho Katukina que, indo para Tarauacá
receber o benefício, não suportou o esforço e morreu no meio do caminho.
38
8
A transferência de mais da metade dos moradores do rio Gregório para a aldeia do rio Campinas entre os
anos de 1994 e 1998 parece ter impulsionado os missionários em seu trabalho de evangelização, pois
ouvi de várias pessoas que antes os cultos evangélicos não eram realizados. Até 1994 não tive
conhecimento de nenhuma pessoa que se identificasse ou apontasse alguém como "crente". O máximo
que sabia então era de "conversões provisórias", de alguns meses apenas, e que se encerravam pela
dificuldade em aderir ao código moral que interdita relações extra-conjugais e o uso de rapé, cigarro ou
cachaça. Naquela data não tinha ainda visitado a aldeia do rio Gregório, os moradores do rio Campinas é
que me informavam de que lá ninguém tinha aderido à fé cristã. Ao contrário, quando retornei a campo
em 1997 o quadro já estava alterado e os moradores do rio Campinas informavam que toda a aldeia do
rio Gregório estava convertida. Às vezes me falavam com ares de estupefação: os missionários
conseguiram, afinal! Outras com um claro deboche. Certa vez, numa rodada de futebol no Martim,
algumas pessoas ligaram um aparelho de som e todos se reuniram para ouvir a pregação dos
missionários que tinha sido gravada por lá. Ficavam tentando reconhecer a voz de seus próprios parentes
nos cantos e leituras evangélicas. Ao final, o riso foi geral, não tinha quem se contivesse nem se
esforçasse para se conter. Faltavam poucos dias para eu ir visitar a aldeia de lá e todos riam e diziam:
"você vai ter de rezar também!". Pela primeira vez tive a impressão de uma incipiente oposição entre a
população das duas aldeias, como "crentes" e "não-crentes". Quando cheguei ao rio Gregório, os cultos
eram realizados duas vezes por semana, improvisados na casa de meu hospedeiro, para onde todos os
moradores afluíam para participar. Neles, o missionário lia e comentava passagens bíblicas na língua
nativa e, juntos, todos entoavam canções evangélicas. Como estive por poucos dias no rio Gregório, não
me aventuro a discutir qual o sentido da conversão para os Katukina. Destaco apenas que na metade de
1998 havia uma preocupação muito grande com a possibilidade do apocalipse, o fim do mundo na
virada do ano 2000. Negando a conversão, ouvi de jovens mulheres que ali ninguém era crente, pois
faltava a adesão ao código moral de que falei acima. No caso, falavam particularmente da conduta
sexual.
9
Segundo me disseram os próprios Katukina, os missionários socorrem ainda os Yawanawa nos casos
mais graves, mas esses devem pagar pelos medicamentos que utilizam, repondo o estoque. Aos
Katukina não é cobrada qualquer taxa pelo atendimento.
41
não são poucas as pessoas que orgulhosamente replicam que têm mais "cultura" que
seus vizinhos, que são todos fluentes na língua nativa e realizam suas "brincadeiras"10
com absoluta liberdade. Além disso, lembram que o número de pessoas convertidas à
religião dos missionários entre os Yawanawa seria bastante superior àquele existente
entre eles próprios.
Desta controvérsia em torno da aceitação e da recusa da atuação missionária,
surge uma segunda justificativa, que não exclui a primeira, para a migração dos
moradores da aldeia do rio Gregório para a do rio Campinas. Além da atração pela
proximidade de Cruzeiro do Sul e das mercadorias disponíveis em seu comércio,
algumas pessoas teriam tomado a decisão de transferir-se de aldeia após alguns
Yawanawa tentarem expulsar os missionários por sua própria iniciativa e serem
impedidos pelos Katukina. Sem apoio para a operação, os Yawanawa teriam ameaçado
expulsar todos, os próprios katukina e os missionários, ficando com a totalidade das
terras. Cansadas e temerosas com os desentendimentos, algumas pessoas decidiram
mudar o local de moradia.
O fluxo dos Katukina da aldeia do rio Gregório para a aldeia do rio Campinas,
pelo que pude saber entre aqueles que residem na primeira, só não foi maior porque
alguns homens, chefes de família, preocupados com a possibilidade da aldeia esvaziar-
se completamente ou mesmo desfazer-se, decidiram nela permanecer. Uma decisão
calculada e orientada pelo temor de que se todos fossem para a aldeia do Campinas, os
Yawanawa seriam capazes de cumprir o que haviam prometido e acabariam por ocupar
toda a extensão de terra demarcada11 e eles ficariam restritos às terras disponíveis no rio
Campinas. Além de que, pensaram, se todos decidissem morar na aldeia do rio
Campinas, não restaria qualquer alternativa para afastar-se de um contexto adverso, já
10
As"brincadeiras" são jogos que opõem homens e mulheres disputando pedaços de cana-de-açúcar e
mamão ou ameaçando uns aos outros com fogo ou lama. São formas abreviadas de antigos rituais que
duravam vários dias, nos quais se consumia muita caiçuma azeda (fermentada). Hoje, quando são
realizadas, as "brincadeiras" não duram mais do que dois dias, geralmente um final de semana e não se
consome a caiçuma azeda, uma vez que as mulheres deixaram de fazê-la em função das brigas que
aconteciam entre os homens bêbados. Para mais detalhes sobre as "brincadeiras" entre os Katukina, ver
Lima (1994a). Os Marubo (Montagner Melatti 1985), os Kaxinawa (McCallum 1989) e os Yawanawa
(Carid 1999) têm também suas "brincadeiras", que são muito parecidas com a dos Katukina.
11
Evidentemente é difícil saber se a ameaça foi real ou se é fruto de um certo exagero dos Katukina
quando o assunto diz respeito às suas divergências com os Yawanawa. Seja como for, em 1998,
voltando para Curitiba após visitar a aldeia do rio Gregório, passei por Rio Branco e encontrei um
yawanawa que me perguntou se era mesmo verdade que boa parte dos moradores da aldeia katukina do
rio Gregório tinha mudado para o rio Campinas. Quando lhe confirmei o fato, fui surpreendida pelo seu
comentário de que, feitas mais algumas mudanças, os Yawanawa poderiam ficar com a totalidade da
terra demarcada!
42
que, como escrevi acima, nas situações de desacordo interno uma das alternativas é
transferir-se de aldeia. A terça parte dos Katukina que ainda hoje permanece no rio
Gregório elaborou então um claro discurso de “defesa” do território – ainda que, para
isto, tenha que se privar do acesso aos recursos industrializados e benefícios (como a
aposentadoria e auxílio-maternidade) obtidos pelos que estão próximos da cidade.
Sendo necessário destacar que a "defesa" deve ser compreendida tanto em relação aos
conflitos com os Yawanawa quanto àqueles existentes entre eles próprios.12
De uma mulher ouvi um argumento mais afetivo para permanecer na aldeia do
rio Gregório, que não contradiz aquele mais combativo dos homens. Para Roni a
mudança para a aldeia do rio Campinas não a atraía, preferia viver no local onde
nasceram sua avó, sua mãe e tantos parentes seus. O fato de sua própria mãe ter também
se transferido para a outra aldeia não lhe era indiferente, afinal, tinha saudades. De todo
modo, ela continuava dizendo que permaneceria ali por toda sua vida, tanto mais porque
aqueles que se foram para a aldeia do rio Campinas a qualquer hora poderiam mudar de
idéia e decidir voltar. Com a decisão de permanecer ali, Roni ajudava guardar a terra na
qual nasceram seus parentes mais antigos.
Esclarecido que os conflitos entre os próprios Katukina e entre eles e os
Yawanawa podem contar como variáveis importantes na decisão de transferência para a
aldeia do rio Campinas, resta dizer que pouco antes do maciço fluxo migratório, em
1994, o último xamã (romeya) katukina, Tobi (cujo nome em português era Tobias),
morreu na aldeia do rio Gregório e, sem atendimento xamânico, muitas pessoas
passaram a se consultar com Armédio, um índio Jaminawa-Arara (pano) residente em
Cruzeiro do Sul. Não ouvi de ninguém a possibilidade de a morte de Tobi ter pesado
também no desencadear das mudanças, mas parece-me importante não ignorá-la.
Estratégias de mudança
12
Kensinger (1995b) escreveu sobre a dinâmica territorial dos Kaxinawa do lado peruano e observou que
nas situações em que as facções não conseguem resolver suas diferenças, a fissão acaba acontecendo.
Quando nenhum acordo é possível, restam duas alternativas aos dissidentes: ou mudam-se para uma
outra aldeia já constituída ou fundam uma nova aldeia rio acima. Entretanto, os Kaxinawa relutam em
adotar essa última alternativa, uma vez que implica em afastar-se mais dos centros urbanos aos quais
recorrem para obter recursos importantes nos dias de hoje.
43
caça e também de certos vegetais que são plantados em suas praias na vazante do rio. A
fartura de peixes e animais é atribuída à longa distância que separa a aldeia dos centros
urbanos. A aldeia do rio Campinas tinha também um estoque considerável de animais
de caça quando, no início da década de 1970, os Katukina a constituíram, é o que se
comenta, mas esse minguou ano após ano pela pressão humana acentuada, devido à
proximidade de um projeto de colonização e da cidade, sem contar com o trânsito de
veículos pela rodovia. Agora que a população da aldeia do Campinas alcançou o seu
maior índice, o desaparecimento dos animais de caça é ainda mais incômodo. A
situação alimentar esteve realmente complicada em 1997, pois além do estoque de caça
não ser farto como no rio Gregório, os roçados tinham sido esgotados. As plantações
foram feitas no ano anterior contando com um número determinado de pessoas para
alimentar, mas que foi aumentado com a chegada dos novos moradores, esgotando-se
por isso muito antes do previsto. Sem uma raiz de macaxeira para remediar a fome, a
farinha, comprada de brancos vizinhos ou em Cruzeiro do Sul, é que constituía a base
da alimentação diária. Um ano depois, com os novos roçados prontos, o abastecimento
de macaxeira já estava normalizado. Mesmo assim, antes de partir para o rio Gregório
muitas pessoas cobiçavam uma carona aérea comigo, argumentavam que queriam rever
seus parentes, mas lembravam também que o "rancho" deveria estar melhor por lá.
Como pude conferir, realmente estava e não houve um só dia em que as pessoas não
tivessem um bom peixe ou qualquer outra carne para comer. Um bando de queixadas,
tão pouco freqüente nas proximidades das casas no rio Campinas, passou a poucos
metros da sede da aldeia.
Esse contraste ecológico entre as duas aldeias pesou na decisão de muitas
pessoas no momento de escolher seu local de moradia. No auge do fluxo migratório,
alguns pessoas que estão ainda hoje no rio Gregório, estiveram no rio Campinas fazendo
uma sondagem para refletirem melhor sobre as vantagens da transferência. Assim, Vepa
e Voka passaram uma breve temporada na casa de Kene e Sharan. Decidiram voltar
após várias incursões de caça malsucedidas de Vepa. Como nenhum dos dois tinha
idade suficiente para requerer a aposentadoria, a mudança de uma aldeia para outra era
ainda mais desvantajosa. Com fome e sem dinheiro, segundo Voka, era melhor a
alternativa de continuar sem dinheiro, mas também sem fome.
Houve quem tentasse resistir à mudança. Mekon nem pensava em se mudar para
a aldeia do rio Campinas quando chegaram no rio Gregório o seu cunhado (o marido de
sua irmã), acompanhado do filho (naquela época, chefe da aldeia do rio Campinas) e de
44
outros homens. Tinham ido lá convidá-lo para viver entre eles e oferecer ajuda para
fazer a mudança. Conforme Mekon, tentaram convencê-lo a mudar-se argumentando
que seria fácil aposentar tanto ele quanto sua esposa. Mekon não estava disposto a
mudar-se, mas acabou hesitando. Seu cunhado e os demais visitantes, percebendo sua
resistência, propuseram um acordo: levariam Mepe, a esposa de Mekon, e seus filhos,
após conseguirem aposentá-la mandariam recado para que ele fosse ao Campinas ver se
diziam a verdade. Mepe acompanhou então seu irmão, deixando Mekon com sua
segunda mulher no rio Gregório. Passado pouco tempo, Mekon recebeu o recado de que
Mepe já estava aposentada e foi encontrá-la.
Chegando na aldeia do rio Campinas, Mekon também conseguiu, com a ajuda
dos parentes de sua esposa, encaminhar todos os procedimentos burocráticos e obteve a
aposentadoria em Cruzeiro do Sul, mas resistia ainda em consolidar a mudança. Pensava
que seria possível ir e vir de dois em dois meses da aldeia do rio Gregório até Cruzeiro
do Sul, parando no caminho na aldeia do rio Campinas, para receber os pagamentos13 e
comprar os artigos de que necessitassem. Aborrecia-o a vida menos farta na aldeia do
rio Campinas. Certo dia, quando estava quase decidido a voltar a viver no rio Gregório,
seu cunhado chamou-o para caçar e propôs um novo trato: aceitaria que ele e sua esposa
retornassem apenas se a caçada fosse fracassada; caso contrário, ele deveria concordar
em permanecer. Seu cunhado, como todas as pessoas, reconhecia que nas imediações do
rio Gregório a vida era realmente mais farta, mas tentou mostrar-lhe que ali ninguém
morria de fome. Naquele dia, Mekon e seu cunhado mataram uma paca e um macaco.
Novamente, Mekon cumpriu o trato, construiu uma nova casa, na vizinhança da de seu
cunhado, onde passou a morar com suas mulheres e filhos. Pouco tempo depois, duas de
suas filhas se casaram com filhos de seu cunhado, o irmão de sua esposa. Um arranjo
matrimonial perfeito, considerando que, entre os Katukina, a união preferencial é entre
primos cruzados. Para a aldeia do rio Campinas havia acompanhado-o também uma de
suas sogras, uma viúva que acabou arrumando um novo casamento com um morador
dali. Naquele momento não havia mais como pensar em voltar.
Com raras exceções, quase todas as pessoas que se mudaram para o rio
Campinas foram convidadas pessoalmente a fazê-lo, isto é, algum parente seu foi até o
rio Gregório lhe falar das vantagens da transferência, como aconteceu com Mekon.
13
Não sei como as coisas se passam atualmente, mas até 1998 o INSS suspendia o pagamento das
aposentadorias aos beneficiários que não fossem recebê-las em intervalos de dois meses.
45
Quando não, recebeu um recado com o convite e resolveu ir sondar a vida por lá, como
foi o caso de Vepa e Voka, que escrevi acima.
Contudo, as mudanças não se fizeram ao contentamento de todos. Quem ficou
na aldeia do rio Gregório queixa-se bastante da ausência de parentes que até outro dia
estavam próximos. Em determinadas situações, há mesmo quem vá buscar seus parentes
de volta. Situações desse tipo aconteceram com alguns rapazes solteiros. Como é de se
imaginar, os rapazes têm mais liberdade e mobilidade que as moças. Com a desculpa de
visitar uma tia ou um tio, alguns deles, foram à aldeia do rio Campinas. Como
esticavam indeterminadamente a visita, após receberem sucessivos recados chamando-
os de volta, acordaram com os pais por lá, obrigando-os a acompanhá-los.
Quando os jovens tinham mulher e filhos (e, portanto, mais autonomia para
tomar decisões desse tipo sozinhos), ficava mais difícil aos pais intervirem para tentar
conter a mudança. Em pelo menos dois casos, os avós acabaram ficando com um dos
netos. Numa das situações de que soube, o rapaz tinha decidido acompanhar sua sogra,
que foi convidada pessoalmente por sua irmã, a fazer a mudança. Os pais do rapaz
primeiramente tentaram dissuadi-lo da transferência de moradia, ao perceberem que não
conseguiriam, "pediram" para ficar com um de seus netos. Numa outra situação, um
rapaz, não tão jovem, mudou-se, com sua mulher e filhos, para o rio Campinas, onde
seu pai já morava havia pelo menos sete anos. Pouco tempo depois, seu sogro, um dos
homens que decidiu ficar no rio Gregório para conter o esvaziamento da aldeia, foi
visitar sua filha, com a desculpa de que queria notícias dela. Chegando lá, tentou
convencer todos a voltarem. O rapaz tentou negociar, argumentou que voltaria após
ajudar seu próprio pai em algumas atividades, um homem velho que tinha apenas filhas
para acompanhá-lo. Desconfiado de que aquela justificativa servia apenas para iludi-lo –
afinal, seu genro tinha uma casa recém-construída –, o homem voltou para casa levando
uma neta. Quando o visitei no rio Gregório, ele disse-me bravo que se seu genro
quisesse a filha, teria de ir buscá-la! Até hoje ele não foi.
O vínculo entre avós e netos, como se verá adiante, é bastante reforçado entre os
Katukina, que chegam a assumir que os primeiros são mesmos responsáveis pela
educação das crianças. De todo modo, a motivação de ficar com um dos netos me
parece mais orientada estrategicamente, para tentar atrair os seus próprios filhos de
volta, do que com fins pedagógicos.
No intervalo entre 1994 e 1998 aconteceu apenas uma transferência de um
morador da aldeia do rio Campinas para a do rio Gregório, tratava-se de uma viúva que
46
foi morar com sua irmã pouco tempo depois de ter perdido o marido. Soube que após
1998 as mudanças cessaram, ninguém foi ou voltou em nenhum dos dois sentidos. Mas,
evidentemente, é impossível prever qual será o desdobramento dessa migração recente.
Não arrisco nenhum palpite, mas não me surpreenderia que algum evento pudesse fazer
refluir a direção dos deslocamentos. Todos têm parentes nas duas aldeias e não há
problema algum em alternar estadias entre uma e outra. Em outras épocas era a aldeia
do rio Gregório que concentrava a maioria da população katukina e a ação coordenada
de alguns de seus moradores para evitar o seu esvaziamento completo indica a decisão
de zelar por sua manutenção. Mesmo porque, suspeito que a existência de duas aldeias,
nas quais todos podem alternar períodos de estadias, atende bem às expectativas dos
próprios Katukina. A esse respeito escrevo a seguir.
A cidade e as aldeias
14
O tema das roupas aqui remete ao recente artigo de Vilaça (1999) sobre xamanismo e contato
interétnico, em particular à discordância da autora com a análise de Turner de que sob as roupas os
Kayapó ocultam o seu interior mais verdadeiro. Tendo a concordar com a análise de Vilaça, para os
Katukina vestir-se à Ocidental é tornar-se um tanto "branco", o que não contradiz a nudez nem a
"indianidade". Estendendo-me em detalhes, os Katukina não andam mais nus, embora se incomodem
muito com as roupas quando estão na aldeia. Vestir-se como índio talvez hoje não seja andar nu, mas
andar mal-vestido. Numa ocasião ocorreu a suspensão da aposentadoria de vários velhos que, na
tentativa de solucionar o problema, planejaram ir à cidade maltrapilhos para convencer os funcionários
do INSS de que eles eram verdadeiramente índios e, portanto, precisavam do dinheiro para, entre outras
coisas, comprar roupas para apresentarem-se como manda o figurino regional.
48
como poderia ser o caso, sempre se desfazem em favor de um terceiro termo, que
conjugue algo dos dois outros. A interpretação da constituição da aldeia do rio
Campinas como um território intermediário denota essa elaboração. Mas, no momento,
deixo apenas essas impressões como o registro de um projeto futuro.
52
CAPÍTULO 2
A pessoa katukina
Potencialmente, tudo que existe na terra tem yushin, um espírito, uma força vital
que anima os seres viventes, mas não apenas eles. Algumas substâncias e processos
físicos têm também yushin, como é o caso da água (hene yushin), do fogo (txi'i yushin),
dos remédios (raonti yushin). Os animais têm yushin e sua ancestralidade humana, da
qual falarei no último capítulo, não deixa dúvidas a esse respeito. Como é comum entre
os ameríndios, alguns dos personagens dos mitos katukina, dos shenepavo ("tempos
antigos"), que os velhos gostam de contar no início da noite são todos seres-espíritos e
referidos como, por exemplo, mari yushinvo (seres-espíritos cotia), kapa yushinvo
(seres-espíritos coatipuru), todos com capacidades humanas.
Os seres humanos têm dois espíritos que os animam. Um é ligado ao corpo e
chamado yora vaka, que chamaremos de "espírito do corpo", embora "sombra do corpo"
seja sua tradução literal. Na linguagem quotidiana yushin é a palavra mais usada quando
se faz referência ao yora vaka. A sombra (vaka) do corpo (yora) é a contrapartida
visível do espírito invisível e é chamada de noke yushin, "nosso espírito". Além do
espírito do corpo, os humanos têm também o espírito do olho, wero yushin – chamado
também de yushin kuin, "espírito verdadeiro". Seu indício mais forte é o brilho dos
olhos. Em termos esquemáticos, o espírito do corpo comporta a história e a memória
individual enquanto o espírito do olho é singular e abstrato. Os destinos post mortem de
cada um dos espíritos refletem as diferenças existentes entre eles. Enquanto o yora vaka
permanece na terra, principalmente nas proximidades da sepultura onde jaz seu corpo, o
wero yushin segue rumo ao céu e alcança a imortalidade.
Yora vaka e wero yushin são irremediavelmente atrelados ao corpo e sem
qualquer um deles, anula-se a possibilidade de vida. O wero yushin, entretanto, dissocia-
se episódica e temporariamente do corpo. As alucinações induzidas pelo consumo da
ayahuasca (oni) são viagens do wero yushin desgarrado do corpo. Nos sonhos o wero
yushin desgarra-se também, à revelia da vontade consciente de seu portador. As coisas
que se vêem nessas viagens ao outro mundo podem pressagiar eventos terrenos. Assim,
53
sonhos com beija-flores (pino) e jibóias (mana rono) anunciam a chegada de pessoas
distantes e sonhos eróticos prenunciam caça farta. É possível através dos sonhos prever
também doenças, acidentes, mortes. Um rezador antes de uma sessão de cura tenta saber
os sonhos do doente e de seus familiares diretos e algumas vezes estabelece o seu
diagnóstico a partir deles.
Nem tudo que se vê em sonhos converte-se em anúncios e diagnósticos. De todo
modo, sejam as visões do mundo dos sonhos induzidas ou não pelo consumo de
ayahuasca e rapé, elas são sempre fonte de conhecimento. Mani, como qualquer
rezador, estimulava seus sonhos com aspirações noturnas de rapé. Já habituado com
minha presença e curiosidade constantes, uma manhã ele me disse que tinha sonhado
com um veado preto (txasho txeshe). Perguntei ingenuamente o que aquele sonho queria
dizer e, expressando surpresa, ele me respondeu: "Nada. Eu nem sabia que veado preto
existia!". De todo modo, esclareceu que o tal veado preto deveria mesmo existir, ainda
que fosse desconhecido dos homens na terra.
O yushin, entendido agora simplesmente como uma essência vital, independente
da agência ao qual está ligado, pode ser chamado também de shamitsa. Não consegui
traduzir esta palavra, que me parece ser a combinação de duas outras, sham- + itsa, sem
que eu saiba determinar o sentido da primeira. Quanto à segunda, na língua katukina,
itsa designa os cheiros característicos dos corpos, assim, por exemplo, yawa itsa é o
cheiro do queixada, mas não consegui ir além disso. Tentei inúmeras vezes
compreender em que o yushin é diverso do shamitsa mas obtive sempre a afirmação de
que não diferem entre si, apenas são designados por termos diferentes. Pelo que pude
entender, uma vez que apenas os rezadores me falaram espontaneamente do segundo,
esse termo é usado no contexto da reza, em linguagem ritual, em substituição a yushin.
De fato, como veremos adiante, a linguagem usada nas sessões de cura é diversa
daquela usada quotidianamente. Seja como for, fica o registro uma vez que não tenho
notícias da ocorrência da palavra shamitsa em outras línguas pano. O mais próximo
disso, e que oferece uma pista bastante interessante, é a definição kaxinawa de itsa,
perfume, que pode ser traduzido, segundo Deshayes (2000:177), como "sentir-se forte"
e "parecer um outro". No caso específico, o autor comenta dos cuidados que os homens
tomam antes de penetrarem a floresta para caçar, em particular, dos perfumes que usam
para não serem reconhecidos como humanos.
54
O corpo
O corpo (yora) é formado basicamente por carne (nami), ossos (shao) e sangue
(imi). Nele também circulam substâncias que são comuns ao pequeno grupo da família
elementar – pai, mãe e filhos. Dele emanam fluídos e líquidos – como suor e saliva –
que são como materializações destas substâncias.
Na teoria da concepção dos Katukina, como de tantos grupos amazônicos, o
corpo é resultado da troca de fluídos corpóreos entre homens (sêmen) e mulheres
(sangue), através de repetidas relações sexuais. O sêmen acumula-se no ventre feminino
e, misturado ao sangue menstrual, dá forma a um novo corpo. Além disso, admite-se
que uma pessoa possa ter mais de um genitor masculino. Quantos forem os parceiros de
uma mulher após o início da gravidez, tantos serão os pais da criança.
As pessoas que compartilham as mesmas substâncias são solidariamente
abstinentes e, em casos de doença, como será tratado adiante, devem adotar a mesma
dieta alimentar. Particularmente, devem evitar a ingestão de carne de caça, porque o que
os consubstanciais comem pode afetar o doente. Aqui, consubstanciais são, ao mesmo
tempo, comensais. Irmãos de um mesmo pai e de uma mesma mãe têm corpos
substancialmente iguais, por isso devem resguardar-se uns pelos outros. Meio-irmãos
têm também de se resguardar reciprocamente, ainda que apenas parcialmente seus
corpos sejam formados das mesmas substâncias. Os filhos resguardam-se pelo pai e pela
mãe e estes por aqueles. A rigor, todos os genitores masculinos têm que se resguardar
no caso de doença de um filho, seja ele quem "fez" ou quem "ajudou a fazer" a criança,
como os Katukina costumam dizer. De um modo geral, entretanto, abstém-se apenas
aquele que assumiu a criança – o que não exclui a possibilidade de um co-genitor
imprudente ser apontado como culpado por alguma morte, o que não gera maiores
conseqüências.
Para situar os Katukina na literatura amazônica, arrisco-me a aproximar a sua
noção de grupo de substância daquela que têm os Apinajé (Da Matta 1976) e os Wari'
(Vilaça 1992), por exemplo, entre os quais os laços de substância são reforçados pela
comensalidade e co-residência e diluídos à medida em que se distanciam fisicamente
uns dos outros. Porém, essa aproximação precisa ser calibrada, pois há ligeiras
divergências. Assim, de acordo com concepção katukina em vigor, a
consubstancialidade, embora se deva desdobrar em comensalidade, não é logicamente
dependente da co-residência. Ouvi de diversas pessoas que parentes próximos (pais,
55
filhos e irmãos), ainda que vivendo longe uns dos outros, deveriam resguardar-se entre
si. Isto decerto causa problemas, dada a distribuição da população entre duas aldeias.
Quando a pessoa doente tem parentes diretos morando em outra aldeia ou em viagem, a
situação realmente pode ficar complicada. A distância de alguém que, sem saber que
tinha um familiar doente, comeu alimentos proibidos e contribuiu, involuntariamente,
para agravar seu estado de saúde foi lembrada nas situações mais graves. Em um dos
casos que soube, a pessoa morreu, pois os esforços dos rezadores para recuperá-la
tinham sido nulos diante da distância que separava o doente de um irmão, residente na
aldeia do rio Gregório, que, por desconhecer a situação, não estava seguindo a dieta.
Apesar de e por causa desses pormenores, é preciso afirmar que o traço da
fronteira do grupo de consubstanciais é fluido e será tanto mais marcado quanto mais
grave for a situação. Assim, um período de resguardos, alimentar e sexual, observados
de forma ortodoxa pelos parentes diretos e co-residentes que resulte na rápida
recuperação da pessoa doente, não trará à lembrança a provável liberdade com que deve
ter se comportado um parente que vive na outra aldeia naquele mesmo período. Ao
contrário, quando um resguardo ortodoxo não dá conta de recuperar o doente, sempre
ocorre a possibilidade de um parente que, estando distante, involuntariamente contribui
para o agravamento da situação. O que faz a lembrança parecer muito com a tentativa de
elaborar uma resposta, um diagnóstico para a tragédia imposta pela morte.
Sem querer negar a concepção dos Katukina de que, mesmo distantes, os
parentes devem abster-se em caso de doença, suspeito que o vai e vem constante de
pessoas em visita entre as duas aldeias está relacionado à dificuldade que têm em
admitir que a distância pode de fato separá-los substancialmente. Talvez seja isso que os
move tanto entre as duas aldeias, na tentativa de se manterem permanentemente em
contato e informados uns sobre os outros.
1
Entre os Katukina sonhos eróticos, desde que mantidos em segredo, anunciam caça farta, o que replica a
equivalência entre atividade sexual e cinegética.
56
sêmen como secreções vaginais e também o sangue, já que a atividade sexual é vetada
aos homens e mulheres igualmente. Tudo se passa como se a família elementar tivesse
que se conter em si mesma até a superação do período crítico.
O uso corriqueiro que os Katukina fazem do pae, que aparece acima, abrange os
fluidos e líquidos de humanos, plantas e animais. Assim, genericamente, a saliva e o
muco nasal são pae – donde se entende porque a gripe pode ser designada pelo mesmo
termo –, secreções do olho são wero pae. Do mesmo modo, o veneno das cobras é
chamado de rono pae e a secreção do sapo kampo, usada como estimulante cinegético,
sobre o qual escreverei adiante, é chamado kampo pae. O mesmo termo ocorre em
outros grupos pano. Entre os Yawanawa, Pérez (1999:160 n. 195) informou que pae
"designa o conjunto de doenças personificadas em determinados yushin". Por sua vez,
Lagrou (1998:72) traduziu o pae como "força" entre os Kaxinawa, enquanto Deshayes
(2000:57) definiu-o como "uma influência particular, seja da pimenta ou do
alucinógeno". O ayahuasca, neste grupo, é chamado nishi pae (op cit.:56). Os contextos
particulares em que o pae é mencionado sempre envolvem os cuidados corporais e o
xamanismo. As traduções do termo nos grupos mencionados, por mais diversas que
pareçam, ajudam a sustentar que pae, ao menos entre os Katukina, pode ser entendido
literal e genericamente como fluidos ou secreções corporais. Em situações determinadas
o seu uso não tem outra conotação a não ser indicar literalmente o fluido de que se fala.
Noutras pode ter algumas associações negativas, é o que se passa quando indica uma
doença como a gripe, por exemplo. Ao final, na concepção katukina, pae é entendido
como algo que concentra e, ao mesmo tempo, serve como vetor das propriedades
imateriais dos corpos, em particular do yushin.
O resguardo obrigatório entre as pessoas que partilham as mesmas substâncias
deve prolongar-se por toda a vida. Havendo uma pessoa doente, pai, mãe, filhos e
irmãos devem adotar a mesma dieta alimentar. Nas palavras de Txoki: "… irmão é o
mesmo sangue só. O mesmo sangue teu, o teu irmão tem também. O meu menino é o
mesmo meu sangue e é o sangue da mãe dele. Então se meu filho estiver doente, se a
gente come, a caça dá mal nele". Igualmente, os filhos devem resguardar-se em caso de
doença do pai ou da mãe. Entretanto, marido e mulher não fazem resguardo um pelo
outro. Seus filhos foram concebidos pela combinação de suas substâncias, que são
diversas, por isso ambos devem resguardar-se por eles, mas não um pelo outro.
Voltemos então à definição do grupo de substância. A concepção de que marido
e mulher não são entre-abstinentes precisa ser qualificada. Em caso de doença de um
57
dos cônjuges, do marido, por exemplo, tem-se como estabelecido que a esposa não
precisa seguir a mesma dieta alimentar dele, mas precisa sim abster-se de sexo. Pelas
sucessivas relações sexuais os cônjuges tornam-se consubstanciais. Obviamente, a
suspensão das relações sexuais nessa situação deve acontecer entre eles e também com
outros parceiros. As relações extra-conjugais, bastante toleradas entre os Katukina,
passam então a ter um conteúdo negativo. Assim, em contato com fluídos corpóreos de
outros parceiros, uma mulher que tenha relações extra-conjugais ameaça ainda mais a
saúde do marido enfermo.
Do que foi exposto é possível dizer que a noção de consubstancialidade
reconhece gradações e pode descolar-se da co-residência. A co-residência não é
condição suficiente para definir o grupo de consubstanciais: embora possa ser
necessária em alguns casos, a abstinência sexual que têm de observar os cônjuges é o
exemplo mais claro disso. Os níveis que elenco abaixo sintetizam tais gradações, mas
adianto que não pretendo com isso esgotar as possibilidades nem submeter a concepção
dos Katukina a uma rigidez que não lhe é própria. O nível inicial e fundamental da
consubstancialidade reúne pais, filhos e irmãos, que se esforçam para se manterem
próximos ou ao menos informados sobre a vida uns dos outros, com o fim de garantirem
sua coesão pela adoção dos resguardos alimentar e sexual previstos nas situações de
doença. O segundo nível é formado pelos filhos e seus co-genitores que idealmente
devem seguir as mesmas abstenções daqueles no nível acima, o que apenas
excepcionalmente se verifica na prática. Marido e mulher reúnem-se apenas no terceiro
e último nível de consubstancialidade, um que exige a abstenção de sexo em caso de
doenças, mas não a adesão ao resguardo alimentar. Além desses níveis, cessam as
relações de substância.
A economia dos Katukina para circunscrever o grupo de consubstanciais chama
a atenção. Embora eventualmente (sobretudo em contextos políticos) todos possam se
definir como "parentes" – noke kaivo, "nós que crescemos juntos" –, os limites estreitos
do grupo de substância adequa-se bem à parcimônia com que quotidianamente os
termos de afinidade, potencial e efetiva, são usados.
As paixões do corpo
Até onde sei os Katukina não dispõem de um termo genérico que designe as
doenças. Fazem-se referências à maioria delas enunciando o principal sintoma ou vários
58
deles, como teshotae, diarréia, okoiki, tosse, mampoti nanae, dor-de-cabeça, yonatae e
shana, febre, matxi, frio e nishon, tontura/loucura. Assim, para descrever a condição
física de alguém é possível dizer "shana pishtxa, matxi kuin", i.e., "pouca febre, muito
frio". Algumas doenças que se tornaram conhecidas após o contato com os brancos
receberam denominações exclusivas, como toro tae e pae, gripe, txoran tae, catapora. A
malária, certamente a doença que mais aflige os Katukina atualmente, não foi nominada
e é descrita por seus sintomas, como no exemplo anterior. Dores são chamadas
genericamente como isinai, mas o uso mais comum é referir-se à parte do corpo que
dói, como, yora isinai, dor no corpo (todo), mampo isinai, dor de cabeça, tae isinai, dor
no pé, poshto isinai, dor-de-barriga. As dores podem acompanhar os estados
patológicos, mas não como condição essencial deles. Esforços físicos continuados ou
acidentes provocam dores sem serem por isso considerados como doenças.
A ocorrência aguda de um ou mais dos sintomas descritos acima, a ponto de fazer
uma pessoa perder o apetite e a disposição, levando-a à completa prostração, é chamada
de vopiai. Em português vopiai é traduzido livremente como "muito doente". Alguém
que não tem plena consciência de si nem dos outros e que está, portanto, à beira da
morte. Vopiai designa o moribundo e, ao mesmo tempo, o morto, já que os Katukina
usam o mesmo termo para falar de ambos os estados. 2
As doenças vêm sempre de fora: ou pelo desguardo da dieta alimentar ou por
"sustos" ou ainda pela ação de feitiçaria.3 Em todos os casos, entende-se que um agente
externo rompeu o equilíbrio entre o corpo e seus espíritos, o do corpo e do olho. Mesmo
alguns acidentes são interpretados como tendo origem externa, causados pela ação dos
yushin. Na maior parte das vezes, entretanto, os acidentes são vistos como fatos
ordinários, que fazem parte da vida. O conjunto mais completo de causas de doenças é
aquele relativo ao desguardo alimentar.
2
O tema da morte será no próximo capítulo.
3
Kensinger (1995a:211-212) afirma que, entre os Kaxinawa, as doenças são concebidas de duas
maneiras: de causas naturais e causadas por agentes externos. As primeiras são tratadas pelos
herbalistas, as segundas pelos xamãs.
59
Os alimentos do corpo
Alguns dos animais e peixes listados acima são consumidos exclusivamente por
pessoas de uma certa classe de idade. É o caso do soim (shipi), que segundo os Katukina
só pode ser comido por pessoas velhas (sheneya). Há duas explicações para essa
restrição: alguns dizem que se crianças e jovens comerem o soim terão logo cabelos
brancos e também muita preguiça, outros dizem que crianças não podem comer devido
ao pequeno tamanho do soim e que elas não cresceriam e teriam muita preguiça. De
qualquer forma, poucas vezes o soim é caçado, embora seja visto com freqüência na
mata e nas capoeiras nas proximidades das casas. Alguns homens dizem que só o
matam como último recurso, pois oferece pouca carne. Igualmente, as crianças não
podem comer tartaruga de igapó (nensa) e tatu-rabo-de-couro (kansho). Se as crianças
comem tatu-rabo-de-couro não tomam banho e se comem tartaruga de igapó, além de
não tomarem banho, querem ficar expostas ao sol. Araras, periquitos e papagaios
também não são alimentos adequados às crianças. Todas essas aves têm as pernas curtas
e a carne dura, o que, na concepção dos Katukina, pode impedir o crescimento da
meninada. Entre os peixes, é dito que a piranha (maki) não deve ser consumida por
62
crianças e jovens de até aproximadamente vinte anos, pois causa dores nas costas que,
no futuro, os impedem de trabalhar.4 O mandim-pintadinho (yoma) e o mandim-dourado
(kanai), se consumidos por crianças e jovens, causam preguiça.
Estas proibições são justificadas por referência aos hábitos e características que
reconhecem nos animais: a agitação dos macacos faz com que as crianças não durmam à
noite e o cheiro dos buracos onde são encontrados os tatus-rabo-de-couro é associado à
sujeira e à falta de banhos, que está relacionada à preguiça e ao desmazelo. Entretanto,
na outra ponta, temos animais cujo que podem despertar hábitos e características
apreciados. Esfregar o tutano do veado (txasho napo) nas pernas das crianças pode fazer
com que aprendam mais rápido a andar. Passar o sangue do tatu-canastra (pano imi) na
testa das crianças, pode fazer com que vivam muitos anos. Comer a cabeça do pica-pau
(voi mampo) prepara os meninos para, no futuro, derrubarem árvores, acertando as
partes ocas, facilitando assim a abertura dos roçados.
Curiosamente, os Katukina parecem ter abandonado a prática de tentar despertar
nas crianças as qualidades valorizadas em alguns animais. Em todo período de campo,
não vi tutano de veado ser esfregado nas pernas das crianças nem pica-pau ser abatido
para que os meninos comessem a cabeça. Seja como for, insiste-se muito na proibição
de crianças comerem a carne de animais cujas características são desprezadas ou
perturbadoras. Inúmeras vezes vi crianças chorando, pedindo aos pais ou avós para que
lhes deixassem comer, ao menos um pequeno pedaço, alguma carne que lhes era
proibida, mas nunca vi terem seus pedidos atendidos.
4
Os Yawanawa interditam a todos o consumo de piranha pelos mesmos motivos (Pérez 1999:59).
63
remexem na terra, que podem dificultar o parto.5 Mulheres menstruadas (imiya, "com
sangue") devem evitar comer o fígado (taka) de todos os animais, senão há um aumento
do fluxo menstrual. Pelo mesmo motivo na menstruação e no resguardo pós-parto
devem beber pouca água. Nesses períodos, recomenda-se que as mulheres, para suprir a
sede, bebem preferencialmente caiçuma de macaxeira (atsa matxu). Crianças e adultos,
quando gravemente doentes (vopi), não podem comer a carne de nenhum mamífero,
como paca, veado, tatu, porquinho, queixada, cutia, coatipurus e macacos. As
interdições alimentares são extensivas a seus parentes diretos – pai, mãe, filhos e irmãos
– que, como eles, devem alimentar-se exclusivamente de vegetais, peixes e aves. Após o
parto aplica-se a mesma dieta, por um período aproximado de duas semanas, à mãe e ao
pai da criança recém-nascida. A persistência da doença e, em casos extremos, a morte
freqüentemente são atribuídos ao não cumprimento das restrições alimentares.
