Você está na página 1de 15

A Revolução, uma ação

ilegal entre outras


Eduardo Colombo

Do ilegalismo e da revolução

...a clandestinidade foi fecunda em certo momento,


mas ela se encontra determinada por aquele
contra o qual se pretende lutar.
(Pierre Klossowski, Sade et Fourier1)

E m 12 de julho de 1789, Camille Desmoulins salta sobre uma mesa


com pistola à mão e grita: “Às armas!”. A Revolução não tinha ocor-
rido, era ainda ilegal.
Três padarias foram saqueadas em 9 de março de 1883 em Paris durante uma
manifestação de desempregados. Louise Michel, hasteando – ou não – uma ban-
deira negra, caminha ao lado de Pouget. Recebem fortes condenações, seis anos
de reclusão para Louise Michel, oito para Émile Pouget. No mês de maio de 1899,
Marius Jacob levou tudo do Caixa de Marselha. Em 17 de novembro de 1925, vá-
rios indivíduos roubaram os cofres de uma estação do metrô de Buenos Aires, e a
polícia afirma que entre eles estão Durruti, Ascaso e Jover.
Um advogado revolucionário, uma mulher combatente, um teórico da sabota-
gem, um honesto ladrão, três militantes operários. Homens e mulheres devotados
1 Klossowski, Pierre: Les derniers travaux de Gulliver suivi de Sade et Fourier. Fata morgana,
Montpellier, 1974, pp. 4-5.

9
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

à causa da liberdade e da igualdade, reito à insurreição. A Revolução é pos-


que atuam ilegalmente em diferentes ta fora da lei.
momentos da história e sob diferentes O anarquismo faz uma crítica ra-
regimes, conduzidos por uma mesma dical de todo o sistema de exploração e
vontade: subverter e transformar uma de dominação, nega a legitimidade do
sociedade injusta. direito de coerção que o Estado se ou-
Trata-se, sem dúvida, de atos ilegais torga e contesta o direito de proprieda-
diante da lei vigente, mas o que vale a de, tanto individual quanto estatal, dos
lei quando se questiona a legitimidade meios de produção; ele quer abolir o
do regime? regime do salário. Assim, para o anar-
O regime é a ordem, a forma, que quista, o uso dos meios os quais a lei
dá seu caráter à sociedade. É o regime reprime é uma possibilidade, em tem-
faz a lei. E como já havia compreendi- pos de apatia, que se desprende logica-
do Winstanley: “A lei... é apenas a von- mente da sua posição revolucionária, à
tade declarada dos conquistadores so- espera do tempo das insurreições.
bre a maneira como querem que seus Tanto a expropriação individual
súditos sejam governados”.2 quanto a greve revolucionária são ile-
Nas oligarquias representativas- gais, mas a significação social não é a
43sob as quais vivemos, a ordem regida mesma. Na ação individual – ou de um
pela lei é a hierarquia econômico-polí- pequeno grupo clandestino – o que
tica, a dominação de classe, a pobreza, importa é a finalidade do gesto e a reti-
a exclusão, a deportação, a repressão à dão do seu autor. Como escrevia Élisée
primeira revolta. Reclus sobre a expropriação realizada
Os dominantes organizam e con- por Vittorio Pini: “Tanto vale o caráter
trolam o regime estabelecido; eles que quanto o ato”4. Pode-se julgar da mes-
fazem tanto a lei quanto a ordem. ma forma tanto ações mais tranquilas,
As constituições em que se enqua- como fabricação de moeda falsa, quan-
dram os Estados não reconhecem o di- to violentas, como o atentado ou a exe-
2 Winstanley (1650). Citado por Hill,
cução de um déspota.
Christopher. Le monde à l’envers. Payot, Paris, O ato individual, às vezes altamente
1977. p. 210. [N.T.: Livro publicado no Brasil moral como pode ser o tiranicídio, tem
com o título O mundo de ponta-cabeça: Ideias
radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, pela raramente a potencialidade revolucioná-
editora Companhia das Letras, em 1987.] 4 Jean Maitron:  Le Mouvement anarchiste
3 Para uma crítica da democracia repre- en France. F. Maspero, Paris, 1975, p. 192. Ver
sentativa, ver  Réfractions  n° 12, Démocratie, la também Osvaldo Bayer: Les anarchistes expropri-
volonté du peuple?, Primavera de 2004. ateurs. ACL, Lyon, 1995. “Prologue”, pp. 10-11.

