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Resumo: Este artigo pretende discutir as relações entre a capoeira Angola e capoeira
Regional, a partir de Mestre Bimba e Mestre Pastinha, na cidade de Salvador na década de
1960, no momento em que essa divisão dentro do universo da capoeiragem já está
consolidada e seus ícones travam um embate pela tradição da capoeira. Partindo do debate
que a História Social Inglesa trás para a historiografia a partir da década de 1960, toma-se
como foco desta pesquisa os próprios capoeiristas – suas experiências e suas intenções – a fim
fazer uma escrita da História que não reverbere exclusivamente a atuação de personagens das
classes sociais dominantes, mas que analise o protagonismo dos seus agentes.
Palavras-chave: História Social Inglesa; Mestre Bimba; Mestre Pastinha; Capoeira Angola;
Capoeira Regional.
A História Social Inglesa tendo início na década de 1960 começa a se intitular assim a
partir da quebra epistemológica de seus principais expoentes, como Eric P. Thompsom e
Cristopher Hill, com o marxismo clássico. Restringindo-se a análises das estruturas, grande
parte dos historiadores ingleses entenderam que era necessário escrever sobre aqueles sujeitos
históricos que não tinham suas ações relatadas na historiografia.
Eric P. Thompson é uma das referências desse trabalho por ter sido ele quem, de
forma mais contundente, travou esse embate quando traz uma nova concepção do conceito de
classe. Em sua obra A formação da classe operária inglesa ele problematiza esse conceito
1
Trabalho apresentado no GT Comunicação e Matrizes Culturais do I RECOM – Comunicação e Processos Históricos,
realizado de 29 de setembro a 01 de outubro de 2015, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, BA.
2
Mestra em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Professora da educação básica na rede estadual
de ensino do Estado da Bahia. gisseleraline7@gmail.com
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Graduando de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Estudante bolsista no Programa
Institucional de Iniciação à Docência, atuando no Colégio Estadual de Salobrinho em Ilhéus-Ba;
tauafernandesjunqueira@gmail.com.
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quando propõe que o estabelecimento de uma classe está em sua formação, e essa por sua vez
só é possível, a partir das experiências de seus sujeitos no processo histórico dos modos de
produção, não bastando isso seria necessária também a identificação em comum dessas
experiências para evidenciar os interesses comungados por certo grupo de sujeitos em
oposição a outros, formando-se assim uma identidade, esse movimento da experiência para a
identidade é o que vem a ser estabelecido por ele como consciência de classe, e desse modo a
classe seria um processo de “fazer-se”.
Não vejo a classe como estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como algo
que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações
humanas (...) a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica (...). A
classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns
(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses diferem
(e geralmente se opõem dos seus). (THOMPSON: 1987, P. 9-10)
Ora, a relação com o passado, posta aqui, não é de uma filiação direta e sim de uma
escolha determinada por seus sujeitos sob as suas intencionalidades em construir uma
tradição.
A opção por pesquisar a década de 1960 vem do cenário de disputa que se delineia
com mais claridade entre mestre Bimba e mestre Pastinha, analisando suas declarações
públicas que demonstram a atmosfera de conflito de ideias em busca da autoridade sobre a
capoeira a partir de um plano de invenção de tradições soteropolitana.
O universo da capoeiragem de Salvador na década de 1930 torna-se um ambiente de
disputa por espaço. Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba, ao criar a Luta Regional
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Baiana4, e posteriormente assumir como Capoeira Regional, causa uma atmosfera de tensão
entre os capoeiristas contemporâneos a ele. Essa atual adjetivação o distancia d a identidade
em comum da capoeira para colocar-se como criador e representante maior de um estilo que
muito se aproxima daquela que era jogado nas ruas soteropolitanas.