A observação da dieta, entretanto, é bastante difícil em alguns casos. Certa vez
acompanhei as dificuldades de seguir a dieta de uma jovem solteira, Avo, grávida
daquele que seria seu primeiro filho. Em um intervalo relativamente longo de tempo,
considerando o aspecto nutricional, todas as carnes disponíveis em sua casa eram
interditadas para o seu próprio consumo. Em um dia mataram um tatu-rabo-de-couro
(kansho), que ela e também as crianças da mesma casa, não puderam comer. Mais
alguns dias e foi apanhada uma tartaruga (konsha, não identificado), que ela novamente
não pôde comer. Numa terceira vez, a casa vizinha mandou para a casa de Avo um
pedaço de tatu (yawish anipa), que também lhe foi interditado. Passados quatorze dias
sem que ela pudesse comer quaisquer dos animais disponíveis na casa em que morava,
seu irmão matou um jacaré (kape), mais uma vez um bicho de casco (shakaya), que Avo
não deveria comer. Mas, desta vez, ela não resistiu e comeu. Não houve censuras nem
reprimendas por parte dos adultos que a viram quebrando a dieta. A irmã do pai de Avo,
Mampo, uma mulher rígida na observação de sua própria dieta e na de seus filhos e
netos, disse-me simplesmente que "não tinha outra coisa para comer" e que se
houvessem complicações no parto de Avo, por ela ter comido carne de jacaré, o rezador
seria chamado para "rezar jacaré". O diagnóstico das dificuldades do parto estava
estabelecido com meses de antecedência. De fato, poucos foram os partos que
acompanhei ou que pude saber, em que os rezadores não tivessem que ser chamados às
5
Encontra-se uma interdição semelhante entre os Marubo (Montagner Melatti 1985:211-212), os
Yaminawa (Townsley 1988:122) e os Yawanawa (Pérez 1999:61-62).
64
pressas para dar conta dos excessos alimentares das gestantes. No caso de Avo, isto
acabou não acontecendo, pois uma queda no último mês da gravidez fez com que ela
perdesse a criança.
Certamente, a observação estrita dos tabus alimentares não diz respeito
exclusivamente à capacidade individual de resistir aos alimentos proibidos. A densa
rede de relações de parentesco e a teoria da concepção nativa interferem aqui. Como
afirmei anteriormente, durante o período pós-parto, o pai, a mãe e os irmãos da criança
recém-nascida não podem comer a carne de nenhum mamífero. Nos casos de
paternidade múltipla, a manutenção da coesão entre consubstanciais é assunto bastante
delicado, sobretudo em se tratando do período pós-parto. Como garantir que genitores e
co-genitores masculinos seguirão a dieta prevista no período pós-parto? Se o genitor for
o marido, a dieta possivelmente será seguida. Caso contrário, não há qualquer garantia.
As complicações de saúde e mesmo as mortes de crianças neste período são creditadas
ao desrespeito às interdições alimentares.6
Em minha última viagem a campo, vi uma criança nascer e acompanhei a dieta
de seus pais, marido e mulher, que estava sendo perfeitamente seguida. Aconteceu,
entretanto, da criança adoecer e, apesar das rezas e de remoção dela para o hospital de
Cruzeiro do Sul, acabar morrendo. A princípio, nenhuma explicação foi apontada.
Meses depois soube que a mãe da criança, na gravidez e durante um período prolongado
de ausência de seu marido, manteve relações sexuais com um outro rapaz, casado, que
teria "ajudado a fazer" a criança. Porém, este não seguiu as restrições alimentares no
período pós-parto, o que ocasionou a sua morte.
É possível imaginar que os co-genitores não se sintam responsáveis pela criança
que "ajudaram a fazer" e que não sigam a dieta para não exporem publicamente
relacionamentos clandestinos. Ambas as possibilidades são perfeitamente admissíveis,
com a ressalva de que não se aplicam em alguns casos. Na maior parte das vezes, aquele
que assume a criança é o mesmo que se abstém.
Foi o que se passou com Vari, Wesi e Mame. Em 1994, recém-chegados da
aldeia do rio Gregório, Vari e Wesi eram casados. Ela, Vari, engravidou, mas pouco
tempo depois do anúncio de sua gravidez separou-se de Wesi, que voltou para a aldeia
do rio Gregório sozinho – Vari não voltou, pois tinha sua mãe na aldeia do Campinas.
Ainda no período de gestação, Vari casou-se com Mame e após o parto, o casal seguiu à
6
Do mesmo modo como foi registrado por Abelove & Campos (1981) entre os Shipibo.
65
risca as restrições alimentares. Neste caso, o co-genitor foi quem seguiu a dieta pós-
parto e dificilmente admitir-se-ia que Wesi, separado de Vari e morando distante dela,
tivesse seguido a dieta cabível a um genitor. A propósito, em minha viagem à aldeia do
rio Gregório, na qual fui acompanhada de Vari e Mame, reencontrei Wesi e acabei, por
puro esquecimento, criando uma situação constrangedora. Após saber que sua atual
mulher estava grávida, perguntei para Wesi, na frente de Mame, se ele já tinha outro
filho. Ele, de cabeça baixa, respondeu-me que não. Transcorridos três anos desde o
nascimento do filho de Vari, Wesi ainda não conhecia a criança que tinha ajudado a
conceber.
A quebra da dieta do genitor no período pós-parto é também bastante comum
pelo fato de que entre os Katukina é freqüente, pelo menos nos dias de hoje, que as
mulheres solteiras tenham seus filhos sozinhas (tanto mais se já tiverem filhos), sem que
nenhum homem assuma publicamente a paternidade. Neste caso, qualquer enfermidade
que a criança apresentar será atribuída à falta daquele(s) que ela diz ser o(s) genitor(es)7
– já que, como admitem, as mães dificilmente desrespeitam a dieta no período pós-
parto, talvez porque estejam enfraquecidas e são cuidadas permanentemente por suas
mães e/ou avós, as quais providenciam a sua comida. O que acaba por delinear uma
rede acusatória que providencia diagnósticos.
A proibição de comer a carne de todos os mamíferos no resguardo pós-parto é
relaxada se, dias após a cicatrização do umbigo, a criança não apresenta qualquer
problema de saúde, em um período variável de 10-20 dias, quando os pais passam a
poder comer quase tudo, com exceção das espécies de macaco e coatipuru.
No que diz respeito às relações de substância, como escrevi antes, sempre que
uma pessoa adoece, seja uma criança ou um adulto, pai, mãe e irmãos não devem
consumir a carne de qualquer mamífero, tartaruga e jacaré. Formados pelos mesmas
substâncias, entende-se que os distúrbios fisiológicos de um afete, de algum modo,
todos os membros da família elementar e todos têm então que observar a mesma dieta
daquele que está debilitado fisicamente. O que resulta no dia-a-dia em recados sobre a
7
A paternidade não assumida tem se tornado fonte de conflitos públicos durante a realização do batismo
cristão. Um padre da Diocese de Cruzeiro do Sul, o padre Heriberto, visita os Katukina com
regularidade e providencia os batismos anualmente. As mães que desejam batizar seus filhos, têm de
encaminhar ao padre o nome da criança, o dela própria e o do pai. Entretanto, na realização do
sacramento, os homens arrolados como genitores, recusam-se a participar e, então, o batismo não é
realizado – já que o padre se recusa a fazê-lo sem a concordância do pai. Quase sempre os homens
envolvidos nessa situação são casados e dizem temer a reação de suas esposas. Numa das vezes que
66
saúde das pessoas circulando por todos os lados. Considerando, por exemplo, a
virilocalidade atual dos Katukina, as filhas casadas moram em agrupamentos
residenciais distantes de seus parentes diretos e, no caso de adoecer seriamente, alguém
deve imediatamente comunicar a seus pais e irmãos, para que estes observem a mesma
dieta e acompanhem a progressão de seu estado de saúde. No caso de haver meio-
irmãos, o que é bastante comum, estes também devem ser avisados. Eu mesma, nas
visitas diárias que fazia a diferentes agrupamentos residenciais, fui portadora de
inúmeros recados desse tipo.
O resguardo alimentar incide também sobre alguns dos animais domésticos
introduzidos entre os Katukina após o contato com os brancos. Galinhas e patos são
apropriados ao consumo em qualquer tempo, estejam as pessoas sadias ou enfermas,
como ocorre com as demais aves. Aliás, quando alguma pessoa está doente, a criação de
galinhas no terreiro é providencial e pode diminuir rapidamente, visto que não só ela,
mas várias outras pessoas devem se abster de carne de caça. Embora o consumo de
carne bovina seja pequeno (alguns katukina não apreciam mesmo o sabor desta carne),
diz-se comumente que a carne de boi (voi) não está sujeita a qualquer tipo de interdição.
Já o consumo de carne de ovelha (txasho) e porco doméstico (hono) é orientado pelas
mesmas interdições previstas para os animais silvestres que citei no início deste tópico.
O boi é chamado de voi entre os katukina, a troca do b pelo v parece ser simplesmente
uma adequação à fonologia da língua. A ovelha é chamada de txasho, o mesmo termo
com o qual designam o veado, e o porco doméstico é chamado de hono, o mesmo termo
utilizado para o porco silvestre.8 O fato de ovelha e porco doméstico terem correlatos
silvestres parece explicar a interdição de consumo a que estão sujeitos em casos de
doenças, pois são as interdições previstas para o veado e o porco silvestre na mesma
situação.
presenciei o batismo, uma mulher, desejosa de batizar sua filha, irritou-se com a recusa do pai dela e
agrediu-o na presença de todos.
8
Havia ovelhas na aldeia do rio Campinas em 1991. Atualmente, os Katukina desta aldeia criam galinhas,
patos e porcos. Em 1997, tentaram criar gado, mas a tentativa resultou em alguns desentendimentos
entre eles – os bois perseguiam as crianças e sempre havia a ameaça de invadirem os roçados. Na aldeia
do rio Gregório, os Katukina criam galinhas, patos, porcos e bois. Para evitar problemas com o gado, os
roçados são feitos em lugares distantes das casas ou na margem oposta do rio.
67
ela vigiava de perto o que as mães de seus netos permitiam que as crianças comessem e
o que elas próprias comiam. Entretanto, aconteceu de um de seus netos adoecer, uma
criança de pouco mais de um ano. O garoto contraiu uma forte gripe e estava, portanto,
impedido de comer alimentos doces. Mampo acompanhava o estado de saúde do
menino e aconselhava sua filha a não lhe dar bananas. Numa das saídas de Mampo da
casa, a mãe do menino acabou permitindo que ele comesse bananas, já que ele viu
outras pessoas comendo e não parou de chorar enquanto não ganhou um pedaço. Mais
tarde o menino teve febre e vomitou e Mampo acabou descobrindo que sua filha havia
relaxado a dieta.
O esmero de Mampo com a saúde de seus netos e a fiscalização dos cuidados
que lhe são dedicados pelos seus próprios pais não é incomum. As avós (e também os
avôs) estão sempre prontos a defenderem as crianças das reprimendas de seus próprios
pais.
A fiscalização constante dos cuidados às crianças e a conseqüente repreensão da
mãe do garoto, como foi dito, não é incomum: ao contrário. Em sua própria trivialidade,
esse episódio permite que se recupere a positividade da dieta.
De nossa própria perspectiva, o resguardo pode ser definido negativamente
como privação ou restrição e, num plano imediato, ele certamente o é. Até onde pude
saber, os Katukina não têm uma palavra para "resguardo". No caso de ser convidada a
comer algo que momentaneamente lhe é interditado uma pessoa responderá: pimaiki (pi,
comer + ma, sufixo de negação + iki, fecho de frase, segundo Barros 1987), que pode
ser traduzido como "não quero/não vou comer". Se estiver fora de sua própria casa, para
desfazer o mal-estar que a recusa de um convite desse tipo acarreta, emenda-se
rapidamente fornecendo uma justificativa que, em geral, remete ao seu próprio estado
de saúde ou de seus consubstanciais. Aí as respostas mais freqüentes são: en yome pake
tae ("meu filho nasceu"), en papan vopiai ("meu pai adoeceu") ou ea tesho tae ("eu
estou com diarréia"). A justificativa para a recusa do convite parece-me mais importante
que a recusa em si mesma. O resguardo existe como positividade, enquanto medida
profilática9, proteção de si ou de outrem contra investidas externas. O resguardo não
responde exclusivamente ao plano imediato. De certa forma o resguardo é todo
orientado prospectivamente, garantindo a continuidade do grupo de substância.
9
Kensinger (1995a:202-203) também interpreta os tabus alimentares dos Kaxinawa como medida
preventiva.
69
Confusão homem/animal
das situações controladas faz com que as substâncias animais se confundam com as
humanas, em prejuízo dos próprios homens.
Os mesmos animais listados acima foram relacionados em outros grupos pano a
distúrbios muito parecidos. Entre os Kaxinawa, segundo Lagrou (Lagrou 1998:57 e 90),
o excesso de salivação e os tremores são reconhecidos como sintomas da "doença da
queixada" e a agitação e agressividade (particularmente, as mordidas) definem a
"doença dos macacos". A autora definiu a concepção kaxi de doença como um
"processo de tornar-se outro", que se aplica estreitamente aos Katukina.
O sangue concentra a substância animal (da mesma maneira como a humana) e a
carne (nami) deve ser então evitada em determinados períodos. O relato de um episódio
de campo pode ajudar a esclarecer um pouco a idéia. Em minha primeira permanência
mais prolongada entre os Katukina, em 1992, fui surpreendida na casa em que me
hospedava pela chegada de um garoto à minha procura, com um grande pedaço de paca
que ele me entregou assim que me viu. Como naquela época tinha um domínio precário
da língua, o garoto virou-se para meu hospedeiro e pediu para que eu desse em troca
algumas latas de conserva, que todos na aldeia sabiam que eu levava para os dias mais
difíceis. Atendi prontamente, embora a troca me parecesse excessivamente desigual
para ele.
Antes que o garoto partisse, pedi para que ele explicasse ao meu hospedeiro o
que se passava em sua casa, já as pessoas de lá tinham um paca e queriam minhas latas
de conserva. A resposta foi simples. O pai do garoto tinha saído para caçar pela manhã e
quando voltou para casa, com a paca em mãos, sua filha caçula tinha adoecido. A febre
alta da menina fez com que o pai, a mãe e os irmãos da garota desprezassem a paca que
acabara de ser caçada. Parte dela foi distribuída na vizinhança e a outra parte destinada à
troca proposta comigo e que poderia ajudar a remediar a fome que todos sentiam na sua
casa. Meu hospedeiro então explicou que o sangue da carne da paca poderia complicar a
saúde da menina. Argumentei que a conserva que o garoto havia levado também era de
carne e, logo, continha sangue embutido de um animal. Dois contra-argumentos foram
lançados para me contradizer: primeiro, que carne de gado não está sujeita a interdições
(como vimos acima) e; em segundo lugar, não se tratava de carne fresca, o animal do
qual foi feita a conserva havia morrido há muito tempo.
O sangue fresco do animal veicula então suas características e por isso deve ser
evitado em situações determinadas. Mas deve ser destacado que as doenças provocadas
pela quebra da dieta alimentar atingem, a princípio, apenas o corpo físico (yora), não se
71
trata de uma atração por espíritos. A paca, por exemplo, instala-se no abdômen de uma
pessoa e devora suas entranhas. Sem os devidos cuidados a fragilidade de seu corpo é
que proporciona que seus espíritos, o do corpo (yora vaka) e o do olho (wero yushin), se
retirem e provoquem a sua morte.
Para finalizar, pelo menos por ora, animais e vegetais são interditados ao
consumo, em ocasiões definidas, com distintos argumentos. Os vegetais o são devido a
propriedades internas, como consistência e sabor10. Por seu turno, os animais o são por
razões que transcendem suas características imediatas – excetuando-se aqueles animais
que citei no início deste capítulo, que podem despertar características desprezadas ou
apreciadas. Os animais, ex-humanos, são possuidores não só de espíritos mas também
de substâncias que, de alguma maneira, interagem e circulam entre os homens, mas cuja
interação e circulação podem resultar no inverso da caça, i.e., os homens podem ser
transformados em presas.
O esquema da contra-predação, identificado em tantos grupos amazônicos, faz-
se presente então entre os Katukina. Entretanto, apesar do reconhecimento da
ancestralidade humana dos animais não são previstos rituais de dessubjetivação das
presas antes do consumo. Tudo se passa como se os Katukina investissem numa aposta
– como todas de resultado incerto. Caso uma pessoa adoeça tendo consumido carne, um
especialista xamânico é chamado para tratá-la, para afastar o espírito do animal
agressor. Mas isso se faz depois, nunca antes.
A mesma coisa parece suceder com outros grupos lingüisticamente aparentados.
Entre os Kaxinawa (Kensinger 1995a:193-206; Lagrou 1998), os Yaminawa (Townsley
1988), os Marubo (Montagner Melatti 1985) e os Yawanawa (Pérez 1999:56-73) os
tabus alimentares são relativamente bem estudados e muitas das doenças são concebidas
como vingança dos animais. Entretanto, salvo engano, em nenhum destes grupos são
previstos rituais de purificação das presas antes do consumo. Neste contexto, os
especialistas xamânicos nunca são mencionados. Os cuidados requeridos no trato da
presa são de responsabilidade do caçador e de quem a prepara. Ambos preocupando-se
com o sangue: o primeiro deve evitar que o bicho perca muito sangue quando é abatido
e a mulher, que se dedica ao preparo culinário, eliminando dele todo o vestígio de
sangue. Ainda que a hemofobia dos Katukina, e dos demais grupos citados, tenha
10
Não quero dizer com isto que a classificação dos sabores não tenha condicionantes culturais – na
próxima seção deste capítulo irei escrever sobre como os sabores são concebidos –, apenas enunciei o
modo como os Katukina parecem elaborar tais proibições.
72
Os sabores do corpo
11
Erikson (1996:194) observou que a oposição doce/amargo entre os Matis é duplicada no domínio dos
odores: o acre ou almiscarado sendo o amargo (chimu) e o suave, bata (doce). Entre os Katukina tenho
segurança para indicar a associação indireta apenas entre vata (doce) e inin (cheiroso). Os demais odores
73
suspeita deve-se ao fato de que as substâncias tidas como cheirosas devem ser evitadas
do mesmo modo como os alimentos doces. De seu próprio repertório, os Katukina me
indicaram algumas plantas e também a resina chamada sempa, que são cheirosas (inin).
As demais substâncias que me foram indicadas são todas industrializadas: sabonetes,
xampus ou perfumes. Uma pessoa gripada, por exemplo, não deve usar nenhum desses
produtos pois podem, do mesmo modo que os alimentos doces, causar o aumento do
muco nasal.
Entre as substâncias amargas, os remédios (rao) extraídos de plantas da mata são
as mais mencionadas. Há, inclusive, uma categoria de plantas utilizadas para tratar
constipação que é designada por muka. Os remédios industrializados são também
amargos e aqui o mais destacado e conhecido dos Katukina, dada a alta incidência de
malária na região, é o quinino. Além dos remédios, são classificados como amargo o
emético feito da secreção do sapo kampo, a ayahuasca (oni), o tabaco (rome) e o rapé
(rome poto).
Ao lado do doce e do amargo, os Katukina mencionam ainda as substâncias
tsimu: a tradução mais próxima que me ocorre é o sabor adstringente. Inequivocamente,
estão incluídos nesta categoria as bananas verdes e o caju. Dos três sabores, o tsimu é o
que menos desperta a atenção dos Katukina e tenderia a defini-lo como neutro, não
fosse o fato de que talvez ele possa ser englobado pelo amargor. A possibilidade de
conceber o tsimu como neutro, retirei-a da observação quotidiana de que era o menos
marcado entre os três sabores, o que menos interferia no bem-estar ou no mal-estar das
pessoas. Até onde sei, em nenhuma situação o tsimu deve ser evitado. Já a possibilidade
do muka poder englobar o tsimu vem do fato de que, embora bananas verdes sejam
assadas e consumidas a qualquer tempo, são-no mais nas situações de debilidade física,
quando se está impedido de consumir substâncias doces. Justamente nos momentos em
que as substâncias amargas são mais recomendadas. Além disso, em outros grupos
pano, o tsimu foi definido como amargo – tal é o caso dos Matis (Erikson 1996:194-
200) e dos Yawanawa (Pérez 1999).
são o pisi, traduzido como podre e o itsa que é utilizado para descrever os cheiros próprios dos corpos.
Assim, o cheiro de um bando de queixada é yawa itsa. Ainda que o cheiro de um bando de queixada não
seja dos mais agradáveis, não é equivalente à podridão. Certa feita um rapaz que acabara de trabalhar ao
sol reuniu-se, com o corpo ainda suado, a um grupo de pessoas para descansar. Uma mulher logo disse:
Yawa itsa, indicando que seu cheiro não lhe agradava, metaforicamente fazendo referência à queixada.
Testei a classificação dizendo: Pisi!, como quem quer dizer que ele estava fedido. Ela prontamente me
corrigiu: "Não. É só cheiro do corpo (yora itsa), não é podre (pisi ma)".
74
para empreender uma caçada, um rapaz pode chegar a receber mais de cem aplicações
de kampo, que formam uma fileira que se inicia no pulso de um dos braços, percorre o
peito até alcançar o umbigo, donde segue, no lado contrário, até alcançar a extremidade
do outro braço. Mesmo que seja corrente a idéia de que essa super-dosagem é a mais
indicada para tornar um homem um exímio caçador ou para retirar-lhe o panema (yupa),
a prática evidentemente responde a idiossincrasias pessoais. Há um rapaz – que eu
saiba, o único atualmente – que nunca experimentou do kampo como estimulante
cinegético, o que quer dizer que o usou apenas em doses menores. Este rapaz também
nunca caçou e supre sua família com peixes. O desejo que ele mesmo, sua mulher, seus
filhos e sua mãe, uma viúva, têm de carne de caça depende da generosidade alheia, em
particular de uma irmã que é casada com um dos melhores caçadores da aldeia do rio
Campinas. Há outros rapazes que fizeram a super-aplicação do kampo uma única vez,
logo que iniciaram suas atividades como caçador. Depois disso limitaram-se a receber
as dosagens menores. Por último, há um grupo que de tempos em tempos recorre ao
kampo para garantir uma performance mais vantajosa na caça. Nos intervalos entre as
aplicações esses rapazes recebem também as dosagens menores.
A resistência de alguns homens à aplicação da super-dosagem do kampo não se
deve creditar a dúvidas quanto à sua eficácia, mas aos efeitos que têm de suportar. Por
volta da décima aplicação, a boca fica amarga, uma sensação de calor invade o corpo e
os olhos e a boca começam a inchar. Há quem desfaleça antes do final das aplicações.
Cheguei a ver certa vez mais de noventa aplicações no peito e nos braços de um
homem, mas ele mesmo admitia que seria possível dobrar este número se suportasse
fazer duas fileiras de aplicações. Ele só havia feito uma – o que, aos olhos de alguns, já
era um exagero.
Fora do contexto da caça, com maior ou menor freqüência, homens e mulheres
fazem uso do kampo. A partir, aproximadamente, dos sete anos de idade todos recebem
de duas a cinco aplicações nos braços ou nas pernas. Este uso moderado do kampo é
feito para aliviar alguns males do corpo, como diarréias e febres, que tiram o ânimo de
qualquer pessoa para o desempenho das atividades mais simples. Mas, ainda que se
queira debelar o incômodo físico que diversas patologias causam, o uso do kampo
parece-me muito mais determinado pela avaliação moral que se faz do desânimo que
proporcionam. Afinal, depois de ser recomendado como estimulante aos caçadores, o
kampo é recomendado àqueles que padecem de preguiça (tikish). A avaliação
sumamente negativa que os Katukina fazem da preguiça foi já identificada em outros
76
grupos pano. Como Erikson (1996:283) bem observou entre os Matis, "a falta de zelo
característica do estado de chekeshek (preguiça) é percebida como uma ausência de
reação ao estímulo social, uma resposta negativa ao imperativo social, antes que como
um torpor sui generis". Tanto mais válida essa afirmação se considerarmos que, entre os
Katukina, homens e mulheres aplicam o kampo, como antídoto anti-preguiça, em
distintas partes do corpo: os homens aplicam-no nos braços e as mulheres, nas pernas. A
derrubada de grandes árvores exige braços fortes e a rotina quase diária da colheita e,
sobretudo, do transporte da macaxeira (às vezes também dos filhos) requer força nas
pernas.
Como estimulante cinegético ou como antídoto anti-preguiça, o kampo deve ser
aplicado por uma segunda pessoa, por alguém que não padeça do mal que se quer
debelar. Assim, não é qualquer homem que pode aplicar o kampo num caçador
empanemado, tem de ser um caçador bem-sucedido. Como se o caçador trouxesse
inscrito em seu próprio corpo a sua condição e pudesse transferi-la para outros. Ni'i,
filho de um rezador, procurou Kene para "tomar kampo", preterindo o seu próprio pai,
um rezador experiente que, comenta-se, jamais tocou numa espingarda e, portanto,
jamais matou qualquer bicho12. Do mesmo modo, uma mulher tida como trabalhadeira é
que deverá fazer a aplicação do emético numa jovem preguiçosa. Existe a possibilidade
de auto-aplicação, mas é reservada apenas às pessoas mais velhas.
No que diz respeito ainda ao kampo, cabe dizer que os especialistas xamânicos
fazem uso dele apenas na forma moderada, para debelar algum mal físico ou a preguiça
de que falei acima. Embora não esteja excluída a possibilidade de um rezador caçar – o
que faz com muito menos freqüência e sucesso que os demais –, seu domínio é outro.
Um rezador interage com seres metafísicos que o iniciam e mantêm no aprendizado
constante de cantos e rezas e, para isso, a cota de amargor que traz em seu corpo
provém do tabaco, em forma de fumo e de rapé. Caso receba uma grande dosagem de
kampo, o rezador expulsa de seu corpo o objeto mágico que o credencia a estabelecer
relações sobrenaturais. 13
No passado, uma outra fonte de amargor usado como estimulante cinegético
eram as picadas das formigas hanin, recomendada àqueles que quisessem aguçar os
sentidos para abater aves. Essas formigas formam seus ninhos em árvores ocas. O
12
Diferentemente então dos Yaminawa que recebem aplicações de kampo das mãos do koshuiti (Calavia
1995:32).
13
O xamanismo será tratado adiante.
77
14
Segundo Kensinger (1995a), os Kaxinawa também evitam punir as crianças com agressões físicas. O
maior castigo que alguém pode receber é o ostracismo.
78
lançam mão com mais freqüência apenas na educação das meninas. 15 De todo modo, ao
combate da preguiça com o uso do vakish talvez possa ser agregado o seu significado
como um estimulante da fertilidade. Essa hipótese retiro de Erikson (1987b:108-9): o
autor notou entre os Matis que, além das crianças e adolescentes, as varas dos mariwin
são dirigidas também às mulheres grávidas e àquelas que entraram na menopausa. A
depreciação da preguiça certamente expressa a recusa desse comportamento que frustra
a vida social, o que outra coisa não faz a infertilidade. Erikson (1987b:109) ouviu um
adolescente matis dizer, sem rodeios, que "nos dias de hoje, as mulheres são muito
preguiçosas para fazerem amor". Nesse sentido, é bastante sugestiva a informação de
que na "brincadeira do fogo", entre os Yawanawa, os homens ameaçam atingir as
mulheres com ramos de urtigas, as quais respondem ameaçando atear-lhes fogo com
folhas de palmeiras em chamas (Carid 1999:104). Tanto mais sugestiva a informação
porque nos registros sobre as "brincadeiras" em vários grupos pano, sempre é destacado
o forte componente sexual.16
Desta breve exposição o que se há de reter é que embora seja possível equilibrar
as dosagens de doçura (vata) e de amargor (muka), o segundo termo é o mais marcado e
associado à boa disposição e à sociabilidade. O fato de o amargor estar associado a
domínios francamente masculinos, como a caça e o xamanismo, não libera as mulheres
à doçura. A plenitude da vida, física e socialmente falando, supõe o amargor.
Não deixa de ser interessante notar que, nos dias de hoje, quando as acusações
de preguiça são tão freqüentes entre homens as mulheres, as tatuagens (titsa), emblemas
do "amargor picado", foram completamente transformadas. Se antes as tatuagens faciais
eram feitas em meio a rituais de passagem e implicavam profundos valores sociológicos
e ontológicos (Erikson 1996 e no prelo b), a sua versão contemporânea exprime um
certo individualismo. Quase todos os rapazes ostentam no peito, nos braços, nas pernas
ou nos ombros desenhos de peixes ou aves. Fazem as tatuagens uns nos outros, com
tinta de caneta e agulha. À diferença das velhas tatuagens, cujo desenho era o mesmo
entre os membros de um mesmo grupo, agora busca-se a diferenciação máxima. Ainda
que de forma anticlimática, as tatuagens exibidas hoje pelos rapazes atualizam a
15
Considero aqui apenas o uso pedagógico da urtiga mansa. Fora deste contexto, há relatos do uso da
urtiga mansa em ritos de caça entre os Marubo (Montagner Melatti 1985:289-291), os Matis (Erikson
1996:203) e os Kaxinawa (Lagrou 1998).
16
Além dos Yawanawa (Carid 1999), as "brincadeiras" foram registradas antes entre os Sharanawa
(Siskind 1973), os Marubo (Montagner Melatti 1985), os Kaxinawa (McCallum 1989) e os Katukina
(Lima 1994a).
79
17
Aguiar (1994:100) definiu o sufixo -ti na língua katukina como um classificador de itens lexicais
padrão (ILPs) como objetos inanimados. O uso do -ti, como o identifiquei, parece-me próximo daquele
que fazem os Kaxinawa. Segundo Camargo (1997:157-160), o -ti serve tanto como um instrumental
(marcando "que a ação é feita por intemédio de") quanto como um localizador.
18
O consumo de bebidas alcóolicas na aldeia do rio Campinas cresceu muito desde que iniciei a minha
pesquisa há nove anos, embora não me pareça haver casos de alcoolismo. Os homens bebem nos forrós
e fins-de-semana todo tipo de bebida: cachaça, conhaque, o que tiver, mesmo que seja álcool, diluído em
água. A caiçuma azeda (alcoolizada) deixou de ser elaborada pelas mulheres, segundo elas, em reação às
brigas que ocorriam quando os homens a consumiam.
80
pelo banho de sangue que ele ajudara a causar, mas havia também medo e, ante o temor
da reação de Kamarate caso a resposta fosse negativa, decidiram aceitá-lo de volta.
Entretanto, não havia sossego com Kamarate por perto, tamanha sua valentia, e alguns
homens que se sentiam ameaçados decidiram matá-lo, para que pudessem restabelecer a
paz entre eles. Txoki, uma das pessoas que me relatou o fato, arrematou e compôs a
moral da história: "A gente não gosta de gente valente, é melhor matar logo… gente
valente não atura. Gente valente, os outros têm medo dele. Os outros matam logo,
porque ele é valente, valente, vive procurando briga". O fim justifica o meio. Ao final, a
moderação não se deve confundir com a covardia. O episódio é um tanto obscuro e é
fácil pensar que se Kamarate foi mesmo aliado de um dos maiores inimigos que os
Katukina já enfrentaram em sua história, devia ser odiado e não faltavam pessoas
desejosas de vingar-se. Ainda assim, a versão divulgada atualmente sobre Kamarate
ajuda a expor um dos valores que os Katukina mais prezam. Voltemos ao dia-a-dia.
Se a moderação é o ideal de pessoas maduras, é curto o caminho para a
compreensão de que as crianças são as mais vulneráveis aos seus próprios excessos,
sobretudo porque não sabem ainda se controlar: correm, gritam, querem comer de tudo
e brincar por horas a fio nos igarapés. O problema é que isso tudo pode expô-las em
demasia à ação dos agentes externos. Aos pais e avós cabe justamente ensinar as
crianças a serem comedidas, discipliná-las e, para isso, é preciso que sejam pacientes.
Uma parte significativa dos diagnósticos de doenças que afligem as crianças
imputa aos pais o malefício, por pura falta de paciência em ensinar-lhes o
comportamento adequado e os valores que lhe são associados. O fato, por exemplo, de
uma criança desejar comer alimentos que não são permitidos é tido como absolutamente
normal, não o é os pais permitirem, compactuando de alguma maneira com o
desregramento da criança. Numa situação dessas há que se ter paciência, desviar a
atenção da criança, entretê-la com brincadeiras, carinhos e confortos. Os avós quando
vêm seus filhos próximos de perder a paciência com seus netos, repreendem-nos e
pegam a criança para si. Quando são ainda crianças que mamam, as avós oferecem-lhes
o peito seco para chupar, numa tentativa de acalmá-las. O risco que se quer evitar com a
impaciência dos pais é justamente que eles respondam ao excesso da criança com um
outro excesso: gritando ou batendo. As crianças não são ainda seres plenos – nem social
nem física nem espiritualmente, pois esse principiar de tudo faz os laços muito tênues –
e os sustos que levam com a reação mais violenta de seus pais podem romper os
vínculos que ligam seus corpos a seus espíritos, fazendo com que as crianças fiquem
81
ainda mais agitadas, choronas e febris, podendo vir a desenvolver outros sintomas.
Mani, que é um rezador, diz que nessas situações o yora vaka, espírito do corpo,
daquele que gritou ou bateu na criança "cai em cima", sobrepujando o próprio espírito
dela, que se enfraquece e ameaça abandoná-la.
As acusações contra os pais são freqüentes e os mais velhos repreendem
publicamente os jovens quando se excedem com seus filhos. Aconteceu um dia de um
garoto de aproximadamente 11 anos, Rai, passar um dia inteiro fora de casa, brincando
com outras crianças de sua idade. Quando retornou, sua mãe, Retxa, exagerou e, além
de gritar muito, reclamando a falta dele para ajudá-la em certas atividades, bateu forte
no menino. Mampo, mãe de Retxa e avó do menino, interveio exigindo que ela se
controlasse, ainda que concordasse que seus argumentos fossem corretos. No dia
seguinte o garoto fugiu de casa sem levar roupas nem rede, acompanhou um grupo de
rapazes e meninos do agrupamento residencial vizinho que foi para uma caçada por dois
dias na mata. Na data prevista para o retorno do grupo de caçadores, Retxa, bastante
aborrecida, foi esperar o menino na casa de seus vizinhos. Assim que Rai chegou o
homem mais velho dali, seu tio materno, começou a ralhar com ela, a "dar conselhos"
sobre como deveria orientar-se para conseguir controlar seu filho – de fato, um menino
bastante agitado e esperto. Mais tarde, em sua casa, foi a vez dele "ouvir conselhos"
sobre a maneira correta de comportar-se, dentro e fora de casa. Como o garoto teve
febre dois dias depois, não demorou para que Mampo se lembrasse dos últimos
acontecimentos e responsabilizasse sua filha.
Aqui abro uma parêntese para observar que nessas "sessões de aconselhamento"
as pessoas adotam uma performance um tanto padronizada. Alguém toma a palavra e
enquanto não finda, não deve ser interrompida. Essas "sessões de aconselhamento" são
um tanto imprevistas e aquele que toma a palavra fala firme e seguidamente, em um
mesmo tom de voz e sem olhar para seu interlocutor. Esse permanece em silêncio e tem
de prestar atenção no que está sendo dito. De um modo geral, há sempre alguma
hierarquia envolvida entre aquele que toma a palavra e seu interlocutor, como tio
materno/sobrinha ou mãe/filho, como nos exemplos acima. Entretanto, a mesma
convenção orienta algumas situações conflituosas em que se encontram pessoas em uma
mesma posição hierárquica, trate-se de alguma queixa ou de um desagravo. Presenciei
uma mulher que, um dia, após sua filha apanhar do marido e voltar para sua casa,
procurou o sogro de sua filha para expor sua insatisfação com o comportamento do
genro. A mulher falou por mais de vinte minutos seguidos, sem mirá-lo de frente.
82
19
A partir de exemplos recolhidos entre os pano, Erikson (1986:191) sustenta que a agressão às mulheres
é prevista ritualmente com o objetivo de estimular a reprodução. Entre os Amahuaca, as mulheres
apanham quando não conseguem engravidar e, entre os Matis, quando entram na menopausa. Os casos
de agressão dos homens contra as mulheres que soube entre Katukina nunca envolveram o contexto da
reprodução, antes eram tidos como brigas conjugais corriqueiras, devidas principalmente a ciúmes. As
mulheres são unânimes em afirmar que hoje os homens as agridem menos do que outrora, mas não
consegui saber se antes as agressões eram ritualizadas e relacionadas à reprodução. Atualmente há uma
forte censura aos homens que batem em suas mulheres.
83
devido aos efeitos colaterais do quinino) e Mani foi chamado para acudi-la. Lá
chegando a mãe do menino narrou o acontecido e Mani rezou para espantar o yora vaka
do agente de saúde que, segundo ele, estava "em cima dela" e a afligia. Quando acabou
seu relato, Mani aconselhou-me a agir com moderação quando fosse medicar as pessoas
da casa onde estava, três delas com malária, já que um dos agentes de saúde tinha
deixado os remédios comigo e pedido para que eu os ministrasse, na tentativa de que
seus pacientes, devido ao mal-estar que o quinino provoca, não desistissem do
tratamento.
Os exemplos acima destacam que o bem-estar das pessoas resulta de
comportamentos orientados pela contenção que, no limite, envolvem a coletividade
toda. Não só os pais têm de ser pacientes com seus filhos, todos têm de ser pacientes
uns com os outros, sob risco de desestabilizar os laços que unem os espíritos que os
animam. No contexto da falta de moderação, toda doença é resultado de um
comportamento anti-social que ignora os valores que devem orientar o trato entre as
pessoas.
Ainda no que diz respeito aos excessos, os Katukina listam ainda uma doença
causada pela presença prolongada das crianças nos igarapés. O prolongar-se em banhos
e brincadeiras pode provocar a febre chamada waka shana, i.e., "quentura/febre d'água".
Essa modalidade de febre é mais comum em crianças, mas acomete igualmente adultos
que caem acidentalmente nos igarapés.
As crianças de colo são as mais vulneráveis às investidas de agentes externos que
podem desestabilizar os vínculos entre seu corpo e seus espíritos, ainda frágeis. Pode
acontecer, entretanto, de uma criança receber todos os cuidados e atenção possíveis e
ainda assim permanecer agitada. Os distúrbios do sono, em particular, fazem saber da
vulnerabilidade: gemidos, falas, sustos e choros durante o sono são indícios de
perturbação que devem ser rapidamente contornados e as crianças são cuidadosamente
acordadas no meio da noite por seus pais. Mesmo em pessoas adultas os distúrbios do
sono são fonte de preocupações. Como notou McCallum (1998:232), escrevendo sobre
os Kaxinawa, é como se houvesse "uma quebra na separação entre os diferentes
domínios da realidade habitados pelo corpo – o mundo consciente, da vigília, e o
'mundo dos sonhos'". O espírito do olho, aquele que viaja em sonhos e alucinações,
pode-se deixar levar. Na segunda viagem a campo, em 1992, tive malária e uma febre
muito alta talvez tenha feito com que delirasse, pois, ao acordar, meus hospedeiros
84
20
Uma forma eufemística de dizer que temiam pela minha morte. Como veremos adiante, na iminência da
morte, os parentes chamam o moribundo pelos termos de parentesco adequados e pelo nome, na
tentativa de que o wero yushin não parta em definitivo.
85
CAPÍTULO 3
A morte e os destinos dos mortos
tempo, remoto, em que a morte ainda não existia e que, após um erro deles próprios,
passou a existir.
Em dois mitos os Katukina contam como perderam a oportunidade de conseguir
a vida eterna. No primeiro deles, narrado por Mai em 1992, os homens perderam a
"pedra" (shoko nane, "pedra-jenipapo", numa tradução literal) que lhes garantiria a vida
eterna, que acabou ficando em poder das cobras:
No segundo mito, contado por Mani em 1997, a morte já havia irrompido entre
eles. Um dia, uma certa mulher perde seu filho, ela lamenta a dor de tê-lo perdido.
Enquanto chorava apareceu Koka Notowani, um demiurgo, que, na tentativa de aplacar
seu sofrimento, retira o coração da criança e assopra sobre ele. A criança ressuscita, a
mãe assusta-se com o feito do demiurgo e começa a chorar. Koka Notowani irrita-se
com o choro da mulher, pois tentou aliviar a sua dor, mas ela chora, o que indica
tristeza. Aborrecido, ele vai para o céu e desiste de restabelecer a vida na terra,
ressuscitando pessoas mortas. Duas oportunidades de obterem a vida eterna e dois
deslizes que privaram os Katukina de viverem ilimitadamente.1
1
É digno de nota que os Marubo têm um mito que sugere a fusão desses dois mitos katukina sobre a
imortalidade. De acordo com Melatti (1985:130-1), os Marubo recusaram-se "a aceitar de Roka as
pupunhas gigantes que produziam o ano inteiro e o jenipapo cuja tinta fazia sair a pele, levando o
usuário a retornar à juventude. Roka retirou-se da terra, estabelecendo-se no Shoko nai [camada celeste
em que revivem os mortos]. Os Marubo só chegam à sua presença e gozam das dádivas após morrerem e
somente se vencem os obstáculos do Vei vai [caminho do céu]". No céu, Roka é o responsável pela troca
de pele dos mortos (Montagner Melatti 1995). Retornarei ao tema da troca de pele no céu no final deste
capítulo, por ora chamo a atenção para o fato de que a "pedra" que garantiria a vida eterna aos Katukina
era a "pedra-jenipapo" e que wani, que aparece no nome do demiurgo, designa a pupunha.