10
A Revolução, uma ação ilegal entre outras

ria que contém a ação coletiva. Os ilegalismos, porém, são formas


É por isso que o proletariado re- de resistência que dependem muito do
volucionário adotou a arma da sabo- contexto repressivo e devem levar, em
tagem, unindo a ação direta – a greve algum momento, à revolução, criadora
sem intermediários nem arbitragem – de uma nova legitimidade.
com a greve solidária, “como o insur- A revolução é a ação coletiva, a
gente se apropria do seu fuzil”. Assim, revolta, o povo insurgente. Identifica-
a sabotagem foi publicamente promo- -se facilmente esses momentos de rup-
vida e votada nos congressos operários tura do imaginário estabelecido, nos
de diversas regiões do mundo. quais se concentra a força emocional
Hoje, nos primeiros passos deste da mudança, porém ela é também um
século XXI, somos confrontados com processo, uma profunda transforma-
um regime social e político que aliena e ção das relações sociais e das suas ba-
limita cada vez mais toda possibilidade ses legitimadoras. As sociedades não
de mudança real em direção da eman- mudam em apenas um dia, mas as jor-
cipação ou da autonomia humana. nadas revolucionárias são o motor da
Vemos proliferar os meios de con- mudança.
trole sobre as pessoas, as leis de exce- Então, o que é a revolução? Como
ção, as obrigações legais de delação, a podemos compreendê-la hoje?
chantagem nas fábricas que fazem os
operários votarem a redução de seus A ideia de revolução
próprios salários, o trabalhador atre-
lado à rentabilidade da empresa, um Porém temos que reconhecer
sindicalismo reformista ancorado na que não se pode cortar o cordão umbili-
colaboração de classes. cal que une a revolução à revolta5
Políticos considerados de esquerda
afirmam que “o capitalismo venceu” e A própria palavra “revolução” se
os partidos, que aceitaram os limites revolucionou profundamente com o
demarcados pela democracia represen- passar do tempo. Da regularidade ce-
tativa, presos ao legalismo, não conse- leste do movimento dos astros, ou da
guem propor nenhuma alternativa que repetição cíclica de um tempo passado,
conduza ao caminho da libertação. ou ainda dos acontecimentos já ocor-
A desobediência civil se impõe en- 5 Lefort, Claude: “La question de la révolu-
tão como uma exigência ética, e as prá- tion.” In.: L’invention démocratique. Fayard, Pa-
ris, 1981, p. 296. [N.T.: Livro publicado no Brasil
ticas ilegais tendem a se difundirem e com o título A invenção democrática, pela editora
se afirmarem nas lutas sociais. Brasiliense, em 1983.]

11
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

ridos que voltam sem cessar, da ideia Se são os homens que criam esse
de regresso, de realização, que era seu Leviatã, esse deus mortal, então nada
conteúdo semântico na Idade Média, impede a vontade dos homens de mu-
passou a significar mutação, mudança, dar a ordem instaurada por eles mes-
virada, destruição, subversão da ordem mos. Certamente, todos os atores das
social6. revoluções pensaram a si mesmos
Sempre se produziram rebeliões e como agentes de um processo que
revoltas na terra desde que existe o poder
marca o final definitivo de uma ordem
político. As grandes insurreições cam-
antiga e que cria um mundo novo.
ponesas e dos pobres das cidades que se
Assim, a revolução é vista como
estendem na Europa do século XIV ao
momento de ruptura que divide o tem-
século XVI podem prefigurar, para os
po em um antes e um depois e que, no
modernos, a ideia de revolução, porém
esses revoltados não tinham a possibili- seu decorrer, torna os homens livres e
dade de formulá-la, inseridos de corpo e
alma no imaginário milenarista. Heréti-
cos, mas ainda não incrédulos.
A nova ideia de revolução se cons-
trói com o nascimento do Estado Mo-
derno.
No século XVII, as teorias do con-
trato, que fundam no direito a existên-
cia do poder político, reconhecem aos
seres humanos sua capacidade para
instituir a sociedade. A unidade do
espaço político está assegurada pela
formação de um corpo político não-
natural, mas sim construído, abstrato,
detentor da soberania absoluta e sepa-
rado da sociedade civil7.
6 Cf. Rey, Alain: «Révolution». Histoire
d’un mot. Gallimard, Paris, 1989. Capítulo 2 “La
Révolution descend sur terre.”
7 Cf. Colombo, E.: “L’État comme pa-
radigme du pouvoir.” In  L’espace politique de
l’anarchie.  ACL, Lyon, 2008. [N.T.: Livro publi- Estado como paradigma do poder, pela editora
cado no Brasil com o título Análise do Estado/O Imaginário, em 2001.]

