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publicado
Conferência 2
Claude Raynaut**
*
Texto subsídio à conferência realizada em Curitiba, no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente
e Desenvolvimento - MADE!UFPR, em agosto de 2006. Texto não revisado. NÃO PODE SER CITADO.
*
* Antropólogo, diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), França.
2
Dentro da própria cultura ocidental, a definição da Natureza nunca foi estável. Pelo
contrário, passou por grandes mudanças, segundo as épocas, sem que as novas definições
eliminassem sempre as prévias. O modelo de análise proposto por White, ligando de modo
exclusivo nossa representação da Natureza à religião cristã, simplifica demais o acontecido. Ao
decorrer de movimentos históricos de diversificação, de divergência, de volta para trás, um
corpus diversificado de variantes da idéia de Natureza constituiu-se e, mesmo quando uma ou
a outra tomou-se dominante, as outras, por diferentes que fossem, não desapareceram e
continuaram a serem defendidas por alguns segmentos da sociedades. Pode-se dizer que,
apesar de termos esquecido o passado, muitos dos debates de hoje se inscrevem na filiação
de controvérsias que cravam suas raízes muito profundamente em nossa cultura e em nosso
passado.
Mais uma vez, para iniciar nossa reflexão, vamos partir da etimologia. As palavras que
utilizamos, mesmo que pensamos as vezes poder submetê-los a nossa fantasia, chegam ate
nós com uma carga semântica que se inscreve de modo durável na sua construção. A
etimologia de uma palavra é o alicerce onde se arraigam todas as suas variantes .
A palavra Natureza origina-se na palavra latina Natura, ela mesma oriunda do participo
passado do verbo nascere: "nascer". Então, sua significação é estreitamente ligada à idéia de
nascimento, de geração. A Natureza no seu sentido latino designa o que nasce, o que emerge
de modo espontâneo. Suas características são inatas, congênitas e intrínsecas.
A partir deste sentido primitivo, o conteúdo semântico não parou de desenvolver-se e
enriquecer-se, ate abranger um amplo leque de significações, pois "Natureza" pode ser
empregada com as seguintes acepções :
O modo de ser, a essência, a substância de um Ser ou de uma coisa (assim falamos da
"Natureza humana", da "Natureza das coisas").
A ordem do Mundo, a lei universal (as "Leis Naturais", a "Moral natural")
A realidade material na sua totalidade, na medida que ela se diferença do Ser Humano,
se impõe a ele na qualidade de um "dado". A Natureza é então, o que existe
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independentemente dos Homens, e se diferencia da parte da materialidade afeiçoada, moldada
por ele: quer dizer que se dá como um artefato.
3) Uma terceira idéia presente entre muitos pensadores da Antiguidade é que a Natureza é um
Ser vivo que não apenas tem um corpo, incluindo todos os elementos físicos que o compõe,
mas também tem uma Alma: a "Alma do Mundo" que faz dele um Ser completo, material e
espiritual. A noção de "Alma do Mundo" permanecera no pensamento ocidental, as vezes de
modo metafórico durante muitos séculos. Ela aparece muito viva na poesia romântica.
Durante um longo período de quase Mil anos (entre a queda de Roma e a Renascença)
- período que foi chamado depois de Idade Media - o Homem foi, por certo, considerado como
criado à "Imagem de Deus", mas também como um elemento da Criação - um elemento que,
por mais acabado que fosse, não deixava de ser também uma criatura de Deus. Duas idéias
fortes limitavam a afirmação da sua supremacia:
1) Primeira convicção da época: o mundo sensível, o mundo visível, não é
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verdadeiro Mundo. Não passa de ser um simples mundo de aparências. O Mundo de verdade
situa-se alem da materialidade e de nossa percepção física. Ele é estruturado conforme um
antigo esquema binário originário da Oriente Media e da Persa. Um esquema que opõe duas
forças - o Bem e o Mal - e dois reinos : o Paraíso (chamado também de "Jerusalém celeste" :
mergulhada na Luz de Deus) é o Inferno, entregue às forças destruidoras de Satã.
2) Segunda idéia dominante - corolário da prévia: O mundo material não passa de ser
um reflexo desta realidade essencial : a luta entre duas forças inimigas a primeira que trabalha
para manter a vida; a segunda que procura destruí-Ia. O que percebemos com nossos sentidos
físicos são apenas "sinais" que falam de uma realidade muito mais essencial mas mascarada.
