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coleção

artefíssil

ANDREAS HUYSSEN

Culturas do
passado-presente
modernismos, artes visuais,
políticas da memória

TRADUÇÃO

Vera Ribeiro

(OnTRAPonTO
© Andreas Huyssen, 2014
© William Kentridge com referência a suas imagens
© Nalini Malani com referência a suas imagens

Direitos adquiridos para o Brasil por Contra ponto Editora Ltda.

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Coordenação editorial e preparação de originais: Cesar Benjamin


Revisão técnica: Tadeu Capistrano
Revisão tipográfica: Tereza da Rocha
Projeto gráfico: Aline Paiva e Andréia Resende
Capa: Andréia Resende e Clarice Pamplona
Diagramação: Aline Paiva

Coleção dirigida por Tadeu Capistrano


ESCOLA DE BELAS ARTES I UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Ia edição: maio de 2014


Tiragem: 2.000 exemplares

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

H989c Huyssen, Andreas, 1942


Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da
memória / Andreas Huyssen ; [coordenação Tadeu Capistrano) ; tradução
Vera Ribeiro - 1. ed. - Rio de Janeiro: Contra ponto : Museu de Arte do
Rio, 2014
216 p. : il.; 25 cm (ArteFíssil; 9)

ISBN 978-85-7866-098-7

1. Modernismo (Arte). 2. Arte moderna. 3. Artes - Aspectos políticos.


4. Arte e sociedade. 5. Política e cultura. I. Título. 11.Série

14-11508 CDD: 306.47


CDU: 316.74:7
Sumário

Apresentação 11

Geografias do modernismo em
um mundo globalizante 19

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 39

o teatro de sombras como veículo da memória


em William Kentridge e Nalini Malani 57

o jardim como ruína 83

A nostalgia das ruínas 91

Figuras da memória no correr do tempo:


o modernismo e o após-guerra 115

A cultura da memória em um impasse:


memoriais em Berlim e Nova York 139

Resistência à memória:
usos e abusos do esquecimento público 155

Usos tradicionais do discurso sobre


o Holocausto e o colonialismo 177

Os direitos humanos internacionais e


a política da memória: limites e desafios 195
Guillermo Kuitca: pintor do espaço

»> \ c

l.~r-J: J

~~r J'O
"cY}
~
r Guillermo Kuitca é um modernista posterior ao~ ernismo, sem ser pós-mo-
(fe;nista; um artist u onfia na intur~mo modo de c;ühêCêr o -mu~do
L_através_ d- forma estética estrnrnr~da É umpintor poste~io~ à -pintura, tradU=-
zindo explosões subjetivas neoexpressionistas e uma arte conceitual; é argentino
à maneira de Borges e do tango, mas sem estampar uma carteira de identidade
latino-americana; é um artista internacional que decidiu continuar a trabalhar
em sua cidade natal, Buenos Aires, em vez de levar uma vida de exílio nas me-
trópoles do norte em que seu trabalho fez sucesso. São contradições e mais
contradições, todas constitutivas de sua produção artística, sumamente versátil.
As múltiplas séries de pinturas, desenhos e objetos que ele produziu nas
últimas duas décadas e meia, e que o catapultaram à primeira fila de artistas
da América Latina, são instigantes pela intensidade serena de suas formas
I espaciais, suas cores vibrantes e seu uso deliberado e sugestivo da repetição e

\ da transformação seriada. Apesar das muitas influências literárias, musicais,


teatrais, filosóficas e visuais em seu trabalho - e ele absorve a arte produzida
em outros lugares com a mesma voracidade que seu conterrâneo Borges -,

r. ua produção é inconfundivelmente sua, interligada pela convicção de que a


pintura é "um meio muito ~e~smo tempo um beco sem saída e
um lugar de novas possibilidades.; 1 Kuitca reconhece a natureza precária da
pintura como meio primário, num mundo mercantilizado e saturado de ima-
f gens. Mas, em vez de abandoná-Ia por completo, trabalha para transformá-

I ,-Ia.,Para Kuitca, que evita exp icitamente arte polít~a pintura não é um
J

meio de resistência - resistência tantas vezes reivindica da por movimentos


_antipictorais desde a década de 1960. É, antes, um meio resistente, isto é_
durável, que sobreviverá às muitas de~h'tra ~s de sua morte, tendo sua per-
~istência assegurada, paradoxalmente, pelo fato de já não ocupar o centro do
palco nas artes plásticas al convicção talvez seja mais fácil de manter e de-
fen~r na periferia do cenário artístico internacional do que na agitação dos
centros artísticos das metrópoles, movidos pelo mercado. Ela dota a obra de
Kuitca, fria e formalmente rigorosa como parece, de certa melancolia e fk
--
uma argúcia estética parcialmente si~a.
-- --
Na Argentina, o legado do mo-
dernismo também tem um peso maciço)

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 39


o avanço inovador de Kuitca, geralmente identificado com sua série de
1982 intitulada Nadie olvida nada, resultou de seu encontro com o teatro de
dança de Pina Bausch, em 1980. Embora ele pintasse desde a infância - fez sua
primeira exposição aos treze anos -, a experiência com a obra de Bausch em
Buenos Aires e, mais tarde, em Wuppertal, palco doméstico da coreógrafa e
bailarina, levou-o num choque a acreditar que "no teatro se pode fazer tudo,
na pintura, nada"." Se o teatro de dança de Bausch, sumamente plástico e ex-
pressivo, constituiu uma revelação, também desencadeou em Kuitca a percep-
ção da crise da pintura, ironicamente, justo na época em que essa arte viven-
ciava um grande ressurgimento, com os neoexpressionistas europeus do início
( da década de 1980 - Francesco Clemente, Georg Baselitz, Sigmar Polke, An-
selm Kiefer. Entretanto, nada poderia ter estado mais distante de Kuitca do
que a preocupação explosiva e amiúde indulgente com a expressão pictórica e
com a expressão pessoal daqueles anos. Sua trajetória seria diferente. Na épo-
ca, alienado da arte política argentina que protestava contra a ditadura mili-
tar, ele apostou todas as suas fichas no espaço teatral e até participou de pro-
duções no centro cultural La Recoleta, em Buenos Aires.
Todavia, não tardou a trocar o teatro pela pintura. Mas, no cômputo final,
foi o espaço limitado do teatro que o transformou no pintor que conhecemos.
Dado a lembrar a frase de Isadora Duncan - "Eu poderia fazer aquela cadeira
dançar" - ou a afirmação de Eisenstein de que seria capaz de filmar O capital,
j de Karl Marx, Kuitca é um pintor que visa exatamente à mescla de concretude
e abstração, figuração ~tru~ que Duncan e Eisenstein tinham em mente.
Eu sugeriria que seu projeto tem no âmago algo tão impossível quanto fazer
, uma cadeira dançar ou filmar O capital: em sua tentativa de transformar a
I pintura, ele se torl2ou um pintor do espaço.

