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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, pp.

161 - 181, 2009

AS PERDAS TERRITORIAIS DO ESTADO BOLIVIANO (1825-1935)

Fernando Siliano Reyes*

RESUMO:
O presente artigo versa sobre a constituição do Estado boliviano e suas perdas territoriais no período
compreendido entre sua fundação, em 1825, até o término da Guerra do Chaco, em 1935. Essas
perdas territoriais não só diminuem o tamanho do território boliviano como tolhem as perspectivas de
circulação desse país, que tenta minimizar tais perdas com acordos de uso territorial exatamente com
aqueles países que lhe tomaram o território. Para compreendermos esse percurso, iniciamos o artigo
descrevendo a formação populacional e territorial da Bolívia, desde as populações pré-colombianas,
principalmente os Quechuas e os Aymaras, e a posterior ocupação espanhola, sempre levando em
conta que a Bolívia é dotada de uma historicidade própria e inserida de forma específica na ordem do
capital mundializado. Na sequência, são discutidas as sucessivas guerras travadas entre a Bolívia e
três países vizinhos (Chile, Brasil e Paraguai), que culminaram em significativas perdas territoriais
para o Estado boliviano.
PALAVRAS CHAVE:
Bolívia – circulação – conflito - geopolítica – território

ABSTRACT:
The present study approaches the constitution of the Bolivian State and its territorial losses since its
foundation in 1825 until the end of the Chaco War in 1935. Not only did such losses diminish the size
of this Bolivian State’s territory but also restrained the country’s circulation perspectives. The country
has tried to minimize its losses through international agreements on territorial use with exactly those
neighbors which have taken part of its territory.To understand this process, the present study describes
Bolivia’s populational and territorial formation, beginning with pre-Colombian peoples, mainly the
Quechuas and the Aymaras, followed by the Spanish occupation, taking into account the fact that
Bolivia has its own plentiful historicity, and is specifically inserted in the order of the world capital. Last
but not least, this paper discusses the successive wars fought against three neighbor countries –
Chile, Brazil and Paraguay – which resulted in significant territorial loss to the Bolivian State.
KEY WORDS:
Bolivia – circulation – conflict – geoplitics – territory

A nação boliviana, para o senso comum e América do Sul e o país com maior instabilidade
a indústria cultural, tem sido sinônimo de pobreza política do continente. Desde a independência,
e miséria e, nos últimos tempos, uma miséria de em 1825, pode-se contar mais de 200 golpes e
feições nitidamente indígenas e de experimentos trocas de governo com uso de força. Constatações
populistas. Segundo Hofmeister (2004), a Bolívia importantes sobre o “estado das coisas” na
pode ser considerada o país mais pobre da Bolívia.
*Mestrando em Geografia Humana pela FFLCH/USP. Orientador: Prof. Dr. André Roberto Martin. E-mail: fernandosreyes@yahoo.com.br
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Contudo, o conhecimento não se faz território da Bolívia, onde se encontra os vales


apenas por constatações e sim pelo avanço da andinos e os yungas (uma zona de transição entre
análise do real, que precisa ser desvelado, ou as terras altas, secas e áridas, e terras baixas e
seja, desnaturalizado e historicizado Portanto, o úmidas), a aproximadamente 2500 metros de
que a Bolívia é (assim como qualquer sociedade) altitude.
não é o ponto de chegada da reflexão geográfica
O Estado boliviano é dividido em nove
e sim o ponto de partida para a compreensão de
d ep ar ta me ntos (Pando, Beni, Sa nt a Cr uz,
uma intrincada relação, de uma sociedade
Chuquisaca, Tarija, Potosi, Cochabamba, Oruro e
nacional com o espaço e o tempo do capitalismo
La Paz) (Figura 2).
mundializado.
Segundo o Censo Boliviano de 2001, 59%
Ao longo da história da Bolívia diversos
da população boliviana (4,7 milhões) é composta
acontecimentos perpetuaram uma situação de
por pobres, cerca de 64% são indígenas (a
exploração das classes subalternas que se
maioria quéchua e aymará)2, concentradas, até
refletiram no espaço geográfico, gerando um
a década de 1980 nas áreas rurais. Porém, apesar
processo conhecido como Desenvolvimento
de serem descendentes diretos dos primeiros
Desigual e Combinado no território boliviano, onde
ocupantes do atual território boliviano, essa
porções do território, em determinados períodos
p op ul ação está a m e rcê dos i nt er esse s
históri cos, fora m a pr op r ia da s por f or ça s
econômicos e políticos da burguesia nacional e
hegemônicas dentro do escopo do Modo de
do imperialismo, ora britânico ora estadunidense,
Produção Capitalista, sendo valorizadas em
e a tual me nt e d e ca pi t al ista s bra si le ir os,
virtude de seu intrínseco valor de uso.
argentinos, croatas e japoneses, que vislumbram
A República da Bolívia é um dos países a Bolívia como um espaço de acumulação de
mais pobres do continente americano. Possui uma capital. Não pelo fato de serem indígenas, mas
área de 1.098.581 km² e se limita ao norte e a porque são efetivamente pobres e compõem,
leste com o Brasil, ao sul com a Argentina, a oeste dentro do Modo Capitalista de Produção, seu papel
com o Peru, a sudeste com o Paraguai e a de classe explorada.
sudoeste com o Chile (Figura 1).
Na região andina há resquícios de
Segundo dados do Instituto Nacional de civilização de cerca de 20.000 anos, mas
Estadística 1 , órgão do governo boliviano, o segundo KLEIN (2004), a primeira grande
território desse país é dividido em três grandes civilização a se desenvolver no altiplano
zona s geográ ficas. A de maior extensão é boliviano foi a civilização Tiahuanaco, que tinha
chamada de llanos, que abarca cerca de 59% do como capital a cidade homônima, erguida na
território boliviano (aproximadamente 648.000 margem sul do lago Titicaca, a partir do ano
km²) e localiza-se ao norte da Cordilheira Oriental, 600 a.C, desenvolvendo técnicas agrícolas de
estendendo-se desde a base da Cordilheira dos cul ti vo em terra ço s, no s p la n al to s, at é
Andes até o rio Paraguai. Nesta zona predominam desaparecer por volta de 1.200 d.C.
as planícies, que possuem uma vegeta ção
Posteriormente à civilização Tiahuanaco,
exuberante. Em seguida se destaca a Zona
desenvolveu-se próximo ao Lago Titicaca o reino
Andina, com cerca de 28% do território nacional
dos Aymaras, que migraram para Tiahuanaco após
(aproximadamente 307.000 km²). Encontra-se a
sua derrocada. Os Aymaras eram divididos em sete
mais de 3000 metros de altitude, entre as
grandes nações. Segundo KLEIN (2004, p. 14),
Cordilheiras Ocidental e Oriental. É nessa área
que se encontra o lago mais alto do mundo, o “O desenvolvimento dos reinos dos Aymaras
Titicaca, situado a 3810 metros de altitude e com assinalou propriamente o início da história
uma extensão de 8100 km². Por fim, a Zona boliviana. Eles dominaram os planaltos centrais
Subandina, intermediária entre o altiplano e os desde o fim do século XII até a chegada dos
llanos (planícies) orientais que abarca 13% do espanhóis no século XVI”.
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Figura 1: Mapa atual da Bolívia

Fonte: www.libreria.com.br/imagens/mapas/bolivia.jpg. Acessado em 16/08/2008


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Figura 2: Departamentos bolivianos

Fonte: www.boliviacultura.com/images/mapa_dept2.jpg (Acessado em 14/08/2008)