12
A Revolução, uma ação ilegal entre outras

iguais8. Mas a ruptura não pode durar, nem nas mesmas condições. E o fenô-
a revolução deve se institucionalizar, meno revolucionário é sempre múlti-
deixando, nesse depois das revoluções, plo; diversos focos de revolta coinci-
se instalar uma nova topia, como diria dem para transformar um regime na
Landauer. Um novo regime surge, re- imagem do passado: o Antigo Regime.
gime que aparta e reprime as formas
Se observarmos, por exemplo, o acon-
alternativas desveladas pela revolução
tecimento da Revolução Francesa, de-
e que terão que esperar as próximas re-
vemos levar em consideração vários
voluções para poder existir.
A força instituinte da revolução fatores que confluem nessa situação
não pode se expressar a não ser atra- histórica: a rebelião campesina, violen-
vés daquilo que ela consegue instituir, ta, contra a ordem feudal, o Terceiro
e o instituído reduz necessariamente as Estado, ilustrado – que após se divide
possibilidades infinitas da ação huma- em burguesia girondina e jacobina –, e
na aos limites do estabelecido. os sans-culottes, que impulsionam ou-
Ainda: a revolução não se faz na tra revolução a partir das assembleias
subjetividade das consciências ilustra- primárias das seções de Paris.
das; ela precisa da ação coletiva, do le- Cada acontecimento é único, iné-
vante das massas, da insurreição. E a
dito, mas não impede que existam
insurreição sempre encontrará diante
tendências na história dos homens. O
dela a força da ordem constituída que
que sempre encontramos na ação co-
dá forma à sociedade hierárquica, à
letiva; quando a insurreição rompe os
força do Estado.
limites do imaginário estabelecido, ela
A revolução como acontecimento é uma nova fluidez do vínculo social,
um sentimento compartilhado por to-
A revolução, portanto, não é ape- dos os insurgentes de ter recuperado
nas uma ideia, é também um fato, um a capacidade de decidir aqui e agora,
acontecimento que se descola da his- um sentido da auto-organização. Tudo
tória. O acontecimento responde às isso reatualiza, a cada revolução, a ex-
condições da sociedade na qual ele periência acumulada da luta plebeia,
se produz. Os fatos históricos não se experiência que se encontra no cora-
reproduzem nunca de forma idêntica
ção do projeto anarquista: a ação dire-
8 Cf. Colombo, E.: “Temps révolutionnai-
ta, as assembleias de base e a delegação
re et temps utopique.” In  L’espace politique de
l’anarchie. op. cit. com mandato controlado.