- mbo~a faça do espaço o objeto da pintura, ele não o faz de maneira mi-
mética, representando lugares concretos e visíveis, mas empregando represen::
" !açõe~ formalizadas do espaço: mapas, módulos, plantas baixas d;teatro-;-;u
~ de apartamentos, mapas urbanos e mapas rodoviários impressos em superfícies
t de colchões. A pintura como cartografia revela a ambição epistemológica do
seu trabalho, que almeja compreender nosso mundo, ao mapear sua realidade
fugidia. Os mapas representam poder, conquista e controle, bem como orien-
tação. O objetivo dos experimentos cartográficos de Kuitca, porém, é tudo,
menos contribuir para a linguagem do poder, tão central na criação de mapas.
(~ mapas, ao contrário, abrem espaços imagi~árlos, instauram uma espécie
\ de desvio da ideia aceita do mapa m vez de simplesmente oferecerem orienta-
ção, tendem a colocar o espectador num limbo espacial e temporal. Os mapas,
é claro, tinham sido um tema central nos textos de Borges, e há uma grande

40 Andreas Huyssen
afinidade eletiva entre ele e Kuitca. Os mapas e o mapeamento também tinham
surgido como um grande tema do discurso pós-modernista da década de 1980,
com sua afirmação exagerada de que o pós-modernismo privilegiava o espaço,
enquanto o modernismo privilegiava o tempo - um binário reducionista que a
obra de Kuitca mais contribui para questionar do que para confirmar.

r Durante séculos, a pintura dependeu de paisagens, da arquitetura, de inte-


riores e de outros locais como seus temas. O espaço representado era mimético,
preso à representação de lugares concretos, ou totalmente abstrato, como na
obra de Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich ou Piet Mondrian, para os quais
somente a tela era o espaço da exploração pictórica. Mas Kuitca, por boas ra-
zões, recusa-se a ser chamado de "abstracionista": "Os dia ramas não são uma
abstração nem uma representação bem-sucedida", disse numa entrevista, com
~ razão.' ?ua pintura contorna o discurso que joga a figuração contra a abstra-
ção, a resença visual da ilusão contra sua ausência, resultando num novo tipo
~ --
de imagem, que se mantém representativa de um modo não mimético, fria, mas
---

Ninguém esquece nada

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 4]


sensual, geométrica, mas com cores delirantes, conceitualmente rica, mas longe
do conceptualismo, ~or ainda se orientar para a captação de formas de expe-
riência e para o conhecimento do mundo através de imagens pintadas. Dito em
;;~s diferentes, a obra de Kuitca, centrada em mapas e diagramas, dá-no~
uma g~a~ca o espaç~ em vez de um léxico de espaços ou um voc~bclário-
de lugares. Assim, ela vai além da abstração, sem abraçar a figuração e a repre-
-;entação tradicionais. E vai além da representação, sem esposar a abstração
expressionista ou puramente geométrica.
Nadie olvida nada é a semente da qual brotaram todos os seus trabalhos
posteriores. Trata-se de uma série de pinturas em acrílico sobre madeira, cada
qual exibindo uma cama vazia, toscamente desenhada, com pequenas figuras
humanas cujo contorno mal se distingue, postadas a certa distância da cama e
vistas apenas de costas. A cama e as figuras parecem flutuar no espaço vazio,
que é colorido em tons vivos de vermelho, amarelo ou marrom. Somente o for-
mato e a posição da cama sugerem uma perspectiva. Afora isso, há um lirnbo
e acial. As figuras são predominantemente femininas. Numa das imagens, uma
mulher é levada para longe por dois homens no centro do quadro, com outras
figuras espalhadas pelo espaço vazio e um pedaço de cama emergindo de uma
mancha cinza-esbranquiçada de tinta perto da moldura. Em outra tela, uma fi-
leira de mulheres, todas vistas de costas, alinha-se horizontalmente a meia altura

-
do quadro, como se elas estivessem prestes a ser executadas. Todos os trabalhos
( dessa série exsu..Qamum senso de alienação, de deslugar, de imutabilidade.
Se a cama costuma- - --
ser percebida como lugar do nascimento, da sexualida-
de e da morte, essencial para qualquer concepção de intimidade e família, uma
interpretação psicanalítica pareceria sugerir-se. Nesse caso, Nadie olvida nada
poderia ser o diagrama de um espaço e um processo de memória e recalcamen-
to que é central para o inconsciente freudiano. Apesar de plausível, tal leitura
não basta. O ano dessa série e a "absorção absoluta" da qual ela emergiu são
significativos." Numa entrevista, Kuitca disse: "1982 foi um ano muito febril
na Argentina, com a ditadura entrando em colapso. A Guerra das Malvinas
introduziu a ação coletiva na cultura.I" Ação coletiva é algo que essa série de
pinturas não foi. Mas, e se a intensidade do momento histórico houver tido
algo a ver com a "concentração absoluta e compromisso absoluto" e com o
"momento quase milagroso" que assistiu ao nascimento da sériei"
Ninguém esquece nada: quem seria o "ninguém" do título? O que é o
nada? A que se refere o esquecimento? Fica claro gue essa série de pinturas é
!].arcada por uma resistência ao esquecimento. Não é de admirar que tenha
sido interpretada em relação ao terror perpetrado pela ditadura militar contra
sua população, de 1976 a 1983 - um tema central em muitas das principais ,

