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Projetando Bruxas: o processo de

historicização e suas implicações


estéticas e políticas em anticristo,
de Lars von trier
Patrícia de Almeida Kruger1

Introdução

Anticristo (Antichrist), 10° longa-metragem do cineasta di-


namarquês Lars von Trier tem dividido opiniões desde seu lança-
mento em Cannes em 2009. Embora Charlotte Gainsbourg tenha
sido agraciada com o prêmio de melhor atriz, a primeira exibição
da obra foi marcada por reações de pura indignação, como clamo-
res de que o longa era “abominável” ou mesmo a exigência de que
Trier “explicasse por que havia feito aquele filme” (Trier, 2010, DVD
2). Um júri ecumênico chegou a coroar Anticristo com um antiprê-

1 Pós-doutoranda pelo Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo


(USP), onde obteve o título de doutora com a tese intitulada Penetrando o Éden: Anticristo,
de Lars von Trier, à luz de Brecht, Strindberg e outros elementos inquietantes. Concluiu
em 2015 estágio doutoral na Faculdade de Filosofia II da Universidade de Humboldt, em
Berlim, dedicando-se a investigações nas áreas de Teatro, Cinema, Literatura e Estudos
de Gênero. A presente publicação é decorrente de sua pesquisa de doutorado, que contou
com o financiamento da CAPES e do DAAD. FFLCH-USP, Brasil.
E-mail: kruger.patricia@gmail.com.

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mio por ser o filme mais “misógino” de Lars von Trier. Com efeito,
uma parte relevante das resenhas escritas sobre Anticristo e vei-
culadas nos principais meios de comunicação nacionais e interna-
cionais também considerou o filme misógino, o que seria, segundo
tal crítica, característica já demonstrada pelo cineasta em outras
obras, como no filme Ondas do Destino (Breaking the Waves, 1996).
Nessa obra, Emily Watson interpreta Bess, uma mulher bas-
tante ingênua e imatura de um vilarejo cuja comunidade é severa-
mente reprimida e controlada pelos ditames da Igreja Presbiteria-
na. Seu marido, Jan (Stellan Skarsgard), após sofrer um acidente e
ficar imóvel, encoraja-a a manter relações sexuais com outros ho-
mens a fim de não privar a esposa do prazer sexual que ele não mais
poderia proporcionar. Pede ainda para que a esposa lhe narre essas
experiências e afirma que ela estaria, assim, também o auxiliando
em sua recuperação. O resultado desse autossacrifício em nome do
amor é o de que Bess acaba sendo fatalmente estuprada e espanca-
da por um marinheiro em um barco, além de proibida, já que peca-
dora, de ser enterrada segundo os preceitos da Igreja Cristã. Contu-
do, seu marido se recupera quase miraculosamente após sua morte
e executa sua cerimônia fúnebre no mar.
Em uma observação cautelosa é possível verificar que em
Ondas do Destino a opressão feminina não é endossada pelo filme,
mas sim exposta e problematizada por diversos elementos que ini-
bem uma associação direta entre o conteúdo mostrado e o ponto
de vista da obra. São esses mesmos elementos que impedem uma
interpretação naturalista2 do filme, limitada a seu enredo, como se

2 Utilizamos esse termo aqui (e em suas demais ocorrências) em consonância com a


definição proposta por Xavier: “O uso do termo naturalismo não significa aqui vinculação
estrita com um estilo literário específico, datado historicamente, próprio a autores como
Emile Zola. Ele é aqui tomado em uma acepção mais larga, tem suas intersecções com o
método ficcional de Zola, mas não se identifica inteiramente com ele. Quando aponto a
presença de critérios naturalistas, refiro-me, em particular, à construção de espaço cujo
esforço se dá na direção de uma reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico,