Paulo Andrade Magalhães Filho, em seu livro Jogo de discurso: a disputa por
hegemonia na tradição de capoeira angola baiana, discute esse processo da criação da
capoeira regional dentro de um contexto de representação política nacional a partir do diálogo
com Luiz Renato Vieira, então ele propõe:
De acordo com Vieira (1995, p.70), a criação da luta regional baiana (Capoeira
Regional) por Mestre Bimba se deu dentro de um processo de gradual
descriminalização da capoeira em um “intenso processo de apropriação das
instituições do ethos popular por parte do Estado” que “enquadra-se nas novas
estratégias de legitimação” do Estado Novo. (FILHO: 2012 P. 26)
Posto isso, a relação entre a Regional, criada por Bimba, e o governo federal
demonstra que a capoeira – e agora não apenas a de Bimba – sofre mudança representativa no
aos olhos da esfera estatal quanto ao seu significado para a sociedade brasileira. Se antes era
motivo de perseguição e criminalização5, agora era tomada como ferramenta de incursão do
Estado no chamado “ethos popular”. Mas se a capoeira de Bimba se outorga de uma tradição
regional baiana, que ele sistematizou e batizou, onde está enquadrada àquela daqueles que não
faziam parte deste grupo? Sendo difusa e existindo apenas na instância individual de seus
jogadores, para se estabelecer enquanto “uma” – a capoeira não regional – era necessário
começar o processo de “fazer-se” enquanto classe como aponta Thompsom.
A partir desse viés temos o surgimento da imagem de Vicente Joaquim Ferreira
Pastiña, Mestre Pastinha. Mesmo já havendo algumas tentativas de estruturação/organização
4
Bimba funda uma academia com o nome Centro de Cultura Física e Luta Regional Baiana em 1937,
oficialmente registrada na Secretaria de Educação, Saúde e Assistência de Salvador.
5
Getúlio Vargas assina o Decreto Presidencial 1202 em 1934 retirando a capoeira do Código Penal. Ver
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires in Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá: Três Personagens da
capoeira baiana. Página 91.
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da capoeira pelos mestres mais antigos de Salvador em forma de academia, como vimos com
Bimba, foi com Pastinha que isso tomou forma. Transformando o já existente Centro de
Capoeira Angola no Centro Esportivo de Capoeira Angola em 1941. Sem conseguir um local
fixo para dar continuidade aos treinos e aulas de capoeira somente em 1952 que consegue
registrar a academia no Pelourinho.
As origens do termo “Angola” são pouco claras. Em 1922 já há registro de seu uso na
tentativa de criação do Conjunto de Capoeira Angola Conceição da Praia6, como relata mestre
Bola Sete. Entretanto, não há uma certeza quanto ao sentido semântico do uso desse termo,
uma vez que tanto é utilizado para designar o pensamento de origem africana da capoeira
como também designando uma modalidade específica em oposição à capoeira Regional.
Apesar de ocupar esse espaço de oposição à “modernidade”, a capoeira Angola, do
viés de Pastinha, não representa um campo hegemônico dentro da capoeira de rua de
Salvador, ao contrário, rompe com esta. Antonio Liberac Cardoso Simões Pires em seu livro
Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá: Três personagens da capoeira baiana, discute esse
processo, que a capoeira Angola se aproxima da capoeira Regional, negando a realidade da
rua por a considerar violenta e desordeira.
Entre esses existiu um capoeirista que se tornou célebre e temido pela sua
agressividade – tinha o hábito de sair, à noite, vestido de mulher para melhor iludir
suas vítimas. Existiam outros que assaltavam os casais aos quais infligiam vexames
(...) felizmente esses capoeiristas desordeiros constituíam uma pequena parcela e
mereceram uma violenta repressão policial. (PIRES: 2002. P. 65)7
Tendo por objetivo inicial a reunião da “velha guarda” da capoeira, ou seja, os mestres
mais antigos e de maior reconhecimento, frente ao início de “modernização” com a criação da
capoeira regional (FILHO: 2012, P. 74-75), o centro, que mestre Pastinha assume, logo perde
6
Ver Paulo Andrade Magalhães Filho in Jogo de discursos: A disputa pela hegemonia na tradição da
capoeira angola. Página 71.
7
Essa citação é do livro Capoeira de Angola por Mestre Pastinha, do próprio mestre Pastinha e está contida
no livro de Antonio Liberac.
6
esse caráter para torna-se a academia onde o mestre desenvolve e personifica um estilo de
capoeira. Uma capoeira que por estar em disputa de espaço e poder com a regional, ancora-se
na ideia de origem africana (especificamente de Angola).
