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A Reconquista entre o Douro e o Tejo nos anais monásticos dos séculos XI e XII*

Os primeiros textos de carácter historiográfico que apresentam como principal


objectivo a fixação de uma memória sobre o passado da mais ocidental das fronteiras
hispânicas entre a Cristandade e o Islão, remontam aos finais do século XI e princípios
do XII.1 Estruturados sob a forma de anais, neles se recolhem notícias de
acontecimentos ocorridos entre os séculos IX e XII no espaço compreendido entre os
rios Douro e Tejo. Em geral, centram-se na recordação de sucessos bélicos, evocando as
violências próprias de um quotidiano guerreiro, as batalhas, os cercos, as conquistas e as
perturbações típicas dos tempos difíceis e inseguros de uma sociedade guerreira de
fronteira. Um contexto que acabou por condicionar e caracterizar a produção letrada
proveniente dos mosteiros da região.2

Estes anais reflectem, assim, a memória de territórios onde, desde o fim do século
X e durante o seguinte, ocorreram sucessivas desordens e perturbações, as provocadas
por incursões islâmicas e normandas e as resultantes dos conflitos político-militares
nascidos da hostilidade manifestada pelos condes portucalenses à nova dinastia régia
que ocupara o trono de Leão, a ela se devendo, por sua vez, na sequência dos apoios
fornecidos à ascensão dos infanções do Entre Minho e Mondego, o simultâneo
desencadear das lutas que opuseram estes últimos à velha nobreza condal de origens
asturianas que até aí dominara a região.3 Além disso, quando os monges produziram os
anais que recordavam os tempos violentos das gerações anteriores, presenciavam-se
novos e incertos acontecimentos, pois se a sua época iria assistir à vitoriosa conquista de

* Publicado em Muçulmanos e Cristãos entre o Tejo e o Douro (Sécs. VIII a XIII). Actas dos Seminários,
coord. Mário Jorge Barroca & Isabel Cristina F. Fernandes, Palmela/Porto, Câmara Municipal/Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, 2005, pp. 103-110.
1
Editados e comentados por Pierre David, Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe
siècle, Lisboa/Paris, 1947, pp. 257-340, foram depois globalmente analisados e contextualizados por José
Mattoso, Le monachisme ibérique et Cluny. Les monastères du diocèse du Porto de l’ an mille à 1200,
Lovaina, 1968, pp. 311-315, e Luís Krus, A produção do passado nas comunidades letradas do Entre
Minho e Mondego nos séculos XI e XII: as origens da analística portuguesa, Lisboa, 1998, pp. 7-12;
“Historiografia. Época medieval”, Dicionário de história religiosa de Portugal, dir. Carlos Moreira
Azevedo, Lisboa, 2001, vol. 4, pp. 512-514.
2
Cf. José Mattoso, “Condições económicas e sociais da circulação de códices na Península Ibérica”,
Portugal medieval. Novas interpretações, Lisboa, 19922, pp. 352-359.
3
Para o esclarecimento desta conjuntura, cf. José Mattoso, “Portugal no reino asturiano-leonês”, História
de Portugal, dir. José Mattoso, Lisboa, 1992, vol. 1, pp. 537-562. O respectivo contexto hispânico
encontra-se bem caracterizado em Angus MacKay, La España de la Edad Media. Desde la frontera hasta
el imperio (1000-1500), Madrid, 19955, pp. 26-36, e Derek W. Lomax, La Reconquista, Barcelona, 1984,
pp. 69-91.

1
Toledo, em 1085, permitindo o recuo do Islão para o sul da linha do Tejo, ela também
iria testemunhar o rápido retomar da ofensiva muçulmana, que foi protagonizada pelos
Almorávidas e que teve como momento central a derrota de Zalaca, em 1086, uma
batalha onde se iniciou o extremar da guerra travada entre a Cristandade hispânica e os
senhores de al-Andalus.4

Neste difícil contexto político-social foram elaborados, entre 1079 e 1085, os mais
antigos anais conhecidos, os do Mosteiro de Santo Tirso, situado no condado de
Portucale. Fundado em 978 por Aboazar Lovesendes, o obscuro e suposto iniciador de
uma das mais prestigiadas famílias de infanções do reinado de Afonso VI de Castela-
Leão, a dos chamados senhores da Maia,5 o cenóbio tinha então como destacados
patronos dois dos seus descendentes, os irmãos Gonçalo e Soeiro Mendes da Maia,
ambos muito envolvidos na guerra fronteiriça contra o Islão, bastando recordar como o
segundo chegara a deter o cargo de governador da praça de Santarém, entre 1093 e
1111.6 No seu conjunto, os Anais de Santo Tirso7 reúnem vinte e quatro notícias
respeitantes aos anos que medeiam entre 987 e 1079, privilegiando, mais do que a
memória dos poderosos e devastadores ataques dos muçulmanos ao Norte peninsular, os
eventos relativos à lenta e gradual consolidação da fronteira cristã do Mondego,
salientando as conquistas de Montemor, Viseu, Lamego e Coimbra.8

O passado recordado tende a polarizar-se em torno de dois protagonistas que


simbolizam o confronto entre o Islão e a Cristandade hispânicos, ou seja, Almançor, o
reconquistador muçulmano das terras do Entre Douro e Mondego, e Fernando, o Magno,
o monarca que as recuperara de novo e transmitira ao filho e herdeiro, Afonso VI, a

4
Cf. Bernard F. Reilly, The kingdom of León-Castilla under king Alfonso VI, 1065-1109, Princeton,
1988.
5
Sobre as origens do mosteiro e da família do fundador, cf. José Mattoso: Le monachisme ibérique..., op.
cit., pp. 139-140; “A nobreza rural portuense nos séculos XI e XII”, A nobreza medieval portuguesa. A
família e o poder, Lisboa, 19872, pp. 208-220.
6
O percurso sócio-politico e económico da família encontra-se analisado em José Mattoso: Ricos-homens,
infanções e cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII, Lisboa, 19852, pp. 50-54;
Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, Lisboa, 19955, vol. 1, pp.
175-177.
7
O texto, doravante identificado pela sigla AST, remete para a edição de Pierre David, op. cit., pp. 293-
299.
8
A concentração da memória analística num tão selectivo conjunto de conquistas traduz a efectiva e
concreta percepção de como essas povoações e os seus castelos estruturavam e organizavam os espaços
territoriais de todo o Entre Vouga e Mondego, como já notou Mário Viana, “A memória regional na
analística portuguesa dos séculos XI e XII”, Estudos Medievais, 10 (1993), pp. 59-77.