O que se chamava antes "N atureza" não é nada mais do que um livro que fala de Deus e de
Satã e que devemos aprender a decifrar.
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A posição da Igreja Católica não foi sempre tão nítida e clara a respeito da idéias que
acabei de resumir. A vida das idéias não é linear. É uma realidade sempre híbrida, feita de
representações diversas que coexistem, se justapõem, se opõem sem nunca chegar a se
eliminarem totalmente. O modelo que acabei de descrever corresponde a uma vertente mística
da Religião, marcada pela influencia das raízes orientais do cristianismo - é, em particular, da
filosofia Maniqueísta que inspirgra várias heresias - em particular aquelas dos "Albigeois" e dos
"Cathares".
Sem abandonar a imagem ideal da "Jerusalém celeste" nem a idéia da iminência do
Fim do Mundo, a Igreja medieval esforçou-se em achar um caminho intermediário entre:
• Uma visão que desse demasiada importância à Natureza - tornando-a, de um certo
modo, autônoma em relação com Deus (com o risco de restabelecer as filosofias
panteístas da Antiguidade).
• Uma visão oposta que recusasse totalmente o Mundo material como campo de atuação
de Satã e das forças do Mal : rivais de Deus.
A Instituição da Igreja católica combateu com igual determinação essas duas correntes
místicos. Ela desenvolveu uma teoria intermediária que reconhecia a existência da Criação,
como realidade em si. Com certeza a perfeição se situa alem da matéria, a Natureza é um livro
cheio de signos que falam de Deus e de/sua perfeição mas ela é também uma realidade
tangível, ela não se reduz a uma miragem enganadora. Em particular a beleza da Natureza é
uma manifestação tangível do esplendor de Deus.
Foi Santo Francisco de Assis quem desenvolveu com mais força a glorificação da beleza da
Natureza e das criaturas de Deus. Ele próprio bem como os membros de sua congregação - os
Franciscanos - desempenharam o maior papel na luta contra o Catharisme. Mas seu discurso
colocava a ênfase sobre a fraternidade entre todas as criaturas (ele fala de "irmão sol, irmão
vento, irmã aqua") e de jeito nenhum defendia a idéia da dominação do Ser Humano sobre o
resto da criação. De um certo modo sujeitar a Natureza teria sido rivalizar com Deus.
Por certo, a Idade Media - longe de ser um período de escuridão intelectual como as vezes
alguns o apresentavam - foi uma fase de grandes invenções e inovações técnicas que iam,
alguns séculos depois, conduzir a uma revolução agrícola e industrial. Por exemplo foi
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durante a Idade Media que foram inventados meios para recuperar e utilizar as energias
animais e naturais : o jugo para atrelar os bois, o colar para os cavalos, os engenhos para
recuperar a energia do vento e da água. Segundo a análise de Marx, foi o momento quando
começou o movimento de desenvolvimento das forças produtivas que ia conduzir mais tarde à
emergência do capitalismo (tem um ótimo livro de um historiador marxista, Charles Parain,
chamado "Outils, ethnies et développement historique", Terrains, Editions sociales, que
descreve e analisa estas mudanças técnicas). Por certo, foi igualmente durante os séculos 10,
11 e 12 que aconteceram em Europa os movimentos mais maciços de extensão das lavouras
e, em conseqüência, de arroteamento das florestas (apos a grande epidemia de peste que
matou um terço da população de Europa nos meados do século 14 nunca foi recuperada uma
superfície igual de terras cultivadas). Porem todo isto aconteceu sem apoiar-se numa teoria
que legitimasse de modo arrogante a dominação do Ser Humano sobre a Natureza. O
movimento de conquista acompanhava-se - por parte da religião - de uma grande desconfiança
no tocante aos bens materiais. Continuava-se a aguardar o Fim do Mundo como o último
acabamento da Criação.
No entanto, como já falei, é preciso não simplificar o movimento das idéias: várias
interpretações podem coexistir, se justapor, entrar em concorrência. Ao mesmo tempo que
dominava a representação do Mundo que acabei de resumir, a herança dos pensadores da
Antiguidade não tinha-se perdido por completo. Os textos foram lidos e comentados pelos
primeiros teólogos da Igreja (os chamados "Pais da 19reja"). Algumas cópias achavam-se nas
bibliotecas dos monastérios e eram utilizadas, senão em função do interesse dado a seu
conteúdo mas, aos menos, para manter o conhecimento da língua latina que era a língua oficial
da Igreja católica. Alem disto muitas obras gregas originais constavam dos acervos das
bibliotecas bizantinas. Os árabes muçulmanos, em particular apos o saque da grande
biblioteca de Alexandria, tomaram-se depositários de monumentos do pensamento grego que
seus próprios filósofos estudavam.
