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. Na | ‘\4 a CADERNOS re a rN ee a ee Poesia . ouTras ATTES SPO owaryOr Keun Mise ele mT Y es iru {Gaderno de itera Compara Poesne Oates Aer {hr edernzn 4 omtemporaneiade Desembra 007 usticagao [netted Literatura Comrade Magus Lose ‘Taraldadede Leora Universidade do Porto ‘consexs0 xorroriat, anil Hear Pages elena Carlie ueson sis rene Rambo Peer Schnpder| symond Trowcon orcanizapores po presenre ntimero ‘x Lass Amand onalaVe- Boer Lirdes onesies ows Mara Maile pesionrarie0 Nanese sda rorocrartapacara Nanese Ps ErToR nso de Literatura Compras Margarida Loss ‘pisrensuigio ligiesAronumento, Lila us ota Cabral 953 = 4200-285 Port» sewedicoeatrontent ‘chtonal@eeavesfontnent.p ePOEITO LEGAL aagta6iog SSN 645-18 mpressio Fao Neves de /Suts Mari dats _———Poesia, imacem e cinema: Lose Maria Martlo "quaLguerPoema ‘winnie éum Finme”? Pecans coi rect faut ‘moyen A poesia do séeulo XX evidenciou um progressive inte- resce pelo universo cinematografico, um interesse que parece ter transitado intacto para o século XX1. Basta folhear uma antologia dedicada as relagbes entre a poesia e 0 cinema — por exemplo o volume Viento de Cine (Conget, 2002), que percorre a poesia espanhola de expressio castelhana de 1900 a 1999, ou The Faber Book of Movie Verse (French e Wlaschin, 1994), que reiine uma extensa selecgao de poesia em lingua inglesa ~ para encontrar um vasto conjunto de poemas inspirados pela ‘memoria do cinema e pela experiencia de espectador. So mui- tos os poemas que falam de filmes emblemiticos, de Hollywood, das salas de projecgao, do acto de filmar, do cine~ matografo dos Lumiére, das grandes divas do cinema, do cine~ ma mudo, de westerns, e assim por diante. E ha ainda poemas que partem de imagens muito concretas, extraidas de filmes precisos, poemas que tém uma dimensio ecfrastica e procuram, descrever planos ou sequencias cinematograficas. Antonio Gamoneda, por exemplo, escreven um belissimo poema onde ‘qquase vemos outra ver. as bandeiras dos soldados de Ran, de Kurosawa. E sao bem conhecidos os poemas em que Frank O'llara descreveu a experiéneia do espectador de cinema, ou 0 ambiente ao mesmo tempo fantastico ¢ densamente imagético desenvolvido por Pere Gimferrer em la Muerte en Beverly Fills (4968), livro todo ele construido em torno do universo de pai- xdo, crime e mistério do cinema de Hollywood wo Também no contexto portugués, ¢ possivel identifiear poemas que trabalham explicitamente relagbes tematicas como cinema em autores como Eugénio de Andrade, Ruy Belo, ou inais recentemente em Jodo Miguel Fernandes Jorge, Manuel Gusmao e José Miguel Silva, entre outros.’ Mas mais difieil de captar do que este tipo de aproximagdes de ordem temitiea ou eciréstica é certamente o impacto da linguagem cinematografi~ ca sobre a linguagem poética, desde logo porque, embora de ‘maneiras diferentes, o cinema ¢ a poesia trabalham, ambos, a imagem ¢ a relagdo entre as imagens, 0 que acaba por situar as duas artes num campo de partilha com consequéncias ree‘ cas e, portanto, dificeis de isolar. Sendo a imagem poética mui~ tas veres construida sobre a metéfora ¢ a metonimiia, que sio ‘tropos, nao seré excessivo dizer-se que a poesia contém, de si ‘mesma, uma dimensao cinemética, embora essa capacidade de ‘movimento, ou deslocamento, possa precisamente gerar um tipo de imagens que Harold Bloom considerou como capazes de provocar "uma derrota do olhar” (Bloom, 1969: 27). E no entanto nem sempre é assim. E tal como he filmes que se apro priam de estratégias discursivas da poesia, hi também poemas onde € possivel observar formas de olhar que derivam de uma apropriagao da linguagem cinematogrétfica. Curiosamente, 4 presenga do cinema nesses textos, podendo ser bastante in recta do ponto de vista tematico, ndo € menos determinante, como tentarei mostrar. 