42 Andreas Huyssen
Ninguém esquece nada

I produções
-
artísticas da Argentina desde a década de 1980. Mas o enunciado
do título é uma simples declaração na negativa, e não uma exigência enfática,
como no relatório Nunca más, preparado pela comissão nacional de 1983 que
investigou os crimes do regime, depois de sua queda. Em sua continência lin-
guística e pictural, essa série ~ão seyr~ta para campanhas políticas nem para
j o discurso moralizante que viria a se tornar tão dominante na cultura interna-
cional da memorialização e do testemunho da década de 1990.
As cenas são rivadas: uma cama, figuras individuais. Mas, é claro, sabemos
co~o os espaços de intimidade resso~ nas ditadur;;'- reiteradamente invadi-
dos pela violência estatal. A ditadura anula a separação entre o público e o pri-
\ vado, quando as pessoas são arrancadas de suas camas e presas em suas casas,
~urante a madrugada) Vêm-nos à lembrança o quarto e as esculturas de móveis
de Doris Salcedo, mas, enquanto a violência é acentuada no trabalho dela com
peças de mobiliário (fragmentos de ossos incrustados, móveis violentamente
tirados uns nos outros), a série de Kuitca não fornece nenhuma pista desse tipo.
O nada capta a ausência, o vazio em que foram lançados os argentinos desapa-
recidosjÉscl implícita no- título, é claro, a ideia de que todos se lembram de
tudo. Mas tal afirmação é impossível, pois o que aconteceu com cada desapareci-
do no cativeiro não poderá ser lembrado enquanto permanecer não documenta-
do. De repente, há um significação adicional o fato de todas as figuras da série
• serem esquematicamente desenh-;da~e vistas de costa~. A ausência de rostos
.<..--- --- ---
aponta para o esvaziamento da individualidade pelo terrorismo de Estado E o
I

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 43-


nadie não são todos se recordando, de qualquer modo. Esses "ninguém" são
figuras que mal se deixam ver em seus contornos, ora traçados em branco, ora
tra~ados com simples linhas pretas, e sempre sem feições individualizadas.
fEm última instância, porém, o ninguém do título aponta para o própri?
( Kuitca ue é conhecido por evitar a ex ressão de suas emoções pessoais,
-----r'
como se ficasse escon ido atrás dessa palavra nadie, como fez o Ulisses de
Homero ao enfrentar a violência de Polifemo, dizendo chamar-se udeis, ou
seja, ninguém, para melhor escapar do destino mítico. De modo análogo,
Kuitca usa a autonegação do nadie como um meio de autopreservação estética
e política Ao afastar, linguística e picto~camente,~

Em termos
-- --
experiência subietiva e a,
representação objetiva do terrorismo de Estado, Q espaço imaginário da me-
~ mória - e a memória é sempre imaginada, não real - é mais bem reservado.
ais imediatos, essa negação do eu e da subjetividade situa-se
~um-;-l ga linha de tradição que vai de Franz Kafka a Samuel Be~É UQ1

f do r~des tr0l?0s do_modernismo. uitca serve-se conscientemente dele,


om isso dando forma visual, sutilmente, a um momento histórico muito espe-
cifico na Argentina - o fim antecipado da ditadura militar.
Quando Karen Wright lhe fez perguntas sobre o surgimento da cama como
um leitmotiv em 1982, Kuitca responde "A cama tornou-se um refúgio - um'"
( território." E, em seguida, eliminou qualquer leitura francamente política des-
sa peça, situando-a no contexto amplo de sua obra I}osterior e lendo-a, sim-
plesmente, em termos de espaço: rl/"~ /~ .....

{ , A cama é um palco. Em sua supicie é poss~ ;raçar uma linha. A cam~ \"
/" torna-se um apartamento. A cama é uma cidade. Em última análise, a cama C~
_~j, o teatro. No começo, ela aparece num q~ grande, num espaço amplo, ~
~ com pequenos objetos. A cama torna-se um modo de dispor o espaço."
/

A ne ação da expressão pessoal e da subjetividade franca tem uma resso-


( nâ . _biográfica e llma_dime~es!..~ica formal em Kuitca. Tal como Bor , (-
ele se identifica com o mundo e suas representações, livre das limitações impos-
tas pela política identitária, que é muito prevalente no mercado da arte:;Nasci-
f{dO em 1961 e tendo passado a vida inteira em Buenos Aires, ele produziu seu
trabalho formativo na época em que a nova pintura italiana e o novo eX2.res-
~ionismo alemão estavam em alta moda. Sua irritação ao ser rotulado de intor
argentino ou latino-americano, entretanto, é maior que a insatisfação de qual- -t'
quer artista por ser enquadrado num tipo único e por se tornar um produto
Padrão no mercado. Ao lhe indagarem sobre seu desejo de não ser catalogado
nem definido, ele disse: "No fim, este projeto muito ambicioso de não ser de