Foi pela intermediação dos Bizantinos e dos Árabes que a Europa restabeleceu o
contato com as obras antigas originais. Entre o século 11 e o século 13, com as Cruzadas para
a "Terra Santa", com a ocupação de Bizâncio pelos Cruzados, com a reconquista da Espanha
e do Portugal, bem como graças aos encontros de civilização que aconteceram no sul da
península italiana (Sicilia, Napoli), as grandes universidades européias chegaram a redescobrir
textos antigos que todo o mundo achava perdidos ou que estavam conhecidas apenas através
de traduções e cópias de péssima qualidade. Foi o caso, em particular, com
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várias obras do Aristóteles.
Aqueles documentos chegaram em um momento quando os teólogos católicos, em
particular reagindo ao grande Cisma Ortodoxo (nos meados do século 11) bem como às
tentações maniqueístas das correntes Cathares e Albigeois, começavam a repensar a Criação,
em particular o Mundo visível, tangível, a Natureza e as relações que o Homem estabelecia
com a materialidade.
Os textos sagrados da religião começaram a ser analisados com um olhar analítico
mesmo que não crítico - e iniciou-se uma reabilitação do mundo material. Uma evolução do
pensamento ocidental que chegou a sua auge durante os séculos 14 e 15, com a Renascença.
Já, nos inícios do século 12, Abélard, um teólogo que ensinava à Sorbonne a Paris, treinava
seus alunos ao aplicar a Razão analítica no estudo dos Textos sagrados, mas também na
observação da Natureza. Já se amparava no pensamento do Aristóteles, cujas obras
ganharam mais e mais importância na reflexão e no ensino dos teólogos das Universidades -
não foi sempre o caso dentro dos monastérios que ficaram com uma grande desconfiança no
tocante às especulações intelectuais. Durante século 12, Tomás d' Aquino, aprofundou e
sistematizou o estudo do Aristóteles, para fundamentar um método racional de estudo dos
textos sagrados e de discussão das questões teológicas. Um método chamado de Escolástica.
Se, nas Universidades, a Escolástica e Retórica, tomaram-se progressivamente exercícios
intelectuais formais e improdutivos, o apelo para a Razão, e não apenas para a Fé, começou a
aplicar-se igualmente, de modo sistemático, à observação e descrição da Natureza. Apoiando-
se nos trabalhos dos Gregos e dos Árabes, a geometria, a óptica, a astronomia, a botânica,
tomaram-se disciplinas reconhecidas, as quais dedicaram-se numerosos livros.
Pouco a pouco, a Natureza - quer dizer o conjunto das coisas materiais e dos seres
vivos que formam a Criação ao lado dos Seres humanos - deixou de ser vista apenas como um
reflexo de realidades transcendentes, mas como uma material idade que existe em si e cujos
elementos podem ser observados e descritos; uma materialidade cuja estrutura e
funcionamento obedecem a uma certa ordem, a regularidades que podem e merecem ser
estudadas
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A Natureza começou então a recuperar seu estatuto antigo, aquele de uma Totalidade
organizada que a Razão humana pode explorar. É a partir deste momento, talvez, que começa
a se estabelecer a dicotomia Homem-Natureza que, depois, ia a marcar com mais e mais força
o pensamento ocidental.
Pode-se fazer a hipótese, que esta clivagem operou-se à junção entre dois universos de
pensamento.
• Aquele da Antiguidade ré-descoberta, com a visão da Natureza que ela veiculava :
Totalidade coerente e viva, animada por forças espontâneas realidade tangível que
pode ser conhecida por meio do exercício da Razão.
• Aquele do cristianismo - Católico em particular - com sua representação do Ser humano
como auge da criação, imagem de Deus.
•
Esta junção deu origine a um novo modelo de representação que articulava os seguintes
elementos:
• Um Ser Humano investido de uma posição dominante em relação a tudo que fica ao
seu entorno.
• Uma Natureza que merece ser observada para conhecer suas próprias características e
propriedades - e não apenas na qualidade de reflexo da "Jerusalém Celeste".