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este exibisse uma mimese, um retrato fiel da realidade. Se apenas
lembrarmos de que Ondas do Destino é dividido em capítulos, cada
intervalo entre eles ilustrado com paisagens claramente românticas
acompanhadas de música pop, que Bess diversas vezes olha direta-
mente para a câmera, impactando a transparência almejada pelo
cinema mainstream ou, ainda, que ao final do filme sinos gigantes
são vistos ressoando no céu, podemos ter algumas pistas da forma
distanciada por meio da qual devemos tratar seus materiais. O que
está sendo apresentado ao debate, aqui, são os vários mecanismos
repressores – como a religião e o patriarcado, por exemplo –, que
corroboram as atitudes de Bess e, num plano mais abrangente, a
constituição do imaginário feminino com estereótipos tais como
sua vinculação ao sacrifício ou à natureza.
Observemos também que dentro dessa estrutura distancia-
dora, que complica uma leitura realista do filme, o que se apresenta
é um melodrama, gênero este que tem forte relação com a repre-
sentação clássica, no cinema, do que seria o “feminino”. Por utilizar
esta forma como objeto de investigação e não como o gênero que es-
trutura o filme, estaríamos aqui sendo convidados, afinal, a refletir
sobre o cinema hegemônico, ou mesmo sobre a indústria cultural
como um todo (vide a utilização das canções pop) e sua representa-
ção do que a mulher deve sentir, como se comportar e o que pensar,
ao longo da História.
Nesse sentido, tal qual em Ondas do Destino, é preciso obser-
var como a opressão feminina não é endossada por Anticristo, mas,
ao contrário, exposta e problematizada por diversos elementos que

e à interpretação dos atores que busca uma reprodução fiel do comportamento humano,
por meio de movimentos e reações ‘naturais’. Em um sentido mais geral, refiro-me ao prin-
cípio que está por trás das construções do sistema descrito: o estabelecimento da ilusão de
que a plateia está em contato direto com o mundo representado, sem mediações, como se
todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente (o
discurso como natureza)” (Xavier, 1984, p. 42).

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atravancam a vinculação direta entre os materiais que a obra traz
ao debate e seu ponto de vista. Anticristo seria estruturado, nesse
sentido, de maneira a também permitir o distanciamento e a abor-
dagem crítica dos assuntos que o filme apresenta, e não como um
retrato fidedigno da realidade. Uma interpretação hiper-realista do
filme, focada somente em seu enredo – a história de um casal que
perde um filho, isola-se numa cabana no meio da floresta, onde o
protagonista tenta curar o sofrimento da protagonista por meio de
terapia cognitiva, mas acaba descobrindo “a maldade intrínseca de
sua esposa”, sendo levado a cometer seu assassinato – mostra-se,
por conseguinte, bastante limitada.

O foco narrativo de anticristo

Nesse âmbito, é interessante observar a declaração de Trier


em uma entrevista intitulada A Set of rules, dada pouco depois do
lançamento de Anticristo:

Uma coisa que é muito importante dizer é que, seja o filme sobre o
que for, ele não é o que o diretor pensa sobre as coisas. Uma grande
parte de minha técnica é apresentar uma tese qualquer com a qual
eu não concordo. Eu não acredito que haja sinos no céu! [...] E isso
vale para todos os meus filmes (Trier, 2009).

Se Anticristo não apresenta as ideias do próprio diretor,


então apresenta as ideias de quem? Como é possível perceber que
tais ideias são problematizadas no filme e não expostas de forma
acrítica? Para responder essas perguntas é necessário observarmos
os elementos do filme que dificultam a identificação do espectador
e, tal qual o método épico do dramaturgo alemão Bertolt Brecht,

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explicitam o caráter de construção e exposição de pontos de vista do
cinema. Dessa forma, Anticristo se colocaria na contramão da maio-
ria dos filmes hegemônicos que procuram esconder tudo que possa
perturbar o mergulho do espectador em uma história que se pro-
põe a ser “neutra”. O fato de as personagens não serem nomeadas,
por exemplo, é uma das características mais explícitas da leitura
distanciada que o filme incita, o que consideramos uma produtiva
atualização do estilo anti-ilusionista brechtiano.
Vale lembrar que o diretor vem atualizando o método esté-
tico e político desenvolvido pelo dramaturgo já há algum tempo,
sendo que as referências mais óbvias dessa reapropriação deram-
se em Dogville (2003) e em Manderlay (2005), com os cenários ris-
cados a giz e o convite ao estranhamento do material apresentado.
Mas Anticristo também traz diversos elementos que corroboram o
estranhamento dos materiais que o filme apresenta, como a divisão
do filme em prólogo, capítulos e epílogo; sua forte carga simbólica
e relativa aos sonhos; o comentário que a ária do prólogo e as ima-
gens documentais de mulheres-bruxas no sótão fazem ao filme; a
inclusão de elementos fantásticos que quebram a linearidade narra-
tiva, como a raposa falante; a edição do filme, com a transição nada
harmônica de uma tomada a outra, expondo-o como construção; as
personagens que olham subitamente para a câmera, entre outro.
A não nomeação das personagens indica também que elas
representam grupos, funções sociais – homens e mulheres. Ao mes-
mo tempo, seguindo a dinâmica brechtiana dialética entre coletivo
e indivíduo, essas personagens são historicamente situadas: um nú-
cleo familiar norte-americano formado por dois intelectuais, assen-
tados na contemporaneidade. O fato de o filme ter a cidade de Seatt-
le como pano de fundo, algo ignorado por grande parte da crítica, é
um elemento que também deve ser levado em conta, já que os Esta-
dos Unidos são o berço da terapia cognitivista aplicada sem sucesso