Dedicavam-se principalmente à criação de confi nando- os em uma província de nome


lhamas e alpacas, e praticavam uma agricultura Kol la suyo, uma d as q ua t ro uni da de s
extensiva. administrativas do Império Inca. Segundo Klein,
essa influência não significou a incorporação dos
Os Quechuas também emergiram após o Aymaras, que mantiveram sua organização social
colapso da civilização Tiahuanaco. O Império e polí ti ca e ap enas p ag avam tr ib ut os a os
Inca 3 , emergido em Cuzco, ao contrário dos Quechuas. A derrocada dos Aymaras aconteceu
aymarás, era expansionista e estendeu seu e m 14 70 , p or ém , nã o d e modo pa cí fi co.
império desde o sul da atual Colômbia até o norte D er rota dos, os Ay m aras p er de ra m a
do atual Chile. independência para os Quechuas, porém, a língua
Os Quechuas estenderam a influência de aymara não conseguiu ser derrotada e é utilizada
seu império sobre o reino dos Aymaras, em 1460, até hoje.
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A população pré-colombiana, que ocupava se mostrou bastante difícil, pois além de enfrentar
as planícies do leste, era composta em sua maioria o forte exército espanhol, tinha que enfrentar
por í ndios, q ue falavam o idi oma guarani, também uma parcela de seu próprio povo que
principalmente das etnias Moxo e Chiquitanos. estava colaborando com os conquistadores.
Os povos do leste não foram dominados pelo
A ocupação espacial do território incaico
Império Inca, mas, por outro lado, os espanhóis
seguiu a lógica sistêmica mercantilista, na qual o
tiveram enormes dificuldades em dominá-los.
acumulo de metais pr eciosos era condição
Segundo informações contidas no sítio do Instituto
fundamental.
Nacional de Estadística da Bolívia 4, apenas em
1675 dois padres espanhóis partiram de Lima até Para DUSSEL (2005, p. 61),
Santa Cruz e de Santa Cruz para a tribo dos moxos
“Nunca houve empiricamente História Mundial
em Guapay, fundando, em 1682, a missão de
a té 1 49 2 ( como d at a d a de col ag em d o
Nossa Senhora do Loreto e em 1686 fundaram a
“Sistema-mundo”). Anteriormente a essa data
missão da Santíssima Trindade que hoje é a
os impérios ou sistemas culturais coexistiam
capital do departamento de Beni. Ainda segundo
entre si. Somente com a expansão portuguesa
o Instituto Nacional de Estadística, os padres
a partir do século XV, chegada ao Extremo
jesuítas levantaram a primeira construção nas
Oriente no século XVI, e com o descobrimento
terras dos chiquitanos, fundando São Francisco
da América hispânica, todo o planeta torna-se
Xavier, nas proximidades do rio Paraguai.
o ‘lugar’ de ‘uma só’ história mundial.”
N esse senti d o, não conseg ui re mos
A Ocupação Espanhola e nt ende r o a va nço d o modo d e p roduçã o
cap it al ista se m ente nd er os p roce ssos d e
A conquista espanhola do Império Inca foi
colonização, como apontou MORAES (2000, p. 23)
obra de Francisco Pizarro, numa época de declínio
em sua análise sobre a formação dos territórios
do império. Após a morte do imperador Huayna
coloniais:
Capac em 1527, seus filhos Huascar e Atahualpa
travaram uma briga pela sucessão. “A colonização americana inicia-se com a
instalação de enclaves, que atuam como bases
De acordo com CHASTEEN (2001, p. 45),
de difusão do processo. Estes evoluem para
“Pizarro tinha apenas 168 espanhóis, mas regiões quando passam a abarcar espaços mais
inf elizme nte p ara os inca s, o impera dor dilatados, que abrigam assentamentos e fluxos
reinante e seu sucessor haviam morrido permanentes e consolidados. Tais conjuntos
subitamente da epidemia que, alastrando-se r eg iona is, em sua s a rt icul açõe s e
pelas rotas comerciais à frente de Pizarro, com pl ex izações, acab am p or conf or ma r
devastou a família dirigente inca, gerando uma efetivos territórios na América colonial, que
crise de sucessão pouco antes da chegada dos apresentam uma divisão interna do trabalho
espanhóis. Desastradamente, uma guerra civil com zonas de produção especializadas. Tais
inca havia eclodido. Atahualpa comandava um organizações espaciais, dotadas de instalações
lado e seu irmão, Huascar, o outro. O ardiloso e assentamentos (e de fundos territoriais), com
Pizarro conseguiu jogar os dois lados um contra sua lógica de disposição das atividades e
o outro, obtendo a derradeira vitória para si.” equipamentos no espaço, emerge como um dos
elementos significativos da “herança colonial”
Emb ora At ahual pa t enha de rr ot ad o
das formações periféricas.
Huascar, não havia ainda consolidado plenamente
Enfim, os territórios coloniais atuaram como
seu poder quando da chegada dos espanhóis em
as bases da construção dos territórios nacionais
1532.
na Amér ica Latina. Por isso, ent ender a
Ent re os Ay ma rá s t am bé m houv e dinâmica que presidiu suas formações, e
resistência à ocupação espanhola, porém, a tarefa conhecer os arranjos sociais gerados em cada
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caso, aparecem como pressuposto para a MORAES (2000, p. 203) enfatiza a enorme
explicação da história das sociedades latino- i mp or tâ nci a da e xp l oração d a p ra ta na
americanas.” organização do padrão da ocupação espacial da
colônia e principalmente da importância fulcral
A p a r t i r d a l óg i ca d e a ná l i se d a
de Potosí no processo de ocupação territorial por
constituição da economia-mundo, pensamos
parte da Espanha
que para uma melhor compreensão do objeto
d e e stud o é f unda m ent al f aze r um b r ev e “... a ocupação segue um eixo que vai das minas
levantamento histórico da Bolívia, desde a de mer cúr io de H uancav elica, tre zent os
ocupação desse espaço pelos espanhóis. quilômetros ao norte de Lima, passando por esta
cidade, e avançando num sentido sul para a
O Est a d o N a ci ona l conhe ci d o com o
velha região mineira de Cusco, até atingir o cerro
Bolívia originou-se do espaço colonial dominado
de Potosí (a cerca de 2000 quilometros de Lima),
pela Espanha, do século XVI ao XIX. Como
a montanha de prata descoberta em 1545, a
assinala Fernando NOVAIS (2000), a colonização
quatro mil metros de altitude. Tal rota latitudinal
m ode r na r e p re se ntou a e ur op e i zaçã o d a s
fi rma- se com a i ntrodução da t écnica do
Américas e de outras áreas do planeta como
amálgama na extração mineira, em 1572, a qual
r e sul t a d o d o e x p a nsi oni sm o m a r í t i m o-
torna Huancavelica ‘condição de Potosí’ “.
mercantil, bem como a criação de espaços
complementares ao processo de acumulação de Potosí, um local ermo, de difícil acesso,
capitais das áreas metropolitanas da nascente situado a cerca de 4000 metros acima do nível
economia-mundo. do mar e encravada no alto da Cordilheira dos
Andes pode ser considerada, segundo Pierre
O poder metropolitano espanhol impôs
VILAR (1981) um dos “lugares históricos do
suas determinações sobre a América Latina, por
capitalismo”, devido a enorme quantidade de
meio da sujeição manu militari dos povos e
p ra ta a li encont ra da . Em pouco t em po, a
culturas indígenas estabelecidos no altiplano
população cresce abruptamente e para abastecê-
andino e na planície. Houve a destruição do
la, tudo vinha de fora, nada era ali produzido,
I m p é r i o I nca , cont ud o, ce r t a s e st r ut ura s
nad a deve ria t irar a atenção do que m ais
indígenas relacionadas ao trabalho compulsório
importava em Potosí: a retirada da prata.
e a sub or d i na çã o a o p od e r ce nt ra l f ora m
m a nt i d a s d e v i d o a sua ut i l i d a d e p a ra a A cidade de Cochabamba, fundada em
constituição de uma economia colonial baseada 1571, e em menor grau as cidades de Tomina,
em enclaves mineiro-exportadores. fundada em 1575 e Tarija, fundada em 1574,
encarregaram-se de abastecer com gêneros
A partir destes enclaves desenvolveram-
a li me nt ícios a p op ul ação do a lt ip la no,
se regiões e um território colonial, segundo
principalmente trigo e milho. La Paz (Ciudad de
GUMUCIO (1996, p. 14-15):
Nuestra Señora de La Paz), fundada em 1548,
“Es en el altiplano y los valles interandinos especializou-se no cultivo de raízes de coca e na
d o nd e hoy v i v e l a m a y or p a r t e d e l a criação de animais, e prosperou graças à condição
población, y es allí donde se formaron las de ponto de parada no caminho entre as minas
altas culturas precolombinas de los quechuas de Potosí e o litoral, e também por estar na rota
y aimaras y se asentaron las principales entre Lima e Buenos Aires, enquanto Santa Cruz
ciudades, como Chacras (hoy Sucre), La Paz, de la Sierra abastecia a mesma região com
C o cha b a m b a , O r ur o y Pot o si , y l a s produtos tropicais. O trigo era trazido do Chile e
explotaciones mineras. Em el oriente se os animai s, ta nto de carga quanto para o
f u nd a r on l a s ci u d a d e s d e Sa nt a C r u z, abastecimento de carne procediam da planície
Trinidad, Riberalta y Cobija, y uma miríada platina. Potosí se torna o pólo aglutinador de uma
de pueblos fundados por los jesuítas em los economia agrária periférica, que se estende por
siglos XVI y XVII.” uma enorme área, constituída apenas para
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abastecê-la, pois na lógica sistêmica do Antigo posse de Buenos Aires, pois, além de permitir o
Sistema Colonial, o lucro oriundo do processo de controle da Bacia do Prata, abriria caminho para
mineração compensa tais investimentos. as minas de Potosí. Porém tal pretensão não se
concretizou.
N o que ta nge a o escoa me nt o da s
mercadorias e ao recebimento dos produtos O declínio econômico de Potosí, quando a
necessários à manutenção das condições básicas p roduçã o d e prat a e nt rou num a espi ra l
de vida na área mineira, MORAES (2005, p. 68) descendente, ocorreu depois da segunda metade
nos mostra que do século XVII. A cidade, que chegou a ter uma
população fixa, no início do século XVII de
“A ocupação do território colonial estrutura-se
aproximadamente 160 mil pessoas, viu esse
num padrão voltado para fora, isto é, a
número cair para não mais que 30 mil habitantes.
a pr op ri ação dos espa ços obe de ce a um
Na época da independência boliviana, em 1825,
itinerário que exprime o sentido prioritário dos
apenas 9 mil pessoas viviam em Potosí.
fluxos (centrípetos do ponto de vista da colônia,
e centrífugos na ótica da metrópole). O desenho Outro processo distinto de ocupação do
espacial básico observado é o denominado altiplano se deu pelo chamado “Piemonte” andino.
‘bacia de drenagem’, em que um eixo de A cidade de Assunção foi fundada em 1537 e
circulação central ramifica-se por caminhos que ser vi u ta nto com o ponto d e pa r ti da p ara
vão buscar as zonas de produção, e esse eixo expedições como de centro abastecedor de mate
tem por destino um porto (lacustre, marinho para Potosí. A partir de Assunção, os espanhóis
ou estuarino) que articula os lugares drenados rumando em sentido noroeste fundam, em 1561
com os fluxos do comércio ultramarino... a cidade de Santa Cruz de la Sierra, que começa
Quanto mais ampla a área de drenagem e a fornecer produtos tropicais à zona mineradora.
quanto mais intenso o fluxo praticado, maior
Esses d oi s pr ocessos d isti nt os d e
será a importância do porto de referência na
ocupação, sendo o primeiro a partir do atual Peru
hierarquização dos lugares coloniais no interior
e o segundo a partir do atual Paraguai, criando
de cada império”.
novos assentamentos populacionais em áreas de
A exportação dos minerais extraídos nesta difíceis condições de vida nos mostra o grandioso
área colonial, segundo MORAES (2000) em sua circuito armado pela metrópole para garantir a
maior parte saia de Potosí e era enviada para extração, circulação e exportação da prata,
Lima, de onde seguia para o porto de Callao, envolvendo um arco maior de espacialização, que
seguindo para o Panamá e de lá, enviada para reunia as áreas andina e platina num território
Havana, de onde seguia para Sevilha, na Espanha. constituído pelo poder das relações sociais
Tal trajeto, de acordo com Moraes, durava cerca referentes ao Antigo Sistema Colonial, “... numa
de dezoito meses. lógica na qual cada colônia aparece como parte
de uma estrutura que trabalha para o centro do
Vale ressaltar ainda que, por intermédio
sistema” (MORAES, 2005, p. 64) sendo que, nesse
do porto de Buenos Aires, escoava grande parte
processo, “as colônias são porções da economia-
da prata contrabandeada de Potosí, aliás, esse
mundo, na qual se apresentam como partes
comércio clandestino de prata foi responsável pela
subordinadas de um império, e, em conjunto,
segunda fundação da cidade de Buenos Aires, em
delimitam a verdadeira periferia do mundo
1580. Esta cidade tornar-se-á uma das principais
capitalista”. (MORAES, 2005, p. 56).
rotas de abastecimento de Potosí, criando uma
ligação entre a regiã o mineira e o oceano Os portugueses, segundo BANDEIRA
Atlântico. Tal circuito foi legalizado em 1595 pela (1985), ficaram frustrados ao descobrir que nas
coroa espanhola. Não é a toa que, na primeira terras destinadas pelo Tratado de Tordesilhas não
m et ad e do sé culo XVII , os p ort ug ue se s encontraram um mísero grama de prata. Para tal
pretendiam segundo BANDEIRA (1985), tomar i nt ento, os ba nd ei ra nt es come ça ra m a
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embrenhar-se pelo interior do continente para vi g e nt e s d e i n f e r i or i za çã o d a m a ssa d e