• Um espírito humano que acha em si próprio.a capacidade de descrever, medir,
conhecer esta Natureza.
1. O primeiro fato, como já falei, constitui-se num retomo metódico e sistemático em direção do
patrimônio do pensamento Antigo. A herança nunca foi perdida por completo, mas os
esquemas de pensamento da Idade Media, penetrados pelo
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misticismo Cristiano, não permitiam aproveitar plenamente de um ensino que permanecia
sempre subordinado aos dogmas da religião. Com a reabilitação do mundo material e da razão
humana, as obras dos autores antigos recuperaram a totalidade de seu interesse e ajudaram
responder as novas questões que a época se colocava. Não foram apenas as obras escritas
dos poetas, filósofos e cientistas gregos e latinos que se tornaram modelos e referências, mas
também as obras artísticas : monumentos, esculturas e obras gráficas. A Itália - graças à sua
proximidade com as raízes geográficas da civilização romana e a abundância dos testemunhos
do passado foi o líder deste movimento de redescoberta.
2. O segundo fato foi uma revolução estética que se aplicou em particular à pintura e à
escultura. Revolução no decorrer da qual foi colocada e resolvida de modo totalmente nova a
questão da representação do Mundo.
Durante toda Idade Média, as figurações gráficas constituíam-se como uma linguagem
codificada, uma escritura em imagens cujo papel era dar a ver símbolos que tiravam seu
sentido do dogma da religião. Não se tratava de figurar a realidade visível, já que ela se reduzia
apenas a aparências sem valor.
Pelo contrário a partir do momento quando o olhar sobre o Mundo começou à mudar,
quando atribuiu-se interesse a essas aparências, colocou-se o problema da restituição da
imagem que nossos olhos percebem. Foi abordada a questão do realismo na figuração da
Natureza. No caso da pintura sobretudo, os artistas da Renascença trouxeram inovações
técnicas que constituíram grandes avanços quando comparadas às técnicas de desenho
herdadas da Antiguidade.
A grande invenção foi aquela da perspectiva linear com "ponto de fuga" único:
representação que se assemelha muito à imagem que percebe o olho humano. No entanto, por
próxima que seja da visão humana, não passa de uma ficção geométrica uma vez que:
i) nossa percepção da profundidade do espaço em três dimensões se faz com dois olhos que
dão uma visão estereoscópica dos objetos percebidos,
ii) que os olhos não são imóveis mas, pelo contrário, se movem e exploram de modo dinâmico
o espaço
iii) e, terceira diferença, que a superfície do fundo do olho é curva enquanto aquela da tela ou
da folha de papel utilizadas pelo pintor é plana.
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A perspectiva linear não passa de um procedimento geométrico de projeção de um
espaço em três dimensões sobre um plano. Mas, ela se aproxima suficientemente da imagem
dada pela percepção ocular para poder criar ilusão, em certas condições.
Pode-se datar com precisão a invenção desta técnica gráfica. O arquiteto e artista
italiano Ghiberti foi o primeiro a fazer a demonstração do procedimento a Firenze em 1436 na
ocasião de uma experiência famosa. A partir deste momento a técnica foi adotada por todos os
artistas italianos e europeus. Mas as conseqüência da descoberta gráfica vai bem alem do
domínio da pintura e do desenho.
Em um livro famoso ("A perspectiva como forma simbólica") o filosofo da arte alemã
Erwin Panofsky mostra como ela introduz um novo paradigma na representação da relação do
Ser Humano com o mundo exterior. Ela permite unificar a totalidade dos objetos representados
dentro de um único referencial de coordenadas geométricas centrado sobre o olhar do
espectador, que se coloca assim na postura do "observador" do mundo. Ocupa simbolicamente
o lugar de Deus observando a criação. Simbolicamente ainda, o Homem se destaca assim do
resto do mundo, submetendo-o doravante a seu olhar - olhar de geômetra, olhar de dono. É
deste mesmo período que datam as representações realistas das paisagens, das plantas, dos
animais. Os quadros deixaram de figurar um mundo de idéias e símbolos para transformarem-
se em janelas abertas sobre à realidade. Foi uma ruptura maior na representação mental do
Mundo e da Natureza. Em uma época quando não existiam ainda fronteiras estanques entre as
disciplinas, quando a mesma pessoa podia ser pintor, arquiteta, engenheiro, matemático e
filósofo, os avanços, da pintura tiveram uma influência considerável sobre a filosofia e as
ciências dos séculos 15 e seguintes.