L
parte alguma é uma espécie de condenação à errânciaf
\
Dada a origem judaica

® Andreas Huyssen
de sua família, essa é uma clara referência a Ahasverus, o judeu errante. Seus
avós imigrantes vieram de Odessa, na Ucrânia, e a referência a Odessa aparece
várias vezes em seus primeiros quadros sobre o palco: ele incorpora uma foto
da famosa cena de O encouraçado Potemkin, de Eisenstein, na qual um carri-
nho de bebê rola escada abaixo. Essa referência evoca o tipo de violência polí-
tica - um dos temas do filme de Eisenstein - que forçara seus ancestrais ao
I exílio. É claro que seu comentário sobre o indivíduo condenado a ser errante o
!
recoloca imediatamente numa identidade, mas é a identidade de uma diáspora
na qual a segurança do lugar e o conforto da pertença são negados.
Ao mesmo tempo, sua fuga da identidade tem uma fonte mais contemporâ-
r nea nas revoltas políticas da Argentina. "A diáspora me parece uma imagem
perfeita do que conheço", observou ele à crítica Leah Ollmann. "Para mim, a
diáspora argentina foi muito mais importante que a judaica. Foram tempos
1 terríveis. Senti um ódio profundo da Argentina."? Apesar disso, ele permane-
ceu e continuou a trabalhar em Buenos Aires. Theodor Adorno definiu o exílio,
~ certa vez, dizendo que casa é o haver escapado uitca nunca foi para o exílio, - J
mas o projeto de sua pintura é fugir das fixações e determinações de lugar. As-
=- -
\ sim, ele encontra uma espécie de exílio imaginário em casa, enquanto seus
trabalhos são fisicamente exilados e encontram sua casa em galerias e museus
no exterior. Claramente, a predileção de Kuitca por um limbo espacial e tem-
poral, já muito pronunciada em suas primeiras grandes séries de quadros, não
é apenas uma idiossincrasia, mas uma rea ão consciente_à ex eriência históri- ,
(
'. ~o O paradoxo é que a ró ria dissolução do eSj:)açoe d~po, tão carac:.1
terística de sua obra, tem por base as experiências argentinas de imigração,
exílio político e desaparecimento. Não se escapa tão facilmente da identidade.
- O limbo espacial e a desorientação temporal são traços formais essenciais

'I dos escritos de Kafka e de Beckett, assim como da obra de Kuitca. E o que resta
de ois da evasão do lu ar é o es a o o es aço abstrato. "Meu jeito de conhecer
o mundo talvez resida nesse movimento em que o mundo é apagado."!' O apa-
gamento do mundo é algo que também vemos praticado nos escritos de Beckett e
de Kafka: o teatro progressivamente esvaziado de figuras, de enredo, de teatrali-
dade, do mundo, como em Beckett; a narrativa esvaziada de espaço definível, de
I heróis individualizados, de uma trama estável, como em Kafka. "O que você está
1 vendo?", pergunta Hamm em Fim de partida, de Beckett, quando manda Clov
, ( olhar pela janela. Clov responde: "Zero ... cadaverizado ... acabou tudo ... cinza ...
preto claro. ''1y'Ora, as imagens de teatros de Kuitca, centrais para seus trabalhos
do início da década de 1980 e, mais uma vez, da de 1990, não são cinzentas. São
explosivamente coloridas, a não ser pela última da série de 1995, que é um palco
azul-acinzentado e monocromático, cujo contorno mal chega a ser traçado - o

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 45


ponto final do minimalismo teatral. Mas, assim como Beckett ainda escreve pe-
ças que podem ser encenadas como um esplêndido teatro, em vez de se tornarem
meramente conceituais, a pintura de Kuitca, por mais abstrata que venha a ser,
nunca perde a ligação com seus referenciais: os mapas, os teatros, os tampos de
mesa. Depois de meados da década de 1980, não aparecem figuras h.umanas
i mas há um efeito figurativo a título de negação.Ü
'---- - - -
A principal exceção a esse afastamento da teatralidade figurativa encontra-
-se na série ro, como ... [Eu, como ...], de meados da década de 1980; mas até
;esses poucos "autorretratos" ne am a expressão essoal existencial e fazem o
pintor parecer tudo.unenos heroico - uma grande diferença dos neoexpressio-
nistas europeus do começo dos anos 1980, como Baselitz ou Kiefer, que se
_entregavam a autorrepresentações.
No fim da década de 1980 e início da de 1990, Kuitca deixou a representa-
ção do espaço teatral que tinha sido central para suas séries dos anos 1980 e,
em vez dela, passou a uma elaboração maior da cama como "marcação do es-
paço". Essa mudança encarna-se em várias séries de mapas de cidades, mapas
rodoviários e - talvez os mais famosos - mapas rodoviários pintados em col-
chões, num tipo de trabalho que combina a intimidade sensual da cama com a
1 representação abstrata de espaços distantes nos mapas. Também aí, sua prática
transformadora descortina espaços imaginários, como quando, em um mapa
da Polônia e em outro do México, todas as grandes cidades têm o nome de San
Juan de Ia Cruz, de modo que o viajante sempre chegaria à cidade de que partiu
- um tipo de pesadelo que conhecemos de histórias de Kafka em que a deso-
rientação espacial resulta das confusões entre proximidade e distância. Mas, à
parte o fato de deslocar o senso de dicotomia público/privado do espectador,
ao pintar mapas em colchões e, com isso, impor o espaço público ao privado,
os mapas rodoviários em si são muito menos elaborados que os de cidades. As
principais estratégias do estranhamento imaginário nos mapas rodoviários são
duas: primeiro, o uso de cores luminosas, brilhantes, para indicar as estradas,
combinadas com fundos texturizados e de cores escuras, que parecem ameaçar
os mapas de apagamento ou desaparecimento; e segundo, as grandes cidades,
com sua confluência de ruas' e avenidas, são comumente assinaladas pelos bo-
tões do capitonê do colchão, o que cria um efeito de constrição e pressão.
Os mapas urbanos de Kuitca, muito diferentes das pinturas de mapas de
( Gerhard Richter, tendem a incorporar uma forte dimensão alegórica. As ruas
-- -- - -
podem aparecer sob a forma de seringas - uma alusão à cultura urbana das
drogas e à crise da AIDS da década de 1980. Um mapa parcial de San Francisco
marca as ruas como ossos e, embora quase todos esses trabalhos venham rotula-
dos como Sin titulo, a relação entre a morte e os mapas torna-se poderosamente