1, Ameméria como cinema 0 primeiro livro de Luis Miguel Nava, publicado em 1979, intitulava-se Peliculas — palavra que um leitor habituado 2 escrita deste poeta logo associa a relevancia do papel que a pele desempenha na sua poesia. No entanto, a palavra peliculas remete também para o suporte sensivel no qual se fixam as imagens da fotografia ou de um filme, 0 que permite estabele- cer uma relagao entre dois universos semanticos bastante di parec, mas que, no contexto da obra de Nava, eurgem frequen temente associados. Quer na pele, quer na pelicula fotogrifiea ou cinematografica, 0 pocta observa a mesma fragilidade impressionavel, a ambas atribuindo idéntica capacidade de guardar, gravar imagens. De resto, em Vuledo (1994), 0 tiltimo livro da breve e fulgurante obra de Nava, a propria realidade é aproximada da “imagem produzida por um aparelho", pois, tal como as imagens provindas de uma camara de fotografar ou de filmar, também a realidade seria “constituida, em suma, por uma pelicula tao fina que 0 minimo gesto (...) a poderia des- truir” (Nava, 2002: 236-7) Fragil e sensivel como as realidades que evoca, a pele é centio, concehida na obra de Nava como uma pelicula impressio- navel na qual emergem as imagens provindas da memoria, Como se Ie num poema de Como Alguém Disse (1982), "(...) é na pele que tudo se reflecte com maior intensidade (...). Vem sempre dar a pele o que a meméria carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destrogos vem dar a praia” (Idem: 97). Se a pele € uma pelicula impressionavel, e a ela vem dar “o que ameméria carregou”, tal significa que o que regressa do pasado €, literalmente, um conjunto de imagens. E de facto, a aproximar a vinda das imagens da chegada dos destrogos & praia, Nava acentua o cardcter involuntario ¢ fragmentario da rememoragao, mas 0 mesmo tempo também sugere que aquilo que a rememoragao presentifica sio imagens perceptivas, iso- ladas ou em breves sequéncias, e de resto tao nitidas quanto esta que as identifica com os "destrogos [que] vém dar a praia”. Em Peliculas, 0 poeta descreve muitas vezes a vinda das, imagens, ora acentuando a sua condigao fragmentaria, ora tendo em conta as relagdes inesperadas que as imagens man. tém entre si, ¢ fazendo da meméria uma espécie de cinema: "Bis 0 rosto, eis 0 poco, poem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando”, lé-se num poema intitulado "Contra os flashes” (Idem: 42), mma formulagao que. uma vez ya mais, associa a vinda das imagens A sua impressto descontinua imagens como toalhas") sobre a pele. Como Nava diré em A Inéreia da Deserpdo (1981), um livro formalmente bastante dife- rente de Peliculas mas igualmente centrado na meméria, a sua escrita procura produzir ".., um texto onde o cinema se insi- ‘nue, a um tempo apantando-Lhe as imagens ¢ o seus mailtiplos sentidos” (Idem: 67). Apesar de ser por vezes possivel observar o estabeleci- mento de relagdes com a imagem fotogrifica, a importancia dada nesta poesia a sucessividade e ao movimento remete o lei- tor para um universo preferencialmente cinematografico. A reversibilidade que em Nava anula dicotomias como interior/exterior, matéria/espirito, pele/entranhas esté clara~ mente associada a uma concregio da memoria para a qual as imagens do cinema servem de modelo. £ assim que, “[al carne” ~ outro clemento essencial nesta poesia — poder ser atravessa~ da “por um sol que ela, depois de Ihe ter sido impenetrével, acabasse por fazer correr dentro de si como uma espécie de cinema a que de sibito se abrisse, a carne, pura projeegao de um tempo fulgurante cuja consisiéncia fosse momentanea- mente