3. O terceiro elemento deste transtorno profundo dos quadros de pensamento - em paralela à
nova distância tomada pelo Homem em relação com o resto do Mundo - foi a emergência da
idéia de Sujeito. Por certo, o próprio dogma da religião cristã integra, desde o inicio, a noção de
responsabilidade individual. Mas trata-se aqui da responsabilidade do "sujeito" no sentido inicial
da palavra: quer dizer uma pessoa sujeitada a uma lei e castigada caso a transgrida. Alem
disso, o ideal de desprendimento dos interesses pessoais ficava no centro da mística cristã.
Ao final da Idade Média, os teólogos e os scolásticos começaram discutir a
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noção de indivíduo - no sentido etimológico da palavra: qualquer ser ou objeto que não se pode
dividir - apoiando-se nos textos de Aristóteles. Mas, a partir do momento em que o Ser Humano
começou a soltar-se do resto da Criação para olhá-Ia e conhecê-Ia; a partir do momento
quando ele se colocou de modo mais nítido como consciência e sede do conhecimento do
Mundo, tornou-se necessário pensar a individualidade não apenas do seu olhar mas da
também de sua vontade atuante.
Entre Petrarca, no Século 14, e a publicação do "O livre arbítrio" de Erasmo em 1524
operou-se a construção da noção de Sujeito consciente da sua existência e de sua
possibilidade em decidir do seu destino diante a Deus e diante à Natureza. Com esta nova
representação filosófica do sujeito a dicotomia entre o Ser Humano e o resto do Mundo andou
assim reforçando-se. No domínio da religião a evolução conduziu à reforma protestante -
durante o primeiro quarto do século 16 - Reforma que pregava a autonomia individual de leitura
e interpretação da Bíblia e dos Evangelhos. Do lado da criação artística, ela se traduziu pela
multiplicação dos retratos e auto-retratos que procuravam expressar a singularidade não
apenas das feições físicas mas também da personalidade da pessoa representada .
4. O quarto grande movimento característico deste período da história do pensamento
ocidental foi o fim de uma visão limitada e auto-centrada do universo. Com as descobertas da
ciência astronômica, a visão da centralidade da Terra dentro do Universo - idéia elaborada
pelos autores da Antiguidade, retomada e defendida pela Igreja católica - achou-se colocada
em dúvida. Os primeiros trabalhos de Copérnico contestando o modelo oficial foram publicados
em 1543. Mas levou muito tempo antes que a idéia fosse aceitada pela Igreja, pois quase um
século mais tarde, Galileu foi condenado pela Inquisição por ter defendido as mesmas idéias.
No entanto, mesmo que condenada oficialmente, a nova representação mental do
Universo não parou de progredir entre os pensadores e cientistas da época. Com o uso do
óculo astronômico e a descoberta das estrelas, se revelava um Universo cujos limites
recuavam cada vez mais. A noção de infinito começou a ser vislumbrada.
Quase ao mesmo momento, a descoberta do continente americano veio
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ampliar imensamente a constatação da diversidade das civilizações, dos seres vivos e das
coisas presentes na superfície da terra. As certezas antigas vacilaram. As fronteiras e limites
estabelecidos desabaram. Os saberes herdados da Antiguidade mostraram suas falhas. A
Bíblia não dava conta de tudo. Tomava-se legitimo e necessário dar-se os meios para descobrir
e conquistar um mundo muito mais rico e diverso do que se pensava antes. Graças à
observação, à dedução, ao cálculo, o Ser humano realizava que podia explorar a Natureza não
apenas como uma metáfora do pensamento de Deus ou o reflexo do esplendor do Mesmo,
mas como uma realidade objetiva, obedecendo à leis naturais intrínsecas cujo conhecimento
não caia fora de alcance do poder explicativo do espírito humano.
Entre os séculos 14 e 15, ao termo de uma longa maturação iniciada vários séculos
antes, um patamar foi assim superado e operou-se uma renovação fundamental dos quadros
de pensamento em Europa. A leitura dos textos sagrados não dava mais conta para interpretar
os signos que o Mundo material dá a ver. É a observação das coisas no seus pormenores, sua
descrição sistematizada, sua classificação metódica, o raciocínio associado à medição que
tomaram possível entender o Universo. É neste momento que foram estabelecidas as bases de
um modelo de pensamento que, durante os séculos seguintes, ia devolver-se e reforçar-se,
opondo o Homem Sujeito observando à Natureza Objeto, submetida a seu olhar.