46 Andreas Huyssen
San Juan de Ia Cruz

evidente num trabalho dividido em seis fileiras horizontais de três quadros cada
uma, sendo a fileira superior e a inferior cortadas ao meio pela moldura, cada
uma contendo um pedaço de mapa. Obviamente, o formato ecoa a organização
espacial dos mapas panorâmicos ou dos detalhes de mapas em guias de estradas
ou cidades, nos quais cada quadro seria numerado, assim remetendo o leitor
a outro mapa detalhado. A mescla de escuridão e luz nos quadros individuais
assemelha-se à estrutura dos vitrais de catedrais da Idade Média, mas a densi-
dade das linhas que designam as ruas ou estradas lhes confere a aparência de
estilhaços de vidro que simplesmente ainda não caíram de sua moldura. Esse
trabalho de 1992, quinquagésimo aniversário da conferência de Wannsee em

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 47


v c~ -~
)I ~ I a Solução Final dos nazistas foi oficialmente iniciada, é chamado de Kris-
Ítallnacht, a noite das vidraças quebradas - 9 de novembro de 1938, data que
~ assinala de forma abominável o caminho para Auschwitz. Não se trata de "arte
política" no sentido tradicional, mas de um trabalho que traduz em linguagem
(
plástica, de modo convincente, a lembrança de um momento histórico.
(9 questionamento pictórico ~a dico~omia público/privado, nos mapas e ~-
chões, é apenas uma forma do que talvez esteja no cerne do projeto de pintura
I de Kuitca - a representação da proximidade e da distância. Outr~ duas grandes
séries da década de 1990 - as plantas baixas e os diagramas de assentos de tea-
-;ç? /
t;; -= elaboraram esse projeto. É significativo que Kuitca tenha tomado o es
(
-~uitetônic..9 como tema em ambas as séries. Contudo, ele não está interesSadO\C
, nos prédios nem nos aspectos de construção da arquitetura. Em vez disso, en-
- ~
foca o vocabulário gráfico que representa o espaço antes de ele ser construído
(plantas de apartamentos) ou depois de pronto (projeto de distribuição cf~s-;;
sentos no teatro). O apagamento d..Qmundo surge aqui como um~gamento
- -- --
da própria arquitetura. Também comum às duas séries é a ausência de figuras
llUman~) A família que ocupa um apartamento fica apenas implícita, assim
como o público nos teatros. Como na Neufert Suite, trabalho posterior iniciado
em 1998 - uma série de quadros que trabalham com os módulos geométricos
de um famoso manual de arquitetura -fJsuitca solapa o ~n~onalismQ implícito

l~ material apresentad ~ --
no tema arquitetônico desses módulos, através de transformações imaginativas
- Espinhos e ossos são recorrentes nos contornos das
plantas baixas, enquanto palavras emolduram o espaço de um apartamento
em Gimme shelter [Acolha-me], de 1992{Çomparadas a~s quadros de ~trq,~
do começo da década de 1980, as plantas baixas marcam mais um passo na I

( trajetória de Kuitca para a redução de sua representação do espaç;-Por"""Ouro .


~ado, ~ ~ncolhimento radical para módulos e diagramas possibilita formas
inteira~ente novas de um jogo sugestivo com o material.
Em contraste com a arquitetura construída, ql!.eé necessariamentt:~creta_
e estável, as plantas de Kuitca exsudam umaG.i}itrariedade ref~rencial)14 que
abre os módulos a transforma ões imaginativas, nenhuma delas mais do que
f Coming Home [V~lta para casaf, d~Ess;trabalho é um esplêndido exem-
plo de como, de repente, de uma série de variações nas plantas baixas desponta
um conjunto de significados e de temas, criando um espaço imaginário pela
simples força de uma iluminação alegóric~. Coming Home, uma planta alonga-
da, organizada em perspectiva e que recua em azuis noturnos, escuros e mais
claros, da base do quadro para o alto da moldura, surge como uma espécie de
pista de pouso à noite; algumas pinceladas brancas assinalam o centro da pista,
enquanto o perímetro da planta/aeroporto é marcado por pontos brancos, regu-

48 Andreas Huyssen
I, __
Volta para casa
()~

( larmente espaçados, que sugerem iluminação. Os referenciais são duplamente


codificados pelo diagrama de um apartamento que, ao mesmo tempo, represen-
\, ta uma pista de aeroporto. O quadro tem uma força instigante, por causa da
superposição de .:.Eartamento~aero orto, espaço privado e espaço público,
l Jroximida~e Ia s..a~ e distância (a chegada de longe )..
~ Em contraste com a coloração intensa, mas sutil, de Coming Home e de mui-
tos trabalhos de Kuitca, a cor assume um caráter explosivo na série de plantas da
disposição dos assentos de Puro Teatro, de 1995. Vermelhos, azuis, verdes e
amarelos vivos, usados de forma monocromática ou combinados entre si, criam

Guillermo Kuitca: pintor do espaço 49


um puro teatro da cor. Kuitca revelou como deparou pela primeira vez com um
desses diagramas dos assentos na bilheteria do Covent Garden, em Londres."
Sua imaginação foi captada pelo fato de que tais dia ramas destinad~a permi-
tir que os compradores de ingressos escolham seus lugares, invertem a perspecti-
Va USUã[Em vez de~ncentrarem-; olhar no palco, os mapas mudam a dinâmica
e mostram como a plateia é vista do palco. Essa inversão do olhar possibilitou
uma forma inteiramente nova de pintar o teatro: ? teatro não como es a o de
representação, como havia aparecido nos primeiros trabalhos de Kuitca, mas
~m~aço ar uitetônico diagramaticamente representado e a ser ocupado por
\\ ,uma platéia, um úblico. Atores e público, é claro, estão ausentes dos diagrama-;,
II tal como das dezenas de quadros do teatro e da ópera criados por Kuitca desde
If meados da década de 1990. Alguns diagramas que ele usou são de teatros farno-
l sos porém muitos foram simplesmente tirados de materiais disponíveis. Para
reforçar a ideia de anonimato, a maioria das pinturas da série traz a etiqueta Sin
( titulo. A ideia não é focalizar a identidade do teatro, mas os modos como cada
I diagrama é colorido, inscrito e modificado pela mão do pintor.