encontrar o Eldorado ou mesmo alcançar Potosí. população indígena e mestiça. Sendo que as
Nesse sentido, MORAES (2000) relata a expedição elites que se constituíam a partir das relações
do bandeirante Raposo Tavares ocorrida entre econômicas coloniais não se preocupavam em
1648 e 1651 e que chegou até o sopé da cr i a r e l e m e nt os d e c onse nt i m e nt o e / ou
Cordilheira dos Andes, passando posteriormente persuasão para se associar ao caráter coercitivo
por Santa Cruz de la Sierra e fazendo uma do exercício do seu poder. “Os espanhóis, além
descoberta importante. No relato de MORAES d e ocup a r a p a i sa g e m f í si ca , t a m b é m se
(2000, p. 395), apropriaram da paisagem espititual e cultural”
(THIESSEN-REILY, 2008, p. 360). O exercício
“Partindo de São Paulo, sua expedição atingiu do poder, segundo os moldes da hegemonia
o sopé andino, transitando nas imediações de gramsciana, pressupõe a integração mínima do
Santa Cruz d e la Si erra, e m segui da p ov o a o si st e m a v i g e nt e , cont ra r i a nd o a
atravessando o interflúvio dos Parecis, penetrou situação concreta de visão e ação instrumental
na região amazônica, atingindo Belém, pela rota do povo, visto apenas como força de trabalho
dos rios Mamoré, Madeira e Amazonas. Tal por part e da elite europeiza nte. A gra nde
itinerário deu ciência da proximidade (e da não população indígena, a maior parte analfabeta
comuni cação) das duas g rand es baci as no idioma metropolitano, permaneceu fora do
hidrográficas sul-americanas, pondo por terra processo de construção nacional das elites.
o mito cartográfico da ilha Brasil”.
C o nt ud o, e nq u a nt o c ont r a d i çã o d o
A particularização do Antigo Sistema próprio processo de particularização do Antigo
Colonial nas condições específicas do altiplano Sistema Colonial ocorreu a preservação das
engendra um modo de sociabilidade marcado pela comunidades indígenas. Comunidades estas que
imposição da visão de mundo eurocêntrica e a foram recontextualizadas, enquanto elemento
consequente subalternização das populações de apoio sistêmico, já que faziam a gestão
indígenas, relegadas à mera condição de mão- ( cont r ol e e r e pr od uçã o) d a mã o- de - obra .
de-obra necessária à viabilização da economia Instituições tradicionais como a mita (trabalho
colonial. MORAES (2000) destaca que a mineração gratuito e compulsório nas minas) e a pongaje
implicou construções, assentamento, redes de (o trabalho índio empregado para o serviço
abastecimento, perenização de fluxos, além de pessoal) foram apropriados pelos espanhóis e
melhor organização da estrutura administrativa, p e l a e l i t e cr i ol l a , e m f un çã o d a e nor m e
ou seja, a incorporação exploratória do novo necessidade de mão-de-obra para a mineração.
espaço, das terras e pessoas, à dinâmica da Na le itura de UR QU IDI ( 200 7, p. 74 ) “a s
economia metropolitana. Nesta perspectiva, as comunidades indígenas permaneceram como
hi erar qui as soci ocul turais tor nam- se re si dindo num pa ís di fer ente, ocupando o
extremamente rígidas, expressando o caráter mesmo território com as oligarquias, mas de
colonial desta sociedade, na qual o branco/europeu modo subterrâneo”.
associa-se às várias nuances do colonizador e/ou
agente metropolitano e o indígena ao fardo laboral Se por um l a do e st as comuni da de s
nas atividades mineradoras. Cabendo aos mestiços representavam a submissão à ordem colonial,
transitar nos interstícios desta hierarquia social, também se constituíram em pólos de aglutinação
simultaneamente, estrutura de produção. Como da população indígena e de sua cultura. Esta
aponta Aníbal QUIJANO:”Na América, a ideia de ambiguidade gerou movimentos de resistência
raça foi um modo de outorgar legitimidade às nas áreas do vice-reinado do Peru, nos fins do
relações de dominação impostas pela conquista século XVIII como as revoltas de Tupac Amaru e
(2005, p. 228).” Tupac Katari (em 1778, sob sua liderança,
indígenas cercaram a cidade de La Paz, porém
Portanto, não havia uma comunidade logo foram contidos pelas forças espanholas).
possível – real ou imaginada – nas condições (GERAB e RESENDE, 1987, p. 21-28).
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Esses mov imentos de reb eld ia d as Portanto, os processos de independência


