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O Chamado do

Coração
(Call of the Heart)

Barbara Cartland

Coleção Barbara Cartland Nº 216

Título original: Call of the Heart
Copyright: © Barbara Cartland 1975
Tradução: Carmita Andrade
Copyright para a língua portuguesa: 1988

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3º andar 
CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Caixa Postal 2372
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.

Impressa na Artes Gráficas Parâmetro Ltda.

Revisão e Digitalização:
Lalitha já ouvira falar de noivas
abandonadas no altar, noivos nunca.
Achava que eram histórias que a mãe
lhe contava nos seus felizes dias de
criança.
Agora, vivendo de favor na casa de
sua madrasta, recebeu uma tarefa
bastante perigosa.
Para salvar sua irmã de um enlace
indesejado, teria de levar uma carta,
sozinha, a lorde Rothwyn, na igreja
marcada para o casamento.
Porém, ao chegar lá, o pavor obrigou­a
a fugir desesperada.
O belo e irascível noivo queria que ela
tomasse o lugar da fugitiva!

NOTA DA AUTORA

O tráfico de mulheres e crianças da Inglaterra para o continente europeu crescia dia
a dia. Foi só depois da aprovação de uma emenda no Código Penal, que as jovens inglesas
cessaram de ser enviadas a outros países para serem vendidas como animais.
William   Thomas   Stead,   editor   da  Pall   Mall   Gazette  começou,   em   1880,   uma
campanha   no   sentido   de   instigar   a   indignação   popular   contra   esse   mercado,   e   ver   se
conseguia com isso transformar em lei uma emenda cuja aprovação vinha sendo adiada
pelo Parlamento por anos a fio.
A   fim   de   provar   que   esse   tráfico   realmente   existia,   ele   mesmo   comprou   uma
menina de treze anos, cuja mãe concordou em receber a quantia de uma libra. Ele exigiu
um certificado por um médico de que a menina era virgem, e levou­a a França, colocando­
a num albergue a cargo do Exército da Salvação.
Em seguida, publicou em seu jornal o que fizera, e logo despertou o interesse do
público. Mas isso lhe custou uma condenação a três anos de cadeia.
Em 14 de abril de 1885, uma lei foi aprovada no Parlamento, por 179 votos contra
71,   proibindo   a   escravidão   de   crianças   e   mulheres,   e   suprimindo   gradativamente   os
bordéis.
O tráfico de mulheres ainda floresce em muitas regiões do mundo, especialmente
no Oriente Médio.
CAPÍTULO I

— Sophie, você não pode fazer isso! — disse Lalitha.
— Faço o que quero! — replicou Sophie.
Era  difícil   imaginar   que   alguém  pudesse   ser   mais  linda  que  Sophie.  Os  cabelos
dourados, a pele branca e rosada, as feições perfeitas, faziam de Sophie Studley a jovem
mais   famosa   da   corte   de   St.   James.   Após   a   estadia   de   um   mês   em   Londres,   ela   foi
proclamada a "Incomparável" e, depois de dois meses, ficou noiva de Julius Verton que,
com a morte do tio, se tornaria o duque de Yelverton.
Anunciado   o   noivado   na  Gazette,  os   presentes   começaram   a   chegar   à   casa   de
Mayfair,   que   lady   Studley,   a   filha   e   a   enteada   ocupavam   durante   a   temporada   em
Londres.
Porém,   duas   semanas   antes   do   casamento,   Sophie   declarava   sua   intenção   de
romper o noivado e fugir com lorde Rothwyn.
— Vai haver um tremendo escândalo! — protestava Lalitha. — Afinal, por que agir
assim, Sophie?
Ao lado de Sophie, o ideal de beleza de todos os homens, Lalitha tinha um aspecto
doentio, patético  de  dar pena. Uma enfermidade  que  a cometera  durante  o inverno, a
deixara pele sobre ossos. E, por causa das longas horas que passava costurando para sua
madastra,   a   mãe   de   Sophie,   com   luz   inadequada,   seus   olhos   estavam   constantemente
vermelhos   e   inchados.   Ela   possuía   cabelos   tão   opacos   que   pareciam   quase   cinzentos;
penteados para trás, davam­lhe um ar de austeridade.
As duas moças tinham mais ou menos a mesma idade, mas, enquanto Sophie era a
personificação   de   saúde   e   da   alegria   de   viver,   Lalitha   assemelhava­se   a   uma   sombra
prestes a desfalecer.
— Julius será um dia duque, mas quando? — prosseguiu Sophie. — O duque de
Yelverton, seu tio, não tem mais que sessenta anos, e poderá viver ainda dez ou quinze
anos.   Até   lá,   estarei   bastante   velha   para   usufruir   de   minha   posição   de   duquesa   com
prazer.
— Você continuará sendo bonita, Sophie — insistia Lalitha.
Sophie olhou­se no espelho. Sorriu com satisfação ao contemplar sua imagem ali
refletida. Não havia dúvida de que seu vestido azul pálido de crepe lhe ia muito bem. O
corpete justo, última moda em Paris, deixava sua cintura muito fina, acentuada também
pelas saias rodadas guarnecidas de buquês de flores e ruches de tule.
— É verdade — concordou Sophie calmamente. — Ainda serei bonita, mas queria
me tornar uma duquesa já, para ocupar um lugar de honra na coroação do próximo rei.
Nosso cansativo e decrépito monarca com certeza morrerá logo. E eu não pretendo esperar
eternamente até que o duque de Yelverton resolva desaparecer do mundo dos vivos. Estou
decidida a fugir com lorde Rothwyn esta noite mesmo! Tudo foi preparado para isso.
— Acha de fato essa sua atitude prudente? — indagou Lalitha. 
— Sem   dúvida.   Lorde   Rothwyn   é   muito   rico,   um   dos   homens   mais   ricos   da
Inglaterra,   e   amigo   íntimo   do   príncipe   regente,   o   que   significa   que   ocupa   lugar   de
destaque na corte da Inglaterra.
— É mais velho que o Sr. Verton. Contudo, apesar de nunca tê­lo visto, imagino que
seja atraente.
— E é. Seus cabelos escuros e ar cético lhe dão muito charme.
— Ele ama você, Sophie?
— Ele me adora! Aliás, os dois me adoram! Não obstante, comparando­se um ao
outro, lorde Rothwyn é o melhor partido.
— Porém, Sophie, o mais importante é saber com qual dos dois você será mais feliz.
É o que realmente conta num casamento.
— Você anda lendo outra vez aqueles romances bobos, Lalitha. Se mamãe a pega
com um desses livros na mão, vai ter de haver com ela.
— Você pode admitir um casamento sem amor, Sophie?
— Claro.   Vou   me   casar   com   quem   me   oferecer   melhores   vantagens.   E   lorde
Rothwyn é rico, muitíssimo rico!
Recentemente   Sophie  recebera  três   pedidos  de  casamento:  um  de  Julius  Verton,
futuro duque de Yelverton; o segundo, na última semana, de lorde Rothwyn; e o terceiro,
que   Sophie   pusera   de   lado   imediatamente,   de   sir   Thomas   Whernside,   um   velho   e
dissoluto jogador que se apaixonara à primeira vista pela bela Sophie.
Quando Julius Verton propôs casamento a Sophie, ela se considerou a mulher mais
feliz   do   mundo.   Um   dia   seria   duquesa.   Todavia,   existiam   alguns   senões   a   serem
considerados e, o pior deles, era que Julius possuía pouco dinheiro. Vivia da mesada do
tio, aliás bem pequena, o que obrigaria o casal a morar modestamente no campo, até que
herdasse a fortuna dos Yelverton.
O casamento teria lugar na igreja de St. George, em Hanover Square, antes que o
príncipe regente partisse para Brighton.
Sophie   passava   os   dias   experimentando   vestidos,   recebendo   presentes   que
chegavam diariamente em sua casa em Hill Street, e agradecendo as congratulações.
Ela   e   a   mãe,   por   não   terem   residido   em   Londres   muito   tempo,   não   possuíam
grandes   amizades   na   cidade.   A   verdadeira   casa   delas   era   em   Norfolk,   onde   os
antepassados do falecido lorde Studley haviam morado desde os tempos de Cromwell.
Studley era um nome respeitado naquele local, porém pouco conhecido no beau monde de
Londres. O sucesso de Sophie deveu­se portanto, exclusivamente à sua beleza.
Tudo  ocorria  normalmente  até o  dia em que  lorde  Rothwyn apareceu  em  cena.
Sophie encontrou­o num dos muitos bailes a que ela e Julius eram convidados, noite após
noite.
Lord   Kothwyn   estivera   afastado   de   Londres   e   ficou   boquiaberto   quando   a
contemplou com a luz das velas incidindo sobre seus cabelos dourados, e com aquela pele
alva como a neve, Sophie era mesmo capaz de virar a cabeça de qualquer homem quando
dirigia a ele seu cativante sorriso.
— De onde veio essa criatura? — ela ouviu alguém dizer e, virando­se, deu de cara
com um homem moreno e atraente, que a fitava extasiado.
Não se surpreendeu, contudo, pois estava acostumada a tais reações da parte dos
homens.
— Quem é esse cavalheiro que acaba de entrar na sala? — indagou Sophie ao rapaz
que a acompanhava.
— É lorde Rothwyn — respondeu o jovem. — Não foi ainda apresentada a ele?
— Nunca o vi antes.
— É um homem um tanto estranho e de atitudes imprevisíveis, mas riquíssimo, e o
regente o consulta sempre na execução de todos esses edifícios loucos espalhados pela
cidade.
— Bem,   se   foi  ele   quem   aprovou   o   novo   pavilhão   em   Brighton,  deve   ser   louco
mesmo!   —   exclamou   Sophie.   —   Ouvi   ontem   alguém   o   descrever   como   um   pesadelo
indiano!
— Ótima comparação! — concordou o rapaz. — Mas vejo que Rothwyn está ansioso
por conhecê­la.
Nesse instante, um amigo comum conduziu o lorde para perto de Sophie, dizendo:
— Miss Studley, permita­me apresentar­lhe lorde Rothwyn. Acho que esses dois
ornamentos de nossa sociedade precisam se conhecer.
Lorde Rothwyn inclinou­se com uma elegância fora do comum, e Sophie saudou­o
graciosamente, sabendo­se admirada.
— Estive   viajando   —   explicou­lhe   lorde   Rothwyn.   —   E,   ao   voltar,   constato   que
Londres foi visitada por um meteoro tão saturado de divinos poderes, que tudo parece ter
mudado aqui da noite para o dia.
Foi   o   começo   de   uma   corte   ardente,   impetuosa,   violenta,   que   deixou   Sophie
encantada.
Flores, cartas e presentes chegavam a cada instante. Lorde Rothwyn levara Sophie
passear em seu faetonte, e a convidava, juntamente  com a mãe, para seu camarote na
ópera. Finalmente, organizou uma grande festa em homenagem  à jovem, em Rothwyn
House, que excedeu em grandiosidade, luxo e entretenimento a qualquer outra festa a que
Sophie fora convidada.
— Sua   Alteza   Real   compareceu!   —   contou   Sophie   mais   tarde   a   Lalitha.   —   E,
enquanto ele me felicitava por meu noivado com Julius, podia notar que lorde Rothwyn
estava a meus pés. Ele me adora! Se tivesse pedido minha mão antes de Julius, seria meu
noivo hoje!
E agora, repentinamente, Sophie decidia fugir com lorde Rothwyn, abandonando
Julius.
— Vou sacrificar toda a cerimônia de meu casamento — declarava Sophie. — Não
terei damas de honra, recepção, nem vestido de noiva, mas Sua Senhoria me prometeu
uma enorme festa assim que voltarmos de nossa lua­de­mel.
— Todo  o mundo vai ficar  chocado  por você romper o compromisso  com o Sr.
Verton dessa maneira cruel, Sophie — Lalitha insistia hesitante.
— Isso não vai impedir que "todo o mundo" aceite o convite para comparecer a
Rothwyn House — garantia Sophie. — As chances de Julius poder proporcionar festas, até
se tornar duque, serão mínimas.
— Ainda acho que você deveria se casar com o homem a quem deu sua palavra.
— Graças   a  Deus   não   tenho   esse   tipo   de   consciência   —   replicou   Sophie.   —   Ao
mesmo tempo, vou fazer Sua Senhoria entender o sacrifício que estou fazendo em favor
dele.
— Lorde Rothwyn pensa que você o ama?
— Claro   que   pensa.   Eu   lhe   disse   que   fugia   com   ele   por   estar   perdidamente
apaixonada.   —   Sophie   sorriu.   —   É   fácil   amar   alguém   rico   como   Rothwyn.   Todavia,
lamento  não poder  usar um dia a coroa de  duquesa,  que ficaria muito bem  em meus
cabelos dourados.
Ela deu um suspiro, e depois acrescentou:
— Bem, talvez lorde Rothwyn não viva muito. Nesse caso, viúva rica, poderei me
casar com Julius.
— Sophie! — Lalitha estava horrorizada. — Que coisa feia você está dizendo!
— Por que feia? Afinal, Elisabeth Gunning não era mais bonita que eu e casou­se
duas vezes com dois duques. Chamavam­na até de "a dupla duquesa".
Lalitha não respondeu, sabendo que nada demoveria Sophie de seu intento.
Sentada em frente à penteadeira, Sophie se contemplava no espelho. Ela observou:
— Este meu vestido é perfeito para eu ir ao encontro de lorde Rothwyn. Como vai
estar um pouco fresco à noite, usarei a capa de veludo azul enfeitada de arminho.
— Lorde Rothwyn vem buscar você aqui?
— Claro que não! — replicou Sophie. — Pensa que mamãe não sabe de nada acerca
de nossos planos. — Sorriu. — Pode­se ver logo que ele não conhece bem mamãe.
— Aonde você vai se encontrar com ele?
— No adro da igreja de St. Alphage, ao norte de Grosvenor Square. É um templo
pequeno, escuro e mais ou menos pobre, porém Sua Senhoria acredita perfeito para o tipo
de casamento que vamos ter. O mais importante é que o vigário pode ser subornado para
conservar a boca fechada sobre a cerimônia.
— E para onde vocês pretendem ir após o casamento?
Sophie sacudiu os ombros e respondeu:
— Por acaso isso interessa, desde que seja um lugar confortável? Terei a aliança em
meu dedo e serei lady Rothwyn.
— E que vai fazer com o Sr. Verton? — perguntou Lalitha.
— Escrevi algumas linhas para ele e mamãe mandará um lacaio entregá­las quando
eu já estiver na igreja. E, como Julius encontra­ se com a avó em Wimbledon, só vai recebê­
las bem depois do casamento. Será tarde demais para ele desafiar Sua Senhoria em duelo.
— Sinto pelo Sr. Verton. Ele a ama muito, Sophie.
— Sei disso. Mas francamente, Lalitha, sempre o achei imaturo e cacete!
Essa resposta não surpreendeu Lalitha. Sabia desde o início do noivado que Sophie
não estava interessada no Sr. Verton como homem. As cartas cheias de paixão que ele lhe
escrevia permaneciam fechadas sobre o aparador, e Sophie mal olhava para as flores e
invariavelmente queixava­se dos presentes enviados pelo noivo.
— Que horas são? — indagou ela.
— Sete e meia. — informou Lalitha.
— Por que você ainda não me trouxe alguma coisa para comer?
— Vou buscar já seu jantar.
— Providencie que seja bom. Preciso de algo nutritivo para que possa enfrentar o
que tenho a fazer esta noite. Não é coisa fácil.
— A que horas você vai se encontrar com Sua Senhoria?
— Ele estará na igreja às nove e meia, mas tenciono deixá­lo esperando por mim. É
bom   que   fique   um   pouco   apreensivo.   —   Quando   Lalitha   ia   saindo   do   quarto,   Sophie
gritou: — Mande o lacaio agora para Wimbledon, pois ele levará mais ou menos uma hora
para chegar lá. A nota está na minha escrivaninha.
— Vou procurá­la — respondeu Lalitha.
Com o bilhete na mão, ela desceu para a cozinha. Havia lá poucas empregadas, de
péssima qualidade. Eram mal pagas, e o pouco dinheiro que lady Studley possuía gastava­
o no aluguel da casa em Londres e nas roupas de Sophie, isso tudo usado como isca a fim
de atrair um bom partido para a filha.
Quem  sofria  com  a  situação   era   Lalitha.  Enquanto  moravam  no  campo,  mesmo
depois da morte do pai dela, grande número de velhos serviçais continuou fiel â família,
trabalhando   mais   por   afeição   que   por   dinheiro.   Em   Londres,   contudo,   Lalitha   viu­se
revezando hora com a cozinheira, ora com a arrumadeira ou até com
O menino de recados, e ocupava­se das primeiras horas do dia às últimas da noite.
A madrasta maltratava­a com indisfarçada crueldade, principalmente em Londres, onde
não se encontravam os antigos empregados que conheciam a menina desde que nascera.
Às  vezes Lalitha se convencia de que a madrasta esperava que ela morresse de
exaustão, o que consistiria num alívio para todos. Em conseqüência do excesso de trabalho
ela adoecera e ficara muito fraca pois, durante o tempo em que estivera acamada, ninguém
levou­lhe comida no quarto. Depois de dias e dias sem alimentação, resolveu levantar­se e
ir à cozinha à procura de alimento.
— Se você sente­se bem para comer, está boa também para o trabalho — a madrasta
lhe dissera, e Lalitha voltara à lida, fazendo na casa um pouco de tudo, e corrigindo o mau
serviço dos criados.
Naquela hora, com o recado de Sophie, ela entrou na cozinha, cômodo escuro e
necessitando   de   pintura,   não   muito   limpo   também.   Um   lacaio   estava   sentado   à   mesa
bebendo   um   copo   de   cerveja,   e   uma   mulher   grisalha,   em   frente   ao   fogão,   cozinhava
alguma coisa com odor pouco apetitoso. Era a cozinheira da casa, uma imigrante irlandesa
que fora contratada numa agência de empregados, sendo a única que aceitara o miserável
salário que lady Studley podia pagar.
Lalitha dirigiu­se ao lacaio:
— Você quer, por favor, levar este recado à velha duquesa em Yelverton House?
Fica, penso, na comunidade de Wimbledon.
— Só vou quando terminar com minha cerveja — replicou o criado, de má vontade.
Não se levantou ao falar com Lalitha. Todos os serviçais aprenderam bem depressa
que   ela   não   era   pessoa   importante   na   casa,   e   davam­lhe   menos   consideração   do   que
recebiam de seus empregados.
— Obrigada — agradeceu Lalitha e, fitando a cozinheira: — Miss Studley deseja
alguma coisa para comer.
— Não há muito. Preparo um ensopado para nós, mas ainda não está pronto.
— Talvez haja ovos para uma omelete — sugeriu Lalitha.
— Não posso interromper meu serviço agora — replicou a mulher de maneira bem
atrevida.
— Então eu mesma faço — disse Lalitha.
Ela contava com aquilo, de qualquer modo. Apanhou uma frigideira, que por sinal
teve de ser lavada, e preparou uma omelete de cogumelos. Colocou­a sobre fatias de pão e,
juntamente   com   um   bule   de   café,   encaminhou­se   para   a   porta.   Ia   saindo   da   cozinha
quando o lacaio resmungou;
— É   muito   tarde   agora   para   eu   ir   até   Wimbledon.   Não   pode   essa   incumbência
esperar até amanhã?
— Sabe que não pode! — replicou Lalitha.
—  Sim, eu sei, mas não acho justo eu ter de me arriscar fora de Londres à noite,
quando as estradas estão infestadas de ladrões.
— Eles não têm nada a roubar de você — refutou a cozinheira às gargalhadas. —
Mexa­se, e, quando voltar, seu jantar estará pronto.
Lalitha foi com a bandeja para o quarto de Sophie e pensava pelo caminho em como
sua mãe se irritaria se ouvisse os empregados falando daquele jeito em sua presença. E, só
em pensar na mãe, seus olhos se encheram de lágrimas.
Sentia­se cansada, pois trabalhara muito naquele dia. Além de limpar a casa toda e
fazer as camas, executara inúmeras ordens de Sophie. Seus pés doíam e ela ansiava pelo
momento em que pudesse se sentar e descansar um pouco. Mas esse era um privilégio que
teria apenas tarde da noite, quando se retirasse para dormir. » Abriu a porta do quarto de
Sophie que foi logo dizendo, num tom de voz bem desagradável:
— Como você demorou!
— Desculpe, mas não havia nada pronto.
— O que me trouxe?
— Eu mesma preparei esta omelete.
— Não entendo  por que não providencia outras coisas para esta casa — Sophie
censurou­a. — Você é uma incompetente!
— O nosso açougueiro não quer mais fornecer carne enquanto não pagarmos as
contas atrasadas — explicou­lhe Lalitha. — E quando o peixeiro passou por aqui hoje, sua
mãe estava fora e ele não nos deu crédito nem para um pedaço de bacalhau.
— Você sempre com suas desculpas bobas. Me dá essa omelete e sirva­me o café.
— Acho  que estão  batendo  na porta da frente — observou Lalitha. — Jim foi a
Yerlverton House com seu recado e a cozinheira nunca atende à porta.
Então, vá você ver quem é — ordenou Sophie de mau modo.
Lalitha obedeceu. Do lado de fora estava um criado de libré que lhe entregou um
bilhete.
— É para miss Sophie Studley, madame — disse ele.
— Obrigada!
Lalitha   julgou   que   se   tratasse   de   outra   carta   de   amor   para   Sophie.   Essas  cartas
chegavam de todas as horas do dia.
Quando   ela   começou   a   subir   as   escadas,   ouviu   um   grito   vindo   do   quarto   dos
fundos.   Lady   Studley   dormia   num   pequeno   cômodo   no   andar   térreo,   pois   detestava
escadas.
Lalitha pôs o bilhete sobre um aparador e foi ao quarto da madrasta. Lady Studley
preparava­se para uma recepção a que iria em meia hora. Ela era uma mulher um tanto
pesada, que fora bonita na juventude, mas cujos traços fisionômicos haviam endurecido
com o decorrer dos anos, e engordara muito. Era difícil acreditar que fosse a mãe da bela
Sophie. E, apesar de se comportar de maneira agradável em sociedade, lady Studley, para
os que conviviam com ela, podia ser crudelíssima. 
—Venha cá, Lalitha! A madrasta berrou.
Tinha nas mãos um vestido de renda com a bainha descosturada.
— Eu lhe disse ante ontem para arrumar este vestido!
— Sei — replicou Latitha. — Porém, não tive tempo, e não posso fazer isso agora.
Meus olhos ardem muito e é impossível costurar uma fazenda tão delicada à luz de velas.
— Você   sempre   arranja   desculpas   para   sua   incompetência   e   preguiça.   Sua
vagabunda! Me fez perder a paciência! Quando lhe dou uma ordem, essa ordem deve ser
executada imediatamente!
Dito isso, lady Studley atirou o vestido no chão, aos pés de Lalitha, e gritou:
— Apanhe isso! E, para que não se esqueça de me obedecer, vou lhe dar uma boa
lição.
Ela atravessou a sala e pegou uma bengala. Voltou com ela na mão e deu uma
violenta   bengalada   nas   costas   de   Lalitha,   que   ainda   estava   abaixada   para   apanhar   o
vestido. A jovem gemeu, e a madrasta golpeou­a novamente, e mais uma vez, até que o
sangue jorrasse­lhe pelas costas.
— Maldita! — berrava lady Studley. — Eu lhe ensino qual é seu lugar nesta casa!
Lalitha não podia respirar  tal a dor que sentia. Quase desfaleceu. De repente, a
porta se abriu e Sophie entrou abruptamente.
— Mamãe! Mamãe!
Lady Studley parou com a bengala no ar.
— Sabe o que aconteceu? — prosseguiu Sophie.
— Que foi?
Ignorando   a   figura   de   Lalitha   jogada   ali   no   chão,   Sophie   entregou   a   carta   que
acabara de chegar, e que se encontrava sobre o aparador ao pé da escada.
— O duque de Yelverton está morrendo! — exclamou ela.
— Morrendo? Como soube?
— Alguém me escreveu, a pedido de Julius, explicando que ele teve de partir com
urgência para Hampshire.
— Deixe­me ver essa carta — pediu Lady Studley, arrancando o papel das mãos da
filha. Leu em voz alta:

"O Sr. Julius pediu­me que lhe comunicasse, madame, que ele lamenta muito não poder
comparecer a sua casa esta noite, conforme prometido. Foi chamado para junto do leito de morte de
seu tio, Sua Graça o duque de Yelverton. Acredita que Sua Graça não passe desta noite. O Sr.
Julius partiu à pressas, por esse motivo não teve tempo de escrever­lhe pessoalmente.
Com muito respeito, Christopher Dewar".

— Viu o que aconteceu, mamãe? — Sophie exclamou com voz de triunfo.
— Quem  poderia  acreditar  numa coisa dessas?  E lorde  Rothwyn esperando  por
você!
— Mas, mamãe, tenho chance de me transformar numa duquesa logo!
— Claro que tem! E não há dúvida sobre qual dos dois cavalheiros você deve pôr
de lado.
— Vou me comunicar com lorde Rothwyn e dizer­lhe que não lenho condições de
me casar com ele — observou Sophie. — Vai ficar furioso!
— A culpa é dele mesmo! Não devia ter consentido em fugir com você.
— Mas não posso deixá­lo esperando por mim na igreja! — De repente, ela gritou:.
— Mamãe!
— Que foi?
— Minha carta para Julius! Pedi a Lalitha que mandasse a um Iacaio entregá­la na
casa da avó.
Ambas olharam para Lalitha que se levantava do chão, gemendo. Tinha o rosto
branco como cera e os olhos congestionados.
— Lalitha! Que você fez da nota destinada ao Sr. Verton? — perguntou­lhe lady
Studley.
— Eu a dei... ao lacaio. E ele já saiu.
—Saiu? — gritou Sophie. — Alguém precisa ir atrás dele.
—Tudo bem, minha filha — lady Studley acalmou­a. — Julius não vai estar na casa
da avó. De acordo com essa carta do Sr. Dewar, ele já deve ter seguido para Hampshire.
Sophie deu um suspiro de alívio.
—Claro! Claro!
—O que precisamos fazer é ir à casa da velha senhora amanhã cedo para recolhei a
carta — continuou lady Studley. — Podemos um com uma desculpa qualquer, que você
mudou de idéia, por exemplo, acerca de algo que escreveu.
—Você é muito inteligente, mam ãe!
— Se não fosse, você não estaria onde se encontra hoje!
— E o que vamos fazer sobre lorde Rothwyn?
—Ele precisa entender que você desistiu de fugir. Não lhe conte a verdadeira razão,
naturalmente. Explique­lhe que pensou melhor e concluiu não ser honesto quebrar seu
compromisso com Julius.
— Ótimo! Excelente idéia! — concordou Sophie. — Devo escrever uma carta a ele?
— Não! Não! — protestou lady Studley. — Uma carta seria comprometera. Nunca
escreva uma coisa dessas, pode um dia se transformar numa prova contra você.
— Mas eu não quero ir falar com ele! — protestou Sophie alarmada.
— Por que não?
— Porque, francamente, mamãe, lorde Rothwyn me assusta um pouco. Não quero
entrar em discussões com ele. É pessoa muito hábil e pode extorquir a verdade de mim.
Muitas vezes tive dificuldade em responder a perguntas dele.
— Não me parece, nesse caso, que seja o marido ideal! Bem, mas se você não for
alguém precisa ir. Talvez eu?
— Não, você não, mamãe. Menti a ele dizendo o quanto você reprovaria nossa fuga,
se soubesse dela. — Sophie sorriu. — Isso o fez ficar até mais audaz.
— Não duvido — concordou lady Studley. — Não há nada melhor que a oposição
para fazer um homem agressivo.
— Então, como vamos nos comunicar com ele?
— Lalitha fará isso, embora só Deus saiba a confusão que ela irá criar.
Lalitha já estava de pé, e com passos trôpegos encaminhou­se para a porta com o
vestido de renda nas mãos.
— Onde vai? — indagou­lhe lady Studley.
Lalitha não respondeu e, hesitante, fitou a madrasta com os olhos ainda cheios de
lágrimas. Seu rosto tinha uma palidez impressionante.
— É melhor você lhe dar alguma coisa para beber, mamãe — pediu Sophie. — Dá a
impressão de que Lalitha vai morrer agora mesmo.
— E seria uma sorte para nós.
— Bem, mamãe, mas ao menos a conserve viva até que transmita a lorde Rothwyn
a notícia.
— Essa Lalitha não passa de um estorvo em nossa vida! — exclamou lady Studley,
dirigindo­se para a cômoda onde havia uma garrafa de conhaque. Ela colocou dois dedos
no copo e deu­o a Lalitha.
— Beba! — ordenou. — Embora considere uma coisa boa demais para gastar com
um espantalho!
— Vou ficar... Bem logo — declarou Lalitha, rejeitando a bebida.
— Faça o que estou mandando, sem discutir, a menos que queira outra surra.
Com dificuldade, fazendo esforço para andar, Lalitha foi para junto da madrasta e
pegou o copo. Ainda que detestasse conhaque, bebeu­o devagar.
— Agora ouça Lalitha, o que vou lhe dizer. Se cometer algum engano, apanhará até
desfalecer — ameaçou­a lady Studley com veemência.
— Estou... Ouvindo... — murmurou Lalitha.
— Você vai à igreja de St. Alphage, de carruagem, às nove e meia. Encontrará lá
lorde Rothwyn e explicará a ele que Sophie é honesta demais para romper com a palavra
dada ao Sr. Verton. Diga a ele que Sophie preferiu casar­se com Julius a magoá­lo, fugindo
nas vésperas do casamento. Entendeu?
— Sim — respondeu Lalitha. — Mas... Por favor... Não me force a fazer isso.
— Já lhe disse o que acontecerá se não me obedecer! — E Lady Studley pegou a
bengala.
— Não mamãe — gritou Sophie. — Se bater mais em Lalitha ela poderá desmaiar e
ficar completamente  inutilizada. Deixe  que  eu me entendo  com ela. Temos ainda uma
hora.
— Muito bem — concordou lady Studley a contragosto, como se lamentasse não ter
a oportunidade de bater mais em Lalitha.
Ouviu­se nesse instante uma pancada na porta.
Deve ser a carruagem para mim — disse lady Studley. — Vou a casa de lady Corey,
como   planejado;   ou   será   melhor   eu   ficar   em   i   asa   aguardando   pela   notícia   da   morte
iminente do duque?
— Acho, mamãe, que você deve ficar. Se Julius souber que foi a uma festa, vai se
aborrecer.
— Tem   razão.   Não   pensei   nisso,   que   idiota   sou.   Estava   ainda   refletindo   sobre
nossos problemas com lorde Rothwyn, e me esqueci completamente de Julius. — Lady
Studley sorriu. — Bem, vou ficar em casa e passar uma noite bem pouco atraente. Mas,
pelo   menos,   isso   me   dará   chance   de   fazer   planos   para   o   futuro!   Oh,   querida,   sempre
desejei ver em você uma coroa de duquesa!
— Graças a deus recebi a notícia a tempo! Não me perdoaria se tivesse fugido com
lorde Rothwyn e depois recebido a notícia que Julius era um duque.
— Tivemos sorte! — exclamou lady Studley. — Agora, tire esse vestido, Sophie, não
quero que o estrague. É um de seus melhores. E leve esse fantasma daqui com você; só de
olhar para ela fico irritada!
— Ao menos Lalitha será útil para nós uma vez na vida. Não temos mais ninguém
para mandar ao encontro de lorde Rothwyn.
— Ele vai se chocar — caçoou lady Studley. — Jamais vi homem tão apaixonado
como lorde Rothwyn.
— Mas se recuperará logo — replicou Sophie.
Ela saiu do quarto acompanhada de Lalitha que mal podia caminhar.
— Venha   depressa!   —   berrou   Sophie.   —   Sabe   muito   bem   que   não   consigo   me
despir sem seu auxílio.
— Sophie,   não   me   obrigue   a   ir   ao   encontro   de   lorde   Rothwyn   —   suplicou­lhe
Lalitha. — Ele vai ficar furioso comigo, mais do que sua mãe.
— Por que não a chama de "mamãe"? Já lhe foi dito isso muitas vezes.
— É... Mamãe...
— Não me surpreende que mamãe a castigue com tanta freqüência. Você é uma
tonta, Lalitha, e se lorde Rothwyn lhe der alguns tapas, é porque mereceu mesmo.
— Não posso agüentar... Mais pancadas hoje.
— Você já disse isso em muitas outras ocasiões. — Sophie fitou­a e prosseguiu de
maneira mais amável: — Talvez mamãe tenha exagerado um pouco. Ela é muito forte e
você frágil demais. Surpreende­me que a bengala não tenha quebrado em suas costas.
— Não... Quebrou?
— Não, porque, em tal caso, você não poderia andar.
— É,   tem   razão.   Porém,   de   qualquer   maneira,   não   vou   poder   enfrentar...   lorde
Rothwyn.
— Você nunca se encontrou com ele! Que sabe sobre a fúria de lorde Rothwyn?
Lalitha não respondeu e Sophie insistiu:
— Fale! Esconde alguma coisa?
— E que... li um livro chamado História das famílias famosas da Inglaterra.
— Interessante? Por que não o mostrou a mim?
— Você não gosta de ler — replicou Lalitha. — Ademais, tive medo de aborrecê­la.
— Aborrecer­me? Por que haveria eu de me aborrecer? Que diz o livro?
— Relata   as   origens   da   família   Rothwyn,   e   como   seu   fundador,   sir   Hengist
Rothwyn, venceu na vida, tendo sido um aventureiro pirata.
— Continue — pediu Sophie.
— Ele teve muito sucesso e era também conhecido como um homem impetuoso.
Por   séculos,   os   Rothwyn   vêm   herdando   esse   temperamento   incontrolável   de   seu
antepassado. O próprio nome de lorde Rothwyn, "Inigo", significa "violento".
— Dou graças a deus, então, por ter me livrado desse cavalheiro! — argumentou
Sophie.
— Havia no livro um verso sobre sir Hengist, escrito em 1540 — observou Lalitha.
— Que diz o verso?
Lalitha refletiu um pouco e depois, com voz fraca e trêmula, recitou:
"Olhos negros, cabelos negros, Fúria negra. Portanto, cuidado, Se um Rothwyn lhe jurar
vingança".
Sophie riu e caçoou:
Você não está pensando que eu vou ter medo dessa lengalenga, não?
CAPÍTULO II