Somente nos trabalhos a partir de 2002, mais ou menos, é que ele identifica
os teatros - quase todos, casas famosas -, o que sem dúvida aumenta a comer-
ciabilidade dessas pinturas. A denominação, nesse caso, caminha de mãos da-
das com a dissolução e fragmentação das imagens. Especialmente admirável é
uma série de trabalhos sobre teatros criada em 2005, em densas camadas de
diferentes materiais sobre papel, representando a Ópera de Paris em tons de
vermelho-escuro que sobem em zigue-zague, como se a casa estivesse pegando
fogo e ruindo sobre si mesma; os balcôes do Stage Theater de Nova York pin-
tados de preto acima da orquestra, esta em vermelho, desintegrando-se em um
sem-número de tirinhas de papel preto coladas no fundo de papel branco; e o
Festspielhaus de Bayreuth, que parece um núcleo brilhante de brasas em meio
a um fundo negro como piche. O tema da desintegração, da desarticulação, do
_desastre~e~a-se ~m todos os dez quadros da série~ a crescente obsessão
(
de Kuitca com Richard Wagner, principal objeto de suas pinturas de capas de
discos, de 2002, também retoma esse tema. Tudo isso sugere o fim do teatro,
em vez de sua glória. Mas que fim espetacular constitui!
E há ainda a sugestão de mais uma tese filosófi91 que emana da técnica de
. dissolver, embotar e apagar adotada por Kuitca/~as imagens arquitetõnicas
tiradas da Encyclopédie de Diderot, o mesmo efeito é obtido pela aplicação de
\
água e vapor a imagens manipulad~oshop e impressas em papelfotos-
r· -
~ sensível. Nessa série, datada de 2002, a dissolução e o apagamento têm uma
\ dimensão temporal muito acentuada. As imagens dão a impressão de haverem
, ficado em ruínas com o correr do tempo. O livro de Diderot representa o .!!U..::

@ Andreas Huyssen
} ~nis.tpo, o século das luzes. e a E~nç.'l-.9ue el~~mento~a modernidade.\
Assim, esses trabalhos podem apenas sugerir que o Iluminismo está desa are- )
cendo ie vista;0ütalvez façam a afirmação ainda"'mais incisiva de ..9~e~tr~i.:- \
ção iluminista está em ruínas, como se vê na destruição das próprias páginas da.
enciclopédia e das imagens arquitetônicas que elas representam. A obra, (~la::; I
, ro não dá respostas inequívocas a essas perguntas. Mas faz o espectador refle-
\_tir ~~rise de uma modernid-;d-;-e7clarecida ~undo contemporâneo. I

Se lembrarmos que a arquitetura e as ruínas são centrais na imaginação de


Wagner, será fácil relacionar a série da Encyclopédie com as peças do ciclo de
. Kuitca intitulado Anel. Por outro lado, o intelecto desse artista é ponderado e
I calculista demais para se entregar por inteiro a uma ardorosa visão wagneriana
da destruição final, ou apocalipse. Afinal, as obras sobre o teatro e a enciclo-
pédia são mais ou menos simultâneas às reflexões frias, se não geladas, sobre o
espaço arquitetônico, vistas na Neufert Suite e nos Nocturnes, de 2002. Aqui,
tal como antes, há sempre uma tensão entre as obras de arte carregadas de afeto
e a maneira discreta, uniforme, meramente geométrica ou diagramática de tra-
9.
balh:r as sup~rfícies. d~safio ~e representa,r esp~ços ,em.processo de desinte- )
, graçao talvez mteresse mais a Kuitca do ponto de VIsta tecmco do que como fon- I

l rede significação. Permite-lhe exp~rimentar com meios variados, que incluem


~pell e!!3to~h01!, tinta, v~p0E..e ág~a fi~ de criar •..
os efeitos assombros?~
fusão, dissolução, apagamento e desaparecimento. No entanto, tais caracterís-
- - --
ticas e temas são muito sintomáticos da cultura ocidental contemporânea em
geral. Marcam os intensos debates que se travam desd; a déca a de 1990sobre
;- presença d; ;as~do, sobre a memória e o traumal,S06re as promessasn~
um ridas da modernida e sobre a crise da imaginação utópica. A contempo-
raneidade de Kuitca com a situação global é palpável nessa constelação.
Referi-me antes a certa melancolia que perpassa toda a obra de Kuitca.
I A melancolia
- ~
costuma ser associada à frieza, não ao calor; ao intelecto, não à
~ emoção; alo vazio, não à plenitude; à perda e à morte, não à vida. Os efeitos de
I ~elancolia da imaginação espacial de Kuitca são particularmente pronuncIa-_
dos em The Tablada §!:fjte.,do começo da década de 1990, e na série de pinturas
de 2000-2001 sobre as esteiras de bagagem dos aeroportos. The Tablada Suite
recebeu seu nome de um antigo cemitério judaico nos arredores de Buenos Ai-
res. Um mapa do cemitério, datado de 1991, é a primeira obra da série, seguida
por diagranjas de instituições ocupadas por pacientes (um hospital pediátrico),
prisioneiros' uma prisão), leitores (uma biblioteca), espectadores (um estádio,
um salão de exposição, um teatro) e, excentricamente, por viajantes espaciais
, da ficção (a nave Millennium Palcon de Guerra nas estrelas). Como no caso

_ _ ,J_
, das plantas det;ssentos de teatro, os diagramas dessa série também são objets J.
-'
'" ~
~-~~~1~
Guillermo Kuitca: pintor do espaço @
The Tablada Suite VI

