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Este trabalho é produto da leitura de um caso de tratamento breve realizado por Freud com um paciente, um
jovem militar que apresentava sintomas graves de neurose obsessiva sobre os quais foi possível obter efeitos
terapêuticos rápidos.
Sintomas
Angústia: medo de que pudesse acontecer algo de terrível a duas pessoas que amava: seu pai e a
mulher amada.
Compulsões: cortar a garganta com uma lâmina e bloqueio de atos em razão de associações absurdas
que fazia entre eles e alguma idéia obsessiva.
Fez vários tratamentos, mas apenas um deles deu algum resultado, uma hidroterapia em um sanatório,
mas atribui isso ao fato de ter conhecido lá uma pessoa com que teve relações sexuais regularmente,
uma vez que suas experiências sexuais eram raras e irregulares, e as prostitutas lhe causavam
repugnância.
Início do atendimento
O tratamento teve início em 1º de outubro de 1907 e transcorreu até meados de 1908, não tendo completado um
ano de duração. Durante esse período, e vale lembrar que as sessões eram realizadas diariamente, os sintomas
obsessivos foram se reduzindo até chegar ao restabelecimento completo da personalidade do paciente, bem
como a extinção de suas inibições.2
Sexualidade Infantil
Entre os quatro e cinco anos de idade, iniciou sua vida sexual, foi com Fraulein Peter, uma governanta
muito bonita e jovem: deitado ao seu lado no sofá da sala, ele lhe pede para deixá-lo se enfiar debaixo
da sua saia. Ela concorda com a condição de ele não contar a ninguém. Ele passa então a manipular
seu corpo e genitais. Isso o perturbou e despertou uma forte tentação de ver o corpo feminino.
1
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Livro X. Ed. Imago. RJ. 1969. p. 159
2
Ibidem.
3
Ibidem. p. 164.
Tinha o hábito de apreciar também, com muita excitação, o corpo, especialmente as nádegas, da outra
governanta, Fräulein Lina, quando esta se deitava à noite.
Uma cena infantil: certa noite estavam conversando, ele, o irmão e três criadas da casa, quando
Fräulein Lina disse: “Poder-se-ia fazê-lo com o pequeno; mas Paul (era eu) é muito desajeitado,
seguramente ele iria falhar. Eu não entendia claramente o que estavam querendo dizer, contudo senti a
desconsideração e comecei a chorar”.
Moça
3.80 coroas
A B
Manobra obsessiva
Atrapalha-se em uma viagem a Viena durante a qual implementaria seu plano e, apesar de se angustiar
com a idéia do juramento, não consegue realizar o tal circuito. Ao chegar em Viena, conta seu
tormento a um amigo que, ficando chocado com tanta obsessão, o acalma para que ele possa dormir e,
na manhã seguinte, vai com ele até a agência do correio local onde o HR envia as 3.80 coroas à
agência que recebeu e lhe encaminhou o pacote com os óculos.
Posteriormente, a história se esclarece: os óculos tinham sido enviados diretamente para a agência do
correio, não para o Tenente A ou B. O sujeito se lembra depois que algumas horas antes de tudo isso,
havia encontrado um outro capitão que lhe disse haver estado na agência do correio onde uma moça
lhe disse que havia chegado um pacote Tenente L (paciente) perguntando-lhe se ele conhecia. Mesmo
assim a moça resolve confiar o pacote a um desconhecido para entregar ao destinatário, pagando as
despesas. Por um equívoco, o capitão cruel informa ao HR que ele devia pagar ao Tenente A.
O interessante é que, mesmo sabendo do equívoco antes da viagem a Viena, o paciente mantém-se
atormentado pelo juramento. A princípio pensa em procurar um médico para lhe dar um atestado
dizendo que precisaria realizar o circuito planejado para se curar, mas ao encontrar-se com Freud o que
lhe pede é para curá-lo dessa obsessão.
4
As despesas em questão referiam-se ao preço do novo pince-nez. Na Áustria, um sistema de ‘pagamento à vista na
entrega’ funcionava no serviço de correios. [op. cit. p.172].
5
Freud, S. Op. cit. p. 172.
6
Dinheiro da época.