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pelo terapeuta no filme. O país é também referência de sociedade
capitalista, além de ser o país de maior influência política e cultu-
ral no mundo há décadas, o que tem estimulado a crítica de Trier
em diversas obras como em Europa, Dançando no Escuro (Dancer in
the Dark, 2000), Dogville e Manderlay. As questões concernentes à
opressão feminina, em Anticristo, assim, devem ser contempladas
de forma que dê conta da inter-relação entre o plano sócio-histó-
rico e o plano do indivíduo e de sua subjetividade, inclusive de sua
construção psíquica.

Figura 1. Extreme Close-up de uma correspondência observada pela personagem masculina,


colocando Seattle como pano de fundo para o enredo. (Antichrist (Trier, 2010), Criterion Collection,
©Zentropa Entertainments23).

a armadilha ideológica

Com isso, chegamos ao fato que consideramos essencial


para a interpretação do filme: a utilização de uma estratégia de-
nominada “armadilha ideológica”, que nada mais é do que a ela-
boração artística que permite que ciladas, mistificações, mentiras
sejam desfeitas. É uma estratégia bem recorrente na cinematogra-
fia de Trier, como no jogo que o diretor estabelece em Dogville, por

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exemplo, ao iludir, por meios dramáticos, a plateia, e fazê-la aderir
ao discurso de Grace, das demais personagens e mesmo do narra-
dor, apenas para trazer à tona o repertório moralista, conservador
e, por vezes, fascista desses espectadores (e da crítica), que vibram
com a vingança da protagonista (Souza, 2007, p. 10).
Em Anticristo essa armadilha se dá com a estruturação do fil-
me por meio de um foco narrativo determinado, vinculado à perso-
nagem de Willem Dafoe. Essa narrativa da personagem masculina,
apresentando determinada visão de mundo, insere-se numa estrutu-
ra maior, o ponto de vista do filme, que comenta, desmente, perturba
e coloca à prova a versão dessa personagem sobre os fatos. Tal ar-
madilha ideológica, quando não considerada, ou seja, quando não se
pondera que o filme possui certa espécie de narrador cuja versão dos
fatos deve ser encarada com cuidado, pode desembocar em interpre-
tações da obra que enxergam nela pura afirmação de misoginia.
Devemos, assim, atentar ao risco da aderência à narrativa
desta personagem, aderência que é alimentada por ser ele um tera-
peuta, um homem da ciência, da razão, disposto a ajudar sua esposa
a superar o trauma da perda do filho. Nada mais honroso! A tarefa
que nos cabe é perceber que, assim como ele conduz a esposa por
meio de sua abordagem racional de tratamento da dor, ele também
está conduzindo a audiência a compartilhar de sua ótica, como se
esta fosse a própria ótica do filme. No entanto, as provas de que a
condução da narrativa é feita tão somente por ele estão espalha-
das por todo o filme, sublinhando seu papel central na configuração
da história. Basta notar que a câmera subjetiva relaciona-se usual-
mente ao seu olhar e que pouquíssimas cenas se dão na presença
isolada da personagem feminina ao contrário dos vários momentos
centrados na personagem masculina3, que também é a única a pre-

3 Uma vez que em Anticristo temos a presença de duas personagens sem nome, iremos
nos referir, a título de praticidade, à personagem masculina como Dafoe, sobrenome do
ator que a interpreta, e à personagem feminina como Gainsbourg.

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senciar acontecimentos “fantásticos”, como a famosa cena da rapo-
sa. A edição, a iluminação e a grande discrepância de falas no filme
também ajudam a privilegiar esta personagem como a condutora
da narrativa do filme.