Portanto, a capoeira Angola é tida como tradicional, não porque obedeça a uma
lógica da capoeira praticada pelos predecessores diretos de mestre Pastinha, mas
sim, pelo fato de a capoeira Angola ter algo a ver com a praticada pelos africanos. A
capoeira, de Pedro Porreta, Besouro Mangangá, Pedro Mineiro e outros foi
reprovada por mestre Pastinha, por excesso de violência. (PIRES: 2002. P. 84)
Nos anos 30 mestre Pastinha parece ter se relacionado com mais intensidade com os
intelectuais do Partido Comunista, portanto internacionalista, que escreveram
constantemente a favor da capoeira Angola. Enquanto isso mestre Bimba esteve
mais ligado aos intelectuais nacionalistas. (PIRES: 2002. P. 92)
7
[...] é uma só: a de angola. Capoeira regional não existe. Regional é apenas nome
criado por Mestre „Bimba‟, angoleiro como eu [...] „Bimba‟ ensina aos seus alunos a
jogar mais ligeiro, enquanto eu determino aos meus movimentos lentos e manhosos,
seguindo os ensinamentos do meu Mestre Benedito. (FILHO: 2012 P. 81)
Enquanto isso, mais a frente neste mesmo jornal Bimba fazem uma fala em defesa da
origem baiana da capoeira, “os negros sim eram de Angola, mas a capoeira é de Cachoeira,
Santo Amaro, e Ilha de Maré, camarado”. Em entrevista à Tribuna da Bahia em 19698, o
clima de tensão fica ainda mais severo com a troca de respostas entre os dois. Mestre Bimba
inicia dizendo:
quando no Brasil alguém inventa alguma coisa é sempre outra pessoa a levar a fama.
Eu levantei a capoeira na Bahia, antes quem jogavam eram os carroceiros e
coveiros, hoje não, são médicos e advogados. Ninguém dá valor, à capoeira angola,
pois é uma dança. E se oficializarem a capoeira como querem, será a regional que é
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As citações desse jornal foram retiradas de Antonio Liberac Cardoso Simões Pires in Bimba, Pastinha e
Besouro de Mangangá: Três Personagens da capoeira baiana.
8
a que se presta para a luta. Mestre Pastinha foi ser mestre de capoeira depois que eu
ensinava há trinta anos. (PIRES: 2002. P. 91-92)
Eu não sou o número um da capoeira na Bahia, mas sim quem a levantou e a fez
ingressar na sociedade (...) o mestre Bimba é tão angoleiro como eu porque só existe
uma capoeira: a Angola. Eu quero não ele debaixo de mim, mas também não quero
ficar debaixo dos pés dele. (PIRES: 2002. P. 92)
Assim como Bimba, mestre Pastinha diz ser ele quem ascendeu a capoeira na visão da
sociedade, retoma o processo de ruptura que fez com os capoeiristas anteriores a ele por
serem considerados malandros e utilizarem a capoeira para cometer crimes. Quanto ao mestre
Bimba, ele o coloca em relação de igualdade, entretanto desmerecendo a modalidade por ele
criada, alegando somente existir a de Angola, a de origem africana.
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Ver Capítulo III do livro de Antonio Liberac Cardoso Simões Pires in Bimba, Pastinha e Besouro de
Mangangá: Três Personagens da capoeira baiana.
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Ainda Pastinha numa entrevista a Roberta Freire que foi publicada na revista
Realidade em 196710 diz que:
Tudo que eu penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que está na ponta da
Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola, capoeira, mãe. E embaixo, o
pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; Seu princípio não tem
método; Seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista. (ABREU; CASTRO:
1967. P. 21)
O clima de disputas por poder e espaço é claro nas falas públicas dos representantes da
capoeira angola e da capoeira regional. Entre a Bahia e Angola guarda-se uma severa disputa
pela capoeira que até agora não há previsão de término.
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Entrevista retirada da organização de Frede Abreu e Maurício Barros de Castro Capoeira da coleção
Encontros da editora Azougue.
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REFERÊNCIAS
ABREU, Frede. CASTRO, Maurício Barros de (orgs). Capoeira. Coleção Encontros. Rio de
Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá: Três
personagens da capoeira baiana. 2ª Ed.Tocantins: NEAB/Grafset, 2002
HOBSBAWM, Eric J. E. RANGER, Terence (orgs). A invenção das tradições. 6ª Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.