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A VILA DOS APOSENTADOS COMO PATRIMÔNIO AFETIVO

Estudos sobre o patrimônio paisagístico e o cotidiano

ST3 - PATRIMÔNIO PAISAGÍSTICO: TEORIA, HISTÓRIA E PRÁTICAS DE INTERVENÇÃO NA PAISAGEM E


NOS ESPAÇOS PÚBLICOS

COCCI, Julia Selli


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Ciências Exatas, Arquitetura e Design da Universidade
Anhembi-Morumbi, juliaselli@hotmail.com

WEHMANN, Hulda Erna


Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP, Professora da Escola de Ciências Exatas, Arquitetura e Design da
Universidade Anhembi-Morumbi, ​wehmann.hulda@gmail.com

RESUMO

Este ensaio se destina a apresentar uma proposta metodológica para investigar a Vila dos Aposentados, parte
integrante da Vila de Paranapiacaba, como patrimônio paisagístico e espaço de vida cotidiana, um duplo papel
conflituoso em termos. Seu objetivo é entender as contribuições na pesquisa qualitativa para a análise do
espaço urbano protegidos pelo tombamento como o espaço das práticas cotidianas, dos encontros e trocas
diários de uma sociedade, que compreendemos elemento importante da composição da paisagem. Para tanto,
discutiremos o papel singular da vida cotidiana como parte integrante, mas invisibilizada, da vila histórica de
Paranapiacaba, e as possibilidades que as vertentes da etnografia e da fenomenologia podem trazer para os
estudos das paisagens urbanas. E conclui-se que o ponto de vista do morador é de grande importância dentro
do âmbito da preservação da paisagem tombada.

PALAVRAS-CHAVE​: patrimônio paisagístico; Paranapiacaba; pesquisa qualitativa.