13
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

A revolução como projeto uma dinâmica interna imposta pelos


diferentes conflitos que a compõem.
A revolução é uma vontade em Todavia, a transformação revolucioná-
ação, uma ideia de transformação so- ria – mesmo se for a continuação de re-
cial em ato. As ideias, porém, têm for- voluções abortadas, derrotadas, esma-
mas de existência diversas: podem ser gadas9 – supõe uma ação instrumental
atuais e conscientes no espírito (a men- ligada a valores, uma intencionalidade
te) de um indivíduo; podem existir so- humana.
bre o papel, nas práticas ou nas institui- Uma transformação orientada,
ções; ou podem levar uma vida latente portanto, por um projeto de libertação
ou imobilizada. Enquanto vivem, as ou de autonomia, impulsionada por
ideias estão ligadas a desejos e paixões. uma ação voluntarista conduz a uma
Quando a revolução não existe ruptura de tipo revolucionário.
como ato, as ideias revolucionárias se No entanto, não nos enganemos.
alimentam de uma constante negação Se utilizamos a expressão “ruptura re-
do que existe, da crítica do estabeleci- volucionária”, não é porque há em nos-
do. Articulam-se, então, com as ima- so pensamento resquícios milenaristas
gens da liberdade, com objetivos no- à espera da Salvação, de uma Grande
vos. Dão lugar às “revoltas lógicas” e às Noite ou de uma Aurora da Revolução
“filosofias ferozes”. Social, a grande palingênese proletá-
As ideais revolucionárias por fim ria. Temos que imaginar um proces-
se organizam em um projeto coletivo de so histórico que se estende por longos
emancipação, uma imagem de anteci- anos, até séculos, que modifica tanto
pação que contém as linhas de força de as instituições da sociedade quanto o
uma mudança desejada, quista e pen- tipo de homem capaz de fazê-las viver.
sada. Trata-se, porém, sempre de uma rup-
Com a chegada da revolução, o tura, produto de uma transformação
projeto será também transformado profunda e qualitativa da sociedade. A
e mudado. A princípio, ele pertence guilhotina cortou o vínculo que unia o
à antiga sociedade. Entretanto, é ne- corpo político do rei com a transcen-
cessário para qualquer transformação dência divina.
conscientemente desejada e orientada São esses os momentos de in-
por valores e por uma finalidade. surreição em que o povo irrompe na
As sociedades não esperam uma História, fissurando e desagregando o
revolução para se modificar; transfor- 9 Pode-se dizer que a humanidade avança
mam-se constantemente em função de por impulso de revoluções fracassadas.

14
A Revolução, uma ação ilegal entre outras

imaginário estabelecido, que, em um formar a sociedade.


pós-golpe10, fazem aparecer essa tênue No entanto, ao fim deste século
linha na qual a sociedade balança. inspirador e infortunado, o clima mu-
Ademais, é difícil imaginar que os dou, e vemos como se desgastaram as
poderosos desse mundo, que possuem “ilusões” revolucionárias que tinham
o produto do trabalho e as armas, re- alimentado as velhas gerações.
nunciem espontaneamente a seus pri- O neoliberalismo triunfante, avan-
vilégios. A revolta das massas, protei- çando sobre o terreno do capitalismo
forme e provavelmente iterativa, é uma tardio, modificou sub-repticiamente
necessidade da revolução. a episteme11 de nossa época, e as pro-
Por depender de uma força social postas revolucionárias perderam, as-
ativa, o projeto revolucionário deve sim, a regularidade enunciativa que as
sair do nível utópico da ideia e se en- permitia serem compreensíveis. Como
carnar em paixões coletivas e domi- dizia Carl Becker: “o fato que os argu-
nantes. Os revolucionários não são do-
mentos sejam ou não convincentes de-
nos das condições sociais que tornarão
pende menos da lógica que os sustenta
possível essa encarnação.
que do clima de opinião em que eles se
desenvolvem”.12
A Revolução deslegitimada
Após experiências totalitárias e das
insurreições e revoluções perdidas, as-
O século XX ainda tinha crenças.
11 N.T.: Eduardo Colombo, em outro tex-
Permeado pelo Entre guerras, totali-
to, define assim o conceito de episteme: “[...] esse
tarismos e revoluções, ele conservou campo epistemológico constituído por um tecido
o sopro emancipador que recebeu de relações inaparentes, de práticas culturais e de
teorias subjacentes, ocultas ou não-conscientes
das Luzes. Muitos homens e mulhe- (antropológicas, sociais e políticas) que são as
res acreditavam que era necessário ‘condições de possibilidade’ – ou mais exatamente
de facilidade – do pensamento, e que produziu as
arrancar a humanidade do seu esta- diversas formas do conhecimento estabelecido”.
do de tutela, libertá-la dos grilhões da (Colombo, E. “As formas políticas do poder”. In:
submissão, das trevas da ignorância, Democracia e poder: a escamoteação da vontade.
São Paulo: Imaginário, 2011. p. 57.)
da intolerância; que era preciso trans-
12 Citado in Meadows, Paul: El proceso so-
10 Esse “pós-golpe” (après-coup) da história cial de la revolución. Cuadernos de sociología.
nos obriga a abandonar a noção de uma tempo- Univ. Nacional de México, México, 1958, p. 17.
ralidade linear, de uma continuidade direta do Ver também “regularidade enunciativa” (socle
passado para o presente, e a ver esses momentos énonciatif): “Os enunciados não são legíveis ou
de ruptura como una reconfiguração do sentido dizíveis sem a relação com as condições que os
dos acontecimentos do passado e uma nova sig- envolvem”. Deleuze, Gilles: Foucault. Les éditions
nificação das projeções sobre o futuro. de Minuit, Paris, 1986, p. 61

