Você está na página 1de 7

O QUE PROCURA?

USINA IMPRESSA SOBRE SÉRIES EDIÇÕES BAIXAR

P E N SA M E N TO / T R A D U Ç Ã O

A Feitiçaria Capitalista – Minions


Minions é o quinto capítulo do livro A Feitiçaria Capitalista:
Receitas para quebrar feitiço, de Isabelle Stengers e Philippe
Pignarre. Este capítulo foi originalmente publicado em francês
com o título Petites mains, mas optamos por utilizar sua
tradução em inglês, Minions, por ressoar com o sentido que o
termo recententemente assumiu no Brasil.

Em continuidade aos protestos que aconteceram em Sea le


em 1999, Stengers e Pignarre levantam uma série de problemas
inerentes ao capitalismo, esse “sistema de feitiçaria sem
feiticeiros”, que opera por enfeitiçar minions, as pequenas
mãos que incessantemente o mantêm em funcionamento,
criando “alternativas infernais”. Na obra A Feitiçaria
Capitalista, Stengers e Pignarre propõem uma aliança entre
pensadores como Gilles Deleuze e Félix Gua ari com bruxas
contemporâneas como Starhawk, na busca por modos de
resistir “à barbárie que se aproxima”.

Stengers é filósofa da ciência e professora da Universidade


Livre de Bruxelas. É autora de A Nova Aliança: a metamorfose
da ciência (1979), junto com o prêmio Nobel de química Ilya
Prigogine; além de A Invenção das ciências modernas (2002);
No Tempo das Catástrofes (2015); Une autre science est
possible! (2013); Cosmopolitiques (1997), além de vários artigos e
ensaios, como Reativar o animismo (2012)

Pignarre é editor, escritor e fundador da Société Louise-Michel,


um espaço anticapitalista também formado por Michael Löwy,
Luc Boltanski, dentre outros. Há algumas décadas pesquisa o
modo de funcionamento da indústria farmacêutica,
descrevendo como o capitalismo fabrica mercados para
fármacos específicos, por exemplo de antidepressivos.

Tradução do original francês: La sorcellerie capitaliste:


pratiques de désenvoûtement. Paris: La Découverte, 2005.
Consulta à tradução em inglês: Capitalism Sorcery: Breaking
the Spell. Nova York: Palgrave Macmillan 2011.

Nós, portanto, levantamos a hipótese de que se a grande


estratégia de mobilização direta é ineficaz, é porque não leva
em conta o que é fabricado pelo trabalho de milhares de
minions, que criam e mantêm sem parar isso que é imposto
enquanto alternativas óbvias e inevitáveis. É certo que eles
trabalham em pequena escala, enquanto as alternativas
infernais são um resultado geral. Individualmente, cada um
deles com certeza não é capaz de criar uma grande alternativa
que elimine boa parte da política. Mas é por meio dos minions
que o capitalismo opera no modo furtivo que lhe é próprio, sem
fazer muito uso, particularmente nos países europeus, da
violência brutal. O discurso das alternativas inevitáveis em
geral é o suficiente. Sem dúvida, é um discurso desesperador,
mas também controlado e razoável (“o Estado não pode fazer
tudo”), por vezes é até mesmo “científico”, vindo de uma ciência
que ratifica as alternativas ao afirmar as categorias que ela
própria preestabeleceu.

E são talvez todos esses “minions” que nos colocam no


caminho, que nos dizem como nomear o capitalismo. Pois eles
não se apresentam nem se pensam “a serviço do capitalismo”.
Ou melhor, a questão é: eles pensam? Podemos nos lembrar do
treinamento de consultor no filme Violences des Échanges en
Milieu Temperé. Depois de uma “primeira vez”, o consultor se
torna capaz de lidar com a violência das relações sociais, de
criar o que vai gerar miséria social. Ele está destruído, ele deixa
de pensar. Ou, mais precisamente, o pensamento se torna
doloroso e ameaçador. Seria interessante contar outras dessas
histórias de iniciação, a “primeira vez” de economistas que
batizaram de “científicas” as alternativas infernais; de políticos
ou de jornalistas que as estabeleceram ou as confirmaram,
fazendo que fossem modos inevitáveis do pensar coletivo.
Observar os cientistas que aprenderam a desprezar questões
que um “verdadeiro” cientista não deveria colocar.

Mas é aqui que devemos prestar atenção. Pragmaticamente.