Iniciação na natureza do Tratamento
Na quarta sessão o HR decide falar sobre algo que sempre o atormentara, desde o primeiro instante: a
morte do seu pai, nove anos atrás. Ele sofria de enfisema e, ao perguntar ao médico sobre quando
estaria acabado o perigo, o médico lhe respondeu que seria ‘na noite depois de amanhã’. O HR fora se
deitar e uma hora depois o pai estava morto. Ele se censurou muito por não estar presente, recusa-se a
aceitar a morte do pai e, após decorridos dezoito meses, ele passa a se julgar criminoso. A partir do
momento em que ocorreu a morte de uma tia, ele ampliou a estrutura de seus pensamentos obsessivos
de maneira a incluir aí o outro mundo. Então, sua crise se agrava a ponto de não conseguir mais
trabalhar. O que o consolava e amenizava seu sofrimento eram as conversas que mantinha com seu
amigo que lhe dizia serem exageradas as suas autocensuras.
Para Freud, há uma falsa conexão entre o sentimento de culpa em relação à morte do pai e a morte em
si, o conteúdo ‘morte do pai’ seria o substituto de um outro conteúdo ideativo desconhecido para o
sujeito – um conteúdo inconsciente – um recurso que o sujeito utiliza para inibir as idéias cruciais que
o atormentam.
O HR se surpreende com a explicação sobre o a função desempenhada pelo sentimento de culpa como
encobridor de conteúdos inconscientes, e como essa informação pode gerar um efeito curativo. Freud
diz que não é a informação que produz a cura e sim o fato de serem trazidos à luz os conteúdos
inconscientes.
Nesse ponto da análise, são lhe esclarecidas as diferenças entre os processos conscientes e
inconscientes e, em especial, a vulnerabilidade ao esquecimento constatada no nível consciente, em
contraposição ao que ocorre no inconsciente, onde o material é sempre preservado. O material da
consciência está sempre sujeito ao desgaste, ao desaparecimento e o material inconsciente é imutável.
Freud faz uma interessante analogia entre o inconsciente e a arqueologia – as antiguidades de sua sala,
objetos achados num túmulo, ou as ruínas de Pompéia, afirmando que o enterramento deles tinha sido
o meio de sua preservação: a destruição de Pompéia só estava começando agora que ela fora
desenterrada.7
A distinção entre o consciente e o inconsciente enseja a introdução da questão sobre a divisão
(splitting) do sujeito, colocando aqui um eu moral (o consciente) e um eu mal (o inconsciente). Algo
de bastante significativo é mencionado pelo HR lembrando-se que, a despeito de ser uma pessoa
moral, fizera na infância ações que provinham do seu outro eu, o eu mal. Em resposta, diz Freud,
ele havia incidentalmente atingido uma das principais
características do inconsciente, ou seja, a relação deste com o
infantil. O inconsciente, expliquei, era o infantil; era aquela
parte do eu (self) que ficara apartada dele na infância, que não
participara dos estádios posteriores do seu desenvolvimento e
que, em conseqüência, se tornara reprimida.8
As lembranças que seguiram a essas explanações referem-se a um fato ocorrido quando o HR tinha
doze anos idade, ele apaixonara-se por uma menina, era um amor não sensual – ele não quisera vê-la
nua porque ela era muito pequena. Mas essa garota, embora assim ele desejasse, não correspondia aos
seus sentimentos, o que levou a pensar em uma possibilidade que pudesse fazê-la mudar seus
sentimentos para com ele – a ocorrência de uma desgraça, a morte de seu pai insinuou-se
forçadamente em sua mente. Ele reluta contra a idéia de que esse pensamento poderia revelar um
desejo, da morte do pai, e Freud insiste firmemente que sim e ainda mais: que essa não teria sido a
primeira vez que ele havia tido essa idéia, que essa idéia tivera origem em um momento anterior da sua
vida e que eles chegariam nele.
7
Ibidem. p. 180.
8
Ibidem. p. 181.
O HR lembra-se de um segundo pensamento desses, que lhe ocorreu seis meses antes de seu pai
morrer, foi quando ele já estava namorando a garota e não tinha condições financeiras para comprar
uma aliança. Ele então pensou que a morte do pai o tornaria rico o suficiente para desposá-la. Para se
defender dessa idéia, ele acaba desejando que seu pai nada lhe deixe para evitar que ele venha a ser
compensado pela sua morte.