• trouvés, posteriormente manipulados e alterados[ claro que é tentador abor-


dar essa série com ideias foucaultianas sobre a função disciplinadora dos es-
paços institucionais, porém tal abordagem seria reducionista demais." A ideia
de um olhar controlador e disciplinador de vigilância talvez seja pertinente à
prisão e ao hospital, mas não funciona nos regimes escópicos dos esportes com
espectadores, da cultura das exposições ou do teatro, para não falar do cemité-
rio. Na obra de Foucault, é central o efeito da instituição na internalização do
poder pelo sujeito. Não é essa a principal preocupação de Kuitca. Ele prefere
enfocar esses cenários como locais de interação humana, com isso expandindo
o tema da planta do apartamento como espaço familiar, a fim de incluir o espa-)
.l ço institucional e público. Se esses diagramas, todos criados sobre fundos páli-

52 Andreas Huyssen
) ( dos e monocromáticos, dão uma sensação de fechamento, quase todos o fazem1
_emtermos de tristeza, desolação e consciência do fim inevitável da vida, não
em termos do poder do espaço institucional para subjugar e disciplinar: O ce-
mitério, aqui chamado La Tablada, é não apenas o início da série, mas também
seu fim, seu télos, lugar de outro tipo--- --
de apagamento do mundo. Também seria
..••..------
possível descrever a Tablada Suite como algo que oferece naturezas-n:ortas das I
lil'StltUições- uma nature morte que não é a primeira, mas a segunda natureza I

~riada pelo s-; humano-o- - - --- - - -- --- f


- As ideias refere~ mortalidade são ligadas à melancolia desde o en~
me estudo seiscentista de Robert Burton sobre essa doença psíquica e somá- '
tica, The Anatomy of Melancholy [A anatomia da melancolia]/Na série de I
2000 e 2001 sobre as esteiras de bagagem dos aeroportos, Kuitca dá um
toque muito contemporâneo a esse tema. Entre as muitas peças sem título da
série, duas se destacam: Terminal e Trauerspiel. ~mbas foram pintadas no
estilo do fotorrealismo. Ambas são apenas óleo sobre tela, o que as distin-
gue, em termos de mei~ e material, das obras sem título em tinta e aquarela,
\ ou óleo e lápis., ?ados os seus títulos reveladores, é claro que elas têm um /
peso extra na sene. \ ~
Se a palavra "terminal" tanto marca o aeroporto quanto a condição huma- \
na, Trauerspiel é uma clara referência ao famoso estudo de Walter Benjamin
sobre o drama trágico alemão do barroco, pum trabalho apinhado de referên-
~ias ocultas ao modernismo da época de Beniamin.'? Analogamente, Kuitca
emprega a noção benjaminiana da Trauerspiel barroca para dar nome a um
dos recursos técnicos mais sintomáticos da era da mobilidade global: a esteira
de bagagem dos aeroportos. Se a Trauerspiel barroca dizia respeito ao mundo I
como palco, assim alimentando e facultando o teatro, o fim do teatro, sugeri- I
,_do pela série de Kuitca sobre os teatros, tornou real ou obsoleto aquele tropo.j-,
Qualquer distinção entre espaço mundial e espaço teatral, entre o real e a
ilusão, parece haver desmoronado. Na Trauerspiel, o deslugar do setor de re-
tirada de bagagem nos aeroportos afigura-se o derradeiro teatro. As aberturas
na parede dos fundos pelas quais entra a bagagem são cobertas por cortinas
vermelhas, o que transforma as malas em atores que entram no proscênio pela
esquerda e saem pela direita. Todavia, nessas imagens não há plateia, viajantes
nem bagagem. E, por trás das cortinas vermelhas, não há palco. O princípio
da redução entra em ação aqui, mais uma vez. .teatro real de egde do lugar

I
- da casa de espetáculos, tal como representada na série Puro Teatro ou nos
( trabalhos mais recentes em papel, a partir de 2005. Em Trauerspiel e Termi- •
" nal, contudo, o lugar é deslocado para o deslugar do aeroporto. Essas duas
inturas podem ser lidas como u réquiem para o teatro.

c,....' -\- "'v •..•


\·:; ~~ ••.
r r Guillermo Kuitca: pintor do espaço 53
Trauerspiel

Se há uma evolução na produção de Kuitca, poderíamos situá-Ia na transi-


ião jJrogressiva para um senso geral de dissolução, esvaziamento, apaga~~to.
\ do mundo. Os referenciais tornaram-se profundamente problemáticos para.
-e--
ele, mais ainda que para os modernistas clássicos, que, afinal, realmente pos-
tularam novas formas de referencialidade contra o realismo de uma época
anterior. Quer tendessem para o apocalipse, quer para a utopia, eles imagina-
ram alguma reconfiguração do mundo. Tal consolo não existe em Kuitca ..
; A melancolia inerente a toda representa~ão impera, soberana. II
A contemporaneidade de Kuitca pode ser captada no fato de que ~~m
sua obra uma projeção utópica do futuro - seja do futuro da arte seja do fu-
•..wrõ do mundo. Sua obra sugere limites e términos, em vez de um éthos de>
~vãi1"uard3.' "Meu trabalho não segue a ideia tradicional de 'e;pe;imentaçãà: .-
que e_mpolga os estudiosos. A ideia da minha obra é trabalhar nos limites de
um campo específico, numa espécie de beco sem saída. "18 Por afirmações
I
como essa, fica claro que Kui~ca cria a artir das ruínas o mo ernismo ao
qual ainda adere, sem simplesmente abandonar a pintura em prol das instala-
ões ou dos vídeos. É por isso que o chamo de modernista posterior ao moder-
nisl!!Q. ~~s será sequer possível ser modernista depois do :nodernismoyr. J.
Clark, um dos melhores historiadores da pintura modernista, pensa que não.
Clark afirmou que o modernismo é tão coisa do passado, que se tornou inin-
teligível para nós, "pois se envolveu com uma modernidade ainda não inteira-