Na carruagem,  a caminho  da igreja,  Lalitha desejou  não se sentir tão  doente.  O


conhaque lhe dera energia por algum tempo, mas depois sobreveio um cansaço difícil de
controlar, e a dor nas costas era quase insuportável.
De   certo   modo   ela   estava   grata   a   Sophie   por   ter   impedido   que   a   madrasta   lhe
batesse mais, como acontecera outras vezes.
Apenas uma semana antes lady Studley  fora ao quarto  de Lalitha com algumas
queixas, e encontrara a jovem já de camisola. Bateu­lhe tanto que a deixou inconsciente no
chão, e lá ela ficou por horas. Depois, vagarosamente, com o pouco de energia que lhe
restava, arrastou­se até a cama, mas sentia tanto frio que não conseguiu dormir. Bateu os
dentes a noite toda e, de manhã, na hora de se levantar, parecia mais fraca que nunca.
Com freqüência pedia a Deus que a levasse. Mas logo, pensava na mãe que com
certeza não aprovaria sua covardia. A mãe de Lalitha fora uma mulher pequena, frágil,
mas muito valente. "Todos precisam demonstrar coragem nas vicissitudes da vida", ela
dissera   certa   vez   à   filha.   "E   não   se   esqueça   de   que   tudo   requer   mais   força   mental   e
espiritual do que física."
Deixar   que   lady   Studley   a   matasse   seria   um   modo   covarde   de   escapar   do
intolerável inferno no qual se encontrava desde a morte do pai. E, transcorridos já dois
anos, Lalitha ainda tinha dificuldade em acreditar que os horrores pelos quais passava não
fazia parte de um pesadelo.
Pensando  em  sua  infância, lembrou­se  de  como  fora  feliz naqueles  dias  sempre
cheios de sol.
A mãe não era uma mulher forte fisicamente e, com o passar dos anos, não houve
dinheiro para que ela tivesse um tratamento de saúde adequado.
O   pai,   homem   forte,   sempre   de   bom   humor,   caridoso,   havia   sido   amado   e
respeitado  por  todos os que  viviam em sua  propriedade.  Com certeza  a generosidade
excessiva dele impediu­o de enriquecer. Jamais forçara um arrendatário necessitado a lhe
pagar o aluguel, ou despejara quem quer que fosse.
— Tenho que lhe dar nova chance — dizia ele invariavelmente.
Por   isso   nunca   havia   dinheiro   para   consertos,   nem   para   comprar   novos
implementos agrícolas, nem para a esposa e a filha.
A mãe de Lalitha não se importava, e dizia sempre: "Sou muito feliz com minha
filha e meu marido. São as pessoas mais maravilhosas do mundo".
Os três tinham os dias cheios, embora acontecessem poucas festas na grande casa
que   pertencera   aos   Studley   por   cinco   gerações   e   que   ficava   numa   parte   isolada   do
condado. Do ponto de vista da agricultura, a região era excelente, mas eles possuíam só
meia dúzia de vizinhos e que moravam bem distantes uns dos outros.
— Quando  você ficar mais velha, precisa  ir a Londres  para participar  de bailes,
recepções, coisas que eu adorei fazer quando jovem — a mãe de Lalitha costumava dizer­
lhe.
— Estou   muito   contente   aqui   com   você   e   papai   —   a   menina   respondia   com
sinceridade.
Mas  todas  as mães  gostam que  suas filhas sejam um  sucesso. Não  obstante,  eu
freqüentei a sociedade londrina e acabei me casando com o homem que conhecia desde
criança.   —   Ela   sorria   e   acrescentava:   —   Mas   foi   por   ter   contato   com   o   mundo,   por
conhecer homens elegantes e famosos em Londres, que me convenci de que seu pai era o
único homem que eu realmente amava, e com quem desejava passar o resto de minha
vida.
Você teve sorte, mamãe, pois as propriedades de meus avós, paternos e maternos, a
confinavam. Por esse motivo, seu pretendente estava na verdade  às portas de sua casa.
Porém não há homem algum para mim aqui.
Certo — concordava a mãe. — Daí economizarmos dinheiro para que, quando você
tiver dezessete anos e meio, possa deslumbrar o beau monde com seu rostinho lindo.
Jamais serei tão bonita como você, mamãe. Papai disse que nunca houve no mundo
mulher mais linda que você, e sei que isso é verdade.
— Esse comentário me lisonjeia. Vamos ver se vai repetir a mesma coisa quando
voltar de Londres...
Mas... Não houve temporada em Londres para Lalitha. A mãe morreu num frio
inverno, de repente, sem que houvesse tempo para se tomar providência alguma. Para
Lalitha, como para o pai, foi um desastre  tremendo  e inesperado. Num dia ela estava
rindo,  cuidando   da  caSa, encantando  a  todos com  quem  convivia.  No  dia  seguinte   só
restava um túmulo no pequeno cemitério ao lado da igreja, e uma casa vazia e silenciosa.
— Como pôde isso ter acontecido? — indagava Lalitha ao pai.
E ele repetia, pela milésima vez:
— Eu nem sabia que ela estava doente.
Com a morte da mulher, o pai de Lalitha começou a morrer lentamente. Mudou da
noite para o dia, transformando­se de um homem de constante bom humor, cheio de vida,
num indivíduo taciturno, melancólico, bebendo até altas horas da noite. Não conseguia
mais encontrar interesse em nada. Lalitha tentava tirá­lo daquela letargia, mas em vão.
Uma noite, quando voltava de uma estalagem onde estivera bebendo, sofreu um
acidente de trânsito. Foi encontrado só na manhã seguinte, e já em estado desesperador.
Levaram­no para casa e, durante dois longos meses ele ficou entre a vida e a morte. Foi
então que a Sra. Clements apareceu na casa, com o pretexto de ajudar. Lalitha lembrava­se
de   uma   conversa   que   seus   pais   haviam   tido   no   ano   anterior,   acerca   da   família   dessa
mulher.
— Você se lembra de um homem chamado Clements, dono de uma farmácia em
Norwich? — sir John Studley indagara.
— Sim, claro que me lembro dele — a mãe de Lalitha respondera. — Nunca prestei
muita atenção nesse homem, embora acredite que fosse bastante inteligente.
— Nós nos servíamos da farmácia dele, como meu pai e meu avô o fizeram. E agora
a filha está de volta à aldeia. Sinto­me na obrigação de ajudá­la a se restabelecer aqui.
— A filha? Lembro­me de ter havido qualquer problema com ela.
— E houve — replicara sir John. — Ela fugiu de casa quando tinha dezessete anos,
na companhia de um oficial do exército. O velho Clements ficou furioso e não quis mais
saber dela.
— Recordo­me bem desse incidente. Na ocasião, estávamos noivos e minha mãe
chocou­se muito com o ocorrido. Aliás, mamãe era bem rígida nesses assuntos.
— Era mesmo — concordara sir John com um sorriso. — Acho que sua mãe nunca
aprovou plenamente nosso casamento.
— De início; com o tempo, no entanto, ficou gostando de você, principalmente por
ver como eu era feliz.
— O que aconteceu com a filha do Sr. Clements? — interrogara Lalitha, que ouvia a
conversa com atenção.
— É o que estou tentando contar — respondera sir John. — Voltou para cá. Eu a vi
esta manhã e ela me pediu para alugar­lhe um chalé dentro de nossa propriedade.
— Oh, não queremos ninguém dessa espécie tão perto de nós! — a mãe de Lalitha
protestara.
— Tive pena da pobre mulher. Nunca conseguiu se casar com o homem com quem
fugira,   e   ele   a   deixou   após   alguns   anos.   Ela   se   mantém,   e   à   filha,   trabalhando   como
doméstica.
— Se o Sr. Clements estivesse vivo, sofreria muito — lady Stutlley observara. — Era
um homem orgulhoso e importante; uma ocasião se candidatara para prefeito; lembra­se?
— Bem, a família Clements não tem culpa do que aconteceu com a filha, e eu não
tive coragem de negar o que ela me pedia.
— E alugou o chalé?! — Lady Studley não podia acreditar.
Sim, aquele perto da igreja.  É pequeno, mas suficiente  para uma mulher e uma
criança.
— Você é bondoso demais, John, mas garanto que ela não será bem recebida em
nossa comunidade.
— Talvez. É ainda uma mulher bonita e tem uma filha da idade de Lalitha. Por
sinal, disse que poderia trabalhar aqui, como empregada.
— Não   precisamos   de   ninguém   no   momento   —   lady   Studley   respondera
prontamente.
E Lalitha só foi conhecer a Sra. Clements depois da morte da mãe. Inesperadamente
ela chegou na casa oferecendo­se para trabalhar como doméstica. Alguns antigos criados
haviam se aposentado, por isso foi aceita.
Para sir John não fazia nenhuma diferença ser ela contratada ou não. Estava sempre
alheio a tudo e, depois de mais ou menos recuperado, continuou bebendo sem parar.
A Sra. Clements provou ser boa enfermeira. Tratava de sir John com carinho, o que
despertou logo a admiração de Lalitha. Era a Sra. Clements quem conseguia fazê­lo comer,
quem mantinha o fogo da lareira do escritório aceso, quem o ajudava a se recolher à noite.
E, na hora de tomar decisões sobre os negócios da propriedade, Lalitha pedia a opinião
dela que, com voz suave, cheia de afeto, conseguiu enganar facilmente uma pessoa como
Lalitha, jovem ingênua de dezesseis anos apenas. Instalou­se na casa com a filha Sophia,
moça de rara beleza.
Porém,   após   a   morte   de   sir.   John,   a   Sra.   Clements   revelou   sua   verdadeira
personalidade.
Uma tarde, Lalitha resolveu escrever para um tio que morava na Cornualha. A mãe
sempre planejara visitar esse irmão algum dia: "Você vai gostar de Ambrose", dizia ela à
filha. "É bem mais velho que eu e foi quem me ensinou a amar o campo. Por esse motivo
nunca me senti tentada pelo torvelinho da vida social de Londres". Contudo, nunca houve
tempo nem dinheiro para aquela visita.
O tio não comparecera ao funeral da irmã mas mandara uma coroa acompanhada
de longa carta revelando a sir John como lamentava a morte dela.
"Vou escrever ao tio Ambrose agora", Lalitha disse a si mesma. "Talvez me convide
para morar com ele."
Sentou­se na escrivaninha do pai e começava a escrever quando a Sra. Clements
entrou no escritório.
— Preciso falar com você, Lalitha — declarou ela em tom autoritário, bem diferente
do usual. Usara também o nome de batismo de Lalitha, o que esta considerou grande
atrevimento.
— Pois não, Sra. Clements. Que deseja?
— Quero que saiba que me casei com seu pai! 
— Casou­se com papai? Impossível!
— Sim, nos casamos — repetiu ela furiosa. — Sou lady Studley.
— Mas quando se casaram e em que igreja?
— Não   faça   perguntas   desnecessárias!   Aceite   a   situação   e   considere­se   minha
enteada.
— Não posso... Acreditar nisso. Vou escrever ao tio Ambrose pedindo para ir morar
com ele na Cornualha. Titio não soube da morte de papai, por essa razão não me escreveu.
— Proíbo que você escreva essa carta!
— Proíbe?! — Lalitha estava perplexa.
— Sou sua tutora legal e você terá de me obedecer. Não se comunique com seu tio e
nem com nenhum de seus parentes. Vai morar aqui comigo, e não se esqueça de que sou a
dona desta casa.
— Mas isso não é justo! — protestou Lalitha. — Papai sempre me disse que esta
casa seria minha, como também a fazenda.
— Você vai ter dificuldade em provar o que diz.
Alguns dias mais tarde, apareceu na casa um advogado, um homem que Lalitha
nunca vira antes. Apresentou um testamento escrito numa caligrafia trêmula, que poderia
ou não ter sido a de lorde Studley após o acidente. Ele deixara tudo o que possuía "à
minha querida esposa Gladys Clements", e nada à filha.
Lalitha achou que havia algo de errado naquilo, mas o advogado insistiu que tudo
estava perfeitamente de acordo com a lei.
Porém, assim que ele saiu, Lalitha sentou­se para escrever uma carta ao tio.
A Sra. Clements, que exigia ser chamada lady Studley, viu­a com   i carta na mão a
caminho do correio. Foi quando lhe deu a primeira violenta surra. Bateu em Lalitha até
que   ela   gritasse   por   piedade   e   prometesse,   por   não   ter   outra   alternativa,   nunca   mais
escrever para o tio.
Mentalmente,   contudo,   Lalitha   enfrentava   a   mulher   que   se   dizia   sua   madrasta,
rejeitando­a, e um ódio profundo crescia ente ambas.
A nova lady Studley foi bastante esperta em não se associar com os vizinhos, e estes
ficaram  sabendo  de   maneira   indireta  que   ela  se  casara  com  sir  John dias  antes  de  ele
morrer,  e que  tomara posse da propriedade.  Poucos lembravam­se do que ela fora no
passado, e o nome "Clements" desapareceu depressa, como se nunca houvesse existido.
Não   obstante,   Lalitha   teve   um   choque   ao   perceber   que   Sophie   se   considerava   uma
Studley.
Você não é minha irmã — protestou ela. — Meu pai não foi seu pai; como pode
usar meu nome?
A mãe de Sophie entrava na sala nesse instante e observou:
— Quem disse a você que seu pai não foi o pai de Sophie também?
— Sabe   muito   bem   que   não   foi   —   replicou   Lalitha.   —   A   senhora   chegou   aqui
somente há um ano.
A madrasta não respondeu e, pelo espaço de um ano, nada mais foi dito sobre o
assunto. Lalitha notava, porém, que a nova lady Studley guardava para si toda a renda da
propriedade,  não  havendo  tolerância com os fazendeiros  que não  podiam pagar. Mais
ainda: as fazendas iam sendo vendidas uma a uma, juntamente com as pequenas casas, e
os jardineiros dispensados aos poucos; as flores que haviam dado tanto prazer à mãe de
Lalitha morriam abafadas pelas ervas daninhas.
Os objetos valiosos da casa também sumiam. Primeiro foi um par de espelhos da
época da rainha Anne, que decorava o dormitório principal. Depois, os retratos de família
foram enviados a Londres para serem leiloados.
— A   senhora   não   tem   direito   de   vender   tudo   isso   —   Lalitha   discutia   com   a
madrasta. — Pertence à minha família e, como papai não teve filho homem, gostaria que
meu filho herdasse essas preciosidades.
— E acha que vai ter um filho? — murmurava  Gladys Studley. — Imagina que
alguém vá se casar com você? Ou que eu a dispensaria de seus serviços de doméstica nesta
casa?
Falava com sarcasmo, pois Lalitha se transformara em nada mais nem nada menos
que uma empregada sem salário.
Sophie já estava com dezoito anos e Lalitha surpreendia­se pelo fato de a mãe não a
levar a Londres a fim de ser apresentada à sociedade. Sophie se tornara uma mulher de
rara beleza! Logo depois do Natal, contudo, Lalitha entendeu a razão dessa demora.
— Sophie está com dezessete anos e meio — lady Studley declarou sem mais nem
menos.
Lalitha fitou­a atônita, pois sabia que Sophie tinha dezoito anos completos.
— Ela nasceu no dia 3 de maio — acrescentou lady Studley.
— Mas, esse é o dia de meu aniversário — interpôs Lalitha. — Vou fazer dezoito
anos no dia 3 de maio.
— Você está enganada — Gladys a corrigiu. — Fez dezoito anos no dia 10 de julho
passado.
— Não!   Dez   de   julho   é   o   dia   do   aniversário   de   Sophie!   —   Lalitha   não   podia
acreditar em tudo aquilo.
— Quer discutir comigo? É isso que você quer? — a madrasta ameaçou­a, furiosa.
— Não... Não — respondeu Lalitha receosa, pois não ignorava que o castigo físico a
suas argumentações era sempre violento.
— Sophie é minha filha e de seu pai — explicou lady Studley.
Nasceu   dez   meses   após   nosso   casamento,   e   posso   provar   isso   facilmente.   Você
também é minha filha e de seu pai mas, infelizmente, nascida antes de nos casarmos.
— Que está dizendo? Não... entendo! — Lalitha gritou.
—E   supõe   que   alguém   vá   discutir   comigo   acerca   disso   quando
chegarmos em Londres? — indagou Gladys triunfante.
Latitha   não   teve   resposta.   Ela   não   conhecia   ninguém   em   Londres.  E,   quem
acreditaria na palavra dela contra a da nova lady Studley? Considerava­se vencida, não