De forma mais leve, a terceira idéia lhe veio na véspera da morte do seu pai: posso estar perdendo a
pessoa que mais amo. Em seguida, a contradição: Não, existe alguém mais, cuja perda será bem mais
penosa para você. Perplexo, ele diz a Freud que a morte do pai seria temida, jamais seria desejada, ao
que Freud afirma que o medo é causado por um desejo anterior, reprimido, e que, se ele afirma que
teme a morte do pai,
éramos obrigados a acreditar no exato contrário daquilo que
ele afirma. Isto também se ajustaria a outra exigência teórica,
ou seja, a de que o inconsciente deve ser o exato contrário do
consciente.9
Perturbado com tais considerações, ele questiona como isso poderia ser possível, se ele amava seu pai
acima de tudo, como poderia desejar a sua morte? E Freud diz que é justamente a intensidade desse
amor que indica a presença de um ódio que estaria reprimido. Logicamente, sentimentos brandos
propiciam prazer e desprazer também brandos, agradáveis, da mesma forma que sentimentos intensos
propiciam amor e ódio intensos, excessivos, angustiantes.
O ódio, entretanto, não surge espontaneamente, é alimentado por uma fonte, sua causa está na história
particular do sujeito, é um sentimento de difícil dissolução, mantido no inconsciente. Está ligado, de
alguma forma, ao intenso amor que habita a consciência acobertando-o e, sendo de caráter pulsional,
encontra sempre um caminho para fluir, ainda que de forma fugaz, para o campo da consciência.
Essas construções soam como razoável ao HR, mas não de todo. Fica enigmático para ele o fato de
essas idéias aparecerem, em instantes isolados da sua vida: aos doze anos, aos vinte e por fim aos vinte
e dois para não mais se extinguir. Nesses intervalos, pensa ele que a hostilidade não poderia ter
desaparecido, e o que teria acontecido com a autocensura que não se apresentara?
A essas indagações, Freud responde que quem faz tais perguntas já tem uma resposta pronta, resposta
que poderia ser encontrada pela fala. Ele relembra que sempre havia tido uma ligação amistosa com o
pai, com exceção de um aspecto: aquele ligado aos seus desejos sexuais na infância que foram
amenizados na puberdade – ele não sentia esses mesmos desejos pela garota da qual se enamorou aos
doze anos. Sentia a interferência paterna nesses seus desejos, e isso se colocava contra o amor pelo pai.
Freud indica que a fonte da sua hostilidade está nos desejos sensuais infantis nos quais incide a
interferência do pai, e que o caráter indestrutível dessa hostilidade pelo pai se deve à associação que
ele faz entre os desejos sensuais e a interferência paterna – um conflito infantil clássico. Ultrapassada a
situação em que se vê às voltas com o desejo erótico, a hostilidade ao pai adormece e reaparece toda
vez que ele revive essa situação.
Nesse ponto da análise, algo intriga o HR que diz a Freud não entender por que então esse ódio não
poderia estar relacionado diretamente à situação atual em que seu pai se opunha à sua ligação com a
moça. A razão que esclarece isso é que esse desejo não aparece pela primeira vez na ‘situação atual’,
mas em uma situação remota na vida do sujeito, sendo reprimido, não destruído, e, ao reaflorar, suscita
sempre o conflito original levando o sujeito a responder sempre como fizera na primeira vez.
Traz a lembrança de um ‘ato criminoso’ cometido contra seu irmão, eu agora gosto muito dele -
quando crianças brigavam muito, mas eram inseparáveis. Ele rivalizava com esse irmão por ele ser
mais forte, bonito e ter a preferência das garotas. Antes de oito anos de idade, ele atinge o irmão na
testa com sua espingarda de brinquedo, não o machucou, mas sentiu muita culpa. Isso faz Freud supor
que, da mesma forma, que isso poderia ter-lhe acontecido em uma idade ainda mais precoce, em
relação ao seu pai, e que ficara no esquecimento. Ele conta então que, em algumas ocasiões, teve
impulsos vingativos também em relação à moça que amava, e não sentia reciprocidade desse amor, e,
9
Ibidem. p. 183.
além disso, que ela estaria guardando esse amor para o homem que futuramente a desposaria. Ele
imagina a seguinte vingança: ele se tornaria muito rico, casar-se-ia com uma outra garota e com ela iria
visitar a moça só para feri-la. Entretanto, frustra-se com a idéia de que não amaria a outra garota, e que
acabaria por fazê-lo pensar que ela deveria morrer.