populações coloniais foram debelados a ferro e fogo na Iberoamérica, nas palavras de CHASTEEN
pelo consórcio formado pela elite colonial e as (2001, p. 93) “não cancelou o colonialismo nas
autoridades metropolitanas. A Era das Revoluções naçõe s l a ti no-a m e ri ca na s. Pe l o cont r á ri o,
– a crise do Antigo Regime e do Antigo Sistema t o r nou - a s p ós - col oni a i s: a g or a se
Colonial – na América hispânica não assistiu à autogovernando, mas ainda moldadas pela
constituição de Nações e nacionalismos, no sentido herança colonial.”
proposto por Eric Hobsbawm em seu livro “Nações
De acordo com Roberto CHOQUE (2006,
e Nacionalismos desde 1780”, de 2004.
p. 136), o processo de independência na Bolívia,
A tônica das Luzes na América espanhola comandado pela elite criolla, tratou primeiro de
foi o protesto anticolonial, que galvanizou as elites assegurar a independência da Espanha para,
no sentido de romper com a metrópole e se num segundo momento, se preocupar com os
apropriar do poder colonial, como fundamento í nd i os, a m a i or i a d a p op ul a ção. Em sua s
para a construção do seu Estado. palavras:
MARIÁTEGUI (2008, p. 36) indica que: “... A independência criolla do Estado ou da
co r oa d a Esp a nha nã o si g ni f i c ou s ua
“ As i dé ia s d a re vol ução f ra nce sa e d a
libertação (dos indígenas) do sistema de
constituição estadunidense encontraram um
exploração colonial, ou seja, com o novo
clima favorável para sua difusão na América
Estado Republicano continuaram todas as
do Sul, porque na América do Sul já existia,
suas cargas tributárias e serviços pessoais.
ainda que embrionariamente, uma burguesia
Em outra ordem de coisas, o novo Estado
que, diante de suas necessidades e interesses
marginalizou o indígena da sociedade civil.”
econômicos, podia e devia ser contagiada pelo
humor revolucionário da burguesia européia.” Cabe ressa ltar que os pr ocessos de
independência na América Latina tiveram a
Os movimentos de independência na
participação inequívoca da Inglaterra, berço do
América Latina não foram comandados pela
capitalismo liberal, reconhecendo e financiando
massa indígena. Os líderes foram os chamados
as repúblicas nascentes que imediatamente
“Crioulos” (descendentes de espanhóis nascidos
passaram a desempenhar seu papel na clássica
na América) que não pensavam em criar uma
D i v i sã o I nt e r na c i ona l d o Tra b a l ho, co m o
sociedade indígena e igualitária. Suas pretensões
f o r ne c e d o r e s d e p r od ut o s p r i m á r i os e
eram apenas de se apossar das riquezas do
receptores de produtos manufaturados.
território, ora apropriadas pelos espanhóis. Mas
como tomar o poder sem perder o controle da
grande massa indígena? A saída encontrada foi a O Surgimento do Estado Boliviano
adoção do nativismo que, segundo CHASTEEN
(20018, p. 88,89), N o i ní ci o d o sé cu l o XI X, N a p ol e ã o
Bonaparte invade a Espanha e controla o poder.
“ gl or if icav a a i dé ia d e uma i de nt id ad e Tal fato abriu a possibilidade das elites crioulas
americana definida pelo local de nascimento, de assumir definitivamente o poder. O Alto Peru
algo que os crioulos compartilhavam com os (Charcas) foi palco do primeiro movimento
povos indígenas, com aqueles de sangue misto, i n d e p e nd e n t i s t a d a A m é r i ca e sp a nhol a .
mesmo com os filhos de escravos africanos. Conforme KLEIN (2004, p. 61) em 1809 rebeldes
Com os apelos nativistas, os crioulos poderiam liderados por Pedro Domingo Murillo instauraram
conquistar a ind epe nd ência mante ndo a uma Junta Tuitiva e proclamaram um regime
hierarquia social mais ou menos intacta... A independente em nome de Fernando VII (Rei
maioria dos crioulos conservou as velhas d a Esp a nh a q u e a b d i c ou e m 1 8 0 7 ) . Ta l
noções da supremacia branca, como nos movimento foi sufocado, com a morte de Murillo,
recém-independentes Estados Unidos” em 1810.
170 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, 2009 REYES, F.S.