1 A VILA DOS APOSENTADOS DE PARANAPIACABA: O ESPELHO INVERTIDO
A Vila dos Aposentadas, localizada em Paranapiacaba, distrito de Santo André, é um espaço peculiar:
apesar de se tratar de conjunto urbanístico tombado, são justamente suas características típicas das
ocupações urbanas de origem portuguesa que a invisibilizam, frente à Vila Martin Smith, construída
junto à primeira Linha Ferroviária do Estado de São Paulo – a São Paulo Railway (SPR). Enquanto a
chamada Vila Inglesa, com suas marcantes casinhas marrons, ao estilo de vila operária inglesa e
desenho urbano planejado para abrigar os funcionários da linha férrea situadas num platô quase
plano, criou uma marca imagética própria para o consumo turístico, a Vila dos Aposentados,
assentada em morro próximo, parece ter sido desenhada para contemplar a irmã famosa.
Apesar de sua interdependência, a relação entre as duas áreas é quase antagônica. Enquanto na
parte baixa as restrições sobre as construções são rígidas, implicando na proibição de acréscimos
construtivos ou mesmo de pintura das casas em cores diferenciadas, a Vila dos Aposentados é um
espaço de liberdade, que “descaracteriza” o patrimônio, à medida em que os moradores expressam
nas casas escolhas de formas e cores, restritas na Vila Inglesa desde sua formação:
“Apesar de ser uma forma empírica de afirmação, o fato de todas as fachadas das casas da Parte Alta
estarem pintadas pelos seus moradores, com cores que chamam a atenção de qualquer indivíduo que
esteja passando por elas, presuma-se que seja uma forma de expressão de um grau de livre arbítrio
para com o seu espaço íntimo, já que há tempo ele não foi a sua forma de interrelação, ou a sua
tentativa de expressão. A cor, de certa forma, é a personalização do indivíduo.” (PASSARELLI, 1990)
Essa tentativa de congelamento da parte baixa da vila, também conhecida como “Vila Histórica” se
dá por seu reconhecimento como acervo tecnológico ferroviário de grande importância para o
patrimônio brasileiro, razão de seu tombamento a nível municipal, estadual e nacional, e também
razão para intensos conflitos (LIMA et al., 2017). O controle severo das ações dos moradores sobre
suas habitações, em boa parte inquilinos de programas de habitação social da Prefeitura Municipal
de Paranapiacaba, impede-lhes de verdadeiramente “habitar” a Vila, se utilizarmos aqui o sentido de
habitar como construir, física e materialmente, seu lugar no mundo, tal como o define Heidegger
(1970). ​Como resultado desse antagonismo entre a preservação da memória construída e a
permanência da vida cotidiana, a própria candidatura da Vila à Patrimônio Mundial da Humanidade
da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).
A exclusão desses segmentos sociais das lógicas turísticas (muito bem expressas por uma fala colhida
em conversa informal por um membro da comissão organizadora do Encontro Mundial das Bruxas,
de que “alugava a cidade para o evento”) resulta na pouquíssima mobilização dos moradores,
dificultando o processo que balizaria a configuração e gestão do território para a candidatura.
(Ibidem).
Na Vila dos Aposentados, a dicotomia entre a preservação e o cotidiano se apresenta em outra
faceta: a própria relativa liberdade dos moradores é devido ao descaso com a área, que não recebe a
mesma atenção e incentivos da atividade turística. Entretanto, tais modificações se restringem ao
espaço dos lotes privados e ocorrem como táticas que, “sem identidade legível, sem tomadas
apreensíveis, sem transparência racional – impossíveis de gerir” (CERTEAU, 1998, p.174), pois não
podem alterar o desenho original, sem que ao mesmo tempo recebam auxílio financeiro ou técnico
para restaurar adequadamente os imóveis em que vivem.
Suas ações são vistas como descaracterização do patrimônio construído, confirmando uma lógica de
preservação da área urbana como cenário, desconsiderando os moradores como partícipes da
paisagem que se deseja preservar. Assim, aos resultados das modificações imprevistas e por vezes
contraditórias geradas pelas práticas de seus consumidores sucede uma degradação do conceito
abstrato que se designou patrimônio. O tombamento aparece assim como um espaço em suspensão,
onde o passado já se foi, mas o futuro não tem como chegar.
Como é então viver num “espaço congelado”? O que são as memórias afetivas de quem vive num
espaço de memória, um espaço de preservação patrimonial? Tendo como foco o recorte da Vila dos
Aposentados, localizado em Paranapiacaba, distrito de Santo André, e “Persuadidos de que a
paisagem constitui um elemento chave do bem-estar individual e social e que a sua protecção,
gestão e ordenamento implicam direitos e responsabilidades para cada cidadão;”(FLORENÇA, 2000)
a pesquisa tem como objetivo identificar a paisagem do recorte como elemento de reconstrução de
memória a partir de relatos da história e levantamento qualitativo da atual situação do recorte. E
assim, junto a população residente, entender como uma paisagem preservada se desvela como
fenômeno situado1 e compreender as percepções sobre a vocação dessa área para futuras propostas
de intervenções.
Esta pesquisa se insere como uma convergência de interesses acadêmicos e pessoais. Em
continuidade a uma série de iniciativas de pesquisa envolvendo experiências etnográficas e
fenomenológicas2 na Vila de Paranapiacaba, um novo olhar sobre a Vila é proposto por interesse
pessoal por parte de uma das autoras: o estudo da Vila dos Aposentados como reverso da Vila
Turística, por sua peculiaridade como patrimônio histórico tombado, já muito descaracterizado e
inserido em uma cidade turística. O despertar para a ​paisagem patrimonial como fenômeno do
cotidiano s​ urge a partir de um passeio familiar com a avó, antiga moradora de Paranapiacaba.
Conforme relato:
“Ao chegar na cidade, em uma manhã fria de uma segunda-feira de julho, já com o tão
característico nevoeiro pairando pelas ruas da Vila, tinha-se a sensação de cidade fantasma.
Todos os pontos comerciais, inclusive restaurantes, estavam fechados. O único lugar aberto
era o posto de saúde, onde conseguimos algumas informações. Seguimos pelas ruas em
busca dos antigos locais frequentados pela minha avó em sua infância. O ponto mais
marcante do passeio, foi, ao passar pelo local da padaria, onde todos os dias ela brincava na
cozinha com a dona, encontrar apenas a escada de acesso do prédio, que foi destruído com
o tempo. Percebe-se aqui a importância da paisagem como formadora de memória. Ao ver a
escadaria, minha avó lembrou das histórias vividas no local com alegria, mas ao mesmo
tempo sentia a tristeza de ver parte de sua história destruída, alí em sua frente.”