Finalmente, Freud acalma o sentimento de culpa do sujeito dizendo-lhe que ele não tinha que se sentir
mal pelos traços de caráter, pelos impulsos provenientes da infância, uma vez que são derivados de
seu caráter infantil, sobreviventes em seu inconsciente, e que a criança não pode ser responsabilizada
por questões de caráter moral.
Ele observa que a sua doença ficou mais intensa depois da morte do pai, e Freud concorda dizendo que
vê o seu sentimento pela morte do pai como a principal fonte da intensidade da sua doença.
10
Ibidem. p. 190.
11
Ibidem. p. 191.
seguisse12; c) em dia que a amada estava de partida, ele foi obrigado a afastar uma pedra que havia no
meio da estrada por medo que ela sofresse um acidente com o seu carro, batendo na pedra. Logo
depois, achando absurda essa idéia, foi obrigado a recolocar pedra de volta no lugar. Freud diz que
Atos compulsivos como este, em dois estágios sucessivos,
quando o segundo neutraliza o primeiro, constituem uma
típica ocorrência das neuroses obsessivas.13
No momento da partida da dama, ele é tomado por uma obsessão por compreensão, forçava-se a
compreender o significado exato de cada sílaba que lhe dirigiam, fazendo com que os amigos, e a sua
amada, repetissem, e explicassem várias vezes o que acabavam de dizer. A obsessão por compreensão
termina quando a dama lhe dá provas de que ele interpretara mal algo que ela disse ligando isso a uma
rejeição dela para com ele.
A dúvida contida em sua obsessão por compreensão era uma
dúvida de seu (dela) amor. No peito do amante enfurecia-se a
batalha entre amor e ódio, e o objeto desses dois sentimentos
eram a única e mesma pessoa.14
Todas essas obsessões têm um denominador comum: circunstâncias que envolviam a sua ligação com
o ser amado. A obsessão de proteger constituía uma penitência autoimposta em face de um desejo
contrário – de hostilidade para com ela. Já a obsessão de contar pode ser entendida com um recurso
interno dele para livrar alguém de um perigo de morte. Enfim, a obsessão por compreensão se devia
ao fato de ele mesmo interpretar mal o que lhe diziam. Esses entendimentos aliviam o seu mal-estar.
A neurose é caracterizada pelo conflito entre dois impulsos antagônicos de igual intensidade, pela
oposição entre amor e ódio, os quais correspondem à matéria prima com a qual o sujeito constrói o seu
sintoma.
Diferentemente do que ocorre na histeria – que consegue acomodar os dois impulsos de forma a
permitir a sua manifestação simultânea – matando dois coelhos em uma só cajadada (como diz Freud),
na neurose obsessiva os impulsos só podem ser expressos separadamente um do outro – um impulso
por vez – nunca aparecem ao mesmo tempo. O trabalho de análise busca as conexões entre eles.
O HR relata uma experiência em que os dois impulsos, amor e ódio, entram em conflito: nos votos de
‘Deus o proteja’ que dirigia a alguém insurgia uma força maligna colocando um ‘não’. Essa obsessão
o perturbava tanto que pensou em inverter os votos (substituindo as preces por uma maldição) para que
a inversão possa recolocar seus votos iniciais. Na realidade, acontece que a sua intenção original fora
reprimida pela prece, mas encontra um meio de se manifestar por intermédio da ‘força maligna’.
Um sonho mostra a presença do conflito na transferência: ele sonha que a mãe de Freud havia morrido
e ele, por receio de explodir em uma risada inoportuna ao apresentar-lhe as condolências, preferiu
deixar fazer isso por escrito cometendo um lapso ao trocar a sigla ‘p.c.’ (pour condoler) por ‘p.f.’
(pour féliciter).