2
necessidade e o dever de as conservar e expandir.9 Contudo, a memória deste soberano
não se revela tão grata e reverenciada como a do pai, pois embora os monges registem
como ele se dedicara a guerras contínuas contra os Sarracenos, recordam que a uns dava
guerra e de outros aceitava tributos,10 deixando transparecer alguma preocupação pelos
resultados de uma política de fronteira mais empenhada no acesso às riquezas do Sul do
que apostada em congregar e mobilizar as forças militares capazes de expandirem o
território do reino.11

Assim sendo, estes anais tendem a aproximar a relativa negatividade de uma tal
lembrança régia à que se encontra sugerida pelas notícias de acontecimentos ocorridos
nos tempos anteriores a Fernando I, quando a Cristandade hispânica sofrera pesadas
derrotas por parte dos muçulmanos e se vira espoliada das terras situadas a sul do
Douro. Referimo-nos ao registo de sucessos outrora protagonizados pelas então já
extintas famílias condais portucalenses.12 Pondo em evidência a sua incapacidade bélica
para resistir ao inimigo e a ocorrência de mortes desonrosas, por ocasião de rebeliões,13
elas tanto recordam ao presente os perigos inerentes ao abandono de uma guerra externa
ofensiva como evidenciam que a sua ausência podia originar tensões e lutas internas
capazes de enfraquecer a sociedade cristã e de a tornar vulnerável aos avanços
muçulmanos, sugerindo, em alternativa, o bom exemplo de Fernando I e dos infanções
que o apoiaram numa efectiva e vitoriosa guerra de Reconquista.14

9
Sobre a importância das campanhas militares de Fernando I para a consolidação da fronteira ocidental
do reino de Leão, cf. José Mattoso, “Portugal no reino asturiano-leonês”, loc. cit., pp. 557-560. Uma
análise mais global encontra-se em Bernard F. Reilly, Cristãos e muçulmanos. A luta pela Península
Ibérica, Lisboa, 1996, pp. 56-64.
10
AST, Era 1110, p. 298: Dein remansit frater ejus Adefonsus adepto Christianorum regno, exercuitque
bella adversus Sarracenos per annos multos; aliis dabat bellum, ab aliis accipiebat tributum.
11
Sobre a política de parias, cf. Charles Julian Bishko, “Fernando I and the origins of the leonese-
castilian alliance with Cluny”, Studies in medieval spanish frontier history, Londres, 1980, II, pp. 36-53.
12
Sobre o percurso histórico das antigas famílias condais de origem asturiana, veja-se José Mattoso,
Ricos-homens, infanções e cavaleiros..., op. cit., pp. 13-35.
13
Referimo-nos, sobretudo, às efemérides relativas, quer às mortes dos condes Mendo Gonçalves,
assassinado ou morto em combate, em 1008, por ocasião de lutas civis (AST, Era 1046, p. 295), e Nuno
Mendes, falecido em 1071 na batalha de Pedroso, durante uma rebelião contra o rei Garcia (AST, Era
1109, p. 298), quer à que lembra como o conde Alvito Nunes não conseguiu evitar a pilhagem do castelo
de Vermoim pelos Vikings (AST, Era 1054, p. 295). Acerca destes condes, cf. José Mattoso, “As famílias
condais portucalenses dos séculos X e XI”, A nobreza medieval portuguesa..., op. cit., pp. 145-147, 116-
117 e 114, respectivamente.
14
De facto, nos finais do século X, alguns dos condes, sobretudo os conimbricenses, chegam a participar
ao lado de Almançor nas incursões muçulmanas ao território portucalense e à Galiza, não se conhecendo,
algumas décadas mais tarde, um seu qualquer significativo empenho na guerra da fronteira contra o Islão,
apesar de se tratar de uma época, a das primeiras taifas, em que a fragmentação política de al-Andalus o
teria facilitado. Cf. Rui de Azevedo, “A expedição de Almançor a Santiago de Compostela em 997, e a de

3
Os anais registam, de facto, uma significativa notícia sobre o protagonismo dos
infanções, recordando como um deles, Gonçalo Trastamires da Maia, tomara, em 1034,
Montemor aos muçulmanos, e assim precedera e possibilitara as posteriores conquistas
de Fernando I.15 Ora, num contexto em que os monges associam a memória dos condes
a feitos demonstrativos da sua inépcia militar para proteger a sociedade cristã
portucalense, tal lembrança é em si elucidativa de como se concebem os infanções das
famílias patronais dos mosteiros a norte do Douro, enquanto principais garantes
regionais de uma boa, justa e eficaz organização político-militar do território.16 Esta
leitura das lições do passado recordado também se encontra vincada na forma como é
mencionado um dos seus filhos, Mendo Gonçalves, na notícia respeitante à sua morte, já
que o evocam na condição de varão ilustre, que detivera grande poder em todo o
Portucale, reservando-lhe um apreço e um elogio ausentes das efemérides alusivas aos
condes e até aos próprios reis.17 O passado comemorado em Santo Tirso parece, assim,
sobretudo atento à legitimação das posições político-sociais então detidas pelos
infanções no Entre Minho e Mondego, nomeadamente as relativas aos varões da família
patronal do cenóbio, fazendo-o em nome da memória das acções desenvolvidas pelos

piratas normandos à Galiza em 1015-16”, Revista portuguesa de História, 14 (1973), pp. 73-93, e José
Mattoso, “Portugal no reino asturiano-leonês”, loc. cit., pp. 537-541.
15
AST, Era 1072, p. 295. A importância estratégica desta conquista para a consolidação da fronteira na
linha do Mondego encontra-se devidamente realçada em José Mattoso, Luís Krus & Amélia Andrade, O
castelo e a Feira. A Terra de Santa Maria nos séculos XI a XIII, Lisboa, 1989, pp. 124-125. Para além
desta notícia, os AST (Era 1076, p. 296), também recordam o seu posterior assassinato em Avioso, no ano
de 1038, talvez em resultado da rivalidade que o opunha então ao conde de Portucale, Mendo Nunes,
sendo essa lembrança bem sintomática da atenção dada em Santo Tirso ao passado das lutas e rivalidades
regionais que opuseram, até 1071, os infanções portucalenses aos condes de origem asturiana. Cf. José
Mattoso, “A nobreza rural portuense...”, loc. cit., pp. 211-212.
16
Como, aliás, corresponde à realidade histórica. De facto, a guerra de Reconquista levada a cabo na
segunda metade do século XI contribuiu para um notável desenvolvimento económico e social das
comunidades do Entre Douro e Minho graças, sobretudo, aos saques e pilhagens que drenavam para o
Norte rural e cristão, tanto os recursos monetários e artesanais obtidos nas prósperas cidades do Sul
islâmico, como o gado apresado nas aldeias dos seus termos, e os escravos e os cativos que depois eram
vendidos ou resgatados por alto preço; cf. José-Luis Martín, Evolución económica de la Peninsula Ibérica
(siglos VI-XIII), Barcelona, 1976, pp. 63-75. Sobretudo apropriadas pelos guerreiros, todas estas riquezas
eram objecto de trocas simbólicas: em parte doadas aos templos, sobretudo pelos infanções, serviam para
os religiosos, nomeadamente os monges, obterem os meios necessários às tarefas litúrgicas que visavam
propiciar os apoios celestes capazes de renovar e acrescentar a protecção e o êxito dos que se entregavam
à guerra da fronteira; cf. José Mattoso, Le monachisme ibérique..., op. cit., pp. 165-193; “Portugal no
reino asturiano-leonês”, loc. cit., pp. 487-491; numa perspectiva mais ampla, veja-se James F. Powers, A
society organized for war. The iberian municipal militias in the central Middle Ages, 1000-1284,
Berkeley/Los Angeles, 1988, pp. 162-187.
17
AST, Era 1103, p. 298: … 6.º calendas decembris mortuus est Menendus Gunsaluiz uir illustris et
magne potentie in toto Portugali, filius Gunsalui Trastamiriz. Os dados disponíveis para uma sua
biografia encontram-se em José Mattoso, “A nobreza rural portuense...”, loc. cit., pp. 212-214.