MERCADO (1988, p. 17) escreve que o Confederação Peruano-Boliviana (1836-1839),


nascimento da Bolívia como país independente é quando Peru e Bolívia se unificaram sob o domínio
resultado de dois fatos: da crise do azougue de Andrés de Santa Cruz, constituída por decreto
(resultado do bloqueio inglês de Bonaparte) e da em 28 de outubro de 1836. O Chile não aceitou a
guerra das republiquetas (áreas rurais) entre tentativa de unificação, de clarou guerra à
1809 e 1824. “Um Estado fraco e isolado do nascente Confederação em dezembro de 1836.
mundo... um Estado em guerra perpétua com sua Segundo SANTOS (2002, p. 51):
própria população” (1988, p. 19).
“O Peru constituía-se, desde o período colonial,
A Bolívia nasce como um “Estado-tampão” no principal mercado para a produção de trigo
entre a Argentina e o Peru (Figura 3) pois a elite e farinhas chilenas. Nesse momento, o Chile,
da cidade de Lima tinha na construção do Estado que já havia conseguido superar a fase de
bol iviano um antep aro para a agressivid ade tensões centrífugas internas com o início da
argentina. Por isso, Simon Bolívar não conseguiu chamada fase dos ‘Governos dos Decênios’,
levar a cabo suas pretensões de construir uma só l ança va -se no pr oj et o de tr ansf or ma r
América, além do mais, segundo Klein, a Argentina Valparaíso no principal porto do Pacífico Sul,
tinha uma posição hostil à ideia e o próprio Bolívar ponto de parada obrigatório dos navios que
temia um Estado peruano com muito poder. dobravam o Cabo de Hornos com destino ao
A independência boliviana se concretizou Oriente. A hegemonia de Valparaíso sobre
em 6 de agosto de 1825, sob a liderança do Callao foi decidida na guerra que o Chile
general Antonio José de Sucre. Uma república sustentou contra a Confederação Bolívia-Peru,
eminentemente indígena:”A nova república tinha que teve como causa imediata a denúncia do
uma população estimada de 200.000 brancos, tratado que concedia preferências comerciais
100.000 cholos e aproximadamente 800.000 m út ua s e a r ecusa da s aut or id ad es d a
camponeses índios.” (KLEIN, 2004, p. 73) confederação a derrogar a legislação que
aumentava os direitos peruanos sobre as
Sucre, o primeiro presidente da jovem mercadorias que chegassem ao seu mercado
república abandona o poder em 1829, sendo
com escala em Valparaíso. Porém o motivo
substituído pelo Marechal Andrés de Santa Cruz.
primordial do conflito bélico foi dirimir a
Para se compreender a construção da supremacia comercial do Pacífico Sul entre
ide ntida de na ciona l boli viana é ne cessá rio Valparaíso e Callao.”
entender as raízes e as consequências das guerras
Ao término da guerra, em janeiro de 1839,
travadas pela Bolívia. Segundo WASSERMAN
com a vitória chilena na batalha Yungay, a
(2004, p. 320):
C onfe de ra çã o f oi e ncer ra d a, m ante nd o a
“As classes dominantes usaram as derrotas hegemonia do Pacífico Sul nas mãos do Chile.
como pretexto para justificar a idéia de que a
heterogeneidade étnica do país constituía-se Para MERCADO (1988, p. 20), a intenção
em uma ‘fraqueza originária’, um ‘defeito de Andrés, apesar do projeto conservador,
congênito’, que impedia a Bolívia de ganhar pretendia “dar um projeto nacional a um país que
uma guerra contra vizinhos poderosos e que, não o tinha. Há nisto a tentativa de aplicação do
ao mesmo tempo, constituir-se-ia em um centralismo de províncias, que tinham deixado
obstáculo para se atingir a modernidade”. de ser centrais”.

A Guerra da Confederação Peruano- A Guerra do Pacífico


Boliviana
A segunda disputa internacional da Bolívia
A primeira derrota boliviana deu-se na aconteceu com o Chile na chamada “Guerra do
C osta d o Pacíf ico, na cha ma da Guer ra d a Pacífico” (1879-1884).
As perdas territoriais do Estado Boliviano (1825-1935), pp. 161 - 181 171

Figura 3: Mapa do território original da República da Bolívia,


na data de sua fundação, 06/08/1825

Fonte: www.turismobolivia.bo/map-nacimiento.jp. Acessado em 24/12/2008

Essa guerra é oriunda de um conflito consigo nutrientes (plânctons) que estavam no


originado em 1842, em função da descoberta da fundo do mar, aumentando consideravelmente a
aplicabilidade agrícola do nitrato de sódio (salitre) quantidade de peixes nesse litoral.
e do guano (adubo rico em nitrogênio, proveniente
das fezes de aves migratórias) no deserto de Alimentadas pelos cardumes, as gaivotas
Atacama, que até então, junto ao Pântano de e as alcatrazes excretaram durante milhares de
Tamarugal, eram áreas repulsivas, apresentando anos muitas toneladas de matérias fecais ricas
limites imprecisos entre o Peru, o Chile e a Bolívia. em nitrogênio, fosfatos e amoníaco que agora
serviriam para enriquecer o empobrecido solo
A corrente marítima fria de Humboldt europeu, e engordar as contas bancárias da
ocasiona o fenômeno da Ressurgência. Essa burg uesia b rit ânica e a lem ã. O sa li tre f oi
corrente marítima se desloca no sentido norte, encontrado em grandes quantidades na província
em uma linha paralela ao litoral. Na costa peruana, d e Ta ra pa cá, no Pe ru, e na pr oví ncia d e
as águas superficiais se aquecem e sofrem um Antofagasta.
deslocamento, devido à ação dos ventos locais,
afastando-se do litoral. A massa de água fria que Capitais de empresas chilenas passaram
se encontrava nas profundezas aflora, trazendo a controlar a extração desses produtos e a
172 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, 2009 REYES, F.S.

Inglaterra transformou-se no principal comprador Para o Chile, a importância de uma aliança


e no pós-guerra começou a controlar o comércio com o Brasil residia na possibilidade de o Brasil
e as estradas de ferro construídas para esse fim. conter uma possível aliança da Argentina com o
Segundo SANTOS (2002), baseado na análise Peru e a Bolívia, o que seria desastroso para as
documental de Victor Kiernan e de Héctor Bruit, pretensões chilenas.
a Guerra do Pacífico não foi fruto do imperialismo
Até hoje a Bolívia se ressente dos 120.000
inglês, mas foi gerada por interesses locais da
km² perdidos para o Chile nessa guerra e ainda
burguesia chilena e que, apenas no final da
guarda, no Lago Titicaca, sua pequena frota da
guerra, o capital inglês predominou, não como
Marinha de Guerra, esperando para que um dia
objetivo, e sim como resultado.
seu território, perdido na Guerra do Pacífico, seja
De acordo com SANTOS (2002, p. 32), devolvido (Figura 4).
havia um acordo estabelecido entre Bolívia e
No que tange à saída boliviana para o
Chile, no ano de 1874, que protegia o capital
Pacífico, foi firmado entre os governos chileno e
chileno de novos impostos por um período de 25
boliviano um acordo, em 1904, de cessão do litoral
anos. Em 1878 o governo boliviano decidiu
marítimo “a cambio de 300.000 libras esterlinas y
aumentar os impostos em 10 centavos sobre cada
de la construcción del ferrocarril Arica-La Paz por
100 quilos de salitre pagos pelas salitreiras
parte del vecino país” (GUMUCIO, 1996, p. 20).
estrangeiras. Além da ameaça de encampar os
bens da Companhia Anônima de Salitre e a Se g und o a aná l i se d e W A SSER M AN
Ferrovia de Antofagasta, o Chile reagiu enviando (2004, p. 340), a
seus exércitos para as províncias de Tarapacá e
“ausência de uma saída soberana para o mar
Antofagasta.
ou a falta do ‘litoral’ deixou a Bolívia em
A venda das concessões de exploração da segundo plano da DIT (Divisão Internacional
área e a entrega do guano e do salitre a John do Trabalho) ou duplamente dependente; por
Thomas North, proprietário da Liverpool Nitrate um la do, os ce nt ros he g em ônicos d o
Company (MERCADO, 1988, p. 20) levaram o capitalismo e, por outro lado, os países vizinhos
Chile, contando com o apoio inglês, a atacar o que pudessem prover a comercialização dos
Peru e a Bolívia, tomando desses países esse árido seus produtos por via marítima. Com isso, o
território que além de conter diversas riquezas país empobreceu muito e manteve um padrão
minerais era a porta de saída da Bolívia para o de desenvolvimento baixo em relação aos
Oceano Pacífico, deixando claro que os interesses demais países da região.”
econômicos impõem uma definição clara dos
Vale ressaltar que esse conflito serviu para
limites.
uma nova tentativa de construir uma Federação
Segundo SANTOS (2002, p. 143), a guerra entre Bolívia e Peru, ocorrida em 1880. Conforme
do Pacífico encerrou-se com a assinatura do SANTOS (2002, p. 139)
Tratado de Ancón, em 20 de outubro de 1883, e
“O desalento atingiu os aliados e, talvez como
a “trégua com a Bolívia só foi firmada em 4 de
forma de superá-lo, em junho de 1880, os
abril de 1884. Os dois instrumentos, entretanto,
plenipotenciários Pedro José Calderón, do Peru,
consagraram a vitória chilena, com a cessão do
e Melchor Terrazas, da Bolívia, reuniram-se
li tora l b ol iv iano e das r icas pr ov íncia s de
com o objetivo de estabelecer uma federação
Antofagasta e Tarapacá ao Chile.”
entre os dois países. O ministro brasileiro em
Ao final desse segundo conflito, os chilenos La Paz, em resposta a sua consulta sobre a
mais uma vez são reconhecidos como a força posição do império frente a tal hipótese, foi
militar dominante no Pacífico Sul da América informado que ‘o Brasil não tem interesse em
(SANTOS, 2002), tendo os impérios britânico e contrariar a execução do plano, aí concebido,
brasileiro como aliados. de uma confederação entre a Bolívia e o Peru’
As perdas territoriais do Estado Boliviano (1825-1935), pp. 161 - 181 173

Figura 4: Território perdido para o Chile, na Guerra do Pacífico

Fonte: FREIRE. E. M., 2008, a partir de MESA, J. GISBERT, T. GISBERT, C.