15
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

sistimos nos anos 60 à proclamação do deres, a proteção do meio-ambiente e


fim das ideologias e à instauração de a de defesa de liberdades adquiridas.
oligarquias mais ou menos estabiliza- Esquecendo que as reformas parciais
das que, sob o nome de “democracias”, consolidam o sistema e que nunca con-
conseguiram o conformismo e a apatia seguem criar fissuras nos alicerces hie-
das massas para governar. Os vínculos rárquicos da sociedade.
sociais se afrouxam para deixar aflorar Em um texto de 1984, que trata da
o indivíduo privatizado, com seus inte- diminuição constante no mundo con-
resses privados e sua liberdade privada. temporâneo da crença em uma trans-
Isto permitiu a rápida configuração de formação revolucionária da sociedade,
um bloco imaginário neoliberal13 que, podemos ler também:
no plano epistêmico, é visto como uma
saída da modernidade. O papel essencial que conserva a
ideia de revolução é, sem dúvida, a de
A crítica dos regimes totalitários –
orientar e estimular a crítica das ideo-
que os unificou apesar de terem bases logias reformistas. Essa crítica nasce da
ideológicas diversas ou opostas – tem constatação de que as reformas (conquis-
situado os Direitos Humanos como tas econômicas, políticas, culturais) (…)
fundamento da política contestatória, se revelam incapazes de provocar uma
favorecendo, propositalmente ou não, transformação real e profunda das rela-
ções sociais (…) e, menos ainda de resul-
as posições liberais e individualistas e
tar, mesmo em um certo prazo, na derro-
contribuindo nesse movimento enfo- cada da dominação de classe.14
ques favoráveis às lutas defensivas, de
retaguarda, centradas sobre as limita- Não obstante, a pressão do bloco
ções do Poder, a criação de contra-po- neoliberal afeta e modifica as próprias
13 N.T.: O autor também forneceu a defini- ideologias revolucionárias de duas for-
ção do conceito de bloco imaginário em outro tex- mas: por um lado, a pregnância do ma-
to: “A sociedade funciona, pensamos, na base de
um sistema simbólico-imaginário de significações terial epistêmico dominante obriga aos
– de conceitos e valores – organizado como um discursos contestatórios a “curvar” suas
‘campo de força’ atraindo e orientando os diferen-
tes conteúdos desse universo de representações e formulações para aproximar-se da re-
práticas. Exprime-se, ou se torna visível, no modo gularidade enunciativa a partir do qual
de instituições, ideologias, mitos, ciências, formas
conseguiriam ser audíveis ou compreen-
sociais que, uma vez estabelecidas, encerram e li-
mitam o pensamento e a ação. É isso que nos per- didos. Por outo lado, a ilusão do realismo
mite falar de bloco imaginário.” (Colombo, E. As político às vezes ofusca o bom senso dos
formas políticas do poder. In: Democracia e poder:
a escamoteação da vontade. São Paulo: Ed. Imagi- 14 Orsoni, Claude: “La Révolution en ques-
nário, 2011. pp. 56-57). tion”. In, La Révolution. ACL, Lyon, 1986, p. 53