4
respectivos antepassados para proteger e libertar a sociedade cristã das pressões e
sujeições dos Infiéis.18

Neste contexto, a guerra de fronteira não parece conceptualizar-se como um


confronto total entre a Cristandade e o Islão. Com efeito, se o lado cristão se tende a
identificar com o grupo dos infanções aliados à realeza, o lado oposto nunca se
caracteriza como um maléfico inimigo. Embora a última notícia registada relate a
ocorrência de um eclipse, podendo interpretar-se essa memória de um Sol subitamente
obscurecido como indiciadora de que os monges a considerariam representativa de um
aviso celeste destinado a permitir a preparação dos cristãos para um novo e eminente
confronto com o Islão,19 o certo é que o perigo muçulmano evocado ao longo das
efemérides se tende a confinar ao passado correspondente à já distante geração de
Almançor, não estando textualmente visível nas lembranças relativas aos tempos de
Fernando I ou Afonso VI.20 Assim, sem a referência a quaisquer reis ou guerreiros
dignos de memória e registo, o Islão que as notícias situam no tempo das duas últimas
gerações de cristãos fornece a imagem de um inimigo mais tradicional e virtual do que
efectivo e ameaçador, faltando-lhe um forte peso militar e mesmo coesão, visto os
muçulmanos tanto serem mencionados como Ismaelitas, Mouros ou Sarracenos,

18
Segundo Patrick J. Geary, Phantoms of remembrance. Memory and oblivion at the end of the first
Millennium, Princeton, 1994, pp. 73-80, toda a produção analística latina do Ocidente, dos séculos X a
XII, tem como característica comum o objectivo de preservar a memória dos antepassados prestigiantes
ou legitimadores para os protectores ou patronos das instituições eclesiásticas onde se redigem, copiam ou
refundem.
19
AST, Era 1117, p. 299: … kalendis iulii hora VIª oscuratus est sol et stetit ipsa obscuritas per duas
horas donec apparuerunt stelle in celo et quasi media nox effectus est. De facto, na produção
historiográfica do Ocidente undecentista, profundamente influenciada pelos ideais da espiritualidade
monástica cluniacense, é muito frequente o tópico da intervenção directa de Deus nos destinos individuais
e colectivos da Humanidade, sendo sobretudo expresso através do registo da ocorrência de prodígios e de
alterações lunares ou solares, como a que é nomeada. Cf. André Vauchez, La spiritualité du Moyen Age
occidental. VIIIe-XIIIe siècle, Paris, 19942, pp. 57-60.
20
AST, Era 1025, p. 293: … cepe Almancor ibennamer Colimbriam. Sicut quidam dicunt fuit derelicta
annis VII, postea ceperunt edificare illam Ismahelite et habitauerunt in illa annis LXXª. De resto, é com
as efemérides relativas às campanhas de Almançor nos finais do século X que se iniciam estes anais,
lembrando como nesses tempos os cristãos tiveram de abandonar cidades como Coimbra, a urbe que, após
a conquista islâmica de 987, apenas sete anos depois teria sido repovoada pelos muçulmanos, que nela
habitaram até à sua definitiva reconquista cristã em 1064. Segundo Christophe Picard, Le Portugal
musulman (VIIIe-XIIIe siècle). L’ Occident d’ al-Andalus sous domination islamique, Paris, 2000, pp. 109
e 115, é provável que Almançor pretendesse fazer de Coimbra um posto avançado para futuras expedições
militares ao Norte cristão, ao mesmo tempo que desempenharia o papel de guardiã contra as invasões
provenientes da Galiza. Sobre as acções político-militares por ele desenvolvidas na sua chefia do califado
de Córdova, entre as quais se contam as expedições à Galiza e aos territórios portucalense e
conimbricense, cf. Rachel Arié, España musulmana (siglos VIII-XV), Barcelona, 1983, pp. 23-26.

5
referenciando, portanto, uma ameaça plural e difusa.21 Ainda não se concebiam,
portanto, de acordo com as características que os Almorávidas lhes iriam acentuar e
acrescentar, ou seja, a de grandes exércitos disciplinados, aguerridos e espiritualmente
motivados,22 os que os clérigos, monges e cavaleiros francos estabelecidos na Hispânia
após a conquista de Toledo identificavam com hordas votadas ao impiedoso e
demoníaco aniquilamento da Cristandade.23

Mais fiéis a estas novas perspectivas, os Anais de Grijó24 não só se iniciam com a
notícia da conquista de Toledo, evocando, a esse propósito, a sua dignidade de
metrópole eclesiástica, como depois se restringem à quase exclusiva recordação de
eventos relacionados com a guerra contra o Islão.25 De facto, das oito notícias
recenseadas, relativas aos anos que medeiam entre 1085 e 1111, apenas uma, a que
recorda a morte de Sisnando de Coimbra, não tem uma relação directa com as memórias
bélicas da fronteira com o Islão, versando a maioria das restantes sobre as derrotas e os
massacres provocados pelos Almorávidas aos cristãos. Reflectem, portanto, uma nova
conjuntura memorialística, retendo o passado num presente fronteiriço bem mais
perigoso e angustiante do que aquele que contextualizou a escrita dos anteriores.26