87
2
Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:446), que a usou para tratar da relação troca de
pele/imortalidade entre os Tupi.
3
Recolhi também um outra versão, ligeiramente diferente. Ne'e diz que os mortos ganham nova vida e
não sentem saudades porque um outro demiurgo, Koka Pino Txari, retira a pele das pessoas para fazer
um novo corpo. Em relação à versão do corpo do texto, muda o demiurgo e a parte do corpo que permite
restituir a vida.
88
sonho antecipava que muitas pessoas adoeceriam e foi confirmado, segundo ele.
Mampo também sonhou com sepulturas, mas ao invés do fogo ardendo, viu água
borbulhando (tokoi, o mesmo verbo para ferver/cozinhar) da superfície da sepultura. A
água que borbulhava era de um corpo em decomposição, de alguém recém-sepultado,
mas ela não conseguia reconhecê-lo. Mampo interpretou o sonho como a proximidade
da morte de seu neto, que estava muito doente e que a preocupava. Logo que acordou,
Mampo, em lágrimas, contou seu sonho para todos os moradores da casa. No mesmo
dia, como o garoto não melhorava, apesar dos esforços dos rezadores chamados para
tratá-lo, ela levou-o para Cruzeiro do Sul em busca de tratamento médico. É digno de
nota que nesses dois sonhos, que serão retomados adiante, a morte foi associada ao fogo
e ao cozimento, visto que os Katukina, e outros grupos pano, foram no passado endo-
canibais – embora alguns deles hoje o neguem.
Importa pouco saber se as experiências oníricas realmente orientam os Katukina
em sua vida prática. No caso de Mampo, não tenho dúvidas de que esse foi o caso.
Entretanto, soube de uma pessoa que sonhou ser furada na testa com uma faca e, apesar
disso, não evitou entrar na floresta e se arriscou a ser picada por uma cobra. Acabou
sendo picada por uma surucucu e a posteriori comentou sua imprudência por não se ter
orientado pelo sonho. Positiva ou negativamente, os dois casos relatados sugerem a
centralidade dos sonhos na explicação dos infortúnios na vida.
A possibilidade de alguém prever sua própria morte não é descartada. Esse
parece ter sido o caso de Joel, mestre dos dois mais ativos rezadores atuais, que
pressagiou sua própria morte, na década de 1980, mas não teve como evitá-la. As
pessoas hoje não sabem dizer se Joel teve sonhos em que viu sua própria morte. Um dos
rezadores que recebeu ensinamentos dele, Mani, afirmou que Joel costumava dizer que
sua vida seria curta, que morreria logo, e que seria melhor apressar-se no aprendizado.
De fato, Joel acabou morrendo precocemente.
A morte instaura a ruptura e é vivida, pelos parentes mais próximos
principalmente, como um momento dramático.4
Dos moribundos, à beira da morte, diz-se que estão vopi, que é traduzido
livremente como muito doente. Por sua vez, a etimologia de vopi sugere (E. Camargo,
4
Em todo período de campo não presenciei a morte de nenhuma pessoa adulta. A etnografia que segue é
então o resultado de vários relatos combinados sobre a experiência de perder um parente. As situações
mais próximas da morte que pude acompanhar, de pessoas muito doentes (vopi), confirmavam as várias
versões que tinha ouvido e revelavam também a intensidade do drama.
89
comunicação pessoal) sua tradução literal como "comer cabelo" (voo, cabelo + pi,
comer), que, infelizmente, não posso deslindar satisfatoriamente.5
Alguém vopi não come, não tem plena consciência de si nem dos outros. O
corpo descontrola-se. A iminência da morte é percebida por todos pelo olhar do
moribundo: os olhos apequenam-se e perdem o brilho, o wero yushin está partindo.
Certa vez havia uma criança recém-nascida bastante doente e todos os que a viam
comentavam "wero pishtxa" (olho pequeno), uma sentença curta e simples, como se a
morte da criança fosse algo irremediável. Felizmente, a mãe inconformada conseguiu
salvá-la, levando-a às pressas para o hospital de Cruzeiro do Sul. O estado crítico de
saúde da criança era indicado também pelo fato de que havia um rezador atendendo-a
durante o dia, com o sol a pino, um expediente cumprido apenas em situações de
emergência, como era o caso.
A palidez, como os olhos pequenos e sem brilho, indicam também a debilidade
física e, ao mesmo tempo, espiritual. De pessoas muito pálidas, principalmente devido a
doenças, comenta-se que estão "sem sangue" (imi yama). Sendo o sangue o principal
vetor das substâncias, como vimos no capítulo anterior, compreende-se que a palidez
indica a falta delas e, por conseguinte, o risco de morte.6
Os parentes mais próximos acodem o doente: dão-lhe água, alimentam-no,
trocam suas roupas e limpam seus corpos. Mais que isso, dão também conforto e
suplicam por sua permanência neste mundo. Como vimos antes, seguem também a dieta
do enfermo. Não há propriamente um ritual ou lamento fúnebre.
Acompanhei o sofrimento de Maya e de seus parentes para mantê-la viva, na
aldeia do rio Campinas. Ela, uma mulher de mais de 50 anos mas ainda bem disposta e
alegre, caiu doente repentinamente: tinha dores de cabeça, febre alta e vômitos. Dois
rezadores acompanhavam-na também, mas tinham dificuldade em estabelecer o
diagnóstico, suspeitavam, entre outras coisas, que a mãe de Maya, morta havia pouco
tempo, estivesse tentando atraí-la para junto de si. Essa última suspeita era ainda maior
porque Maya, no auge de seu descontrole e delirante, sentava-se na rede e com a voz
vacilante, dizia: "Ewa, ewa" (mãe), "papa, papa (pai)" e apontava com os braços para a
5
Estranha etimologia essa do vopi. Entre os Kaxinawa, quando o endocanibalismo ainda era praticado,
todo corpo era consumido, exceto o cabelo que era raspado e queimado (Lagrou 1991:112).
6
Aqui é importante destacar que os Katukina falam de espíritos (yushinvo) que chupam o sangue das
pessoas durante a noite. Fiz esta associação entre a palidez ou a falta de sangue identificada entre alguns
doentes e os espíritos hemofágicos, após encerrar o trabalho de campo. De modo que não tenho como
assegurar se os Katukina a endossam.
90
floresta repetidas vezes, como se quisesse partir. Então, Ronti, a irmã de Maya,
chamava-a pelo termo de parentesco, deitava-a novamente, punha-se na frente dela,
dava-lhe água, segurava-lhe a mão, tentando acalmá-la. A recusa de comer, a invocação
de seus pais e o estado de completa prostração de Maya anunciavam a sua morte e, mais
do que isso, o desejo mesmo da morte. "Ela quer morrer" era o que se ouvia das pessoas
que a acompanhavam e que se ouve sempre que um doente não reage positivamente aos
cuidados que lhe são dispensados. Como a suspeita de que a mãe de Maya era quem
estava tentando atraí-la e potencialmente poderia matá-la, Ronti chamou o único filho
de Maya que estava em uma outra casa, distante dali, na tentativa de que ele sim poderia
dar forças para que ela não sucumbisse ao apelo de sua falecida mãe. A chegada dele de
fato fez com que Maya restabelecesse o controle.7 Ao lado dela, em pé, Mame ficou
segurando sua mão por longos minutos. Quando Maya tinha já recobrado
completamente a consciência, sua irmã levou-a para o quarto, limpou e trocou suas
roupas e fez com que ela se deitasse numa outra rede, limpa. A situação estava
controlada.
O gesto descontrolado e aflito de apontar para a floresta é repetitivo, ocorre em
diferentes situações em que se vislumbra a proximidade da morte. Em 1994 acompanhei
o difícil parto de Vari. Numa manhã, após dois dias sentindo contrações, Vari
descontrolou-se: levantou-se da rede, apontou para a mata e arriscou alguns passos
apressados. Ela insistia em sair, aos gritos, e seus parentes correram para segurá-la e
deitá-la novamente na rede. Os dias de sofrimento e a tentativa de fuga para a floresta
denunciavam a debilidade de seu estado físico e a proximidade da morte. Amparada por
uma irmã classificatória, por sua mãe, por sua avó materna e por um rezador, Vari teve
finalmente a criança.
Na floresta habitam não só os animais, nela perambulam também os espíritos de
pessoas mortas. Nos casos em que se suspeita de mortos tentando atrair os vivos, como
aconteceu com Maya, o momento de aflição é uma batalha em que rivalizam parentes
vivos e mortos, ambos querendo atraí-los para o seu próprio lado (Carneiro da Cunha
1978).
7
A tentativa de recuperar o wero yushin do moribundo com a invocação dos termos de parentesco
adequados assemelha-se à maneira como os Katukina tentam controlar os homens bêbados, pois agem
da mesma maneira. Notei a semelhança apenas depois de encerrar o trabalho de campo, de modo que
não posso dizer se os Katukina admitiriam a aproximação que faço entre as duas situações. De todo
modo, Kensinger (1995a:209) afirma que, entre os Kaxinawa, o espírito do olho também abandona o
91
É certo que nem toda morte é atribuída à atração dos espíritos de pessoas mortas,
o sentido dessa afirmação às vezes tem de ser tomado genericamente. De todo modo,
nos casos em que tentam resistir à própria morte, os parentes mais próximos são ainda a
referência à qual os moribundos se apegam para tentar não sucumbir. Yaka contou-me
da morte de sua cunhada, acometida na madrugada de vômitos e diarréia e longe da casa
de seus pais. Antes que amanhecesse seu marido foi chamá-los para que ajudassem a
acudi-la. Quando chegaram, entretanto, já era tarde. A jovem, segundo Yaka, que a
amparou por todo o tempo, teria morrido chamando por seus pais: Papa, papa, ea
vopiai! Ewa, ewa, ea vopiai! ("Pai, pai, eu estou morrendo! Mãe, mãe, eu estou
morrendo!").
corpo quando as pessoas estão bêbadas, e não apenas em sonhos e alucinações como me admitiram os
Katukina.
92
justificar essa preferência, imagino que seja devido à perigosa proximidade com o
defunto. No auge do vigor físico, os jovens talvez defendam-se melhor de suas possíveis
investidas. No caso de enterros de adultos, se os coveiros são consangüíneos ou afins
não parece ser determinante, embora a presença dos afins fosse mais constante. No caso
do enterro de crianças, que mobiliza poucas atenções, os coveiros são, com mais
freqüência, seus consangüíneos.
Os coveiros são os mesmos que conduzem o defunto, deitado em sua rede
suspensa em uma vara, até o cemitério. Lá abrem uma cova profunda, aproximadamente
da altura dos ombros de uma pessoa adulta, para evitar tanto o cheiro da decomposição
do corpo do defunto quanto os urubus que podem ser atraídos por ele. No cemitério, as
sepulturas são mais ou menos alinhadas. Os mortos são enterrados com a cabeça em
direção ao nascente, a leste, para que o wero yushin não se perca a caminho do céu. Nas
palavras de Mani, assim o wero yushin "acha o rumo mais fácil". O leste está associado
ao lugar que os Katukina surgiram em tempos míticos, antes de atravessarem um grande
rio sobre o jacaré gigante, e, ao mesmo tempo, à criação da vida.
Crianças e adultos contam com cemitérios distintos, da mesma maneira como
ocorre com os Marubo (Montagner Melatti 1985: 87), embora as razões nunca tenham
se tornado claras para mim. Minhas sugestões de que as crianças não tinham ainda seus
espíritos bem fixados ao corpo e por isso deveriam ser separadas dos adultos, foram
sempre negadas. O único argumento que foi lançado para explicar a separação dos
cemitérios é absolutamente casual. Segundo várias pessoas, logo que a aldeia do
Campinas foi formada, Washime perdeu um filho pequeno e sepultou-o no local onde
hoje é o cemitério das crianças. A partir de então, todos os pais que perdiam filhos
pequenos passaram a enterrá-los no mesmo local onde Washime tinha enterrado seu
filho. Eventualmente crianças mortas são enterradas também nas proximidades da casa
de seus pais. Este foi o caso do filho de Kako e Penanai que morreu com menos de um
mês de idade. Kako providenciava o sepultamento da criança no cemitério, quando seu
próprio pai, avô paterno da criança, disse que sentiria muita saudade dela e que preferia
enterrá-la nas proximidades de casa.
Na aldeia do rio Campinas, muitas pessoas buscam tratamento médico no
hospital de Cruzeiro do Sul e, caso não resistam, acabam sendo enterradas no cemitério
da cidade. No cemitério de Cruzeiro do Sul, as ruas e avenidas não são necessariamente
alinhadas em direção a leste como na aldeia. Os Katukina sabem disso mas nada podem
fazer para tentar impor o padrão que estabeleceram entre eles. Transladar o corpo até a
93
aldeia, para poder enterrá-lo do modo como julgam correto, é mais difícil e dispendioso
do que arrumar ou pagar por um caixão para enterrá-lo na cidade e a orientação a leste
do sepultamento acaba sendo preterida.
Os corpos enterrados no cemitério de Cruzeiro do Sul ou qualquer outra cidade
nunca são visitados. Já aqueles sepultados no cemitério da aldeia recebem visitas todos
os anos em 2 de novembro, Dia de Finados, mas não são todas as pessoas que se
dispõem a freqüentar o local. Sem qualquer constrangimento, muitas pessoas
reconhecem temer o cemitério, pois ao seu redor perambulam os espíritos das pessoas
mortas.
Na aldeia do rio Campinas o cemitério está a alguns metros da beira da estrada,
nas proximidades de um local conhecido como Nova Olinda, onde os Katukina se
instalaram no início da década de 1970, quando foi fundada a aldeia do rio Campinas. O
lugar é evitado durante a noite e não foram poucas as pessoas que assumiram jamais
passar por ali sozinhos ou, se corajosos, que aceleravam o passo muito mais do que
normalmente.
Os cemitérios dos adultos e das crianças são visitados exclusivamente no Dia de
Finados ou quando há enterros. No restante do tempo é um lugar ermo e mal cuidado, já
que a vegetação invade a área das sepulturas – diferente, portanto, dos cemitérios
Marubo que são, segundo Montagner Melatti (1985:88), periodicamente conservados.
No cemitério das crianças, por exemplo, há alguns anos caiu uma grande árvore que
encobriu e impediu o acesso a algumas das sepulturas. A queda da árvore só foi
descoberta em um Dia de Finados, quando o cemitério recebeu visitas, mas ninguém se
propôs a tentar removê-la dali. A árvore caiu e ali ficou, as sepulturas encobertas
simplesmente deixaram de ser visitadas. Do mesmo modo, as sepulturas de crianças que
foram enterradas nas proximidades da casa de seus pais deixam de ser cuidadas e
visitadas no caso de os pais mudarem-se de local.
No Dia de Finados as pessoas que têm parentes diretos enterrados no cemitério
da aldeia e, portanto, sepulturas para zelar, vão todas juntas ao cemitério, ninguém se
arrisca a ir sozinho. Os moradores mais próximos do cemitério aguardam a chegada dos
mais distantes para que possam todos ir e voltar juntos.
Chegando ao cemitério, cada um acode para limpar a sepultura do parente que
lhe cabe. Cada um cuida da sepultura de um consangüíneo, de seus pais, mães, irmãos e
filhos, não da sepultura de afins ou de parentes classificatórios. Jamais vi ou ouvi dizer
que alguém tenha feito a manutenção da sepultura do marido, da esposa, do cunhado, do
94
8
Estive em campo no Dia de Finados nos anos de 1994 e 1997.
9
Isto na aldeia do rio Campinas. Não sei como as coisas se passam na aldeia do rio Gregório, dada a
presença lá dos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil.
95
próprios parentes, sem maiores delongas, reportam a dois sentimentos distintos perante
a morte. O período seguinte à morte de um parente querido é sempre marcado como de
muita dor e todo o esforço deve ser feito para apagar a lembrança do parente morto,
caso contrário o saudoso sucumbe ele próprio. Esse período é particularmente perigoso
não só porque o yora vaka do morto pode visitar seus parentes vivos, mas também
porque aqueles que ficaram podem abandonar-se à tristeza. Das mortes de que soube, a
única atribuída a suicídio ocorreu poucos dias depois de uma mulher perder seu filho.
Entregou-se à tristeza, era a justificativa que sempre ouvia. Transcorrido um tempo
maior da perda, a imagem e a lembrança do falecido esvanece ou ocorre rapidamente,
como se aqueles que ficaram já se tivessem acostumado a viver sem a presença do
falecido. Ambos os sentimentos são marcados de forma distinta até mesmo
lingüisticamente. Para referir-se a alguém que morreu há pouco tempo e de quem ainda
se sente falta, o termo usado é vopishina. Para referir-se àqueles que se foram há mais
tempo e para os quais a dor da ausência foi superada, o termo usado é vopiyamenta.10
10
Essa distinção temporal assemelha-se àquela entre morto-recente e morto-ancestral existente entre os
Waiãpi (Gallois 1988:182-183).
11
Agradeço a Philippe Erikson (comunicação pessoal), que pesquisa entre os Chacobo, esta informação.
Cabe dizer ainda que enquanto os Katukina usam o marcador -va'i para passado recente (em geral), os
Chacobo usam -yamenta, o mesmo marcador que os primeiros usam para passado distante. Nos
trabalhos acadêmicos sobre a língua katukina foram identificados apenas três tempos verbais: ai
(presente), va'i (passado) e kai (futuro), conforme Barros (1987) e Aguiar (1988:47-49 e 1994:135-137).
O uso de -yamenta indicando o passado distante está registrado apenas nas cartilhas produzidas pelos
próprios Katukina (André Shere 1993:16) e pela MNTB (1977:23).
96
12
Em Kaxinawa, segundo Eliane Camargo (comunicação pessoal), o marcador -xin indica uma ação que
se desenrola à noite, mas também na escuridão. De acordo com a sugestão da lingüista, vopishina talvez
indique o fato de o morto não poder ver, pois o yushin dele se foi.
13
É digno de nota que fora do contexto do luto, shina é tido também como um sentimento negativo que
pode invadir as pessoas que o experimentam, fazendo-as perderem a razão. O mais recomendável em
situações de desacordo, aborrecedoras, em que se é tomado pelo shina, é controlar-se, comedir-se até
que a raiva seja superada. As pessoas deparam-se com esse sentimento quotidianamente e, em situações
mais tensas, devem organizar-se para não serem completamente envolvidas por ele. Um
desentendimento sério entre dois vizinhos acabou causando a mudança de moradia de um deles que,
depois de externar em altos brados todo o seu descontentamento, decidiu mudar-se de casa, pois estava
raivoso (shina tae).
97
(1991), shinána é não apenas o locus do pensamento, mas também da emoção. Neste
sentido, cabe também lembrar dos Uni, que, segundo escreveu Frank (1994: 229 n.91),
não diferenciam entre o pensamento e as emoções: "o que mais os ocupa é a diferença
entre o "pensar bem" e o "não pensar" (ou pensar e sentir mal), i.e., sentir emoções anti-
sociais como o ódio".
Entre a consciência e o afeto, o significado oscilante de shina pode ser
relacionado ainda à própria dúvida que os Katukina expressam a respeito da localização
do pensamento em seus corpos. Às vezes a sede do pensamento é localizada na cabeça,
presumivelmente no cérebro. Enquanto Txapa me ensinava a fazer camas-de-gato14,
Mashi assistia e, após me ver em pouco tempo manusear corretamente o cordão e dar-
lhe as formas conhecidas, comentou "mampo roapa", "cabeça boa". Outras vezes,
entretanto, o pensamento foi localizado no coração (vointi). Mani, embora demonstrasse
um certa dúvida com a pergunta inesperada, afirmou que o pensamento reside no
coração, pois a partir dele as veias e o sangue percorrem o corpo em todas as direções,
no corpo o coração ocuparia o "centro". Além de que, a cessação de seus batimentos
anunciam o fim da vida, a perda da consciência. Na versão sobre a vida post mortem
que ouvi de Mani, é justamente assoprando o coração do yushin do olho que Koka
Notowani, o demiurgo, restitui a vida, fazendo com que o morto não pense em seus
parentes vivos e sinta saudades. Outros pessoas localizavam duplamente a sede do
pensamento. Txoki, descrevendo-me a maneira como elabora suas rezas (shointi), disse
que pensa "com a cabeça e com o coração". Entre os Marubo, o coração, definido
claramente como a sede do pensamento, é denominado corriqueiramente como witi, mas
em linguagem ritual é chinã (Montagner Melatti 1985:108).15
14
Entre nós cama-de-gato é um brinquedo em que jogam dois ou mais participantes, retirando uns das
mãos dos outros um cordão (atado nas pontas) com formas simétricas. Os Katukina jogam-no
individualmente, manuseando habilmente o cordão com as duas mãos, algumas vezes usando também a
boca para segurá-lo. As formas dadas ao cordão representam quase sempre a anatomia de corpos
humanos ou animais.
15
Os Matis também têm dúvidas atualmente sobre a localização do pensamento em seus corpos. Segundo
Philippe Erikson (comunicação pessoal) os Matis localizam o pensamento no coração, mas admitem que
passaram a localizar na cabeça ao saber que assim fazem os brancos. Kensinger (1995a:243-244)
escreveu que nas décadas de 1950 e 1960 os Kaxinawa não localizavam o conhecimento em nenhuma
parte específica do corpo: "o corpo todo pensa e sabe". Entretanto, vinte e cinco anos mais tarde, os
Kaxinawa passaram a reconhecer o cérebro e o coração como sedes do pensamento. Segundo o autor
(op. cit.:244), "o conhecimento do cérebro resulta da leitura, da escrita e do aprendizado escolar. O
conhecimento do coração vem da introdução do cristianismo". Entre os Uni, o pensamento localiza-se
no coração (Frank 1994:229 n.91).
98
16
O banho frio também é recomendado pelos Marubo após o sepultamento e visitas ao cemitério
(Montagner Melatti 1985:222).
99
A rigor, os pertences de uma pessoa morta devem ser enterrados junto com ela
ou destruídos. Entretanto, há alguns anos pairam dúvidas sobre o destino que deve ser
dado a alguns objetos de valor, manufaturados, e de difícil reposição pelo custo que
têm, como relógios e panelas.
Mani contou-me que na morte de sua filha, em 1985, estavam enterrando-na
com seus sapatos, roupas e relógio. Então, um branco que os acompanhava disse que
não era certo enterrarem objetos de valor com o defunto. Nesse caso, o relógio. Ele
concordou, mas não quis ficar com nada de sua filha e o relógio acabou sendo
"herdado" pelo sogro da falecida. Já os utensílios domésticos de sua filha, Mani juntou e
trocou, entre os brancos vizinhos, por um casal de bacorinhos.
As alternativas sobre o que fazer com os pertences dos defuntos são várias e a
única coisa consensual é de que os parentes diretos, aqueles mais identificados e
afeiçoados ao morto, devem dispor das posses do defunto. O despojamento dos
pertences do morto deve-se tanto ao fato de que podem trazer sempre a lembrança dele,
entristecendo ainda mais seus parentes, quanto porque pode ser um chamariz ao yora
vaka. A tristeza sentida pela ausência do morto pode acabar provocando entre alguns
dos parentes o desejo da morte. Mani, de que falei acima, disse que nos dias seguintes à
morte de sua filha, teve "vontade de morrer".
Se no passado todos os pertences eram enterrados junto com o defunto ou
destruídos, hoje as alternativas são mais amplas. A mulher de Ronta morreu no hospital
de Cruzeiro do Sul e foi enterrada nesta cidade. Txapa, a irmã de Ronta, providenciou a
incineração das roupas, redes e cobertas dela. O próprio Ronta juntou as panelas e
pratos e levou para a aldeia do rio Gregório e deu para os moradores de lá. Seja qual for
a alternativa – queimados, trocados ou distribuídos os pertences do morto–, o fim que se
busca é o mesmo: afastar as posses do defunto daqueles que viveram próximos a ele.
As casas antigamente eram abandonadas quando da morte de algum adulto em
seu interior ou quando ocorriam mortes sucessivas de crianças. Na aldeia do rio
Campinas, o abandono das casas era bastante freqüente até há uns cinco anos atrás. Uma
única morte não provocava a transferência, mas mais do que isso já tornava a
permanência no local insustentável. Nos últimos anos a mudança de casa motivada pela
morte parece estar diminuindo, talvez devido às recentes inovações nos materiais usados
para sua construção, madeira serrada ao invés da paxiúba, o que faz a casa mais pesada
100
para ser transportada ou mais cara para se construir uma nova. Quando permanecem na
casa as pessoas evitam pendurar suas redes no mesmo local em que o defunto dormia.
Dormir no mesmo local é risco certo de atraí-lo, melhor evitar. As inovações
arquitetônicas são recentes, poucas das novas casas contabilizaram alguma morte. Por
isso é difícil saber como os Katukina resolverão o problema da proximidade com seus
mortos.
Ao contrário dos bens materiais, dos quais os parentes mais próximos devem se
desfazer, os nomes dos defuntos, embora evitados, são preservados e,
consecutivamente, repostos. Tratei da onomástica katukina em outro lugar (Lima 1997)
e se volto ao assunto, é apenas para destacar que a reposição de um nome ancestral
assume invariavelmente o sentido de homenagem ao parente morto, uma certa garantia
de continuidade da sua lembrança, já que todo o resto é marcado, com a morte, pela
descontinuidade. Esse esforço de repetição dos nomes é o que explica as diferenças
mais salientes entre a onomástica katukina e aquela dos outros grupos pano:
particularmente a transmissão oblíqua e cruzada dos nomes de ancestrais, enquanto os
demais pano a realizam de forma alternada e paralela. Quando, por exemplo, se
transmite o nome do MB ou da FZ a um filho (a) – preterindo então a transmissão dos
nomes entre as gerações alternadas, como é mais comum –, invariavelmente a pessoa
que tem o seu nome transmitido já é morta e, em casos mais evidentes, morreu
prematuramente, sem ter deixado filhos, o que quer dizer que não tinha potencialmente
condições de ter o seu próprio nome transmitido. O irmão incumbe-se então da tarefa,
transmitindo o nome a seu próprio filho.
Mame
Mame
Mame
Diagrama 1
agiu com os mesmos propósitos da irmã de seu pai. Ambas intentavam preservar o
nome de um parente querido.
Retornar à onomástica permite também que se esclareçam os casos de pessoas
que têm mais de dois nomes, já que algumas têm três ou quatro. Nesses casos, trata-se
pura e simplesmente de uma acumulação de nomes de pessoas mortas e que são
transmitidos a uma criança a fim de que se garanta a permanência deles. Uma
transmissão mais econômica – de um só nome ou de dois, para satisfazer o desejo do pai
e da mãe – certamente facilitaria, como os próprios Katukina o admitem, mas poderia
em poucas gerações implicar na extinção do nome de um parente querido que se
gostaria de preservar.
Txombi
Ino Hante
Diagrama 2
Logo que nasceu, a pequena Hante Ino Txombi (ver Diagrama 2) recebeu apenas
os dois primeiros nomes, provenientes da parentela de cada um de seus pais. Todavia,
com a morte da avó materna de seu pai, Txombi, que não tinha ainda o seu nome
transmitido, foi decidido que a garota receberia um terceiro nome. Se os dois primeiros
nomes foram transmitidos alternadamente, o último foi de maneira oblíqua, proveniente
da terceira geração ascendente, o nome da FMM. Ainda esclarecendo o exemplo, a
ordem dos nomes da menina não é constante e cada um de seus parentes costuma usar
apenas um deles, de forma um tanto idiossincrática, preferindo obviamente aquele
relacionado à sua própria parentela. De tal maneira que o pai da garota pode preferir
chamá-la de Ino ou, mais recentemente, de Txombi, enquanto sua mãe pode, ao mesmo
tempo, chamá-la de Hante.
A conservação dos nomes em oposição ao despojamento das posses do defunto
parece articular-se à concepção que os Katukina guardam de cada um dos espíritos, o do
102
olho (wero yushin) e o do corpo (yora vaka). Do último tentam manter uma certa
distância, o que justifica a evitação de freqüentar o cemitério e a despojamento de suas
posses, pois que se relaciona à sua malignidade. No que diz respeito ao wero yushin, os
Katukina tentam reter o que as pessoas têm de mais definitivo, o seu próprio nome,
numa tentativa de perpetuar a memória do falecido. Quando proponho a associação
entre nomes e wero yushin não a compreendo de forma transcendente, apenas identifico
uma característica que têm em comum: os wero yushin são eternos, como o são também,
idealmente, os nomes.
A interpretação que proponho contrasta com aquela de Townsley (1993:445)
para os Yaminawa, que associa os nomes ao espírito do corpo (diawaka). Segundo o
autor, a repetição cíclica dos nomes, de acordo com regras fixas (entre gerações
alternadas e paralelas), pode ser considerada como a reencarnação do diawaka de um
avô(ó) particular. Considerando a onomástica pano (os nomes sendo transmitidos entre
gerações paralelas e alternadas), a sugestão de Townsley parece-me confusa por dois
motivos: (i) não explica como as coisas se passam na transmissão de nomes inter-vivos,
já que não há reencarnação sem morte; (ii) a onomástica pano tem sido caracterizada em
diversos trabalhos como extremamente coletivadora, devido ao "efeito kariera" que é
capaz de produzir, e não me parece possível que os nomes possam ser individualizados
de tal maneira.
Voltando à onomástica katukina, a interpretação nativa quer que a transmissão
dos nomes seja a garantia da perpetuação dos defuntos, quer arrumar uma solução
pacífica para contornar a ruptura imposta pela morte. Contudo, distanciando-se um
pouco do ponto de vista nativo, parece-me possível supor que o efeito da transmissão
onomástica seja uma vez mais cancelar a sua existência. Independente dos caminhos
genealógicos percorridos – provenientes da primeira, segunda ou terceira gerações
ascendentes, paralelos ou cruzados –, todo o esforço deve ser feito para que não sejam
abandonados os nomes que receberam em tempos prístinos.17 O apego aos nomes
confunde-se com o apego às pessoas e é exatamente essa confusão de afetos que permite
a desvinculação do nome de seu referente morto. Encerrada a existência de uma pessoa,
seus parentes esforçar-se-ão para garantir que o mesmo não se passe com o nome que,
num período determinado, a teve como referente, mas que deverá ter outros
17
Atribui-se a Tarakawati, o jacaré gigante que no início dos tempos "serviu como ponte" aos Katukina
na travessia do grande rio, o recebimento do estoque onomástico que os Katukina usam ainda hoje.
103
Os destinos pós-morte
18
Paradoxalmente, a idéia de que os nomes "possuem" as pessoas, talvez possa ser aplicada à onomástica
dos Yaminawa estudados por Townsley (1988:199). Isso se considerarmos a afirmação do autor de que
os nomes "são independentes dos indivíduos aos quais foram temporariamente vinculados. A
continuidade do sistema de parentesco (kin-category) depende disso. Vinculados [os nomes] aos
indivíduos na infância, devem ser desvinculados após a morte".
104
19
Carneiro (1964:8) e Siskind (1973a:149) também mencionam que o yushin chupa o sangue das pessoas,
respectivamente, entre os Amahuaca e os Sharanawa.
105
20
Em um artigo de 1924 em que fala de um grupo conhecido como Katukina no rio Gregório (e que
suspeito que seja, dadas as semelhanças, o mesmo que pesquiso hoje), Tastevin comenta também que os
ataques dos yuchin aos vivos são fontes de doenças e que uma vez agarrado ao corpo de alguém, sugam-
lhe todo a sua carne e o seu sangue.
106
21
Atualmente há dúvidas sobre a regra de filiação que opera para determinar o pertencimento aos clãs,
enquanto uns afirmam a matrilinearidade, outros afirmam a patrilinearidade. Quando uso a denominação
de "clãs" para as unidades que compõem a sociedade katukina, faço-o apenas como o reconhecimento
de uma "ancestralidade suposta ou presumida", como o fiz em trabalho anterior no qual esse assunto foi
mais detalhado (Lima 1994a:49-52).
22
Entre os Marubo os membros da seção Satanáwabo não fazem o caminho terrestre, chegam ao céu pelo
"caminho da água" (Montagner Melatti 1985:82).
23
Nos dias de hoje é difícil saber o funcionamento ideal do modelo, mas não se deve duvidar da seriedade
com que os Katukina tratam do assunto. Certa vez, enquanto conversava com Mani sobre o destino dos
mortos, fui surpreendida pela pergunta: "E os brancos, vão para o céu de barco?". Ele falava sério e
queria a confirmação dessa possibilidade, que tinha ouvido de um seringueiro anos atrás – um sujeito
fabulador certamente, que contou a Mani do acesso dos brancos ao céu após ouvir Mani lhe contar
107
visíveis apenas os órgãos genitais. Outros wero yushinvo a caminho do céu, quando
passam por ali e vêem os avarentos cobertos de cupim, transformados mesmo em
cupinzeiros, dão-lhes pancadas com pedaços de pau antes de tentarem a travessia.
O sentido da avareza para os Katukina transborda as nossas concepções
dicionarizadas. Uma pessoa avara, mesquinha, sovina, não apenas conserva o que tem
para si, apegando-se excessivamente às suas posses. Ela faz isso e mais. O sovina é
acima de tudo um dissimulado. Yohashikonawa, o sovina paradigmático, tinha um
imenso roçado com macaxeira, milho e banana. Naquele tempo (shenepavo, "tempo dos
antigos") os Katukina não tinham nenhum cultígeno e foram pedir a Yohashikonawa um
pedaço de maniva, uma touceira de banana e sementes de milho. Yohashikonawa não se
furtou a dar. Ele deu, mas não sem antes cozinhá-los, impedindo que germinassem. Os
Katukina demoraram a descobrir o estratagema e pediram de novo e, mais uma vez, ele
não se recusou a dar. Descoberta a verdade, o engodo sob a aparência de generosidade,
os Katukina aliaram-se a um homem-grilo que roubou então de Yohashikonawa aquilo
que ele sovinava: as manivas, as touceiras e as sementes in natura, adequadas ao
plantio.
Antes de tudo, um sovina, yohashi, é um mentiroso, yohai: alguém que finge dar
quando não dá ou que diz não ter quando tem. Em qualquer das alternativas, sonega a
verdade. Celestialmente, o sovina é vítima de sua própria conduta. Ao espírito do olho
de um avarento não falta a ponte, mas, assim como manivas, touceiras e sementes
cozidas não servem para ser plantadas, uma ponte pela metade não serve à travessia.
Um outro mito descreve a avareza como falsa generosidade. Havia uma velha
viúva, que só tinha um filho para ampará-la. Um dia o rapaz teve vontade de comer
pamonha e a velha, para satisfazer seu desejo, foi até a casa de um vizinho pedir um
bocado de espigas de milho. O vizinho não negou, mas instruiu sua mulher a dar apenas
umas poucas espigas. No roçado, a esposa dele encheu o paneiro da velhinha com
pedaços de lenha e, para escondê-los, dispôs as espigas de milho por cima. A velha
ficou satisfeita e deu-se conta de que tinha sido enganada apenas quando chegou em sua
casa. Seu filho ficou bastante aborrecido com a avareza do vizinho e planejou a
vingança na mesma moeda. No ano seguinte o rapaz fez um imenso roçado de milho.
Quando o milho estava maduro, o rapaz e sua velha mãe convidaram todos para uma
sobre as pontes katukina. Mani não duvidava da versão do seringueiro, já que para ele os brancos são
todos ricos.
108
festa, para beber caiçuma de milho do roçado farto. O vizinho avaro foi convidado e a
festa ainda não tinha acabado quando ele resolveu ir embora, sozinho, durante a noite. O
filho da velha então se prontificou a providenciar algo que pudesse iluminar o caminho
dele pela floresta escura. Iniciava-se a sua vingança. Usando do mesmo método
empregado pela mulher do sovina quando sua mãe pediu as espigas de milho, o rapaz
pegou um rolo de cernambi, mas colocou apenas um pouco de sempa, a resina que
mantinha o fogo acesso, o restante abasteceu com areia. O homem foi embora sem
perceber o engodo. Antes que chegasse em sua casa e próximo ao cemitério, o fogo que
iluminava seu caminho, apagou. Foi então que aconteceu um ataque de yushin, diversos
deles, que arrancaram toda a pele (reshvi) do sovina, dos pés à cabeça, e esticaram-na,
amarrando nas árvores. O sovina não morreu, mas desde então, sem pele, não pôde mais
comer, nada do que ele comia parava em sua barriga. No mesmo instante em que comia,
defecava.
Recentemente Descola (1998:38) afirmou achar difícil falarmos em uma "moral
amazônica" nos mesmos termos em que falamos de uma "moral judaico-cristã" e
destacou que parece haver apenas dois princípios incontestáveis na região: a
condenação da avareza e o controle de si. Entre os Katukina, não há dúvidas de que
ambos são absolutamente reconhecíveis. O controle de si é facilmente identificável,
basta lembrarmo-nos do comportamento comedido e moderado que deve orientar o trato
entre as pessoas, evitando em situações críticas sucumbir à raiva que leva ao
descontrole. De todo modo, quero chamar a atenção aqui particularmente para o
primeiro. Com exceção da condenação da avareza, os demais comportamentos entre os
vivos não têm qualquer repercussão celestial, não se prevêem castigos divinos ou coisas
assim.24 O fato de justamente a avareza ser o único comportamento passível de
interditar o acesso ao céu revela o quanto sua condenação deve orientar as relações
terrenas.
24
Diferentemente, portanto, dos Marubo, que têm o acesso ao céu interditado devido a vários preceitos
morais: adultérios, roubos, casamentos incestuosos, preguiça e gula (Montagner Melatti 1988:152 e ss).
109
25
O padre Tastevin, no artigo de 1924 ao qual já fiz referência na nota 20, comenta rapidamente de um
habitante do céu, que ele grafou como Tyuvu, que cozinha os mortos num grande caldeirão e alimenta-se
de seus ossos. Em um outro artigo, Tastevin (1926) menciona que um velho kaxinawa lhe contou que
subiu ao céu e viu lá o Inka, como se fosse um esqueleto vivo, comendo o coração de um homem. O
próprio Tastevin relaciona o Tyuvu dos Katukina com o Inka dos Kaxinawa, destacando que ambos se
alimentam de corpos defuntos. Contemporaneamente, McCallum (1996: 62) também menciona que "a
alma pode ser devorada por espíritos-monstros".
A idéia dos Katukina de que o wero yushin é jogado num caldeirão de água fervente, tem seu
contraponto no banho da imortalidade (com ou sem fogo) registrado entre tantos grupos Tupi-Guarani
(Viveiros de Castro 1986:420-421). Contudo, entre os Katukina não se trata de um "banho mágico", mas
de um cozimento literal, da elaboração culinária do wero yushin, que acaba por ser canibalizado
celestialmente e por perder em definitivo a chance de alcançar a vida eterna. Se nos grupos Tupi a
canibalização celeste é garantia de imortalidade, para os Katukina é justamente o contrário, é a perda
dela.
26
Igualmente, para os Marubo as crianças de até três anos são incapazes de chegar ao céu. Segundo
Montagner Melatti (1985:110 e 112) os berõ yochibo de crianças ficam nas coxas de suas mães.
27
Os dois demiurgos não exercem qualquer controle sobre a vida na terra, embora às vezes os Katukina
os traduzam como "Deus" e "Jesus Cristo". O mesmo não fazem os missionários da MNTB (talvez
tenham feito no passado, mas não tenho como assegurar isso). Nas pregações em língua Katukina que
presenciei na aldeia do rio Gregório, "Deus" e "Jesus Cristo" eram mencionados sempre em português.
O que não deixa de ser adequado, uma vez que no Cristianismo se postula uma relação de
consangüinidade com os deuses, não de afinidade. Seríamos todos, afinal, "filhos de Deus" não seus
"sobrinhos".
28
Carid (1999:146) comenta algo muito parecido a respeito do destino pós-morte entre os Yawanawa.
110
29
Townsley (1988:117) comenta o mesmo entre os Yaminawa.