2. Coexistindo com estas correntes místicas, dando continuidade aos avanços da arte e da
ciência que se iniciaram durante a Renascença, desenvolveu-se um olhar analítico sobre o
mundo e sobre a Natureza. A realidade material que os nossos sentidos percebem merece ser
observada e descrita. É necessário reunir quanto mais observações possíveis sobre a
diversidade dos seres e das coisas encontrados no planeta para poder descobrir as leis
subjacentes que organizam esta aparente heterogeneidade. O período pós-Renascença
marcou, para as ciências físicas e naturais, o início de sua estruturação em disciplinas
especializadas.
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de representação sobre o nosso planeta e a cosmografia. Astronomia e Ótica
forneceram também a confirmação do que as matemáticas, o cálculo, permitem
descobrir as leis que regem os fenômenos visíveis e prever a ocorrência de eventos
físicos tais como os movimentos dos astros. Os trabalhos de Galileu e de Kepler
evidenciaram assim o fato que os fenômenos naturais são submetidos a uma ordem
que a matemática pode apreender. As descobertas da Ótica permitiram reduzir as
aparências visíveis a uma geometria formal. Isto quer dizer que embora estas
aparências possam enganar, não convém procurar a verdade em um outro nível de
realidade, senão nas leis é princípios que organizam nossa própria percepção das
coisas. Por exemplo, nossos sensos criam a ilusão que o sol gira em torno à terra mas
o raciocínio geométrico - associado à observação e a medidas - restabelece a verdade .
Mas dentro este mundo mecânico o Ser humano destaca-se pela sua faculdade
de pensar : pensar em si próprio, pensar no que se apresenta a ele (o famoso Cogito
ergo sum). É esta faculdade que fundamenta sua singularidade radical bem como sua
supremacia sobre tudo o que fica em seu entorno. O Homem, Ser pensante, pelo
exercício de sua razão, pela sua capacidade de enxergar os
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princípios que organizam a diversidade do mundo, dos mecanismos que regem seus
movimentos, tem vocação a atuar como "possuidor e dono do Mundo" conforme a
própria expressão do Descartes no "Discours de Ia méthode". Nesta afirmação e nesta
representação mecânica e geométrica do Mundo - finalização de um longo movimento
histórico de cisão - pode-se identificar a raiz principal do esquema dicotômico que
andou estruturando a relação Ser Humano/Natureza na cultura europeu durante os dois
séculos passados.
No entanto esta representação do Mundo tinha ainda muito caminho para percorrer
antes de conquistar uma posição dominante. As teorias de Descartes, caso fossem
conduzi das à suas conseqüências lógicas extremes tomariam inútil apelar para a
existência de Deus para explicar o funcionamento da "Maquina Mundo". A Igreja
católica realizou o perigo que estas representavam e Descartes teve que deixar a
França e exilar-se na Holanda. Mas os teólogos não eram únicos a recusar a teoria
mecanista do Descartes e de seus discípulos. Muitos naturalistas, no estudoque faziam
dos processos da vida, da reprodução dos seres vivos bem como da sua adaptação a
seu contexto, realizavam que os fenômenos que observavam eram muito mais
complexos, flexíveis, aleatórios do que os movimentos de uma mecânica funcionando
segundo princípios rígidos. O mundo vivo que estudavam era submetido a dinâmicas
perpetuais de mudança e de ajustes. Enquanto Descartes recusava a palavra de
"Natureza", preferindo utilizar aquela de "Matéria", a idéia de Natureza e a própria
palavra encontraram um novo sucesso a partir do século 18. Os livros multiplicaram-se
que dissertavam sobre a Natureza e retomavam a acepção etimológica e antiga da
palavra: aquela de uma totalidade viva, coerente, harmoniosa e animada por uma força
espontânea. Para alguns autores esta força era insuflada pela vontade do Criador, mas
ao longo do século.,o apelo para a idéia de Deus reduziu-se pouco a pouco a uma
precaução de linguagem, enquanto a Natureza achava-se descrita como uma entidade
em si, animada pelas suas próprias forças de vida e de mudança. Foi em particular a
concepção apresentada por Buffon na sua "Historia Natural"
"A Natureza não é uma coisa, senão esta coisa fosse tudo. A natureza não é um Ser,
senão este Ser fosse Deus. Mas pode-se considerá-la como uma potência
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No entanto, mais uma vez, durante este período crítico que vai do século XIX ate hoje,
os sistemas de pensamento não evoluem de modo homogêneo.