21
AST, Eras 1026, 1083 e 1110, pp. 293, 296 e 298, respectivamente. Sobre a terminologia utilizada pelos
letrados da Cristandade hispânica e ocidental para designar os muçulmanos, vejam-se: Nevill Barbour,
“The significance of the word maurus, with its derivates moro and moor, and of other terms used by
medieval writers in latin to describe the inhabitants of muslim Spain”, Biblos, 46 (1970), pp. 253-266;
Dolores Oliver Pérez, “Sarraceno: su etimología e historia”, Al-Qantara, 15 (1994), pp. 111-120; Ron
Barkai, Cristianos y musulmanes en la España medieval (el enemigo en el espejo), Madrid, 19912, pp. 19-
58.
22
Com efeito, é a partir da batalha de Zalaca que se generaliza no Andaluz, por notória influência
almorávida, a defesa e a prática da guerra santa: Vincent Lagardère, “Évolution de la notion de djihad à l’
époque almoravide (1039-1147)”, Cahiers de civilisation médiévale, 41 (1998), pp. 3-16.
23
Sobre a influência da mentalidade e da ideologia francas na (re)construção da imagem do muçulmano,
cf. Ron Barkai, op. cit., pp. 154-174, e José Mattoso, “Monges e clérigos portadores da cultura francesa
em Portugal (séculos XI e XII)”, Portugal medieval..., op. cit., pp. 365-387. Relativamente à dimensão
das alterações introduzidas na sociedade cristã hispânica pela pressão conjunta dos Francos, sobretudo
através dos monges cluniacenses, e do Papado, mediante a acção peninsular desenvolvida por diversos
legados pontifícios, nomeadamente a imposição, em 1080, da substituição oficial do ritual litúrgico
hispânico pelo franco-romano, veja-se José Angel Garcia de Cortázar, “La Reconquista en el siglo XI:
geográfica o cultural?”, IX Centenário da dedicação da Sé de Braga. Congresso internacional. Actas,
Braga, 1990, vol. 1, pp. 689-715.
24
Relativamente a estes anais, doravante identificados pela sigla AG, utilizamos a edição de Pierre David,
op. cit., pp. 299-302.
25
AG, Era 1123, p. 299: … rex D. Alphonsus cepit ciuitatem Toletum … que est metropolis.
26
Sobre a situação política do Ocidente peninsular na transição do século XI para o XII, marcada pelos
começos da intervenção almorávida no Andaluz e por uma nova relacionação e hierarquia das forças em
confronto, cf. Bernard F. Reilly, Cristãos e muçulmanos..., op. cit., pp. 112-156, e José Mattoso, “Dois
séculos de vicissitudes políticas”, História de Portugal, dir. José Mattoso, Lisboa, 1993, vol. 2, pp. 30-32
e 34-35, onde se refere às acções desenvolvidas pelos condes Raimundo e Henrique da Borgonha contra a
ofensiva almorávida. A natureza das relações político-militares estabelecidas entre os Almorávidas e os

6
Redigidos cerca de 1111, durante os finais do governo condal portucalense de Henrique
da Borgonha, estes anais apresentam-se como um tributo prestado às acções e ao valor
militar demonstrado pelos infanções na defesa cristã da linha do Tejo, recordando como
um dos mais destacados patronos do cenóbio, Soeiro Fromarigues de Grijó, havia sido
traiçoeiramente morto pelos Almorávidas em 1103, durante uma emboscada que o
surpreendera em Vatalandi, próximo de Santarém.27

Deste modo, quando lembram os acontecimentos ocorridos, tanto se propõem


exaltar a memória dos infanções que tinham dado a vida pela manutenção das
conquistas alcançadas, como procuram incentivar uma mais decidida e aguerrida
vigilância da fronteira, censurando, implicitamente, o facto de os principais
responsáveis políticos e militares pelo condado, ou seja, primeiro o conde Raimundo da
Borgonha, depois, o seu primo Henrique, se terem revelado, a médio e longo prazo,
pouco aptos ou interessados em levar a cabo essa considerada prioritária tarefa.28 Assim,
na perspectiva dos monges de S. Salvador de Grijó o presente avivava a memória dos
difíceis tempos que passara o mosteiro entre os finais do século X e os começos do
seguinte, quando, após ter sido fundado, em 922, pelo abade Guterre e seu irmão
Ausendo, corresponderia à situação de um cenóbio implantado na zona por onde
circulavam as incursões inimigas que se dirigiam às terras a norte do Douro.29 Ora,
como demonstrava a sua própria história, o terrível retrocesso da fronteira poderia pôr
em causa a prosperidade entretanto adquirida depois da reconquista de Coimbra e do

reis cristãos peninsulares do seu tempo, encontra-se claramente enunciada em J. Gautier Dalché, “Islam et
Chretienté en Espagne au XIIe siècle. Contribuition à l’étude de la notion de frontière”, Hesperis, 47
(1959), pp. 183-217.
27
Cf. Henrique Barrilaro Ruas, “A data do desastre de Vatalandi”, Revista portuguesa de História, 4
(1949), pp. 361-373.
28
Nesse sentido, o único facto assinalado pelos Anais de Grijó relativamente ao governo portucalense de
Raimundo diz respeito à sua tomada de posse das cidades de Santarém e Lisboa, as quais lhe foram
entregues, em 1093, por al-Mutawakkil, o senhor muçulmano de Badajoz, em troca de protecção cristã
contra os Almorávidas, embora, significativamente, os anais refiram ter sido Afonso VI quem tomou
Santarém e, do mesmo modo, Lisboa (AG, Era 1131, p. 300). Quanto a Henrique, se, historicamente,
desempenhou um importante papel na defesa da fronteira do Tejo, tendo sido essa, aliás, a razão para a
sua nomeação de responsável político do então criado Condado Portucalense, nada disso se recorda,
preferindo os Anais de Grijó guardar a implícita memória de um conde que, após a morte de Afonso VI,
não se revelou particularmente empenhado em travar a ofensiva almorávida, visto ter permanecido
bastante envolvido nas lutas civis internas do reino e de ter sido obrigado a enfrentar em Coimbra, no ano
de 1111, uma revolta urbana contra o seu poder. Veja-se, sobre os acontecimentos e conjunturas políticas
aqui referidas, José Mattoso, “Dois séculos...”, loc. cit., pp. 30-32 e 34-35; acerca do tratamento analístico
dado no texto de Grijó aos dois condes, cf. Luís Krus, A produção do passado..., op. cit., p. 11.
29
Para a fundação, primeiros desenvolvimentos e a inicial relação do mosteiro com os seus patronos,
consultem-se: José Mattoso, Le monachisme ibérique..., op. cit., p. 143; Robert Durand, Le Cartulaire de

7
avanço dos cristãos até ao Tejo. Ou seja, os tempos em que, sob a protecção de Soeiro
Fromarigues, o mosteiro partilhara as riquezas e os bens por ele adquiridos na guerra
pelo domínio dos territórios situados a sul do Mondego,30 proporcionando-lhe o
engrandecimento e o prestígio que se concretizara na refundação da comunidade em
1093, por ocasião de uma cerimónia presidida pelo bispo Crescónio, de Coimbra.31