asua(..)" (Idem: 224). Densamente metaforica ¢ imagética, insistentemente mareada pela rememoragio ¢ pela dimensio fantasmndtica das imagens, a escrita de Luis Miguel Nava estabelece um nexo explicito entre a experiéncia da meméria e o cinema: tou em Viseu0tempod desubito um slo para tris, ‘um file ato antigo, entre ens imagens devavias assim realdade, me mavo hipnovcamente, em eadauma da cosas que me ercam pressentndo o sang de qe, dentro domim, duratstodosestes anos enotriram. (dens 18) Ao contrério de outros poetas, como Ruy Belo, ow mais recentemente Joo Miguel Fernandes Jorge, Manuel Gusmao on José Miguel Silva, Lafs Miguel Nava nunea fala de filmes coneretos, sequer da experiencia do espectador, e as suas refe~ réneias a0 cinema nunca comportam qualquer dimensio ccfrdstica reconhecivel, pois os poemas nfo remetem directa- mente para 0 universo cimematografico. E todavia, sem falarem de filmes, ou de actores, ou de salas de cinema, eles foram toca- dos pelo cinema a um nivel mnito profimdo, pois as suas meta- foras expdem 0 fancionamento da meméria de uma forma que nao teria sido possivel se o cinema néo existisse. Coneretamente, Nava recorre ao passado como a um acervo de imagens, visuais, perceptivas, muito nitidas, e ndo para reconstituir narrativamente acontecimentos passados. ‘Vejamos, a titulo de exemplo, o poema “Sketch” ‘Vem o rapza a pigina, 6 0 seu sketch, a lus 3s vezes é de tal intensidade que a pagina fica em branco, outres porém mais fraca, (..) a tensio no poema é entio tanta que a8 imagens saltam em descargas, é assim colhido em planoe vérios, hi alturas em que apenas um pormenor do rosto vem a pagina foutras em que a cla aflui a nudeztoda, um né de imagens avo luma-se, (..) a intensidade do rapaz ¢ ent tal que ¢ ele ‘quem poe em branco a pégina. (Idem: 49) Neste excerto, Nava eoloca-nos entre uma espécie de fusto de abertura ¢ outa de fecho: coma chegada do rapa, isto € da sua imagem, provinda meméria, a pégina fica em branco. Depois, o rapas é “colhido em planos varios”, entre os quais 0 grande grande plano, ou o plano de pé quando 0 “né de ima~ gens” se avoluma, até que a intensidade das imagens volta a tra~ Guair-se numa espécie de fusio de fecho. Num outro poema, intitulado "A preto e branco”, a meméria ¢ identificada com um muro: "Uma mulher encosta-se um muro, encosta~se 4 meméria”. Vestida apenas de preio e bbrano (a ena roupa jeecrita com grande pormonor), veremoz depois esta mulher mover as mios, como se, encostada ao muro da meméria, a observissemos num plano fixo: ‘As mils encosté-Ias-ia também se nfo segurasse wm lengo branco, Aperta-o entre os dedos, filo passar entre eles, uma, ‘pequena serpente. Ou entéo amarrota-o, fm das palmas das mos uma eoncha onde © esconde. o lengo assim desaparece totalmente, spenas as mios se veer projectadas para a fren~ le, dir-se-ia que rezam. Depois, sempre ocultando 0 Teneo, levann-no a0 rosto novamnente de perfil, mado a pretae branco ainda, ou & rosto que deser até as mos, mergulha no lengo, talves este e 4 lingua se procurem, uta lingua pele Lengo adiante, uma lingua é provavel que vermelha, nao, é tudo ainda muito a preto branco, é tudo ainda demasiado a preto ‘ebranco para permitir um pormenor vermelho, (Idem: sa) ‘Logo no primeiro poema desta sequéncia, Nava esereve "(..) entra / nesta pagina o mar da minha inféneia (..)" (Nava, 2002: 87), e, neste contexto, 0 preto e branco da imagem pode ser Tido como uma referéncia a um momento em gue tudo era ainda recortado com a nitidez da visao infantil ¢ com uma pure~ za que excluia a dissonaneia de um “pormenor vermelho”. Mas a esta leitura sobrepae-se uma outra, em que a distancia tem- poral a que estaria 0 "pogo" de onde vem as imagens da infineia 