16
A Revolução, uma ação ilegal entre outras

sinérgicos inseparáveis.
O neoliberalismo político
reabilitou a distinção propos-
ta por Benjamim Constant
entre “a liberdade dos anti-
gos” que consistia na capaci-
dade de decisão do povo em
assembleias, a liberdade de-
mocrática, e a “liberdade dos
modernos” que é “a seguran-
ça do gozo privado” e a garan-
tia institucional que ampara
esse gozo, a liberdade liberal.
Apoiando-se sobre essas duas
definições, alguns intelectuais
contestadores exigindo-lhes que respon- libertários enxergam a demo-
dam por meio da “atualização ideológi- cracia – a verdadeira, o povo em ação
ca” o déficit das práticas coletivas revo- – como perigosa e estabelecem uma
lucionárias no período contemporâneo. filiação (quanta imaginação!) que se
Desse modo, encontramo-nos prolonga desde de Rousseau até a Re-
diante da aparição de “novas radicali- volução Russa, passando pelo jacobi-
dades” - liberais no neoanarquismo e nismo.15
estruturalistas no pós-anarquismo – A revolução, portanto – é o que
que justificam e pregam a deslegitima- nos dizem –, só pode ser totalizante,
ção da ideia revolucionária. por consequência, totalitária, já que, ao
A partir da proeminência à liber- querer modificar o fundamento da so-
ciedade, anula a diversidade, desenca-
dade individual no contexto das pos-
deia as paixões populares, tornando-se
sibilidades existentes dentro do regi-
perigosa e liberticida. Transfigurada
me capitalista, elas recusam a validade
em mito de um anarquismo histórico,
da democracia: a vontade do povo, a
a Revolução ficaria como uma “memó-
capacidade coletiva de decidir. Con-
ria incômoda e paralisante”16, seria a
tudo, na teoria política do anarquis-
15 Ibáñez, Tomás: “Points de vue sur
mo, ambas, a liberdade do indivíduo l’anarchisme.” Réfractions n° 20, maio 2008, p. 79.
e a democracia direta, que destrona a 16 Ibidem, citação da revista eletrônica
hierarquia elitista, constituem valores “Transversal”: www.nodo50.org/transversal/.

17
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

marca de um essencialismo identitário campo de forças do bloco neoliberal:


e nostálgico “que interfere com a apre- uma aponta à ideia de revolução como
ciação lúdica do presente”17. A conse- meio e outra como o objetivo na teoria
quência inevitável é que “o anarquismo anarquista. Não são a causa do abando-
tem que entender que já não poderá no da “revolução”, mas sim a justifica-
ser nada além de uma singularidade ção ideológica de tal capitulação.
a mais do jardim das peculiaridades Uma dessas objeções é quase tão
rebeldes”.18 antiga quanto o próprio anarquismo:
O abandono do projeto de trans- a revolução, em seus momentos insur-
formação revolucionária da sociedade e recionais, é um movimento de força
a deslegitimação da ideia de revolução que confronta a violência do povo in-
não são elementos isolados, causam ou- surgente com a violência da repressão
tras dimensões do pensamento crítico. pretoriana, ela depõe pela força os do-
minadores.
A sociedade anarquista A anarquia, como a liberdade, re-
quer a adesão das pessoas, pois não se
Certamente a revolução pode ser pode obrigar a ninguém a ser livre, a
vista como uma questão de meios. A força não pode trazer à tona a anarquia.
finalidade consiste em avançar para “Se admite-se o princípio de que não se
uma sociedade mais autônoma, para alcança a anarquia através da força” – o
a anarquia. Levando em conta que a que é indiscutível – “não se pode fazer
anarquia não pode ser uma “sociedade a revolução para realizar direta e ime-
ideal”, um objetivo a alcançar, mas sim diatamente a anarquia, mas sim para
um ideal de “sociedade” pelo qual será criar condições que possibilitem uma
preciso lutar inclusive em uma socie- rápida evolução para a anarquia”.19 As-
dade anarquista. sim respondeu Malatesta em 1922.
Duas objeções se destacam no A ordem estabelecida é a ordem
17 Malatesta, Errico: Umanitá Nova, Roma, hierárquica de um regime que recor-
14 de outubro de 1922. In: Pagine di lotta quoti- re à força do Estado frente a qualquer
diana. Edizione del Risveglio, Genève, 1935 Vol.
2, [1919 / 1923].
resistência; é ele, o regime, que declara
18 Ver E. Colombo: “Prolégomènes à une
ilegais as práticas que considera peri-
réflexion sur la violence”. In: Réfractions, n° 5, gosas para sua própria existência e que
primvera de 2000, p. 33. [N.T.: O texto referido reprime com a força da polícia e do
foi publicado no Brasil com o título “Prolegô-
menos a uma reflexão sobre a violência”. no livro 19 Stuart White: “Making anarchism res-
Democracia e poder: a escamoteação da vontade pectable? The social philosophy of Colin Ward”.
pela editora Imaginário em 2011.] In: Journal of Political Ideologies, fevereiro 2007.