Portanto, quando os anais exaltam a lembrança de Soeiro Fromarigues, embora o


tivessem feito em nome do prestígio e do favor do seu herdeiro, Nuno Soares de Grijó,
tanto se dedicam a prestar uma merecida e sentida homenagem aos seus antigos
patronos e protectores, como a defender a necessidade de se recriarem e revitalizarem os
apoios e as recompensas que tinham permitido aos infanções protagonizar e organizar
uma vitoriosa guerra de fronteira, quer em proveito da Cristandade quer da própria
realeza. Conforme, aliás, o davam a entender os monges na desenvolvida notícia que
dedicam à batalha de Zalaca, que opôs, em 1086, nos campos de Sagrálias, perto da
cidade de Badajoz, Afonso VI a Yusuf b. Tashfin, naquela que foi a primeira vitoriosa
intervenção militar dos Almorávidas na Península Ibérica.32 O texto insiste, sobretudo,

Baio-Ferrado du Monastère de Grijó (XIe-XIIIe siècles), Paris, 1971, pp. XIII-LV; José Mattoso, Luís
Krus & Amélia Andrade, op. cit., pp. 137-139.
30
Sobre o percurso da família de Grijó durante o século XI, cf. José Mattoso, Identificação de um país...,
op. cit., vol. 1, pp. 182-183; José Mattoso, Luís Krus e Amélia Andrade, op. cit., pp. 137-141.
31
Neste contexto, é muito provável que o mosteiro tenha então adoptado costumes beneditinos de
inspiração cluniacense, sendo também o bispo Crescónio quem presidiu, em 1092, à sagração da nova
igreja do cenóbio de Santo Tirso, quando o abade Gaudemiro e a sua comunidade também parece terem
aderido a idênticos usos monásticos, sendo essa, nos dois casos, uma decisão pela qual as respectivas
famílias patronais de infanções, independentemente da sua maior ou menor adesão a modelos e correntes
de espiritualidade de origem franca, se aproximavam de uma religiosidade bastante apoiada pela realeza
de Castela e Leão, assim captando da parte da coroa apoios, reconhecimentos e benefícios políticos,
sociais e económicos. De resto, a espiritualidade monástica cluniacense, sobretudo assente na
especificidade de um cerimonial litúrgico em que o fausto das celebrações pretendia acentuar a presença
de um ambiente sagrado capaz de comunicar aos rituais, para além da sua feição de actos de louvor
celeste, a qualidade de poderosos e eficazes actos de intercessão e apelo às graças divinas, não deixava de
ser atractiva para guerreiros que, através de generosos actos pios, obtinham garantias e especiais
protecções contra os inimigos da fé e a destruição das forças do mal. Cf. André Vauchez, op. cit., pp. 32-
67; Charles Julian Bishko, “Liturgical intercession at Cluny for the king-emperors of Leon”, Stvdia
monastica, 3 (1961), pp. 53-76; José Mattoso, “Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal” e
“A nobreza medieval portuguesa. As correntes monásticas dos séculos XI e XII”, Portugal medieval...,
op. cit., pp. 103-109 e 200-210, respectivamente.
32
AG, Era 1125, pp. 299-300: … rex D. Alphonsus magnum prelium habuit cum rege Sarracenorum Iucef
ben Taisafin transmarino ad faciem ciuitatis Badajoz in loco qui dicitur Sagalias, ubi unanimiter
convenerunt cum rege nostro christiani a partibus Alpes, multique Francorum in adiutorium ei affuerunt,
sed diabolo aduersante timor magnus inuasit plurimos nostrorum et fugerunt ex eis multa millia nullo eos
persequente. Rex uero fuge eorum inscius confidenter ingressus est prelium in quo aderant omnes
Sarraceni totius Hispanie armati cum Iusef ben Taisafin quem sibi in regem assumpserant, nec non ipse
Iusef multa millia barbarorum transmarinorum Moabitarum Arabumque secum traduxerat, quorum
numerus nec ipse eorum rex nec aliquis homo scire poterat nisi solus Dominus. Pugnauit itaque rex
Domnus Alphonsus et qui remanserant cum eo aduersus Sarracenos usque ad noctem nullusque

8
na força e na grandeza do exército congregado pelo chefe islâmico, composto por todos
os muçulmanos de al-Andalus e de além-mar, cujo número nem ele nem homem algum
podia conhecer, senão Deus. Usando uma hiperbolização do inimigo através de um
recurso estilístico inspirado no Antigo Testamento, como era frequente neste tipo de
relatos,33 os anais procuram, assim, agigantar as dimensões do opositor para melhor
realçar e destacar o valor militar e a heroicidade do rei que os combatera confiada e
corajosamente, até ter sido ferido por uma lança no campo de batalha e o seu desmaio
ter provocado a interrupção dos combates, já que para os monges não teria existido um
vencedor e um vencido, limitando-se o texto a referir como, depois de tal acidente, fora
ele transportado para Cória, enquanto os muçulmanos se recolheram ao seu local, sem
que qualquer topónimo localize esse suposto refúgio.

Embora os anais silenciem a efectiva derrota de Afonso VI, optando por conservar
a memória de uma realeza invicta, não deixam de se manifestar acerca da culpabilidade
dessa não vitória dos cristãos.34 Com efeito, ao registarem apenas, entre as forças
militares então chefiadas por este monarca, os cristãos da parte dos Alpes,35 acusando-os