6 sugerida pela relagao com o cinema ainda a preto e branco, que excluiria a possibilidade de apresentar uma lingua verme~ Tha. Ainda que esse pormenor tivesse existido, como o poema niio deixa de sugerir, ele nao poderia ter fieado no registo da membéria, jé que toda a informagao que esta regista é cixcuns- crita ao ambito da imagem perceptiva. Em Histoire(s) du Cinéma, Godard dir a certo momento: quivent doit se confier aVoublt Ave risque qu‘est Voubli abeal cebeau hasard ‘que devient alors le souvenir (Codard,1998:128-9) Esta defesa do “belo acaso” que determinaria a meméria das imagens decorre do facto de, para Godard, a meméria do cinema ser essencialmente uma meméria de imagens, nao uma memeéria de histérias.* Tem sido estudadas as relagies. ‘entre Histoire(s) du Cinéma, de Godard, ¢ a obra de Proust, designadamente pelo facto de o cineasta entender que as ima- gens de filmes voltam a nés sob a forma de reminiseéncias involuntérias, nas quais é determinante o recorte emocional das imagens e nao 0 seu contetido fenomenoldgico (cf, Ricciardi, 2001: 64g). Ora 0 que podemos observar na escrita de Nava releva da apropriagao deste tipo de experiéneia de espectador de cinema por parte do poeta. Se as suas imagens so intensamente perceptivas, ao mesmo tempo auténomas ¢ articulaveis de um modo que de resto se poderia aproximar da montagem por atracgao eisensteiniana, dado o efeito de cho- que que tantas vezes as associa, 6 porque Nava vai reelahorar a ‘meméria como um processo de impressio de imagens sobre a pele/pelicala, onde elas ressurgem. F ressurgem num recorte ‘emocional e vivido, intensamente perceptivo, que justifica a projeccio da experiéncia de visualizagao ¢ de rememoragto das imagens cinematograficas sobre a prépria construgio de uma ideia de meméria, Para Pasolini, a violencia expressiva das imagens cinema~ togrétficas provinha do facto de "[a] instituigao linguistica, ou gramatical, do autor cinematogritico [ser] formada por imagens eas imagens [serem] sempre concretas, nunca abstractas” (Pasolini, 1982: 141); €, sensivelmente na mesma linha, ‘Tarkovski esereve: “O elemento basico do cinema, que permeia até mesmo as suas células mais microscopicas, é a observagio” (Tarkovski, 2002: 75). E precisamente esta coneregéo das ima- gens cinematograficas, a forma como elas se contrapoem a “felencia do olhar” ~"o cinema exibe permanentemente a prova material do que se passa”, lembra Godard (191: 180) ~, aquilo que Nava transporta do cinema. A coneregio ¢ a sucessividade das imagens na mem6ria sio dois aspectos que a sua poesia tra- spa} balha em didlogo com o cinema, mesmo se a apropriagio da imagem pereeptiva pode ser colocada em tensio com 0 invisua~ Iinavel. A violéncia que caracteriza a imagética de Nava decorre, ‘em grande parte, da distensiio das imagens perceptivas até a um. onto em que estas provocam “a derrota do olhar”. E talvez um. poema como “Bem fundo”, com as suas referéneias a um écran, onde se encena a diluigao das fromteiras entre interior e exte~ rior, entre corpo ¢ alma, possa mostrar até que ponto essa dis~ tensio produz uma espécie de curto-cirenito da visualidade das imagens usadas como ponto de partida: Um prego na gengiva, Dem fando, a onde seria de crer que's6 chegasse a alma, assim ag érvores nos erescem por dentro da meméria, onde asraizes ‘fazem rebentar, assim, asfulhas que nos servern pormomentos de pele se nos agitam no espirite, onde a pele se afonda como nur éeran, pele, um jeito de érvore que tivesse uum eepelbo entre ae raites, pele quennos vendou, quemos servin devwenda ede meméria, Drancura que olengol dispata astrevas, lama dessa rai agarrada a0 eran, dessa gengiva ‘esquecidajé de ter tad na hooa agora apenas presa alma, sobre