Figura 2. Dafoe conduzindo a esposa em seu tratamento contra dor, em uma alusão à condução da
narrativa, também feita pela personagem. (Antichrist (Trier, 2010), Criterion Collection, ©Zentropa
Entertainments23).

O foco narrativo vinculado à Dafoe, dessa forma, funcionaria


de maneira semelhante ao discurso não confiável de um narrador
em primeira pessoa, mas com um importante acréscimo: aqui ha-
veria a materialização da esfera psíquica de Dafoe, como se o filme
ilustrasse os processos mentais ocultos, mas historicamente con-
dicionados, de certa subjetividade e de sua relação com alguns dis-
cursos hegemônicos – como as ideologias que estabelecem o que é
o “feminino” e como esta “entidade” deve ser controlada para que
não ameace a vigência do patriarcado.
Assim, a constelação de imagens e acontecimentos irreais e
as inúmeras referências ao universo dos sonhos e às teorias freu-
dianas configuram antes uma rica exposição de acontecimentos
psíquicos ocultos, vinculados a um ego determinado, em relação ao
qual e a partir do qual todas essas manifestações ocorrem, do que

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uma realidade propriamente dramática e realista. Essa configuração
se dá de maneira semelhante ao que se verifica em inúmeras peças
do dramaturgo sueco August Strindberg: também nessas, em vez
do confronto entre duas subjetividades, o que se apresentam são
desdobramentos da psique do protagonista (Szondi, 2001).
Nessa leitura, o ataque extremo de Gainsbourg contra Dafoe,
por exemplo, seria, na verdade, reflexo da consciência do terapeuta,
sendo os traços principais da personalidade da esposa, seus atos
e suas justificativas, determinados por ele próprio. O argumento
principal que justifica a loucura de Gainsbourg – a sua identifica-
ção com a tese que deveria criticar – é também uma transferência
à personagem de Gainsbourg de pensamentos próprios da subjeti-
vidade cuja exteriorização se dá no filme: a de Dafoe. Ele suspeita
de pensamentos que podem ocorrer na cabeça de Gainsbourg e os
projeta na tela como as palavras e as ações da esposa. O movimento
é bem próximo do executado por um narrador conhecido nosso, o
Bentinho de Dom Casmurro (Machado de Assis, 1899), que expõe
sua não confiabilidade de maneira obscena quando discorre sobre
o justo castigo de Desdêmona em Otelo. Tudo o que sabemos de
Capitu, como seu comportamento “dissimulado” e “ardiloso”, nos é
transmitido pelo narrador da obra, que possui interesses muito cla-
ros em incriminar a esposa para salvaguardar sua posição patriar-
cal. Também em Anticristo há interesses patriarcais do intelectual
branco, norte-americano e de classe média em pintar a esposa com
as cores da loucura e da crueldade.

a leitura em chave invertida

Para exemplificar essa projeção de pensamentos de Dafoe


na figura de Gainsbourg, basta observarmos a cena, quase ao final

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do filme, em que vemos claramente Gainsbourg assistindo seu fi-
lho lançar-se pela janela, ou o diálogo do casal no hospital, no qual
Gainsbourg assume a culpa pela morte do filho:

Dafoe: Não há nada de atípico com seu luto.


Gainsbourg: Foi culpa minha.
Dafoe: E quanto a mim? Eu estava lá também.
Gainsbourg: Eu poderia tê-lo impedido.
Dafoe: Não.
Gainsbourg: Você não sabia que ele tinha começado a acordar ul-
timamente. Eu estava ciente de que ele algumas vezes acordava,
descia do berço e perambulava por aí, enquanto você achava que
ele dormia profundamente (Trier, 2010, nossa tradução).

Tudo faz parte de sua construção da realidade, servindo,


como no caso do diálogo, para torná-la mais confortável e conso-
nante com sua posição social e sua percepção do mundo. Assim,
suas próprias convicções – “a culpa foi dela”, “ela poderia ter impe-
dido”, “ela sabia que isto poderia acontecer, enquanto eu não sabia
de nada” – são projetadas nas falas e ações da outra personagem,
recebendo um caráter menos condenável do que se expostas por
ele mesmo, ou caso se referissem a ele mesmo.
Quanto à cena em que ela vê o filho saltar para a morte, po-
demos notar que ela é repetida alguns minutos depois com a ab-
surda presença de um veado dentro do apartamento do casal. Esse
animal fora observado exclusivamente por Dafoe, carregando um
filhote morto junto ao corpo, e sua reinserção no filme pouco de-
pois de vermos Gainsbourg assistir à morte de seu filho confirma a
projeção de um desejo oriundo tão somente da mente de Dafoe: o
consentimento da morte da criança pela esposa.