inimicorum sustinere ualebat eius presentem incursionem; sed se concludentes Sarraceni interficiebant
christianorum multitudinem. In tantum uero rex castellum Sarracenorum et acies invasit et interficiendo
eos et dispergendo expulit huc et illuc, quousque pervenit ad locum ubi regis Joseph tentorium fixum erat
atque per circuitum magno vallo vallatum, quem rex dum acriter expugnaret et fortiter invadens
insisteret, quidam suorum veniens hoc ei nuntiauit: Noveris, Domine mi Rex, quoniam interim dum tu hic
pugnas Sarracenorum insidie tua invadunt castra. Quo audito et a suis consílio accepto rex regem
Maurorum reliquit et ab eius tentorio discessit; festinus ergo cum suis qui secum aderant ad Sarracenos
qui castra sua inuaserant accessit multosque ex eis interfecit et a castris fortiter expulit. Ibi quidem multi
corruerunt christianorum; qui remanserant congregati sunt ad regem. Rex autem plagatus lancea cum
nimicum sitiret propter fluxum sanguinis decurrentis a plaga, vice aque propinauerunt ei vinum quia
aquam non inuenerunt, unde syncopin passus, cum his qui secum aderant reuersus est Cauriam;
Sarraceni quoque reuersi sunt unusquisque ad sua loca. Sobre esta batalha cf. Vincent Lagardère, Le
vendredi de Zallaqa, 23 Octobre 1086, Paris, 1989.
33
No discurso clerical letrado da Idade Média, nomeadamente no historiográfico, os números referidos a
propósito das batalhas têm um valor mais retórico e simbólico do que propriamente descritivo ou
contabilístico; cf. Bernard Guenée, op. cit., pp. 179-184. O valor qualitativo do número nos relatos
castelhanos coevos sobre os confrontos armados com o Islão é analisado por Ron Barkai, op. cit., pp. 113
e 235.
34
Segundo um relato coevo e presencial desta mesma batalha, elaborado por ‘Abd Allah de Granada, ao
mesmo tempo que se omite qualquer referência à ferida de Afonso VI, não teriam existido dúvidas sobre a
efectiva vitória muçulmana, como, aliás, também se passa em relação a outras fontes árabes: E. Leví-
Provençal e Emilio García Gómez (ed.), El siglo XI en 1ª persona. Las «Memorias» de ‘Abd Allah, último
Rey Zirí de Granada, destronado por los Almorávides (1090), Madrid, 1980, pp. 202-203. Veja-se, ainda,
a carta publicada por Vincent Lagardère, Le vendredi de Zallaqa..., op. cit., pp. 193-198, onde Yusuf b.
Tashfin alude à sua vitória sobre Afonso VI.
35
Sobre a intervenção dos cavaleiros francos na guerra cristã peninsular contra os Almorávidas, consulte-
se Marcelin Defourneaux, Les Français en Espagne aux XIe et XIIe siècles, Paris, 1949, pp. 142-165. O
facto dos contingentes de guerreiros transpirenaicos apenas se terem intensificado, precisamente, após a
derrota cristã de Zalaca, demonstra o carácter ideológico da referência analística à multidão dos francos
que, nessa batalha, não teriam sido capazes de enfrentar os Almorávidas até à sua fatal derrota.

9
de abandonarem a luta por um acobardado medo a que se atribui diabólicas origens,
acabam por os responsabilizar pelo indeciso desfecho do confronto, opondo a meritória
imagem de um poderoso rei-guerreiro cristão, ferido e quase mártir pela sua heróica e
tenaz resistência aos infinitos exércitos islâmicos,36 à dos guerreiros francos, tanto
cavaleiros como condes, que fugiam ou eram incapazes de vencer os muçulmanos, em
tudo, portanto, bem diversos dos infanções, omitidos no elenco das forças militares que
teriam estado presentes em Zalaca. Ou seja, aqueles que, tal como o monarca, sabiam e
preferiam dar a vida em combate com o Islão, conforme se recordava na notícia do
grande infortúnio que, mais tarde, vitimou Soeiro Fromarigues e Mido Crescones,
impedindo-os de socorrer os cristãos assediados pelos Almorávidas próximo de
Santarém.37 De facto, na retórica dos anais, se eles não tivessem sido assassinados, e se,
entretanto, não houvesse ocorrido a morte de Afonso VI, provocando, esse simples
facto, o rápido despoletar da ousadia e do furor militar dos muçulmanos,38 talvez não se
tivessem produzido as dolorosamente recordadas perdas das praças de Sintra e, em
1111, Santarém, sob o comando de Sir b. Abi Bakr, sem que o máximo responsável pela
sua defesa, o conde franco Henrique, o houvesse podido ou sabido evitar.39 Na

36
Mesmo que Afonso VI não seja apresentado nos Anais de Grijó como um rei explicitamente santo e
mártir, a insistência textual numa sua ferida martirológica aproxima-o da imagem de vários outros reis
europeus, sobretudo francos, ingleses e escandinavos, a quem a literatura hagiográfica dos séculos VI a
XII transformou em santos mártires, quer porque teriam sido heróis da fé contra os pagãos, quer por se
apresentarem enquanto vítimas de uma morte injusta e violenta, ou, ainda, por terem derramado sangue
em combate: Robert Folz, Les saints rois du Moyen Âge en Occident (VIe-XIIIe siècles), Bruxelas, 1984,
pp. 55-65. Acerca da forma como o Papado se posicionou sobre o martírio dos guerreiros durante a
segunda metade do século XI, consulte-se Jean Flori, “Guerre sainte et rétributions spirituelles dans la 2e
moitié du XIe siècle (lutte contre l’ islam ou pour la papauté?)”, Revue d’ histoire ecclésiastique, 85
(1990), pp. 627-641.
37
AG, Era 1148, pp. 301-302: … factum est magnum infortunium supra christianos qui ibant ad
Santarem in loco qui dicitur Vatalandi; dum enim uellent ibi christiani figere tentoria et requiescere tum
subito ex improuiso multitudo Sarracenorum et Moabitarum et Arabum audito numero eorum uenerunt
super eos repente et imparatos eos inuenientes interfecerunt ex eis plurimos, ibique mortuus fuit Suarius
Fromarigis pater Domni Nuno Suariz qui erat dux super eos et Mido Cresconis pater Domni Joannis
Midiz.
38
AG, Era 1147, p. 301: … audientes enim Sarraceni mortem regis D. Alphonsi ceperunt rebellare.
39
AG, Era 1147, p. 301 (capta fuit Sintria a comite D. Henrico), e Era 1149, p. 302 (rex Cyrus cepit
Santarem). Sobre Sintra, José Mattoso, para além de chamar a atenção para a circunstância da notícia ter
sido certamente mal transcrita, visto “o contexto dela, que fala da «rebeldia» dos Sarracenos, encorajados
pela morte de Afonso VI” levar “a pensar que deveriam ser eles a tomá-la ao conde e não o contrário”,
sendo, aliás, pouco provável que Henrique conseguisse tomar um castelo tão inexpugnável e tão próximo
de Lisboa num momento em que a ofensiva almorávida se tornara mais intensa, também observa que,
embora os anais se pronunciem negativamente sobre a perda condal da vila, o facto de ela só então
ocorrer apenas serve para demonstrar como ele foi capaz de suster, durante muito tempo, as fortes
pressões militares do inimigo: José Mattoso, “Dois séculos...”, loc. cit., pp. 34-35. Relativamente à
tomada de Santarém por Sir b. Abi Bakr, consulte-se a carta que tal chefe militar enviou, nessa ocasião, ao
soberano almorávida Ali b. Yusuf, nela se explicando a extrema importância estratégica da cidade para o
domínio da linha do Tejo; cf. Christophe Picard, op. cit., p. 142.

10
perspectiva dos letrados de S. Salvador, talvez assim se pudesse ter evitado a perda
cristã do território do Entre Tejo e Mondego, como, de resto, o próprio retorno das lutas
civis internas que os Anais de Santo Tirso tanto tinham evocado a propósito do governo
portucalense dos antigos condes de origem asturiana.