aqqual parece debrucada, (Nava, 2002: 222-3) 2, Slow motion, moniagem ¢ atraegio entre imagens Estou portanto a defender que a relagao da poesia moderna e contemporanea com o cinema vai muito para além de uma presenga ordem temética ou ecfrdstica, E para acentuar um pouco mais 0 facto de essa relagao se poder situar num plano essencialmente discursivo, gostaria de recordar agora um poema de Carlos de Oliveira, mas nao aquele que, tendo como ‘culo a palavra “Cinema”, poderia parecer a escolha mais ébvia. Apesar de ser esse 0 poema que abre o volume 0 Bosque Sagrado (cf. Braga; Ferreira; Magalhaes, 1986: 21), que tanto quanto sei ainda continua a ser a tinica antologia organizada em Portugal em fungdo da presenga do cinema na poesia, © poema que me interessa ¢ outro. Faz parte do livzo Entre Duas Memérias (1972), sais concretamente de uma secgao intitulada "Sub specie mor- tis", © chama-se "Salto em Altura”, Transcrevo a iltima das seis partes que o constituem: Osaltedor em altnra ‘conseguintranspor ‘dois metros evinte: riseulosaascenderera sé porsi;o treino, a obsesso: neve, no estédio sem ninguéms esto filme analisa, so retardador, cada win dos evs saltos @sonho a decompor-se a refuer-ee; em ftogrameas suoessivoa, coma disse. a primeiraforma ainda lstica; as ontexs endurecern no er mais angulosa, rmastodas peso, laborando as leis da queda: ‘cacy graves eduzidae 0 apago do sen peso. (Oliveira, 1992352) 200205 ‘O que mais me interessa neste poema sio 0s versos “este filme analisa, / ao retardador, cada um dos seus saltos: / 0 sonho a decompor-se; / a refarer-se; em fotogramas / sucessi- vos: (...)”. Bm primeiro lugar, porque sendo esta a titima parte do poema. niio é possivel decidir se 0 defetico “este” remete para um filme a euja visualizagio 0 poema se referiria —um filme onde um salto em altura fosse captado em slow motion ~, ou se remete para o préprio poema que, ao longo das suas seis partes apresenta analiticamente, em diferentes imagens, dife- rentes formas de voar/sonhar ~ desde 0 voo dos anjos 40 voo dos pastores nas eumeadas, passando pelo voo das hospedeiras do ar e 0 das palavras que se soltam dos livros e, naturalmente, ‘voo do saltadior em altura. Se se optar pela primeira hipétese, os primeiros versos, a primeira secga0 do poema ~ que vou lembrar jé a seguir — deverao ser lidos enquanto deserigio das imagens desse filme, que deveriamos eolocar como hipotétiea matriz.do poema, ‘embora o salto em altura logo se associe, numa relagio metaf6~ rica, & precaridade da aspiragao humana, sempre recondurida ‘ou menorizada sob a forma de "regresso": Aprimeira forma éainda clistica; as outras endurecem roar, mais angulosa: ‘mas tofas posam, claborando as leis da queds: ecaem; graves; reduzidas 30 espago do seu peso: (dem 347) Cortados pela recorréneia do ponto e virgula, estes versos parecem suspender-se da mesma maneira que o movimento se suspenderia no filme através do efeito de slow motion. A decomposigao da imagem visual encontra correspondéncia na decomposigao sintictica dos versos a apresentago analitica do movimento conduz & conelusdo expressa nos versos que cencerram esta parte do poema: "os vos sio regressos”. No entanto, se optarmos por considerar que o sintagma “este filme” remete para 0 poema no seu todo, deveremos ‘entender que cada uma das suas seis partes foi concebida como ‘um dos “fotogramas sucessivos” referidos no final, ¢ ai todo o poema estaria construido 4 maneira de win filme em slow motion. Ora, 20 longo das seis partes que o constituem, 0 poema apresenta uma sequéncia de imagens articuladas de uma forma que € possivel aproximar da montagem por atracgdo, em senti- do eisensteiniano: €, nesse caso, 0 salto dos pastores, 0 vo dos anjos ¢ das