18
A Revolução, uma ação ilegal entre outras

exército as rebeliões. São as elites que possibilidade.


as aproveitam da exploração de clas- White recorda que, já em 1961,
se. Portanto, “se a violência está ligada Colin Ward defendia essa mesma ideia
à revolução, é porque a revolução está em um artigo publicado na Freedom,
ligada à sociedade atual”.20 A força é a quando opinava que “uma sociedade
razão do antigo que quer se perpetuar, anarquista” não é “uma ideia intelec-
a revolução não faz nada mais do que tualmente respeitável”. Toda socieda-
desobstruir o caminho. de humana, escreve Ward em seu livro
Contudo, para que serve soprar as Anarchy in Action, “é uma sociedade
brasas da revolta se “a sociedade anar- plural, que inclui amplas zonas que não
quista”, a possibilidade de uma nova so- são conformes com os valores oficial-
ciedade inaugurada após a revolução, é mente impostos ou declarados”.22
uma quimera? Como nos explica Stu- Assim, certo número de anarquis-
art White ao tentar defender “um anar- tas, sobretudo estadunidenses e ingle-
quismo respeitável ou pragmático”21: ses, tem buscado refúgio na liberação
querer criar uma sociedade anarquista pessoal e na resistência individual con-
“colide com o que se poderia chamar tra o Estado, na construção de “novas
[...] um ‘teorema de impossibilidade’”. subjetividades”, no seio de outras ex-
O argumento é simples, como as for- periências culturais ou filosóficas, no
mulações anarquistas sobre a socie- “jardim das peculiaridades rebeldes”.
dade autônoma tem uma probabili- Essa acentuação do individualismo, em
dade muito pequena – para não dizer detrimento do socialismo, define um
nenhuma – de conseguir uma adesão anarquismo para o qual não importa a
universal (o que pode ser dito de qual- ideia de revolução e que se limita a di-
quer sistema social), e como os anar- zer: “acreditamos na revolução do uno,
quistas se proíbem a si mesmos o uso do singular, pois não podemos ter uma
da força para instituí-la ou impô-la, a outra”.23
consequência lógica e prática é sua im- Talvez um erro do ponto de vista
20 S. White: Ver G. Molnar, ‘Conflicting
sociológico se introduz discretamente
strains in anarchist thought’, Anarchy, 4, 1961, neste modo de pensar um “anarquismo
pp. 117 – 127. Ver también G. Molnar, ‘Contro- respeitável”.
versy: Anarchy and Utopia’, Freedom, 19 (30, 31),
26 de julho, 2 de agosto de 1958, y ‘Meliorism’, 22 Ward, Colin. Anarchy in Action. Freedom
Anarchy 85, 1968, pp. 76 - 83. Press, London 1982, p. 131.
21 Citado por S. White: C. Ward, ‘Anar- 23 Na verdade, a posição de Colin Ward é
chism and Respectability’, Freedom, 22 (28, 29), mais complexa e menos caricatural, como pode
12 e 19 setembro de 1961. ser vista no último capítulo de Anarchy in Action.

19
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

ganizam, lhe dão con-


sistência e encadeiam
entre si os diferentes
elementos que o cons-
tituem. No tecido das
interações humanas
se desvelam, às vezes
ocultos, estes concei-
tos fundamentais ou
estes valores simbóli-
cos dominantes, que
É indubitável que, nos diferentes estruturam a sociedade
sistemas políticos sempre autoritários hierárquica. São o produto de algumas
que a história conheceu, a força dos ca- divisões binárias, arcaicas, generaliza-
nhões tem sido a ultima ratio daque- das e nefastas que os homens instituí-
les que mandam e nenhum governo se ram: o sagrado e o profano (o além e
privou nunca de espancar, fuzilar, ba- aqui embaixo), o valor diferencial dos
ter, torturar, prender e deportar qual- sexos, a oposição dominantes-domi-
quer minoria reativa, qualquer agrupa- nados (comando-obediência).
mento subversivo, qualquer indivíduo As instituições sociais veiculam
revoltado. E a repressão e o castigo mitos e ideologias e o indivíduo, que
servem também para manter o senti- encontra desde seu nascimento essas
mento de pertença à nação, à pátria, ao instituições elementares que o formam
Estado na maioria bem integrada da ao socializá-lo, se inclina a vê-las como
sociedade. O método tem êxito geral- exteriores e naturais. Elas são feitas,
mente, até o momento que o tempo das porém, pelos homens e interiorizadas
revoluções chega. pelo sujeito. O homem e a mulher que
Não é através da força, porém, que se rebelam têm que se rebelar também
se mantém a coesão da sociedade. Uma contra si mesmos.24
sociedade é um todo orgânico em que Uma “nova sociedade cria-
as diferentes formas do sistema sim-
rá certamente um novo simbolismo
bólico de significação – a linguagem,
institucional”25 e surgirão necessaria-
as normas, as instituições, as práticas
24 Ver E. Colombo: L’Espace politique de
– sustentam um imaginário coletivo l’anarchie. op. cit. pp. 100 à 102 (Les trois mo-
dependente das representações cen- ments de la liberté chez Bakounine).
trais, dos valores e das regras que o or- 25 Castoriadis, Cornelius. L’institution ima-