havia   nada   que   pudesse   falei.   Mas   era   intolerável   admitir   que   aquela   mulher   vulgar,
intrometida, quisesse passar por sua mãe. Tomara o lugar dela e se apropriara de todo o
dinheiro.
Latitha estava completamente derrotada. Não tinha mais nem mesmo o aspecto de
uma  lady,  mas   o   de   uma   coitada  mantida   por   caridade   na  casa   que   um   dia   fora   sua.
Ordenaram­na que chamasse aquela aventureira de "mamãe" e, quando se esquecia de
fazê­lo era espancada brutalmente.
A nova lady Studley planejara sua entrada na sociedade com uma habilidade que
Lalitha não pôde deixar de considerar fabulosa! O dinheiro que ela acumulara não duraria
muito, mas era suficiente pura Sophie encontrar um pretendente rico. E Lalitha tinha a
impressão de que, quando isso acontecesse, ela seria jogada na sarjeta sem dinheiro algum.
Nesse meio tempo, no entanto, trabalhava como escrava.
Algumas vezes pensava em escrever para o tio, mas receava as conseqüências de
seu ato. E eis que, três semanas depois da chegada  delas em Londres, lady Studley jogou
um jornal na frente de Latitha, dizendo:
—Seu tio morreu! Leia! Morreu?!
— E não perca tempo chorando por ele! Vá cuidar de seus afazeres.
Ela percebeu então que sua última esperança se esvaía! Cada vez que terminava de
fazer   suas   inúmeras   tarefas,   estava   tão   exausta   que   só   queria   dormir.   Aos   poucos
começava   a  ter   a  sensação   de  que  seu  cérebro  se  deteriorava!  A   falta  de  comida  e   os
constantes espancamentos faziam­na alheia a tudo, tendo  às vezes dificuldade até para
entender o que lhe diziam.
Todos   esses   fatos   Lalitha   rememorava   na   carruagem   enquanto   se   dirigia   ao
encontro   de  lorde  Rothwyn.  Tentava se  recordar   do   que  devia  dizer  a  ele.  Sua  mente
parecia vazia e só tinha pensamento para as costas que doíam muito. O vestido grudara
nos ferimentos causados pelas bengaladas, e ela antecipava a dor que iria sentir na hora de
trocar de roupa.
Desabotoou o vestido sob a capa o mais que pôde. Ninguém a veria sem o agasalho,
pois tencionava voltar à casa assim que cumprisse sua tarefa, e banharia as partes mais
afetadas.
— "Se ao menos eu não tivesse de executar missão tão embaraçosa!" murmurava a
si mesma.
Por segundos, teve a idéia louca de fugir mas, para onde? Não possuía dinheiro
nem amigos e, se retornasse à casa antes de se confrontar com lorde Rothwyn, sabia muito
bem o que lhe iria acontecer.
A carruagem estava bem perto da igreja de St. Alphage. Ela já podia divisar a torre
e, logo depois, o portão de madeira do jardim. Mais além ficava o cemitério paroquial.
A madastra encomendara a carruagem num lugar onde tinha crédito, e o cocheiro
recebera ordem de esperar. Geralmente, em circunstâncias semelhantes, voltava a pé para
casa.
A carruagem parou. Ela cobriu o rosto com o capuz e tremia de frio e de medo.
"Não tenho nada a temer", tentava se iludir. "O problema não é meu, sou apenas
um... mensageiro."
Contudo, ao descer do veículo e ao atravessar o jardim mal podia controlar seus
nervos. Estava escuro  ao redor  apesar da lanterna pendurada  no  pórtico da igreja. As
pedras   tumulares   erguiam­se   como   sentinelas   acusadoras,   parecendo   chocadas   com   as
mentiras que ela iria contar.
Hesitante, Lalitha entrou na igreja, fúnebre e agourenta. De súbito, ouviu som de
passos e, antes que pudesse ver quem se aproximava, braços fortes a agarraram.
— Querida, você veio! Sabia que viria!
Quando ela virou­se protestar, um homem a beijou. O choque foi tão grande que a
deixou imóvel. E lábios possessivos, apaixonados, deixaram­na sem fala. Lalitha nunca
imaginara   que   um   beijo   pudesse   ser   assim.  Com   enorme   esforço,  desvencilhou­se   dos
braços que a prendiam.
— Por... favor — gaguejou. — Não sou... Sophie.
— Acabo de perceber!
Latitha fitou­o à luz das velas e viu que era um homem mais alto do que supusera.
Moreno e insinuante. Uma capa preta caía­lhe dos ombros e lhe dava o aspecto de um
grande e assustador morcego.
— Quem é você, afinal? — indagou ele de mau modo.
— Sou... Irmã de Sophie.
Latitha sentia ainda a pressão dos lábios dele nos seus, mesmo mio estando mais
sendo beijada.
— Irmã  de Sophie? Não sabia que Sophie tinha uma irmã. Por onde anda Sophie?
— A voz era dura e ameaçadora.
— Estou aqui justamente para lhe dizer, milorde, que ela não poda vir,
— Por que não?
Latitha procurava lembrar­se das palavras exatas que devia proferir.
—  Ela   sente  muito,  milorde...   Mas  não   teve  coragem   de   romper   compromisso...
Com o Sr. Verton.
—  E você precisava  inventar  essa mentira?  — berrou lorde  Rothwyn. — O que
aconteceu  é que sua irmã soube que o duque de Yelverton estava morrendo. Essa  é a
verdade, não é?
— Não... Sei.
— Mentirosa! Você é mentirosa como sua irmã. Acreditei nela quando dizia que me
amava. Poderia um homem ter sido mais idiota que eu?
Havia tanto ódio naquele tom de voz que Lalitha fez um esforço desesperado para
salvar Sophie da condenação.
— Não foi... Isso — gaguejou. — Ela apenas quer... Manter a promessa que fez...
Antes de conhecer... O senhor.
— Espera   que   eu   acredite   nessa   bobagem?   Não   acrescente   mais   mentiras
desnecessariamente. Sua irmã me fez de bobo. Mas, pensando bem, que mulher desistiria
de ser uma duquesa? Volte para casa e diga a ela que me ensinou algo de que nunca me
esquecerei. E mais ainda, eu a amaldiçôo, como me amaldiçôo também por ter confiado
nela.
— Não diga isso. Dá azar.
— Azar? Sua irmã não somente me privou de uma noiva, mas também me custou
uma aposta de dez mil libras!
— Como? — Lalitha não resistiu à curiosidade de saber de que aposta se tratava.
— Apostei essa quantia na crença de que Sophie era sincera, leal comigo, de que
não era uma esnobe como a maioria das mulheres; que a categoria social não contava para
ela mais que a afeição, mais que as juras de amor que me fizera.
— Não obstante, o amor é mais importante que um título para muitas mulheres —
Lalitha deixou escapar.
— Se há mulheres que põem o amor em primeiro lugar, ainda não tive o prazer de
encontrar uma delas.
— Talvez encontre... Um dia!
— Acha? — perguntou ele com ironia, e depois acrescentou: — Vá embora! Que
está   esperando?   Descreva   a   sua   irmã   minha   fúria,   minha   frustração   e,   claro,   meu
desaponto pelo que ela acaba de fazer!
Era tal a ira de lorde Rothwyn que Lalitha teve dificuldade em se mover. Parecia
hipnotizada, presa ao chão; não conseguia obedecê­lo, ainda que, ao mesmo tempo, tivesse
ímpetos de fugir dali!
— Dez mil libras! — repetia ele.
Em seguida, como se falasse consigo próprio, e com imenso rancor, prosseguiu em
voz alta:
— Eu mereço isso! Como pude ser tão idiota? Tão infantil a ponto de pensar que
Sophie era diferente das outras? — E depois, dirigindo­se a Lalitha: — Saia da minha
frente!   Diga   a   sua   irmã   que,   se   eu   puser   os   olhos   nela   outra   vez,   a   matarei!   Está   me
ouvindo? Eu a matarei!
Lorde Rothwyn parecia tão assustador que Lalitha decidiu voltar correndo para a
carruagem que a aguardava. Ao se virar, porém, sentiu uma tontura que a obrigou a parar.
Foi então que lorde Rothwyn lhe disse num tom um pouco menos ameaçador:
— Espere um momento! Se você é irmã de Sophie, então seu nome é Studley!
Lalitha encarou­o perplexa. Não podia imaginar por que estaria interessado em seu
nome. Ele aguardava uma resposta e, após segundos, Lalitha deu­a: —S... Sim.
— Tenho uma idéia que me permite salvar meu dinheiro e talvez, meu orgulho! Por
que não? Por que diabos, não? Venha comigo — ordenou ele, pegando Lalitha pelo braço.
— Mas... Para onde?
— Vai ver...
Dedos firmes seguraram­na, conduzindo­a na direção do altar.
—  O que está acontecendo? Para onde o senhor pretende... Me levar? — O pavor
tomava conta de Lalitha.
— Vai se casar comigo. Uma miss Studley é seguramente igual a outra, e seria uma
pena deixar o padre esperando em vão.
— O senhor não pode... Fazer isso! É loucura!
— Vai aprender que faço o que quero. Você vai se casar comigo e isso será uma boa
lição para sua irmã mentirosa e falsa, para ela saiba que não é a única mulher do mundo!
— Não... Não! Não posso... Fazer isso!
— Pode e vai!
Bem perto do altar, onde havia mais luz, Lalitha enxergou melhor o rosto de lorde
Rothwyn e comparou­o ao de Satanás. Nunca ela vira um homem tão atraente e ao mesmo
tempo   tão   enfurecido,   perdendo   até   o   controle   sobre   si.   Ele   não   a   largava,   quase
arrastando­a.
— Não... Não... O senhor não pode... Fazer isso! — protestava Lalitha, agora quase
num sussurro, pois a atmosfera da igreja Inspirava­lhe respeito.
Lorde Rothwyn nada dizia e Lalitha tentava libertar­se, mas era li ara demais contra
aquele demônio enraivecido.
— Por favor... Por favor... — ela continuava insistindo.
No altar, um padre os aguardava. Era um homem idoso, de cabelos brancos, face
enrugada e bondosa. Parecia ser quase cego, dando a impressão de que não os via bem.
— Caros noivos!... — o velho sacerdote começou a falar com voz trêmula.
O perfume dos lírios, as velas bruxuleantes, a paz e o silêncio do templo fizeram
com que Lalitha tomasse uma decisão.
"Não vou repetir as palavras que me tornarão esposa dele. Direi não, na hora exata."
— Sr. Inigo Alexander, quer receber esta mulher como sua esposa? — Ela ouviu o
padre dizer.
Lorde Rothwyn respondeu com voz forte, que ressoou por toda a nave. 
— Sim!
O padre dirigia­se a Lalitha quando lorde Rothwyn impediu­o, indagando:
— Como é seu nome de batismo, miss Studley?
— Lalitha... Mas não posso...
— O nome dela é Lalitha — disse ele ao padre.
Então este, com voz suave e cansada, fitou Lalitha e falou:
— Repita o que vou dizer: "Eu, Lalitha..."
— Não posso... Não posso! — ela sussurrava. Mas sentiu logo a pressão dos dedos
de lorde Rothwyn em seu braço.
Viu­se coagida a obedecer, como acontecia cada vez que a madrasta a forçava a
fazer alguma coisa. O mesmo pavor tomou conta dela, o pavor de quando esperava que
uma bengalada a atingisse.
Daí, quase automaticamente, gaguejou:
— Eu... Lalitha... Recebo I... Inigo... A... Alexander...
Os recém­casados saíram da igreja e tomaram a carruagem. Não a de Lalitha, mas
um veículo luxuoso, cujos cavalos tinham ar­ reios de prata, e com uma manta de pele
para ser colocada sobre os joelhos.
Ela não falava, contudo percebia que lorde Rothwyn continuava furioso, parecendo
que   um   ódio   emanava   do   corpo   dele,   invadindo   a   carruagem   como   uma   trovoada
assustadora pela sua intensidade.
Lalitha só pensava nas conseqüências de seu ato, pois tomara o lugar que deveria
ter sido o de Sophie no altar. Acreditava ao mesmo tempo estar sonhando; tudo aquilo não
podia ser verdade.
"Que vai suceder comigo? Que posso fazer?", ela se questionava durante o trajeto
todo. Estava exausta, mal podia respirar, linha a sensação de que, se caísse no chão da
carruagem, ficaria lá, sem poder se levantar.
Em pouco tempo, eles chegaram a uma casa magnífica, uma das mais lindas de
Park Lane.
Uma luz dourada se projetava no jardim, vinda da porta aberta, e criados de libré
cor de vinho e passamanaria dourada se apressaram em estender um tapete vermelho até
o carro.
Lalitha foi a primeira a descer e entrar na casa. Ficou estática ante a magnificência
do enorme hall de mármore cheio de estátuas de tamanho natural, colocadas em nichos
dourados.
Venha   por   aqui!   —   ordenou­lhe   lorde   Rothwyn,   segurando­   a   pelo   braço   e
conduzindo­a   a   uma   sala   também   majestosa.   Era   a   biblioteca,   abarrotada   de   livros
alinhados nas estantes. Havia uma enorme escrivaninha bem no centro da sala, e para lá
lorde Rothwyn se encaminhou.
Um lacaio acendeu dois candelabros, apesar de o recinto já estar iluminado pelas
arandelas laterais.
— Mais alguma coisa, milorde? — o mordomo indagou respeitosamente.
— Não. Deixe­nos a sós agora. Mande um lacaio falar comigo, por, preciso enviar
uma mensagem. Muito bem, milorde.
Lalitha sentou­se à escrivaninha, tremendo de medo. Lorde Rothwyn apanhou uma
folha de papel encimada por uma coroa dourada e disse:
— Agora, você vai escrever uma carta para sua irmã.
Automaticamente, ela tirou o capuz da cabeça. Tinha ainda dificuldade para mover
o braço, e lorde Rothwyn insistia: — Escreva!
Lalitha inclinou­se e começou a escrever o que ele lhe ditava:
 "Minha querida Sophie,
Dei seu recado a lorde Rothwyn e, como ele considerasse uma pena dispensar o trabalho do
padre e as festividades preparadas para você, tomei seu lugar e agora sou lady Rothwyn.
Você vai ficar muito contente, tenho certeza, ao saber que osboatos sobre a saúde de Sua
Graça o duque de Ylventon , eram infundados. Vamos esperar que Sua Graça continue a gozar de
boa saúde por muitos e muitos anos.
Lalitha parou de escrever. A expressão "boatos infundados" deixou­a intrigada.
— Como o senhor sabe que eram boatos infundados? — indagou ela. — Sua graça...
mora em Hampshire.
De repente, como se uma luz se acendesse em seu cérebro, Lalitha encarou lorde
Rothwyn, de pé ali peito dela, e exclamou:
— Não era... Verdade! Foi o senhor quem enviou o recado a Sophie! O duque não
está... Morrendo!
— Não, não está. Apenas usei dessa artimanha para testar sua irmã, e ela caiu na
rede.
— Como pôde fazer coisa tão cruel? — perguntou Lalitha.
— Cruel? Acha cruel pôr a prova o amor que ela jurava ter por mim? Um amor no
qual acreditei piamente, mas que existia só na minha imaginação? Vamos! Acabe com essa
carta logo! O lacaio está esperando! ­
— Não posso... Escrever mais — queixou­se Lalitha. — Elas vão me matar! Vão me
matar por eu ter tomado parte nisso tudo!
Havia terror na voz dela. Pousou a pena na escrivaninha e ficou olhando para as
palavras que escrevera, e que dançavam diante de seus olhos.
— Devo estar louca! Louca por haver permitido... Que o senhor... Me forçasse a esse
casamento! Exclamou ela. — Não posso... Agüentar...
Lalitha cobriu o rosto com as mãos e inclinou a cabeça. Com o movimento, a capa
escorregou lhe dos ombros e caiu no chão.
— Continue!   —   lorde   Rothwyn   grilava.   Esse   momento   não   é   para   fraquezas.
Ninguém vai maltratar você por tomar parte nesta farsa, isso eu prometo!
— Eu não devia... Ter consentido... — O desespero de Lalitha era enorme.
Nesse   instante,   lorde   Rothwyn   viu   o   estado   das   costas   dela.   Apanhou   um
candelabro para examinar melhor as chagas que ainda sangravam. O vestido de Lalitha
estava desabotoado até a cintura, e podiam­se ver as marcas das bengaladas cruzando­lhe
as costas.
— Meu Deus! — gritou lorde Rothwyn. Depois, num tom de voz diferente do que
usara até então, interrogou­a: — Quem a tratou dessa maneira? Quem fez isso em você?
— Minha madrasta! — Mas logo ela corrigiu: — Não... Não... Foi minha mãe. Não
foi minha madrasta! Foi minha mãe!
Lorde   Rothwyn,   ainda   com   o   candelabro   na   mão,   parecia   perplexo,   e   Lalitha
continuava a se contradizer:
— Eu não falei madrasta... Juro que não falei madrasta! Porém, não posso mais ficar
aqui. Não posso!
Ela encarava­o suplicante, receando não ser ouvida. Fez com a mão um gesto de
desespero, e depois desmaiou, caindo aos pés dele.
CAPÍTULO III

