1
Conforme Buel (2001, p. 468), a possibilidade de se tornar grego por intermédio
da paideia não é um indicativo de que os gregos deixaram de representar uma
etnia. O que Isócrates sugere é a substituição da etnicidade grega fundada no
genos (ou seja, na família, na linhagem) por uma etnicidade fundada em
valores e tradições intelectuais.
2
Wallace Hadrill (1988, p. 224) afirma: “A chegada de Roma ao Mundo Helenístico
teve um efeito cataclísmico, não somente na distribuição do conhecimento e do
poder no Mediterrâneo oriental, mas também nas estruturas internas dos pró-
prios romanos”.
3
Martin Garrett (2006, p. 632) afirma que é principalmente no século II a.C. que
ocorre uma “helenização extensa” de Roma devido “às conquistas militares
romanas do Oriente, culminando com a derrota de Perseu da Macedônia em
168 a.C. e no saque de Corinto em 146 a.C.”
4
Não podemos imaginar, contudo, que a interação entre gregos e romanos bem
como a apropriação da cultura grega por esses últimos ocorreram apenas
durante esses momentos históricos. No século IV d.C., por exemplo, várias
evidências da influência grega foram encontradas nos escritos dos Padres da
Igreja. Cameron, por exemplo, demonstra a influência grega na retórica dos
autores cristãos mediante o estudo dos seus discursos. Desse modo, é possí-
vel encontrar evidências da helenização ao longo de todo o Império Romano.
Segundo Rowe (1995, p. 69), “o processo de helenização não está confinado
no passado e aqueles elementos possivelmente encontrados nos antigos gre-
gos ainda estão sendo assimilados em nossa cultura”.
5
Segundo Veyne (1983, p. 110), a Grécia seria depositária de uma civilidade que
“não era sentida como grega, como estrangeira, mas como a própria civilização
e o modo de ser dos gregos era considerado o ideal, o verdadeiro, em todos os
setores, da diplomacia à religião”. Isso se deveu, em parte, à capacidade grega
de promoção e imposição de seus valores ao resto do Mundo Antigo. Podemos
observar, por exemplo, que Isócrates, em seu Panegyricus, não perdeu a oportu-
nidade de promover a Grécia a partir da exaltação de Atenas. Não por coinci-
dência, em 59 a.C., Cícero (Pro Flacco, 62) declarará que Atenas é o locus da
civilização: “Os atenienses estão aqui, cidadão da cidade na qual se supõe
nasceu a civilização, o ensino, a religião, as frutas e as sementes, as leis, as
instituições e de onde foi disseminado para o resto do mundo”.
A RESISTÊNCIA CONSERVADORA
6
Aqui evocamos o coletivo romanos com cautela, pois não é possível se falar de
um “único” povo que, como um bloco homogêneo, emitisse uma única ava-
liação, uma só opinião sobre outros povos. Na realidade, como destacou
Henrichs (1995, p. 244), “nós não podemos assumir que as opiniões romanas
sobre as conquistas gregas eram unânimes, pelo contrário, elas eram variadas
no tempo e no espaço. Para alguns romanos, as contribuições gregas à vida
artística e intelectual eram consideradas exemplares. Para outros, a cultura
intelectual grega e popular representava um composto de ameaças aos sóli-
dos valores romanos – embora esta visão tenha, certamente, diminuído de
intensidade no decorrer de meados do século II d.C”.
Isso ele fez, não por causa de uma hostilidade pessoal contra Carnéades,
mas porque ele era totalmente avesso à filosofia e zombava de tudo o que
era da cultura (paideia) e ensinamento gregos, excetuando o zelo patriótico.
Ele disse, por exemplo, que Sócrates era um grande tolo que tentou ser, da
melhor forma que podia, o tirano de sua cidade por querer abolir seus
costumes e persuadir seus concidadãos a terem opiniões que eram contrári-
as às leis. Ele zombava da escola de Isócrates, declarando que os pupilos dele
se mantinham estudando até se tornarem anciãos como se eles fossem
praticar a arte e defender seus casos antes de Minos no Hades. E buscando
influenciar seu filho contra a linguagem grega, ele se entrega a um discurso
muito precipitado, declarando, em tom profético ou de vidência, que Roma
perderia seu império quando ela se infectasse com as letras gregas.