1
​ou seja, aquilo que se mostra na experiência vivida, referenciada por quem vê, pela
intencionalidade do olhar, pelas características do solo histórico e cultural em que a ​epoché se
efetua. (Bicudo, 2011., p.54).
2
Uma das pesquisadoras, como parte do grupo de pesquisadores do Laboratório Paisagem, Arte e
Cultura - LABPARC da FAUUSP, participou de uma expedição etnográfica na Vila, em 2016, e da
organização da Oficina de Práticas Urbanas do XVII ENANPUR - Encontro Nacional da Associação
Nacional de Planejamento Urbano - realizado em maio de 2017, que propôs um ensaio metodológico
de percepção da paisagem (Lima et al, 2017; D’Otaviano e Rovati, 2017).
Figura 1: As escadas para a memória: escadaria padaria carrasqueira

Fonte: Julia Selli Cocci, 201​8


A pesquisa pretende então investigar, etnograficamente, como se dão essas relações, pessoas,
cidade e ferrovia, na paisagem atual da Vila dos Aposentados. Como essa história foi preservada até
os dias de hoje e o que está sendo ou pode estar sendo feito para que esta paisagem que já foi tão
modificada ao longo dos anos não perca seu caráter e preserve a história não só do local mas
também das pessoas, considerando que “não proteger a paisagem, afeta a sociedade em âmbito
local e mundial, e pode lesionar uma massa indefinível de indivíduos, inclusive de gerações futuras.”
(CUSTÓDIO, 2014).
O objetivo deste artigo é discutir as metodologias propostas, e suas possibilidades num estudo como
esse, em que as marcas do passado se constroem na matéria e na memória, e a imposição de uma
visão de paisagem patrimonial que oblitera o cotidiano ocasiona conflitos e danos, tanto físicos
quanto estéticos3.
Para isto, o trabalho está estruturado da seguinte forma: primeiro, apresenta-se a Vila e suas
problemáticas, depois, a noção de paisagem cotidiana como paisagem cultural; posteriormente, as
contribuição da pesquisa qualitativa para a compreensão da paisagem enquanto fenômeno, ou seja,
experiência estética que permite a relação sensível entre o homem e seu espaço de vida. Por fim,
discutimos a contribuição deste entendimento para a conservação da paisagem patrimonial como
patrimônio cultural inserido na vida cotidiana daqueles que o habitam.

3
Refere-se aqui à noção de ​Berleant de “dano estético” para definir as experiências estéticas
negativas, que culminam na alienação do homem de seu espaço de vida. (BERLEANT, 1997).
2 A VILA DE PARANAPIACABA
2.1 A Vila Inglesa e a Vila dos Aposentados
A Vila Ferroviária de Paranapiacaba está localizada às bordas da Serra do Mar no Município
de Santo André, no ABC Paulista. Circundada por uma área de proteção de mananciais da Região
Metropolitana de São Paulo, a vila situa-se nos limites da Macrozona de Proteção Ambiental (MPA)
de Santo André e foi tombada como patrimônio histórico pelo Condephaat (no âmbito estadual) em
1987 (LAMARCA, 2008) e pelo Iphan (no âmbito federal) em 2002 (VERONESE, 2009). A área é
marcada pela tríade natureza-patrimônio-cultura (LIMA et al, 2017), e é talvez essa situação
privilegiada em referência ao potencial paisagístico do lugar que torna mais contrastante o aparente
descolamento dos moradores de seu espaço de vida (Ibidem).
Figura 2: Mapa de localização