Lorde Rothwyn olhou para o corpo inanimado de Lalitha e tocou a sineta.
Quando um lacaio entrou na sala, ele já estava com Lalitha nos braços e a levava
para as escadas que conduziam ao quarto.
Era um cômodo espaçoso que dava para o jardim dos fundos da mansão. Todo
enfeitado com lírios brancos, tinha sido preparado provavelmente para receber os noivos.
Lorde Rothwyn colocou Lalitha na cama com muito cuidado, deitando­a de lado
para que não ficasse com as costas feridas em contato com os lençóis, e ficou olhando para
ela, incrédulo.
À luz das velas do  quarto  ele pôde constatar  que os braços de Lalitha também
estavam   machucados.   Concluiu   então   que,   quando   ele   a   arrastara   pela   igreja,   a   fizera
sofrer muito fisicamente, além de tê­la assustado.
Lalitha não se movia. A porta abriu­se e uma senhora idosa entrou. Tinha um rosto
bondoso,   enrugado,   cabelos   grisalhos,   e   usava   o   convencional   uniforme   cinzento   das
governantas.
— Mandou me chamar, milorde?
— Venha cá Nattie — respondeu Lorde Rothwyn, com um suspiro de alívio.
A governanta foi para perto da cama c viu as horríveis marcas nas costas de Lalitha.
— Master Inigo! — exclamou. —  Quem fez isso?
— Não fui eu, Nattie. Jamais trataria uma mulher assim, nem mesmo um animal.
— Quem poderia ter sido tão infame?
— Outra mulher!
— Que devemos fazer agora?
— É o que lhe pergunto Nattie.
A governanta inclinou­se e afastou para os lados o vestido de
Lalitha. Sangrando, inflamado, vermelho, não havia um centímetro no corpo dela,
ao longo das costas do pescoço à cintura, que não tivesse sido atingido pelos golpes da
bengala.
— Ela   desmaiou!   Quando   voltar   a   si,   imagino   que   a   dor   será   insuportável   —
acrescentou Lord Rothwyn.
— E vai! — confirmou a governanta. — Precisamos de óleo de loureiro.
— Mandarei alguém à farmácia imediatamente!
— Farmácia nenhuma tem esse tipo de óleo — replicou ela.
— Então, como poderemos obtê­lo, Nattie?
— Na casa da mulher que vende ervas.
— Que   mulher   é   essa?   —   Lord   Rothwyn   começou   a   falar,   depois   exclamou:   —
Lembro­me agora! Mora perto de Roth. Minha mãe costumava conversar com ela.
— Essa mesmo. — Nattie tocou a testa de Lalitha para se certificar de que estava
viva, e indagou: — Quem é ela, milorde?
Após curta pausa, Lord Rothwyn respondeu:
— Minha mulher!
— O senhor casou­se com essa moça? Mas eu pensei... Nos contaram esta tarde
que...
— Que   eu   iria   trazer   para   casa   uma   mulher   de   rara   beleza   —   Lorde   Rothwyn
terminou o pensamento de Nattie, com evidente irritação. — Em vez disso, trouxe para
você, Nattie, alguém que necessita muito de seu cuidado e proteção.
— Farei o melhor que puder, milorde — respondeu ela, acariciando a cabeça de
Lalitha. — Mas temos também que confiar em Deus. Tudo está nas mãos dele!
Lalitha mexeu­se na cama e sentia­se feliz. Parecia ter voltado ao passado e sonhara
com a mãe.
Aquele   era   um   sonho   que   se   repetia   com   freqüência.   A   mãe   ficava   a   seu   lado,
carregava­a, e dava­lhe algo para beber.
— Mamãe... — Lalitha murmurou.
Abriu os olhos e acreditou estar ainda sonhando. Aquele quarto inundado de luz
ela jamais vira. O leito onde repousava tinha colunas entalhadas e, acima do consolo de
mármore da lareira havia um quadro de cores brilhantes.
Ela   fechou   os   olhos   de   novo.   Provavelmente   ainda   sonhava.   Depois,   por   estar
curiosa, olhou outra vez ao redor e viu que a lareira e o quadro continuavam no mesmo
lugar.
— Se está acordada, beba isso. Uma voz suave se fez ouvir.
Lalitha lembrou­se então de  que   ouvira   aquela   voz  antes, e que fizera parte de
seu sonho. Obedeceu instintivamente.
Uma mulher amável ergueu lhe o corpo e colocou um copo em seus lábios. Um
líquido doce como mel mitigou lhe a sede.
— Onde... Estou? — gaguejou ela, filando a bondosa mulher que sorria.
— Em Roth Park.
— Onde?
— Trouxeram a senhora para cá, milady.
— Mas... Por quê? — De súbito, Lalitha recordou­se de alguma coisa. Ela entrara na
igreja e um homem a beijara. Fora depois arrastada para o altar onde se casara.
Estava casada! Uma onda de medo percorreu­lhe o corpo... O homem com quem se
casara parecia furioso muito furioso... E ela tivera medo, muito medo... Depois, escrevera
uma   carta...   Uma   carta   para   Sophie...   Chegara   a  terminar   a   carta?   Que   acontecera   em
seguida?
Lembrava­se   de   ter   dito   algo   horrível,   algo   comprometedor.   Sentiu   um   medo
incrível, mas não conseguia saber exatamente o que revelara. Os fatos voltavam devagar à
sua mente, com intervalos de inconsciência, como se receasse recordar alguns pormenores.
— Vou pedir que lhe tragam qualquer coisa para comer — a mulher que estava a
seu lado declarou. — Se sentirá melhor depois que se alimentar.
Lalitha quis protestar, dizer que não estava com fome. O líquido que bebera fora
reconfortante,  a revigorara  a ponto  de  tornar  sua mente  bem  mais clara. Ainda  sentia
aquele gosto na boca.
A governanta tocou a sineta e alguém apareceu à porta do quarto. Ela deu algumas
ordens e voltou para o lado da cama.
— Ainda não sabe onde está? — perguntou ela a Lalitha.
— Não estou... Em Londres?
— Na verdade, não na cidade, mas muito perto. Estamos na propriedade de Sua
Senhoria, em Hertfordshire.
— Sua... Senhoria?
Essas palavras fizeram Lalitha estremecer. Agora se lembrava bem de tudo. Casara­
se com Lalitha, o nobre com quem Sophie rompera na última hora; o moreno, furioso e
assustador homem que preparara uma armadilha para Sophie, e com quem se casara.
"Por   que   tudo   aquilo?"   Lalitha   se   perguntava.   "Que   estaria   pensando   Sophie,
sabendo que fora enganada?"
Lembrou­se então de lady Studley e o pavor a invadiu por completo.
— Minha madrasta sabe... Onde estou? — perguntou ela com uma voz que não era
mais que um sussurro.
— Não sei — respondeu a velha senhora. — Porém, não se preocupe com coisa
alguma, Sua Senhoria está cuidando de tudo.
— Mas ele... é tão bravo!
— Não está bravo agora. Apenas deseja que Vossa Senhoria se recupere logo.
Aquelas palavras foram animadoras. Era muito bom saber que Lorde Rothwyn não
estava mais zangado.
Lalitha cerrou os olhos e adormeceu. Quando despertou, a comida a esperava.
Não   sentia   fome,   mas   agradava­lhe   saber   que   alguém   se   preocupava   com   ela,
alimentando­a às colheradas.
Dormiu novamente, mergulhando num país encantado, onde sua mãe se achava, e
onde não existia o medo.
Numa   certa   manhã,   Lalitha   acordou   e   sentiu   que   as   últimas   nuvens   haviam
desaparecido de sua mente, e pôde enxergar então os acontecimentos com mais nitidez.
O quarto parecia mais lindo que antes. As paredes brancas e douradas, as cortinas
cor­de­rosa   combinando   com   o   tapete,   os   enormes   espelhos   de   moldura   dourada,   os
quadros  e as flores, tudo enfim fazia parte do quarto ideal que algumas vezes Lalitha
imaginara poder possuir, mas que nunca vira antes.
Sabia agora que a velha governanta que tratava dela havia sido a babá de Lord
Rothwyn.
— Ele   era   um   menino   dócil,   e   "Nattie"   foi   a   primeira   palavra   que   pronunciou.
Grudou­se a mim desde os primeiros meses de vida — contou­lhe a governanta.
Ela   levou   o  breakfast  e   o   colocou   ao   lado   da   cama.   Lalitha   não   pôde   deixar   de
comparar a luxuosa porcelana de Worcester, a prata polida e a toalha bordada, com a
imunda cozinha da casa em Hill Street, onde geralmente comia.
Que   estaria   lady   Studley   imaginando   ter   acontecido   com   sua   enteada?   Que
explicações dera a ela Lord Rothwyn? Que diriam as duas mulheres quando a vissem de
novo.
Por não desejar responder a essas perguntas, Lalitha jogou­as ao esquecimento, e
tentava se concentrar no que Nattie dizia.
— Sabe que já engordou um pouco, milady? Tem alguns quilos a mais, garanto!
— Como é possível? Há quantos dias estou aqui?
— Há quase três semanas.
— Não! Três semanas? Mas como? Não percebi o tempo passar!
— Esteve muito doente — replicou Nattie. — O médico descreveu sua doença como
"exaustão   cerebral",   mas   não   prestei   atenção   ao   que   ele   dizia.   Foi   Sua   Senhoria   quem
insistiu em consultá­lo. A pessoa que a curou foi a mulher das ervas, milady. Não vai
reconhecer suas costas quando se olhar no espelho.
— A mulher das ervas? Quem é ela?
— É famosa por aqui, e pessoas vêm de Londres para consultá­la. Ela não permite
que se usem remédios receitados pelos médicos. Bobagem costuma dizer!
— É   chá   de   ervas   o   que   tenho   bebido?   —   perguntou   Lalitha.   —   Mesmo
inconsciente, percebi que era delicioso!
— Ervas   e   frutas   do   pomar   dessa   mulher,   e   mel   das   abelhas   dos   favos   que   ela
mantém. Acredita que só o mel de suas próprias colméias possuem poder curativo.
Lalitha ficou silenciosa por algum tempo, depois disse:
— Estou mesmo mais gorda?­
— Um pouco — replicou Nattie. — E já é um progresso.
Nattie foi até a penteadeira e pegou um pequeno espelho com moldura dourada.
Levou­o a Lalitha para que pudesse constatar a diferença. Era de fato enorme, ela não
parecia mais aquela menina de pele opaca, ossos salientes, olhos congestionados e cabelos
sem vida.
Ao contrário, agora seus olhos enormes tinham um brilho invulgar, a pele estava
transparente e com um ligeiro tom rosado. Seus cabelos, ondulados e brilhantes, caíam até
os ombros.
—Estou diferente, sem dúvida! — exclamou ela.
— E   vai   ficar   muito   melhor   depois   que   eu   terminar   com   seu   tratamento   —
prometeu Nattie. — Mas precisa me obedecer:
Lalitha sorriu. Ela notava um quê de carinho, zelo, em todas as ordens de Nattie. O
modo autoritário de ela falar escondia uma ternura que Lalitha jamais recebera de pessoas,
após a morte da mãe.
Aquilo era amor, de um certo modo o mesmo amor que a mãe lhe dedicara, porém
com suas características especiais, pois Nattie nunca tolerava "bobagens ou fraquezas".
— Vou fazer tudo o que você mandar, Nattie, porque eu quero ficar boa logo.
Ao falar, contudo, Lalitha se perguntava se realmente desejava recuperar sua saúde
depressa. Quando sã, teria problemas a enfrentar! Problemas talvez insuperáveis!
E não precisava refletir muito para saber de onde viriam os problemas: ele, lorde
Rothwyn,   estava   sempre   presente   naquele   quarto   em   seu   pensamento;   o   homem
assustador, bravo; e dessa imagem Lalitha não conseguia escapar.
Nattie trouxe­lhe uma camisola limpa, um elegante modelo feito em tecido suave,
enfeitado de renda. Penteou­lhe os cabelos também, tendo antes friccionado neles uma
loção que a mulher das ervas fornecera.
— Que é isso? — interrogou Lalitha.
— Uma   loção   feita   de   cinco   ­   folhas,   uma   gramínea   —   explicou   Nattie.   —   É
conhecida como a erva de Júpiter.
— Faz de fato os cabelos crescerem?
— Seus cabelos cresceram consideravelmente nestas últimas semanas. De qualquer
maneira, sempre acontece quando se está inconsciente.
— Nunca soube disso!
— Mas é verdade!
— Como pude ficar inconsciente por tanto tempo?
— Acordava   de   vez   em   quando,   mas   com   a   mente   confusa;   por   essa   razão
conversamos com Vossa Senhoria dormindo quase o tempo todo.
— Sob o efeito das ervas, penso — observou Lalitha com um sorriso.
— O sono é o remédio de Deus, embora a gente dê uma ajudazinha a Ele, claro.
— O que foi que a mulher das ervas receitou para mim? — Lalitha estava curiosa.
— Penso que um chá de folhas de alfena, de St. John Woet, e de papoula branca.
Mas pergunte você mesma a ela, ainda que não garanta que revele seus segredos.
Nattie escovou os cabelos de Lalitha mais uma vez; depois, cansada devido aos
cuidados   que   recebera,   Lalitha   adormeceu.   Quando   acordou,   a   tarde   já   ia   em   meio.
Serviram­lhe chá com canapés. Ao terminar de comer, Nattie comunicou­lhe:
— Sua Senhoria deseja falar.
— Sua... Senhoria? — Instintivamente Lalitha levou as mãos ao peito como para se
proteger.
— Ele veio vê­la aqui todos os dias, acompanhou seu progresso. — Nattie sorriu. —
Foi como se estivesse interessado na recuperação de um edifício em ruína, trabalho esse a
que dedica a maior parte de seu tempo.
Lalitha não deu resposta. Tremia de medo. Como iria enfrentar lorde Rothwyn?
Que diria a ele?
Um repentino pensamento perturbou­a. Com certeza ele ia querer discutir sobre o
futuro dela, e sobre como se livrar de um casamento sem nexo.
Lalitha   mal   notara   que   Nattie   havia   tirado   de   uma   gaveta   um   xale   de   chiffon
barrado de renda verdadeira, colocando­o sobre seus ombros. A governanta ajeitou um
pouco mais os cabelos de Lalitha e afofou os travesseiros. Ouviu­se logo uma pancada na
porta.
— Entre, milorde — Nattie disse, abrindo a porta.
Lalitha quase não podia respirar. Sem saber por que, esperava ver lorde Rothwyn
de   preto,   como   ele   se   apresentara   na   igreja.   Lembrava­se   bem   da   capa   que   o   fazia
assemelhar­se a um morcego de asas abertas.
Em vez disso, ele usava traje de montaria. Um paletó azul, bem talhado, plastrão
alto, calças brancas e botas reluzentes davam­ lhe um ar de extrema elegância e menos
assustador.
Lalitha levou uns segundos para ousar encará­lo, e constatou que ele não tinha mais
a   expressão   de   Satanás.   Ao   contrário,   era   o   homem   mais   sedutor   que   já   vira.   Alto   e
dominador, contrastava com a estrutura frágil dela, que parecia mais etérea que terrena
muito pequena naquele enorme leito de dossel e cortinas de veludo rosa­pálido.
O sol da tarde inundava o quarto, emprestando­lhe uma tonalidade dourada.
Lorde   Rothwyn   dizia   a   si   mesmo   que   nunca   vira   mulher   alguma   com   cabelos
daquela estranha coloração. Eram quase cinzentos, e os olhos de Lalitha eram cinzentos
também. O profundo cinzento do mar revolto, com uma tênue claridade vinda da linha do
horizonte.
— Fico muito contente por ver que está melhorando — declarou ele com voz grave.
Observou que Lalitha segurava o xale contra o peito. Ela não respondia nada, por
isso ele continuou:
— Você causou a Nattie e a mim grande preocupação. Porém, agora podemos ver
seu progresso a cada dia que passa. Muito breve terá condições de se levantar e passear
pelo jardim. Lá há flores lindas nesta época do ano.
— Eu gostaria... Muito... — Lalitha balbuciou.
— Então, faça tudo  que Nattie mandar.  É o que venho fazendo por toda minha
vida.
Ele sorriu, e um sorriso suave surgiu nos lábios de Lalitha, como resposta. Aí, só
para dizer alguma coisa, ela desculpou­se:
— Sinto muito pelo trabalho que tenho dado.
— Não há razão para se desculpar. Eu é que lhe devo desculpas.
— Era minha obrigação ter impedido que o senhor fizesse o que fez. Pensei nisso a
tarde toda... Errei muito em consentir... No nosso casamento.
— Não havia nada que você pudesse fazer, Lalitha.
— Fui... Covarde. Mamãe teria tido vergonha de mim. — Lalitha falava sem pensar.
Só depois lembrou­se de que precisava mentir acerca de sua verdadeira mãe.
Lorde   Rothwyn   viu   medo   nos   olhos   dela.   Aproximou   uma   cadeira   da   cama   e
sentou­se.
— Estamos casados, Lalitha — disse ele. — Não pode haver mentiras entre nós. Na
noite que você desmaiou por eu havê­la forçado cruelmente a se casar comigo, me contou
primeiro que sua madrasta, depois que sua mãe a linha espancado. Vamos tornar as coisas
bem claras: ninguém mais vai maltratá­la enquanto estiver sob minha proteção. Você é
minha esposa, e o passado deverá ser esquecido.
Uma nova luz surgiu nos olhos de Lalitha. Depois ela sussurrou, ainda receosa:
— Mas eu não posso... Ficar aqui... Para sempre.
— Por que não?
— Porque o senhor... Não me quer. Pode me mandar embora... Ninguém vai saber
que somos casados.
— Está tentando me convencer, Lalitha, de que pretende ocultar nosso casamento?