As sociedades também evoluem : sempre mais complexas, sempre mais eficazes, mais
organizadas, mais morais - desde as sociedades chamadas de "primitivas" ate aquelas mais
"evoluídas" - que são evidentemente as sociedades ocidentais ! Aqui também o grau de
acabamento das sociedades "evoluídas" lhes confere um papel de tutor e de guia em relação
com todas as sociedades "menos avançadas" do planeta.
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No final das contas, mesmo se o ponto de partida destes grandes sistemas explicativos
e as preocupações que as guiam são diferentes daqueles do positivismo tecnicista todos se
encontram numa mesma filosofia do Progresso que como já o temos visto, constituiu, ate
bem recentemente, o eixo de nosso pensamento econômico.
3) Mas o movimento histórico do pensamento humano não é tão simples e não se deixa reduzir
a esquemas lineares. Os avanços da Ciência, ao mesmo tempo que contribuíram a dar novas
bases à dicotomia entre Ser Humano/Natureza e a consolidá-Ia, participaram também a
regenerar uma idéia da Natureza oriunda do passado mais antigo da cultura ocidental. Uma
ciência que progride sem parar no seu esforço para evidenciar o fato que a matéria obedece a
suas próprias leis, combinada com uma filosofia evolucionista que dá à história do universo
uma direção, uma finalidade, não podia deixar de reforçar a convicção daqueles que
enxergavam na Natureza uma totalidade viva, pungente, movida por uma dinâmica espontânea
e dotada de uma Alma e de uma força que ultrapassa de longe aquela do Ser Humano.
Uma Natureza como esta deve ser respeitada e não é ao perseguirem o sonho
insensato de dominá-Ia que o indivíduos e as sociedades chegaram à felicidade mas, pelo
contrário, ao buscarem entrar em harmonia com ela.
Esta idéia de busca de harmonia com a Natureza já estava valorizada entre os
Romanos. Ela foi prosseguida pelos poetas a partir da Renascença, mas ela ganhou ainda
mais lugar na arte, na literatura, na vida quotidiana das classes dominantes a partir do século
18. Foi em Inglaterra, com destaque no domínio da arquitetura dos jardins, que o movimento de
"volta para a Natureza" começou a sustentar um movimento mais geral de crítica de uma visão
demasiado rígida e geométrica das relações com as paisagens. Os jardins geométricos "à Ia
française" do século 17 (tal como Versailles e Vaux le Vicomte) ilustravam perfeitamente o
projeto intelectual cartesiano de dominação da natureza. Pelo contrário os jardins ingleses
criados a partir do século 18 buscavam esconder todos sinais da intervenção humana, para dar
a impressão que o jardim não era um jardim mas sim uma porção de paisagem natural.
A nova concepção da Arte pretendia permitir que as forças harmoniosas da Natureza se
exprimissem sem restrição. A verdadeira beleza, para esta corrente estética, não se associa a
um artefato mais resulta do livre desempenho das dinâmicas naturais. A revolução estética que
se manifestou assim de modo particularmente espetacular no domínio dos jardins
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abrangia também muitos outros campos da criação artística, literária e filosófica. A
sopravalorização de uma Natureza livre e selvagem encontrava-se também nas obras de um
escritor e filosofo como Jean-Jacques Rousseau (que, alem disso, teorizou a noção de "estado
de Natureza). Foi um dos temas centrais de todos os românticos de toda a Europa.
Redescobrir a Natureza, re-estabelecer o contato direito com ela representou uma das grandes
modas das classes altas e dos intelectuais do final do século 18 e durante o século 19.
No início tratava-se de uma natureza harmoniosa e pacata - modelo e fonte de
sabedoria - mas, durante o século 19, desenvolveu-se uma outra imagem da mesma, marcada
pela idéia da potência excessiva e terrificante. A contemplação das montanhas, das florestas
selvagens, do mar, especialmente quando livrados às forças sem limites das tempestades, dos
trovões, conduzia à experiência íntima do Sublime (Baldine Saint Girons, «Du sublime dans Ia
fondation de l'art des jardins modernes », in Monique Mosser & Philippe Nys, Le jardin, art et
lieu de mémoire, Les éds. de l'Imprimeur, 1995 (299-322).