111
preocupações terrenas. Os mortos mantêm-se apenas bebendo uma "água doce"30, com
o sabor parecido com o do abacaxi (kankan)31. O céu dos Katukina, como escreveu
Tastevin (1924:91), "não tem nada de atraente". A viagem final dos mortos acaba tendo
como destino a indiferenciação, o wero yushin de um falecido aporta numa sociedade
estéril. Ali os mortos não caçam, não plantam, não casam, não têm filhos.32 Como se
pudéssemos repetir aos Katukina as mesmas palavras de Carneiro da Cunha (1978:145)
a respeito dos Krahô: "a sociedade dos mortos é sociedade morta".
A esterilidade da vida celeste traz de volta o tema da polaridade doce/amargo e
parece-me razoável postular que a preguiça, tão desprezada na vida terrena, orienta a
vida celeste. No céu nada se produz, não há casamentos, nem filhos. Os Katukina não
comentaram que os mortos são preguiçosos, mas não me parece imprudente conceber o
céu como o reino da doçura e daí à preguiça, como vimos no capítulo anterior, o
caminho é curto. Os mortos nutrem-se no céu bebendo apenas a água doce, o suco do
abacaxi, falta o amargor para contrabalançar. Como se o amargor e a masculinidade da
vida terrena cedessem definitivamente lugar à doçura e à feminilidade da vida celeste.
De mais a mais, a esterilidade celeste não deve surpreender se pensarmos que os vários
compartimentos do céu reúnem apenas os consangüíneos.
Em seu mito de origem os Katukina contam que todos os nawa (povos de língua
pano) surgiram num mesmo lugar e, após atravessarem um rio muito largo sobre o
dorso de um jacaré gigante, dispersaram-se cada qual para um lado. No céu é mantida a
divisão primordial: os mortos de todos os povos vão para o céu e lá têm suas casas
separadas umas das outras. As pontes conduzem a distintas moradias e os mortos vivem
no céu entre consangüíneos. A constituição celeste de um reino pan-pano, identificada
em outros grupos (apud Erikson 1993b:49), não se faz presente aqui.
30
Em tempos prístinos, de acordo com Mani, toda a água da terra era adocicada. Deixou de ser após o
demiurgo Koka Notowani, ver uma criança engasgar ao beber água, quando então a transformou em um
líquido insípido.
31
O mesmo ocorre com os mortos yaminawa que, segundo Townsley (1988:120), têm o abacaxi como
seu alimento predileto.
32
Uma concepção do céu bastante negativa é também encontrada entre os Yaminawa estudados por
Townsley. Segundo o autor (1988:119), no céu dos Yaminawa não há sequer linguagem humana. Essa
negatividade do céu, seja dos Katukina ou dos Yaminawa, tem seu contraponto entre os Kaxinawa
(McCallum 1996:49; Lagrou 1998:281) e os Yawanawa (Carid 1999:140-149 e Pérez 1999:128) que o
concebem como um lugar em que há muitas festas.
112
tarde indicam desacordos entre os moradores do céu. Certa vez olhava para nuvens
desse tipo e meu anfitrião disse "wero yushin shina tae", "os espíritos do olho estão
raivosos". O tom avermelhado indica que os wero yushinvo estão em guerra, as nuvens
ficam manchadas de sangue.
Embora reserve a possibilidade de alcançar postumamente a vida eterna tão
desejada, o céu não goza de muito prestígio. Um breve episódio pode esclarecer esse
ponto. Certa feita, Maya acabara de chegar da aldeia do rio Gregório e parecia
impressionada pela pregação dos missionários a respeito do fim do mundo na virada do
milênio. O fim do mundo, na versão que divulgava, representaria o fim de todos os
homens, índios e brancos. A "salvação", aqui compreendida como um lugar reservado
no céu, só aconteceria àqueles que se convertessem ao protestantismo pregado pelos
missionários. As pessoas que a ouviam prestavam muita atenção, mas pareciam
incrédulas. Entre todos, Mani resolveu contestar e disse que os brancos podem bem ir de
barco para o céu (ver nota 23), mas se o mundo acabasse, não haveria a menor diferença
ser branco ou índio, afinal, o céu não reserva aos mortos o melhor dos mundos e, no fim
das contas, todos restam apenas bebendo a "água doce". A concepção do céu como um
paraíso reservado aos convertidos, àqueles que se "salvaram", não repercute
positivamente aqui.
A despeito das agruras do dia-a-dia e da finitude incontornável, a boa vida é a
terrena. Não fosse e os mortos não sentiriam saudades. Após a morte, o mais próximo
que existe da vida terrena não é a vida celeste, mas a aquática. Nas profundezas das
águas os mortos reproduzem a mesma vida que na terra, acompanhados dos hene
yushinvo, "espíritos da água". Contrastando a vida no céu, na terra e na água, Mani
comentou sobre o destino pós-morte: "No caminho do céu tem ponte de muito perigo,
tem nakash (cupim), tem txoro (o sapo gigante). Debaixo d'água é como na terra, é
bonito. Debaixo d'água é como na terra, não tem tristeza". No mundo aquático,
idealizado a partir do mundo terreno, o wero yushin não sente saudades dos parentes
que deixou e, então, sequer precisa que algum demiurgo retire seu coração para moldar-
lhe um novo corpo.
O desvio do wero yushin para o mundo aquático é um evento contingente. O
canto noturno de um pássaro chamado txontxon shene33 anuncia a proximidade da
33
Apenas o canto noturno do txontxon shene é indicativo de morte, o canto diurno desse pássaro não
comunica nenhum presságio. Entre os Kaxinawa, txutxun é o rouxinol (Icterus icterus), cf. Aquino e
Cataiano (no prelo).
113
morte, mas apenas daqueles que têm o wero yushin conduzido para as profundezas das
águas. Nenhum atributo distintivo, nenhum motivo especial, nada me foi apontado para
explicar as razões que justificassem que, dentre os mortos, apenas uns poucos pudessem
ser "premiados" com a vida aquática pós-morte. Soube diretamente que vão para
debaixo d'água apenas aqueles que tiveram a morte anunciada por txontxon shene.
Entretanto, por razões que serão expostas abaixo, suspeito que esse destino talvez possa
ser menos aleatório.
Os Katukina são bem-humorados, sempre fizeram brincadeiras comigo sobre os
temas que eu já dominava e permitiam também que eu as fizesse. Um dia ouvi uma
mulher censurando seu marido, um rezador, por ter negado algo a uma terceira pessoa,
acusava-o de sovinice. O tom da acusação não era grave e parecia-me mais que a
mulher estava tentando fazê-lo mudar de idéia. Resolvi fazer uma brincadeira ao
rezador acusado e disse que, após sua morte, os cupins lhe cobririam o corpo a caminho
do céu – um eufemismo que, outras vezes, tinha sido usado contra mim mesma. Meu
interlocutor riu, em seguida respondeu-me: "meu caminho é outro". Quis continuar a
conversa, mas não obtive sucesso nem naquele dia nem em outros. Isso era coisa sobre a
qual não se deveria falar, ele justificava-se para interromper minhas tentativas.
Não tenho efetivamente como assegurar minha suspeita, mas se a vida aquática é
reservada a poucos, parece-me que seus habitantes são prioritariamente os especialistas
em assuntos xamânicos, os próprios xamãs e os rezadores. Como veremos no próximo
capítulo, os especialistas xamânicos são homens eleitos a partir de um contato
sobrenatural com grandes serpentes, moradoras das profundezas das águas, que lhes
revelam os conhecimentos acerca do mundo sobrenatural. A relação estabelecida entre
os eleitos e o espírito da serpente (rono yushin) é descrita como de conjugalidade e o
próprio espírito da serpente é descrito como uma mulher sedutora. Além disso, ouvi
algumas vezes que os xamãs e rezadores podem transformar-se em cobras após a morte.
A existência de um mundo subaquático paralelo ao terreno e as uniões dos
xamãs com mulheres-espíritos são recorrentes na literatura pano. Algumas vezes os dois
temas aparecem juntos; outras vezes, separados. Um mito relatado, com pequenas
variações, entre os Sharanawa (Siskind 1973:138-140), os Yaminawa (Calávia
1995:XL-XLI) e os Kaxinawa (Tastevin 1926; Lagrou 1998:132 e Deshayes 2000:182-
185) fala justamente de um homem que abandonou sua família para acompanhar uma
belíssima mulher-serpente que o atraiu para debaixo d'água, um lugar de muita beleza.
Nos três grupos, essa viagem ao mundo subaquático explica a origem do conhecimento
114
do ayahuasca. Um outro mito dos Yaminawa conta como nas profundezas das águas
eles conseguiram, por intermédio das grandes cobras d’água, além da ayahuasca, outros
bens apreciados, como o ferro e as mercadorias (Calavia 1995:XIII). Na etnografia
sobre os Sharanawa, Siskind (1973: 133) registrou que sob o efeito do ayahuasca os
homens vêem lindas mulheres e destacou que o desejo sexual se faz presente nas
alucinações. Na concepção kaxinawa, segundo Lagrou (1998:132) o mundo aquático é
"paralelo ao mundo terreno" e a anaconda é capaz de metamorfosear-se em gente e
capturar pessoas para sua morada.34.Consta ainda que os xamãs kaxi podem se
transformar em cobras após a morte (McCallum 1996:60). Mais recentemente,
Deshayes (2000:182) escreveu: "Os Huni Kuin pensam que certos feiticeiros têm a
capacidade de se mover no fundo d'água. Instilando certas substâncias em seus olhos e
em suas articulações, eles podem viver dentro d'água como os peixes".
Entre os Shipibo-Conibo, Saladin d'Anglure e Morin (1998:60) escreveram a
respeito do "casamento místico" entre os xamãs (meraya) e mulheres-espíritos,
moradoras das profundezas das águas. Um meraya assim descreveu o mundo aquático
aos autores: "Lá embaixo é exatamente como em nosso mundo, é como se eu tivesse
uma segunda família, na qual eu sou esposo, cunhado, genro…". O mesmo tipo de
união mística foi anotada rapidamente por Montagner Melatti (1985:409-410), que
soube de um xamã marubo que chegou a ter um filho com sua "esposa" e que foi reunir-
se à sua "família espiritual" após ter morrido. Entretanto, não localizou espacialmente
onde se deu essa reunião. Noutra passagem (op. cit.: 488), a autora escreveu que os
xamãs chegam ao céu sem passar pelo caminho do perigo, mas não detalhou se é ali que
encontra seus parentes místicos.
Estes exemplos, recolhidos de grupos que têm diferentes graus de contato entre
si, permitem mostrar como os temas do mundo subaquático e do "casamento místico"
estão espalhados no conjunto da família lingüística e recebem diferentes elaborações.
Uns, que elaboram com mais vagar o tema do mundo subaquático, como os Kaxinawa e
34
A possibilidade de seres metafísicos abduzirem pessoas para debaixo d'água foi mencionada também
entre os Yawanawa. Segundo Pérez (1999:138) sonhos de afogamento anunciam a morte. Precisamente
a morte de alguém pelos waka yushin ou ene yushin (espíritos da água/cursos d'água). As crianças são as
maiores vítimas desses raptos. Entretanto, nos trabalhos sobre os Yawanawa (Perez 1999 e Carid 1999)
não há qualquer menção à existência de um mundo aquático ao qual pode se dirigir o espírito do olho de
um morto. Do mesmo modo como não há também nos trabalhos sobre os Kaxinawa –- pelo menos não
entre os contemporâneos (Kensinger 1995a; McCallum 1989 e 1996, Lagrou 1998). Os Katukina, que
explicitamente me indicaram essa alternativa, falam poucas vezes em abduções por seres metafísicos. O
caso de desaparecimento de uma criança no rio Gregório, supostamente engolida por uma cobra, não
remeteu diretamente ao tema e, infelizmente, quando me foi relatado, não me ocorreu perguntar.
115
Yaminawa, nada dizem sobre as uniões de xamãs com mulheres-espíritos. Outro, como
é o caso dos Marubo, admite a possibilidade dos xamãs efetivarem a união carnal e
mesmo a reprodução com essas "esposas", mas não fala da reunião póstuma do xamã
com sua família no mundo subaquático. A terceira possibilidade, encontrada entre os
Shipibo-Conibo – a mais assemelhada às concepções katukina –, concilia os dois temas,
mas não é possível saber com segurança se os xamãs após a morte reúnem-se às suas
"famílias místicas" na profundeza das águas. O exercício comparativo baseia-se em
simples analogias; contudo, permite tornar menos especulativa a suspeita de que a
viagem final dos xamãs e rezadores, ao menos entre os Katukina, deva ser em direção
ao mundo aquático, confirmando postumamente a relação com seus moradores.
Desafortunadamente faltaram-me informações, mas se a profundeza das águas é
a morada dos xamãs e rezadores mortos, que se transformam mesmo em grandes cobras,
não seria o caso de perguntar – como fez Langdon (1992) escrevendo sobre os Siona –
se eles morrem realmente?
Ex-endocanibais?
próprios Katukina destacam esse detalhe, mas, por fim, acabam por ser devorados na
terra.
Coincidentemente, os dois sonhos resumidos acima são de pessoas que têm
versões opostas sobre o endocanibalismo, uma afirma e a outra nega. Para evitar que
adiante alguns juízos, vejamos logo o que dizem aqueles que o afirmam, em seguida
aqueles que o negam.
Entre as pessoas que admitem a prática endocanibal, a cerimônia funerária é
descrita sumariamente e repete o que foi registrado a respeito de outros grupos pano.
Consumada a morte, o defunto era pranteado por todos, em seguida depositado em um
grande camburão, com os pés amarrados ao pescoço, e cozido por aproximadamente um
dia. Findo o cozimento, os ossos eram triturados e misturados com mingau de banana e
consumidos. Nada me foi dito sobre o que era feito do caldo e da carne do defunto.
A versão que nega o endocanibalismo é um pouco mais detalhada. Em comum
com a versão anterior tem a negativa do sepultamento, uma prática que teria sido
adotada apenas a partir do contato com os brancos. Nesta versão, a consumação da
morte fazia-se acompanhar da construção de uma grande fogueira, sobre um buraco
cavado na terra, em que o corpo era queimado. Para sua cremação o corpo era
preparado: cortavam-lhe as mãos e os pés e retiravam todas as vísceras. Ao final, tudo
era queimado, com exceção do fígado (taka) que deveria ser enterrado, para evitar o
cheiro forte que emanaria caso fosse disposto no fogo. Entretanto, esse detalhe apenas
impedia que o cheiro fosse mais forte do que já era realmente e que causava o abandono
do local de moradia. Caso respirassem aquele cheiro, todos adoeceriam. Enquanto ardia
na pira funerária, o defunto era acompanhado apenas de duas ou três pessoas que o
manipulavam com grandes varas para acelerar sua combustão, as demais dispersavam-
se na mata. Embora não tenham sido indicadas quais eram as pessoas que permaneciam
junto ao morto nem qual o parentesco que as relacionavam, deveriam estimá-lo, caso
contrário seu corpo não se consumia nas chamas. O corpo deveria ser queimado até que
dele não restasse mais nada, quando então era abandonado completamente por aqueles
que ali permaneceram.
Fosse o defunto apenas incinerado ou incinerado e consumido por seus parentes,
ambos os tratamentos são "anti-putrefação" (Chaumeil 1997:87). Por certo isso ajuda a
explicar o simbolismo dos dois sonhos expostos antes, que associam a sepultura ao fogo
e ao cozimento, como que dissimulando o processo de putrefação inevitável nos dias de
hoje.
117
À primeira vista as duas versões não negam parte da análise de Erikson (1986)
de que o endocanibalismo pano seria, na verdade, um contra-exocanibalismo, uma
medida para evitar que os defuntos fossem comidos por outros. Sem comê-los, a mesma
interpretação mantém-se apropriada.
A interpretação de Erikson (1986) do endocanibalismo pano como medida
defensiva sustenta-se, entre outras coisas, na acusação de vários grupos pano de que
grupos indígenas vizinhos seriam canibais, algo que é afirmado explicitamente pelos
Sharanawa estudados por Siskind (1973:155). Em outro trabalho (Lima 1994a:120-121)
interpretei dessa maneira a repetitiva afirmação dos Katukina de que, no passado,
vizinhos seus seriam canibais. Entretanto, essa afirmação, tem de ser matizada, o que
não fiz anteriormente, pois não é uma acusação de exocanibalismo, mas de
endocanibalismo! A acusação, dirigida a grupos supostamente localizados nos rios
Jordão e Tarauacá, é caricatural e sempre se destaca a perspectiva da antropofagia
alimentar, tanto assim que se reforça a idéia de que comem a carne e não os ossos dos
mortos. Como se pode perceber no breve diálogo em que três pessoas me falaram do
assunto:
(…)
Mampo: Quando uma pessoa tá com febre, já mata pra comer…Xarapim [neta
homônima de Mampo] tá com febre… mata logo.
Mame: Pega alguma doença, aí come que é pra não deixar emagrecer.
Eu: Não pode ficar magro não?
Retxa: Não, eles não gostam…
casas comunais que usavam.35 Os antebraços e as pernas eram cozidos, para que se
separasse facilmente a carne dos ossos, com os quais fabricavam flautas e pontas de
flechas que, segundo consta, tinham um "poder mágico extraordinário" (Frank
1994:147). Entre os próprios Katukina o tratamento dado aos defuntos na segunda
versão das práticas funerárias no passado, pode ser relacionado àquele dado à caça,
sobretudo às maiores. Porcos, queixadas e veados, antes de serem partidos, têm suas
patas amputadas e as vísceras retiradas. Entre os Yawanawa, a amputação dos braços e
pés é o tratamento dado a um personagem mítico que foi capturado, morto e devorado
pelos "espíritos da terra", maiyushinvo.36 Em todos esses exemplos, os corpos
parcialmente esquartejados, sejam de inimigos ou de caça, são sempre de "outros".
A divergência das versões sobre as práticas funerárias entre os Katukina no
passado – que deixo como parte inconclusa dada a impossibilidade de saber se eram
excludentes ou coexistentes – talvez apenas esteja trazendo à tona uma questão mais
complicada, que diz respeito ao estatuto dos mortos no mundo dos vivos (Carneiro da
Cunha 1978). As análises disponíveis até agora têm destacado que o rito endocanibal
entre os grupos pano não seria uma forma de opor vivos e mortos, em alguns casos
pretende-se mesmo que os mortos não são perigosos (Erikson 1986) e que o
endocanibalismo seria, na verdade, um ato de amor e compaixão (McCallum 1996:70).
Se esse bem pode ser o caso dos Matis e dos Kaxinawa, tenho minhas dúvidas no que
diz respeito aos Katukina.
Ainda que decidíssemos tomar a segundo versão do rito funerário, que fala
apenas em cremação do defunto, como fantasiosa, como interpretar os detalhes acerca
do esquartejamento parcial do corpo, do mesmo modo como inicialmente se prepara a
caça? Mesmo que se queira tomar esses detalhes como fictícios, por que representar os
mortos dessa maneira? Vivos e mortos opõem-se na concepção dos Katukina mais do
que parece ser o caso entre outros grupos pano. Fossem os Katukina endocanibais ou
não, hoje os objetos pessoais do morto continuam sendo destruídos e podem provocar a
mudança dos locais de moradia, devido ao medo que os espíritos dos mortos suscita. O
35
Observo que a incerteza sobre os ritos funerários dos Katukina no passado vêm desde os escritos de
Tastevin. Em um artigo de 1928, o missionário francês conta que ouviu de um Katukina no rio Acurauá
que eles guerreavam com os Kulina e os comiam em cerimônias grandiosas que duravam vários dias.
Os inimigos tinham suas cabeças "separadas do tronco e colocados sobre lanças como troféus" (:212).
Contudo, o próprio Tastevin pondera que ignora "o que há de verdadeiro nesta história".
36
Agradeço a Laura Pérez (comunicação pessoal), que pesquisou entre os Yawanawa, essa informação.
Os Katukina têm uma versão muito parecida deste mito (ver no quinto capítulo), mas dela não consta o
tratamento culinário dado ao personagem morto.
120
medo dos espíritos dos mortos está longe de ser exclusividade dos Katukina. Entre os
Kaxinawa, McCallum (1996:60) informa que os moradores de um aldeia recém-
fundada, que não dispõe ainda de cemitério, preferem viajar e enterrar o morto em outra
localidade a inaugurar um novo cemitério. Se não fossem perigosos não seriam
necessárias tantas precauções. Para afirmar que os espíritos do mortos não são temidos
entre os Matis, Erikson (1986: 199) contou de um jovem que identificou, sem receios,
um barulho como sendo de um espírito, que estaria no local apenas verificando a
exatidão de suas palavras. Os Katukina também fazem chacotas corriqueiramente, riem
e dizem com um certo deboche que os yushinvo rondam o lugar; mas nas situações em
que há mesmo um morto envolvido, o tom e a postura mudam solenemente. Lembro-me
de uma noite em que a cunhada de Mani pediu para que parássemos de conversar sobre
os espíritos dos mortos, sob pena de atraí-los.
Há dois aspectos a serem ainda discutidos, que dizem respeito à morfologia
social e ao destino pós-morte. No que diz respeito ao primeiro, Erikson chama a atenção
para o sistema de parentesco a fim de reforçar sua tese de que vivos não se opõem
radicalmente entre os "grupos pano". Cito-o integralmente:
"(…) há uma diferença muito marcada entre os Pano e outros grupos amazônicos, que
se pode talvez atribuir à sua estrutura social quase-linhageira (pseudo-kariera). Qualquer
que seja, o morto não é comido porque é inimigo, como é o caso entre os Guayaki (H.
Clastres 1968). É exatamente o contrário: se se come o morto é precisamente porque ele
não é um inimigo, mas pode vir a ser caso não seja reciclado (como será igualmente o
nome…)" (1986:200).
37
Como ocorre também entre os Uni (Frank 1994: 182-184) e os Shipibo-Conibo (Kensinger 1995a: 171
e 174)
38
Não excluo a possibilidade de que esse perfil kariera tenha existido no passado, uma vez que há
"vestígios" dele. Assim, nos casos em que a transmissão onomástica se faz paralela e alternadamente, o
pai ou a mãe, aquele que escolheu o nome do pai ao filho ou da mãe à filha, chama seu (sua) filho(a)
pelo mesmo termo de parentesco que reserva a seu pai ou a mãe. Entretanto, a transmissão onomástica
repercute no sistema de parentesco apenas nestes casos. Quando a transmissão onomástica se faz entre
gerações adjacentes e cruzadas não há qualquer eco no sistema terminológico (Lima 1994a e 1997).
39
Cabe dizer a idéia de "reciclagem dos mortos" foi apresentada por Erikson apenas neste artigo de 1986,
o primeiro que escreveu após ter feito pesquisa de campo entre os Matis. Em artigos posteriores, o autor
não retornou ao tema. De todo modo, dialogo com essa idéia aqui pelo fato de que o artigo de 1986
marcou a etnologia sul-americana por defender a tese de que vivos e mortos não se opõem radicalmente
entre os grupos pano. E, em razão dessa tese, tem sido citado em alguns trabalhos sobre a morte nas
sociedades indígenas sul-americanas (Chaumeil 1992 e 1997).
40
Para um comentário crítico ao artigo de McCallum (1996), ver Vilaça (1998).
122
41
Esse mesmo efeito "amnésico" é destacado pelos próprios Marubo (Montagner Melatti 1985-85-86)
para justificar o endocanibalismo, como ocorre também entre os Kaxinawa (Kensinger, 1995:234) e os
Amahuaca (Dole 1974).
42
As análises de Cecília McCallum (1996) e Elsje Lagrou (1998) sobre a morte divergem particularmente
neste aspecto, mas não devo me estender em comparações sobre as análises a respeito dos Kaxinawa.
43
Observo que o beija-flor é chamado pelos Katukina de pino e compõe o nome de um dos demiurgos
que recepciona os mortos no céu, Koka Pino Txari. No apêndice de mitos no final de sua dissertação de
mestrado, Carid (1999: 195-197) oferece duas versões sobre o yama vai (caminho dos mortos) dos
Yawanawa e na primeira delas consta que é após ter a tatuagem fixada em seu rosto por Txapa (um
bufão que recepciona os mortos no céu) que o morto esquece os parentes na terra – reaparece então o
efeito "amnésico" da troca de pele que comentei na nota um pouco acima. Destaco esta versão aqui para
chamar a atenção para o jenipapo com o qual é feita a tatuagem. Tanto entre os Katukina quanto entre os
Marubo (Montagner Melatti 1985) o jenipapo foi oferecido em tempos remotos como meio de obterem a
vida eterna, que eles, entretanto, recusaram (cf nota 1).
123
Como deve estar claro, a leitura que faço das concepções sobre a morte entre os
Katukina evoca, além do tema da afinidade potencial, diretamente a teoria do
perspectivismo ou multinaturalismo proposta por Viveiros de Castro (1996a), numa
continuidade de suas reflexões sobre a corporalidade ameríndia. Sem querer me
estender em detalhes, no perspectivismo certos seres da natureza – espíritos, animais,
124
outra como se apresente. O yora vaka de um morto é como um fantasma, mas não é
concebido como um ser incorpóreo. Por outro, e que me parece mais importante, temos
a revivificação do espírito do olho (wero yushin), marcada pela modelação de um novo
corpo, cancelando a sua subjetividade, os seus afetos terrenos.
Para finalizar, é necessário dizer que um dos demiurgos mencionados na
recepção do céu, Koka Pino Txari, que assopra o coração do wero yushin de um
falecido, modelando seu novo corpo, é o mesmo que, em tempos primordiais, já havia
transformado os homens em animais, instaurando uma primeira descontinuidade –
retomarei esse tema no quinto capítulo. De tudo o que foi exposto até aqui, é claro que a
construção dos corpos depende de processos socio-fisiológicos que envolvem a
moderação da voz, dos gestos e da alimentação, entre outras coisas. Mas, se alguma
liberdade interpretativa for permitida, talvez seja o caso de pensarmos o demiurgo como
um gestor de transformações corporais, um "estilista cósmico"44, sempre envolvido com
a aparência externa dos corpos, mas sem alterar significativamente a sua essência que
persiste plenamente humana.
44
De um modo mais literal, Kako preferiu associar, no contexto da morte, Koka Pino Txari ao "médico-
cirurgião", dado que ambos "fazem operações" para restituir a vida.
126
CAPÍTULO 4
Quem tem a palavra: o xamanismo Katukina
1
Esta pluralidade de termos para designar os especialistas xamânicos não é exclusividade dos Katukina,
ocorre também entre os Yawanawa, vizinhos seus no rio Gregório, os Kaxinawa e os Shipibo-Conibo.
Segundo Pérez (1999:38), os Yawanawa designam os especialistas xamânicos como xinaya, shuintia,
tsimuya, niipuya, yuvehu e kushuintia, além do romeya, emprestado dos Katukina. Na tentativa de
esclarecer cada um deles, a autora vincula-os a determinadas técnicas: "o xinaya e o shuintia com o
shuanka (reza); o yuve com o meka (canto); o kushuintia com o kushuaka (assopro); o niipuya com os
rau (folhas do mato)". E continua com uma importante observação: "mas não é estranho constatar que
um especialista determinado conheça vários ou todos estes métodos e os utilize, de forma que adune em
si quase todas as possibilidades de denominações existentes". Entre os Kaxinawa, conforme Lagrou
127
(1998) há o huni dauya (especialistas em remédios doces), o huni mukaya (especialista em remédios
amargos) e o yuxian (mediador entre homens e espíritos). Entre os Shipibo-Conibo, Saladin d'Anglure e
Morin (1998:50), falam da existência do onánya (xamã, que recebe assistência dos espíritos das plantas,
em particular do tabaco e da ayahuasca), do meraya (grande xamã, que conta com o auxílio de espíritos
superiores e viajam por outros mundos) e do yobé ("que controla a técnica de dardos mágicos com vistas
a fins ofensivos ou defensivos).
2
Daqui em diante farei uso apenas de shoitiya para referir-me aos rezadores, esse é o termo usado com
mais freqüência pelos próprios Katukina.
128
O xamanismo dual
A falta de xamãs nos dias de hoje deixou descobertas algumas assistências que
somente eles podem realizar. Mas antes que me adiante em informações, vejamos como
se diferenciam os dois especialistas.
Primeiramente, xamãs e rezadores diferenciam-se no tipo de assistência que
podem (e mesmo devem) oferecer: coletivas, no primeiro caso; individuais, no segundo
– embora o xamã possa também realizar consultas individuais, mas não o contrário. No
que diz respeito à assistência coletiva, os xamãs poderosos podem com seus cantos
atrair a caça para a aldeia: queixadas, porcos e macacos – atraídos com canções
específicas para cada espécie. Saber os cantos que atraem os animais, entretanto, não faz
de um homem um xamã. Um dos rezadores katukina conhecia e permitiu que eu
gravasse dois desses cantos, um para atrair queixadas e outro para macacos. Mas o fato
dele conhecê-los e poder entoá-los não tinha qualquer relação com a eficácia deles, pois
apesar dele saber a letra e a entonação corretas – que aprendeu apenas ouvindo o
falecido xamã – , desconhecia os segredos específicos da comunicação dos xamãs com
os animais.4 E, se é possível expressar-se assim, os animais não o ouviam.
Apenas os xamãs sabem curar e vingar feitiços, ainda que estes feitiços sejam
direcionados individualmente – entre os Katukina as acusações, quase sempre, são feitas
aos Yawanawa. No mais, fazendo uso do ayahuasca (oni), os poderes dos xamãs
permitem também viagens cósmicas, com seu corpo transmutado em bichos, nas quais
aprendem mais e mais acerca do mundo sobrenatural, ganhando poderes renovados que,
pretende-se, devem ser usados em benefício da coletividade.
Já no que diz respeito às assistências individuais, a diferença sempre salientada é
aquela das técnicas. Os xamãs, por sucção, podem extrair objetos patógenos que afligem
3
Essa idéia aplica-se melhor a grupos em que falta o especialista em assuntos xamânicos, como é o caso
dos Parakanã (Fausto 1997:303).
4
Já seus próprios cantos de cura, ele não permitiu que eu gravasse.
129
seus pacientes. Estes objetos são de vários tipos: vo’o shoko ("pedra-cabelo", numa
tradução literal e que são chumaços de cabelo), paka (ponta de lança feita de taboca) e
shao (pedaços de ossos) ou mesmo rome (traduzido como pedra, embora não se
confunda com shoko). Todos eles enviados por feitiço, que somente ele pode curar.5 Os
atributos dos rezadores, como eles próprios salientam, são bem mais modestos.
Aos rezadores cabe o tratamento individual de todos os distúrbios fisiológicos,
exceto aqueles causados por feitiço. Estes distúrbios fisiológicos incluem gripe, corisa,
dores no corpo, dores de cabeça, febre, vômitos e diarréia. Várias pessoas doentes
consultam um rezador antes de se dirigirem ao agente de saúde da aldeia ou ao hospital
de Cruzeiro do Sul à procura de tratamento médico.6 Isto porque, embora os distúrbios
fisiológicos atormentem o corpo, eles podem ter suas causas originadas fora dele. Como
vimos nos capítulos anteriores, as causas mais freqüentemente apontadas são:
desrespeito a alguns dos tabus alimentares e a presença de espíritos de pessoas mortas
tentando atrair pessoas queridas para junto de si. Como há variação no grau de
conhecimento dos rezadores, não é indicado aos homens pouco instruídos no domínio
xamânico tratarem as causas do segundo tipo.
Há duas modalidades de cura. A primeira e mais freqüente consiste em cantos
mágicos durante a noite, intercalados com sopros e aspirações de rapé, sobre o corpo do
doente. Os cantos ou rezas (shoiti) atraem os espíritos que auxiliam na cura e, por isso,
toda a assistência deve ser feita durante a noite, pois durante o dia a movimentação das
pessoas dispersa a concentração do rezador, que não pode assim convocar os espíritos.
A realização das sessões de cura durante o dia ocorre apenas em situações excepcionais,
quando alguém está sob risco de vida iminente. Na segunda modalidade, o rezador
canta, durante toda a noite, sobre potes pequenos (shomo7) com caiçuma ou mesmo leite
5
O romeya katukina parece-me bastante assemelhado, sobretudo em sua dieta e em suas técnicas, ao
romeya dos Marubo (Montagner Melatti 1985:401 e ss) e ao mukaya dos Kaxinawa (Lagrou 1998:105-
112). Se os xamãs Katukina e Marubo são conhecidos por ter rome em seus corpos, os xamãs katukina
têm o muka, amargor, também materializado em objetos mágicos, como pedras e dardos.
6
Na aldeia do rio Gregório as coisas se passam de um modo um pouco diferente, provavelmente devido à
presença da MNTB. Nos quinze dias que estive na aldeia do rio Gregório não presenciei nenhuma
sessão de cura, embora saiba que são ainda realizadas. A rotina da MNTB prevê o atendimento diário à
saúde em dois horários. Se na aldeia do rio Campinas os rezadores são os primeiros a serem procurados
em casos de doenças, parece-me que no rio Gregório são os missionários. Os rezadores são requisitados
apenas nas situações em que os remédios não surtem o efeito esperado.
7
Como entre os Yawanawa (1999:120 n. 163), o shomo dos Katukina é um pote de cerâmica bojudo, de
aproximadamente 20 cm de altura, com o gargalo estreitado e sem decoração. São bem menores que os
chomo dos Shipibo-Conibo (Gerbhart-Sayer 1986; Illius 1994) que chegam a ter 80 cm de altura e 1 m
de diâmetro e são decorados com desenhos. Os shomo dos Katukina são mais parecidos com os chomo
dos Marubo – num artigo de Montagner Melatti (1977) consta a foto de um exemplar que tem 36 cm de
130
em pó, que ao raiar do dia é dado ao doente para beber. No caso de coceiras e
ferimentos ou dores em partes localizadas do corpo, a caiçuma previamente rezada é
esfregada sobre a pele da pessoa doente. O rezador não precisa entoar os cantos de cura
sobre o doente nem estar próximo dele.
A opção de rezar sobre o corpo do doente ou sobre os potes de caiçuma depende
também da gravidade da situação.8 Na primeira alternativa a reza surte efeito mais
rápido, o que justifica o fato de ser usada com mais freqüência, embora possa ser
preterida se ocasionar, por exemplo, o choro de uma criança numa situação que exige
pouca pressa. Há quem diga que escolher uma ou outra das opções é o mesmo que
escolher entre a injeção ou os comprimidos, sendo que a primeira, embora possa ser
incômoda, debela com maior rapidez o mal.
A rigor os xamãs podem praticar todas as modalidades de cura que os rezadores,
mas não o contrário: os rezadores não são capazes de extrair objetos patogênicos nem de
atrair os animais em viagens cósmicas.9
altura e 30 de diâmetro –, embora não tenham a base pontuda e sejam um pouco menores. No mesmo
artigo, a autora registrou também que há entre os Marubo o oni chomo, utilizados em sessões de
ayahuasca (oni), que é menor que o primeiro. Na última vez que estive em campo, em 1998, havia
poucos shomo em uso nas aldeias katukina, embora várias mulheres saibam ainda fabricá-los. Pouco a
pouco os shomo estão sendo substituídos (as panelas já foram há mais tempo) por pequenas moringas de
alumínio (que se assemelham à forma do shomo), encontradas com facilidade no comércio das cidades
da região.
8
De acordo com Pérez (1999:120-121), os Yawanawa também rezam sobre a caiçuma e sobre o corpo do
doente. Ainda que a autora não tenha presenciado a segunda forma, suspeita que é um recurso ao qual
recorrem apenas nos casos considerados mais graves.
9
A presença de dois especialistas xamânicos foi já identificada em outros grupos amazônicos. Até onde
sei, na família pano, os Marubo, também distinguem xamãs (romeya) e curadores/rezadores (quechitxó),
cf. Montagner Melatti (1985:252, 401). Segundo Calávia Saez (1995:106), os Yaminawa brasileiros
distinguem niumuã ("doutor") e koshuiti ("segundo doutor"). O autor afirma que há uma diferença de
grau entre eles e o niumuã teria maiores poderes dado sua habilidade para matar. Hugh-Jones (1996a)
estabeleceu um padrão para diferenciar os xamãs dos donos-de-canto entre os povos arawak e tukano do
alto rio Negro, tomando em consideração o treinamento, a cura, os atributos, as obrigações e o status
social. Entretanto, os dois especialistas xamânicos dos Katukina não se adequam bem à tipologia
estabelecida pelo autor. Assim, por exemplo, Hugh-Jones, na cura, localiza o xamã como alguém que
efetua os ritos de cura "fora de casa", sendo "fisicamente ativo" e "em contato direto com o paciente", ao
passo que os donos-de-canto permanecem "dentro de casa", são "fisicamente passivos e sem contato
com seus pacientes." Essa caracterização não se aplica aos xamãs e rezadores katukina. Como vimos
antes, os rezadores não mantêm contato com seus pacientes apenas em casos de dores e feridas em
partes localizadas do corpo. Na maior parte das vezes, entretanto, atuam diretamente sobre o paciente,
fora ou dentro de sua própria casa. Não é raro que um rezador passe longos dias fora de sua casa,
atendendo os doentes nos locais onde eles próprios moram. A respeito do status social, Hugh-Jones
caracteriza os xamãs como pessoas mais jovens, fisicamente ativas e temidas enquanto os donos-de-
cantos são mais velhos, fisicamente inativos e respeitados. Entre os Katukina, xamãs e rezadores são
pessoas mais velhas e respeitadas, embora isso não os livre de algum temor. Quando de sua morte, Tobi
era o mais velho entre todos os Katukina.
131
O sopro mágico
diferentes nawa: kulina e brancos, peruanos e brasileiros. Mais tarde, para corrigir o
erro, ele mascou um pequeno pedaço de cipó e assoprou em direção do nascente e então
se fez acompanhar de outros Katukina. (Lima 1994a:170-177 e André Katukina e Sena
1998:18-33)
No capítulo anterior foi descrito o mito de restituição da vida após a morte de
uma criança. A mãe dela chorava quando apareceu Koka Notowani, que a ressuscitou. A
mãe, assustada, chorou. O demiurgo, surpreendido assim com o choro da mulher vendo
a filha viva, pensou que a tivesse entristecido e resolveu ir para o céu restituir a vida
entre os wero yushinvo, espíritos do olho. A partir de então, o wero yushin de uma
pessoa morta, após vencer todos os obstáculos para chegar ao céu, é recebido por Koka
Notowani que assopra seu coração e faz com que o morto ganhe uma nova vida, um
novo corpo imperecível.
As grandes cobras, imortais por terem ficado com a pedra que garante a vida
eterna e que ocupam o papel principal na eleição de xamãs e rezadores, como veremos a
seguir, são conhecidas também por sopros fortes, verdadeiros estrondos, quando sobem
à superfície das águas.
Tornando-se um shoitiya
Inicio esta sessão com um excerto de meu próprio diário de campo, no dia 14 de
outubro de 1997, quando Mekon, um aprendiz de rezador, me relatou sua iniciação aos
segredos das rezas (shoiti). Após a exposição de seu próprio relato, aponto aspectos
significativos.
Mekon começou dizendo que há muito tempo seu avô (txaitxo) contava uma coisa que
ele não acreditava, mas depois que aconteceu com ele, ele passou a acreditar: o
encontro com a cobra grande. Mekon morava no igarapé da Burra, acima do Sete
Estrelas. Um dia pegou a canoa e foi caçar paca. A Mashi, sua segunda mulher (Mekon
tem duas mulheres), o acompanhava. Ele saiu viajando até chegar em um lago. Já
próximo do lago, ele viu rastro de capivara.
Tinha uma canarana alta no lago. Ele pegou uma vara para cutucar a canarana. No
meio da canarana tinha um buraco e ele pensou que uma capivara ou um jacaré
pudesse estar ali. Ele então cutucou o buraco: uma, duas, três vezes. Na última vez que
ele cutucou, a canarana subiu bem alto.
No mesmo instante o corpo dele ficou cheirando cobra, ele teve vontade de vomitar,
estava zonzo. A Mashi ficou olhando para ele. Ele não sabia o que estava sentindo.
Resolveu cutucar a canarana de novo e os olhos dele rodaram, ficou tudo escuro.
Não havia mais jeito de continuar a caçada. Ele sentia-se tão zonzo que a Mashi foi
quem varejou no caminho de volta. Quando chegou em casa, Mekon sentia que estava
bêbado, como se tivesse bebido cachaça.
133
Ele queria tomar banho e dormir. Mepe, sua primeira mulher, quando soube o que
aconteceu, mandou ele cheirar rapé (rome poto), para tornar-se rezador. Ele disse que
não queria, mas cedeu e tomou o rapé que ela ofereceu.
Quando Mekon dormiu, apareceu no sonho um homem. Este homem dizia que Mekon
tinha fugido dele, que não era uma cobra o que ele tinha visto:
— "Você teve medo. Se tivesse me cutucado bem forte eu daria um monte de coisas
boas para você, mas você só me triscou".