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Figuras 3 e 4. Exemplo de um ato falho no discurso de Dafoe: inserção de um veado no apartamento
na cena que surge logo após a personagem feminina relembrar que “assistiu à morte da criança”.
O veado, no entanto, fora visto apenas pelo terapeuta, solidificando o argumento de que a diegese do
filme é moldada segundo seus interesses. (Antichrist (Trier, 2010), Criterion Collection, ©Zentropa
Entertainments23).

A versão dos fatos exposta por Dafoe, porém, é problema-


tizada pelo ponto de vista do filme, que faz com que a narrativa
de Dafoe apresente alguns “atos falhos” em seu próprio discurso
– como a presença do veado no apartamento sem qualquer lógica
de causalidade. Outro exemplo seria o fato de vermos na tela uma
constelação inexistente, que Dafoe também vê, ao mesmo tempo em
que afirma: “não há uma constelação assim!”. Ou, ainda, a exibição
dos pés de Gainsbourg vermelhos após ela afirmar que o chão está
queimando, ao que Dafoe, com riso sarcástico, reponde: “o chão não
está queimando!”. Dessa forma, o ponto de vista do filme exprimiria
as contradições da obra e problematizaria as “verdades” apresenta-
das pelas projeções psíquicas de Dafoe, incitando brechtianamen-
te o espectador a enxergar as questões colocadas no seio de apa-
rentes evidências.
Outra confrontação do discurso de Dafoe, organizada pelo
ponto de vista da obra, ocorre na viagem para o Éden, quando as
projeções psíquicas do terapeuta adquirem o caráter de sugestão
hipnótica sobre Gainsbourg. Nessas cenas, bastante expressionis-
tas, é sugerida a relação íntima da mulher com a natureza, que de-
terminaria seu caráter “inconstante”, “incompreensível” e “ameaça-
dor”. A mulher e a natureza aparecem como se mescladas de forma

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indiferenciada: a mulher torna-se literalmente a natureza quando
se deita na grama. Tal discurso, fruto da perspectiva narrativa de
Dafoe e absolutamente naturalizado, é, contudo, contestado poucas
tomadas adiante, quando os pés de Gainsbourg são mostrados quei-
mados ao entrar em contato com o Éden ou quando ela coloca uma
coberta para delimitar o espaço de seu corpo e o da natureza, ao
deitar-se de, fato, na grama.

Figuras 5. A mulher indissociável da natureza, segundo o discurso de Dafoe, que determinaria,


assim, seu comportamento. A sugestão será, contudo, problematizada pelos pés queimados de
Gainsbourg, quando esta entra em contato com o Éden e pela coberta que separa seu corpo da
natureza quando ela se deita, de fato, na grama. (Antichrist (Trier, 2010), Criterion Collection,
©Zentropa Entertainments23).

As imagens de bruxas no sótão também seriam indicações


do ponto de vista do filme sobre a leitura desconfiada que devemos
tecer sobre o discurso de Dafoe acerca da loucura e da maldade de
Gainsbourg. Consideramos essas referências, aparentemente ana-
crônicas, mais uma contribuição brechtiana de Anticristo – o recur-
so, chamado por Brecht de historicização, consiste em fazer com
que a História invada a linearidade narrativa e problematize a tem-
poralidade diegética, contribuindo para a produção do significado
último do filme. Relembremos, dessa forma, que Dafoe, amparado
pela câmera subjetiva, visita o sótão e descobre várias imagens da

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pesquisa da esposa sobre o feminicídio, consistindo, primordial-
mente, de torturas e mortes de mulheres. Descobre também o ca-
derno da esposa com escrita desforme, o que seria mais uma “pro-
va” da crescente loucura da esposa.
Por meio da luz do lampião trazida por Dafoe, o acúmulo de
imagens documentais que o filme nos mostra – composto de xilo-
gravuras, gravuras, pinturas e excertos de panfletos dos primór-
dios da Idade Moderna – assemelha-se a fotogramas de um filme
de “barbáries”. Dessa forma, Anticristo conecta as mídias da épo-
ca, quando a recém-criada imprensa começava a ser utilizada para
criar um imaginário de demonização das mulheres, com o papel da
mídia atual para cumprir esta mesma função de estereotipação e
controle do sexo feminino (como o cinema, sobretudo de horror).