Fonte: Google, 2018


É dividida em duas principais áreas: a parte Baixa, que engloba a Vila Martin Smith e a Vila
Velha, e a parte Alta, ou Vila dos aposentados. Na parte baixa se encontram as construções
tipicamente inglesas, construídas pela São Paulo Railway, para seus funcionários residirem. E na
parte alta, se encontram residências com caráter português para onde os ex funcionários da ferrovia
iam morar quando aposentados, por isso Vila dos Aposentados. (Ver Figura 01) ​arrumei os numeros
das figuras agr n sei qual é
Figura 3: Paranapiacaba identificação

Fonte: Google, 2018


Figura 4 e 5: Exemplo de fotografia parte baixa(1) e parte alta(2)

Fonte: Julia Selli Cocci, 2018


As duas partes da Vila são ligadas, desde a época dos ingleses e até hoje, por uma ponte de
ferro para a travessia de pedestres e ciclistas que transpõe a ferrovia. Elas também estão conectadas
por sua história de formação, uma vez que​ ​quase​ ​surgiram na mesma época e com o mesmo
propósito: atender à nova ferrovia que iria ser construída.
Figura 6: A Passarela para a Vila dos Aposentados

Fonte: Julia Selli Cocci, 2018

A história da Vila de Paranapiacaba está apoiada na história de dois sujeitos ativos: A


ferrovia e as pessoas que lá residiam e que residem. No ano de 1861, em decorrência do advento do
café, foi instalado no Alto da Serra um acampamento de trabalhadores que iriam atuar na
construção da primeira ferrovia em terras paulistas, a São Paulo Railway. A linha férrea que liga
Santos à Jundiaí, fazendo a conexão das plantações de café ao porto, despertou o interesse de Bento
José Rodrigues, morador de Moji das Cruzes, que se tornaria um dos primeiros residentes da Vila. De
acordo com Lamarca, “Bento Ponteiro, como era conhecido, construiu um ranchinho de Pau a pique
no Morro, junto à rua que hoje se denomina Rodrigues Quaresma.” (LAMARCA, 2008).
A partir disso, foi o grande responsável pela ocupação da parte alta da Vila, uma vez que foi
ele quem doou suas terras a trabalhadores e também à construção da igreja Sr. Bom Jesus e do
cemitério da cidade.
Figura 7 e 8: Igreja Sr. Bom Jesus e cemitério

Fonte: Julia Selli Cocci, 2018


Podemos então perceber como a formação da Vila se deu a partir do planejamento da
ferrovia e de todos os envolvidos em sua construção. Fossem investidores ou operários, essas
pessoas, junto com a ferrovia, foram os grandes agentes de transformação, e os primeiros
moradores dessa paisagem.
Entretanto, é importante ressaltar a diferença na efetiva participação da população na
produção de cada segmento: enquanto a Vila dos Ingleses foi marcada por planejamento externo,
incluindo-se a disposição das casas, dos espaços coletivos e públicos, da morfologia urbana e dos
serviços e infraestruturas, de maneira a prover a Vila das melhores condições possíveis, a Vila dos
Aposentados (ou ​Morro,​ como os moradores o definem) é fruto de uma ocupação mais espontânea,
seguindo modelos mais próximos aos padrões de urbanização portuguesa no Brasil.
Figura 9: Vista aérea Vila dos Aposentados. Traçado não uniforme