Que sumirá de minha vida?
— Não seria difícil — replicou ela. — É a solução mais viável que encontrei para
resolver nosso problema.
— Por que considera nossa situação um problema?
— Porque   eu   não   sou   o   tipo   de   esposa...   Para   o   senhor.   Vossa   Senhoria   não
pretendia se casar... Comigo.
— Forcei­a   a   esse   casamento,   e   ambos   sabemos   que   foi   um   ato   de   vingança.
Contudo,   tratou­se   de   um   contrato   legal   e   religioso.   Casei­me,   afinal,   com   uma   miss
Studley.
Lalitha ficou calada por um momento, em seguida inquiriu:
— Evitei que o senhor perdesse... a aposta de dez mil libras?
— Evitou, mas recusei receber o dinheiro.
— Por que motivo?
— Vou dizer­lhe a verdade, como também espero sempre ouvir a verdade de sua
boca. Quando  sua irmã  disse  que  fugiria comigo, revelei  essa decisão  a dois de  meus
amigos mais íntimos, e um deles considerou­me um verdadeiro idiota.
— Por quê?
— Ele comentou que a única coisa que Sophie Studley desejava era se casar com um
homem de projeção social e, se ela desistisse de Julius em meu favor, seria unicamente por
imaginar   que   o   duque,   tio   de   Julius,   viveria   por   muito   tempo.   Assim   sendo,   eu
representava para ela o melhor pretendente do ponto de vista financeiro.
Lalitha lembrou­se que Sophie dissera exatamente a mesma coisa. E lorde Rothwyn
continuou:
— Por amar muito sua irmã, briguei com meu amigo. "Sophie me ama", gritei, como
qualquer   garoto   apaixonado.   Então   meu   amigo   sugeriu:   "Vamos   pôr   Sophie   à   prova.
Aposto dez mil libras que, se ela pensar que o duque vai morrer esta noite, desistirá da
fuga e continuará com Julius Verton". Aceitei o desafio por acreditar que Sophie me amava
e, para provarmos isso, redigimos aquela carta que foi enviada a sua irmã um pouco antes
da hora combinada para nossa fuga.
— Que teste... Cruel — murmurou Lalitha.
— Cruel ou não, provou que eu estava de fato "bancando o bobo" e meu amigo
acertara.
— E ele ganhou a aposta.
— Na   verdade,   ganhou.   Lembrei­me   porém,   de   repente,   ainda   na   igreja,   que   o
contrato de casamento referia­se a "miss Studley", e não a "miss Sophie Studley".
— Entendo!   Mesmo   assim,   foi   muito   honesto   o   senhor   não   ter   ficado   com   o
dinheiro.
— Alegro­me por ver que me aprova. — Lorde Rothwyn sorriu.
— Mas o mal persiste — insistiu Lalitha.
— O mal? Que mal?
— Vossa senhoria continua casado... Comigo!
— Não descreveria nossa união como um "mal", Lalitha.
— O senhor disse para não fingirmos, então vamos falar francamente. O senhor
amava Sophie porque ela é linda, a moça mais bonita da Inglaterra. Ninguém pode ser
mais fascinante que ela! Eu não sou uma esposa amada ou admirada por meu marido. O
mais simples, nessas circunstâncias, é o senhor se livrar de mim.
— Pensa assim realmente, não? — lorde Rothwyn falou bem devagar.
— Preocupo­me com o senhor.
— E que vai acontecer com você, Lalitha?
— Tudo sairá bem, se o senhor me ajudar um pouco.
— De que maneira?
— Poderia me dar um pouco de dinheiro... Só um pouco, o suficiente para que eu
possa   alugar   uma   casinha   no   campo...   Irei   para   qualquer   lugar...   Onde   ninguém   me
conheça...   E   o   senhor   não   vai   precisar   me   ver   nunca   mais.   Minha   antiga   governanta
cuidará de mim com prazer. Minha madr... mãe dispensou­a quando nos mudamos de
Norfolk.
— Quanto acha que tudo isso irá custar?
— Não muito. Penso que me arrumarei com... Bem... Com cem libras por ano.
— Em troca dessa "imensa" quantia você pretende sair de minha vida para sempre?
— Nunca   mencionarei   seu   nome...   a   pessoa   alguma   —   prometeu   Lalitha.   —   O
senhor pode se casar com uma mulher a quem ame...
— Sabe que sou um homem muito rico, não?
— Sophie me disse.
— E, sabendo, ainda admite que cem libras por ano seja uma recompensa justa pelo
serviço que me prestou?
— Não sou muito... Exigente... Em meus gastos.
— Então, é diferente da maior parte das mulheres de sua idade.
— Acho que a felicidade... Não depende do dinheiro.
Ela pensou logo em como fora feliz em sua casa com o pai e a mãe, levando uma
vida bastante modesta. Os três haviam conhecido uma felicidade que jamais poderia ser
traduzida em ouro, não importando em quanto montasse a fortuna.
A voz de lorde Rothwyn quebrou a trilha dos pensamentos de Lalitha.
— Mais uma vez deixe­me dizer­lhe, Lalitha, que você é diferente da maioria das
mulheres.
— Não sei se devo considerar isso um elogio ou não — comentou ela.
— Você tem planos para o futuro? — Lorde Rothwyn quis saber.
— Talvez. Só espero que o senhor não revele a minha madrasta ou a Sophie... Meu
paradeiro. Elas podem descobrir onde estou, e então...
Num gesto de súplica Lalitha estendeu­lhe a mão. Lorde Rothwyn cobriu­a com a
sua, e disse:
— Realmente   imagina   que   eu   faria   o   que   quer   que   fosse   para   provar   um   novo
sofrimento em você?
— Acho que minha madrasta... Deseja que eu morra. O senhor até pode lhe dizer
que eu... Morri.
— Você está muito viva! E, embora aprecie suas idéias, tenho meus planos também.
— Quais são eles?
— Alguma vez Sophie disse a você qual era minha ocupação?
— Nunca.
— Tenho dedicado anos de minha vida devolvendo o antigo esplendor a edifícios
esquecidos e negligenciados.
— Deve ser um trabalho muito interessante.
— Acho que sim — concordou lorde Rothwyn.
— Lembro­me agora de ter ouvido Sophie falar que o príncipe regente consultava o
senhor sobre esse assunto.
— Possuímos a mesma opinião, ele e eu, em muitas coisas. Dei sugestões a Sua
Alteza Real acerca de edifícios em Regentes Park e em Brighton. Ele me honra aprovando
freqüentemente  minhas idéias renovadoras, e transformamos muitas vezes montões de
entulho em obras de arte.
— Gostaria muito de ver um desses prédios.
— Vou lhe mostrar — prometeu ele. — Aqui perto mesmo há uma casa construída
por um estadista da corte da rainha Elisabeth. Pois bem, encontrava­se em lamentável
estado   de   ruína.   O   grande   salão   onde   a   rainha   costumava   jantar   convertera­se   em
estrebaria. As vigas de madeira preciosa foram roubadas, utilizadas em construções rurais,
ou   queimadas   como   lenha.   Neste   momento,   a   casa   já   está   quase   completamente
restaurada.
Lorde Rothwyn falava com eloqüência, o que demonstrou a Lalitha o prazer que
tinha naquele trabalho. E ele prosseguiu:
— Descobri também, por acaso, perto da antiga aldeia de St. Albans, fundada pelos
romanos, uma pequena villa esquecida e toda coberta de mato. Limpei a área e encontrei
mosaicos de um valor inestimável, mármores e pilares de beleza incrível.
— Como o senhor é hábil! — exclamou Lalitha. — Apreciaria muitíssimo ver essas
coisas.
— Tenho orgulho de meu instinto em descobrir preciosidades. O príncipe regente
sente­se como eu quando vê uma obra antiga, um quadro, que necessita de restauração.
Ele pode visualizar que, sob a ruína, existe uma obra de arte.
— E o senhor nunca se engana?
— Praticamente nunca! Isso me leva a crer que estou certo sobre você.
— Sobre... Mim?
— Você precisa de restauração! — observou ele sorrindo.
— Tudo o que o senhor encontrou até agora tern sido excepcionalmente precioso.
Não acredito que o mesmo se dê em minha pessoa.
— É muito modesta! É parecida com seu pai ou sua mãe, Lalitha?
— Com minha mãe, porém um pouco menos favorecida. Minha mãe era lindíssima!
Lalitha embaraçou­se ao referir­se à mãe de novo. Recordou­ se, então, de que em
diálogos  anteriores  esquecera­se por completo  da farsa  que  representava  quanto   à sua
filiação. Tentou reparar seu erro, dizendo:
— Claro. Minha mãe... No decorrer dos anos...
— Achei que tínhamos concordado em não mentir um para o outro, Lalitha.
— Dei minha palavra... Mas...
— Qual é o problema? O que a apavora tanto?
— Ela... Me matará... Se souber...
— Tal coisa nunca vai acontecer — garantiu ele. — Contudo, como não quero que
se   preocupe   com   outros   problemas   enquanto   se   restabelece,   não   vou   pressioná­la   a
deslindar   esse   mistério   de   mãe   e   madrasta.   Concentre­se   somente   em   seu
restabelecimento. Logo poderá passear pelo jardim comigo e, quando se sentir mais forte,
a levarei á aldeia perto de St. Albans a fim de visitar a casa a que me referi, antes que seja
habitada. Promete que não vai se preocupar com seu futuro?
— Tentarei...
— Discutiremos nosso assunto de novo quando você estiver mais forte. Por ora,
confesso   apenas   que   ficarei   muito   desapontado   se   a   restauração   do   edifício   chamado
"Lalitha" ficar além de minha expectativa.
— Por favor, não espere demais de mim — insistiu Lalitha com um sorriso.
— Sou um perfeccionista! — Ele tomou em seguida a mão dela e levou­a aos lábios:
— Durma bem, Lalitha, virei vê­la amanhã.
Ele já ia saindo do quarto quando Lalitha indagou:
— Por que razão o senhor se encontra no campo? A temporada de Londres ainda
não terminou!
—  Mas   está   quase   no   fira!   E   não   confio   em   ninguém   quando   me   proponho   a
recuperar meus "edifícios".
Ele sorriu e retirou­se. Lalitha recostou­se nos travesseiros; seu coração batia mais
forte, mas não era de medo.
"Como   lorde   Rothwyn   tem   sido   bondoso!",   pensava.   Mesmo   assim,   continuou
achando que devia sair de seu caminho o mais breve possível.
Imaginava   a   má   impressão   que   provavelmente   daria   aos   amigos   do   marido.
Esperavam que a esposa dele fosse uma Sophie de cabelos de ouro, olhos azuis e pele
perfeita.
Lalitha não ignorava, embora ninguém lhe houvesse dito, que lorde Rothwyn tivera
muitas mulheres em sua vida, tampouco que ele jamais propusera casamento a nenhuma
delas, além de Sophie.
Sophie dissera que lorde Rothwyn era um dos homens mais ricos da Inglaterra.
Nesse   caso,   toda   mãe   de   filhas   casadouras   o   desejaria   como   genro.   Qualquer   moça
adoraria viver em Rothwyn House, em Park Lane, ou ser a castelã de Roth Park. Usando
as jóias da família, seria a anfitriã das grandes personalidades, a começar pelo príncipe
regente. E Sophie possuía o essencial para essa posição: uma beleza deslumbrante.
Além de Sophie, haveria outras mulheres de sangue azul, de grande dote e, quem
sabe, de atraente personalidade à disposição de lorde Rothwyn.
"E eu não tenho nada disso," pensava Lalitha.
Ela encostou o rosto no travesseiro e fechou os olhos. Até que se recuperasse bem,
poderia viver em meio a todo aquele  luxo e conforto. Aliás, sempre  odiara a feiúra, a
sujeira, a crueldade, as mentiras, enfim tudo o que fizera parte de sua vida nos  últimos
tempos.
Agora,   escapara!   Contudo,   não   podia   esperar   que   essa   existência   durasse
eternamente. Lorde Rothwyn fora bondoso, mas só porque ela estava doente, e porque
devido á sua ira forçara­a a um casamento.
"Ao mesmo tempo, com certeza ele me despreza por eu ter sido tão fraca", concluía
ela. — "Se eu houvesse protestado com mais veemência, se houvesse recusado a me casar,
ele não estaria agora na contingência em que se encontrava. Preciso salvá­lo, separando­
me dele!"
Lalitha deu um suspiro profundo e logo adormeceu.
Dois dias mais tarde sentiu­se bem para descer; porém, antes teve de se encontrar
com a mulher das ervas. Era uma senhora simpática, que parecia ter­se exposto ao sol até
ficar da cor do bronze, e que tinha olhos azuis como miosótis. Ela encantou­se ao constatar
o progresso da Lalitha.
— Mas   ainda   tem   muito   chão   a   percorrer,   minha   cara   —   declarou   ela   logo.   —
Contudo, está no caminho certo, e a única coisa que precisa fazer agora é seguir minhas
instruções. — Ela sacudiu o dedo em frente do rosto de Lalitha, ameaçando­a: — E não
tente me tapear.
Lalitha   continuou   com   o   uso   do   óleo   de   loureiro,   que   cicatrizara   tão   bem   suas
costas. A mulher receitou­lhe outros cremes suaves para passar no corpo após o banho,
feitos   à   base   da   seiva   de   rímulas.   Um   chá   de   calaminta,   e   erva   de   Mercúrio,   foi
recomendado para a cura das afecções da pele e do cérebro.
— A senhora me faz pensar que estou louca! — protestou Lalitha.
— Vossa senhoria deixou o cérebro faminto como também o corpo. Ele precisa ser
alimentado para recuperar energia. A calaminta vai ajudar. Deixo aqui um frasco e avise­
me quando terminar.
Temendo se esquecer das instruções, Lalitha tomou nota de tudo.
Uma das recomendações da mulher foi que ela trocasse a loção do cabelo que vinha
usando por uma feita de caroços de pêssego.
— Ferva­os com vinagre — ordenou a mulher a Nattie. — Felizmente há muitos
pêssegos nesta época do ano. Eles fazem o cabelo crescer e lhe dão um brilho lindo, como
o do próprio pêssego.
A mulher levou para Lalitha o mel produzido  na casa dela, e aconselhou­a que
comesse o favo também, tão nutritivo como o mel.
— Onde a senhora aprendeu isso tudo? — indagou Lalitha.
— Meu pai era botânico, e meu avô igualmente. Nicholas Culpeper foi um de meus
antepassados.
— Quem era ele?
— Um famoso médico e astrólogo. O primeiro homem a comunicar ao mundo o
poder das ervas no tratamento da saúde. Escreveu muitos livros sobre o assunto.
— Ignorava que houvesse algo escrito, explicando o emprego medicinal das ervas.
— Nicholas Culpeper dedicou sua vida ao estudo da astrologia e da medicina.
— Que sorte ter ele posto o resultado de suas investigações em livros!
— Durante   a   Guerra   Civil,   lutou   pelo   parlamentarismo,   e   foi   ferido   no   peito—
informou a mulher. — Restabeleceu­se felizmente pois, se tivesse morrido, teria levado
consigo toda sua ciência.
— E nossa perda seria imensa!
— É verdade! Enquanto ele exercia a medicina, encontrava tempo para descrever as
propriedades medicinais das ervas num livro que chamou de Compêndio Herbal.
— Por favor, posso ver esse livro algum dia?
— Claro, esse e outros que ele publicou. Venha visitar­me que eu lhe mostrarei os
livros e, estando interessada, pode ver também minha horta, meu laboratório, e falar com
minhas abelhas.
— Falar com as abelhas! — exclamou Lalitha com espanto.
— Elas gostam de conversar com as pessoas que curam. Eu lhes contei tudo acerca
da senhora, expliquei o que esperava que o mágico mel produzido por elas fizesse. Minhas
abelhas nunca falham!
Assim que a mulher das ervas saiu, Nattie ajudou Lalitha a se vestir. Trouxe­lhe um
vestido novo, com mangas bufantes, bem apertadas no pulso, estilo muito em moda na
época. A saia era rodada, enfeitada com fitas em torno da bainha, evidenciando a origem
da toalete: Paris.
— É para mim? — perguntou Lalitha, incrédula.
— Sua Senhoria comprou vários vestidos em Londres para a senhora. Joguei fora os
trapos que Vossa Senhoria vestia quando aqui chegou.
Lalitha corou murmurando:
— Era só o que tinha!
— Pois bem, agora tem muito mais. Por ora, não quero que se canse examinando
todos os vestidos que a aguardam nos armários.
— Posso dar uma olhadela?
Nattie abriu então a porta de um dos guarda­roupas e ela notou que havia lá mais
de uma dúzia de trajes de cores suaves, não iguais
às que Sophie usava, fortes, que iam muito bem com a beleza dourada de sua irmã.
"Como   sabia   ele   que   as   cores   suaves   combinam   melhor   comigo?"   Lalitha   se
perguntou.
A roupa que ela vestiu naquele dia era de um azul pálido que acentuava o corado
de   suas   faces.   Apesar   de   se   sentir   muito   elegante,   preocupava­se   com   sua   aparência
enquanto descia as escadas para ir ao encontro de lorde Rothwyn. Li se ele, depois de todo
seu esforço, se desapontasse ao vê­la?
Um criado de libré abriu­lhe a porta de uma sala cheia de flores, com cortinas de
brocado.   Em   pé,   junto   á   janela,   estava   lorde   Rothwyn;   virou­se,   encarou­a   por   um
segundo, depois sorriu. Imediatamente Lalitha parou de ter medo, e foi confiante para
perto dele.
CAPÍTULO IV