Meu querido filho Marco, você estudou por um ano completo e o tem
feito em Atenas, e você deve estar completamente preparado com os pre-
ceitos e princípios da filosofia; isso é o mínimo que, pelo menos, podemos
esperar da primazia não somente do seu professor, mas também da cidade;
o primeiro está capacitado a te enriquecer com ensinamentos, a última a te
fornecer os modelos. No entanto, tal como eu, para o meu próprio desenvol-
vimento, sempre combinei os estudos latinos com os gregos – e eu tenho
feito isso não somente no que diz respeito à filosofia, mas também à prática
da oratória – assim eu recomendo que você faça o mesmo para que você
possa ser hábil em ambas as línguas. Nesse sentido, se não me engano, eu
tenho contribuído muito para os nossos concidadãos, de modo que não
somente aqueles que desconhecem a literatura grega, mas mesmo os que
7
A reação grega diante da helenização de Roma, aparentemente, parece ser a de
aceitação, em oposição à atitude dos romanos, que declaram abertamente
sua hostilidade a alguns aspectos da cultura grega, como veremos mais
adiante. Em todo caso, a atitude dos gregos para com a helenização é um
assunto que merece uma maior reflexão.
8
Gehman (1976, p. 237) aponta que, quando se pensa nos inimigos da cultura
grega, Catão é imediatamente lembrado. Henrichs (1995, p. 244) concorda com
Gehman ao declarar que Catão aparece como “um dos mais ferozes entre os
críticos romanos dos gregos”. Contudo, segundo o autor, a avaliação negativa
de Catão sobre a cultura grega diminuiu com os anos, fazendo com que ele
próprio obtivesse profundo conhecimento da língua e literatura gregas.
C ULTURA OU PAIDEIA ?
9
Geertz (1989, p. 23-4) argumenta que “situar”, ou seja, compreender o intrincado
processo por meio do qual os diferentes povos significam o mundo de modo
a tornar possível a comunicação é a tarefa da pesquisa em Antropologia.
Segundo Geertz, “o objetivo da Antropologia é o do alargamento do universo
do discurso humano”. A História também persegue esse propósito: o de
situar, o de devolver a seu tempo e espaço as maneiras de ser do homem, suas
organizações, mediante a conceituação, pois “a conceituação faz o interesse
da História” cujo fim é o de “apreender a originalidade das coisas e de situar”
(Veyne, 1995, p. 81; Veyne, 1989, p. 31).
10
E, realmente, devemos compreender que a cultura não é somente a textura na
qual os homens interagem, ela também produz e expressa a maneira como os
homens, numa dada sociedade e num dado momento, estabelecem e mantêm
hierarquias (Bourdieu, 2002, p. 10-11; Geertz, 1989, p. 15-24). Os sistemas
culturais – como, por exemplo, a arte, o senso comum, a religião, a ideologia,
a linguagem – não apenas expressam nossa compreensão da realidade e pos-
sibilitam a comunicação, mas também criam e reforçam as classificações, ou
seja, contribuem para uma dada ordem de coisas (Bourdieu, 2002, p. 9-11;
Foucault, 2002, p. 16). Assim, a cultura constrói, efetiva e mantém relações
de poder, além de ser a expressão material e simbólica da forma como concebe-
mos a realidade. Nesse sentido, um estudo sobre objetos considerados cultu-
rais é, igualmente, um estudo sobre as relações de poder e, portanto, uma
investigação que nos remete ao campo da política. Cultura e política são assim
partes de uma mesma realidade. Ambas são mutuamente constitutivas e,
por isso, não podem ser pensadas como aspectos distintos ou autônomos.
11
Wallace-Hadrill (2000, p. 8) sugere o conceito grego de paideia e os conceitos
romanos de disciplina, studia, humanitas e mores para cobrir alguns dos elemen-
tos pertencentes ao domínio do que, hoje, denominamos cultura.