Fonte: Google, 2018


Figura 10: Vista aérea Parte Alta. Traçado uniforme

Fonte: Google, 2018


Como começo de pesquisa, foi analisada a história da Vila como um todo, levando em consideração
a relação entre a cidade, as pessoas e a ferrovia, fatores considerados de maior relevância no
desenvolvimento da história nesta pesquisa. Já vimos que a urbanização do complexo de
Paranapiacaba se deu a partir do desenvolvimento cafeeiro na região de São Paulo e da necessidade
de se ligar o interior, onde ficavam as plantações de café, ao porto de Santos, por onde os produtos
eram exportados. A relação entre a ferrovia e as pessoas se dá uma vez que os moradores da Vila
eram trabalhadores operários que construíam a ferrovia, comerciantes que atendiam a essa
população recém chegada, e homens com maior poder aquisitivo que investem na região por conta
da ferrovia. Na parte Alta ficava o centro comercial e as moradias, em estilo urbanístico português,
além da igreja e do cemitério. E na parte baixa estavam os equipamentos, materiais ferroviários e
algumas habitações provisórias dos ferroviários. O cenário era de um novo começo. Trabalhadores
viam ali o futuro de suas famílias e a Vila como um todo era construída, tijolo por tijolo, por essas
pessoas recém chegadas.
Entre os anos de 1870 a 1946, nos tempos áureos da Vila, quando a ferrovia passou por
modernizações e duplicação, com a construção de uma nova estação com um mercado, e o famoso
relógio “Big Ben”, que se tornou um marco e era ponto de encontro na cidade. A relação entre as
pessoas e a ferrovia se dá principalmente pela principal fonte de subsistência ​dos moradores, que
eram ferroviários. Esses trabalhadores viviam na Vila Velha e Vila Martin Smith, bairros planejados
da parte baixa com moradias em estilo arquitetônico tipicamente inglês que abrigavam, em
diferentes tipologias de residência, limpadores diurnos e noturnos, foguistas, maquinistas,
engenheiros e o chefe da conservação, que tinha sua residência em uma cota elevada para que
conseguisse vigiar e controlar a cidade.
Figura 11: Vista da Passarela para a Casa do Administrador

Fonte: Hulda Wehmann, 2017


Foi nessa época também que, aos poucos, a parte Alta da Vila se tornou a Vila dos
aposentados, uma vez que, ao completar o ciclo dos ferroviários e se aposentar, o ex trabalhador
não tinha mais o direito à moradia concedida pela São Paulo Railway e lhe restava ir para a parte alta
ou sair da cidade. O cenário aqui era de uma vila agitada, protagonizada no Clube Lyra, no cinema
Flor da Serra e no Esporte Clube Juventus e Serrano, onde aconteciam bailes, eventos, exibições de
filmes e jogos de futebol.
Após o término da concessão da ferrovia à SPR, a cidade sofre gradativamente uma
decadência. Quando a concessão à empresa acaba, a linha é gradativamente reduzida em
decorrência à valorização do automóvel e de rodovias no país. Na década de 70, um sistema mais
moderno é construído no mesmo traçado que o funicular que, em 1982, é desativado. Com isso, os
funcionários da antiga ferrovia perdem seus empregos, e acabam migrando para outras cidades. De
acordo com Lamarca, nessa época “As inúmeras residências do trecho da Serra, nos patamares,
foram demolidas e a antiga e belíssima estação sofreu um incêndio fatal” (LAMARCA, 2008).
Com essas mudanças, a população de Paranapiacaba também já não é a mesma. A relação
entre a população e a ferrovia se desfaz, trabalhar na estrada de ferro não é mais motivo de orgulho
e Paranapiacaba sofre com o abandono da emigração dos moradores e da falta de investimentos. O
cenário se torna de degradação e a sensação de cidade fantasma paira pela Vila. A população, de
estimados 7000 pessoas, passa para, aproximadamente, 1000 habitantes (ARAUJO, 2018), Inúmeras
edificações são abandonadas, especialmente as situadas mais longe do centro da Vila. (FIGURA 12).
Figura 12: Construção abandonada na Parte Baixa