Apresentava forte antagonismo em relação à sua dama. Ocorre que há dez anos ela o havia recusado e,
a partir daí, seus sentimentos para com ela passam a oscilar entre amor e indiferença, aproximação e
afastamento. Uma vez ela caiu de cama gravemente doente e ele, muito preocupado, não pode evitar
um desejo de que ela permanecesse acamada para sempre. Justifica esse desejo dizendo que ficando
ela para sempre doente, ele não teria mais medo da ocorrência de crises repetidas.
Ela lhe despertava sentimentos de rivalidade e vingança por valorizar a posição social de um rapaz
antigo admirador. Daí ele elabora a seguinte fantasia: ela se casaria com um homem assim, e que seria
também funcionário público, subordinado ao HR. O homem cometeria uma desonestidade e ela viria
suplicar-lhe para salvar seu marido. Ele, prometendo atender ao seu pedido, prevendo que isso iria
acontecer, só assumira o cargo por amor a ela, e que agora, realizada a missão, deixaria o posto.
12
Ibidem. p. 193.
13
Ibidem. p. 195.
14
Ibidem. p. 194
Outras fantasias altruístas em relação à dama foram por ele construídas – cuja finalidade era encobrir
desejos de vingança. Identificou impulsos alternados de amor e ódio, dos quais pode se dar conta no
trabalho de análise, notando que os impulsos agressivos só se manifestavam na ausência da dama,
mantendo-se adormecidos na sua presença.
15
Em Inibição, sintoma e angústia (1922) Freud restringe o termo ‘repressão’ à histeria adotando o termo ‘defesa’ que
poderia ser utilizado para os dois casos. Nota de Rodapé, p. 199.
16
Ibidem. p.202.
17
Ibidem.
18
Ibidem.
O conflito nas raízes de sua doença era, em essência, uma luta
entre a persistente influência dos desejos do seu pai e suas
próprias inclinações amorosas. [...] essa luta era realmente
uma luta antiga e se originara a mais tempo, na infância do
paciente.19
Voltando à infância, seu relacionamento com o pai era bom, a despeito da severidade nos castigos que
ele impunha aos filhos por suas impertinências. O HR o tinha como um homem de boas qualidades,
correto, amável. Referia-se sempre ao fato de terem sido bons amigos, apenas com a ressalva sobre um
episódio: a restrição que lhe fizera aos doze anos com relação à garota da qual gostava, restrição que
foi objeto dos pensamentos obsessivos sobre a morte do seu pai naquela época, o que leva Freud a
afirmar que existia algo, no âmbito da sexualidade, que permanecia entre pai e filho, e de o pai
assumira alguma espécie de oposição à vida erótica do filho20, hipótese fortalecida pelo pensamento
que passou pela cabeça do sujeito alguns anos depois da morte do pai, em um momento de êxtase na
sua primeira cópula: Que maravilha! Por uma coisa assim alguém é capaz de matar o pai!21 Esse fato
remete às suas obsessões infantis esclarecendo-as e lançando luz também nas obsessões que se repetem
pouco antes da morte do pai, que se colocara contra a sua ligação com a dama que era sua paixão.
Sobre a sexualidade na puberdade, Freud destaca que a masturbação tem um papel importante no
desenvolvimento da vida sexual dos indivíduos, mas que o clímax da masturbação, quase sempre,
ocorre na idade entre os três e os cinco anos e aí se encontra a etiologia das neuroses subseqüentes. No
caso do HR, ele só praticou realmente a masturbação com a idade de vinte e um anos, logo depois que
seu pai morreu, e sentia sempre muita vergonha disso razão pela qual só o fazia de forma bem
esporádica – quando vivia momentos de especial beleza ou quando lia belíssimas passagens.
Entretanto, esses momentos, diz Freud, ligam-se sempre a alguma proibição: certa vez, numa tarde
vienense, ele ouvia alguém tocando corneta quando é proibido por um policial, pois no centro de Viena
era proibido tocar corneta; outra situação ocorreu quando lia na biografia de Goethe, Poesia e Verdade,
um trecho sobre a proibição de beijar uma mulher imposta ao personagem por uma ex-namorada.
Outro relato indicando questões ligadas à proibição, refere-se a práticas masturbatórias realizadas
depois da morte do pai. Acontecia sempre tarde da noite, nos intervalos de seus estudos. Colocava-se
na porta da frente do seu apartamento com o pênis para fora, olhando-se no espelho do hall, como se
esperasse a visita do fantasma do pai para desafiá-lo, uma atitude que mostra a ambivalência dos seus
afetos em relação a ele, ambivalência demonstrada também em relação à dama, no episódio da pedra
na estrada.