Figuras 6 e 7. Algumas das imagens da Caça às Bruxas iluminadas pelo lampião de Dafoe e
organizadas, em Anticristo, tal qual fotogramas de um filme de barbáries. (Antichrist (Trier, 2010),
Criterion Collection, ©Zentropa Entertainments23).

Quanto ao caderno, a consequência direta de sua descoberta


será a de servir como prova para a incriminação da esposa na cena
seguinte, a do jogo de role-playing em que Dafoe interpreta a natu-
reza e Gainsbourg deve interpretar o discurso racional. Gainsbourg
afirma que Dafoe não deveria subestimar o Éden, pois ela descobri-
ra algo a mais em seu material de pesquisa:

Gainsbourg: Se a natureza humana é má, então isso também vale...


para a natureza das...
Dafoe: Das mulheres? Natureza feminina?

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Gainsbourg: A natureza de todas as irmãs. As mulheres não con-
trolam seus próprios corpos – a natureza os controla. Eu tenho
isso escrito nos meus livros (Trier, 2010, tradução nossa).

Nessa cena, cuja dinâmica de iluminação relaciona Gains-


bourg às trevas enquanto Dafoe é privilegiado por enquadramento
bem definidos, há a inserção de um plano mostrando imagens docu-
mentais de mulheres como bruxas ameaçadoras, vinculadas ao de-
mônio ou em posições libidinosas. Mais adiante, na última tomada
do role-playing, há um plano de conjunto do casal e Dafoe anuncian-
do que “não consegue trabalhar mais agora”. Efetivamente, o que
é possível de ser identificado ao final da cena é todo um trabalho
que vai sendo desenvolvido por Dafoe de modo a extrair da espo-
sa uma “confissão definitiva” de sua maldade intrínseca, amparada
por uma “documentação” que justifica o processo inquisitório ao
qual Gainsbourg é submetida, como o caderno encontrado imedia-
tamente antes desta cena, o laudo médico e a fotografia da criança
com calçados invertido.

Figura 8. Imagem de mulheres que irrompe na cena do role-playing, mostrando a representação


maligna de mulheres que contribuiu para que todo um imaginário fantástico acerca das “bruxas” e
de seus “crimes hediondos” permeasse o inconsciente coletivo do período de Caça às Bruxas. Serve,
assim, para historicizarmos e problematizarmos o discurso de Dafoe. (Antichrist (Trier, 2010),
Criterion Collection, ©Zentropa Entertainments23).

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É preciso, no entanto, criar uma relação com as imagens que
invadem a cena, mostrando a representação maligna de mulheres
que contribuiu para que todo um imaginário fantástico acerca das
“feiticeiras” e de seus crimes hediondos permeasse o inconsciente
coletivo do período de Caça às Bruxas. De fato, autoridades da
época, não apenas religiosas, contribuíram com diversos tipos de
“documentações” fantasiosas – como o influente manual Malleus
Maleficarum – para que essa barbárie tivesse êxito e para que as
horrendas e absurdas confissões extraídas das mulheres, geralmen-
te sob tortura, fossem tomadas como verdadeiras.

O processo de historicização

As imagens do sótão, dessa forma, trazem à tona mais uma


vez informações da História que foram recalcadas (como o processo
de construção da natureza “maligna” da mulher) para serem con-
frontadas com a narrativa de Dafoe. Portanto, novamente é exigida
atenção às conclusões precipitadas sobre a narrativa tendenciosa
que Dafoe vem armando, observando-se que o terapeuta é quem
faz as afirmações sobre a natureza feminina maligna e as induções
que daí decorrem. Por outro lado, o fato de ser projetada na fala da
personagem de Gainsbourg a descoberta da “natureza maligna de
todas as irmãs” e a afirmação de que “as mulheres não controlam
seus próprios corpos; a natureza é que os controla” é um dos da-
dos que torna o filme bem mais complexo e interessante. Ao mesmo
tempo em que essas acepções são projeções persecutórias e incri-
minadoras de Dafoe sobre a esposa, reflexo dos conteúdos latentes
misóginos de seu discurso, o fato de que essas frases tenham sido
postas na boca da esposa serve ao propósito de complicar a leitura
maniqueísta de homem-patriarcal versus mulher-vítima.