Fonte: Hulda Wehmann, 2017


Em 2002, o complexo é comprado pela cidade de Santo André e começa a ser intensamente
explorado turisticamente, para que a cidade saísse da situação de abandono. A parte baixa é
restaurada e recebe investimentos e uma agenda de eventos para que chame a atenção de turistas.
E a parte alta, onde reside a maior parte dos moradores locais, não recebe esses mesmos
investimentos e sua paisagem se torna não mais inserida na identidade do complexo. As
consequências desse novo cenário é de um recorte que deveria compor uma unidade, mas que se
encontra dividida em duas paisagens que diferem entre si.
Nesse sentido, a investigação procura entender de que maneira a percepção de paisagem
patrimonial é significada neste recorte específico, utilizando-se, para isso, de metodologias de
pesquisa de inspiração etnográfica e fenomenológica, a fim de alcançar a compreensão do
fenômeno da vida cotidiana nos espaços de preservação da paisagem.
2.2 A paisagem cotidiana como paisagem cultural: patrimônio e vida
Para Maraluce M. Custódio (2014), a paisagem deve haver três elementos:
a) o elemento espacial – meio ambiente ou patrimônio cultural, desde que não seja um
objeto único mas um grupo de elementos que forme um conjunto ;
b) o observador – para ser protegida a paisagem deve ser possível de ser vista por um ser
humano;
c) a percepção – que é o que aquele elemento espacial transmite ao observador,
despertando nele o interesse em proteger aquele conjunto de elementos.
O foco desta pesquisa será a paisagem como relação entre os três elementos, entendo-a
como a experiência estética que conecta o homem ao seu espaço de vida, conforme definição de
Arnold Berleant (1997). A importância desse olhar se dá pela percepção, compartilhada por parte
dos moradores e mesmo dos turistas, de que a Vila é um espaço cenográfico, cuja condição de
tombamento se dá com vistas à interesses turísticos, em detrimento da população local (Lima et al;
ARAÚJO, 2018). Com isso, parte do recorte de Paranapiacaba, no caso a Vila dos Aposentados, por
seu caráter de menor ​excepcionalidade,​ não recebe a devida importância como parte integrante da
história do lugar e da própria constituição do patrimônio preservado, recebendo menores
investimentos e instituindo o ​tombamento como política de restrição à vida cotidiana, sem as
devidas compensações.
Neste sentido, a percepção da preservação da paisagem como negação da vida pelo
congelamento ​do espaço, e da imposição de uma lógica alheia às necessidades dos habitantes
permite pensar no conflito apontado por Michel de Certeau (1998) entre a Cidade-conceito,
imposição dos planejadores (aqui representados pela figura das instituições patrimoniais e agentes
da regulação pública) e o espaço da vida cotidiana, que Certeau denomina de ​fato urbano​.
A racionalidade urbanística, caracterizada por uma ​“inteligência cega”​ (MORIN, 2017) é
caracterizada pela busca de um controle cada vez maior sobre a cidade, sacrificando por este
controle a inteligibilidade real sobre a concretude dos fatos. Para alcançar este resultado o discurso
urbanístico precisa criar uma utopia, livre de “poluições física, mentais ou políticas”, das
“resistências teimosas das tradições”, das estratégias astuciosas dos usuários. Esta utopia é um
sujeito universal e anônimo criado pelas estratégias da ciência urbanista.
Apesar da crítica de Certeau destinar-se à cidade do planejamento modernista, seu
posicionamento permanece atual, ainda que o planejamento funcionalista das cidades tenha sido
substituído por uma lógica de planejamento estratégico, em que as cidades se apresentam como
espaços empresariais. Apesar da mudança, permanece a desconsideração da vida cotidiana, agora
por outras razões: apenas os espaços excepcionais – por suas características e pela restrição de
acesso - são passíveis de se transformar em produtos vendáveis. O espaço vivido, cotidiano, banal, o
espaço opaco de Milton Santos, não possui interesse para a cidade do espetáculo. E o que é a cidade
turística contemporânea mais do que um produto para o consumo rápido do turismo?
A preservação de uma paisagem como bem cultural é impossível enquanto desconsiderar os
usuários como partícipes de sua criação. O descolamento entre a preservação e os moradores é
patente no estado de não-conservação das casas, no vazio das ruas, na fala dos moradores. A Parte
Baixa se mostra como um fantasma, um museu a céu-aberto sem adequada utilização, e que por isso
se defaz em meio às brumas. O campo, o clube, a praça, as ruas e as casas só se enchem de pessoas
aos finais de semana, quando a cidade é palco de eventos diversos - de fotografias de noivas em
meio às ruínas à encontros de motoqueiros e motoristas de fuscas.
Figura 2:Vista da Vila Martin Smith (Parte Baixa) a partir da Igreja do Senhor Bom Jesus

Fonte: Hulda Wehmann, 2017


Na Parte Alta, as cores e flores, as roupas nos varais indicam que ainda há vida, mas a
restrição patrimonial aparece como impedimento à liberdade criativa dos moradores - existem
regras estritas sobre como intervir nas residências, cujas definições muitas vezes estão além das
possibilidades dos moradores. É curioso, pois, se considerarmos que o que se planeja preservar em
Paranapiacaba é a sua paisagem (construída e natural), pode-se entender que esta é formada pela
interpretação que seus diferentes experienciadores4 lhe dão, a partir da construção e re-construção
das interpretações e materialidades que a conformam, elementos que interagem para permitir a
habitabilidade do lugar.