Essas emoções de Tenor, de sentido do Sublime desempenharam um papel central na
experiência romântica da Natureza no Século 19. É por meio dos sentimentos inspirados pelo
espetáculo de paisagens selvagens onde o poder da Natureza expressa-se sem restrições que
o Ser humano pode experimentar uma nova forma de êxtase. Uma êxtase que não seja mais
provocada - como no caso dos místicas do século 17 - pela contemplação da Luz de Deus,
mas sim pela fusão da alma humana na Alma da Natureza.
Esta representação mental opunha-se à visão contemporânea dominante, tecnicista e
positivista, que pretendia submeter a matéria aos projetos humanos. Pelo contrário, ela
enxergava na Natureza a encarnação de valores permanentes e essenciais - fonte de
inspiração para o Ser Humano. E a partir desta base conceitual que começou a se elaborar,
durante a segunda metade do século 19 - em particular nos paises de cultura alemã e anglo-
saxônica, as correntes mais radicais de valorização e de defesa da Natureza. Para essas
correntes, não apenas o Homem não deve distanciar-se da Natureza mas é ao tomá-Ia como
modelo que ele chegará à harmonia com sua própria "natureza".
No entanto, em toda Europa - um espaço ocupado, ordenado, transformado por
populações agrícolas há milênios - poucas paisagens podem permitir dar um conteúdo
concreto a esta imagem ideal da Natureza - mesmo as florestas aparentemente selvagens
foram plantadas e manejadas pelos homens. Nos Estados Unidos, pelo contrário, país pioneiro
onde permaneciam ainda ao fim do século 19 amplos espaços não marcados pela atividade
humana, essas idéias conseguiram bater com uma experiência concreta - originando assim o
modelo ideal da Wilderness - uma palavra inglesa que designa os espaços selvagens e
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intocados, escola de vida onde o Ser humano pode retomar contato com os valores mars
fundamentais da existência (Catherine Larrêre, Les philosophies de l'Environnement, PUF,
1997). É neste país que foi criado, em 1872, o primeiro para41 acional do mundo: o parre
Yellowstone. Em um outro país pioneiro - o Brasil - que, ate os meados do século 20 possuía
amplos espaços de floresta primaria fora da Amazônia, a necessidade de proteger
testemunhos desta Natureza intocada expressou-se muito cedo dentro certos meios
intelectuais. Desde 1878, o engenheiro e militante abolicionista André Rebouças reivindicava a
criação de um parque nacional a Iguaçu e Sete Quedas - conforme o modelo de Yellowstone.
O parco foi criado 60 anos mais tarde, 1939, mas a vontade de proteção tinha-se exprimido
muito antes. O sentimento da Natureza e a vontade de proteção da vida selvagem que anima
muitas organizações ambientalistas brasileiras hoje, têm raízes antigas e fortes.
Alimentada depois pelo desenvolvimento da ciência ecológica e, em particular, pela
visão holística que ela propõe das relações múltiplas e inextricáveis que se tecem dentro da
biosfera, esta visão romântica, as vezes mística da Natureza operou uma nova junção com a
Ciência - achando nela novos argumentos para defender a idéia que a Natureza possui um
valor intrínseca que deve ser respeitado, a idéia que o futuro do Ser Humano é
inexoravelmente ligado á aquele de todas as coisas e todos os seres vivos que ficam em torno
a ele.
Vimos, a traves este resumo muito rápido e muito simplificador que as representações
da Natureza presentes na cultura ocidental- hoje dominante na escala de todo o planeta - são o
resultado de toda uma genealogia. É uma história marcada tanto por grandes continuidades
(certas idéias contemporâneas originam-se nos pensamentos da Antiguidades) quanto por
longas eclipses (como durante uma parte da Idade Média) ou por período de inovações
radicais como aquela aberta pela Renascença e pelo surgimento da ciência laica na charneira
entre os séculos 18 e 19.
Tudo isto mostra que a idéia de Natureza não se origina numa experiência imediata
mas sim que ela é o produto de uma história - hoje ainda, a diversidade das atitudes e das
representações testemunha da riqueza e da complexidade desta história.
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Diante os problemas que eu evocava na prévia palestra, será que somos enfrentando hoje em
dia a necessidade de uma nova mutação do modo de pensarmos a Natureza? É esta questão
que tentarei tratar amanhã.