12
Jaeger (2001) fornece uma contribuição decisiva sobre o tema da paideia clássi-
ca grega. Em Cristianismo primitivo e paideia grega (2002), discute a relação
entre a cultura grega e o cristianismo primitivo, propondo a idéia de paideia
cristã. Na sua tese de doutorado intitulada Paideia e Retórica no século IV d.C.:
a construção da imagem do imperador Juliano segundo Gregório Nazianzeno, Carva-
lho (2002) faz uma reflexão sobre a paideia no contexto romano do século IV
d.C. Ver também Carvalho (2004, p. 189-201) e Brown (1992).
O S ELEMENTOS DA HELENIZAÇÃO
13
O argumento de Wallace-Hadrill (1988, p. 232) é o de que a ordem romana e a
ordem grega eram, inicialmente, incompatíveis. De acordo com o autor, os
romanos teriam sido os responsáveis pela compatibilidade entre os sistemas
na medida em que conquistaram e foram capazes de ‘domesticar’ o sistema
alheio sem comprometer a sua própria ordem.
14
Podemos hoje perceber essas sutilezas da helenização de Roma na medida em
que a documentação da qual dispomos é maior do que outrora, especialmen-
te a arqueológica e a epigráfica (Wallace-Hadrill, 1988, p. 227).
15
Wallace-Hadrill (1998, p. 80) evidencia as críticas feitas àqueles que optavam
pela utilização do grego mediante dois acontecimentos: a zombaria de Catão
a Póstumo Albino, relatada na biografia de Catão escrita por Plutarco (Cato,
12) e a humilhação do romano Lúcio Póstumo Megelo narrada por Dionísio
de Halicarnasso e Apiano. Chahoud (2004, p. 1) menciona ainda a censura
dirigida a Caio Lucílio, satirista romano, pela sua “falta de refinamento
lingüístico”. A opção pela utilização do grego era mal vista, mas, como
veremos adiante, a questão da escolha da língua faz parte da luta de represen-
tações entre gregos e romanos (Chartier, 1990, p. 17).
16
Entendemos por elite “uma posição no ou próximo ao topo do sistema hierár-
quico em questão” (Rapp, 2000, p. 379).
17
Catão, Cícero e muitos outros membros da elite romana tinham conhecimentos
acerca de literatura e língua gregas adquiridos mediante viagens que os colo-
cavam em contato direto com os gregos ou mesmo pelo fato de terem fre-
qüentado, em algum momento da sua formação educacional, as escolas
gregas (Astin, 1978; Griffin, 1994).
18
A disseminação do grego é perceptível na terminologia técnica desde os poe-
mas, as sátiras até as disciplinas como a retórica, a filosofia e, inclusive, a arte
da medicina. Chahoud (2004, p. 7-9) apresenta alguns exemplos interessan-
tes do processo de tradução romana de termos gregos, que eram latinizados
ou substituídos por palavras latinas já existentes. Segundo a autora, no caso
da medicina, o processo é inverso, observando-se um uso crescente de termos
gregos. Isso se torna compreensível se consideramos a medicina como uma
arte cujo exercício permaneceu como uma prerrogativa de gregos profissio-
nais, razão pela qual a língua grega se tornou a “voz profissional da medici-
na”. Em momentos posteriores, é possível também constatar um movimento
inverso: a tradução grega de termos romanos. Erskine (1995, p. 368-83), por
exemplo, buscou investigar o sentido do nome ‘Roma’ nas ocasiões em que
este é vertido para o grego.
R EFERÊNCIAS
19
Henrichs (1995, p. 243) já havia feito essa observação anteriormente. Segundo o
autor, “[...] a palavra ‘cultura’ vem perdendo virtualmente seu sentido profun-
do por intermédio de seu uso exagerado [e poderíamos até dizer constante], de
modo que ‘cultura’ é agora uma palavra que agrega um todo que significa algo
vago como ‘modo de vida’”.
Obras de apoio
É RICA
A NEXOSC RISTHYANE M. S ILVA • A HELENIZAÇÃO DE ROMA 167
É RICA
A NEXOSC RISTHYANE M. S ILVA • A HELENIZAÇÃO DE ROMA 169
F L O R &C U L T U R A E D I T O R E S