4
​O uso do termo experienciadores, neste trabalho, se dá substituindo o tradicional usuário. A
escolha do termo indica uma crítica a uma visão funcionalista do planejamento urbano, que
subdivide os citadinos segundo classes com necessidades e papéis específicos, e que lhe nega a
cocriação de seu espaço de vida. Assim, para expressar seu papel de agente participante da própria
paisagem, adotamos o termo experienciadores, derivado da noção de experiência, percepções
mescladas das sensações da vivência e das impressões da memória individual e coletiva, conforme
compreensão de Angelo Serpa (2007) sobre o pensamento de Walter Benjamin.
Figura 2:Casa na Vila dos Aposentados. A recuperação da fachada em madeira deve utilizar apenas madeira de
lei, cujos os custos o morador alega não conseguir arcar.

Fonte: Hulda Wehmann, 2016


Aos resultados das modificações imprevistas e por vezes contraditórias geradas pelas
práticas de seus consumidores sucede uma degradação da cidade-conceito, numa reapropriação do
sistema produzido. E não é esta a acusação que recai sobre a Vila dos Aposentados - a permanência
da vida ali, com sua criatividade que a reconstrói, não é a causa da “degradação patrimonial” que lhe
imputam?
É justamente por isso que se propõem entender a paisagem cultural como fenômeno,
estabelecendo o impulso da investigação a partir das próprias coisas e dos problemas -
estabelecendo como base do entendimento o próprio mundo da vida, cuja negação pode explicar,
em parte, os conflitos apontados entre os habitantes e as políticas de proteção da paisagem da Vila
dos Aposentados, em Paranapiacaba.

2.3 As contribuições da pesquisa qualitativa para a preservação patrimonial


As possibilidades de uma investigação aprofundada desse tema, portanto, exige a revisão do
entendimento do papel dos espaços de patrimônio paisagístico urbanos como espaços de vida
Transformá-los de espaços de exceção a elementos integrantes do cotidiano, de espaços de fruição
passiva a ​locus da ação criativa dos experienciadores, do espaço cenográfico do visível para o espaço
da corporeidade, do acessível, espaços plenos de e para vida.
É, portanto, uma nova questão: como não pensar a paisagem preservada um produto acabado (aliás,
uma utopia dos arquitetos), mas permitir ao espaço urbano, ainda que tombado, ser aquilo que
realmente é, uma etapa numa obra coletiva, sempre inacabada que é a cidade (Lefebvre, 1991)? A
inserção da ​poiein5 dos habitantes das paisagens a serem preservadas é desafiador, como sempre o
é trabalhar com múltiplas percepções. Entretanto, sem isto, a preservação da paisagem se torna a
preservação de um cenário.
Para facilitar a leitura dessas respostas (num processo inverso à posição de produtores como
escritores e usuários como leitores passivos de disciplinados), propõem-se o uso de técnicas de
pesquisa qualitativa, a saber: a pesquisa de inspiração etnográfica, e a pesquisa de inspiração
fenomenológica.
Conforme apontado por Merleau-Ponty, a fenomenologia “é uma filosofia que repõe as essências na
existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a
partir de sua facticidade” (2006, p.1). Ou seja, é um retorno ao Lebenswelt, o mundo da vida, que é
o mundo das experiências cotidianas, aí incluídas aquelas que são ciência - as mais abstratas e
sofisticadas formulações teóricas têm todas como substrato a vivência pré-reflexiva, que caracteriza
o cotidiano, ​a própria ‘essência da histór​ia’ (HELLER, 1970, p.34).
A pesquisa qualitativa busca uma compreensão particular daquilo que se estuda (MARTINS &
BICUDO, 2005), selecionando evidências para a argumentação (BAUER & GASKELL, 2015). A proposta
não é a instituição de uma verdade universal, a “obtenção de conteúdos resultantes que possam ser
generalizados, ou seja, partilhados intersubjetivamente” (GIORGI & SOUSA, 2010). Busca-se, assim,
desvelar a essência do fenômeno em questão, que deve se constituir de elementos passíveis de
serem tornados comuns à experiência humana.
A partir do concreto da situação vivida, propõem-se uma metodologia que supere o objetivismo de
entender o patrimônio como a pura materialidade construída, e o subjetivismo da aceitação acrítica
das percepções individuais na paisagem. É assim que se pretende incluir os habitantes de
Paranapiacaba nas suas políticas de preservação da sua paisagem, entendo a essa também como a
relação entre o espaço e os que as constroem na poesia cotidiana. A compreensão dessa paisagem
envolve entender como se manifesta aos seus diversos componentes humanos, treinando a escuta
para permitir com que a vida entre de novo na consciência - movimento essencial para o
compartilhamento da paisagem.
Neste sentido, tanto a pesquisa qualitativa fenomenológica quanto a etnográfica apresentam como
base o entendimento das relações entre quem pesquisa e quem é pesquisado, numa relação
sujeito-sujeito, que se aproxima da definição de paisagem que orienta o trabalho, como “relação
sujeito-sujeito, tal como dito anteriormente, de integração consciente entre um indivíduo e seu
espaço de vida (Berleant, 1997; Lima et al, 2017a)’’.