20
A Revolução, uma ação ilegal entre outras

mente novos sujeitos capazes de viver Se adotarmos um ponto de vista


nela e de fazê-la viver. sistêmico, como convém à sociologia,
Toda sociedade é pluralista e con- nota-se claramente que um processo re-
flitiva, mas integrada, com pequenas volucionário ataca essas representações
ou amplas margens de contestação. centrais, esses valores simbólicos auto-
Embora nenhum sistema social consi- ritários27 que organizam o imaginário
ga – felizmente, nem nunca conseguirá coletivo, para poder modificar as ins-
– “formatar” os homens, os agentes da tituições de base da sociedade em di-
história, todos nós estamos ligados a um reção à autonomia – autonomia da so-
imaginário social dominante, a maioria ciedade e autonomia dos sujeitos que a
o aceitando e a minoria o combatendo. integram –, para a instituição de uma
De uma concepção individualista e “sociedade anarquista”.
atomista, a sociedade não é nada mais Contudo, sociedade anarquista não
quer dizer regime. Pode-se pensá-la no
que uma coleção ou uma associação de
sentido de um paradigma oposto à so-
indivíduos, na qual o indivíduo singu-
ciedade hierárquica, ao Estado. As so-
lar tem que lutar para conservar seus
ciedades históricas conheceram vários
direitos, suas liberdades, suas proprie-
regimes: autocracia, monarquias, repú-
dades frente ao conjunto mais amplo
blicas constitucionais, democracias re-
constituído pelos outros indivíduos.
presentativas, etc., sem sair do paradig-
Para o individualismo liberal, a socie-
ma que define a sociedade hierárquica.
dade “não é mais que uma circunstân-
A anarquia, então, seria concebi-
cia irredutível, em que se pede que não
da como uma figura, como uma forma
contrarie as exigências de liberdade e organizadora, constituinte de um tipo
igualdade.”26 Em tal panorama, é certo de sociedade complexa, conflitiva, ina-
que não é possível enxergar como a or- cabada, indefinidamente evolutiva (até
ganização social poderia ser destruída e seu fim, morte natural ou autodestrui-
reconstruída sob um sistema diferente, ção) baseada na autonomia do sujeito
sem exercer uma coação ou opressão da ação. Diferentes regimes – que o
sobre a minoria (supondo que se con- futuro conhecerá ou não – formaliza-
seguiu o consentimento da maioria). rão as instituições que as populações
ginaire de la société. Ed. du Seuil, Paris, 1975, p. vindouras se darão, instituições que se
176. [N.T.: Livro publicado no Brasil com o título adequarão necessariamente aos novos
A Instituição Imaginária da Sociedade pela edi-
tora Paz e Terra em 1982.] valores que virão.
26 Dumont, Louis. Homo hierarchicus. 27 É o papel desempenhado pelas Luzes du-
Gallimard, Paris, 1966, p. 23. rante a Revolução Francesa.

21
Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2

Ao longo do processo revolucio- ao sistema – representações, valores,


nário, os momentos insurrecionais práticas -, forjados à sombra da ilega-
produzirão fraturas de um tempo his- lidade. A episteme de uma época será
tórico “homogêneo e vazio”, abalando modificada profundamente. Surgirá
o imaginário coletivo estabelecido e uma legitimidade distinta, fundada
introduzindo elementos heterogêneos pela revolução bem-sucedida.

Eduardo Colombo é psicanalista e filósofo anarquista. Tradução de Eduardo Cunha


a partir da versão em espanhol. Revisão feita por Daniel Falkemback, a partir do texto
original em francês, publicado em Refráctions, nº 22.
Ilustrações de Clifford Harper. artista e militante anarquista.

22

Você também pode gostar