História de Bolívia. La Paz: Ed. Gisbert, 2003.

e instruído a ‘limitar-se a informar o governo Tal conflito tem sua origem ligada à
imperial do que for ocorrendo’. A idéia dessa mundialização do capitalismo fundamentada na
confederação, no entanto, não prosperou.” Segunda Revolução Industrial, que passou, a
partir da segunda metade do século XIX, a utilizar
de maneira crescente a borracha, seja para a
A Questão do Acre produção de pneus seja na fabricação de correias
para máquinas e outros artefatos industriais. O
Em 1900 eclodiu a rebelião no Acre, que
látex, matéria-prima da borracha, naquela época,
se prolongou por três anos e, ante a ameaça de
apenas era encontrado na parte sudoeste da
uma intervenção direta do governo brasileiro, foi
floresta equatorial amazônica, dividida entre a
firmado entre Bolívia e Brasil o Tratado de
República da Bolívia e o Império brasileiro.
Petrópolis (1903), no qual a Bolívia cederia o
território do Acre ao Brasil em troca de dois Até o final do século XIX, a fronteira entre
milhões de libras esterlinas e o governo brasileiro Brasil e Bolívia foi alvo de constantes embates
se comprometeria a construir a estrada de ferro entre os dois países. Segundo SANTOS (2002, p.
M ad ei ra -M a moré , pa ra supe ra r o t re cho 103), vários insucessos marcaram a tônica das
encachoeirado do rio Madeira, possibilitando o negociações bilaterais como a missão de Duarte
acesso das mercadorias bolivianas aos portos da Ponte Ribeiro (1851-1852) e a tentativa de
brasileiros do Atlântico (inicialmente Belém do João da Costa Rego Monteiro em 1860. Esse
Pará, na foz do rio Amazonas). problema só seria resolvido com o Tratado de
174 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, 2009 REYES, F.S.

Am izad e, Li mit es, Nav eg ação, C omé rcio e Para ocupar a área, o governo boliviano
Extradição, assinado no dia 27 de março de 1867. fechou um acordo, em dezembro de 1901, com a
Mesmo favorecendo a Bolívia e sofrendo duras empresa The Bolivian Syndicate of New York City
críticas no Brasil, nas palavras de Duarte da Ponte in North America, cujo presidente indicado era o
Ribeiro, pois contrariava o princípio do ut i filho de Theodore Roosevelt, o novo ocupante da
possidetis, defendido pelo Brasil, estava acertada Casa Branca.
a fronteira entre os dois países.
Nas palavras de DORATIOTO (1994, p. 77):
Novos conflitos vieram a acontecer na
“ um a em pr esa e st ra ng ei ra , o Bol iv ia n
última década do século XIX em função de
Syndicate. O Sindicato, como essa empresa
problemas na demarcação dos marcos fronteiriços
ficou conhecida, era formado por firmas
entre os dois países, principalmente no que tange
inglesas e norte-americanas. Ele recebeu
à definição dos limites entre os rios Madeira e
a ut or izaçã o de L a Paz p ar a e xp lora r e
Javari.
administrar o território acreano, podendo nele
Neste ínterim milhares de brasileiros, arrecadar impostos, organizar polícia, manter
vindos principalmente do nordeste, já ocupavam tropas e barcos de guerra. Enfim, a Bolívia
uma e xt ensa ár ea d e te rra s at é entã o praticamente transferia sua soberania (no Acre)
pertencentes à Bolívia, atrás de trabalho nos para uma empresa privada”.
seringais do local.
Em 19 02 , e m função d a s me di da s
De acordo com SENA (2002, p. 6), a draconianas impostas pelo governo boliviano,
questão dos marcos fronteiriços só se resolveria e cl od e uma nova r eb el iã o d e brasi le ir os,
em 23 de setembro de 1898, depois de três anos comandada pelo ex-militar José Plácido de Castro
de negociações, quando o Brasil reconhecia que e com o apoio do presidente do Amazonas. De
o território de Aquiri seria definido pela Linha acordo com SENA (2002, p.13), o grupo de cerca
Cunha Gomes, considerando-o boliviano. de oitocentos homens comandados por Plácido
de Castro expulsou tropas bolivianas estacionadas
Apr ov ei ta nd o o acord o, o m inistr o
no Acre, expulsou da área a diretoria do Bolivian
boliviano José Paravicini fundou o povoado de
Syndicate para Belém, no Pará, e decretou a
Puerto Alonso, além de legislar sobre a navegação
segunda independência do Acre.
d os r ios d a re gi ão, e st ab el ece nd o ta xa s
aduaneiras e impostos de comercialização. Para reprimir os sublevados, o presidente
da Bolívia, general José Manuel Pando prepara
Tais atitudes do representante boliviano
pessoalmente uma pequena tropa para marchar
não foram aceitas pelos cerca de 60 mil brasileiros
contra os brasileiros.
residentes no Acre e, em 14 de julho de 1899, o
espanhol Luiz Galvez Rodriguez de Arias, a soldo N esse conte xt o de cr ise, a ssum e o
do presidente da Província do Amazonas, Coronel Ministério das Relações Exteriores do Brasil o
Ramalho Júnior, declara o Estado Independente monarquista José Maria da Silva Paranhos Filho,
do Acre, solicitando sua anexação ao Brasil, o Barão de Rio Branco que
porém, tal proposta foi recusada pelo governo
“Inverteu a política seguida pelo Brasil, de
brasileiro. Tal aventura durou até 9 de março de
reconhecer como indiscutível a soberania
1900, quando uma coluna militar organizada pelo
boliviana sobre o Acre. Rio Branco declarou o
governo brasileiro terminou com Estado recém-
território zona litigiosa, lembrando o artigo XIV
fundado e devolveu-o para a Bolívia.
do acordo de limites de 1867, o qual afirmava
Batalhas foram travadas entre exércitos que ‘se no ato da demarcação ocorrerem
pa rti cular es or ganiza dos p elos “ba rõe s da dúvidas graves, provenientes de inexatidão do
borracha” e o exército boliviano, porém, sem presente tratado, serão estas dúvidas decididas
intervenção do exército brasileiro. amigavelmente por ambos os governos’. Rio
As perdas territoriais do Estado Boliviano (1825-1935), pp. 161 - 181 175

Branco passou, então a reclamar da Bolívia o coube, na região amazônica, um trecho de


território ao norte do paralelo 10 graus 20 2296 km², situado entre os rios Abunã e
minutos.” (DORATIOTO, 1994, p. 78). Madeira, obtendo acesso, assim, ao oceano
Em fevereiro de 1903, o presidente Atlântico, mediante a navegação do rio
brasileiro Rodrigues Alves deu permissão para o Amazonas e seus afluentes. O corredor
deslocamento de tropas brasileiras para a área amazônico, nas palavras de Bradford Burns,
em litígio. Nesse cenário, o Barão de Rio Branco ‘deu maior facilidade de manobra à Bolívia
par te p ara as negoci açõe s com o gove rno em suas relações com a Argentina e o Chile,
boliviano. Rio Branco tratou de cuidar para que o ao mesmo tempo que a ligava ao Brasil ainda
Bolivian Syndicate não tivesse participação nas mais intimamente’. Na região platina foram
negociações. Para tanto, o governo brasileiro transferidos à soberania boliviana 723 km²
pagou para essa empresa, segundo DORATIOTO sobre a margem direita do rio Paraguai,
(1994, p. 78) a importância de 110.000 libras dando ao país outro acesso ao Atlântico, além
esterlinas para renunciar a quaisquer pretensões de 194,7 km² de outras pequenas parcelas
no Acre, vale salientar que tal empresa não havia de terra. Por não haver equivalência nas
feito investimentos na área. áreas transferidas, o Tratado de Petrópolis
determinou que o Brasil pagasse dois milhões
O acordo entre os dois países foi alcançado de libras esterlinas à Bolívia. Foi estabelecido
em 17 de novembro de 1903, na assinatura do também que o Brasil construiria entre os rios
Tratad o d e Petrópol is. Sob re o Tratado de Madeira e Mamoré uma estrada de ferro que
Petrópolis, DORATIOTO (1994, p. 79) escreveu que permitiria à Bolívia ter acesso ao oceano
“por esse tratado o Acre, em um total de Atlântico através da região amazônica.”
191.000 km², tornou-se brasileiro. À Bolívia (Figura 5).