Ainda no sonho, Mekon explicava que não correu de medo, mas sim porque sentiu
coisas estranhas em seu corpo. O homem do sonho dizia novamente:
— "Era eu. Se você tivesse me cutucado com mais força você veria coisas boas, mas
você teve medo. Daqui uns dias você vai ser curador".
Então, no sonho, ele começou a aprender as rezas. De repente, um menino chorou e
ele acordou.
Mekon contou o sonho para a Mepe e a Mashi. Mepe disse:
— "Está vendo? Você vai ser rezador".
Passou um mês e o filho do sogro dele (ou seja, irmão da Mepe) adoeceu. A Mepe fez
caiçuma para ele rezar. Ele não queria, mas resolveu rezar para "experimentar". Ele
rezou como havia aprendido no sonho e a Mepe levou a caiçuma para o doente beber.
O menino tomou a caiçuma e logo dormiu. Quando acordou, o menino estava todo
suado, não tinha mais febre. Mekon havia curado o garoto. Perguntei se era o homem
do sonho que ensinava a reza. Ele disse que este homem lhe havia dado uma mulher
que o ensinava a rezar.
10
Diferentemente então dos Marubo. Segundo Montagner Melatti (1985:262), um contato sobrenatural é
necessário para que um homem se torne xamã, mas não para que se torne um rezador. Para este último
basta que receba um treinamento especial.
134
11
É digno de nota que essas sensações são parecidas com aquelas provocadas pela ingestão do ayahuasca.
135
12
Mas não só o desenho do couro dos boídeos são apreciados, também de algumas cobras peçonhentas.
Certa vez, eu e duas mulheres encontramos uma cobra (que parecia ser uma jararaca) no caminho. Mais
tarde, uma das mulheres (a que tinha matado a cobra) contou o acontecido para um homem e querendo
descrevê-la para que ele pudesse ajudar a identificá-la, dizia insistentemente: kene roapa kuin, i.e.,
"desenho verdadeiramente bonito".
13
Em outros grupos pano, há uma estreita associação entre beleza, conhecimento xamânico e visões.
Entre os Shipibo-Conibo (Gebhart-Sayer 1986) e os Kaxinawa (Lagrou 1996 e 1998), as belas visões
são expressas nos desenhos geométricos, pelas mulheres, que os elaboram a partir dos cantos dos xamãs.
Nos dias de hoje os Katukina parecem ter restringido as elaborações de suas visões aos cantos. De todo
modo, os desenhos geométricos talvez tenham existido em maior quantidade no passado, pois são ainda
encontrados nas peneiras, peças de cerâmica e nas pinturas corporais.
14
Montagner Melatti (1985:401) afirma que romeya, que é a designação marubo para xamã, está
relacionada a romeoá, flor de tabaco. Discordo da tradução sugerida pela autora por dois motivos: (i) ya
entre os Katukina e os Marubo (e entre vários grupos pano) é um atributivo e (ii) rome tem um
significado maior do que o tabaco propriamente dito.
136
15
Cabe destacar que, segundo Pérez (199:154 n.192), os Yawanawa fazem menção à quentura da pedra e,
por isso, chegam a chamá-la de "machado de fogo". Diferentemente então dos Katukina que sempre
destacavam a dureza quando falavam do rome. Na concepção dos Katukina os raios são pedras (shoko)
que caem do céu. Assim, o tema da quentura está de algum modo também presente. Há alguns anos atrás
um raio caiu nas proximidades de uma casa e seus moradores escavaram o local à procura de alguma
pedra.
16
Agradeço a Philippe Erikson por ter chamado minha atenção para esta hipótese.
17
Alguma contradição surge nas várias descrições sobre a eleição xamânica e há quem diga que para
adquirir os poderes da grande serpente, para possuir o rome, é necessário tocar a cobra com a ponta de
uma flecha ou um pedaço de pau ou ainda amarrar um pedaço de cipó no corpo dela.
137
18
Em vários grupos pano o sabor amargo aparece relacionado ao poder xamânico. Entre os Kaxinawa os
xamãs são chamados de huni mukaya ("homem que tem amargor") (Kensinger 1995a:213-218). Erikson
(1996:203 e ss) observou que a maior parte das substâncias usadas no contexto místico deixam um gosto
amargo na boca, como a ayahuasca e o tabaco. Entre os Matis a oposição bata (doce)/chimu (amargo)
excede o contexto xamânico e todos os homens evitam alimentos doces, enquanto procuram ingerir os
amargos.
19
A caracterização dos especialistas xamânicos como panema, remete à incompatibilidade entre os papéis
de xamã e caçador entre os Kaxinawa. Os antropólogos que estudaram este grupo destacam como o
papel de xamã exclui sumariamente aquele de chefia (Deshayes 1992; Lagrou 1998; Kensinger 1995a),
dado que o chefe é concebido como um hiper-caçador. Embora, genericamente, essa incompatibilidade
simbólica pareça adequada aos Katukina, há, na história do grupo, casos que a contradizem. No artigo
em que retirei a epígrafe deste capítulo, o xamã Mame a que Tastevin (1924) faz referências é descrito
também como o chefe, o responsável pela reunião de grupos pano abatidos pelo contato e que estavam
dispersos. Mais recentemente, na fundação da aldeia do rio Campinas, foi também um especialista
xamânico, um rezador, que conduziu as negociações com os militares que trabalhavam na construção da
rodovia a fim de ali poderem se estabelecer, assumindo em seguida o posto de chefe. Entre os
Yawanawa, o famoso Antônio Luiz também acumulou os papéis de chefe e rezador (xinaya), conforme
consta nos trabalhos de Carid (1999) e Pérez (1999). Para um recenseamento de vários casos de acúmulo
dos papéis de chefe e xamã entre grupos pano, inclusive entre os Kaxinawa, ver Carid (1999:76-82).
138
mal-estar físico. O kampo, do mesmo modo como os alimentos doces, podem dissipar o
rome.
A eleição ao xamanismo independe do desejo ou da aspiração dos indivíduos,
uma vez que o contato sobrenatural, nesta etapa, não é uma prerrogativa do desejo ou da
decisão voluntária do indivíduo. Após o encontro com a cobra, um homem passa a ter
sonhos de revelação, os segredos de cura são aprendidos. Os rezadores com os quais
pude discutir estes assuntos disseram-me que sonharam com um homem que lhes
oferecia ayahuasca ou rapé para consumirem juntos. Em seguida, este homem dava-lhes
uma mulher com a qual se uniam e que, desde então, sempre os acompanhava,
ensinando-lhes a identificar as doenças e suas respectivas curas. Alguns dos rezadores
identificam claramente Rono Yushin como uma "esposa". Mani, que reza há quase 30
anos, afirmou que Rono Yushin é muito bonita, deslumbrante, e ora se parece com sua
primeira mulher ora com sua mulher atual, embora não seja nem uma nem outra. O
homem que ofereceu a Mani a mulher que até hoje o acompanha, exaltou suas
qualidades, cobriu-a de elogios, para que ele a aceitasse. Entre outras coisas, segundo
Mani, esse homem teria dito que ela "foi criada com os brancos e sabe muitas coisas".
Uniões de especialistas xamânicas com mulheres-espíritos foram já registradas
na literatura pano. Recentemente Saladin d'Anglure e Morin (1998) escreveram um
artigo sobre o "casamento místico" entre xamãs e espíritos entre os Shipibo-Conibo.
Segundo os autores, uma parte significativa das abstinências que um xamã tem de
observar, particularmente a sexual, deve-se ao ciúmes da esposa onírica. Dessa união os
xamãs têm também filhos oníricos. Caso ocorra a separação entre o xamã e a mulher-
espírito, os filhos ainda o acompanham, auxiliando-o em suas atividades. Saladin
D'Anglure e Morin observaram que as "uniões místicas" entre xamãs e mulheres-
espíritos são pouco comuns na Amazônia, os registros existentes na literatura são mais
numerosos entre os siberianos20. Contudo, entre os Pano, há pelo menos um registro
20
Os autores citam os Chimane da Bolívia e dois grupos de língua harankbut do sudoeste peruano
(Saladin D'Anglure & Morin 1998:56). Sem pretender ser exaustiva, observo que se pode acrescentar a
estes grupos, os Wari', os Siona e os Campa. Entre os Wari', segundo Vilaça (1992:83 e 1999:248) a
iniciação xamânica é marcada pelo compromisso futuro de uma "união mística", uma vez que uma
menina é oferecida ao iniciando. A união carnal com a esposa onírica só se efetiva com a morte do
xamã. Caso ocorra antes, ele morre. Na Amazônia colombiana, o xamã siona, segundo Langdon
(1992:132), transforma-se em jaguar e visita suas famílias "no outro lado", onde "tem esposa e filhos
jaguares". Além destes grupos, cabe citar que numa região próxima dos Shipibo-Conibo, os Piro
identificam a "mãe da ayahuasca" como uma mulher bonita, que auxilia os xamãs na identificação e cura
das doenças. A abstinência de sexo que os xamãs têm de observar deve-se ao "ciúmes" da "mãe da
ayahuasca", mas Gow (1991:238) alertou que não a concebem como uma "esposa", como parece ocorrer
também entre os Campa do alto Tambo.
139
21
Noutro registro sobre um grupo pano aparece a figura feminina que inicia um homem ao
conhecimentos xamânicos, mas não é possível saber se se trata de uma "união mística". Carid
(1999:120) assim escreveu sobre os Yawanawa: "se ele [um homem] sonhar que um pajé lhe entrega um
objeto ou uma mulher belamente desenhada o agarra pela mão e ele não rejeita, significará que está
pronto para pôr em prática o que aprendeu".
140
22
Montagner Melatti (1985) fala que os xamãs marubo são iniciados após uma doença causada por
agentes sobrenaturais. Ela fornece uma pequena biografia dos xamãs que conheceu, e, entre eles, consta
que um se tornou xamã após ter visto uma sucuriju (:407) e outro após ser picado por uma surucucu
141
(:415). Entre os Sharanawa, Siskind também menciona o caso de um rapaz que recebeu os ensinamentos
para tornar-se xamã após ter sido picado por uma cobra (1973a:165)
23
Entre os Katukina a carreira xamânica se define então de duas formas: primeiramente pelo contato
sobrenatural e, posteriormente, pelo próprio interesse daquele que foi eleito pelos espíritos.
Diferentemente dos Yaminawa (Calávia 1995:107) e dos Yawanawa (Pérez 1999), entre os quais é
necessário exclusivamente dedicar-se voluntariamente ao aprendizado. Entre os Shipibo-Conibo consta
que uma carreira xamânica pode, entre outras formas, ser definida muito cedo, ainda no ventre materno
ou pouco tempo após o nascimento da criança. Na primeira alternativa trata-se de casos de mulheres
fecundadas por espíritos, em sonhos eróticos. Na segunda, um xamã elabora uma mistura de leite
materno com uma planta alucinógena e dá para a criança beber, preparando-a para exercer mais tarde a
prática xamânica (Saladin d'Anglure e Morin 1998:51).
142
cobra, que a esta altura já estava imóvel. Ele então pegou seu terçado e desferiu vários
golpes na cobra. Correu para sua casa alarmado, sem saber se a tinha matado. Lá
chegando, contou o acontecido a seu pai, que lhe explicou que a cobra deveria estar
atraindo-o para conhecer os segredos xamânicos. Se ele não quisesse, deveria desculpar-
se e fazer algum pedido (para que tivesse força para abrir roçados ou sorte na caça, por
exemplo), jamais deveria tê-la machucado. Na mesma noite, Kako sonhou que sofria
um acidente. Alguns dias se passaram e o acidente aconteceu. Sozinho pela mata,
caçando, Kako tropeçou na raiz de uma árvore, caiu desajeitadamente e a espingarda
detonou, acertando seu braço. Socorrido pelos missionários da MNTB, levado para a
cidade de Tarauacá, Kako teve o braço direito amputado. A cobra enviara-lhe o castigo.
O acidente de Kako constitui algo como uma "história exemplar". Foi-me
relatado espontaneamente por várias pessoas para dizer dos castigos que as cobras são
capazes de enviar àqueles que as agridem. Algumas especulavam se não teria sido o
xamã Tobi, morto havia pouco tempo, o responsável pela vingança.
Não há qualquer problema em recusar a carreira xamânica, em declinar o
chamado de rono yushin, mas aqueles que a atacam são punidos. Os Katukina não
matam jibóias (mana rono), sucuris e outras cobras de grande porte, pois acreditam que
se assim fizerem, terão de volta a vingança da cobra morta que lhes poderá causar a
morte ou deficiências físicas irreversíveis. Contrariamente, então, a outros grupos pano
– como os Sharanawa (Siskind 1973a:165-166), os Yaminawa (Townsley 1988:133 e
Calávia Saez 1995:107-108), os Kaxinawa (Lagrou 1998:76) e os Yawanawa (Pérez
1999) –, que para obter os poderes das grandes cobras, matam-nas e também comem
partes de seu corpo.24
Aqueles que aceitam de bom-grado o contato sobrenatural e desejam mesmo
seguir uma carreira de rezador (por razões que veremos adiante), devem aprofundar
seus conhecimentos seja solitariamente ou com a ajuda de rezadores mais experientes
ou ambas as formas ao mesmo tempo, como é mais comum. Se solitariamente, um
homem passa a consumir rapé todas as noites, a fim de estimular a ocorrência de sonhos
com Rono Yushin, o espírito da serpente, que o instrui sobre as doenças e os cantos de
24
De todo modo, mesmo em grupos nos quais é corrente a prática de matar a cobrar para obter seus
conhecimentos, sejam relacionados à caça sejam ao xamanismo, não está excluída a possibilidade de
vingança em algumas situações. Deshayes (1992:104 e 2000:33) relatou o caso de um homem que, à
beira de um lago, foi mordido várias vezes por uma anaconda, mas que conseguiu defender-se
golpeando-a com uma faca e matando-a. A anaconda é áglifa, não consegue inocular seu veneno. Apesar
143
disso o homem que a matou delirou toda a noite, sonhava que várias cobras o perseguiam a fim de
afogá-lo no lago.
25
Esta informação contradiz o que consta do trabalho de Pérez (1999:42) sobre o xamanismo yawanawa,
no qual consta que entre os Katukina um mestre transmite seu poder – materializado em pedras ou
dardos mágicos – ao iniciando. Os Katukina nunca mencionaram este fato. De todo modo, se pudermos
conceber Rono Yushin como mestre, é exatamente isso o que se passa. Neste caso, a transmissão do
poder do mestre ao iniciando não pode ser tomada literalmente.
26
O que contraria parcialmente o que já foi observado em outros grupos pano. Entre os Kaxinawa
(Kensinger 1995a), Yaminawa (Townsley 1988 e Calávia Saez 1995), Sharanawa (1973) e Yawanawa
(Pérez 1999), os xamãs recebem instruções de outros mais experientes. Segundo Montagner Melatti
(1985:416), é previsto que, entre os Marubo, após um contato sobrenatural, normalmente ocorrido num
período de doença, os homens recebam treinamento para tornar-se rezador. Contudo, a autora soube de
seis homens que atuaram como xamãs sem terem passado por qualquer período de aprendizagem. Entre
os Shipibo-Conibo, segundo Árevalo Valera (1986:152), há três alternativas para iniciar-se ao
xamanismo: por herança, por eleição dos espíritos e voluntariamente (com ou sem mestre).
144
Yaminawa (Calávia Saez 1995) e os Yawanawa (Pérez 1999). Pelas inúmeras conversas
que tive com os Katukina sobre o assunto, suspeito que as beberagens de cipó foram
maiores no passado, especialmente em um período em que havia cinco romeya em
atividade ao mesmo tempo, há mais de vinte anos atrás. De todo modo, o pouco uso do
ayahuasca não é exclusividade dos Katukina e na literatura pano consta mesmo que
certos grupos não o usavam. Este é o caso dos Uni que, de acordo com Frank
(1994:202), tradicionalmente não bebiam ayahuasca, passaram a fazê-lo há pouco
tempo, após alguns homens terem recebido treinamento xamânico com seus vizinhos, os
Shipibo-Conibo.
Por toda área pano, segundo Erikson (1993:48), o tabaco é mais usado como
alucinógeno xamânico do que o ayahuasca. Essa preferência pelo tabaco aplica-se
estritamente aos Katukina. Um dos rezadores, afirma que abandonou completamente o
uso do ayahuasca para entoar suas rezas. Mani, que usa exclusivamente o rapé nas
sessões de cura em que é convidado, reclama que sente a face anestesiada quando toma
cipó, o que torna difícil pronunciar as palavras corretamente após consumi-lo, pois "a
boca fica mole".27 Os rezadores são todos tabagistas contumazes e não agüentam muitas
horas sem rapé ou cigarro. Durante o dia não saem para lugar algum sem levar seus
apetrechos para suprir o desejo tabagista: papel, fumo de corda e uma pequena faca ou o
rapé e o inalador.28 Outros homens fumam também, mas a maior parte deles apenas
episodicamente. O rapé é mais usado do que o cigarro para estimular sonhos e visões e
também nos ritos de cura. De todo modo, é dito que a fumaça e o cheiro do cigarro
desagradam e espantam os yushinvo.
As mulheres, os filhos
27
Segundo Ruedas (1999) o rapé (romepoto) é associado ao espírito que ensinou os Marubo a falarem e
que controla a fala. Em todas as ocasiões em que a linguagem é importante, os Marubo cheiram rapé
para assegurar que poderão falar com eloqüência. Nesse sentido, destaco também que os dois homens
que visitaram os Marubo no rio Ituí disseram-me que lá o ayahuasca deve ser "mais fraco", dado que
não misturam ao cipó a folha conhecida como "chacrona". Ainda assim, ambos evitaram beber o
alucinógeno.
28
O inalador de rapé é como uma forquilha, feita com ossos de animais, como paca e macaco, e unidos na
ponta com resina de abelha. Abastecido de rapé o inalador, uma de suas pontas deve ser posta no nariz e
a outra na boca para que seja assoprada.
145
uma carreira como xamã ou rezador. Vimos dois casos, de dois jovens, de recusa à
carreira xamânica, com desfechos diferentes. Há, entretanto, aqueles que almejam uma
carreira xamânica e apontam razões claras para isso.
O temor de perder um parente – filhos e netos, principalmente – e o desejo de
"saber mais" ou tornar-se "sabido" (tanai kuin) são sempre apontados como motivações
primeiras para tornar-se rezador – com predominância da primeira. Mani lembra-se que
começou a rezar no ano em que nasceu sua filha, em 1969. Ele já tinha visto uma jibóia
(mana rono) morta na mata e vivendo em um seringal no rio Tauari, longe de seus
parentes, temeu que um dia precisasse de ajuda para tratar sua pequena filha – ele já
havia perdido um filho nestas circunstâncias – e não pudesse contar com ninguém. Mani
acabou decidindo iniciar-se nos conhecimentos mágicos das rezas (shoiti), pois se sua
filha adoecesse, poderia morrer, visto que não tinha ninguém – nem rezadores nem
médicos – nas proximidades para tratá-la. Decisão tomada, ele passa a cheirar rapé para
provocar sonhos que o pusessem em contato com Rono Yushin, o espírito da Serpente,
para que lhe ensinasse a reconhecer as doenças e aprender a tratá-las.
A decisão sobre o prosseguimento da carreira xamânica após o contato
sobrenatural pode não ser solitária, outras pessoas, em particular as mulheres, podem
intervir antes que a decisão final seja tomada. Como vimos, após Mekon ter encontrado
a "cobra grande" e voltado para sua casa atordoado, foi sua mulher quem sugeriu que
ele deveria ser um rezador e quem providenciou o rapé para que ele cheirasse antes de
dormir, tentando assim estimular seus sonhos. Foi ela também quem fez caiçuma para
ele rezar e, depois, levou-a para que o doente – seu próprio irmão – bebesse. Em suas
atitudes, Mepe indicava seu interesse e concordância com a futura carreira de rezador de
seu marido e, no relato de Mekon, podemos entender que seu estímulo foi mesmo
fundamental. E este não foi o único caso que pude saber. Do mesmo modo, Mani,
aquele que começou a rezar no mesmo ano em que nasceu sua filha, afirma que
conseguiu vencer a vergonha de rezar na frente das outras pessoas, quando estava
apenas aprendendo, devido ao incentivo de sua primeira mulher. Ainda hoje, após mais
de dez anos de separação, Rono yushin às vezes surge nos sonhos de Mani com a
aparência dela, quem primeiramente o incentivou.
Diferentemente das mulheres sharanawa (Siskind 1973a:165) e piro (Gow
1991:241), não soube de nenhuma mulher katukina que demonstrasse descontentamento
com a carreira xamânica de seu marido. A única vez que ouvi uma reclamação, esta
dirigia-se à mãe de uma criança doente que sempre requisitava os préstimos de um
146
rezador, porém a mulher dizia que as rezas de seu marido de nada adiantariam se ela
não parasse de bater em sua filha, razão pela qual, segundo ela, a criança não
apresentava melhoras.
A interferência das mulheres em decisões masculinas permite recuperar de
alguma maneira a presença feminina em papéis nos quais estão, na maior parte das
vezes, ausentes, como é o caso do xamanismo. Se pensarmos que a motivação primeira
para um homem decidir tornar-se rezador é zelar pela vida de seus parentes,
principalmente filhos e netos, é possível entender a ativa presença feminina: elas, as
mães, são tão ciosas da vida de seus filhos e demais parentes quanto o são os homens,
que em boa parte das vezes tornam-se rezadores após a paternidade. Ademais, comenta-
se difusamente que no passado existiram mulheres que seguiram a carreira xamânica.29
Uma presença que, entre os Sharanawa, foi definida por Siskind (1973a) em
termos negativos, já que a autora relata um caso de iniciação xamânica em que a mulher
do rapaz se opunha fortemente, devido ao longo período de abstinência alimentar e
sexual que ele tinha de observar. Para Siskind, a escolha da carreira xamânica é
estritamente pessoal, "o único papel que não é estabelecido pelo parentesco"
(1973a:165-168).
Entre os Katukina, seria arriscado afirmar categoricamente o contrário, ou seja,
que o xamanismo é estabelecido pelo parentesco. Apesar disso, o parentesco deve ser
reconhecido como uma dimensão ativa no processo de decisão sobre a dedicação às
atividades xamânicas: o temor de ver parentes desamparados em casos de doença,30 sob
29
Os Yawanawa comentam de uma mulher katukina que exercia a prática xamânica (Pérez 1999:27). O
exercício feminino do xamanismo é sempre mencionado na literatura pano. Há rumores também de uma
mulher que atuava como xinaya (rezador) entre os próprios Yawanawa. Entre os Kaxinawa, Tastevin
(1926) diz ter conhecido duas mulheres que tinham "comércio com os espíritos". A respeito do mesmo
grupo, Kensinger (1995a:217) afirma que qualquer pessoa com propensão para sonhar, seja homem ou
mulher, pode tornar-se xamã. Ele próprio soube de uma "pequena xamã" que morreu em meados de
1960. Mais recentemente, Lagrou (1998:68-69) conheceu uma mulher que atuava como yuxian
(mediadora entre os yuxinvo e os seres humanos). Montagner Melatti (1985:405-407), igualmente,
relatou o caso de uma mulher que atuava como romeya entre os Marubo. Entre os Shipibo-Conibo,
Saladin d'Anglure e Morin (1998:50) recolheram vários nomes de mulheres xamãs em genealogias de
gerações anteriores, mas notaram que dificilmente elas alçavam a condição de meraya (grande xamã).
As mulheres shipibo-conibo, mesmo contemporaneamente, atuam mais como parteiras e especialistas
em plantas medicinais.
30
O parentesco parece também pesar significativamente na decisão de seguir uma carreira xamânica entre
os Yawanawa. Retiro de Pérez (1999:15), que pesquisou entre eles, o seguinte conselho que um homem
recebeu de seu instrutor em assuntos xamânicos: "Olha, tu não é mais criança pra tu brincar, tu já tem
mulher e eu sei que tu vai ter muitos filhos e daqui mais um tempo você vai precisar de rezar, de curar e
se você não aprender agora você vai recorrer a outras pessoas ou então procurar até mesmo os cariú com
os remédios dele, que eles vão te sovinar, e você vai ficar chorando sem poder fazer nada, então você
vai ter que aprender".
147
o risco de morte, e o estímulo que os homens recebem de suas mulheres atestam sua
importância.
Voltando aos Katukina, ainda que o desempenho do papel de rezador não esteja
associado a tantas abstinências, como parece ocorrer com os xamãs sharanawa (Siskind
1973a:165), o dia-a-dia não é dos mais fáceis e se não são as mulheres que reclamam,
um rezador pode sentir-se às vezes cansado e pouco recompensado. Inúmeras vezes vi
os rezadores acordados na madrugada, se não para cuidarem de seus pacientes, para
lembrarem-se do conteúdo de seus sonhos. A vigília forçada, mantida com aspirações
frequentes de rapé, é sempre necessária para manter o contato com rono yushin que os
auxilia na descoberta das causas e curas das doenças. Um rezador tem de lembrar dos
ensinamentos revelados em sonhos e, assim, acaba por fazer da noite o seu período de
maior atividade.
Uma das coisas que mais chama a atenção nos shoitiya katukina é o altruísmo:
interrupções freqüentes de suas atividades quotidianas para atender chamados de
parentes preocupados com seus doentes, vigílias prolongadas que resultam em poucas
horas diárias de sono, falta de gratificação material. Quanto a este último aspecto, os
shoitiya dizem que no passado eles eram melhor gratificados: sendo os rezadores
pessoas mais velhas e, portanto, com menor força física para o desempenho de
determinadas atividades, recebiam como agradecimento por sua atuação pedaços de
caça, lenha fendida para suas mulheres prepararem a comida, ajuda na hora de construir
uma nova casa. Hoje, eles dizem, as gratificações são menos freqüentes e incluem
também artigos industrializados comprados na cidade: bermudas, camisas e pedaços de
tabaco31 – que algumas vezes acabam sendo úteis para realizarem novas curas.
Do mesmo modo como ocorre com os Yaminawa (Calávia Saez 1995:105), o
abandono das atividades xamânicas é perfeitamente admissível, mas nenhum rezador
apontou seu próprio cansaço ou insatisfação com a pouca recompensa como
justificativas possíveis. Sobre este assunto posso dizer pouco, pois não conheci
rezadores inativos ou ex-rezadores. De todo modo, os esforços requeridos pela atividade
e o conseqüente cansaço, foram apontados algumas vezes para que os rezadores
lamentassem o fato de não poderem dedicar-se a outros interesses. Mani, por exemplo,
faz questão de mencionar que seus "estudos" como rezador o conduziram a desconhecer
31
Até 1994 alguns homens ainda plantavam tabaco e abasteciam-se por sua própria conta com fumo e
rapé. Em 1997, entretanto, todos haviam "perdido a semente" e compravam o tabaco na cidade.
148
"saberes" da sociedade dos brancos que são também bastante valorizados: os principais
são a escrita e a leitura. No início dos anos 70, quando da abertura da BR-364, o BEC
montou uma escola para alfabetização de adultos. Ele estava apenas no começo de suas
atividades xamânicas e freqüentou a escola – aprendeu algumas letras, a ler algumas
palavras e assinar o nome –, mas não conseguiu ir adiante porque sua concentração
deveria ser dirigida a outros saberes: a lembrança dos sonhos e a melhor maneira de
elaborar os cantos de cura. Em outros tempos, quando morava no rio Gregório, Mani
quis converter-se ao protestantismo dos missionários americanos, mas como precisava
fazer uso do rapé, para dar continuidade a suas atividades como rezador, desistiu de ser
"crente".
Quando considerada, a possibilidade de desistência do xamanismo envolve uma
razão mais forte: o fracasso. A morte de um doente que estava em tratamento –
principalmente quando a dieta do próprio doente e de seus parentes diretos estava sendo
seguida – talvez seja o maior desestímulo que um rezador possa ter, tanto mais se o
morto for um filho ou um neto. Assim como a perspectiva da morte desassistida de um
parente pode motivar um homem para iniciar a carreira xamânica, o fato da morte pode
também desmotivar. O reconhecimento do fracasso conduz os rezadores algumas vezes
ao ceticismo quanto à real eficácia de suas rezas e à validade de seus esforços. Um
ceticismo passageiro, é verdade: passados alguns meses, refeito da tristeza e diante de
chamados insistentes para tratar os doentes, um rezador pouco a pouco reinicia suas
atividades. Além disso, o esquema tautológico de explicação do fracasso não está
ausente e, mesmo que tardiamente, alguma explicação sempre surge e acaba por marcar
a gradual reaproximação dos assuntos xamânicos.
Em caso de morte, a vontade de desistência não é exclusiva do rezador que se vê
fracassado, vencido pela sentença mítica de que a morte os acompanharia e de que a
vida eterna escapara-lhes das mãos. Diante da perda de parentes queridos, os Katukina
costumam dizer que têm "vontade de morrer", de desistir da própria vida. No fim das
contas, o abandono temporário das atividades xamânicas por rezadores que se sentiram
fracassados coincide com o período de luto do vopishina, quando ainda se está tomado
pela tristeza e nostalgia causadas pela morte recente de alguém muito próximo.
A inscrição dos especialistas xamânicos no socius é um tema pouco
desenvolvido na literatura etnológica sul-americana. Já é um lugar-comum a afirmação
de que os xamãs e outros especialistas xamânicos fazem surgir o indivíduo (próximo da
concepção ocidental) na coletividade, o ser auto-centrado que se descola da existência
149
ordinária das pessoas comuns (Seeger et alii 1987[1979]:25). Não pretendo negar essa
generalização, certamente a quantidade de trabalhos que o tema da corporalidade
inspirou dão provas de sua fecundidade. De todo modo, pouca atenção tem sido dada às
motivações que orientam alguns a se disporem a alterar completamente sua rotina –
penso não só na iniciação mas, sobretudo, na prática quotidiana do xamanismo – a fim
de garantir o bem-estar da coletividade.
Deixando de lado os casos de grupos em que, potencialmente, todos os homens
são xamãs ou daqueles que não reconhecem a existência de especialistas xamânicos,
para alguns grupos indígenas tem sido destacado que qualquer pessoa pode ter um
contato sobrenatural que a credencia a ter acesso ao conhecimento xamânico, como
ocorre entre os próprios Katukina. Se tantas pessoas estão expostas aos contatos
sobrenaturais, por que apenas algumas acabam por seguir a carreira xamânica? Aqui,
parece-me, faltam explicações. A resposta dos próprios Katukina, ao menos a resposta
consciente, é buscada na dimensão subjetiva do parentesco, no medo de verem
desamparados parentes queridos. Essa resposta, a mesma dos xamãs piro (Gow
1991:238) e yawanawa (Pérez 1999:15), não invalida a afirmação a respeito da
individualização dos especialistas xamânicos; não se trata tanto de uma negativa quanto
da identificação de uma ênfase desproporcional. Parece-me importante destacar que se
os especialistas xamânicos são descolados da malha social é justamente na tentativa de
mantê-la homogênea.32 Entre os Katukina, xamãs e rezadores, enquanto indivíduos, não
representam o oposto da sociedade; ao contrário, almejam ser a sua proteção. Menos
que uma abstração sociológica, que é igualmente importante, a individualização com
vistas à garantia do bem-estar da coletividade surge como uma explicação nativa.
De feitiços e venenos
Feita a opção pela carreira xamânica, um homem não passa a gozar de nenhum
privilégio. Mesmo após seus primeiros anos de aprendizado e tendo já o
reconhecimento dos demais, ele deverá cumprir as mesmas obrigações morais, sociais e
32
Gow (1991:241) já notou o campo contraditório em que trafegam os xamãs piro. Os homens iniciam-se
nas atividades xamânicas com vistas a proteger seus parentes. Contudo, os conhecimentos para protegê-
los devem ser obtidos fora do circuito do parentesco, o que os faz serem também temidos e, certamente,
individualizados.
150
econômicas de todas as pessoas. O conhecimento que detém das coisas do outro mundo
não lhe confere regalias no plano terreno.
De todo modo, ainda que os rezadores devam se orientar pelos mesmos
constrangimentos que os demais, seus conhecimentos podem eventualmente serem
postos em jogo em casos de conflito. Foi assim que Txoki, um ativo rezador da aldeia
do rio Campinas, ameaçou mudar-se para a aldeia do rio Gregório e deixar sem
atendimento xamânico pessoas com as quais se envolveu em conflitos por causa de um
boi.
No mais, o uso que os rezadores fazem de seus conhecimentos são julgados
pelos mesmos imperativos morais que seriam acionados em situações quotidianas, em
particular no que diz respeito à sua generosidade (ou não) em atender aos chamados
para tratar de doentes. Há rezadores que freqüentemente se recusam a atender tais
chamados e causam assim um certo burburinho na aldeia por sua avareza. Entretanto,
nunca soube de conflitos que envolvessem os rezadores e seus pacientes. No máximo,
soube de rancores devido à recusa contínua e injustificada de um rezador em atender aos
pedidos de ajuda.
Muito já foi escrito sobre a ambivalência dos xamãs em sociedades indígenas
amazônicas. Para limitarmo-nos aos grupos pano, os xamãs sharanawa (Siskind
1973a:166-68), kaxinawa (Kensinger 1995a:217) e yaminawa (Townsley 1988:131-32)
ocupariam todos esta posição ambígua. Da mesma maneira, entre os Katukina, admite-
se que os xamãs e também os rezadores têm poderes para matar. Todavia, a capacidade
de matar não é exclusiva deles nem de todos eles.
Os Katukina nunca me permitiram muita liberdade para tratar deste assunto. Seja
como for, soube que um falecido rezador conhecia os meios que provocam a morte, mas
ninguém nunca o apontou, pelo menos para mim, como culpado de alguma morte. Hoje
alguns dos rezadores que receberam ensinamentos dele são suspeitos de conhecerem
tais cantos, mas evidentemente eles negam.
Como não poderia deixar de ser, os cantos de feitiçaria devem ser entoados
longe da vista e dos ouvidos de todos, na floresta. Para que o feitiço seja eficaz é
necessário, além dos cantos, que se tenha algo da vítima, um fio de cabelo, um pedaço
de unha ou qualquer objeto de uso pessoal dela. Partes do corpo, como cabelo ou unha,
ou roupas da vítima que são convertidos em veículos poderosos das palavras mágicas
que conduzem à morte. Os cantos de feitiçaria podem ser também entoados sobre
151
pegadas ou secreções do corpo da vítima, suor, saliva, urina e fezes. Nesse caso, trata-se
de uma estratégia arriscada, já que é necessário segui-la.
As acusações de feitiçaria envolvendo pessoas adultas são um tema delicado e as
pessoas sempre evitavam, ao menos para mim, entrar em detalhes que justificassem os
motivos claramente ou acusar alguém diretamente. Há também uma ênfase excessiva
dos Katukina em querer caracterizar a feitiçaria como prática do passado. Ouvi a
seguinte frase de Mani, mas versões ligeiramente modificadas me foram ditas por outras
pessoas: "Tinha muita gente que só morria de rao. Nesse tempo não tinha
FUNAI...Quando eu era pequeno, do tamanho desse menino [aponta para um garoto de
doze anos], só morria gente de rao." A justificativa sempre dada é de que as pessoas se
irritavam pelos motivos mais banais e logo tramavam a vingança lançando mão de
feitiçaria. O fim da feitiçaria teria permitido também o aumento populacional e a
reunião de vários parentes em paz na aldeia. Nas palavras de Kako, "antigamente nós
mesmos não gostávamos um do outro. Hoje já está tudo reunido, todos os parentes. Foi
assim que o pessoal acabou com essas coisas, não aceita mais essas coisas."33
Por qualquer desentendimento a feitiçaria era lançada. Os Katukina costumam se
explicar dizendo que desde que suas terras foram reconhecidas pela FUNAI, na primeira
metade da década de 1980, a feitiçaria tornou-se "proibida". Entretanto, não me parece
que esta foi uma "proibição" imposta ou sugerida por pessoas de fora (os funcionários
do órgão tutor, por exemplo). Antes, parece-me uma interpretação própria dos Katukina,
de que se eles foram reconhecidos oficialmente pela "lei dos brancos" deveriam orientar
suas condutas por estas mesmas leis. Evidentemente, a compreensão e adesão ao
conjunto de leis brasileiras é bastante precária e a interpretação dos katukina para o
assunto não é exaustiva. Proibidas ou não, as acusações persistem e dizem respeito ao
passado recente e também aos dias atuais.
Filho e genro de rezadores, o mesmo Kako que caracteriza feitiçaria como coisa
do passado, contou-me da morte de uma jovem há alguns anos atrás e acusou um
shoitiya já falecido de tê-la matado. A feitiçaria teria sido feita pela recusa dela em
abandonar seu marido e casar-se com ele. O mesmo rezador teria enfeitiçado e matado
uma outra mulher que também não o quis como marido.
33
A mesma caracterização da feitiçaria como prática do passado, que impedia o crescimento
populacional, pode ser encontrada também entre os Kaxinawa, vide a fala de um líder de aldeia
reproduzida em Lagrou (1998:106), e os Yawanawa (Perez 1999:151).
152
desconhecer as técnicas para matar) foi se despedir de mim na casa em que estava
hospedada e admitiu, conversando com as pessoas dali, que o havia matado com
feitiçaria. Enquanto eu fazia um esforço imenso para tentar entender o que ele dizia, já
que algumas passagens me escapavam, a platéia permanecia muda ante o monólogo
imprevisto – o que foi decisivo para que eu adotasse o mesmo comportamento. Pouco
depois, o assunto mudou sem que ele fosse questionado uma única vez. Mais tarde
confirmei com uma mulher se eu havia mesmo entendido o que o rezador acabara de
assumir. Era mesmo certo, ele havia se auto-proclamado um feiticeiro, e vingativo
também, já que se justificava com uma extensa lista de pessoas que se suspeitava que
teriam sido mortas pela sua vítima – entre elas, o pai da mulher que me confirmava a
informação. Insisti na conversa tentando obter mais detalhes, mas minha interlocutora,
sem querer alongar-se no assunto, pediu para que eu não comentasse o que acabara de
ouvir com ninguém, repetindo o surrado argumento de que "feitiçaria é proibido".
A "proibição" de falar em feitiçaria impede detalhamentos. De todo modo, para
os propósitos deste tópico, cabe dizer que os feitiços podem ser conhecidos e
manipulados por qualquer pessoa34, rezador ou não, e há suspeitos entre os próprios
Katukina, embora na maior parte das vezes eles estejam entre os Yawanawa. O mesmo
se aplica ao envenenamento, uma vez que as plantas utilizadas não são de conhecimento
exclusivo dos rezadores. Um rapaz de seus vinte e poucos anos falou-me de uma planta,
que cresce nas proximidades dos igarapés, utilizada como veneno. Para prepará-lo basta
retirar as folhas, secá-las ao fogo, triturá-las até que se transformem num fino pó e
colocar na comida de quem se quer matar.
Aqui é necessário esclarecer alguns detalhes. Das conversas que tive com
inúmeras pessoas sobre feitiços e envenenamentos, uma única palavra foi utilizada para
definir os dois procedimentos: rao. Este mesmo termo designa ainda as plantas
medicinais. Dada a polissemia de rao, talvez seja possível supor que uma planta sirva
como vetor do feitiço. Retiro esta hipótese de um artigo de Tournon e Reátegui (1984)
sobre a botânica dos Shipibo-Conibo, entre os quais o rao é também traduzido como
"planta medicinal". Segundo os autores, o rao pode ser usado tanto com fins benéficos
quanto maléficos e toda planta tem sua parte imaterial que pode, do mesmo modo como
34
A idéia de que os feitiços podem ser feitos por qualquer pessoa encontra-se também entre os Yaminawa
estudados por Calavia (1995:157), entre os quais, "a agressão mágica, mesmo agora que não tem mais
niumuã, está na mão de qualquer um". Entre os Kaxinawa, Lagrou (1995) afirmou que o "xamanismo da
cobra é um recurso acessível a todos".
154
35
Sobre as relações entre os Katukina e os Yawanawa, ver Lima (1994a:125-133) e Carid (1999:43-46 e
ss).
155
avô, não são de origem indígena. Diferentemente de Crispim36, Armédio não toma
ayahuasca nas sessões de cura e suas influências vêm, segundo ele, do espiritismo, "das
sete almas perdidas". Embora eventualmente Armédio tome ayahuasca junto com os
fiéis do Santo Daime em Cruzeiro do Sul, afirma não extrair daí nenhuma inspiração
para as curas que efetua.