Porque sabemos bem que muitos leitores e leitoras vão
concluir: “Eu sou um minion”; “Todos e todas nós somos
minions”. Que todos nós, da desempregada ao patrão, fazemos
“parte do sistema” é um assunto conhecido. Tem a vantagem de
se opor à separação entre os “bons” e os “maus”, mas pode levar
a uma espécie de culpa coletiva, da qual não é possível “se
livrar” a não ser por medidas mais extremas: o “sistema” é tal
que apenas uma trajetória de ruptura realmente heroica, que
não abre exceções, pode ter a pretensão de escapar.

Ora, praticamente todos e todas nós de fato estamos dentro, e


somos afetados, mas devemos poder dizer que nem todos e
nem todas nós somos minions. Devemos poder diferenciar
entre os trabalhadores mandados embora por uma medida de
“racionalização dos recursos humanos”, e a pessoa que
elaborou o plano concluindo que demiti-los é uma necessidade
racional. Basta resistir ao que parece ser um pensamento
muito elevado e lúcido: sentir-se culpado por aquilo que
todavia nos faz sofrer.

Os que passamos a chamar de “minions” certamente também


sofrem. Todos os que estão “dentro” sofrem. Mas também é
preciso afirmar, e isso em vários níveis, da patroa à secretária,
que os minions trabalham para construir o que está dentro.
Eles não se limitam em aplicar ou se submeter às regras, mas
se dedicam a aplicá-las com lealdade, isto é, com uma certa
inovação. Isso acontece mesmo quando se trata de situações
aparentemente rotineiras. Pois o que chamamos de “sistema”
nunca funciona sem atritos: é necessário fazer reparos, tapar
buracos, estender o significado das regras, colocar na linha
uma situação fora do comum, mudar as definições,
impossibilitar qualquer ponto de fuga. Todos dizemos “é
necessário”, mas o minion diz de uma forma um pouco
diferente, ele afirma a legitimidade desse necessário. Ele lhe diz
“sim”.

Nomear os minions é propor uma diferença pragmática, uma


diferença que deve ser “feita”, pois a língua que diz “todos
cúmplices, todos culpados” é um veneno. A busca pelos
“verdadeiros” cúmplices e “verdadeiros” culpados é outra. Não
se trata, portanto, de uma diferença arbitrária. Os minions não
vibraram com o grito de Sea le, eles riram ou sofreram, do
modo como sofremos quando nos encontramos perto daquilo
a que viramos as costas, do que a vida afirma ser impossível.
Talvez eles tenham se incomodado quando tantos usuários do
transporte público resolveram com alegria se “manifestar
contra o mercado” durante as greves na França em 1995. Mas
talvez eles também tenham encolhido os ombros com um
cinismo cansado: vamos esperar que dê em algo, se não for
nesse governo, será em algum outro.

Uma diferença pragmática nunca é um julgamento. Em vez


disso, relaciona-se mais com a questão de colocar à prova. No
decorrer deste texto, quando falarmos de “minions”, será
sempre sob o signo de um “não saber” a priori. Será apenas o
tipo de resposta – incômodo, incompreensão, descrença,
cinismo, raiva ou “mas isso seria o caos!” – que fornecerá o teste
para pensar o que faz e torna possível, experimentalmente,
distinguir entre os minions e todos aqueles e aquelas que de
fato são parte do sistema.

Não se trata, portanto, de denunciar os “verdadeiros culpados”,


nem de descrever as vítimas de uma falsa “ideologia”, que os
torna cegos à verdade do que está acontecendo. Os minions são
de fato vítimas, mas vítimas de um tipo muito particular,
produzidas por uma operação que é importante caracterizar.

Nomear os minions é perigoso. Quem não conhece a paixão


por definições que pode envenenar uma luta quando a questão
de seu final vem à tona, quando a boa vontade coletiva cede
lugar à tensão quase agressiva entre quem quer levá-la até o
fim, e outros que começam a pensar em termos do que “é
necessário”. A acusação “você é um minion!” pode ser
acrescentada à uma longa lista de denúncias. Mas esse perigo
se relaciona com a questão que nos interessa quando
nomeamos os minions, a questão de sua fabricação: a acusação
pode contribuir para fabricar um minion.