Figura 5: Território perdido para o Brasil, na Guerra da Borracha

Fonte: FREIRE. E. M., 2008, a partir de MESA, J. ; GISBERT, T. e GISBERT, C.


Historia de Bolívia. La Paz: Ed. Gisbert, 2003
176 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, 2009 REYES, F.S.

De acordo com dados extraídos do sítio trabalhadores de várias partes do mundo foram
do Museu Paulista engajados, dos quais aproximadamente 6.000
faleceram no local. Ironicamente, a ferrovia
“O projeto de construção da ferrovia Madeira
Madeira- Mamoré entra em funcionamento no
– Mamoré encerra um dos episódios mais
ano em que tem início a derrocada da produção
significativos da história da ocupação da
de borracha nacional no mercado mundial. Mais
Amazônia e tentativa de integrá-la ao mercado
tarde, a opção de Juscelino Kubitschek pelo
m undi al a t ra vé s da come rcia l ização d a
i nv esti me nt o e m rodovi as como v ia d e
borracha. A intenção do projeto era estabelecer
integração nacional se concretiza na região
a ligação entre as regiões produtoras de látex,
nortista com a inauguração da estrada ligando
nas proximidades dos rios Madeira, Mamoré,
Cuiabá a Porto-Velho, em 1960. Teve início,
Guaporé e Beni (este último na Bolívia). As
então, a fase de sucateamento e abandono da
primeiras tentativas, datadas ainda da Segunda
f er rovi a. Em 1 97 2, el a foi t ot al me nt e
metade do século XIX, fracassaram ou por falta
desativada e seus arquivos incinerados.”5
de verbas ou por falta de infra-estrutura
possível, a partir de 1907, graças à experiência
d a comp anhi a a me ri ca na M a y, J ek yl l &
A Guerra do Chaco
Randolph, que já desfrutava de considerável
Know-how na área, em virtude de projetos Foi na Guerra do Chaco ( Figura 6),
arregimentação maciça de mão-de-obra. Por triângulo formado pelos rios Paraguai, Pilcomayo
esta razão, entre 1907 – 1912, período de e Parapetí, desenvolvida contra o Paraguai, entre
construção da ferrovia, cerca de 30.000 os anos de 1932-1935, que a Bolívia conheceu

Figura 6: Território perdido para o Paraguai, na Guerra do Chaco

Fonte: FREIRE. E. M., 2008, a partir de MESA, J.; GISBERT, T. e GISBERT, C.


Historia de Bolívia. La Paz: Ed. Gisbert, 2003.
As perdas territoriais do Estado Boliviano (1825-1935), pp. 161 - 181 177

uma de suas piores derrotas internacionais. De diplomáticas com o Paraguai, depois de um


acordo com ANDRADE (2007, p. 33), na disputa pequeno desentendimento sobre a posse de uma
por essa inóspita área, o exército boliviano, laguna na fronteira entre os dois países.
treinado por ex-oficiais prussianos, perdeu mais
ANDRADE (2007) enfatiza que em julho
de 50.000 soldados
de 1932, quando a guerra se iniciou, o exército
Na análise de DORATIOTO (1994, p. 83), boliviano, formado principalmente por índios e
a necessidade da posse do território do Chaco mestiços pobres, começou a enfrentar grandes
torna-se fundamental para a Bolívia em função dificuldades. Os soldados bolivianos eram em sua
da perda do seu litoral para o Chile, na Guerra do maioria acostumados a viver nas terras frias e de
Pacífico. A planície do Chaco permitiria acesso ao pouco ar dos Altiplanos Andinos. Eles foram
r io Parag ua i e d aí a o r io d a Pra ta e , por obrigados a lutar numa região inóspita, seca e
conseguinte, ao Oceano Atlântico. arenosa. A resistência física mostrou ter um valor
muito maior à capacidade militar, ao tamanho do
A tentativa de delimitação fronteiriça entre exército ou ao seu treinamento. As regiões onde
os dois países levou a pequenos confrontos entre começaram os combates eram distantes das
os dois países, como em 1927, porém, mesmo principais cidades bolivianas, não existiam
com a mediação da Argentina, em 1928, Bolívia estradas e era difícil chegar água e alimentos para
e Paraguai não chegaram a um acordo sobre as os soldados.
fronteiras. As relações diplomáticas entre os dois
países foram rompidas em função de um ataque E nessa s cond içõe s, de sd e ce do os
parag uaio a uma forti ficação boliviana em paraguaios superaram em capacidade militar o
dezembro de 1928. Os dois países aceitaram a exército inimigo. Ao contrário dos bolivianos, os
mediação da Conferência Pan-Americana de paraguaios, mesmo em número inferior, viviam e
Conciliação e Arbitragem que, segundo Doratioto, conheciam melhor a região e estavam mais
propôs a soberania do Paraguai no Chaco Boreal próximos de suas cidades e de seus pontos de
e concedia à Bolívia o porto da Baia Negra. Tal abastecimento. Assim, ficaram numa situação
solução foi rejeitada por ambos os países. mais vantajosa que a dos bolivianos para a luta.
O que o governo boliviano esperava que fosse
A economia boliviana entrou em um forte uma rápida guerra de conquista, tornou-se um
p roce sso de de te ri oração, i mp acta da , pesadelo. Milhares de soldados morreram de sede
principalmente pelos efeitos da crise econômica e d e fom e a cente nas d e qui lôme tros dos
de 1929. De acordo com dados coletados em principais centros econômicos da Bolívia. A
GUMUCIO (1996, p. 35), o principal produto de situação tornava-se cada vez mais desesperadora
exportação da Bolívia naquele período era o para as forças militares do altiplano. ANDRADE
estanho, cuja tonelada custava, em 1928, 225 (2007, p. 32) salienta que:
li bras. Em funçã o da cri se econômi ca d o
ca pit ali smo, e m 1 932 o pr eço do estanho “Em 25 de novembro de 1934 o presidente
despencou para 118 libras. Nesse ano, o principal Daniel Salamanca foi deposto por oficiais do
grupo mineiro boliviano (Grupo Patiño) reduziu ex ér ci to e m pl eno d esenvolv im ento d as
seu quadro de funcionários de 7000 empregados operações militares, quando tentava mais uma
vez trocar a chefia do alto comando. O governo
para apenas 2000.
foi entregue ao vice-presidente Tejada Sorzano
Em março de 1931 Daniel Salamanca, q ue t ra tou d e im ed i at am ent e inicia r
r ep re se nta nt e da ol ig ar q ui a e do ca pi ta l conversações e assinar a paz com o Paraguai
internacional, assume a presidência da Bolívia. em 14 de junho de 1935. A Bolívia terminava o
Nas ruas, as greves e movimentos de estudantes conflito deixando mais de 65000 soldados
aumentavam, exigindo melhoria das condições de mortos, pelo menos 240 mil quilômetros
vida. No dia 1º de julho de 1931, o presidente quadrados de território para o Paraguai e a
Daniel Salamanca voltou a romper relações economia nacional destroçada”.
178 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Edição Especial, 2009 REYES, F.S.

