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Do ilegalismo e da revolução
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Revista da Biblioteca Terra Livre - ano I, nº 2
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A Revolução, uma ação ilegal entre outras
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ridos que voltam sem cessar, da ideia Se são os homens que criam esse
de regresso, de realização, que era seu Leviatã, esse deus mortal, então nada
conteúdo semântico na Idade Média, impede a vontade dos homens de mu-
passou a significar mutação, mudança, dar a ordem instaurada por eles mes-
virada, destruição, subversão da ordem mos. Certamente, todos os atores das
social6. revoluções pensaram a si mesmos
Sempre se produziram rebeliões e como agentes de um processo que
revoltas na terra desde que existe o poder
marca o final definitivo de uma ordem
político. As grandes insurreições cam-
antiga e que cria um mundo novo.
ponesas e dos pobres das cidades que se
Assim, a revolução é vista como
estendem na Europa do século XIV ao
momento de ruptura que divide o tem-
século XVI podem prefigurar, para os
po em um antes e um depois e que, no
modernos, a ideia de revolução, porém
esses revoltados não tinham a possibili- seu decorrer, torna os homens livres e
dade de formulá-la, inseridos de corpo e
alma no imaginário milenarista. Heréti-
cos, mas ainda não incrédulos.
A nova ideia de revolução se cons-
trói com o nascimento do Estado Mo-
derno.
No século XVII, as teorias do con-
trato, que fundam no direito a existên-
cia do poder político, reconhecem aos
seres humanos sua capacidade para
instituir a sociedade. A unidade do
espaço político está assegurada pela
formação de um corpo político não-
natural, mas sim construído, abstrato,
detentor da soberania absoluta e sepa-
rado da sociedade civil7.
6 Cf. Rey, Alain: «Révolution». Histoire
d’un mot. Gallimard, Paris, 1989. Capítulo 2 “La
Révolution descend sur terre.”
7 Cf. Colombo, E.: “L’État comme pa-
radigme du pouvoir.” In L’espace politique de
l’anarchie. ACL, Lyon, 2008. [N.T.: Livro publi- Estado como paradigma do poder, pela editora
cado no Brasil com o título Análise do Estado/O Imaginário, em 2001.]
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iguais8. Mas a ruptura não pode durar, nem nas mesmas condições. E o fenô-
a revolução deve se institucionalizar, meno revolucionário é sempre múlti-
deixando, nesse depois das revoluções, plo; diversos focos de revolta coinci-
se instalar uma nova topia, como diria dem para transformar um regime na
Landauer. Um novo regime surge, re- imagem do passado: o Antigo Regime.
gime que aparta e reprime as formas
Se observarmos, por exemplo, o acon-
alternativas desveladas pela revolução
tecimento da Revolução Francesa, de-
e que terão que esperar as próximas re-
vemos levar em consideração vários
voluções para poder existir.
A força instituinte da revolução fatores que confluem nessa situação
não pode se expressar a não ser atra- histórica: a rebelião campesina, violen-
vés daquilo que ela consegue instituir, ta, contra a ordem feudal, o Terceiro
e o instituído reduz necessariamente as Estado, ilustrado – que após se divide
possibilidades infinitas da ação huma- em burguesia girondina e jacobina –, e
na aos limites do estabelecido. os sans-culottes, que impulsionam ou-
Ainda: a revolução não se faz na tra revolução a partir das assembleias
subjetividade das consciências ilustra- primárias das seções de Paris.
das; ela precisa da ação coletiva, do le- Cada acontecimento é único, iné-
vante das massas, da insurreição. E a
dito, mas não impede que existam
insurreição sempre encontrará diante
tendências na história dos homens. O
dela a força da ordem constituída que
que sempre encontramos na ação co-
dá forma à sociedade hierárquica, à
letiva; quando a insurreição rompe os
força do Estado.
limites do imaginário estabelecido, ela
A revolução como acontecimento é uma nova fluidez do vínculo social,
um sentimento compartilhado por to-
A revolução, portanto, não é ape- dos os insurgentes de ter recuperado
nas uma ideia, é também um fato, um a capacidade de decidir aqui e agora,
acontecimento que se descola da his- um sentido da auto-organização. Tudo
tória. O acontecimento responde às isso reatualiza, a cada revolução, a ex-
condições da sociedade na qual ele periência acumulada da luta plebeia,
se produz. Os fatos históricos não se experiência que se encontra no cora-
reproduzem nunca de forma idêntica
ção do projeto anarquista: a ação dire-
8 Cf. Colombo, E.: “Temps révolutionnai-
ta, as assembleias de base e a delegação
re et temps utopique.” In L’espace politique de
l’anarchie. op. cit. com mandato controlado.
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sinérgicos inseparáveis.
O neoliberalismo político
reabilitou a distinção propos-
ta por Benjamim Constant
entre “a liberdade dos anti-
gos” que consistia na capaci-
dade de decisão do povo em
assembleias, a liberdade de-
mocrática, e a “liberdade dos
modernos” que é “a seguran-
ça do gozo privado” e a garan-
tia institucional que ampara
esse gozo, a liberdade liberal.
Apoiando-se sobre essas duas
definições, alguns intelectuais
contestadores exigindo-lhes que respon- libertários enxergam a demo-
dam por meio da “atualização ideológi- cracia – a verdadeira, o povo em ação
ca” o déficit das práticas coletivas revo- – como perigosa e estabelecem uma
lucionárias no período contemporâneo. filiação (quanta imaginação!) que se
Desse modo, encontramo-nos prolonga desde de Rousseau até a Re-
diante da aparição de “novas radicali- volução Russa, passando pelo jacobi-
dades” - liberais no neoanarquismo e nismo.15
estruturalistas no pós-anarquismo – A revolução, portanto – é o que
que justificam e pregam a deslegitima- nos dizem –, só pode ser totalizante,
ção da ideia revolucionária. por consequência, totalitária, já que, ao
A partir da proeminência à liber- querer modificar o fundamento da so-
ciedade, anula a diversidade, desenca-
dade individual no contexto das pos-
deia as paixões populares, tornando-se
sibilidades existentes dentro do regi-
perigosa e liberticida. Transfigurada
me capitalista, elas recusam a validade
em mito de um anarquismo histórico,
da democracia: a vontade do povo, a
a Revolução ficaria como uma “memó-
capacidade coletiva de decidir. Con-
ria incômoda e paralisante”16, seria a
tudo, na teoria política do anarquis-
15 Ibáñez, Tomás: “Points de vue sur
mo, ambas, a liberdade do indivíduo l’anarchisme.” Réfractions n° 20, maio 2008, p. 79.
e a democracia direta, que destrona a 16 Ibidem, citação da revista eletrônica
hierarquia elitista, constituem valores “Transversal”: www.nodo50.org/transversal/.
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