5~ Andreas Huyssen
mente instalada";" Isso realmente distingue as condições históricas da produ-
ção artística do início do século XX e seus mercados vorazes de produtos dos
mercados de cem anos antes. O livro d~lark, melancolicamente intitulado
Farewell to an Idea: Episades [rom a Hzstory af Madernism [Adeus a uma
ideia: episódios de uma história do modernismo], afg-ma que "o passado mo-
dernista já é uma ruína" não por havermos entrado numa era abençoada do
pós-moderno, mas porque a m~dernidad~ do futuro, para a gual o modernis-
mo olhava com esperança e exp;;Ztativa, finalmente chegou. E ele conclui: "Q
pós-modernismo confunde as ruínas dessas representações ameriore;f ...] com
á ruína a própria modernidade, sem ver que o que estamos vivendo é a vitó-
ria da rnodernidade. "20 De fato, a modernidade pode ter triunfado de manei-
ras imprevistas em nossas sociedades de consumo plenamente desenvolvidas,
dirigidas pelo capital empresarial e pela globalização financeira. Mas, se o
modeElismo é a nossa Antiguidade, como afirma Clark, am em eve ser os-
slvel continuar a tra a ar a partir as ruínas desse edifício tanto quanto fez
-----------
o próprio modernismo com a herança cultural de épocas anteriores.
--- -----
É nesse ponto que Kuitca entra em cena. Para ele, ~ na tradição do.)
(modernismo é r~sistir Se a pintura modernista? desde os impressionistas, pas-
sando por Cézanne, até os cubistas, os futuristas, os surrealistas e os expres-
sionistas abstratos, tornou-se ruinosa, essa própria condição de ruína é bri-
~------------~~
lhantemente articulada ~ pintura de Kuitca. É nesse -- ponto que ele, como----
pintor do espaço, revela-se também pintor do tempo. Com efeito, toda a sua
, I obra pode ser vista como<[ma reflexãOcontínua e uma exploração ambicios<!.J
tAa vid_após-morte do modernisI!!<2. no nosso mundo globalizante de capitalis-
mo consumista~ A obra de Kuitca não se situa, de modo algum na cQl!.enfD,
artística pós-moderna dominante nos nos2Qs dia~ Mas, ao nos lembrarmos de
que o próprio modernismo operou de maneiras assíncronas e assimétricas por
todo o globo, ~vez sua cQntinuação em Kuitca seja possível por estar sendo
articulada na periferia,Ámde é óbvio que a modernidade não triunfou como na
metró ole. Talvez a atração que a obra de Kuitca exerce sobre nós tenha algo
a ver com o fato de ela vir de uma distância considerável dessa modernidade
-- ---:----
triunfante, de um lugar que não teve de vivenciar os violentos ataques movi-
d-;;'spelo .mercado contra o modernismo clássico, tais como os testemunhamos
nos Estados Unidos, sob a rubrica de pós-modernismo. Kuitca ainda é um
I( pintor jovem, na casa dos qu% ta anos. A questão, é claro,~e!.por_ qua~-
, to tempo seu projeto pictural, arqueado entre representação e abstração, po-
I derá sustentar-se. Entrement~ são intenso;-iOs p~zeres esréncos e epistemo-
J lógicos que podemos extrair da apreciação de um corpo de obras de arte de
tamanha ambição intelectual e de execuçã o tão sensual.
Ja-~
I
e, ~-t' "-c.....J
.•
~(7A.V
-;", •. ).:;y.

Guillermo Kuitca: pintor do espaço @


Notas

I Kathryn Hixson, "No Home at Ali: An Interview with Guillermo Kuitca", The New Art Examiner,
fevereiro de 2000, p. 42.

2 Tradução para o inglês de Sperone Westwater, fornecida pela galeria de Kuitca, para Graciela Spe-
ranza, "Dialogue with Guillermo Kuitca", de Sonia Becce (org.), Guillermo Kuitca: Obras 1982-
1998. Conversaciones con Graciela Speranza, Barcelona, Grupo Editorial Norma, 1998.
3 Adrian Dannatt, "Opera Works", The Art Neu/spaper n." 131, dezembro de 2002, p. 28.
4 Speranza, "Dialogue wirh Guillermo Kuitca".

5 Karen Wright, "Mapping Kuitca", in Guillermo Kuitca: Theater Collages, Zurique, Berlim e Nova
York, Ed. Scalo, 2005.
6 Speranza, "Dialogue with Guillermo Kuitca".

7 Wright, "Mapping Kuitca".


8 Speranza, "Dialogue with Guillermo Kuitca ".

9 Leah Ollmann, "An Artist Finds His Place in the World", Los Angeles Times, Calendar, 11 de junho
de 1995, p. 55.
10 Lynne Cooke, "Iterations: Letters Between Lynne Cooke and Guillermo Kuitca", in Guillermo Kuit-
ca, Rio de Janeiro, Centro de Arte Helio Oiticica, 1999, p. 96.

" Speranza, "Dialogue with Guillermo Kuitca".


12 Samuel Endgame, The Complete Dramatic Works, Londres e Boston, Faber and Faber,
Becketr,
1986, p. 106-107 [Fim de partida, trad. e apres. Fábio de Souza Andrade, São Paulo, Cosac &
Naify,20021.
13 Speranza, "Dialogue with Guillermo Kuitca ".
14 Ibid., p. 31.

15 Ibid., p. 13.

16 Ver Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison, Nova York, Vintage/Random
House, 1979 r Vigiar e punir: nascimento da prisão, trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis, RJ, Vozes,
21" ed., 1999].

17 Walter Benjamin, The Origin of German Tragic Drama, Londres, New Left Books, 1977 I Origem
do drama trágico alemão, edição e trad. João Barrento, Belo Horizonte, Autêntica, 2011].
18 Inés Katzenstein, "Some Thoughrs on Guillermo Kuitca in Buenos Aires", in Guillermo Kuitca:
Obras 1982/2002, catálogo de exposição, Madri, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia,
2003, p. 290 .

•• ( 19 T. J. Clark, Farewell to an Idea: Episodes [rom a History of Modernism, New Haven e Londres, Yale
University Press, p. 3.
20 lbid., p. 2-3.

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