Na verdade, em 1111, o ano da última das notícias compiladas pelos Anais de


Grijó, assistia-se em Coimbra, quando a cidade assumia de novo a posição de dianteira
da fronteira cristã com o Islão, a uma revolta contra o governo de Henrique. Tanto o
clima de generalizada insegurança face ao perigo almorávida, como as perturbações
políticas ligadas à sucessão a Afonso VI e até a entrada em funções episcopais de
Gonçalo Pais de Paiva, um prelado bastante apostado em fazer vingar na diocese a
reforma franco-romana que nela era contestada pelos defensores da tradição hispano-
moçárabe,40 contribuíram, no seu conjunto, para que um grupo de cavaleiros urbanos,
chefiados por Martim Moniz e pelo prior do cabido da Sé, Martinho Simões, se
rebelasse contra o predomínio político-religioso dos francos e respectivos apoiantes no
governo da cidade e da sua diocese.41 O conde foi forçado a deslocar-se a Coimbra para
restaurar a sua autoridade e viu-se obrigado a reconhecer algumas das causas defendidas
pelos insurrectos, nomeadamente o ratificar no novo foral então outorgado ao concelho
a reivindicação de que o juiz e o alcaide da cidade fossem dela naturais.42

Nenhum destes sucessos e tensões foi objecto de uma explícita menção analística.
Todavia, as memórias de Grijó não deixam de lhes aludir, quando registam, para 1091, a
notícia da morte de Sisnando Davides, o primeiro governador de Coimbra após a sua
restauração cristã por Fernando I.43 Ora, tendo ele sido, durante largos anos, o

40
Em relação às tensões político-religiosas provocadas no reino de Castela-Leão pela supressão do ritual
hispano-visigótico-moçárabe e a sua substituição pelo franco-romano, assim como acerca da intervenção
do Papado reformador na Península cristã dos finais do século XI e começos do XII, veja-se Demetrio
Mansilla, “El Reino de Castilla y el Papado en tiempos de Alfonso VI (1065-1109)”, Estudios sobre
Alfonso VI y la reconquista de Toledo. Actas del II congreso internacional de estudios mozárabes,
Toledo, 1987, vol. 1, pp. 31-82.
41
Sobre a identidade e a sociologia dos cavaleiros insurrectos, consulte-se Leontina Ventura e Ana
Santiago Faria, Livro Santo de Santa Cruz. Cartulário do séc. XII, Coimbra, 1990, pp. 45-60.
42
Sobre estes acontecimentos vejam-se Gérard Pradalié, “Les faux de la cathédrale et la crise à Coïmbre
au début du XIIe siècle”, Mélanges de la Casa de Velázquez, 10 (1974), pp. 77-98, e José Mattoso, “Dois
séculos...”, loc. cit., pp. 42-43. Para uma visão de conjunto dos aspectos religiosos implicados na revolta
de Coimbra, cf. Maria de Lurdes Rosa, “A religião no século: vivências e devoções dos leigos”, História
religiosa de Portugal, dir. Carlos Moreira Azevedo, Lisboa, 2000, vol. 1, pp. 433-440.
43
AG, Era 1129, p. 300. Os elementos relativos a uma biografia de Sisnando encontram-se reunidos em
José Mattoso, “Sesnando”, Dicionário ilustrado da história de Portugal, coord. José Costa Pereira,
Lisboa, 1985, vol. 2, p. 224, baseando-se, nomeadamente, em Emilio García Gómez & R. Ménendez

11
incontestado dirigente da comunidade moçárabe conimbricense e, nessa qualidade, o
mais destacado opositor à introdução dos princípios franco-romanos, essa efeméride não
deixa de demonstrar como os monges procuraram preservar e prestigiar uma sua
memória, que as mencionadas revoltas contra o conde Henrique e contra o bispo da
cidade tinham necessariamente politizado.44 Sendo assim, S. Salvador de Grijó acaba
por se pronunciar criticamente sobre a forma arbitrária e, por vezes, violenta com que os
poderes franco-romanos impunham as suas normas e valores, tal como se passara, por
exemplo, quando certos cenóbios de tradição hispânica se viam forçados a rejeitar as
suas antigas regras de religiosidade e espiritualidade.

Entre eles encontrava-se aquele onde se produziram, cerca de 1118, os chamados


Anais de Lorvão.45 Constituídos por seis notícias sobre acontecimentos ocorridos entre
866 e 1064, todas elas relativas aos reis e aos antigos condes de origem asturiana,
precedem uma nómina dos abades do mosteiro, sintonizando, portanto, a história do
poder abacial de Lorvão com a da Reconquista régia e condal do Entre Douro e
Mondego.46 De incertas mas remotas origens, o cenóbio desempenhara um activo papel
no repovoamento cristão das áreas rurais do termo de Coimbra, logo após a conquista da
cidade em 878, o ano que os seus anais recordam como o da data em que ela foi tomada
pelo conde Hermenegildo.47 Com efeito, graças à protecção e às doações feitas pelos
reis das Astúrias, os condes conimbricenses e os cavaleiros moçárabes, o mosteiro

Pidal, “El conde mozárabe Sisnando Davídiz y la política de Alfonso VI con los taifas”, Al-Andalus, 12
(1947), pp. 27-41, Avelino de Jesus da Costa, “Sesnando (século XI)”, Dicionário de história de
Portugal, dir. Joel Serrão, Lisboa, 1968, vol. 3, pp. 848-849, e António Borges Coelho, Comunas ou
concelhos, Lisboa, 19862, pp. 83-97.
44
Sobre as vicissitudes históricas por que passou o núcleo moçárabe de Coimbra, considerem-se a síntese
muito esclarecedora de Gérard Pradalié, “Du Portugal mozarabe au Portugal romanisé: l’ exemple de
Combre”, Histoire du Portugal, histoire européenne. Actes du colloque, Paris, 1987, pp. 15-17, e os
elementos recolhidos em Saul António Gomes, “Grupos étnico-religiosos e estrangeiros”, Portugal em
definição de fronteiras (1096-1325). Do Condado Portucalense à crise do século XIV, coord. de Maria
Helena da Cruz Coelho & Armando Luís de Carvalho Homem, Lisboa, 1996, pp. 340-347.
45
Editado por Alexandre Herculano, Portugaliae Monumenta Historica. Scriptores, Lisboa, 1856, p. 20,
e doravante identificado pela sigla AL. Sobre o contexto político-cultural em que foram redigidos, veja-se
Luís Krus, A produção do passado..., op. cit., pp. 9-10.
46
Para além de assinalarem o ano do início do reinado de Afonso III, recordando como o rei fora ungido
no dia de Pentecostes, e os das mortes do conde portucalense Vímara Peres e do monarca Afonso VI, os
Anais de Lorvão limitam-se a registar as notícias das primeiras ocupações cristãs do Porto e de Coimbra
(868 e 878, respectivamente), assim como a definitiva ocupação da cidade do Mondego (1064). Sobre os
condes presores dos tempos de Afonso III das Astúrias, cf. José Mattoso, Ricos-homens, infanções e
cavaleiros..., op. cit., pp. 20-25.
47
AL, Era 916, p. 20: … prendita est conimbria ad ermegildo comite.