19
Ibidem. p. 203.
20
Ibidem. p. 204.
21
Ibidem.
22
Ibidem. p. 207.
estava doente. A informação que ficou é que ele havia mordido alguém. Sua mãe achava que tinha sido
a babá, mas que nada tinha de sexual. Seu pai aplicou-lhe uma surra tão violenta que gerou muita
raiva. Enquanto apanhava, xingava o pai com quaisquer palavras que lhe ocorriam, pois era muito
novo e, ainda não sabendo xingar, gritava: Sua lâmpada! Sua toalha! Seu prato! Diante de tanta fúria,
o pai perplexo exclama: O menino ou vai ser um grande homem, ou um grande criminoso.23 Ele
acredita que isso tenha feito dele um covarde, por medo da violência da sua própria raiva, razão pela
qual sempre fugiu, com horror, de situações agressivas. Nunca mais apanhou do pai.
A retomada dessa cena faz o paciente finalmente aceitar o fato de que tenha acontecido tão cedo em
sua vida tal sentimento de fúria (que, a seguir se tornara latente) contra o pai que amava tanto. O
efeito disso foi acentuado pelo fato dessa cena ter sido inúmeras vezes contada cena para a criança,
inclusive pelo seu pai. Foi somente sob transferência que esses conteúdos inconscientes puderam ser
trabalhados – nesse momento da análise, quando em desespero acabava sendo agressivo com o analista
(depois se reposicionava: como pode deixar-se xingar desse modo por um sujeito baixo e à-toa como
eu? O senhor devia me enxotar, é o que mereço.24 – confessou que temia levar uma bofetada de Freud) e
seus sonhos eram povoados de insultos que dirigia a Freud e à sua família, enquanto que sua atitude
natural era sempre respeitosa.
23
Ibidem. p. 208.
24
Ibidem. p. 210.
25
Rato-de-jogo. Termo coloquial alemão para designar jogador. Nota de rodapé, p. 212.
26
Freud fala sobre a conexão entre dinheiro e fezes em seu artigo de 1908, Caráter e erotismo anal. Obras Completas,
Livro IX. Ed. Imago. RJ. 1969.
cálculos dos juros, as prestações (raten). Todos os materiais ideativos ligados ao tema anal se
reportavam às suas obsessões via ponte verbal ‘Ratten–Raten’, e eram guardados no inconsciente. A
significação entre rato e dinheiro ganha força ao ouvir do capitão o pedido para reembolsar o Tenente
A. Nesse momento estabelece uma nova ‘ponte verbal’ na forma Spilratte (rato-de-jogo) ligando
diretamente dinheiro a ser reembolsado (ratten) ao pagamento da dívida do pai no jogo (raten).
Prosseguindo na escuta do caso, Freud pode analisar outras associações feitas com o símbolo ‘ratos’, a
começar pelo pavor que eles provocam no sujeito como, por exemplo, a sua ligação com a sífilis. Ele
se preocupava com a vida sexual que o pai teria levado na época do exército, sendo que o pênis em si,
tal como os ratos, são transmissores da doença, então: pênis = rato. Outra lógica é a semelhança entre o
pênis de uma criança e um verme – retomando o suplício dos ratos, eles se infiltravam no ânus do
soldado da mesma forma que as lombrigas habitavam o do paciente na sua infância. Freud sublinha
ainda o fato de que o rato é um bicho sujo, que come excremento e vive em esgotos. Nas associações
do paciente aparece, como lembrança encobridora, a palavra ‘heiraten’ (casar).
O horror fascinado causado pelas idéias obsessivas relacionadas ao suplício indica a sua relação com
experiências remotas de ordem sexual e de crueldade reprimida. Mas permanece enigmático até o
momento em que o HR menciona a mulher-rato de O Pequeno Eyolf, peça que traduz um dos seus
delírios nos quais os ratos assumem a significação de crianças27. Em uma de suas falas ele expressa
que, apesar de os ratos serem criaturas sujas, nojentas, terem dentes afiados e morderem a pessoas, ele
sentia pena desses animaizinhos por sofrerem constante perseguição dos homens. Essas palavras
revelam a sua identificação com os ratos, pois, tal como eles, ele também fora um sujeitinho asqueroso
e sujo, sempre pronto a morder as pessoas quando enfurecido, e fora assustadoramente punido por tê-
lo feito.28 Nos ratos do suplício, ele viu a sua própria imagem. Para esse sujeito, os ratos são crianças.