Lalitha desceu as escadas, saltitante, acompanhada de um cãozinho de pêlo branco
e preto.
Cada dia que ela passara em Roth Park havia sido cheio de novas descobertas e de
alegria. Primeiro, visitou a casa toda, construída  no reinado de Charles II. Muitas alas
foram acrescidas ao edifício principal por várias gerações de Rothwyn.
Custava­se   crer   que   uma   construção   tão   sólida,   tão   imponente,   pudesse   ser
acolhedora, ter uma atmosfera íntima como a de uma casa comum.
Havia tesouros por toda parte:  quadros  fabulosos e  tapeçarias  valiosíssimas  nas
paredes; móveis importados da França e Itália, obras de um artesanato ímpar.
Na verdade, Lalitha extasiava­se com tudo que via, e ter o histórico desses tesouros
narrado por lorde Rothwyn consistia num prazer que ela jamais sonhara experimentar.
Gravadas em pedra acima da porta principal estavam as seguintes palavras:
"Esta casa foi construída por Inigo, primeiro lorde Rothwyn, não apenas com tijolos
e madeiras, mas com a mente, a imaginação e a alma. Foi erigida no ano de 1678 de Nosso
Senhor Jesus Cristo".
— Entendo bem o sentido dessas palavras — comentou Lalitha.
— Eu também — concordou lorde Rothwyn.
— É com esse espírito que o senhor constrói?
— É.
Houve uma pausa, e Lalitha teve ímpetos de lhe perguntar se, ao restaurá­la, ele
punha também a mente, a imaginação e a alma. Mas era tímida demais para fazer tal
indagação.
Lorde Rothwyn levou­a depois à enorme biblioteca, linda, com o teto pintado de
várias cores. Milhares de livros davam às paredes o aspecto de uma colcha de retalhos.
— Posso...   Posso...   Ler   alguns   desses   livros?   —   inquiriu   Lalitha,   fitando   lorde
Rothwyn.
— São todos seus! — replicou ele.
— Mal posso acreditar. Passei estes últimos anos sedenta de livros, pois não tinha
permissão de ler.
— Livros não foram a única coisa que faltou a você, Lalitha.
Ela corou e apressou­se em dizer:
— Não estou tão feia agora, não é mesmo?
— Nunca foi feia, apenas completamente negligenciada.
— Tento comer bastante, e bebo galões de leite! — Ela franziu o nariz e acrescentou:
— É um grande esforço, por que detesto leite.
— Eu   também   —   confessou   lorde   Rothwyn.   —   Nattie   sempre   insistia   que   eu
bebesse tudo, até o fim da caneca, e você deve fazer o mesmo.
— Nattie é um amor, mas ao mesmo tempo enérgica.
— Por isso fiquei bem­educado — disse ele com ar de caçoada.
— Ela é muito orgulhosa do senhor, e crê que todas as suas boas qualidades são
obra dela.
— E são. O que me diz você de meus defeitos?
Olhava para Lalitha sorrindo sarcasticamente, e ela percebeu que se referia à crise
de fúria que tivera na noite do casamento.
— Acho que o senhor se assemelha muito a um seu famoso antepassado.
— Sir Hengist? Que sabe sobre ele?
— Li   alguma   coisa   acerca   de   sir   Hengist   e   do   poema   que   foi   escrito   sobre   o
temperamento impetuoso dele.
— Por isso me disse que amaldiçoar Sophie traria má sorte? Para mim ou para ela?
— Para ambos. O ódio maltrata também quem o sente.
— Vejo que devo ser cuidadoso quando ficar bravo em sua presença.
Lalitha fitou­o um pouco receosa, e ele deduziu que a menina faminta, judiada, que
ele carregara para o quarto na primeira noite, não mudara como parecia superficialmente,
pois ainda escondia muito medo. Era como um animalzinho tratado com crueldade uma
vez, e que esperava pancada ao mínimo movimento das mãos de seu dono.
Outras   coisas   contribuíram   para   a   felicidade   de   Lalitha,   e   a   principal   foi   um
cachorrinho, um pequeno Cocker Spaniel que logo se afeiçoou a ela.
Lorde Rothwyn possuía vários e alguns dálmatas que o seguiam por toda parte, e
que balançavam a cauda assim que o viam, sempre prontos para passear. Mas o pequeno
Cocker fora para o lado de Lalitha no primeiro dia em que ela desceu.
— Royal está saudando você — observou lorde Rothwyn.
— Como é o nome dele? — perguntou Lalitha.
— Royalist, mas nós o apelidamos de Royal.
— É um amor. Tive certa vez um cachorro que eu amava muito, mas...
Lalitha não terminou a frase, e lorde Rothwyn concluiu pela expressão dos olhos
dela que o animal lhe fora tirado; outro sofrimento, que a mulher à qual chamava de "mãe"
lhe infligira.
Freqüentemente   Lalitha   esquecia­se   do   papel   que   a   madrasta   a   obrigara   a
representar, fazendo­a chamá­la de "mãe". E sentenças como: "Antes de mamãe morrer..."
surgiam nos lábios dela  sem refletir,  e sem que  percebesse  que  aos poucos revelava  a
veracidade de fatos de sua vida.
Numa   certa   manhã,   lorde   Rothwyn   levou­a   para   visitar   a   casa   estilo   rainha
Elisabeth que ele restaurara. Mostrou antes a Lalitha o desenho da casa como era quando
ele a descobrira: caindo aos pedaços, com o teto cheio de buracos. As janelas não tinham
vidros   e   muitos   dos   lindos   tijolos   haviam   sido   arrancados   e   usados   na   construção   de
chiqueiros.
— Assim era a casa antes — explicou ele. — E, observando os alicerces, visualizei
como havia sido originalmente.
— É grande! — exclamou Lalitha.
— As   casas   destas   redondezas   são   grandes.   Não   foram   construídas   apenas   por
membros   da   nobreza,   mas   por   burgueses   ricos   de   Londres   que   consideravam   o   local
adequado para se ter uma casa de campo, bem perto da capital.
— Mas esta casa aqui pertenceu a um nobre, não?
— Sim, um aristocrata, lorde Hadley, que com certeza olharia com desprezo para
meus antepassados.
— Imagine se ele soubesse que um descendente  de sir Hengist restaurou a casa
dele!
— Espero que, onde quer que esteja, aprove meu trabalho. Há uma coisa, contudo,
que preciso decifrar. Você me ajudará?
 — Se eu puder, com muito prazer.
— Aguardei até que você pudesse ver a casa — disse ele. — Agora vamos verificar
se consegue realizar uma tarefa que considero difícil.
Lorde Rothwyn retirou de uma gaveta uma caixa de prata. Abriu­ a e Lalitha notou
que estava cheia de papel picado.
— Que é? — perguntou ela.
— Encontrei isto num armário atrás de um painel. Os ratos roeram grande parte da
papelada que julguei de início se tratar de algum documento.
— Oh, que pena!
— Quando olhei mais cuidadosamente vi que era parte de um poema. A história
relata que lorde Hadley escrevia sonetos. Aliás, quase todos os cavalheiros da corte da
rainha Elisabeth eram muito românticos e se expressavam em versos à Sua Majestade ou à
mulher  amada. — Lorde  Rothwyn sorriu. — Isso não significa que  eram bons poetas;
contudo, davam prazer a quem lesse seus poemas.
— Especialmente à pessoa para a qual os dedicavam.
— O que quero que você faça, Lalitha, é que tente juntar estes fragmentos. Muitos
pedaços foram destruídos, mas seria interessante procurar saber o que ele escreveu.
— Acha que vou poder? De qualquer modo, estou muito honrada pelo fato de o
senhor me confiar coisa tão preciosa.
— Não   se   canse   com   esse   trabalho.   Quando   sentir   os   olhos   fatigados,   pare
imediatamente. Por sinal, seus olhos me parecem bem diferentes do que eram antes.
— Costurava até tarde  todas as noites,  à luz de uma  única vela — explicou­lhe
Lalitha. — Sou boa em bordado. Quando Nattie o permitir, bordarei monogramas em seus
lenços.
— Agora é minha vez de me sentir honrado, Lalitha. Não obstante, não faça nada
até se recuperar totalmente. Promete?
— Prometo, ainda achando que o senhor e Nattie estão me mimando demais. Vou
ficar gorda, preguiçosa e inútil para tudo, exceto para me recostar em almofadas de cetim.
— É   o   que   gostaria   de   ver   você   fazendo   —   declarou   lorde   Rothwyn   com
sinceridade.
Lalitha encarou­o, os olhos de ambos se encontraram, e ela sentiu um inexplicável
nó na garganta. Lorde Rothwyn virou o rosto para o outro lado, pôs a caixa de prata na
mão dela e disse:
— Vou ficar esperando com impaciência para ver o que lorde Hadley escreveu para
alguma beldade da era elisabetana.
Lalitha   ardia   em   curiosidade   para   saber   o   que   continha   o   soneto.   Na   manhã
seguinte sentou­se para decifrá­lo. Porém Nattie forçou­a a ir passear pelo jardim. v
— O dia está lindo, milady. Vá tomar um pouco de sol e deixe esse trabalho para os
dias de chuva. Além do mais, Sua Senhoria a aguarda.
Foi o suficiente para apressa; Lalitha a descer. Ela pôs um vestido novo, lilás, cor
que  nunca   usara  antes.   Estava  ansiosa  para  ver  o   que   lorde  Rothwyn  achava  daquela
tonalidade para sua cútis.
"Eu sou como as casas que ele restaura" pensou. "Dá mesma maneira que escolhe os
tapetes e as cortinas, escolhe meus vestidos."
Havia algo de impessoal nessa idéia, mas não deixou de dar satisfação a Lalitha.
Finalmente alguém se interessava por ela.
Encaminhou­se por um corredor que levava ao escritório, lugar onde em geral lorde
Rothwyn ficava de manhã. Chegava à  porta da sala quando  um jovem saía de lá, Ele
cobria o rosto com as mãos e estava muito pálido. Lalitha aproximou­se para ajudá­lo.
Então, para grande surpresa sua, constatou que o rapaz chorava.
— Que posso fazer por você? — indagou ela.
— Ninguém pode fazer nada por mim! — respondeu ele com o rosto banhado em
lágrimas.
Havia   um   que   de   patético   e   ao   mesmo   tempo   embaraçoso   na   imagem   de   um
homem chorando.
— O que houve, afinal? — interrogou Lalitha.
— A   culpa   foi   minha.   Eu   sabia   que   estava   errado,   mas   tive   medo   de   confessar
minha falta.
— Venha cá — confiscou­o Lalitha, dirigindo­se a uma sala vazia. — Conte­me o
que aconteceu.
— Tenho vergonha de mim mesmo, madame. Por favor, esqueça­se de que me viu.
— Não há razão para tal, quero auxiliá­lo!
— Já lhe disse, madame, ninguém pode me ajudar. Sua Senhoria está furioso, e com
razão.
— Mas por quê?
— Coloquei   uma   das   colunas   da   fundação   de   uma   casa   em   lugar   errado.   Não
prestei atenção suficiente na planta, acho. Além disso, estava em dúvida, mas receei fazer
perguntas a ele.
— E Sua Senhoria descobriu sua falha, não foi?
— Foi. E me dispensou. Eu sentia tanto orgulho em poder trabalhar para ele. Tentei
acertar, só Deus sabe como tentei acertar. Porém, errei.
— Entendo você muito bem. Isso às vezes sucede. Espere por mim aqui — pediu
Lalitha. — Não vá embora antes que eu volte.
Envergonhado de sua atitude, o jovem declarou:
— Perdoe­me, madame, não devia perturbá­la com meu problema. Prefiro retirar­
me já... e com dignidade.
— Não — protestou Lalitha. — Aguarde minha volta!
— Se for o que a senhora deseja... Mas não entendo a razão...
— Espere! — insistiu Lalitha.
Respirando   fundo,   ela   entrou   no   escritório   onde   se   encontrava   lorde   Rothwyn.
Sentado numa escrivaninha de tampo de couro, examinava uma série de papéis: plantas
de casa, com certeza. Tremendo um pouco, Lalitha percebeu que ele estava zangado, pois
tinha a mesma expressão fisionômica da noite do casamento. Ao ver Lalitha, exclamou:
— Oh, é você!  — A ruga da testa dele  desapareceu  ao erguer­se para recebê­la.
Notando o embaraço de Lalitha, acrescentou: — O que a aborrece?
— Tenho algo a lhe dizer. Mas temo que seja atrevimento de minha parte.
— Nada que você possa me dizer, Lalitha, eu consideraria atrevimento. Sente­se,
por favor, e fale.
Ela sentou­se na beirada de uma poltrona e permaneceu em silêncio.
— Estou esperando! — observou ele com voz amável.
— Como já deve ter percebido, sou covarde e tenho medo de tudo. E sei muito bem
o que uma pessoa pode fazer, simplesmente porque se encontra dominada pelo receio de
falhar.
— Imagino que esteve falando com Jameson, o rapaz que acabei de despedir.
— Entendo   como   ele   deve   estar   se   sentindo,   pois   Vossa   Senhoria   pode   ser
assustador... às vezes.
— E você pretende me culpar pela incompetência daquele jovem?
— Ele teve medo... De enfrentar o senhor... Como eu também tive.
— Contudo, você está agindo agora com muita coragem, Lalitha, intercedendo por
ele.
— É que sinto pena do pobre moço. Lamento muito o que houve, mas sei bem que
quando uma pessoa é forte e autoconfiante, não entende a fraqueza dos outros, de pessoas
como eu, por exemplo.
— Você realmente pensa que o medo e a timidez são desculpas para um trabalho
mal feito?
— Qualquer um pode errar de vez em quando.
— Muito bem, Lalitha. Vou ver o que posso fazer em relação a esse caso.
Lorde Rothwyn fitou­a. Ela estava com os olhos baixos, e os cílios escuros, bem
crescidos agora, faziam contraste com sua pele alva.
— Confesso que é atrevimento meu! — disse Lalitha num sussurro.
— Não   considero   você   tão   tímida   e   medrosa   como   pensa.   Mas,   não   desejando
aborrecê­la, vou falar com Jameson. Onde se encontra ele?
— Na sala ao lado.
— Fique aqui!
Lorde Rothwyn saiu do escritório e fechou a porta. Lalitha ficou rezando para que
tudo saísse bem.
Ninguém poderia entender, pensava ela, o horrível, insidioso medo que, tal qual
uma serpente venenosa, podia percorrer o corpo de uma pessoa, a ponto de fazê­la agir
erradamente; e só por não ter condições de pensar com clareza. Mesmo depois de vários
dias na casa de lorde Rothwyn, ela mal podia acreditar que acordava de manhã sem o
pavor de que iria muito breve ser espancada. Lembrou­se de que ficava sempre alerta,
procurando   ouvir   a   voz   de   sua   madrasta,   tremendo   de   medo   ao   pensar   que   talvez
houvesse feito algo errado, e que fosse ser punida por isso. Não conseguia se libertar do
medo, na casa da madrasta, do momento que se levantava à hora de dormir.
Lorde Rothwyn voltou ao escritório e Lalitha fitou­o apreensiva.
— Readmiti Jameson — informou ele. — Está contente agora?
— Oh, muito, muito contente!
— Contudo sempre lhe disse Lalitha, que espero perfeição.
— Eu sei, mas aprecia o belo também, e o belo, como no caso do nariz de Cleópatra
nem sempre é simetricamente perfeito.
— Tem razão! — concordou lorde Rothwyn.
— E a felicidade... é alguma coisa sobre a qual não se pode fazer um planejamento
muito rígido — acrescentou Lalitha com certa hesitação.
Lorde Rothwyn riu muito e comentou:
— Já sei que você vai modificar todas as plantas das casas nas quais pus tanto tempo
e trabalho. Não obstante, não posso refutar seus argumentos. Quem lhe ensinou tudo isso?
— Talvez   a   vida,   o   sofrimento   destes   últimos   anos.   Aprendi   que,   o   que   todos
procuram, é a felicidade; e pensam que ela está no sucesso, no dinheiro, na posição social!
Pode ser verdade para alguns, mas para muito poucos. Pessoas normais vão à cata do
amor, e só conseguem encontrá­lo onde houver segurança, e não onde existir o pavor; é
impossível haver felicidade... junto do medo.
— Deixe­me fazer­lhe uma pergunta, Lalitha. Tem sido feliz aqui?
— Muitíssimo. Sinto uma felicidade impossível de descrever. É como se o senhor
tivesse me arrancado de um calabouço escuro, úmido e sem esperança, para a luz do sol.
— Obrigado — replicou lorde Rothwyn suavemente.
Para desviar daquele assunto íntimo, Lalitha perguntou:
— O senhor vai me levar esta tarde, conforme prometeu, para visitar outras casas?
— Pretendia fazer isso, mas será impossível. Vamos deixar nosso programa para
amanhã. Havia me esquecido de um compromisso inadiável, em Londres. Sinto não poder
cumprir minha promessa, Lalitha. É que um amigo meu, Henry Grey Bennet, precisa falar
comigo.   Ele   é   membro   do   parlamento   britânico,   encarregado   de   assuntos   referentes   a
crimes contra os direitos humanos. Trabalha agora no extermínio do tráfico de mulheres
brancas,   enviadas   à   força   diariamente   para   outros   países,   algumas   delas   ainda
adolescentes.
— Enviadas para fazer o quê?
— São   negociadas   como   escravas.   Há   lugares   como   Amsterdam   onde   moças
inglesas  alcançam altos preços no mercado,  e são  vendidas como  gado. Umas seguem
direto para o Marrocos, Turquia e Egito.
— E essas mulheres não têm meios de reagir?
— Nenhum! Várias são seqüestradas na rua. Há um grupo de pessoas treinadas que
encontram tais moças quando elas vêm do interior para Londres, e fazem­lhes promessas
tentadoras.
— Essas jovens falam com estranhos?
— Nunca estiveram em Londres antes, e se alguém lhes oferece hospedagem e um
emprego lucrativo, concordam facilmente. E nunca mais se ouve falar delas!
— Que coisa horrível! — exclamou Lalitha.
— Esse tráfico assumiu proporções alarmantes, e está mais do que na hora de se
tomar alguma providência. Atualmente a lei é muito fraca, e as pessoas que operam no
chamado "mercado branco de mulheres", raramente são levadas perante o tribunal.
— E o senhor crê na possibilidade de que se aprove uma lei para evitar isso?
—'   O   projeto   de   lei   apresentado   por   meu   amigo   já   foi   aceito   na   Câmara   dos
Comuns, e esta tarde vai ser submetido à Câmara dos Lordes. Meu amigo não acredita
muito na aceitação fácil do que sugerem por isso me pediu que eu fosse a Londres para lhe
dar um pouco de força com meu apoio.
— O senhor deve ir! É importante, muito importante! É incrível o que acontece com
essas pobres moças. São... Maltratadas?
— Se não fazem o que se requer delas, são espancadas ou drogadas até a submissão.
— Então, vamos rezar para que a lei seja aprovada — declarou Lalitha.
— Farei o possível para isso. Vou a Londres já.
— Volta hoje mesmo?
— Espero   regressar   esta   tarde,   talvez   na   hora   do   jantar;   porém,   hoje   sem   falta.
Podemos jantar juntos!
— Ótimo! — exclamou Lalitha. — Porei um de meus vestidos novos.
— Faremos desse jantar uma celebração para comemorar seu restabelecimento.
— O   senhor   está   usando   uma   desculpa   para   me   fazer   comer.   Estou   ficando   tão
gorda que muito breve não conseguirei entrar em meus lindos vestidos.
— Nesse caso, comprarei outros para você, Lalitha.
— Não gostaria que Vossa Senhoria... Gastasse tanto... Comigo.
Lorde Rothwyn sorriu ao replicar:
— Juro a você que o que gastei não vai me levar à falência.
— O senhor já me deu tanto... Não sei como lhe agradecer.
— Falaremos sobre o assunto no jantar, está bem? Deixo Royal e os outros cachorros
tomando conta de você.
— Eles farão isso até que o senhor volte.
Assim que lorde Rothwyn partiu, Lalitha achou que a casa ficara vazia. Com um ar
de  abandono. Foi com os cachorros  ao  jardim  e  admirou os gramados aveludados,  os
enormes canteiros de flores multicoloridas, o que a fez lembrar­se dos quadros da galeria
da mansão. Foi apreciar também o aquário que ficava na outra extremidade do jardim,
cercado por um muro de tijolos vermelhos.
Tudo era lindíssimo, o sol aquecia o ambiente, porém ela contava os minutos para o
retorno de lorde Rothwyn à casa.
"É que preciso saber se a lei passou no parlamento", pensava ela.
Todavia, não ignorava a verdade. Queria ter lorde Rothwyn ao seu lado, queria
conversar com ele sobre temas que interessavam a ambos.
Receando cansar­se demais, entrou e se ocupou da decifração das frases que lorde
Hadley   escrevera   trezentos   anos   passados.   Era   surpreendente   observar   como   ainda
sobrara   tanto   daquilo,   apesar   da   destruição   causada   pelos   ratos,   pelos   insetos,   e   pelo
tempo.   Felizmente   ele   escrevera   num   pergaminho   grosso   e   de   boa   qualidade,   numa
caligrafia firme e legível. Mas os efes e os erres eram quase iguais, e Lalitha necessitava de
tempo e paciência para descobrir o que fora posto no papel.
Trabalhava com afinco quando um lacaio abriu a porta da sala e anunciou:
— Miss Studley deseja vê­la, milady.
Lalitha deu um grito e, olhando para a porta, viu Sophie. Estava linda, vestindo um
traje de viagem de seda azul, e tendo na cabeça um pequeno chapéu enfeitado com botões
de rosa. Sorria para Lalitha, que começou a tremer de medo.
— Está surpreendida com minha visita? — indagou Sophie.
— S... sim.
— Desejo falar com você, e tinha certeza de encontrá­la sozinha esta tarde. Por isso
vim.
— Como soube... Que eu estava só?
— Os jornais desta manhã anunciaram que lorde Rothwyn falaria á tarde na Câmara
dos Lordes. Tal fato me deu a oportunidade de vir aqui para conversa com você a sós.
Lalitha não respondeu e Sophie continuou:
— Que sala linda! Posso me sentar?
— Claro! Desculpe, mas sua visita me surpreendeu.
— Achei que você teria interesse em saber como nós estamos. Mas não se assuste,
Lalitha, mamãe não está zangada com você.
— Não?
— Não. Ela entendeu que não poderia agir de outra forma. Sabemos que se casou
com lorde Rothwyn, pois ele me comunicou através de uma carta.
— Lorde Rothwyn escreveu para você?
— Escreveu. Mas, por estranho que pareça, a notícia do casamento não foi publicada
nos jornais, portanto, ninguém ficou sabendo do evento, exceto mamãe e eu. Isso me faz
concluir que sua estada aqui é temporária. Estou certa?
— Não... Sei.
— Deixe­me   confessar­lhe   a   verdade,   Lalitha.   Eu   amo   lorde   Rothwyn,   sempre   o
amei! Quando o perdi, acreditei ter perdido um pedaço de mim mesma!
Lalitha encarou Sophie atônita, e protestou:
— Mas você nunca... O amou. Disse muitas vezes que ia se casar com ele só porque
era rico.
— Suponho   que,   por   acanhamento,   não   lhe   revelei   o   quanto   lorde   Rothwyn
significava para mim. E, na verdade, foi só depois que você saiu com o recado para ele que
eu caí em mim, e constatei que o amava muito.
Lalitha não podia crer que Sophie realmente mudara de idéia.
— E que houve... Com o Sr. Verton? — inquiriu ela.
— Julius nunca recebeu a nota que dirigi a ele. Continua a meus pés, suplicando
para que nos casemos.
— E por que razão não está ainda casada com ele? O casamento havia sido marcado
para duas semanas atrás.
— Não foi o duque que morreu, mas uma tia de Julius, mulher que ele respeitava
muito. Por isso nosso casamento teve de ser adiado para daqui a dois meses.
— Oh, entendo! E, nesse meio tempo, você chegou á conclusão de que ama... lorde
Rothwyn.
— Isso mesmo! — concordou Sophie. — E lhe peço, Lalitha, que me devolva o que
sempre me pertenceu.
— Não compreendo...
— É muito simples. Lorde Rothwyn me ama, como você deve saber.
— Ele ficou... Furioso com o que você fez. Por esse motivo, me forçou ao casamento.
— Por   vingança!   —   Sophie   sorriu.   —   Ele   tornou   o   fato   claro   na   carta   que   me
escreveu! Ele me adora! Me venera! Um amor assim não muda da noite para o dia.
— Não... Suponho que não...
— Arquitetei um plano muito sensato, com a aprovação de mamãe.
— E qual é ele? — Lalitha estava apreensiva.
— Você deve sair desta casa imediatamente. Vá morar com sua antiga governanta.
Mamãe lhe mandou de presente vinte libras. Pense só nisso, Lalitha, vinte libras! É muito
dinheiro, não acha?
— Porém não posso sair... Desse jeito — protestou Lalitha. — Sua Senhorita tem sido
muito bondoso... Tem feito tanto por mim...
— Sei exatamente o que ele fez, não precisa enumerar. — Pela primeira vez a voz de
Sophie tornou­se dura.
— Sabe? Como sabe?
— Essas notícias correm! Há pessoas sempre prontas a relatá­las.
— Refere­se aos criados, Sophie?
— Não importam os detalhes.  O certo   é que  você não pode impor sua presença
nesta casa para sempre. Acha isso justo?
— Não... Não.
— Portanto, em vez de embaraçar lorde Rothwyn pendurando­ se nele eternamente,
sugiro que desapareça daqui, e já.
— Mas gostaria... De dizer adeus a ele... De agradecer­lhe.
— Para   quê?   Lorde   Rothwyn   usou­a   apenas   para   me   magoar.   Você   foi   um
instrumento de vingança, nada mais. Se eu tivesse mandado á igreja uma criada em lugar
de você, ele teria feito a mesma coisa. Suponho que não queira criar um caso para lorde
Rotwyn, forçando­o a despedi­la como se fosse uma simples empregada.  Imagino que
prefira se portar como uma lady. Por isso, mamãe lhe mandou este dinheiro, para que
você possa sair desta casa com dignidade.
— O que quer... Então... Que eu faça?
— Junte alguma roupa, apenas o que possa ser carregada numa trouxa escondida
sob sua capa, para que não chame atenção de ninguém. Minha carruagem espera­nos lá
fora.
— E... depois?
— Levo­a até a encruzilhada mais próxima onde passam todas as diligências que
vão   a   Londres.   Assim   que   você   chegar   a   Charing   Cross,   tome   outra   diligência   para
Norfolk.   Há   duas   por   dia   e,   se   se   apressar,   poderá   seguir   na   da   noite.   Uma   vez   em
Norfolk, acredito que ache sua antiga governanta com facilidade. Mamãe disse que você
sabe onde ela mora.
— Sim... sei.
— Então, por que esse ar preocupado?
— É que, não estou certa de estar agindo bem.
— Quando   lorde   Rothwyn   souber   que   eu   vim   para   entregar   a   ele   meu   coração,
disposta a ser sua esposa, não vai querer se incomodar com você.
— Não... isso é verdade. Suponho que esteja com a razão, Sophie.
— Vou ao quarto com você para ajudá­la a se preparar. Não deixe recado com os
criados, nem escreva nada. Não faça as coisas mais difíceis para lorde Rothwyn do que já
estão. Seria natural que ele se sentisse na obrigação de segurá­la aqui.
— Mas nós estamos... Casados!
Sophie deu uma gargalhada e comentou:
— Um  casamento  que  pode  ser  apagado  da memória do  ministro  da igreja  com
algumas libras. É fácil destruir a evidência do livro de registro de casamentos.
Lalitha fitou Sophie horrorizada, e gritou:
— Garanto que você... já fez isso!
— Sim, já fiz. E foi muito fácil, na verdade. Não havia ninguém na igreja quando
entrei   na   sacristia,   e   o   livro   de   registros   achava­se   aberto   sobre   uma   mesa.   Rasguei   a
página que me interessava. Além do mais, pessoa alguma acreditará que você se casou
com um homem de coração partido por ter sido abandonado pela namorada.
Lalitha   fechou   os   olhos,   desesperada.   Mais   uma   vez   Sophie   agia   segundo   sua
conveniência, e não havia nada que ela pudesse fazer.
Ambas   foram   para   o   quarto.   Àquela   hora   da   tarde,   os   criados   estavam   todos
recolhidos, incluindo Nattie. Sophie abriu as portas dos guarda­roupas e exclamou:
— Sua Senhoria comprou muitos vestidos para você! E lindos! É uma sorte termos o
mesmo corpo.
— Não creio que você possa usar minhas roupas, sou muito mais magra.
— Nesse caso, vamos jogá­las fora. Você não pode levar nada consigo, despertaria
suspeitas.
— Sim... Entendo.
Lalitha   apanhou   uma   camisola   e   algumas   roupas.   Colocou   tudo   sobre   um   xale
estendido em cima da cama.
— Isso é mais que suficiente — declarou Sophie.
Lalitha amarrou as pontas do xale, fazendo uma pequena trouxa, e vestiu a capa de
viagem.
Sophie abriu o armário dos chapéus.
— São maravilhosos! — observou ela.
— Talvez eu possa usar um deles —  sugeriu Lalitha.
— Para   quê?   Ponha   o   capuz   na   cabeça.   Assim,   os   criados   não   vão   achar   nada
estranho; pensarão que vai apenas dar um passeio comigo.
Lalitha percebeu que Sophie falava isso por desejar ficar com todos os chapéus.
Contudo, não protestou. Enfim, morando com sua velha governanta em Norfolk, não teria
oportunidade de usar chapéus elegantes, comprados em Bond Street.
— Aqui está seu dinheiro! — declarou Sophie rudemente, passando para as mãos
dela uma pequena carteira que Lalitha pegou com relutância.
Gostaria de poder dizer que não queria nada de Sophie ou da madrasta, mas não
desejava depender exclusivamente de sua velha governanta, que não possuía muito.
Ela pôs a carteira em sua bolsa de cetim, apanhou um lenço e um par de luvas de
camurça. Sophie examinou­a.
— Você tem muito melhor aparência agora, Lalitha. Encontrará emprego rápido.
— Acho...   que   sim.   Você   me   faz   lembrar   que   seria   interessante   carregar   comigo
agulhas e linha de bordar.
Dito isso, ela apanhou todo o material de costura numa gaveta, e colocou­o também
na bolsa.
— Venha!   —   gritou   Sophie   impaciente.   —   Se   vai   levar   tudo   de   que   precisa,
ficaremos aqui até amanhã.
Lalitha lançou um último olhar ao quarto onde fora tão feliz. Parecia­lhe um local
de segurança e paz. De repente, sentiu­se desesperada. Voltava para o mundo ameaçador,
deixando lorde Rothwyn para sempre!
— Depressa! — Sophie insistia. — Se perder a diligência, terá de passar a noite em
Londres.
Lalitha apavorou­se. E  se encontrasse  lá uma daquelas  pessoas encarregadas  de
arrebanhar moças para enviá­las como escravas a outros países? O pânico tomou conta
dela,  não queria  mais sair. Talvez fosse prudente  chamar Nattie e contar­lhe o que  se
passava. Mas, seria muita humilhação. Sophie estava certa, lorde Rothwyn não a amava.
Sem   uma   palavra,   acompanhou   Sophie.   No   hall,   o   mordomo   as   viu   e   disse   a
Lalitha:
— Vai dar um passeio, milady?
— Sim,   um   pequeno   passeio   —   replicou   Sophie   adiantando­se   a   Lalitha.   —
Voltaremos logo.
— Muito bem, miss. — E depois, dirigindo­se a Lalitha: — Vai levar Royal?
Só então Lalitha se deu conta de que o cãozinho estava a seus pés. Pegou­o nos
braços. Ela amava aquele cachorro, e era mais uma coisa difícil de abandonar. Beijou com
carinho a cabeça se: dosa do animal, e disse ao mordomo:
— Leve­o a Nattie.
Royal ganiu, protestando contra o fato de ser abandonado por sua dona.
Na rua, o cavalariço abriu a porta da carruagem, pôs uma manta sobre os joelhos
das duas mulheres, e os cavalos se puseram em movimento.
"Vou­me embora", pensou Lalitha, sentindo  uma mágoa profunda. "Nunca mais
voltarei, nunca mais o verei!"
Olhou para trás. O sol da tarde incidia em cheio sobre as paredes da mansão, a casa
que fora seu porto seguro, que a abrigara com tanto carinho! Agora, partia.
— Adeus... Meu amor! — sussurrou ela.
Quando as palavras lhe saíram dos lábios, percebeu que não era à casa que ela dizia
"adeus", mas a seu proprietário.
CAPÍTULO V