3 PARANAPIACABA COMO CONSTRUÇÃO COLETIVA: A EXCEPCIONALIDADE E O ORDINÁRIO


A pesquisa na qual se insere a reflexão aqui apresentada iniciou-se a partir do
questionamento gerado pela experiência de ver o patrimônio por parte de quem experienciou
habitá-lo. A partir daí, surge o desejo de pôr em diálogo o conhecimento teórico sobre paisagens

5
​Entendida aqui como a atividade de criar, inventar, gerar.
patrimoniais e seus processos de tombamento, e a vivência prática cotidiana, chegando a um
“estado de dúvida teórica” que determinou a orientação da pesquisa por métodos qualitativos de
investigação. Essa mudança do foco de políticas de preservação dos objetos para a proteção do
espaço (entendido, como em Santos (2008), como um híbrido entre as ações e os objetos) de
relevância cultural para nossa sociedade.
A pesquisa pretende então investigar, por meio de metodologias qualitativas, como se dão
essas relações, pessoas, cidade e ferrovia, na paisagem atual da Vila dos Aposentados. Como essa
história foi preservada até os dias de hoje e o que está sendo ou pode estar sendo feito para que
esta paisagem que já foi tão modificada ao longo dos anos não perca seu caráter e preserve a
história não só do local mas também das pessoas. Conforme Custódio “não proteger a paisagem,
afeta a sociedade em âmbito local e mundial, e pode lesionar uma massa indefinível de indivíduos,
inclusive de gerações futuras.” (CUSTÓDIO, 2014)
Neste artigo, discutimos as justificativas para a metodologia escolhida, e sua relevância
acadêmica. Ao nos voltarmos para a experiência da paisagem patrimonial, interrogando-a por meio
de vivências antropológicos e diálogos com os moradores, espera-se contribuir com o próprio
conhecimento da temática, pois como diz Malinowski, falando sobre a pesquisa etnográfica:
“Embora possamos por um momento entrar na alma de um selvagem e através de seus
olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve sentir-se ao sentir-se ele mesmo, nosso
objetivo final ainda é enriquecer e aprofundar a nossa própria visão de mundo,
compreender a nossa própria natureza e refiná-la intelectual e artisticamente. Ao captar a
visão essencial dos outros com reverência e verdadeira compreensão que se deve mesmo
aos selvagens, estamos contribuindo para alargar nossa própria visão.” (Malinowski, 1976,
p.374).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSUNTO, R. ​A paisagem e a estética​. In SERRÃO, A. V. (coord). Filosofia da Paisagem.


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