Uma boa parte das acusações de feitiçaria veiculadas entre os Katukina, como
disse há pouco, são atribuídas aos Yawanawa, seus vizinhos no rio Gregório, mas é
preciso não esquecer que isso não exclui as acusações internas. Segundo Carid
(1999:43-45), as acusações que constantemente os Katukina fazem aos Yawanawa,
sejam de feitiço, sejam de raptos de mulheres, não têm sua contrapartida simétrica entre
os segundos, que não acusam os primeiros por quaisquer problemas. Do lado
Yawanawa, segundo consta, as acusações de feitiçaria são "fundamentalmente
intratribais" (Pérez 1999:40). Ao mesmo tempo em que acusam os Yawanawa, os
Katukina temem serem reconhecidos como feiticeiros na região. Em 1993, quando um
rapaz marubo, Matxumba, adoeceu enquanto visitava a aldeia do rio Campinas, várias
pessoas temeram por sua morte. O temor justificava-se pelo fato de que se o rapaz
morresse ali, isso levantaria entre seus próprios parentes a suspeita de ter sido morto por
feitiçaria entre as pessoas que tinham prometido acolhê-lo na visita, o que poderia gerar
retaliações. Na tentativa de restabelecer a saúde do visitante, um rezador dedicou-se sem
sucesso a seu tratamento. Vendo a saúde do rapaz piorar dia-a-dia, algumas pessoas
convocaram-me a tratá-lo, o que fiz, por sugestão dos próprios Katukina, buscando
entre os regionais remédios para malária. Matxumba melhorou e a expressão de alívio
era evidente entre as pessoas que o hospedavam.
Seja feitiço seja envenenamento, deve haver proximidade física entre a vítima e
seu agressor. No caso de pessoas supostamente vitimadas por feitiçaria lançada pelos
Yawanawa, isso se dá em visitas que membros dos dois grupos costumam fazer uns aos
outros. Em um dos últimos casos que soube, uma mulher adoeceu logo após uma dessas
visitas. Estranhamente, ela apresentou sintomas da doença que os Katukina traduzem
como "loucura", ninsu, que se define pelo completo descontrole dos atos e gestos, como
se a pessoa perdesse completamente a consciência. No caso em questão, a mulher
36
Crispim difundiu o uso da ayahuasca e deixou outros herdeiros de seus conhecimentos entre os
seringueiros do alto rio Juruá, conforme informam os trabalhos de Araújo (1998) e Franco & Conceição
(1999). É interessante chamar a atenção para o fato de que nestes trabalhos não constam referências à
extração de objetos patogênicos, talvez essa técnica não fosse usada por Crispim ou era com menos
freqüência do que hoje o seu neto, Armédio, faz uso.
156
chorava, gritava, não reconhecia seus parentes, nem sequer suas filhas, e tentava a todo
momento fugir em direção à floresta. Na tentativa de fazê-la recuperar o controle de si
mesma, sua irmã e seu cunhado, levaram-na para a aldeia do rio Campinas, da qual ela
tinha saído após perder seu marido. Mas os episódios de ninsu persistiam e os rezadores
que a atendiam não conseguiam curá-la. Foi então que seus parentes levaram-na para
consultar-se com Armédio, em Cruzeiro do Sul, que interveio com sucesso em sua
recuperação, extraindo de seu corpo diversos objetos patogênicos.
Aproximadamente na mesma época, mulheres yawanawa apresentaram a mesma
doença, também definida como ninsu, e foram inicialmente atendidas por pastores
evangélicos convocados à aldeia pelas "lideranças" e, mais tarde, na cidade de Tarauacá,
onde teriam sido exorcizadas na Igreja do Reino de Deus. Entre os Yawanawa, segundo
Pérez (1999:10), várias explicações foram cogitadas para explicar o caso, mas
prevaleceram as acusações de feitiçaria contra outros grupos (a autora não revela quais
eram os suspeitos). Uma explicação possivelmente excepcional, uma vez que, segundo a
mesma autora (op. cit.: 40), as suspeitas de feitiçaria costumam ser internas ao próprio
grupo.
De rezas e remédios
37
As avaliações negativas ou, ao menos, as suspeitas quanto à boa indicação dos remédios, podem ser
percebidas na resistência que os Katukina opõem ao uso de alguns deles, sobretudo ao quinino. Não
foram poucas as vezes que vi pessoas, diagnosticadas com malária, abandonarem ou sequer começarem
o tratamento devido ao receio dos efeitos colaterais produzidos pelo medicamento. Um dos agentes de
saúde da aldeia do Campinas, microscopista treinado pela FNS para diagnosticar malária,
160
receber uma caixa com quarenta ampolas para o tratamento da leishmaniose e, ante meu
desalento, ser confortada com elogios à eficácia das injeções.
O quinino e as injeções sintetizam as possibilidades de confluência dos sistemas
de cura xamânico e ocidental, nos seus pólos negativo e positivo, igualmente
sustentados pelas elaborações dos próprios Katukina. A esse respeito, Txoki joga com
as palavras e justifica a convivência dos saberes xamânico e médico: "a gente não sabe
o que é que o branco sabe. O que o branco não sabe, índio sabe. É assim com todas
nações, uns sabe aquilo, outro não sabe aquilo. Olha, o que médico sabe, índio não sabe.
E trabalho que índio faz, médico não sabe." A fala de Txoki, certamente confusa por sua
expressão em português, quer destacar a complementariedade entre os dois sistemas de
cura, mas em diversas situações o que os rezadores fazem é reduzir um sistema ao
outro. O sistema médico ocidental é interpretado em analogia com o sistema xamânico.
É o que se passa nas duas situações descritas abaixo.
Em comum os sistemas xamânico e ocidental têm a possibilidade de matar, ao
invés de curar. O alerta de médicos e agentes de saúde de que os remédios devem ser
ministrados com cautela e bem guardados, pois se ingeridos em excesso podem "até
matar", é interpretado em analogia com as rezas. Muito embora essa analogia seja um
tanto exagerada, já que o consumo acidental de remédios é involuntário enquanto que a
possibilidade de as rezas matarem nem sempre o sejam, dada a possibilidade de
feitiçaria.
Em outra situação, as pessoas lembram que o período de aprendizado de
médicos é longo, como o é também o dos rezadores. O agente de saúde mais elogiado
da aldeia do rio Campinas, Ni'i, é justamente aquele que está há mais tempo em
atividade e que freqüentou diversos cursos de treinamento. Quando ele comunicou, em
uma reunião, que estava abandonando suas atividades por falta de remuneração, várias
pessoas lamentaram sua desistência e expuseram sua desconfiança em ter de ficar sob os
cuidados de agentes de saúde pouco experimentados.
Ni'i reclamava de que desde o início de suas atividades como agente de saúde,
em meados de 1980, nunca tinha sido remunerado e que abandonaria as atividades para
poder se dedicar mais aos seus próprios afazeres (roçado, caça), que não estava
conseguindo conciliar com os atendimentos e visitas que tinha de fazer às pessoas.
Como disse no início, são treze atualmente os shoitiya entre os Katukina: nove
na aldeia do Campinas e quatro na aldeia do rio Gregório, todos homens com idade
superior a 50 anos. Evidentemente há diferenças no grau de conhecimento de cada um
deles, já que alguns rezam há mais de 30 anos enquanto outros são ainda aprendizes. O
critério de "tempo de serviço" é muitas vezes evocado pelos Katukina para
reconhecerem a profundidade e a extensão dos conhecimentos de um rezador. Washime,
162
o mais antigo rezador da aldeia do rio Campinas, é visto por muitos, senão por todos,
como o shoitiya mais poderoso da aldeia – embora em todo o período de minha
permanência em campo eu o tenha visto atuar uma única vez.
Mas "tempo de serviço" não é um critério absoluto para reconhecer poderes a
um shoitiya. Mani, o mais ativo rezador da aldeia do rio Campinas, junto com Txoki,
reza há 30 anos e reconhece que Rono, que reza há apenas 10 anos, sabe tanto quanto
ele – embora Rono humildemente se coloque numa posição inferior. A discordância
entre os dois baseia-se em dois critérios que podem ser ativados para avaliar o sucesso
de um rezador: (i) é o "tempo de serviço"; (ii) é o aprendizado feito com um rezador
mais experiente, que pode poupar tempo de reflexões solitárias na busca pela cura das
doenças. A discordância entre Mani e Rono, acerca da profundidade de seus
conhecimentos e de suas próprias possibilidades de sucesso, deve-se ao fato de que cada
um emprega um dos critérios para contrastar suas posições. Vejamos.
Como vimos, Mani diz ter começado a aprender a rezar em 1969, quando
morava em um seringal no rio Tauari. Naquela época, sem outros rezadores nas
proximidades, seu aprendizado consistia apenas em lembrar os sonhos nos quais Rono
yushin revelava-lhe os segredos de cura. No começo da década de 1970, Mani mudou-se
para o seringal Japurá, no riozinho da Liberdade, juntamente com outros Katukina, e lá
passou a ser instruído nos conhecimentos de cura por Me’o e, anos depois, pelo falecido
Kero, já na atual aldeia do rio Campinas. A experiência de acompanhar rezadores mais
antigos prolongou-se por algum tempo, mas boa parte dos conhecimentos de Mani,
segundo ele próprio, foram adquiridos sozinhos. Fazendo um largo uso do rapé, Mani
sonhava com Rono yushin, o Espírito da Serpente que se apresentava na forma de uma
bela mulher, que lhe revelava o segredos de cura. Noite após noite, ele sonhava e
acordava na madrugada, esforçando-se para não esquecer as palavras que lhe foram
reveladas em sonhos e que deveriam ser repetidas nas sessões de cura. Entre a vigília e
o sono ele formava seu repertório de rezas.
A trajetória de Rono como shoitiya e seu aprendizado é algo diferente. Há pouco
mais de 10 anos, Rono viu uma mana rono (jibóia) em cima de um balseiro, no caminho
para a casa onde morava, na aldeia do rio Gregório. Na mesma noite ele sonhou que
havia muitas pessoas doentes (com catarro, gripe, febre). Ainda no sonho, ele rezava e
as pessoas logo ficavam sadias. Certo de que o sonho o autorizava a atuar como um
shoitiya, Rono procurou Tsomi, o mais antigo de todos os rezadores Katukina, para lhe
ensinar os segredos das rezas. Além de sessões privadas de aprendizado, Rono
163
acompanhou por 10 anos Tsomi em alguns ritos de cura, de modo que seu aprendizado
foi quase todo monitorado. Com sua mudança para a aldeia do rio Campinas, o
acompanhamento direto com Tsomi foi interrompido e Rono passou a atuar sozinho.
Mani sempre chamava Rono para acompanhá-lo nos ritos de cura, mas ele dizia ter
vergonha de errar e ser corrigido.
Mani iniciou-se no conhecimento das rezas quase 20 anos antes de Rono,
embora este seja aproximadamente 10 anos mais velho que ele. Mani acredita que
ambos tenham o mesmo poder como rezadores. Rono, embora tenha começado a rezar
tardiamente, teria uma vantagem sobre ele devido ao fato de ter sido instruído por um
rezador bastante experimente, que o acompanhou por muito tempo. Já Rono acredita
que Mani é mais eficaz que ele próprio nos ritos de cura, pois, embora tenha aprendido
muito das rezas solitariamente, tem mais tempo de experiência.
A rigor, o aprendizado de um rezador estende-se indeterminadamente, pois os
sonhos sempre revelam novos cantos de cura e o próprio rezador diante de pacientes que
não reagem positivamente ao tratamento deve procurar novas formas de cura, isto é,
estimular sonhos que lhe revelem novos cantos. Um rezador pode também, nas
situações em que seus próprios cantos não surtem o efeito esperado, consultar um
rezador que tenha tido sucesso em curar alguma doença semelhante e pedir para que lhe
ensine os cantos de cura apropriados. Mas este é um domínio crítico do xamanismo
katukina.
Entre os rezadores, sobretudo entre os mais antigos, há acusações de falta de
generosidade e mesmo de engodo com os cantos de cura. Alguns rezadores, admitindo
que seus próprios cantos não são apropriados para tratar algumas doenças, queixam-se
de que os rezadores mais antigos não ensinam os cantos de cura que sabem, retendo-os
para si. Os queixosos dizem que eles fazem assim por medo de "ficarem para trás", isto
é, de serem ultrapassados em conhecimentos pelos aprendizes.38 As acusações chegam
ao ponto de um rezador afirmar que um outro, para não demonstrar avareza com os
cantos de cura, lhe ensinou, propositalmente, cantos "errados". O primeiro teria
descoberto que os cantos seriam "errados" após entoá-los numa sessão de cura e não
38
Segundo Pérez (1999:40), a transmissão dos conhecimentos esotéricos também não se faz sem algum
temor entre os Yawanawa. A autora afirma que uma das razões que justifica as desconfianças é que
esses conhecimentos podem voltar-se contra aquele que os transmite, pois o aprendiz pode usá-lo
tempos depois contra o seu mestre. Tanto mais porque as acusações de feitiçaria e envenenamentos são
em sua maioria internas ao grupo.
164
39
Reforço que a avareza, do mesmo modo como foi tratada no capítulo anterior, pode significar não
apenas a retenção de algo que se detém, mas a falsa generosidade. A acusação é de que o rezador mais
experiente ensinou propositalmente cantos errados, guardando seus verdadeiros cantos para si.
165
assim. Quando a gente passa 12 anos, 30 anos, 40 anos, aí já sabe bem. Mas pouco
tempo.... com 10 anos não pode ensinar ainda não".
Ainda que seja arriscado transmitir conhecimentos imaturos, o fundamental é
que as acusações que os rezadores fazem entre si põem em cena a disputa por prestígio e
reconhecimento existente entre eles próprios. A disputa por prestígio fica ainda mais
evidente quando se trata de reivindicar os méritos pela cura dos doentes. É bastante
freqüente que os parentes de uma pessoa adoentada convide mais de um rezador para
tentar curá-la. Assim, ou eles rezam juntos ou alternam-se rezando em noites diferentes,
cada qual entoando os cantos de cura que julga apropriados. Mais tarde, com a
recuperação do doente, cada um deles reivindica a cura para si.
A concorrência entre os próprios rezadores pode igualmente ser percebida na
recusa de alguns deles em entoar os cantos de cura na presença de rezadores mais
experientes e também nos comentários que tecem sobre o estilo (entonação, rítmo) dos
cantos uns dos outros. No primeiro caso, da recusa, não são poucos aqueles que alegam
"vergonha" para não se exporem diante de rezadores mais experientes. Quando os
rezadores descrevem o período de aprendizado, o sentimento de "vergonha" (ravini) é
sempre lembrado. Aqui, a "vergonha" nada mais é que a insegurança provocada pelo
receio de errar e ser corrigido ou, pior, ser vítima de deboche, permitindo assim que
outro se coloque numa posição superior. Um sentimento que tem suas justicativas.
Rono, por exemplo, após mudar-se para a aldeia do rio Campinas, demorou a expor-se
diante de outros rezadores. Se ele estivesse realizando uma sessão de cura e chegasse
outro rezador no local, imediatamente interrompia seu canto. Pouco a pouco ele
começou a entoar os cantos de cura diante de outros. Um dia, entretanto, ele estava
"rezando" diante de Txoki e Mani, os dois mais requisitados e ativos shoitiya da aldeia
do rio Campinas, e, em seu canto, dizia que estava "espantando" o espírito do animal
que afligia a criança doente. Txoki e Mani, numa brincadeira duvidosa, começaram a rir
e a zombar dele, falando para Rono deixar que eles próprios "espantariam" o bicho. A
Rono, que é mais alto e encorpado do que Txoki e Mani, caberia, em seguida, "jogar o
bicho no igarapé". Aborrecido com a suposta brincadeira, Rono interrompeu seu canto e
foi embora.
40
Townsley afirma o mesmo a respeito da transmissão dos cantos de cura entre os Yaminawa do lado
peruano (1988:139).
166
41
Montagner Melatti (1985:262) afirmou que a criatividade é também uma qualidade fundamental para
um homem tornar-se xamã entre os Marubo, "para constantemente renovar, recriar e criar novos cantos
diante do aparecimento de novas enfermidades e epidemias". A incorporação de produtos
manufaturados ao universo xamânico foi também descrita por Siskind. A autora afirma, por exemplo,
que os Sharanawa definem a gripe "como uma doença peruana e os cantos de cura são sobre objetos
167
animal um canto específico. Assim, se concluir que a doença foi causada pelo consumo
de paca, o rezador entoa o canto de cura específico para a paca; se veado, o "canto do
veado"; se o queixada, o "canto do queixada" e assim por diante.42 No caso de doenças
provocadas por quedas em igarapés, as coisas se passam da mesma maneira, há o "canto
do igarapé". Se o doente ou um parente seu teve algum sonho interpretado como
prenúncio de doença ou morte, o rezador entoa os cantos específicos dos espíritos,
yushin.
Embora não tenho conseguido uma tradução desses cantos43, soube que neles os
rezadores, em suas próprias palavras, "espantam", "atacam" e "ameaçam" o espírito
(yushin) do animal causador da doença. Segundo soube, os rezadores podem chegar a
lançar mão de armas, como flechas, facas ou espingardas, na tentativa de combater o
agente agressor que provoca a doença em seu paciente. Na sessão de cura, o rezador,
através de seus cantos, enfrenta o espírito do animal, da água ou aquele que apareceu
em sonhos e faz com que, de alguma maneira, ele abandone o corpo do doente. Trata-se
de um embate entre o rezador e os agentes externos que desestabilizam os vínculos entre
o doente e seus espíritos, do corpo e do olho, e que podem, em situações mais graves,
ser completamente rompidos, conduzindo o paciente à morte.
Aqui é necessário voltar rapidamente à diferenciação entre os xamãs e rezadores
para destacar que embora os rezadores não tenham poderes para atrair animais para as
proximidades da aldeia, como fazem os xamãs propiciando a caça farta, eles podem se
comunicar no contexto da cura com seus espíritos. Os xamãs têm poderes avantajados
de comunicação que permite tanto atrair quanto afastar os espíritos dos animais, já os
rezadores conseguem apenas afastá-los.
No desentendimento entre Rono, Mani e Txoki que relatei há pouco, quando
falava do sentimento de vergonha dos rezadores principiantes, o primeiro estava
"espantando" o espírito do animal causador da doença no momento em que os outros
dois debocharam dele e sugeriram para que deixasse eles próprios "espantarem" o
peruanos: colares de miçanga, aviões, motores de barco e rádios" (1973a:160). Sobre este assunto ver
também Townsley (1988:152 e 1993:451 e 456).
42
Este procedimento é comum a outros grupos pano, como os Shipibo-Conibo (Illius 1992) e os Marubo
(Montagner Melatti 1985) e diverso do usado pelos Yawanawa, que tratam as doenças provocadas pelo
consumo de alimentos proibidos, sobretudo de animais de caça, apenas com plantas medicinais (Pérez
1999:61-62).
43
Não consegui a tradução dos cantos de cura. A maior parte dos rezadores não permitiu que eu fizesse
gravações e a única sessão de cura que um rezador me permitiu gravar, jamais foi traduzida. De um
lado, os especialistas (inclusive o rezador que autorizou a gravação) recusavam-se a traduzir; de outro os
leigos esquivavam-se alegando desconhecimento.
168
bicho. A Rono, fisicamente maior, caberia "jogar o bicho no igarapé". Deixando de lado
o desentendimento entre os três, a compreensão dos cantos de cura como um embate
entre os especialistas xamânicos e espíritos não é estranha a outros grupos pano, por
isso a referência à estratégia de "afastar" e "afogar" o espírito que atormentava a criança
doente. Montagner Melatti (1985:371-372) definiu os ritos de cura marubo como uma
"luta violenta" cujo principal objetivo é "atemorizar e expulsar a doença". Para
combater o yochi causador da doença, os xamãs e rezadores marubo podem dispor de
terçados, faca de taboca, fogo, fumaça e vento, entre outras coisas. Antes dela, Siskind
(1973) colecionou casos de cantos de cura cujos diagnósticos foram estabelecidos a
partir dos sonhos dos doentes. Em todos os exemplos que recolheu, os xamãs atuavam
com violência, enfrentando o espírito agressor com fogo, lanças e arcos e flechas. Nas
palavras da autora: "o xamã penetra no sonho, controla os espíritos dos animais e
resgata seus pacientes da interação mortal com estranhos" (:165). Entre os Shipibo-
Conibo, Illius (1992:67-71) observou que, nos cantos de cura, o nihue causador da
doença deve ser "quebrado", "separado", "fendido", "lavado" e "distribuído". Mais
recentemente, Pérez (1999:136) relatou que o xinaya (rezador) yawanawa se desfaz das
doenças trancando-as em casas, aprisionando-a em buracos e afogando-as. Em todos
esses grupos, a agressividade é o que marca a interação dos especialistas xamânicos
com os espíritos causadores das doenças. 44
A despeito dos ritos de cura serem concebidos como uma luta dos especialistas
xamânicos com os espíritos causadores da doença, a confrontação com o mundo dos
yushinvo não se faz sem algum cuidado, pois os primeiros não estão imunes à ação dos
agentes externos com os quais interagem. Neste sentido, cabe dizer nem todos os
rezadores estão aptos a tratarem as mesmas doenças. Em início de carreira, um rezador
atua apenas em casos mais simples de febre, diarréia, tosse. Mesmo assim, se o paciente
não apresentar melhoras é sinal de que talvez o diagnóstico não tenha sido bem
estabelecido e o mais recomendado é chamar outro rezador em seu lugar. A precaução
deve ser tomada não só com o objetivo de preservar o paciente, mas também a si
mesmo. Uma sessão de cura mal conduzida pode resultar em prejuízo ao próprio
rezador. No caso de um diagnóstico de espíritos de pessoas mortas tentando atrair
44
Chamo a atenção aqui para o fato de que a compreensão dos ritos de cura como um embate, entre os
próprios Katukina, os Shipibo-Conibo, os Marubo e os Yawanawa, é radicalmente diferente da
concepção dos Piro estudados por Gow (1991 e 1996:95), que nas sessões de cura intentam "amansar"
os agentes causadores das doenças.
169
parentes, por exemplo, não são todos os rezadores que se habilitam. Segundo Mani, que
há apenas alguns anos começou a "rezar" pessoas diagnosticadas com a ameaça dos
espíritos de pessoas mortas, há o risco de o rezador ser vencido pelo yushin se não
souber a forma exata de se comunicar. Nesse caso, não só a pessoa atormentada pelo
yushin pode sucumbir, como o próprio rezador, que passa a ser também atacado por ele
e corre o risco de morte. Se as sessões de cura são como um "embate", é compreensível
que haja a possibilidade de "derrota" do rezador, o que envolve não só o risco do
paciente como também dele próprio, demasiadamente exposto ao enfrentar o espírito
agressor.
Assim, por exemplo, a ousadia de um rezador que tenta socorrer um acidentado
com cobra sem conhecer profundamente os cantos de cura adequados, pode custar-lhe a
própria vida, pois ele pode ser picado fatalmente por uma. Nesse caso, o risco não é
contornado apenas com anos de estudo e treino para conhecer e debelar o mal causado
pelo veneno. Para "rezar" picadas de cobra é preciso ter sido picado por uma
particularmente poderosa e que tenha mostrado, durante a recuperação, o canto de cura
correto, o antídoto contra o seu próprio veneno.45 Dos nove rezadores em atividade na
aldeia do rio Campinas, apenas três afirmam saber os cantos de cura para picadas de
cobra. Entretanto, todas as pessoas que se acidentaram e foram socorridas na própria
aldeia, foram tratadas apenas por um deles, Washime, o mais velho do lugar.
Ser picado de cobra não é, entretanto, garantia de que seus segredos para debelar
o veneno serão revelados. Ne'e, o único rezador Katukina que disse ter recebido os
conhecimentos de cura de Rono Yushin após ter sido mordido por uma cobra, não
conhece os cantos específicos para tratar mordida de cobra. Mani, que já se acidentou
com cobras três vezes, desconhece também o seus segredos: "fui picado, mas as cobras
não me mostraram nada".
Logo que iniciei a pesquisa, os Katukina negavam que as palavras ditas nos
cantos pudessem ser compreensíveis. Somente após eu indicar que entendia algumas das
palavras, foi que soube que, embora conhecidas, as palavras não compunham um
discurso inteligível para leigos.46 Não porque se canta em outra língua, canta-se em
katukina, mas porque as palavras enunciadas ganham novo sentido nas rezas e as
45
Esta concepção dos Katukina é bastante diversa da que têm os Kaxinawa, entre os quais, segundo
Deshayes (2000:32), as pessoas mordidas por cobras venenosas devem ser socorridas por um huni
dauya, um herbalista. Apenas as pessoas mordidas por cobras não-venenosas, como jibóias e anacondas
(ver nota 24), devem receber o tratamento propriamente xamânico com o huni mukaya.
170
metáforas são abundantes.47 Do mesmo modo como ocorre entre os Marubo (Montagner
Melatti 1985:363-369), os Yaminawa (Townsley 1988:136-140 e Calávia 1995:112) e
os Yawanawa (Pérez 1999), os cantos de cura são em linguagem ritual e algumas
palavras ordinariamente utilizadas no quotidiano são substituídas por outras ou têm seus
significados alterados.48 No máximo, alguém indicava: "está rezando tatu", "rezando
veado", "rezando água", dependendo do diagnóstico da doença. O mesmo modo como
os Katukina esclarecem a respeito do tema das cantigas Kulina ("cantiga do jacaré",
"cantiga da queixada") que eles conhecem e ainda usam em alguns rituais. Com a
diferença de que as músicas kulina eles, de fato, não entendem.
As palavras proferidas pelos xamãs e rezadores transbordam o seu sentido usual,
pois o que eles vêem em seus sonhos e viagens xamânicas ultrapassa o plano da
experiência quotidiana. É por isso que eles são considerados sábios (tanai kuin) ou,
como traduzem os próprios Katukina, "sabidos": entendem as coisas mais
profundamente que os outros e vêem coisas que os outros não vêem. O esforço feito
pelos rezadores para lembrarem-se de seus sonhos consiste, segundo Txoki, exatamente
na busca da "melhor palavra" ou da "palavra bonita" (vana roapa), que dê conta da
excepcionalidade de suas vivências. Não é à toa que, como escrevi no início, uma das
designações possíveis para rezador seja justamente hewen vanaya, "a palavra dele".
Não deve ser coincidência que os rezadores sejam também aqueles que mais
conhecem os mitos. O acúmulo de conhecimento dos rezadores parece se expressar
também nos contatos que estabelecem com outros grupos indígenas. Poko e Mani, os
dois katukina que visitaram, por suas próprias iniciativas, os Marubo no rio Ituí, em
1992 e 1993, são rezadores. Antes, na década de 1960, eles já tinham visitado os Kulina
no médio rio Gregório, onde, aliás, aprenderam as cantigas de que falei antes.49
46
Do mesmo modo como Calávia Saez observou para os Yaminawa (1995:112).
47
No início deste século, Tastevin (1924) acompanhou uma sessão de cura entre os Katukina do rio
Gregório e afirmou que as palavras não tinham qualquer sentido na língua. Um espectador katukina
disse para Tastevin que não entendia a língua em que eram entoados os cantos e, mais, que não era o
xamã quem cantava: era Rono Yushin, o xamã apenas emprestava-lhe o corpo.
48
A este respeito observo que algumas das palavras apontadas como de uso ritual entre os Yaminawa e os
Marubo são de uso corrente entre os Katukina. Os exemplos que seguem são, coincidentemente, todos
de aves. Assim, o gavião cancão (Daptrius americanus), chamado srapei em linguagem quotidiana e de
beshtáo em linguagem ritual entre os Marubo (Montagner Melatti 1985:369), é chamado veshatao entre
os Katukina. Townsley (1988), por sua vez, observou que, entre os Yaminawa, o urubu chamado
corriqueiramente de kushu é chamado de shete no rito de cura. Entre os Katukina, esses dois termos são
utilizados quotidianamente, embora cada um deles designe aves distintas: kosho serve ao cujubim
(Pipile pipile) e shete ao urubu (Coragypts atratus).
49
Cabe dizer que as relações entre os Kulina e os Katukina parecem ser muito mais antigas. Segundo
Mani, o repertório de cantigas kulina conhecidas atualmente é bastante diferente daquele que sua própria
171
Quaisquer que tenham sido os desdobramentos destas "viagens mais conformes à nossa
definição usual", não resta dúvida de que elas conferem ou acentuam o prestígio do
rezador (Carneiro da Cunha 1998: 12).
Quando visitou as aldeias marubo no rio Ituí, em 1993, Mani diz ter feito uma
demonstração de suas rezas aos seus hospedeiros. Os Marubo teriam dito que suas
palavras eram bonitas, mas que ele precisava aprender mais. O tempo foi curto, por isso
acabou não aprendendo, segundo ele. Não deve ser improvável, entretanto, que tenha
incorporado palavras (e técnicas) marubo em suas rezas, já que incorporou algumas
delas em seu próprio vocabulário.50
A interpretação de Carneiro da Cunha (1998:12) de que as viagens são
experiências únicas, que podem acentuar o prestígio e mesmo substituir períodos de
aprendizagem xamânica tradicional, porque nelas têm-se a oportunidade de unir os
pontos de vista local e global, foi revista por Vilaça (1999). A autora observou as
estreitas relações que Crispim mantinha com os brancos e os incidentes que marcaram
sua biografia antes de voltar ao alto Juruá para, a partir dos Wari', propor uma nova
leitura. Cito-a:
"O que esta descrição sugere, é que as viagens, longe de constituírem trajetos
essencialmente visuais, como para nós (visitas a museus e outros lugares típicos),
representam sobretudo o estabelecimento de relações sociais intensas, uma vida em
comum (pacífica ou não) com pessoas desses outros mundos. É exatamente o que dizem
os Wari' quando descrevem suas viagens às cidades: eles falam das refeições que
partilharam com os brancos, das agressões físicas (…). Conclui-se que a aprendizagem
vem aqui da experiência ligada ao corpo e arrisco-me a dizer que é precisamente porque
constituem 'trajetos corporais' que essas viagens às cidades são equivalentes às viagens
xamânicas para os Pano" (1999:255)
mãe conhecia. De acordo com sua explicação, as canções que ele e Poko aprenderam há
aproximadamente trinta anos são mais novas.
50
O empréstimo de práticas xamânicas de outros grupos é um tanto comum entre os Pano e os exemplos
são abundantes na literatura. Entre os Yawanawa, Pérez (1999:28-30) comenta de um homem que se
iniciou com Tobias, o romeya katukina morto há seis anos na aldeia do rio Gregório. Um outro homem
(um Jaminawa-Arara residente entre os Yawanawa) recebeu instruções xamânicas do famoso Crispim,
de Antônio Luiz (um antigo chefe dos Yawanawa) e de um kaxinawa. Comenta-se que o próprio
Crispim obteve seus conhecimentos no Ceará e em Belém e Carlito Cataiano, um xamã kaxinawa
residente em Rio Branco, mistura técnicas aprendidas entre os Yawanawa e Katukina nos rios Gregório
e Tarauacá com outras aprendidas em rituais de umbanda que freqüentou em Belém e Manaus (Carneiro
da Cunha 1998:12-15). Há ainda o caso de Armédio, o neto de Crispim de que falei antes, que mistura
conhecimentos aprendidos com seu avô com outros do espiritismo. Entre os grupos pano do lado
peruano, há o caso dos Uni que se iniciaram no xamanismo com mestres shipibo-conibo (Frank
1994:202).
172
(Lagrou 1998; Deshayes 2000), dois grupos que têm um grafismo extremamente
elaborado, relacionado em grande parte às imagens que os xamãs vêem em suas viagens
estimuladas pelo consumo do ayahuasca.
Para encerrar este comentário à interpretação de Vilaça (1999), lembro-me de
um rapaz que após ter acompanhado uma equipe de treinamento em saúde numa viagem
a diversas aldeias no alto Juruá, voltou ao rio Campinas dizendo que tinha visto uma
cobra gigantesca, o que subentendia a sua eleição à carreira xamânica. É possível
imaginar que o rapaz estivesse jogando com a duplicidade dos sentidos da viagem, para
fora e para dentro, horizontal e verticalmente. Contudo, questionado pelos rezadores
sobre os detalhes de sua eleição, o rapaz nada soube responder. Sobretudo, afirmou não
se lembrar das sensações que experimentou e de nenhum canto de cura que lhe foi
revelado. Acabou desacreditado por todos. Afinal, concordando que "a aprendizagem é
uma experiência ligada ao corpo", uma viagem que não deixa lembranças é uma viagem
que não aconteceu.
174
CAPÍTULO 5
A ordem na natureza
Ao longo do percurso etnográfico percorrido até aqui, vimos que a forma como
as pessoas se portam, falam e reagem estão todas permeadas pelo cuidado em equilibrar
suas relações com a alteridade. Uma queda, do mesmo modo que um susto, pode
desestabilizar os vínculos entre um corpo e os espíritos que o animam. Se fracassam as
tentativas de recuperação do equilíbrio, a morte irrompe e sucede um período crítico,
durante o qual tornam-se vulneráveis sobretudo as pessoas mais próximas do defunto,
que se podem deixar abater pela tristeza e sucumbir. Nestas situações, aos rezadores é
reservada a tarefa de apaziguar – se é que se pode falar em estratégias pacíficas sendo os
ritos de cura entendidos como embates – as relações com esses "outros" que ameaçam
os vivos. Para tanto, estabelecem alianças com seres tão sobrenaturais como aqueles que
ameaçam as pessoas que se propõem proteger. Como vimos, grande parte destas
ameaças são originárias dos espíritos dos animais que, com maiores ou menores
restrições, todos comem. A carne de caça é o alimento por excelência, qualquer refeição
desprovida dela é incompleta e, apesar dos riscos de contra-predação, não há rituais de
purificação das presas antes do consumo.
As várias implicações sociológicas dos resguardos alimentares, da morte e do
xamanismo foram tratadas nos capítulos anteriores. Agora busco sistematizar como são
concebidas as relações dos homens com os animais, a partir do exame da classificação
taxonômica e do simbolismo da fauna, em particular dos mamíferos e das cobras.
Contudo, adianto que a opção de abordar os sistemas taxonômicos não implica a
aceitação tácita de que constituem formas objetivas de conceituação da natureza. No
mundo ocidental, as ciências naturais parecem ter como certa essa afirmação. O
cuidadoso estudo de Keith Thomas (1989:61-109) já mostrou que as ciências naturais
têm a sua própria história e o peso que tem hoje o critério morfológico no âmbito
acadêmico é resultado dos esforços feitos pelos primeiros taxonomistas para
distanciarem-se dos critérios populares que, muitas vezes, reportavam-se a outros
175
domínios que não a morfologia. Tanto que a idéia de sistemas taxonômicos – assim, no
plural – pode não ser bem vista ou tida como inadequada.
Aqui tentarei mostrar como os conhecimentos e as elaborações dos Katukina
sobre as espécies naturais não estão desconectadas das concepções que têm de si
mesmos nem do restante da natureza. Além disso, ainda que o critério morfológico na
classificação da fauna possa ser (e, de fato, é) quantitativamente predominante, não
consta como único nem é hierarquicamente superior.1 Ao lado dele, e
concomitantemente, estão os critérios pragmáticos e simbólicos. A seguir faço uma
primeira aproximação aos sistemas taxonômicos dos Katukina, em seguida concentro-
me na exposição da classificação e do simbolismo dos mamíferos e das cobras.
Os moradores da floresta
O céu, a terra e a água são habitados por criaturas conhecidas e nomeadas pelos
Katukina. Em busca dos léxicos que designam cada um dos animais, os Katukina
estranhavam a minha própria ignorância em diferenciar alguns deles. Ante a minha
desculpa de que algumas daquelas criaturas não existiam "na minha terra", as pessoas
indagavam a respeito da inexistência delas por outras partes do mundo. Não que os
Katukina não saibam reconhecer que diferentes ambientes comportam apenas
determinadas espécies, mas julgam que, ao fim e ao cabo, uma certa homogeneidade
deve prevalecer. Já a minha desculpa de que algumas espécies rarearam no lugar onde
1
As críticas à primazia do critério morfológico nos estudos etnobiológicos são antigas na literatura
antropológica, mas os estudos que enfatizavam os critérios simbólicos dedicavam-se mais a espécies
animais tidas como "anômalas". Nessa discussão é sempre lembrado o estudo de Bulmer (1967) sobre a
classificação do casuar na Nova Guiné. O casuar, um pássaro parecido com o avestruz, é agrupado pelos
Karam em um taxon separado daquele reservado aos pássaros e aos morcegos. Algumas observações
sobre a morfologia do casuar – um pássaro que não tem asas visíveis, não voa, não tem penas e é muito
grande em relação aos demais –, pareceriam justificar o lugar único que ele ocupa na taxonomia karam.
Contudo, em grupos vizinhos aos Karam o casuar é agrupado juntamente com os demais pássaros, fato
que, segundo Bulmer, é suficiente para recusar o critério morfológico, ou simplesmente a aparência,
como um classificador único. O autor busca na cultura karam a justificativa para o status taxonômico
especial do casuar, sobretudo no domínio cosmológico, que faz dele um ser "quase-humano" (:20). Para
Bulmer, "procurar por uma explicação do status taxonômico especial do casuar em termos puramente
taxonômicos, por referência a aspectos objetivos de sua aparência e comportamento, não resolveria o
problema. (...) 'status taxonômico especial' é algo mais amplo, um status especial na cultura, ou na
cosmologia, em geral" (:13). A conclusão de Bulmer é correlata de uma advertência de Lévi-Strauss
(1989[1962]:70) de que "não basta identificar com exatidão cada animal, cada planta, cada corpo celeste
(...) – é preciso saber que papel cada cultura lhe atribui no interior de um sistema de significações". Em
contrapartida, a mesma conclusão distancia Bulmer de Berlin, Breedlove e Raven (1973), que citam o
casuar como um exemplo típico de aberração taxonômica, que sempre ocorre, segundo os autores,
devido "a uma série de fatores, mas a conspicuidade morfológica e/ou importância econômica parecem
ser as razões primariamente envolvidas" (:216).
176
2
Os Shipibo-Conibo agrupam todas as aves na categoria isa (Goussard 1983 e Tournon 1994).
3
O mesmo termo é usado pelos Shipibo-Conibo para designar a totalidade dos animais. A taxonomia
zoológica deste grupo foi descrita por Tournon (1994).
177
e sete espécies de bodes (ipu). A categoria tsatsa pode ser tripartida para agrupar os
peixes com escama (tsatsa posaya), os peixes de couro (tsatsa reshviya) e os peixes que
têm esporão (tsatsa pakaya). A categoria rono agrupa a totalidade das cobras, terrestres
e aquáticas. A única exceção é a espécie Typhlops reticulatus, uma serpente vermiforme
de hábitos subterrâneos, que é classificada na categoria genérica noin, que comumente
reúne as minhocas4. A classificação dos animais agrupados como yoina e rono será
abordada com mais vagar adiante. Antes, vejamos rapidamente como são classificados
as aves e as plantas.
Como disse antes, não há uma categoria que reuna a totalidade das aves. Na maior
parte das informações que obtive, as aves recebem denominação específica, como: kevo
(jacu), nea (jacamim), koma (nambu), vako (nambuzinho), hansi (mutum), shori
(surulinda), sene (nambu), shawan (arara), kana (arara), mira (arara), vawa (papagaio),
shoke (tucano), pisa (maçarico) e txashkon (saracura). Como ocorre com os mamíferos,
os nomes vernáculos designam, na maior parte das vezes, uma única espécie. De tal
modo que as araras, por exemplo, são reconhecidas por três nomes diferentes: shawan
(Ara araraona), mira (Ara manilata) e kana (Ara chloroptera). As corujas são também
conhecidas por três termos distintos: pupu (Otus choliba), que reúne pelo menos três
outras espécies, kete (Pulsatrix perpicillatta) e venon (Ciccaba sp). Mas alguns nomes
vernáculos servem também como categorias genéricas, pois neles os Katukina agrupam
diferentes espécies. Assim, txashkon agrupa quatro diferentes espécies: txashkon kuin
(Aramides cajanea), txashkon washa (Pardirallus maculatus), tama txashkon (Neocrex
erythrops) e kora txashkon (Pardirallus nigricans). A categoria txashkon abrange
espécies da família Rallidae no sistema de classificação ocidental. Há categorias
genéricas ainda para designar os urubus (shete), gaviões (tete), pica-paus (voin),
martim-pescadores (txarash) e beija-flores (pino). Os tucanos (shoke) são discriminados
dos araçaris (pisa). Entre os primeiros, as espécies mais mencionadas são: wi shoke
(Ramphastos swainsonii) e awa shoke (Ramphastos tucanus). Entre os araçaris, são
citados o pisa kuin (Pteroglossus torquatus) e o pasha pisa (Aulacorhynchus
haemotopyguns).