Assim como na Guerra do Pacífico, entra imprensa e nos meios diplomáticos, afirmando
e m di scussã o se a Guer ra do C ha co t ev e que a Standard Oil quer um oleoduto para
interesses imperialistas, haja vista que na área exportação e, para conseguí-lo, está armando
em disputa, foram descobertas algumas jazidas a Bolívia para uma guerra de conquista de
de petróleo e a posse dessas jazidas motivou o territórios paraguaios no Chaco, por onde
desencadeamento da guerra. Eram as disputas passaria esse oleoduto. A Standard Oil, da
entre as empresas petrolíferas. Seguindo esta mesma forma, alimenta as intrigas de que a
linha de raciocínio estão Omar Díaz Arce e Júlio Royal Dutch Shell, aliada dos interesses
José Chiavenato. Para esses autores, a Standard argentinos, pretende tomar vastas regiões do
Oil of New Jersey (atual Exxon), representando o Chaco, chegar ao sopé dos Andes e apossar-
imperialismo estadunidense, insuflou a Bolívia e se das áreas petrolíferas bolivianas, que
a Royal Dutch Shell, representando o imperialismo passariam a pertencer à Argentina e seriam
inglês, aliou-se à Argentina, que dominava o exploradas pela Shell”.
Paraguai. Ambos armaram e empurraram o
Chiavenato cita o senador estadunidense
Paraguai para a guerra. “Não se pode explorar o
Huey Pierce Long que, em maio 1934, denunciou
p et róle o se m contr ol ar os g ov er nos dos
ao congresso dos Estados Unidos da América que
r espe ct i vos pa íse s onde se v ai b uscá- lo”
um empréstimo realizado à Bolívia em 1928,
(CHIAVENATO, 1979, p. 106). De acordo com
denominado Dillon Reed, no valor de 23 milhões
essa linha de raciocínio, a Standard Oil pretendia
de dólares, só se tornou possível graças ao aval
construir um gasoduto, que cortaria o território
da Standard Oil. A maior parte do dinheiro foi
paraguaio, para a exportação de seu petróleo
dirigida para a compra de material bélico, usado
explorado em território boliviano, porém, o
na guerra contra o Paraguai. Pouco tempo depois,
Paraguai negou-lhes a licença de construção do
em 10 de setembro de 1935, o senador Long foi
gasoduto, atendendo aos interesses da Royal
assassinado a tiros em frente ao congresso em
Dutch Shell que, por sua vez, queria apoderar-se
Washington.
dos poços bolivianos.
Zavaleta Mercado, por outro lado, sustenta
Para corr obora r com e st a te se ,
que, apesar da Argentina apoiar o Paraguai com
CHIAVENATO (1979, p. 108) cita uma afirmação
alimentos, armas e munições e a Royal Dutch
de Libório Justo, filho do então presidente Justo,
Shell ter bastante interesse na Argentina, os
da Argentina:
interesses comerciais eram bem maiores que
“Na Bolívia, onde domina o capital norte- desentendimentos fronteiriços, pois a Standard
americano, a Standard Oil necessitava de uma Oil, a partir de seus campos na Bolívia, exportava
saída para o rio Paraguai para seus poços de petróleo, via um oleoduto clandestino para a
petróleo no leste daquele país. Por trás do Argentina. Portanto, se a Standard Oil realmente
Paraguai, a companhia inglesa Royal Dutch tivesse interesse na vitória da Bolívia, minaria
tratou de evitá-lo. Essa foi a causa do conflito qualquer tentativa de compra de seus produtos
que tem ensanguentado o continente”. por parte de um país que apoiava o inimigo
Paraguai. Quando o governo boliviano descobre
Ainda segundo CHIAVENATO (1979,
o oleoduto clandestino, determina a imediata
p. 108),
nacionalização da Standard Oil.
“Aí está a raiz da guerra: os trustes petrolíferos
GUMUCIO (1996, p. 48) também descarta
j og am com ar gume nt os e int ri ga s que
a participação das companhias de petróleo na
envolvem cada uma das duas companhias,
disputa pelo Chaco. Ele escreve que a Bolívia
apresentando a rival como vilão da história. A
Royal Dutch Shell - de quem a Argentina é “... no logró tampoco el único objetivo que
indisfarçável aliada e o Paraguai um passivo habría paliado em cierta medida la carnicería:
instrumento - fomenta as acusações pela um puerto sobre el rio Paraguay para romper
As perdas territoriais do Estado Boliviano (1825-1935), pp. 161 - 181 179

la angustiante asfixia de la mediterraneidad contingentes do exército boliviano. A guerra do


impuesta por Chile desde 1879”. Chaco foi verdadeiramente uma guerra nacional,
que envolveu pessoas de todas as partes da Bolívia,
A nacionalização da empresa é encarada
principalmente indígenas e mestiços pobres. Vale
por CHIAVENATO (1979) como uma represália, por
destacar o que escreveu URQUIDI (2007, p. 76)
parte do governo boliviano, pois a Standard Oil
recusou-se a emprestar mais dinheiro para uma “O Chaco simboliza mais que a fragilidade de
guerra, já em seus estertores, com um discurso um projeto estatal. A derrota e a perda do
de que as riquezas do país devem ficar em benefício território do Chaco desencadearam nas colunas
da Bolívia e não de uma companhia estrangeira. do exército as bases contemporâneas do
nacionalismo boliviano, uma vez que, no
Ao término da Guerra do Chaco, grandes cenário da guerra e na centralização das ações
transformações ocorreram na Bolívia, segundo pelo exército, juntaram-se pela primeira vez
VIOTTI (2000, p. 188): os se tore s di spe rsos d a socie da de , que
“No plano político, resultou na superação do comportavam a essência da nação: a pequena
sistema vigente desde 1880, com a crise tanto burguesia urbana, os artesãos, os camponeses
dos governos civis quanto dos partidos políticos e os mineiros.
tradicionais. No plano econômico, a Guerra do Diferentemente do que ocorreu na Guerra do
Cha co, associada aos efeit os da Gra nde Pacífico, quando a participação estatal e a
Depressão, marcou o fim da expansão da convocação social boliviana foram escassas,
i nd ústr ia m i ne ir a, cuj a p roduçã o e para o Chaco acudiu gente de todos os cantos
produtividade começaram a declinar. Com o do país, que se reuniu e se reconheceu como
início do declínio da mineração, passaram a pe rtencent e a um mesmo t erri tór io q ue
adquirir maior importância as riquezas do precisava ser defendido.
Oriente boliviano, especialmente o petróleo. Por isso, a guerra, mais do que a derrota do
Estado oligárquico, significou o encontro das
Esta derrota não foi apenas militar, mas massas dispostas a construir um sentimento
expressou também a crise do próprio Estado naciona l a pa r ti r da úni ca inst it ui çã o
boliviano, na sua forma historicamente dada de centralizadora que era o exército.”
imposição do metabolismo social, marcada pela
exclusão política das camadas populares. A Concretamente, a população passa a
condução da guerra – marcada pelo desperdício reivindicar uma participação maior no destino
de vidas humanas - expressou a velha lógica dessa sociedade, a qual o Estado da elite boliviana
criolla de abusar das populações indígenas e não se preocupou em se tornar Nacional, até
mestiças. O morticínio apenas havia passado das mesmo para melhor exercer suas condições de
minas para os canhões. Por outro lado, a Guerra hegemonia. Portanto, a perspectiva “nacional”
d o Chaco m ar cou o sur gi me nto d e um a (incluindo as lutas contra o capital e o resgate da
consciência nacional. cidadania da população indo-americana) passa a
pertencer às lutas das massas populares, e esta
As disputas anteriores, motivadas por novos experiência de luta passa a moldar o bloco
espaços econômicos, foi alimentada por pequenos histórico de camponeses e operários.

Notas
1 4
www.ine.gov.bo (Acessado em 14 de outubro de 2008). www.ine.gov.bo (Acessado em 14 de outubro de
2
2008).
INE, VAI, UNFPA.- http://www.ine.gov.bo Acesso 1de
5
novembro 2007) www.mp.usp.br/mamore (Acessado em 19 de
3
outubro de 2008).
O nome inca refere-se a império e não, em termos
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Trabalho enviado em outubro de 2009

Trabalho aceito em dezembro de 2009

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