hospedeiras do ar, o das palavras ¢, naturalmente 0 do saltador em altura seriam as imagens que a sintaxe do poerma poria em colisio — nesse caso € precisamente 0 seu sentido relativo o que mais importa sublinhar. Com excepgao dos anjos (que por isso mesmo desconhecem o que é 0 voo humano), todos esses voos sto regressos, formas diferentes de ascensio nas quais a queda se anuncia.t Falei em decidir entre duas hipoteses, mas a verdade é que nada no poema nos permitira tomar essa decisao. Partindo do visionamento (nao é importante saber s¢ ficticiamente ou nfo) de uma sucesso de imagens em camara lenta (filme 1 = salto em altura), 0 texto é concebido como uma andlise desse filme (filme 2 = poema, onde a sequéncia primeira é decom- posta numa sucessao de imagens aut6nomas mas articulaveis com ela).$ Haveria assim um filme que daria origem a um poema, ¢ este conceberia as suas imagens a partir da experién- cia de visionamento das imagens em eamara lenta. Ao propor uma sucessio de imagens (poétieas) que analisariam a imagem ‘matricial do salto como regresso, esse poema funciona como uma espécie de filme segundo (montagem) construido & maneira de um primeiro filme (esse onde o salto se veria decumpusty eu slow motion). “Salto em altura” é, entéo, um_ poema que estabelece uma dupla relagdo com o cinema: por um. lado, porque, nele, a apresentagao analitica das imagens cla~ ramente devedora do efeito de slow motion; por outro lado, por quea sintaxe dessas imagens (ou melhor, do proceso analitioo 2607 a que cada uma delas ¢ sujeita) assenta numa “montagem” dia- léctica que leva o leitor a reler as imagens ascensionais em fun. io da ideia de regresso 3. "Qualquer poema é um filme”? Deter-me~ei agora na afirmagio de Herberto Helder que usei no titulo deste estudo ¢ & qual acrescentei uma interroga~ lo, que é minha: “qualquer poema é um filme”? Num primei- ro momento dir-se-ia que Herberto Helder entende que sim: Qualquer poems é um filme, 0 tnico elemento que importa é tempo, e0 espago éa metsfora da tempo, eo quese narra 6a ressurreigio do instante exactamente anterior & morte, a ful- sgurante agonia de um nervo que irromnpe do poema e faz saltar vida dentro da massa irreal do mundo, (Helder, 1995+ 148) Em rigor, 0 que Herberto Helder afirma nesta passagem, de “(neméria, montagem)”, em Photomaton & Vor, € que “qualquer poema é um filme” porque “o espago é a metifora do tempo, isto é, porque, no pocma tal como este poeta o conce- be, a sucessio ¢ o choque das imagens traduzem uma experién- cia do tempo em sentido absoluto, erénico, néo sequencial ou cronol6gico. Herberto Helder refere-se sobretudo & sintaxe entre as imagens como uma forma de “montagem”, ¢ importa enti reconhecer que a afirmagao herbertiana segundo a qual “qualquer poema é um filme” é delimitada pelo préprio Herberto Helder, que acabaré por restringi-la ainda mais cla~ ramente numa outra reflexio sua: Alguns poemss jé tinhem ensinado uma sabedoria de olhar Gf. divergncia entre Goethe ¢ Schiller aoatea ds ojectivida e) &, pols, una sabedoria de ver. Certas montagens poesni~ ‘ous ditus espontiness, inocentes (de que malfeis dispoe a ingcéneia?), processos de transferir bloces da vista~ aproxi- ragbes, lusdes extensSes, deseontinuidades, contiguidades ‘evelocidades ~transitaram de poemas para filmes e eireulam agora entre uns o outros entre arroubos de eficicia. (Helder, 1998:7-8) Ao procurar determinar a influéncia da poesia no cine- ma, toda a argumentagio desenvolvida por Hetherto Helder neste outro excerto acentua a dimenséo cinemética de certos ‘poemas, nos quais a precipitagio das imagens poderia parecer espontinea ou inocente, ¢ onde a sintaxe das imagens se diria antecipar certas téenicas de montagem cinematogréfica