Os passarinhos são todos agrupados dentro da categoria genérica shai e
despertam pouco interesse dos katukina. Normalmente são referidos apenas como shai,
4
Segundo Amaral (1977:33), essa espécie é popularmente classificada como minhoca, tanto assim que
seus nomes mais comuns são fura-terras e minhocão.
178
mas alguns deles têm nomes específicos, como: vari (sol) shai, mani (banana) shai, shai
txeshe (preto), shai honshi (vermelho), shai punan (azul), shai washa (rajado), shai koro
(roxo), mai (terra) shai e tean (igarapé) shai. Aqueles que não têm nomes específicos
podem ser particularizados descrevendo uma característica morfológica, como shai
mampo honshi, "passarinho da cabeça vermelha".
Não há qualquer termo que designe o conjunto do reino vegetal. A floresta
primária é chamada ni'i kuin e as áreas de capoeiras são ni'i pasha, "floresta
verde/imatura". Não me dediquei em detalhe ao assunto, mas os nomes para designar as
espécies vegetais parecem ser abundantes. Assim, não há nenhum termo que agrupe a
totalidade das palmeiras, cada uma delas é designada por um nome que lhe é próprio.
Como exemplo temos jaci (shevo), aricori (pite), jarina (hepo), canaraí (tama) e paxiúba
(tao). As árvores podem ser designadas genericamente como hiwi, mas o mais comum é
o uso dos termos específicos que as designam, como kuran (caucho), keo
(maçaranduba), ako (cumaru-de-cheiro), shono (samaúma), kuman (miratauá) e patxo
(carapanaúba).
Faz-se uso também de categorias genéricas para designar espécies da flora,
embora me pareçam menos abundantes. Algumas palmeiras que oferecem frutos
comestíveis são designadas genericamente como isan. Algumas delas são: kevo isan
(abacaba), isan kuin (patauá), panan isan (assaí) e tikish isan (desconhecido o nome em
português). Os Katukina reconhecem vários tipos de cacau e ingá e cada uma das
espécies reconhecidas é agrupada na categoria genérica no'o e shena, respectivamente.
Quando se quer indicar uso da madeira como lenha, o termo genérico usado é karo.
Assim, shena karo é um ingazeiro cuja madeira serve como lenha. Os cipós em geral
são agrupados na categoria genérica hayansh. Já os cipós que têm propriedades
alucinógenas são denominados oni, os Katukina reconhecem seis espécies agrupadas
nessa categoria.
Uma parte significativa das plantas têm nomes próprios sem qualquer
significado explícito, uma outra parte, entretanto, têm seus nomes relacionados ao uso
que se faz delas. Assim, dois arbustos têm as seguintes denominações: awa mani iso
yama e mari iso yama. Awa mani designa corriqueiramente a banana-grande e mari, a
cotia; iso (urina) yama (não tem) quer dizer "não tem urina". As folhas desses arbustos
são usadas no tratamento para regularizar o funcionamento da bexiga que, devido ao
consumo de banana-grande ou de cotia, pode ser, segundo os Katukina, comprometido.
Esse tipo de nomenclatura pragmática não ocorre para designar elementos da fauna.
179
5
As poucas informações que acumulei sobre a botânica foram recolhidas em menos de dois meses, em
1995. Quando retornei a campo, em 1997, não consegui dar continuidade ao tema, pois as acusações de
biopirataria que pesavam contra a empresa Selva Viva, com a qual os Katukina ingenuamente
colaboraram, fizeram-nos bastante temerosos e melindrosos ao tratar o tema. Como expus na
apresentação, os Katukina pensavam ser acusados, e não testemunhas, na investigação promovida pela
Assembléia Legislativa do Acre. Sem querer correr o risco de ser vista também como suspeita pelos
Katukina, acabei desistindo de voltar à pesquisa da fitoterapia.
6
As categorias inoto, nitxinte e muka foram destacadas também entre os Marubo por Montagner Melatti
(1985: 304-306) e não se trata apenas de uma mesma terminologia, o uso indicado para as duas
primeiras é inclusive o mesmo. Há registro também da categoria muka entre os Yawanawa (Pérez
1999:67).
180
exceções, pois nove dos trinta e seis nomes vernáculos acima comportam mais de uma
espécie: txasho, kapa, yawish, roka, shino, shipi, mari, ketsin e kaman. Estes servem
como categorias genéricas que, complementadas com um determinante, definem
diferentes espécies. Assim, temos:
palavra, não me indicaram qualquer homologia entre eles e eu mesma não fui capaz de
estabelecê-la.
Para as categorias em que se reconhece diversidade, a nomenclatura é binomial:
ao nome de base ou primário, é acoplado o nome secundário ou determinante. Assim,
em Kapa koro, o primeiro nome é o nome de base e o segundo o determinante – não
necessariamente nesta ordem. Os nomes secundários destacam, na maior parte das
vezes, características morfológicas dos animais. Os mais freqüentes fazem referência a
cor do animal, como: koro, roxo; honshi, vermelho; txeshe, preto. Keneya, usado para
definir a onça-pintada e o gato-do-mato, faz menção às manchas (desenhos) que ambos
têm na pele. Outros reportam-se ao tamanho: anipa, grande. Outros ainda remetem ao
habitat, como hene, igarapé, rio ou curso d’água e mana, terra.
Nomes específicos podem ser formados também pelo reconhecimento de uma
homologia morfológica e, nesse caso, há a combinação de dois nomes genéricos, como
em hono kaman – hono (porco) mais a categoria kaman – que designa o cachorro-do-
mato. A combinação pretende destacar a semelhança na cor acizentada da pelagem do
cachorro e do porco.7 Para dirimir a dúvida sobre qual das denominações é a mais
englobante, a inclusão do cachorro silvestre na categoria kaman foi indicada pelos
próprios Katukina. A combinação de dois nomes genéricos repete-se em outros
exemplos. Entre as aves, os Katukina reconhecem uma espécie de socó (Trigrisoma
lineatum) denominada ketsin aka. Ketsin normalmente designa o gato-do-mato e aka é o
nome primário reconhecido ao socó. A combinação desses dois termos se explica pelo
reconhecimento da similitude da coloração da pelagem do gato-do-mato e da plumagem
do socó quando jovem, ambos rajados de amarelo e preto. Esse é um caminho bastante
tortuoso da semântica da taxonomia katukina, uma vez que o gato-do-mato é chamado
ketsin keneya, sendo que o nome secundário, keneya ("com desenho"), é o que destaca o
rajado de sua pelagem, mas o nome primário, ketsin, é que foi selecionado para
especificar o rajado da plumagem do socó.8 Entretanto, cabe destacar que no caso do
socó, ketsin serve como nome secundário.
A combinação mais comum de dois termos genéricos para estabelecer o nome de
uma dada espécie ocorre com awa, que normalmente designa a anta, o maior mamífero
7
Os Achuar também compõem os nomes de algumas animais por homologia morfológica. (Descola
1989:123).
8
Os Shipibo-Conibo denominam o Trigrisoma lineatum como inon jaca, sendo que, entre eles, inon é o
nome dos felinos (Goussard 1983:169). A semântica parece ser a mesma que a dos Katukina.
183
terrestre. Como nome secundário, awa destaca o tamanho avantajado de uma espécie
comparada às outras do mesmo gênero. Assim, awa mani, uma banana e awa shoke, um
tucano, são as maiores espécies entre todos as reconhecidas nas categorias genéricas em
que são classificadas. Entretanto, escapam desta interpretação diversos colubrídeos
conhecidos como awa rono. Certamente os colubrídeos são as cobras mais encontradas
na região, mas estão longe de serem as maiores.
Ainda no que diz respeito à nomenclatura cabe destacar a categoria kuin. Entre
os Katukina e outros grupos pano, kuin é normalmente traduzido como "verdadeiro",
"legítimo". Na taxonomia katukina, kuin serve como nome secundário, de expressão
facultativa, para designar espécies prototípicas de um determinado gênero. Dessa
maneira, entre os mamíferos (mas há exemplos também entre as aves, os peixes e as
plantas), temos shino kuin (macaco-prego, Cebus apella), yawish kuin (tatu-galinha,
Dasypus novemcinctus) e kaman kuin (onça-pintada, Panthera onca)9. Essas espécies,
evidentemente, não são mais "verdadeiras" que as outras agrupadas nas mesmas
categorias genéricas de que fazem parte, o acréscimo desse termo apenas destaca a
distintividade em relação às demais.10 Ao invés de "verdadeiro", talvez seja o caso de
pensarmos a tradução de kuin como "propriamente dito". Teríamos então o "macaco
propriamente dito", o "tatu propriamente dito" e a "onça propriamente dita".11 Essa
tradução tem a vantagem de evitar a criação de oposições artificiais, que não exprimem
o esquema nativo. Involuntariamente, a idéia de que uma dada espécie é "verdadeira"
pode subentender a "falsidade" de uma outra espécie, quando não é disso que se trata.
Afinal, a onça-vermelha é kaman tanto quanto o é a onça-pintada.
A semelhança entre a taxonomia katukina e a ocidental contemporânea revela-se
mais facilmente nos casos em que a diversidade é nula ou pouco reconhecida. Então, a
cada categoria científica eqüivale uma etnocategoria. Excetuando-se os casos mais
óbvios, apenas as categorias txasho e o kapa parecem corresponder exatamente à
9
Os Kaxinawa do rio Jordão parecem fazer uso semelhante do kuin na classificação da fauna (Aquino e
Iglesias 1994:105).
10
O uso de nomes secundários que designam espécies prototípicas, com o sentido de "verdadeiro",
"legítimo" ou "genuíno", é bastante difundido nos sistemas taxonômicos não ocidentais. Berlin
(1992:108-112) fornece exemplos do mesmo tipo entre os Tzeltal, estudados por ele, e também entre os
Waiãmpi e Huambisa, na Amazônia, entre os Srê do Vietnã e os Kalã da Nova Guiné. A partir desses
exemplos e de uma observação de Hunn, o autor conclui que as espécies prototípicas são aquelas
"altamente visíveis, amplamente prevalecentes no meio e freqüentemente observadas". Os exemplos que
recolhi entre os Katukina, contudo, não corroboram essa afirmação. Segundo eles próprios, as onças-
vermelhas (kaman honshi) são muito mais vistas que as onças-pintadas (kaman kuin) e os macacos-
cairaras são mais encontrados que os macacos-pregos.
184
Subdiferenciação
Shipi Callitrichidae
Callimicoridae
11
Agradeço a Manuela Carneiro da Cunha ter chamado minha atenção para essa elaboração.
185
Correspondência um a um
Ano Agoutidae
Kestavo Dinomyidae
Txasho Cervidae
Ame Hydrochaeridae
Kapa Sciuridae
Isa Erethizontidae
Naim Megalonychidae
Posan Bradypodidae
Superdiferenciação
Pisi masho
Shanshan Didelphidae
Makun
Shishi
Procyonidae
Shama
Yawa
Tayassuridae
Hono
Mari
Dasyproctidae
Tsanka
Vi'i
Sha'e Myrmecophagidae
Kanshi meso
Yawish
Kansho Dasypodidae
Pano
Iso
Roka
Shino
Ro'o
Cebidae
Wasa
Nesho
Txona
Katxi taro
12
Todos animais agrupados na categoria kaman são denominados ino quando mencionados em narrativas
míticas. Segundo os próprios Katukina, ino era o nome antigamente dado a esses bichos. O mesmo
ocorre entre os Marubo que, segundo Melatti (1986:19), designam a onça corriqueiramente como kaman
e reservam o termo ino aos contextos ritualizados. A denominação desses predadores como ino é ainda
freqüente entre os Kaxinawa (Aquino e Iglesias 1994) e Shipibo-Conibo (Tournon 1994).
13
Da mesma maneira como fazem os Achuar (Descola 1989:122-123) e os Kayapó-Xikrin (Gianini
1991:42).
14
Segundo Tournon (1994), os Shipibo-Conibo designam como ina todas os animais domésticos. Entre
os Kaxinawa, conforme Camargo (comunicação pessoal), os animais domésticos obtidos através do
contato com os brancos são designados com os mesmos termos de seus correlatos silvestres, mas
justapostos ao termo ina. Assim, o veado é designado pelo termo txaxu e o carneiro pelo termo ina
txaxu; o porco silvestre é chamado hono, o correlato doméstico é ina hono e a anta é chamada awa,
enquanto a vaca é ina awa.
187
15
Mais recentemente, Berlin (1992:119) reviu parte de suas conclusões (e de seus colaboradores) a
respeito das correspondências entre os sistemas de classificação nativos e científico e ponderou que a
significação cultural parece explicar com mais precisão os casos de superdiferenciação nas
classificações etnobotânicas. Nas classificações etnozoológicas a pretensão de "significação cultural"
torna-se menos clara.
188
Entretanto, há que se permitir certa flexibilidade para o uso desta categoria, pois
dela constam pelo menos dois animais que são controversos quanto ao uso alimentar: a
onça-vermelha (kaman honshi) e a irara (voka). Além disso, ela omite o coelho (maka
pantxoya) que também é controverso. 16 Há variações individuais e conforme o hábito
alimentar daquele que comenta a classificação dos animais, estes dois animais pode ser
agrupados ora como yoina ora como yoina ma ou kaman.
Na acepção de animal não-comestível, a categoria kaman alarga a amplitude de
seu campo exposto anteriomente (agrupando onças, cães e ariranha), pois além dos
animais predadores, inclui espécies repelidas de uma perspectiva alimentar (como o
tamanduá-bandeira, por exemplo) e também uma espécie que é tida como a
transmutação de um espírito (yushin), como o posan (bicho-preguiça, Dradypus
variegatus).
Para não nos perdermos na exposição, yoina tem então duas acepções. Na
primeira abrange a quase totalidade dos mamíferos, à exceção de ratos, morcegos, botos
e peixe-boi. Em sua segunda acepção, yoina é carne comestível ou, o que dá no mesmo,
"caça".
Alternativamente, alguns dos animais agrupados como yoina (e aqui pouco
importa se na primeira ou na segunda acepção) podem ser agrupados numa outra
16
Este parece ser o "maca sshoya" que Tournon (1994:105) ouviu dizer dos Shipibo-Conibo que era um
rato comestível.
189
Ainda no que diz respeito aos critérios simbólicos, acredito ser possível afirmar
a existência de uma categoria, não nomeada, implícita, que comporta todos os macacos
– já que explicitamente essa categoria não existe –, pois estes são indistintamente
interditados ao consumo de casais em couvade e de pessoas doentes. Os problemas
causados pelo consumo de macacos têm, inclusive, uma mesma sintomatologia. Como
vimos no segundo capítulo, pais de crianças recém-nascidas que comem carne de
macaco arriscam-se a deixá-las muita agitadas e perturbadas durante a noite.
17
Segundo Aquino e Iglesias (1994), os Kaxinawa do rio Jordão estendem o uso da categoria yoina a
vários mamíferos terrestres e arbóreos, aves e quelônios e dão-lhe o significado de "caça". A categoria
pode ser subdividida inúmeras vezes para agrupar os animais em conformidade com critérios
morfológicos Segundo os autores, há, por exemplo, categorias para designar as "caças grandes" (yuinaka
wapabu) e as "caças pequenas". Como ocorre com os Katukina, há também uma categoria que destaca
190
os "bichos de casco" (yuinaka shakaiabu, entre os Kaxinawa), entretanto, os tatus não estão agrupados
nela, mas na categoria "caças pequenas".
191
nomes distintos daqueles que têm enquanto estão livres na floresta. A listagem abaixo,
que não se pretende exaustiva, oferece uma idéia dos animais que são potencialmente
amansados.
Alguns desses termos são traduzíveis. Assim, pintxo, usado para o porco, faz
referência ao muru-muru, um de seus alimentos prediletos. Outros termos destacam
partes específicas do corpo do animal: poshto, como é chamado o macaco-preto
domesticado, é "barriga"18; veshpi, usado para designar a coruja, é "sobrancelha"; e a
queixada é designada como "orelha" (pantxo). O nome recebido pelo jacu, kewe, é
onomatopeico. Koshte e Maya, termos usados respectivamente para os mutum e para o
jaboti fêmea, são nomes pessoais, sem qualquer significado explícito. Curiosamente, os
Katukina designam o periquito (pitso) como shoke, que é o termo normalmente usado
para o tucano silvestre. Quando amansado, o próprio tucano é designado como wero pisi
192
("olho podre"). O coati e o aracuã são igualmente designados kashka, um termo que não
consegui traduzir nem entender porque se aplica a ambos.
Com as exceções da coruja e do bico-de-brasa, todos os animais listados acima
são comestíveis, sejam silvestres ou domesticados. Os Katukina, do mesmo modo como
outros grupos pano, não interditam ao consumo a carne de animais amansados.
Informações disponíveis sobre os Yaminawa (Calávia Saez 1995:29), Matis (Erikson
1996), Uni (Frank 1982) e Shipibo-Conibo (Illius 1985, Roe 1982:110) também
afirmam o consumo dos animais amansados; no caso dos três últimos grupos, em meio a
rituais. Entre os Shipibo-Conibo os animais eram até pouco tempo atrás criados com
vistas à realização do ritual Ani Shrati. Esse ritual era realizado pouco tempo depois da
primeira menstruação de uma menina, a qual tinha, durante a cerimônia, amputados o
clitóris e os pequenos lábios. O rito foi abandonado devido à censura feita por
missionários e viajantes desde os primeiros anos do contato. Illius (1985) informa,
entretanto, quem em 1983 um shipibo tradicionalista, após a primeira menstruação de
sua filha, realizou-o com algumas modificações: todos os elementos do ritual foram
performados, à exceção da excisão da menina. Por sua vez, Frank (1982) registrou que,
entre os Uni, uma anta amansada foi sacrificada durante um grande ritual, cujo principal
interesse envolvido era o próprio prestígio, intra e inter-local, de seu dono, tanto assim
que os inimigos constavam como convidados principais. O ápice do rito ocorreu com o
sacrifício da anta, mas todos os animais amansados disponíveis na aldeia (como
tucanos, araras e macacos) foram mortos na mesma ocasião.
Entre os Katukina, se algum dia existiram rituais que marcavam o sacrifício
desses animais, foram esquecidos. Não só as pessoas não mencionavam os rituais, como
nenhum detalhe foi mencionado a respeito do consumo dos animais que domesticam
ainda hoje. Uma anta domesticada por um morador da aldeia no rio Gregório, foi morta
e sua carne distribuída entre seus vizinhos, sem maiores cerimônias, antes da mudança
dele para a aldeia do rio Campinas. Seja como for, a menção acima de que no rito uni o
sacrifício de uma anta amansada denotava primeiramente o prestígio de seu dono pode
sugerir algumas interpretações.
Das antigas disputas com os Yawanawa, que tratei em trabalho anterior (Lima
1994a), alguns Katukina recordam-se de um episódio no rio Gregório em que a aldeia
18
Erikson (1996:119) observou entre os Matis o uso de poshtu como vocativo ao macaco barrigudo
(chuna, Lagothrix lagothricha).
193
foi invadida e os animais domésticos foram todos mortos por seus adversários. No caso,
os bichos que mencionaram não eram silvestres, mas porcos, patos e galinhas. Como
todos estes bichos têm correlatos silvestres, talvez seja o caso de interpretarmos,
emprestando a análise de Frank (1982), o episódio como uma "guerra simbólica",
destinada a enfraquecer o inimigo eliminando seus animais de criação. Segundo consta,
o episódio teve seu desfecho com a invasão da aldeia yawanawa pelos Katukina, os
quais também não feriram ninguém, mas só se retiraram após eliminar todos os animais
domésticos de seus vizinhos.
As informações de que disponho sobre o amansamento dos animais não me
permitem ir muito além, mesmo porque, dos animais de estimação que vi, apenas um
não fugiu ou morreu e, até minha última permanência em campo, não tinha ido parar
numa panela. A despeito da mudança de seu estatuto (de selvagem a manso), com a
troca dos nomes pelos quais são conhecidos, a afirmação dos Katukina de que sempre
comeram os animais amansados pareceu-me merecer crédito. Ninguém a contradisse e
todos os adultos recordam-se de ter comido algum bicho amansado pelo menos uma vez
na vida.
A comestibilidade dos bichos amansados certamente contraria o que se sabe
sobre a ampla maioria dos povos amazônicos, que com mais freqüência não comem os
bichos que criam e chegam a conceber essa possibilidade como algo ultrajante.
Escrevendo sobre o estatuto dos bichos de estimação na Amazônia, Erikson (1987b)
desenvolve a tese de que eles são "complementares semânticos" da caça. A partir do
exame de várias etnografias, o autor observou que os bichos de estimação e seus
correlatos silvestres entabulam relações conceitualmente diversas com os homens: "a
consangüinidade comuta-se em afinidade, a violência cede lugar à afeição e o homem
nutre o animal no lugar do inverso". No fim das contas, os animais de estimação
compensam e restauram a assimetria da relação dos caçadores com suas presas. 19
19
Teixeira-Pinto (1997:100-104) discute, a partir dos Arara (caribe) a validade da tese de Erikson (1987b)
e, negando-a, afirma: "o que compensa uma predação é um contra-predação". O argumento de Descola
(1998:30-35) para recusar a tese de Erikson vai no mesmo sentido. O autor equipara a caça à guerra e
observa que a incorporação de mulheres e crianças dos inimigos mortos não deve ser para compensar as
vidas que foram tiradas. Antes expressam uma "filosofia da predação" que busca no exterior a
"perpetuação do si". E conclui: "o que vale para a morte de um homem deveria valer a fortiori para a
morte de um animal, e isso me parece excluir a hipótese de que em um bom número de sociedades
amazônicas, a domesticação da caça possa ser aparentada com uma forma de compensação". As críticas
de Teixeira-Pinto (1997) e Descola (1998) são bastante consistentes. Resta, entretanto, o problema de
explicar por que os animais de estimação deixam de ser tidos como presas entre a maior parte dos povos
amazônicos.
194
Por falta de maiores informações não vou discutir aqui o amansamento dos
animais pelos Katukina. O fato deles terem como edíveis os animais de estimação, com
certeza, fazem-nos atípicos. Talvez seja mesmo o caso de fazê-los constar como mais
uma "exceção que confirma a regra", como Erikson (no prelo a) definiu os Campa
peruanos e Yupa colombianos que comem animais amansados sem maiores cerimônias.
Contudo, não me parece possível estender aos Katukina a análise que o autor faz acerca
da situação dos dois últimos grupos para entender por que comem animais que outros
repelem. Sem avalizar qualquer argumento do materialismo cultural, Erikson
(1987b:125 e no prelo a) observa que a situação dos Campa e dos Yupa é de "penúria
alimentar" e, a partir daí, explica a excepcionalidade que é comer animais amansados.
Ainda que a atual situação dos Katukina (particularmente da aldeia do rio Campinas)
não seja das mais satisfatórias, não chega à "penúria". Além disso, nos dias de hoje
parece-me que é excepcional não apenas como comê-los, mas, principalmente, chegar a
amansá-los. Como escrevi antes, com os cuidados efêmeros que lhes são dedicados, os
pequenos filhotes, antes que tenham tamanho para serem comidos, acabam fugindo ou
morrendo em poucas semanas. Se no passado os cuidados que recebiam eram mais
adequados, é impossível saber.
Rono, as cobras
20
Os Katukina parecem não diferenciar a coral verdadeira (Micrurus sp) das falsas corais. Pelo menos
não as diferenciavam a partir das ilustrações.
21
É conhecida na literatura herpetológica a elevação do rabo entre algumas serpentes, inclusive entre as
corais verdadeiras. Os herpetólogos dispõem de duas explicações para explicar o fenômeno: o caudal
lure seria uma forma de as cobras atrairem suas presas, fazendo o rabo de chamariz; e o tail display
seria uma tática defensiva, elevando o rabo, a cobra surpreende seu predador com o bote (Greene 1973).
196
22
Os Amahuaca comentam também da existência de um ser monstruoso, portador de um veneno
extremamente letal: uma cobra com asas e que tem no peito as suas presas (Carneiro 1964:11).
197
boídeos. Ainda que tal inventário não seja exaustivo, suspeito que a variedade de nomes
para as cobras de grande porte deva-se à aplicação de diferentes nomes para cobras da
mesma espécie, em conformidade com o tamanho que apresentam.
As cobras não venenosas de grande porte figuram em vários mitos, dois deles
serão discutidos adiante, e despertam um profundo interesse entre os Katukina. Sempre
há alguém disposto a falar algo que as envolva, seja para relatar algum susto ocasionado
pelo encontro imprevisto com um grande cobra, seja para descrever detalhes de sua
morfologia, como o tamanho avantajado ou o brilho e os desenhos de sua pele, muito
embora os próprios Katukina admitam que encontros com cobras grandes são raros.
Todas as cobras de grande porte são agrupadas na categoria definida rono romeya. O
nome secundário, romeya é de difícil definição. Como já vimos tantas vezes, -ya é
sempre um atributivo. Por sua vez, rome, nesse contexto, designa um objeto de
propriedades metafísicas possuído pelas cobras e que habilita alguns homens a se
iniciarem nas atividades xamânicas. O encontro com uma grande serpente, seguido de
alterações sensoriais como o turvamento da visão e tremores, indicativos de que a cobra
transmitiu o rome, torna alguns homens eleitos ao xamanismo. Aqueles que não têm
interesse na carreira xamânica fazem pedidos de sorte caso encontrem uma grande
cobra, pedem sorte na caça ou com as mulheres, pedem também vigor físico para
abrirem os roçados. Já as mulheres que as encontram – uma possibilidade mais rara,
dada a restrição das atividades femininas às proximidades de suas casas –, fazem
pedidos de sorte e saúde, como os homens, e, caso tenham muitos filhos, de interrupção
da vida reprodutiva.24
Rome corriqueiramente designa também o tabaco, mas isso não o desvincula
completamente do contexto xamânico, uma vez que essa é a principal substância
utilizada pelos xamãs e rezadores. A propósito, além de designar as cobras de grande
grande porte, romeya designa os xamãs. Como não poderia deixar de ser, o melhor
esclarecimento a respeito de rono romeya foi-me dado pelos próprios Katukina, que
traduziram a categoria como "cobra-pajé".
As propriedades do rome são também um tanto ambíguas, dado que se admite
que uma das cobras agrupadas na categoria rono romeya, a jibóia (mana rono), pode
23
De acordo com Berlin e seus colaboradores (1976), as categorias subespecíficas são encontradas
raramente. Até onde pude saber, nos sistemas taxonômicos dos Katukina as categorias subespecíficas
são encontradas apenas entre os of'ídios.
198
Entre humanos?
24
Lagrou (1998:243) menciona que, entre os Kaxinawa, há um "ritual da cobra" que controla a
fertilidade, pode-se fazê-lo tanto para intensificá-la quanto para esterilizá-la.
25
Da maneira como compreendi, yupa designa um estado que faz com que um caçador não perceba os
diversos sinais (ruídos, cheiros, vestígios alimentares) dos animais na floresta. Entre os Kaxinawa,
Deshayes (1992:101-103) descreve o yupa como "uma substância que tem o mesmo nome" e que, do
mesmo modo que ocorre entre os Katukina, compromete sua percepção na perseguição dos animais.
26
De acordo com Deshayes (2000:32), os Kaxinawa dividem as cobras em duas categorias: as cobras que
têm veneno e as cobras que têm "substância", no caso o muka.
199
no início deste capítulo, uma quantidade significativa de plantas têm seus nomes
secundários relacionados ao malefício provocado pelo consumo de algum alimento,
principalmente de carne de caça.
Seja pela existência paralela de sistemas classificatórios que põem em relevo os
critérios simbólicos ao lado de um outro sistema orientado por critérios morfológicos,
seja pela indicação de que a semântica dos nomes secundários revela importantes
interconexões entre homens, animais e espíritos, por ambas alternativas parece-me
difícil pretender estagnar as concepções katukina de natureza e cultura em nichos
ontológicos incomensuráveis. A origem dos animais é aqui fundamental para que se
compreenda como os dois termos se comunicam. A seguinte narrativa mítica me foi
contada por Mai na tentativa de esclarecer os tabus alimentares.
Não tinha caça, macaxeira, não existia nada. Só existia a floresta, mas dentro da
floresta não tinha nenhum tipo de bicho. Um dia, uma mulher chamou seu marido para
colher pama (fruta), no alto do pé. O marido estava lá em cima e a mulher ficou
embaixo esperando ele quebrar o galho para jogar para ela.. Lá em cima do pau ele
imitou macaco-preto. Assim que ele imitou, tinha um pau grande perto da pama, a
mulher estava embaixo e viu esse pau mexendo e de lá saiu só uma pessoa, um homem.
Era do pessoal que mora embaixo da terra (maeyushinvo). Essa pessoa saiu com uma
zarabatana. A mulher se escondeu. O marido dela, lá em cima, imitou de novo a
macaco-preto. O homem que saiu debaixo da terra assoprou com a zarabatana e
acertou na perna e depois no peito dele. O homem trepado na árvore imitou de novo o
macaco-preto e o maeyushin assoprou com a zarabatana e acertou no pescoço dele. Ele
começou a vomitar e caiu no chão. A mulher estava escondida vendo o que o
maeyushin estava fazendo com o marido dela. Quando ele caiu da árvore, maeyushin
colocou-o nas costas e entrou de novo no pau, para debaixo da terra. A mulher dele
saiu correndo para avisar seus parentes como foi e quem foi que matou o marido dela.
Quando chegou na maloca ela contou pro pessoal. Ela falou que havia sido um homem
que mora embaixo da terra. No outro dia, todos se reuniram e decidiram matar o
homem debaixo da terra, queriam vingar o parente morto. Saíram todos e foram
observar o pau de onde o homem tinha saído. Havia umas formigas pretas carregando
o cabelo do homem para fora de um buraco na terra. A mulher do homem morto falou
que tinha sido ali mesmo que tudo aconteceu. O pessoal começou a cavar buraco para
debaixo da terra. Todos homens e mulheres se reuniram, limparam em volta do pau
para cavar. Nesse tempo tinha um homem velho que colocou nome nos bichos todinhos.
Achou um bicho e colocou o nome de paca (ano). Cavaram mais e saiu um tatu
(yawish), depois saiu tatu canastra (pano). Esses bichos que foram debaixo da terra
procurar o povo do maeyushin. A paca não conseguiu ir. O tatu-canastra fez um buraco
bem grande embaixo da terra. Faltava só um pouco para chegar no maeyushinvo (povo
que mora embaixo da terra). Aí os Katukina reuniram todos. O tatu fez um buraco bem
pequeno para atravessar para a aldeia deles. Mandaram um calango para ver se o
homem estava em casa. O calango foi lá e encontrou somente uma velha. O calango
avisou o tatu canastra que só tinha uma velha lá. Aí mandaram o jabuti. Jabuti foi para
debaixo da terra e só viu a velha. Aí mandaram o veado ir olhar. O veado foi e só viu a
velha. Aí mandaram a tartaruga e o homem ainda não estava lá, só o velha.
Nesse tempo, a onça não estava pintada. O pessoal reuniu e resolveu pintar a onça e
o gato. Pintaram a onça com jenipapo e ela ficou toda malhada. Aí a cotia que tinha
pintado uma onça ficou com preguiça de pintar uma outra com jenipapo e colocou só
202
urucum, por isso que existe essa onça vermelha. Aí mandaram a onça para debaixo da
terra, ela viu a velha e matou a velha. A onça subiu e avisou que tinha matado a velha,
que o homem não tinha chegado. Aí o homem da tribo dos maeyushinvo não era
homem, era um gavião do tamanho de um avião. Aí pensaram: a gente tem que tomar
cuidado que esse homem vai querer matar a gente. Koka Pino Txari27 que avisou que
esse homem era gavião grande. Koka Pino Txari fez as pessoas virarem veado, paca,
anta, macaco-preto, cotia... Ele que deu nome dos bichos. Por isso que quando a
criança está doente não pode comer carne de caça.
Aí o gavião grande chegou. Logo que chegou entrou no buraco que levava para
debaixo da terra. Chegando lá viu a mãe dele morta no terreiro. Ele falou:
- "Foi o pessoal de cima que matou minha mãe, eu vou lá matar tudinho."
O pessoal escutou a zoada do gavião. Koka pinho txarí avisou:
- "Corram logo senão o gavião vai pegar vocês todos."
O gavião espantou todos os bichos. Aí os homens viraram veado, outro virou
queixada, paca... Só tinha bicho que tinha quatro patas, não tinha ave de pena. Aí Koka
Pino Txari arrancou os cabelos da perna e assoprou. Virou jacamim, jacu, nambu,
tucano, arara....
27
Um demiurgo.
28
Os Katukina contam que o macaco cariara ensinou-os ainda a copularem apenas com as primas
cruzadas (pano), proibindo-lhes de abordarem sexualmente suas mães, avós, irmãs e filhas. Na versão
dos Kaxinawa sobre o aprendizado do ato sexual, os homens não sabiam copular porque pensavam que a
vagina fosse fechada e mesmo que fosse uma ferida. Após ver um macaco-prego copulando, um
203
wasiko é uma mulher desejosa de carne de queixada e que importunava seu genro
solicitando que matasse queixadas. Muitos outros mitos dão conta do mesmo processo
de geração dos animais a partir dos humanos.
A ascendência humana dos animais não é exclusivamente a inversão dos termos
ocidentais que atribui aos homens uma ascendência animal nem a revelação do que
pode haver de animal na essência humana (Rivière 1995). A própria condição humana é
o que deve ser destacada uma vez que circunscreve uma campo de comunicação entre
aqueles que a partilham.
A condição humana foi destacada por Descola, em sua etnografia sobre os
Achuar: "o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto
espécie, mas a humanidade enquanto condição" (1989:132). Partindo dessa afirmação,
Viveiros de Castro (1996a:119) observou: "a condição original comum não é a
animalidade, mas a humanidade. (…) os humanos são aqueles que permaneceram iguais
a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais". Uma
observação fundamental que o missionário Tastevin (1926), na passagem destacada na
epígrafe, teve a sensibilidade de reconhecer enquanto tratava de mitos kaxinawa.
É justamente esse "fundo comum de humanidade" que possibilita a comunicação
entre homens e animais e explica os tabus alimentares, como o próprio Mai, que narrou
o mito acima, fez questão de destacar. É também a aceitação ou o reconhecimento desta
partilha que faz com que as atividades desempenhadas na floresta, em particular a caça,
sejam tão melindrosas.
Os procedimentos de caça estão envoltos em cuidados e prescrições que, se
efetivamente burlados, comprometem a carreira de um caçador. O aprendizado das
estratégias de caça faz-se por longos anos, os garotos sempre estão sempre interessados
em ouvir os adultos contarem suas próprias façanhas. As primeiras tentativas de um
garoto para bater um animal inicia-se na tocaia. Além desta estratégia envolver menos
risco – no manejo da espingarda, por exemplo –, permite que o garoto observe de perto
o hábito dos animais. Nas primeiras incursões de caça a curso, o garoto irá
acompanhado, do pai, de um irmão mais velho ou qualquer outro parente próximo, que
deve orientá-lo na identificação dos muitos ruídos, odores e vestígios encontrados na
homem, Hidi Xinu, passou a deflorar várias mulheres. Foram tantas as cópulas que seu pênis inchou e
rompeu-se. Sedento de sexo, Hidi Xinu acabou morrendo (Camargo 1999:134-136).
204
floresta29. Para que a empresa da caça seja bem sucedida, os rapazes devem saber
identificar cantos de certas aves que podem alertá-los da proximidade de certas presas.
Assim, o canto da coruja chamada pupu (Otus colibba) anuncia a proximidade de
porcos e o canto do cancão (Daptrius americanus) a proximidade de um bando de
queixadas. Entretanto, ainda que todos esses conhecimentos seja indispensáveis para
qualquer candidato a caçador, é necessário também que se aprendam os cuidados que a
interação com os animais requer. Quando abate a primeira presa, por exemplo, um rapaz
não deve comê-la, sob o risco de tornar-se panema. Essa proibição é relaxada à medida
em que consegue abater outros animais. Então, o rapaz passa a poder consumir a parte
traseira do animal, recusando a dianteira. O caçador iniciante só poderá consumir
livremente todos os animais após ter firmado o seu status abatendo uma determinada
quantidade de presas, variável entre quatro e seis. Uma carreira promissora de caçador
pode se arruinar caso não sejam seguidas essas recomendações. Os bichos tornam-se
ariscos e o caçador apenas com as técnicas que domina, não consegue abatê-los.
Para livrar-se do panema (yupa) o melhor remédio, utilizado também nos
cachorros, é a aplicação da secreção do sapo conhecido como kampo (Phyllomedusa
bicolor), um estimulante cinegético. Há quem diga, como Kako, que o panema pode ser
também contornado com a ajuda das mulheres. Após sucessivas incursões de caça
fracassadas, um homem pede, em segredo, a uma mulher para bater em suas costas, seja
com suas próprias mãos ou com a parte lateral do terçado. A surra secreta, dada pela
mãe, irmã, esposa ou amante, ajuda a afastar o panema. Além do kampo e das surras,
uma certa dissimulação pode também render uma incursão mais proveitosa à floresta.
Quando sai para caçar a curso, algumas vezes um homem despede-se anunciando que
vai à mata, ea ni'i kai, não que vai abater um animal, visando assim iludir os animais,
que podem ouvi-lo, sobre as verdadeiras intenções do caçador.
Um homem potencializa sua capacidade cinegética com o kampo e com o uso de
colírios extraído do sumo de plantas, eventualmente dissimula sua partida quando vai à
floresta à procura de suas presas, familiariza-se desde cedo com o ciclo vegetal,
29
Atualmente as estratégias de caça são apenas essas duas: a tocaia e a caça a curso, com ou sem
cachorro. Outrora, segundo o velho Tsomi, os Katukina usavam também armadilhas: cavavam buracos
de dois ou três metros de profundidade, nas veredas em que passavam os animais, e fincavam no fundo
estacas afiadas, feitas de pupunha ou cana-brava. Por cima tampavam o buraco com galhos e folhas,
para que os bichos não percebessem a existência da armadilha e desviassem o caminho. Com o mesmo
fim, toda a terra retirada do buraco era removida do local. Essa estratégia envolvia pouco risco, tendo o
bicho caído na armadilha, bastava retirá-lo. Entre os Uni, Frank (1994:169) oferece uma descrição
idêntica de armadilha de caça.
205
podendo assim localizar mais precisamente os animais numa certa época. A combinação
de todos esses elementos, e outros de menor importância, fazem da caça certamente
uma atividade apreciada e prestigiosa. Mas se tantos requisitos e propriedades são
requeridos ao caçador é justamente porque a empresa da caça não é das mais fáceis.
Expondo-se na floresta, por trilhas cerradas e habitadas por seres que, ao menos em
aparência, não são seus semelhantes, o caçador arrisca-se também.
Se na cidade ou nas aldeias marubo que alguns homens visitaram, os Katukina
sentem medo e portam-se com precaução, tanto mais na mata, onde se está diante de
uma alteridade mais radical. Perder-se na mata, embora não seja uma possibilidade
levada muito a sério desde que se more no local há muito tempo, pode acontecer se o
caçador encontrar uma jabota ovada e passar a mão sobre a malha de seu casco. Assim
como o desenho do casco da jabota é labiríntico, o caçador ficará andando pela floresta
e retornando sempre ao mesmo lugar.30 Nessa situação o melhor é não passar a mão na
jabota ou então pegá-la e levá-la consigo. O risco de perder-se não é tanto demorar a
encontrar o caminho certo, mas sim demorar-se nessa tentativa e ver a noite chegar
dentro da mata. Poucos homens arriscam-se em caçadas noturnas, se o fazem estão
acompanhados de algum parceiro, parente ou amigo. Mesmo assim essa possibilidade é
considerada apenas excepcionalmente.
Ao voltar da mata um rapaz reclamou comigo, com muita raiva, que os brancos
estavam invadindo as suas terras para caçar durante a noite. Ele, que havia voltado
frustrado da mata, sem ter matado qualquer bicho, queixou-se: "a gente, Katukina, não
caça durante a noite que é para não faltar caça, os brancos caçam com lanterna que
deixa os bichos mansinhos, e acabam com tudo". Ouvi esse argumento ecológico uma
única vez. Com mais freqüência as pessoas comentam dos riscos da caça noturna, dos
sons que são ouvidos na mata, sem que se saiba de onde vêm, e que podem atrair o
caçador e fazê-lo arriscar a sua própria vida caso sejam respondidos.