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A forma distanciadora do filme, dessa maneira, reproduzin-
do as contradições da vida material, impulsiona a reflexão sobre as
complexas dinâmicas das relações humanas em nossa ordem social.
Estimula, também, a detecção de que, embora seja muito conve-
niente (e recorrente) para os perpetuadores de práticas misóginas
veladas apresentar as mais horrendas ideias antifeministas como
se produzidas por mulheres, também é um dado da vida material
que muitas mulheres reiteram as bases de sua própria opressão ao
reproduzirem (frequentemente, de maneira irrefletida) discursos e
práticas machistas.
É relevante, dessa maneira, que o discurso projetado na
fala da pesquisadora sobre o que definiria a “natureza maligna” da
mulher – seu controle pela natureza – parta, paradoxalmente, não
de sua experiência com esta, mas do que ela teria lido em seus livros,
ou seja, de elementos da cultura. A internalização feminina da voz
do patriarcado, que dita o que as mulheres são e o que desejam, é,
assim, novamente problematizada na obra de Lars von Trier, como
o fora em Ondas do Destino por meio do ato quase esquizofrênico de
Bess ao representar a voz de Deus orientando seu comportamento,
o que levou a seu fim trágico e à redenção milagrosa de seu marido.
Como expresso também na fala de Gainsbourg, o Éden, enquanto
metáfora do “paradisíaco” mundo patriarcal, não deve, de fato, ser
subestimado. Substancia nossa argumentação o fato de esse discur-
so sexista ser expresso nas palavras da esposa precisamente quan-
do é proposto um exercício de role-playing no qual ela atua com o
pensamento racional positivista defendido por Dafoe. A estratégia
desvelaria, por conseguinte, a sinistra base mistificadora e obscu-
rantista do pensamento “esclarecido” e seu papel na sustentação de
práticas de opressão.
O que é trazido à tona por meio do acúmulo de documentos
históricos do filme, dessa forma, não é apenas o processo de cons-

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trução da natureza “maligna” da mulher, mas como esse processo
se exacerba precisamente na Idade Moderna – o próprio Dafoe, vale
lembrar, relaciona o século XVI à pesquisa de Gainsbourg. Efetiva-
mente, ao contrário do que prega o senso comum, o auge da caça
às bruxas em solo europeu deu-se não na “Idade das Trevas”, mas
entre 1550 e 1650 (também conhecido como o “século de ferro”),
recepcionando um grande florescimento intelectual europeu e o
nascimento do mundo racional ao qual a “iluminada” investigação
de Dafoe no sótão não deixa de aludir.

Figuras 9 e 10. Algumas das imagens documentais referentes ao período de Caça às Bruxas
reproduzidas em Anticristo. À esquerda, parte de um famoso manual para juristas (Layenspiegel),
inspirado no próprio Malleus Maleficarum, expondo uma série de torturas (Tengler, 1512). À direita,
a ilustração de um elaborado instrumento de tortura, “o pêndulo”, sendo aplicado a uma mulher
enquanto é interrogada. A imagem foi publicada em um compêndio de título revelador – Maravilhas
da ciência ou a descrição popular de invenções modernas (Figuier, 1867-1891).

Nesses termos, é válido observar que não é mero e intrigante


acaso o fato de o período áureo da Caça às Bruxas ter vindo à tona
precisamente no período das grandes navegações, da retomada da
escravidão e do surgimento da Idade da Razão. Com efeito, há um
importantíssimo elemento estrutural que impulsiona todos esses