nao linear. Julgo que € precisamente esta condigto cinemitica da poesia que torna dificil isolar os efeitos da linguagem cinema- ‘ogrifica sobre a escrita pottica e, reciprocamente, os efeitos da linguagem poética sobre a linguagem cinematografica, mas também creio ser neste espago partilhado que devernos procu- rar os efeitos do cinema sobre o discurso poético, Rimbaud, Cendrars, Apollinaire, tal como Godard ou Orson Welles, sto aproximados por Herberto Helder em fungao de ideias como as de paralelismo, irradiagto, simultaneidade, intensidade, multiplicidade (Helder, 1995: 146-8). B, de facto, a montage que a poesia moderna procurou nao identificava a presentificagio do tempo com a sequencialidade. Sem exeluir aspectos como a orgenizaglo, a seleceao € mesmo a dimensto narrativa ~ mas reformulando-os a uma outra luz —, 0 que Herberto Helder verdadeiramente valoriza ao defender que “qualquer poema é wm filme” é a capacidade de irradingio da imagem, o jogo de ecos ¢ de replicagées expansivas promovido pela tensa cocxisténcia das imagens poéticas, 6 a imagem capaz de “uma apresentagio directa do tempo”, isto €, capaz de evi denciar 0 que Deleuze, ao isolar a nogao de imagem-tempo, eta descreveu como a manifestagio de um tempo erdnico e nfo cronolégico num certo tipo de imagens cinematogrificas (elewze, 1985; 169). Assim, no excerto de “(memsria, monta~ gem)” que atris citei, vernos que, para Herberto Helder, a poe sia foi sempre uma forma de “cinema”. e talver seja precisa~ mente por esse motivo que a poesia pode integrar tao facilmen- te a experiéneia do cinema a um nivel que ultrapassa o simples dialogo tematico ou ecfrastico. No entanto, quando dialogam com o cinema e empregam, 6 campo lexical que lhe pertenee, certos poemas apropriam-se sobretudo da visualidade da linguagem cinematografica, da coneregao das suas imagens ¢ da sua forma de exprimir 0 ‘tempo. Se isso acontece num plano de intermedialidade que vai muito para além de quest6es de ordem tematica ou ecfris- tica € porque, quando regressam das salas de cinema, os poe- tas voltam poesia em condigdo de extremar precisamente 0 que tinham sido vertas ligdes de poesia das quais antes o cine- ma se apropriara, Na verdade, a poesia aprende com o cinema maneiras de integrar no movimento das suas imagens (que facilmente podem promover a “derrota do olhar”, para voltar & expressio de Harald Bloom) uma ligdo aprendida com as ima~ gens em movimento do cinema, cuja primeira caracteristica é precisamente a de lidarem com o mundo em fungao da obser- vvagdo, como salientou Tarkovski, e sem poderem abstrair da presenga do tempo. Tanto a relagio entre meméria ¢ cinema que apontei na poesia de Luis Miguel Nava quanto as imagens cineméticas de Carlos de Oliveira sugerem que uma questio essencial no did~ logo da poesia com o cinema pode pasar especificamente pela exploragio de imagens pereeptivas (isto é, imagens plisticas, que nio provocam a faléncia do olhar), Ao procurar estabele- cer uma linhagem portuguesa para a sua poesia, Pessoa saudou em Cesirio Verde o poeta que lhe teria ensinado que “o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se 0 tornasse, nio ¢ qualidade necesséria a quem faz poemas” (Pessoa, 1986: 126). Cesério teria mostrado que era possivel "observar em verso", antecipando assim a importancia que a imagem perceptiva viria a ter para os poetas de tradigdo moderna ~ ¢ Pessoa associou desde cedo a poesia modema & plasticidade da imagem. Se no poema de Carlos de Oliveira € inegivel que existe um olhar aprendido com o cinema, ou se na poesia de Nava a meméria emerge de uma forma aproximével da rememoragio das imagens cinematograficas, esses proces sos nao devem ser isolados das sucessivas tentativas de nitidex plastica procuradas pelos poetas de tradigio moderna dos quais Carlos de Oliveira ¢ Nava sto herdeiros. Essa tradigao conduz naturalmente ao didlogo com a experiéncia do especta- dor de cinema e justifica a apropriagio do seu modo de olhar € derecordar. << Oa eee nom [1 Vejsse, por exemplo, os dois poemas de Rugénio de Andrade includ ein 0 Bosque Sagrado (Braga, Ferreira, Magalhses, 986.4272), om os poetisnexeits por ‘uy Belo era didloge com o cinema em Homen te Palarra(e) (agto). 