Uma noite estava pronta para deitar-me quando uma mulher que morava na casa
vizinha foi pedir-me emprestada a lanterna para seu marido ir caçar. Tratava-se de uma
caçada oportunística, ele acabara de ver um tatu nas proximidades do igarapé enquanto
estava tomando banho e não queria perdê-lo. Emprestei rapidamente. Mais ou menos
30
O mesmo parece suceder entre os Kaxinawa, mas, nesse grupo, é a jibóia que, com seus desenhos, pode
atrair e desorientar o caçador. Segundo um informante de Lagrou (1998:96), o caçador imagina que
segue o caminho certo até perceber que anda "em círculos ao redor da jibóia, os círculos ficam menores
e menores até que você está ao alcance dela".
206
uma hora depois, antes que eu conseguisse dormir, ela voltou para devolver-me a
lanterna. Seu marido não tinha encontrado o tatu, ficou ainda na mata na espreita de
algum bicho que aparecesse, não muito longe de sua casa, mas voltou apressadamente
ao ouvir uns assobios que pareciam evocar o seu próprio nome.
Numa situação dessas, a resposta a um chamado que não se sabe de quem parte
pode encerrar o destino daquele que reconhece no outro um interlocutor. Responder ao
chamado seria assumir-se como segunda pessoa, o que implica em reconhecer o outro
como sujeito. Ocorre que a condição de sujeito "humaniza" o interlocutor desconhecido
e se chegar a saber o que ou quem o chamava, já o faz da perspectiva dele. Nas palavras
de Viveiros de Castro (1996a:135), o caráter relacional da perspectivas torna-se mais
claro: "a forma canônica desses encontros sobrenaturais consiste, assim, em intuir
subitamente que o outro é "humano", entenda-se, que ele é o humano, o que desumaniza
e aliena automaticamente o interlocutor, transformando-o em presa, i.e., em animal".
O caráter relacional das perspectivas é bastante claro no mito exposto
anteriormente, sobre a origem dos animais. Ainda que no princípio não existissem os
bichos, um homem imitou um macaco-preto em cima de uma árvore, enquanto coletava
frutos. Repetiu mais uma vez a imitação e, ao final, acabou morto como se fosse mesmo
um macaco-preto, atingido pelo dardo de uma zarabatana, assoprado por um espírito
(maeyushin) que o viu como presa, adotando então a perspectiva de um humano.
Restava, entretanto, uma testemunha, a mulher do falecido que comunicou aos seus
parentes a tragédia e acabou conclamando o conflito dos humanos contra os espíritos da
terra. Ameaçados pelo espírito que tinha a forma de um gavião gigantesco, um
demiurgo que àquela altura ainda vivia entre os homens, transformou todos os humanos
em animais, na tentativa de protegê-los. Não se sabe quando, mas superado o conflito,
parte deles retornou à forma humana.
Entre os Katukina nem todos os animais são igualmente dotados de um ponto de
vista, a ênfase recai naqueles que são caçados e em outros de que se diz que têm
espíritos poderosos. Seja como for, a possibilidade dos animais serem dotados de afetos
semelhantes aos humanos só se alcança indiretamente, nas várias restrições alimentares
e nos procedimentos de caça, por exemplo. Uma única pessoa me sugeriu
explicitamente a possibilidade dos bichos levarem sua própria vida, humanamente,
tendo suas próprias aldeias – de uma forma próxima àquela que Arhëm (1993)
encontrou entre os Makuna. Um exímio caçador, Ronta, sem querer se prolongar,
sugeriu-me numa ocasião que os bandos de queixadas vão para suas aldeias embaixo da
207
terra quando a pressão humana é exagerada. Por isso os bando de queixada estão cada
vez mais raros na aldeia do rio Campinas, sobretudo após a forte onda migratória dos
moradores do rio Gregório. Em contrapartida, são facilmente encontrados na última. Por
sugestiva que seja a afirmação de Ronta, o exemplo tem de ser matizado, pois entre
todos os animais de caça, o queixada é o único que explicitamente tem um chefe. Num
bando de queixadas, o chefe sobressai-se pelo tamanho avantajado em relação aos
demais e por posicionar-se sempre à frente. Durante uma expedição de caça, entretanto,
a identificação do chefe do bando não exige nenhum cuidado ou procedimento especial.
Um caçador sequer preocupa-se em matá-lo, pois todos têm como certo que isso é algo
impossível, o chefe sempre consegue escapar ileso.
Excetuando-se os animais de caça pareceu-me que outros bichos são
completamente dessubjetivados, em particular aqueles sem qualquer rendimento prático
ou simbólico, como os cuandus. O tema das "roupas" encobrindo a essência humana
comum, presente em várias cosmologias ameríndias, também não se faz presente aqui.
Não por falta de vocábulo, já que tari designa as roupas e não parece ser um
neologismo 31. O correlato das "roupas" é aqui a idéia de transformação ou, como me
disse Mani, a respeito das grandes cobras, "você pensa que é cobra, mas é gente". São
justamente as cobras que ocupam o centro do perspectivismo entre os Katukina.
Falemos delas então.
31
Tari é o mesmo termo usado pelos Shipibo para designar suas vestimentas tradicionais. Nesse grupo a
idéia de " roupa" para expressar a possibilidade de homens transformarem-se em animais e vice-versa
ocorre claramente. Segundo Roe (1982:122): "homens e mulheres podem mudar sua forma mudando
suas roupas. Uma cobra muda seu tari e transforma-se em homem". Do mesmo modo, entre os
Kaxinawa também está presente a metáfora da roupa (tadi) para indicar a transformação corporal
(Lagrou 1998:217-218)
32
Leach (1983:182) observa que os ingleses têm uma atitude hostil em relação às cobras. Essa hostilidade
deriva da anomalia que elas apresentam na classificação geral dos animais, pois os peixes vivem
somente na água; os pássaros voam, têm duas pernas e botam ovos; os bichos (mamíferos) têm quatro
pernas e vivem na terra; enquanto as cobras, embora se movam na terra, botam ovos e não têm pés.
Drummond (1981) analisa o simbolismo da serpente a partir de um mito arawak, "Os filhos da
serpente", e em um esforço comparativo que chega a abranger o Egito e a Grécia Antiga e o
Cristinanismo, conclui que o mito arawak que trata da serpente é apenas "um exemplo de um vasto
esquema mítico que metaforiza sexualidade e reprodução" (:643). Menos cauteloso, Willis (1994:246)
chega a afirmar que talvez a cobra seja "o mais fundamental de todos os símbolos animais".
208
animais" (Gênesis, 2,3). Mundkur (1976), um biólogo que fez um exaustivo estudo
sobre as representações acerca da cobra em diferentes culturas, sustenta que ela é o mais
poderoso dos símbolos animais, devido ao "poder de seu veneno". Na abordagem neo-
darwinista de Mundkur, os sentimentos de temor e, ao mesmo tempo, fascínio que as
cobras despertam estão geneticamente inscritos na fisiologia dos homens (e dos
primatas), resquícios adaptativos de nossos ancestrais, que teriam tido nas cobras seus
adversários mais temidos.
Esta generalização não passou despercebida na literatura antropológica. Lee
Drummond (1981), um antropólogo interessado no simbolismo das serpentes, foi um
dos primeiros a contestar as afirmações de Mundkur, argumentando que ele parece ter
se esquecido das inúmeras cobras não-venenosas, principalmente boídeos e pítons, que
citou em seu próprio inventário sobre o "culto da serpente".
As informações de que disponho sobre as serpentes entre os Katukina permitem
a mesma contestação, uma vez que dedicam a maior parte de seu interesse pelas cobras
às espécies não-peconhentas, em particular aos boídeos. Se fosse para escalonar o lugar
que as diferentes espécies animais ocupam nos mitos katukina, certamente as cobras
não-venenosas de grande porte, terrestres ou aquáticas, ocupariam o topo.
A troca periódica de pele é interpretada como indício de sua imortalidade e
fazem-nas prototípicas da vida eterna que, aliás, alcançaram por distração ou descuido
dos próprios Katukina, que a perderam, como no mito transcrito no terceiro capítulo. As
cobras, os calangos e o mulateiro trocam a pele de tempos em tempos e têm então uma
renovação periódica da vida. Entre os homens, a flacidez e o enrugamento da pele, o
embranquecimento dos cabelos e a perda do vigor físico estão aí para lembrar a
incontornável finitude do ser.
Imortais por deterem a "pedra" que garante a vida eterna, as cobras acumulam
ainda a posse dos conhecimentos xamânicos. Ambos as posses estão certamente
atreladas e as cobras, conhecedoras dos segredos xamânicos e da cura justamente por
viverem indeterminadamente, convertem-se no foco dos interesses dos Katukina. E não
se trata pura e simplesmente de uma metáfora para contrapor essas espécies
privilegiadas ante a existência finita dos homens. Seja para tornar-se um xamã ou
rezador, um homem tem de passar por um contato sobrenatural com uma grande
serpente que, lançando o rome em seu corpo, o capacita a ter acesso aos conhecimentos
xamânicos. Justamente por deterem conhecimentos fundamentais aos homens, as cobras
não são mortas pelos Katukina. Aquele que a mata ou maltrata, corre o risco de expor-se
209
à sua vingança. Recusar seu convite é perfeitamente admissível, não o é não saber
identificá-lo e agir com violência. A recusa violenta ao chamado de uma grande
serpente é replicada na mesma proporção, de forma também violenta. O xamanismo foi
tratado no capítulo anterior, menciono-o aqui apenas para pôr em relevo o forte
simbolismo das cobras entre os Katukina.
A jibóia é protagonista de um outro mito, agora relacionado à caça:
Tinha um rapaz que era panema, muito panema mesmo. Um dia ele foi caçar e não
conseguia matar nada. Ele encontrou uma cobra (mana rono, jibóia) na floresta e
resolveu matá-la para comer. No caminho de volta anoiteceu e ele teve que dormir na
floresta. Havia duas árvores: ele dormiu encostado em uma árvore e colocou a carne
da cobra que carregava encostada na outra. Quando ele acordou, mexeu no paneiro
onde estava a carne da cobra e ouviu um barulho. Ele pensou: Esta cobra virou o quê?.
A cobra tinha virado gente. Dali a pouco a cobra apareceu como um homem e falou:
— Eu vim caçando, fiquei perdido e dormi aqui.
Eles conversaram um pouco e combinaram de trocar os olhos: a cobra ficou com os
olhos dele e ele ficou com os olhos da cobra. O rapaz voltou então para sua casa. Lá,
ele ficava na beira do fogo e via passar muitos veados. Ele perguntava para seus
parentes de quem era aquela criação de veados, mas não era de ninguém. Ele matou
um veado e comeu. Depois passou muitos porcos. Ele matou para comer a carne.
A cobra havia pedido para ele não dizer para ninguém que tinha trocado os olhos
com ele.
O rapaz foi tomar banho e viu criação de jacaré. Depois viu criação de queixada.
Passou um pouco e já tinha uma criação de anta passando na frente dele. O tempo
passou e ele continuava vendo todos os bichos e matando-os com facilidade.
Um certo dia ele estava bêbado de caiçuma (atsa katxa) e alguém lhe perguntou por
que via as coisas assim, por que é que tantos bichos passavam sob a sua visão. Ele
estava bêbado e contou que tinha trocado os olhos com a cobra. Passado um tempo, ele
foi no mato mijar e a cobra apareceu e falou:
— Eu disse para você não falar para ninguém que trocou os olhos comigo.
Então eles destrocaram os olhos – ele ficou com seu próprio olho e a cobra com o
dela – e o rapaz ficou panema de novo.
A visão privilegiada após trocar de olhos com uma jibóia, fez com que o rapaz
adotasse o ponto de vista dela33. Então os bichos apareciam aos montes a seus olhos,
como se fossem domésticos – à sua frente passavam "criações" de veados, queixadas e
jacarés –, e tornavam-se presas fáceis. Transformada a sua visão, o rapaz deixou de ser
panema. Tornou-se, subitamente, um caçador bem-sucedido. Descuidado, como tantas
vezes são os personagens míticos, quebrou o segredo pactuado com a cobra e acabou
retornando à sua condição original de caçador empanemado.
33
A idéia presente no mito de que os olhos da cobra e do homem têm visões distintas, remete aos
Chewong da Malásia, citados por T. Lima (1996:32), entre os quais, "cada espécie natural possui um
tipo particular de olho".
210
34
Entre os seringueiros da região do alto Juruá olhos de jibóias são usados como amuleto para atrair
animais de caça, dinheiro e mulheres (Araújo 1998:83-84).
35
Cabe dizer que entre os Kaxinawa e os Yaminawa (Townsley 1993:457) o conhecimento xamânico
aparece também associado ao jaguar – uma associação que não encontrei entre os Katukina. Segundo
Deshayes (2000:186-188), tanto a cobra quanto o jaguar são seres intermediários, entre outras coisas,
211
famosa por seduzir a sua presa atraindo-a pela emissão de um som, por hipnotizar
através de seus olhos e por seu encantamento (dau) incorporado no desenho de sua
pele" (:96).
Enquanto entre os Yaminawa (Townsley 1988:133), excrementos da anaconda
são consumidos para que os homens obtenham os conhecimentos xamânicos, entre os
Amahuaca os homens comem os excrementos a fim de tornarem-se bons caçadores36
(Carneiro 1970). Por sua vez, Saladin d'Anglure e Morin (1998) destacaram, entre os
Shipibo-Conibo, a vinculação das cobras com os conhecimentos xamânicos. Roe
(1982:52), em seu trabalho sobre o mesmo grupo, fornece um mito em que as cobras
são vinculadas ao sucesso na caça. Neste mito, um caçador azarado encontra um
homem-cobra e após este manipular e assoprar sua zarabatana, torna-se um exímio
caçador. Erikson (1999), escrevendo sobre os Matis, associa estreitamente xamãs e
usuários de zarabatanas: "ambos operam por meio de pequenos dardos (visíveis ou
invisíveis) e o princípio místico, sho, é o que garante eficácia tanto das zarabatanas
quanto dos xamãs". A informação nada diz sobre a vinculação dos conhecimentos
xamânicos e de caça às cobras, mas sugere correlações importantes entre os dois
especialistas. Nesse sentido, talvez não seja mera coincidência o fato de que os
Yawanawa (Pérez 1999:38) designam seus cantos de cura de shuanka enquanto os
Katukina chamam como shonka as antigas zarabatanas. Além da semelhança, os dois
termos devem guardar outras conexões.
Na literatura pano alguns autores têm explorado a oposição entre xamãs e
caçadores. Assim, Deshayes (1992) definiu o chefe kaxi como um hiper-caçador,
antítese do xamã. Tão antagônicos (mas complementares) os dois papéis, que cada um
deles deve ser de uma das metades que compõem a sociedade kaxinawa. Escrevendo
sobre os Yaminawa, Townsley (1993:453-454) explorou a metáfora dos "caminhos",
presente nos mitos e cantos, para opor especialistas xamânicos e caçadores. O autor
descreve que atrás das casas na aldeia iniciam-se os caminhos largos e limpos em
direção à floresta. Estes caminhos, quanto mais distantes da aldeia, tornam-se mais
estreitos e cerrados. Neles os caçadores penetram à procura de suas presas, caminham
porque têm em comum os desenhos em seus corpos, são keneya. Na interpretação do autor os desenhos,
kene, são como "caminhos visuais" e possibilitam alcançar o "sentido profundo das coisas".
36
As inversões envolvem também certas práticas que não se relacionam às cobras. Assim, os Yaminawa
aspirantes a xamã submetem-se às picadas das formigas chamadas ani (Townsley 1988:133), uma prova
dolorosa à qual os homens katukina, no passado, passavam para ter sorte no abate das aves, como
escrevi no segundo capítulo.
212
tentando identificar todos os rastros, cheiros e sons. Finalmente, tentam atrair sua presa
imitando-a. Uma estratégia análoga é adotada pelos xamãs. Nas palavras do autor, "esta
mímica, por intermédio da qual os humanos momentaneamente dominam o não-
humano, tornando-se como ele, cria um campo de comunicação partilhado, e é
precisamente este o objetivo do canto do xamã".
Observo que essas oposições, certamente válidas para os grupos em que foram
propostas, não se devem confundir com o ponto para o qual tenho chamado atenção: a
vinculação dos conhecimentos cinegéticos e xamânicos às grandes cobras, jibóias e
anacondas. Aqui, a leitura que faço aproxima-se daquela que fez recentemente Calávia
(2000). Analisando as "mitologias do cipó" entre os Kaxinawa, Yaminawa e
Yawanawa, o autor observou como a ayahuasca, generalizadamente associada à cobra,
não é um "fenômeno exclusivamente xamânico", vincula-se também a propósitos
guerreiros e cinegéticos. Ao final, segundo o autor, "a cobra e o cipó se englobam
reciprocamente e englobam o conjunto dos animais da floresta". A despeito do fato de
que os mitos katukina que obtive em campo não agrupam diretamente, numa única
narrativa, as cobras e o cipó, o exame de outros mitos e das concepções e práticas
cinegéticas e xamânicas conduzem-me à mesma conclusão.
Se aceita a interpretação de que os animais estão sob o controle das cobras,
podemos correlacionar as atividades de xamãs e rezadores. Uma parte significativa das
patologias são concebidas como tendo origem alimentar. As aflições do corpo são, em
grande parte, resultado da quebra de resguardos alimentares. Os xamãs e rezadores,
responsáveis pelo restabelecimento dos doentes, adquirem seus conhecimentos por
intermédio justamente das cobras e aprendem a debelar o espírito do animais que
afligem os doentes. Embora tenham que saber localizar a sua presa identificando todos
os vestígios (rastros, cheiros e sons, principalmente), acabam, nos procedimentos de
cura atuando como caçadores às avessas, pois se o último tem de atrair a sua presa, o
que os rezadores fazem é justamente espantá-la, ameaçando matar os bichos à faca ou
com espingardas e também afogados, jogando-os nos igarapés. Como descrevi no
capítulo anterior, os cantos de cura dos Katukina – e também dos Shipibo-Conibo,
Yawanawa e Marubo – tematizam um confronto entre os rezadores e os yushinvo que
provocam as doenças.
Fora do contexto da cura, os xamãs (mas não os rezadores) têm também a
atribuição de atrair a caça para as proximidades da aldeia e o fazem entoando os
cânticos de cura que lhes foram ensinados pelas cobras e viajando pacificamente por
213
toda a geografia cósmica. Para isso, assumem a forma de animal, transmutando seu
corpo para comunicar-se além das fronteiras que lhe circunscreve a aparência humana.
Os riscos envolvidos nessas viagens xamanísticas são justamente perder o controle,
desfazer a paz imprescindível nestes encontros máximos de alteridade e render-se
indeterminadamente à forma animal. Dois mitos relatam a imprudência de alguns
homens numa sessão de ayahuasca:
Tinha um pajé (romeya) que estava tomando cipó, dizendo que ino yawa (uma
queixada valente, que come gente)37 já estava perto. Um outro homem disse:
— Ah! Pode vir, pode vir que a gente resolve.
Romeya disse:
— Tu não resolve nada...
O homem insistiu:
— Resolvo. Se você é um romeya mesmo, pode trazer a queixada pra cá que a gente
resolve.
Aí romeya tomou cipó de novo e viu que ino yawa já estava perto. O homem dizia:
— Pode trazer pra cá que a gente resolve. Deixa comigo que eu resolvo.
Romeya disse:
— Tu não resolve nada...
O cunhado deste homem disse ao romeya:
— Não, não traz a ino yawa pra cá, deixa ela voltar pra lá de novo.
O homem insistia:
— Traz pra cá! Traz pra cá que a gente resolve.
No outro dia, eles foram tomar cipó de novo. Ele falava do mesmo jeito. O cunhado
dele, com raiva dele, achava que ele estava mentindo. O romeya disse, de novo:
— Amanhã de manhã você vai lá espiar ino yawa, ver como ino yawa (os queixadas)
vêm.
Ele disse:
— Ah! Eu vou espiar lá, pra ver se é verdade mesmo.
Eles saíram, estava ainda escuro. Quando deu 7 horas da manhã o homem que
desafiou o pajé estava morto de cansado e ino yawa já estava perto. O homem falou pro
romeya que o acompanhava:
— Ino yawa já vem mesmo romeya e agora, como a gente faz?
O romeya respondeu:
— Resolve, que você estava dizendo que resolvia.
Aí ele, a família dele mais a família do cunhado dele subiram numa samaúma grande
que estava caída. Ele estava com um cipó na mão e subiram. O cunhado do homem
valente perguntava para o romeya:
— E agora romeya, como a gente faz?
— Não, agora tem que resolver com ino yawa.
Ino yawa derrubou as casas, tudo, comeu tudinho. Só ficou a família dele e a família
do cunhado dele. Quando acabou de comer essa gente tudinho, os ino yawa voltaram
pra mata de novo e os três acompanharam ino yawa: o homem valente, o cunhado dele
e o romeya. Foram embora, ninguém sabe pra onde eles foram, parece que viraram ino
yawa também.
37
Ino é o termo com o qual os Katukina denominam as onças miticamente e yawa designa a queixada.
Numa tradução literal teríamos então a "queixada-onça", destacando assim o potencial agressivo e
predador dessa "espécie" de queixada.
214
Um homem estava tomando cipó (oni). Enquanto isso, o cunhado dele foi atrás de
queixada, o cunhado dele matou não sei nem quantas queixadas. Então, o cunhado
chegou e ele disse:
— Tu já veio cunhado?
— Já vim. Eu já matei as queixadas, eu vou juntar tudinho para nós levarmos esses
bichos que eu matei. Você pode esperar aí que eu vou juntar a queixada tudinho.
Enquanto isso, o cunhado ficou juntando a queixada que ele matou e ele não esperou.
Chegou um outro homem que estava também caçando com o cunhado dele e disse:
— Ah! Nós matamos queixada, nós não matamos mais queixada porque você não
deixa a mulher, tem saudade da mulher e não foi caçar com a gente.
Ele ficou com raiva do outro e falou para a mulher dele:
— Mulher, eu vou para o lado que o bando da queixada foi, eu vou espiar, você
espera por aqui mesmo que eu venho logo.
Então, ele saiu sozinho. Pegou a flecha, o cachorro e saiu. O cunhado dele chegou e
perguntou dele:
— Cadê o cunhado?
A mulher disse que ele tinha saído. Ele disse para a irmã dele:
— Mas eu falei pro seu marido esperar aqui para a gente levar as queixadas.
Então ele saiu atrás de seu cunhado. O cunhado dele foi, gritou, mas ele escondeu,
escondeu no mato. A flecha dele estava quebrada e ele deixou no canto. O cunhado dele
foi atrás e gritou, gritou, gritou. Ele não respondia nada, nada, nada. O cunhado dele
resolveu voltar. No outro dia o cunhado dele foi atrás dele de novo.
No outro dia o cunhado dele foi atrás de novo, gritava e não respondia. E foi, foi,
rastejando a queixada todo o tempo. Onde a queixada dormia, ele dormia também no
toco do pau. O cunhado dele gritou, gritou, gritou e ele não respondia nada. Isto
porque ele foi embora, virou queixada. Hoje em dia ele ainda está com os queixadas.
Estes tempos que eu fui matar queixada, eu vi ele. O cachorro que viu. O nome dele é
Panan. Ele é o chefe das queixadas.
Além dos perigos da imprudência, o que essas duas narrativas sugerem é que os
especialistas xamânicos, no caso os bebedores de cipó, e os caçadores não se devem
confundir. Pode-se beber cipó para ver as caças que serão abatidas, mas ir à caça sob o
efeito do cipó é, de princípio, uma temeridade.
Voltemos à correlação entre especialistas xamânicos e caçadores. Os xamãs, em
suas viagens cósmicas, transmutam seus corpos, viram onças, macacos, queixadas, na
água tomam a forma de surubins. A transmutação física, como observou Viveiros de
Castro (1996a:133) não deve ser compreendida, entretanto, como um disfarce ou
fantasia, mas como meio de estabelecer a comunicação nesse campo intersubjetivo, para
"ativar os poderes de um corpo outro". Já o caçador em sua incursão pela mata conta
com seu próprio corpo, humano, e ativa seus poderes com as injeções de kampo –
215
substância que pode dissipar o rome do corpo dos xamãs e rezadores e que, por isso, é
usada por eles apenas em pequena quantidade – e com o sumo de plantas pingadas em
seus olhos, estimulantes cinegéticos que aguçam seus sentidos, a visão torna-se clara, a
audição e o olfato apurados fazem-no seguir as pistas certas.
Aqui também as cobras estão presentes, embora se trate agora de uma cobra
venenosa. Após retirar a secreção do dorso e das patas do kampo, uma pessoa deve
devolvê-lo vivo à mata. Caso mate o kampo, a surucucu aparece no caminho dessa
pessoa e ameaça matá-la, picando-a. As surucucus também fazem uso do kampo. Para
produzirem o seu próprio veneno as surucucus sugam com suas presas a secreção do
kampo, daí a vingança contra quem o mate.
Caçadores e especialistas xamânicos atuam em diferentes horários: enquanto os
primeiros vão à mata a procura de algum bicho com os primeiros raios de sol, os
segundos iniciam suas atividades apenas depois que o sol se põem. A noite é dos
espíritos (yushin), o que justifica o expediente invertido que ambos cumprem.
É bem verdade que nos dias de hoje os Katukina não contam mais com xamãs
poderosos nem com caçadores extremamente aplicados, os atuais não são comparáveis à
qualidade e quantidade deles que havia no passado – pelo menos é isso o que todos
comentam. Seja como for, contrapor os cuidados e formas de conduta ideais que ambos
têm de adotar ajuda a pôr em relevo a posição que cada um deles ocupa,
compreendendo-as como contraditórias, mas ainda assim vinculadas à mesma esfera de
conhecimento, controlada pelas cobras. Se os animais silvestres aparecem aos olhos da
jibóia como domésticos, é porque ela controla tanto o sucesso do caçador quanto dos
especialistas xamânicos que, seja nas sessões de cura seja tentando fazer a caça farta,
estão lidando com seres que estão sob o seu próprio domínio.
A vinculação dos conhecimentos das grandes cobras tanto à caça quanto ao
xamanismo, duas atividades opostas, parece suficiente para atribuir às cobras um lugar
estratégico na cosmologia katukina. Como xamãs e caçadoras emblemáticas, as cobras
permitem aos Katukina conhecerem melhor aquilo que, convencionalmente, chamamos
de "natureza".
216
CONCLUSÃO
Como se sabe, caminhos – para usar uma metáfora recorrente nos cantos
xamânicos dos Pano (Townsley 1988, Pérez 1999) – distintos podem conduzir a um
mesmo lugar. Na dissertação de mestrado afirmei (Lima 1994a:117) que se a xenofobia,
que tantas vezes se atribui aos ameríndios, não se fazia presente nem servia para definir
as relações que os Katukina teceram ao longo de sua história com grupos indígenas
vizinhos (Kulina, Yawanawa e Marubo), a idéia contrária, a xenofilia, também não era
adequada. Nem etnocêntricos nem relativistas extremados, a dinâmica do contato dos
Katukina com outros grupos reconhecia gradações e oscilações que não se podiam
ignorar. Dicotomias como interior/exterior, dentro/fora, "nós"/"outros" diluíam-se
facilmente. No caso específico, o conceito de nawa, usado pelos Katukina (e outros
Pano) tanto para referir-se a si mesmos quanto aos "outros" evidenciava a dificuldade de
sustentar a rigidez dicotômica. Agora, examinando as concepções katukina sobre as
relações entre humanos e não-humanos é como se a mesma resposta fosse adequada.
Mas afirmar isso categoricamente seria iniciar a conclusão pelo final do texto e o
procedimento mais adequado parece-me recolher e entrelaçar alguns fios soltos que
deixei pelo caminho.
Humanos e não-humanos têm uma característica em comum que permite,
independentemente da variabilidade de seus corpos, a comunicação: todos têm
igualmente yushin. A igualdade espiritual (ou metafísica) que delimita o campo
intercomunicativo não se desdobra, contudo, em livre tráfico. Justamente a
variabililidade dos corpos marca o recorte de tipos específicos. Tendo como referência a
perspectiva humana e leiga, ainda que possam eventualmente partilhar espaços comuns,
homens, animais e espíritos devem manter-se suficientemente afastados. Apenas os
especialistas xamânicos estão habilitados à interação mais próxima com não-humanos e,
mesmo assim, obedecendo certos cuidados.
Os processos de construção do corpo insistem justamente na diferenciação entre
humanos e não-humanos. Neste sentido, o ideal de moderação que pauta a vida
quotidiana e as restrições alimentares refletem a preocupação em ter o corpo sob
controle. Por um lado, entregar-se a excessos e ignorar a etiqueta social – falar alto e ser
217
voraz com a comida, por exemplo –, são formas que, em si mesmas, guardam a negativa
da sociedade e, por extensão, da humanidade. Por outro, após circunscrever o grupo de
parentesco de substância, as restrições alimentares demarcam fronteiras entre
humanidade e animalidade. O contrário, a não observação das restrições, faz a vítima
confundir-se e identificar-se com seu agressor. Assim, os pais que não evitam comer
carne de macaco enquanto têm filhos pequenos, acabam vendo-os assumir o
comportamento de um macaco. As crianças ficam agitadas e perturbadas, ameaçando
morder as pessoas, como se efetivamente tivessem estabelecido uma identidade com
aquele que a agride.
O conteúdo e as implicações sociológicas dos resguardos alimentares foram
discutidos no segundo capítulo. Observo agora que os resguardos alimentares servem
bem par exemplificar o campo intercomunicativo de que falava antes. Do mesmo modo
como o são os cuidados que os procedimentos de caça exigem. Ainda que entre um e
outro as coisas se passem diferentemente. No caso de desrespeito aos resguardos
alimentares, entende-se que o yushin do animal consumido imprudentemente invade a
pessoa, o que fragiliza os vínculos entre o corpo e seus espíritos – o do corpo
propriamente dito (yora vaka) e o do olho (wero yushin) –, podendo ocasionar então a
morte. Já no contexto da caça, os riscos de expedições noturnas por exemplo, trata-se de
uma atração pelos espíritos. Em qualquer das situações o resultado é o mesmo: a
identificação do humano com o não-humano.
Todas as interações com seres não-humanos, sejam animais ou espíritos,
implicam em alguns riscos. Se há um descompasso entre a forma corporal e a forma
espiritual, a interação é sempre arriscada. Nesse sentido, reforçando o que disse antes,
os mortos são uma ameaça e o que os antigos e os atuais procedimentos funerários
afirmam é o processo de alheamento do morto. Sem seu próprio corpo, humano, o
yushin de um falecido é ele mesmo um estranho.
O segundo e o terceiro capítulos abrangem esses processos: a construção do
corpo e da pessoa e sua destruição, na morte. No quarto capítulo tentei definir os
contornos da interação com o mundo dos espíritos a partir daqueles que, a rigor, têm as
credenciais específicas para isso, os xamãs e rezadores. Estes são homens eleitos por um
contato sobrenatural que, observando dietas específicas e submetendo-se a
treinamentos, facultam a comunicação com não-humanos. Aqui convém chamar a
atenção para algo que talvez tenha passado desapercebido. Enquanto toda interação
intraespecífica (i.e., entre humanos) exige a moderação e a polidez, fundamentadas na
218
premissa de que se deve usar mais da persuasão que da violência, a interação inter-
específica (i.e., com não-humanos) dos shoitiya nos ritos de cura se faz por princípios
contrários. A fim de recuperar seus pacientes, o shoitiya assume em seus cantos uma
postura violenta diante dos espíritos. As formas pacíficas de relação social exaltadas no
quotidiano cedem lugar à agressividade. No rito de cura, o shoitiya deve combater o
espírito agressor e, em um certo sentido, revela sua contraface de caçador.
Deste breve resumo compreende-se que os esquemas dicotômicos listados acima
são tão inadequados para pensar a construção da noção de corpo entre os Katukina
quanto o é a chave natureza/cultura para expressar as relações que mantêm com seu
meio. No último capítulo tentei explorar justamente a taxonomia da fauna – dos
mamíferos e das cobras em especial – a fim de ressaltar que os critérios de classificação
não são independentes das posições que cada um dos elementos ocupa em relação ao
outro. Assim, vimos que alguns animais podem ser agrupados explicitamente por
critérios morfológicos, como são aqueles que têm casco/carapaça, shakaya ou as cobras
que têm veneno, rono paeya. Contudo, o reconhecimento dessas características
específicas fazem-nos portadores de determinadas propriedades que interferem
diretamente no domínio humano. Os bichos de casco consumidos por mulheres grávidas
podem enclausurar a criança no ventre materno e causar dificuldades no parto.
Estabelece-se uma homologia entre a morfologia desses bichos, envolvidos em seu
casco, e da criança em formação, envolvida no útero da mãe. Por sua vez, apenas
homens mordidos por cobras venenosas estão habilitados a tratar acidentes ofídicos.
Estes exemplos permitem dizer que os critérios classificatórios ao mesmo tempo em que
objetivam, subjetivam.
Ainda que essas formas de classificação sejam partilhadas por todos, tanto assim
que orientam os resguardos alimentares, revelam sobretudo um ideal de conhecimento
xamânico. Isto porque os especialistas xamânicos – atualmente apenas os rezadores
(shoitiya) – podem interferir, com seus cantos de cura, diretamente nos casos em que as
interações dos diferentes domínios podem resultar em prejuízo aos humanos.
Contrastando o conhecimento ocidental e o ameríndio, Viveiros de Castro
(1999) escreveu que "o xamanismo é uma forma de ação que pressupõe um modo de
conhecimento ou um certo ideal de conhecimento". Um ideal distante da "epistemologia
objetivista de nossa tradição". Enquanto na "nossa tradição" a "forma do Outro é a
coisa", o conhecimento xamânico orienta-se pelo ideal oposto: "a forma do Outro é aqui
a pessoa". Todavia, a subjetivação de não-humanos, sejam animais ou espíritos, não
219
condição inicial que a humanidade teve de enfrentar e contra a qual deve definir-se a si
mesma (…). Se tal é o caso, no mundo ameríndio a afinidade e a aliança – a troca – em
vez do parentesco – a criação ou a produção – seria o dado, a condição não-
condicionada".
Sem querer entrar diretamente no debate que se desenrola nas entrelinhas da
passagem citada, entre os Katukina as relações afins predominam nas narrativas míticas,
mas parecem igualmente comandar as relações atuais com o exterior, seja intra ou
interespecífica, com humanos ou não. Primeiramente, há um conjunto de termos de
afinidade efetiva (sogro/genro; sogra/nora; marido/esposa) que são amplamente usados,
mesmo nas situações em que seriam supostamente dispensáveis, i.e., nos casamentos
entre primos cruzados em que a terminologia de parentesco por si só denota a afinidade
(Apêndice 1). Um segundo aspecto a ser observado é que alguns personagens míticos
que outrora ensinaram e/ou transmitiram os itens culturais são hoje os anfitriões celestes
dos mortos. Por fim, Rono Yushin, portadora de todos os conhecimentos xamânicos e,
quiçá, controladora de toda a população da floresta, é como uma "esposa" daqueles que
instrui, dos xamãs e rezadores. Entre os Katukina, não são poucas as dimensões em que
as relações sociais são pensadas como relações de aliança. Talvez pudéssemos mesmo
dizer que a aliança engloba a sociedade e a humanidade, em seus próprios limites e além
deles.
Finalmente, cabem algumas palavras sobre os juízos comparativos entre os
Katukina e os demais Pano, incidentalmente distribuídos ao longo do texto. Em
primeiro lugar, chamam a atenção as semelhanças dos materiais katukina com aqueles
disponíveis acerca de outros grupos panófonos. Neste sentido, as várias semelhanças
sugerem que certas oposições consagradas na literatura devem ser minimizadas. Nem o
meio ecológico ribeirinho dos Shipibo-Conibo – opostos aos grupos do interflúvio –
nem a tendência endogâmica e autocentrada dos Kaxinawa – em oposição aos grupos
compósitos e "abertos" – são obstáculos suficientemente rígidos para impedir que
compartilhem concepções que são comuns a boa parte dos grupos de língua pano. No
caso dos Shipibo-Conibo, seu xamanismo parece bastante próximo daquele praticado
pelos Katukina e pelos Marubo, particularmente no que diz respeito às "uniões místicas"
dos xamãs com mulheres-espíritos. Por sua vez, o tema do mundo subaquático, entre
outros, aproxima os Kaxinawa dos Katukina, além dos Yaminawa, Sharanawa e dos
Shipibo-Conibo. Do mesmo modo como o destino post mortem do espírito do olho, que
ganha um novo corpo no céu, sendo este um tema que, em diferentes versões, aparece
221
kariera)". Há, creio, dificuldades para sustentar esta sua tese: os Uni, reputado o grupo
mais guerreiro e mais adepto do endocanibalismo funerário, não apresenta o perfil
kariera de tantos Pano e seu sistema de parentesco (Frank 1994) aproxima-se mais dos
Katukina, dos quais estão separados por centenas de quilômetros.
Por fim, antes que se faça o esforço de buscar correlações que fundamentem as
semelhanças e diferenças – sejam da escatologia, do xamanismo ou da cosmologia –, é
preciso notar quão problemática é a idéia de uma "organização social pano". Embora
poucas vezes se mencione, o panorama não é tão uniforme. Entre os grupos de feição
kariera há significativas variações: os Kaxinawa (Kensinger 1995a) apresentam metades
e seções, os Yaminawa (Townsley 1988) apenas metades, os Marubo (Melatti 1977)
apenas seções e os Sharanawa (Siskind 1973a) e Yawanawa (1999) não têm nem
metades nem seções. O destaque de tantos detalhes pode conduzir ao nominalismo, um
risco que prefiro evitar – mesmo porque contraria os objetivos que me conduziram até
aqui, em um percurso repleto de incidências comparativas. De qualquer forma, destaco
que é baixo o rendimento da correlação entre as várias semelhanças das concepções
cosmológicas (xamânicas e escatológicas) pano e a organização social. Talvez seja o
caso de buscá-la em outros domínios.
APÊNDICE 1
Terminologia de Parentesco
termos do diagrama para estas categorias são, na maior parte das vezes, usados em
referência.
Dado o pequeno número de critérios classificatórios, cada termo abrange um
número amplo de parentes. Assim, ego masculino usa o termo otxi não só para seu
irmão mais velho real quanto para aqueles classificatórios, que são filhos de sua ewa, ou
seja, de sua mãe real ou classificatória, visto que na primeira geração ascendente todas
as mulheres são ewa ou natxi dele.
+2 txaitxo itxa
2 vava vava
Diagrama 1: Terminologia de parentesco para Ego masculino
+2 txaitxo itxa
2 vava vava
Diagrama 2: Terminologia de Parentesco para Ego Feminino
225
1 O uso de termos específicos para afins efetivos está presente também entre os Marubo (Melatti
1977:102), os Kaxinawa (McCallum 1989:127), os Sharanawa (Siskind 1973:79-80), os Yaminawa
(Calávia 1995) e os Yawanawa (Carid 1999).
226
Ego
Txaitxo FF, MF masculino e feminino
Itxa MM e FM masculino e feminino
Papa F masculino e feminino
Epa FB feminino e masculino
Ewa M, MZ masculino e feminino
Koka MB masculino e feminino
Natxi FZ masculino e feminino
Otxi elB masculino e feminino
Txitxo elZ masculino e feminino
Txo'o yB e yZ masculino e feminino
Pui B/Z do sexo oposto masculino e feminino
Wetsa B/Z do mesmo sexo masculino e feminino
Pano MBD e FZD masculino
Tsave MBD e FZD feminino
Txai MBS ou FZS masculino e feminino
Vake S, BS e D, ZD masculino e feminino
Pia ZS e BS masculino e feminino
Rari ZD e BD masculino e feminino
Vava SS, DS, DS, DD masculino e feminino
Rayose WF, WM e DH
Vavawan HF, HM e SW
Vene H
Awin W
228
APÊNDICE 2
Grafia de palavras Katukina
a = pato
e = fechado
i = milho
h = é uma aspiração quase imperceptível
k = casa
m = mato
n = noite
o = boca
p = pouco
r = barato, eqüivale sempre ao r intervocálico, mesmo no início da palavra
s = sala, eqüivale sempre ao ss em português
sh = chave, xícara
t = tio
tx = Tcheco-Eslováquia
ts = assemelha-se a tx, mas é mais suave
u = unha
v = vento
w = "world", em inglês
y = "you", em inglês
' = oclusão glotal
Há uma proposta ortográfica elaborada pela MNTB (1977), que foi, de forma
aproximada, seguida aqui. Atualmente os professores katukina estão elaborando, sob os
auspícios do Setor de Educação da CPI-AC, uma ortografia de sua própria língua. É por
essa razão que uso o "sh", como exemplifiquei acima. De minha própria parte, tenderia
a trocá-lo pelo "x". Como os Katukina, certamente influenciados pela grafia proposta
pelos MNTB, usam o "sh" (no lugar do "x") em suas publicações (André Shere 1993),
acabei optando por essa alternativa.
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