12
adquiriu, ao longo do século X, um extenso património.48 Contudo, tal prosperidade
sofre um retrocesso com a reconquista muçulmana de 987, já que ela trouxe consigo, a
médio prazo, a inevitável erosão da sua riqueza fundiária. Passando a situar-se em
território islâmico, foi então vítima de delapidações e destruições patrimoniais, em parte
oriundas dos fossados e razias feitas pelos cristãos em terras inimigas, situação que iria
permanecer e arrastar-se até ao último quartel do século XI.

Durante o abaciado de Eusébio, entre 1086 e 1118, o mosteiro recupera o seu


antigo poder e prestígio. Passando, mais uma vez, a ser fortemente apoiado pelos
cavaleiros moçárabes, atravessa significativas transformações institucionais: adopta os
costumes cluniacenses, é extinto e doado à Sé de Coimbra em 1109, por decisão do
conde Henrique, para o colocar sob a alçada do poder episcopal e assim anular a sua
condição de apoiante do tradicionalismo hispano-moçárabe, acaba por ser restaurado em
1116, com o compromisso de permanecer fiel ao espírito reformista gregoriano e de se
sujeitar a uma apertada vigilância espiritual por parte de Gonçalo Pais de Paiva.49 Neste
contexto, perfeitamente sintonizado com a afirmação e repressão da crise moçárabe, é
organizada uma compilação de todos os documentos confirmativos da legitimidade da
posse, por parte da comunidade de S. Mamede, dos bens e direitos que lhe haviam sido
sonegados durante as convulsões fronteiriças do século XI, revelando-se, nesse sentido,
como um claro protesto contra os poderes instituídos que tinham recentemente posto em
causa o seu prestígio, antiguidade e identidade espiritual. É no interior deste cartulário,
datado de 1116 ou 1117, pelo qual Lorvão procurou defender o seu ameaçado
património e privilégios, que se encontram os referidos anais, aí redigidos e integrados
por ocasião da morte do abade Eusébio, em 1118.50

48
A documentação do cartório de Lorvão atesta, desde 927, um importante surto de doações de terras ao
longo do vale do Mondego, testemunhando o parcelamento da propriedade agrária do cenóbio em
algumas zonas e a posse do padroado de diversas igrejas locais, o notável protagonismo então
desenvolvido pela instituição nos campos conimbricenses. Nos finais do século X, o património de
Lorvão ainda assiste a uma maior expansão graças a doações piedosas provenientes de cavaleiros
obrigados a deslocar-se para Norte devido à instabilidade política e militar que então atingiu a dianteira da
fronteira com o Islão. Cf. Rui de Azevedo, O mosteiro de Lorvão na Reconquista cristã, sep. de Arquivo
histórico de Portugal, 1 (1933), pp. 22-29.
49
Cf. Rui de Azevedo, O mosteiro de Lorvão..., op. cit., p. 35.
50
Cartulário intitulado de Testamentorum Coenobii Laurbanensis. Cf. Luís Krus, A produção do
passado..., op. cit., p. 9. Mais que testemunhar o estado em que se encontram os arquivos de determinada
instituição no tempo em que é realizado, um cartulário é o resultado de um processo de selecção dos
documentos que devem ser ou não preservados, pelo que a sua compilação obedece mais a propósitos
memorialisticos do que, propriamente, a um continuado e exaustivo programa administrativo,
respondendo, nesse sentido, à necessidade de reformular o passado em função das necessidades do

13
De uma forma geral, a memória que transmitem não se encontra particularmente
interessada em fixar recordações relativas à Reconquista, à qual devia, contudo, uma
significativa parte da sua história e prosperidade. Antes procura lembrar o seu grandioso
e glorioso passado, registando apenas as notícias da conquista cristã de Coimbra, em
878, e a sua reocupação, em 1064, como meio de evocar, numa época em que a sua
autonomia fora seriamente ameaçada, o apoio que a realeza e os condes das Astúrias-
Leão sempre lhe haviam manifestado. Sendo assim, os Anais de Lorvão construíram
uma memória tradicionalista que não encontrou eco e continuidade na sociedade e na
cultura letrada do seu tempo. Reivindicando o prestígio de um passado régio e condal
leonês numa época muito marcada por esforços de autonomia, cisão e hostilidade
regional para com a coroa de Castela e Leão, eles não encontraram um auditório
receptivo, não tendo sido, por isso, referenciados nos círculos letrados locais.

***

Em síntese, a produção analística do Ocidente cristão ibérico, dos finais do século


XI e começos do XII, evoca a memória de um passado onde a fronteira e a guerra com o
Islão se revelam omnipresentes. Mesmo que esse não tenha sido o seu exclusivo ou
principal propósito, tendo em conta a diversidade dos contextos de produção de cada um
dos anais, o certo é que o tipo de lembranças que eles seleccionam acerca do passado
reflecte o quotidiano e o imaginário de uma sociedade condicionada pela guerra e pela
violência, tanto nos tempos idos como nos do presente.

Nos Anais de Santo Tirso celebra-se o papel histórico desempenhado pelos


infanções na guerra da fronteira, atribuindo-se-lhes, ao mesmo tempo que se lança uma
má recordação sobre as acções guerreiras outrora praticadas pelos condes para a
salvaguarda de uma Cristandade há muito ameaçada pelo Islão, o papel de
imprescindíveis garantes militares da sobrevivência da sociedade portucalense. Nos
Anais de Grijó, por seu lado, se continua o mesmo quadro de reflexão acerca do
passado, as lições a tirar para o presente parecem ir mais longe, já que, numa conjuntura
histórica marcada pela violenta pressão militar almorávida se evocam os novos condes e
poderes franco-romanos implantados na fronteira como principais responsáveis pela

presente; assim, mais que uma colecção de documentos, ele identifica uma narratio. Cf. Patrick J. Geary,
op. cit., pp. 81-114.

14
debilidade de uma Cristandade que apenas encontra na memória e na acção dos feitos
guerreiros praticados pelos infanções algum lenitivo e esperança de futuro. Por último,
nos Anais de Lorvão o passado serve de contraponto à denegação de um presente
considerado inglório e prepotente, servindo as memórias dos idos tempos da realeza e da
nobreza condal das Astúrias-Leão como aristocrática e contemplativa consolação para
as supostas e terríveis arbitrariedades da contemporânea, impiedosa e punida
Cristandade da fronteira com o Islão.

15

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