O interesse pragmático em nomear os minions está nesse tipo


de diagnóstico. Trata-se de entender como ocorre uma
transformação que tem pouco a ver com a manifestação de um
interesse egoísta ou de uma sede de poder até então
dissimulada. Acusada de traição, a pessoa que confirma a
acusação, se tornando o que nós chamamos de minion, não
está revelando sua “verdadeira natureza”, foi em vez disso
produzida por um “sim” que tem algo a ver com que costumava
se chamar de “maldição”.

Mas isso é apenas um caso particular. A fábrica de minions está


sempre em produção. Por vezes é “organizada” – como no caso
da “primeira vez” do consultor, mas em geral é difusa.
Normalmente tem a ver com uma espécie de iniciação, com o
recrutamento ao grupo daqueles que “sabem”. Mas é uma
iniciação “sombria” essa adesão a um saber que separa as
pessoas do que elas continuam sentindo, que elas passam a se
referir como o mundo dos sonhos ou de um sentimentalismo
do qual é preciso se defender. A incorporação do que “é
necessário” tem relação com uma volta contra si mesmo, uma
adesão ao desespero, que se dobra como desprezo por aqueles e
aquelas que ainda não entenderam, que ainda estão
“sonhando”. O que importa, por sua vez, é o recrutamento. Os
minions querem acima de tudo que todos nós nos tornemos
minions, uma vez que eles definem a si próprios como “lúcidos”
e necessitam de um mundo que dê razão à sua lucidez. Com
desdém, afirmam: “você ainda acredita nisso…” Assim começa o
recrutamento de um novo minion.

A questão pragmática é sempre um modo de prestar atenção.


Atenção, nesse caso, ao que já sabemos, mas que poderíamos
ser tentados a tratar como algo subjetivo, secundário às
características objetivas de uma situação. Trata-se, por
exemplo, de prestar atenção na maneira como, pouco a pouco,
o que foi “ganho” em 1968 – a possibilidade e a importância de
“falar” no local de trabalho – tem sido apagada, dissuadida ou
esvaziada de seu significado inicial. O que significa dedicar-se
ao sentido da situação, considerando a diferença entre o que “é
necessário” e o que é relevante fazer. Para o minion, tal
conversa é insuportável e seu silêncio produz as condições
propícias para a fabricação de outros minions.

Esse “é necessário” ao qual os minions se agarram designa algo


da ordem de uma paralisia reivindicada. O minion traduz um
tipo de captura que nada tem a ver com uma ideia, seja ela
falsa ou não. Ter uma ideia é poder apoiá-la, defendê-la,
enquanto que os minions parecem atingidos por uma
proibição de pensar para o que estão trabalhando. Mas
também é isso o que confere uma “criatividade infernal” ao seu
trabalho: eles fazem pouco, mas são incansáveis em criar
regulamentos, definições, palavras, maneiras e procedimentos
que excluem o pensamento, que para eles é tão intolerável. E é
aqui que nos tornamos capazes de realizar a operação
pragmática de “nomear” isso com que estamos lidando, isso
cujo sucesso é fabricar os minions, isso que ativa um modo que
faz com quem foi capturado se apresente como um “sujeito”,
responsável por suas ações. Nomear não é algo neutro, não é
colocar um simples rótulo. É um ato deliberado, que se
compromete com um modo de relação ou, no nosso caso, de
luta.

Não é em nosso mundo “modernizado” que encontraremos o


nome adequado para designar o modo de captura do
capitalismo, pois a modernidade nos relegou categorias muito
pobres, baseadas em conhecimento, erro e ilusão. Para
combinar a herança de Marx com os acontecimentos de Sea le
– aquele momento que não mudou muito, mudando tudo,
como se um feitiço tivesse sido levantado – é preciso nos
voltarmos para conhecimentos que havíamos desqualificado.
Isso que sucede em conjugar a servidão, a submissão e o
assujeitamento, isso que fabrica pessoas que fazem livremente
o que devem fazer, há muito tempo que tem um nome. É algo
que os mais diversos povos, a não ser nós modernos, conhecem
por sua natureza temível, sabendo da necessidade de se dedicar
a isso, para se defender com os meios apropriados. Isso se
chama feitiçaria.

Isabelle Stengers e Philippe Pignarre,


Tradução de Arthur Imbassahy, junho 2019

DEIXE UMA RESPOSTA

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Campos obrigatórios são marcados com *

Comentário

Nome *

E-mail *

Você também pode gostar