0 tinds @ sequénein “Quatro poemas de A Palevra de Carl Theodor Dreyer" de Thnor © Dominages (19H), de Joso Miguel Fernandes Jorge, receztemente retomad muna frie msin exten do ddlogos om o meeme filme em Pelaena Gorger Laurea: Gomes, 2007). Toda a poesia de Manuel Cuemso desenvolve relagbee muito ‘complex com as artes, mas a presenga do cinema & particuarmente niida em Migrapoes do Rigo (004). Finalmente, voj-se ands Morimentos no Pur, de Jone Miguel Sia (2003). {21 Sintomitico da centraidade desta mmagem na poosade ls Miguel Nava 60 facto de, vivios anos mas tarde, em Valeo (i994). elaeeretada no poem "A.cert altars “Um di entron numa lvraria e folhezido ao acaso um dos livros ema que o alhar primeio ce detee, leu: Vem tempre dar & pale o que a meméra caregoo...® Fechou-o fags dali, hzrereado," (Nava, g008; 389) [s}Sobre esta questéo, éparticularmente interessante wm fragmento no qual Godard ‘vai enumerando as imagens que considera ineequecvets nos filmes de Hitchcock, ‘etirando-as do eeu contero narrative edando-o como intciramente exqueeida."On aoublié/ proposde quot/ Montgomery Chit gande/ un silence sterael/ et pourquot Jmet Leigh / Sarzéte au Bates motel / et poorquoi Tereea Woght / est encore famousease d'oncle Charlie / on 2 oublié de quoi Hemsy Fonda / nest pan / entitrement coupable / et pourquoi exsetement / le gouverement american / engage Ingrid Bergman / mais / on se souient / Cun s9e 4 main / mais / on se souvient dum auioear / dans le désert/ mas, on ge souwient /d'un verre de it / des alles d'un moulin / d'une brosse a cheveur/ mais /on se souvent / d'une range de Doutelles / d'une paie delemertes/ dune partion de musique / d'un troussea de cl parce quave>eux/ et travers euz/ Alferd Hitchoock réusait/ Is ot Sehouérent / Alesandce, Jules Céar / Napoléon prendre le controle /de lvnivers"(Godar, 1998 8 [41 Recorde-se que Andeé Bain aeentua na montagem por ateg30 eisensteiniana the reinforcing ofthe meaning of one image by association with another image not necessarily part of the same episode ~ for example the reworks display in The (Gena Line folowing the mage of te bul. hi extreme fora” —aerescenta Burin "montage by attraction vas rarely used even hy its creator but one may consider as very near to it in principle the more commonly used ellipsis, comparison, or metapr (..)" (Basin, 2004: 42) [s10 eonceite de “atrugio" também é wilizado por Carls de Oliveira, embora para desrever a8 relagdes de sgnifcado, entoagi, afinidade slabs ¢ rtmica que Aleterminam a apronimagio de cers palavres num texto. Coneretamente,oeeeitor sa a expreteio “stracgio vocsbular” para definis as relagdes entre os lesemas "desusio". “desolaczo"e "decepqio" sabre as qua evolu, auto-anaieando-se, 0 texto “A fuga", dO Aprendde Faia (ef. Oliveira, 19% 59-59). —— BIBLIOGraFla y Bazin, André (2004), “What is cinema?”, in Bandry. Leo ¢ Gohen, Marshall (ed.), Film Theory and Criticism, 6° ed., New York e Oxford, Oxford University Press. Belo, Ruy (2000), Homem de Paiavra(s) (1970), Todos os Poemas, Lisboa, Assirio & Alvim, Bloom, Harold (1969), “The Visionary Cinema of Romantic Poetry”, in Alvin K. Rosenfeld; Ernest D. Costa et alii (eds) Bssays for. 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