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processos: o nascimento do modo de produção capitalista. Confor-
me aponta Sílvia Federici em sua obra Caliban and the Witch (2004),
o que ocorreu nessa época foi um processo de acumulação primitiva
do capital, que a autora não vê como um estágio único e específico
desse modo de produção, mas algo a ser reconduzido em diversos
momentos para garantir a expansão do capitalismo.
Entretanto, nesse momento específico em que houve na Eu-
ropa a necessidade de acumulação de terras e também de “corpos”
– a força de trabalho do proletariado –, deu-se também o maior nú-
mero de julgamentos da Caça às Bruxas. Isso permitiu que um modo
inteiro de se relacionar e de viver pudesse ser destruído, permitin-
do a emersão de um novo modo de relações sociais capitalistas.
Junto com o proletariado, surgia também a dona de casa, com sua
restrição ao âmbito doméstico, e a promessa da fogueira para aque-
las que se rebelassem contra a nova ordem social. Mais do que isso,
nascia também uma divisão radical do que seria próprio do âmbito
masculino – a esfera do valor –, e do feminino – tudo o que não gera
valor. Nas palavras de Federici,

A caça às bruxas, então, foi uma guerra contra as mulheres; foi um


esforço combinado de degradá-las, demonizá-las e destruir seu
poder social. Ao mesmo tempo, foi nas câmaras de tortura e nas fo-
gueiras onde as bruxas pereceram que os ideias burgueses de do-
mesticidade e de condição feminina (womanhood) foram forjados.

Logo, o processo de historicização da caça às bruxas realiza-


do em Anticristo destaca, entre outros aspectos, a importância da
leitura do filme em chave invertida. O discurso paranoico e perse-
cutório de Dafoe, incorporando o senso comum para demonizar a
sexualidade e a intelectualidade da mulher contemporânea, iguala-
se aos discursos fantasiosos de autoridades religiosas e jurídicas,
artistas, cientistas e intelectuais da Idade Moderna, que projetaram

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a irracionalidade, a insanidade e a crueldade de sua doutrina nas
mulheres que demonizaram. Essas, tal qual Gainsbourg, precisaram
perecer para que a ordem social pudesse ser garantida. O paralelo é
adensado quando o estrangulamento e a incineração de Gainsbourg
reencenam as graves consequências da materialização de obses-
sões delirantes, mascaradas de argumentos racionais, tanto na Caça
às Bruxas quanto na contemporaneidade que o filme retrata.
Nesse caminho é bastante significativo que a fogueira em que
Dafoe queima o corpo da esposa corresponda à última associação
construída pelo filme entre o terapeuta e o âmbito da luz, da ilumi-
nação, do esclarecimento. Fica implícito na imagem o fato de que
as chamas da razão que recepcionaram o capitalismo cinco séculos
atrás foram as mesmas chamas que queimaram os corpos de inúme-
ras pessoas, sobretudo mulheres, e que seguem queimando formas
de socialização que se mostram contrárias aos avanços do capital.
Sendo o ponto de vista de Anticristo o que conecta a caça às bruxas
à contemporaneidade, revelando os conteúdos latentes dessa bar-
bárie, confortavelmente escondida na “Idade das Trevas” pelo senso
comum, a imagem também teria o potencial, portanto, de problema-
tizar as leituras triunfalistas e teleológicas do capitalismo.

Figura 11. As chamas que queimam o corpo desta “bruxa contemporânea” representam também a
última associação de Dafoe com o âmbito da luz, da iluminação e do “esclarecimento”. (Antichrist
(Trier, 2010), Criterion Collection, ©Zentropa Entertainments23).

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Consequentemente, a leitura distanciada proposta pelo filme,
a armadilha ideológica aí armada e seu processo de historicização
fazem com que a avaliação final de Anticristo sobre a contempora-
neidade tome como perspectiva a história inacabada do feminicídio
na cultura ocidental. Por conseguinte, o mais horrendo e o mais in-
quietante em Anticristo não são as cenas de mutilação explícita, que
fizeram com que tantos espectadores se recusassem a ver o filme.
O horror está, na verdade, nas implicações que o filme traz sobre a
vigência do patriarcado na sociedade ocidental contemporânea, so-
bre os meios culturais e institucionais que o atestam e naturalizam,
e sobre sua influência, muitas vezes bastante sutil, na psique dos
indivíduos. Sutil o bastante para fazer com que não se perceba sua
materialização no foco narrativo problematizado pelo filme. Sutil o
bastante para que não notemos como esse foco narrativo, que corpo-
rifica as ações brutais do patriarcado, é legitimado por muitos de nós.

referências
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the Real in the Works of August Strindberg and Lars von Trier. In:
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referências audiovisuais
ANTICHRIST. Direção: Lars von Trier. Roteiro: Lars von Trier. Array,
Irvington, N.Y., Criterion Collection, 108 min., 2 DVDs, 2010.

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