A essa altura, ele fala que sempre gostou de crianças e que a dama por que ele se apaixonara era
estéril, havia extraído os ovários, e isso esclarece finalmente a razão central da sua indecisão.
Spilratte Heiraten
(rato-de-jogo) RATTEN (casar)
(alemão)
Dívida do pai moça pobre x moça rica
no jogo
endividado
Raten Criança
(prestação) (Mulher-rato)
Pênis Imagem de si
moeda-rato (infecção sifilítica) (ser imundo que morde) rato = criança
erotismo anal
27
A peça O Pequeno Eyolf foi escrita pelo dramaturgo norueguês Henryk Ibsen, em 1894 e foi apresentada pela primeira
vez no Théâtre de L’Ouvre, em maio 1895, em Paris. É um garoto de nove anos de idade com deficiência em uma das
pernas, resultado de uma queda que sofreu de uma mesa enquanto seus pais faziam amor. A mulher-rato, introduzida na
trama, é um personagem da mitologia norueguesa. Ela aparece na casa da família de Eyolf oferecendo-se para levar os
ratos até uma água e afogá-los. Eyolf fica fascinado pela mulher-rato, segue-a e se afoga tendo o destino dos ratos.
28
Freud, S. Op. cit. p. 218.
Construção final
O processo deflagrado no momento em ouviu o relato do martírio dos ratos foi seguinte:
a) inicialmente ele fica tem choque diante desse misto de atrocidade e depravação;
b) em seguida é remetido à cena em que mordera alguém;
c) o capitão, não tendo impedido o suplício, assume o papel de substituto repulsivo do seu pai na
crueldade;
d) o temor de que algo de espécie pudesse ocorrer com um ser amado (o que reflete justamente o seu
desejo), volta esse desejo ao seu pai, representado aqui pelo capitão cruel;
e) ao receber o pacote com os óculos e o pedido para pagar ao Tenente A os 3.80 Kronen, ele ‘infere’
que houve um equívoco por parte do capitão, e que a dívida devia ser paga de fato à moça do correio,
pensa em fazer uma ironia e não pagar dívida alguma entendendo isso como um crime: insultara as
duas pessoas que lhe eram mais caras: seu pai e a sua dama;
f) para se redimir do crime de insulto cometido, ele responde com um juramento que lhe fosse
impossível de cumprir: Agora você deverá realmente reembolsar o dinheiro a A. Nessa jura obsessiva
ele reprime a informação de que o capitão lhe fizera um pedido improcedente, e eleva o pedido à
dignidade de ordem do representante do seu pai.
O paciente aceitava com reservas essas ponderações, mas acaba se convencendo ao tomar consciência
das seguintes evidências: o fato do pedido do capitão ter-lhe provocado raiva; a sua decisão de não
pagar atendendo a idéias delirantes de que, se pagasse, seu pai e a dama sofreriam o martírio com os
ratos; finalmente a retificação: em lugar da recusa de pagar ele introduz o juramento de pagar.
Para concluir, Freud chama a atenção para as circunstâncias da vida do paciente quando se
intensificaram as suas idéias obsessivas. Sua libido estava em alta em razão de um longo período de
abstinência, e seu relacionamento com a dama estava um tanto distante, o que o fez desejar estar com
outras mulheres. Por outro lado, o sentimento de lealdade ao pai estava meio enfraquecido. Em suma,
tanto o pai como a dama não gozavam das suas melhores apreciações, fato que lhes acentuavam os
sentimentos de autoacusação. Essas condições contribuíam para acionar novamente o duplo conflito
que se faz presente em toda a trajetória da vida do HR: manter-se ou não obediente ao pai; manter-se
ou não fiel à amada.
Os esclarecimentos desenvolvidos no percurso dessa análise tiveram como efeito o desaparecimento
completo dos delírios obsessivos em relação aos ratos que traziam profundo sofrimento ao paciente.