Quando lorde Rothwyn retirou­se da Câmara dos Lordes, seu amigo Henry Gray
Bennet o aguardava à porta.
— Sinto muito, Henry.
— Esperava que isso acontecesse — respondeu o Sr. Bennet. — Contudo, tentarei de
novo, não tenha dúvida. Tentarei até conseguir que essa lei passe no congresso.
— E eu lhe darei todo o apoio possível — prometeu lorde Rothwyn.
— Você já fez muito. Seu discurso foi excelente.
— Obrigado.
— Onde podemos nos consolar de nossa decepção? Talvez no clube White?
Lorde Rothwyn teve um momento de hesitação. Estava quase aceitando o convite
quando teve um pressentimento de que deveria voltar a Roth Park. Não sabia explicar
bem o que sentia, mas achou que precisava retornar com urgência.
— Perdoe­me, Henry, fica para outra vez. Vim até Londres somente para atender
seu pedido, mas agora tenho de voltar.
— É estranho você permanecer no campo nesta época do ano. Perdeu até as corridas
de Ascot.
Lorde Rothwyn não respondeu. Foi imediatamente para o local onde se encontrava
sua carruagem. Assim que entrou no veículo, pareceu­lhe rude, estando em Londres, não
fazer uma visita ao príncipe regente.
Este viajara de Brighton para a capital a fim de assistir ao batizado da filha do
duque e da duquesa de Kent, Alexandrina Victoria.
Lorde  Rothwyn  sabia  que   Sua  Alteza   Real   consideraria   grande  grosseria   se  ele,
estando em Londres, não fosse visitá­lo.
O   príncipe   regente   desejava   discutir   com   lorde   Rothwyn   sobre   as   reformas   do
palácio real de Brighton, que ele transformara num pavilhão indiano.
A própria rainha, entusiasmada com as idéias do filho, contribuíra com cinqüenta
mil libras de seu próprio bolso para as alterações necessárias, amenizando em parte as
críticas que tal empreendimento vinha causando. Mas, apesar do auxílio dado pela rainha,
todo o trabalho de restauração havia custado uma fortuna aos cofres públicos.
Os   enormes   candelabros   no   formato   de   flores,   os   biombos   chineses   da   sala   de
música, laqueados de dourado e vermelho, e a decoração luxuosa da sala de banquetes
aumentaram aquela já fabulosa despesa.
Lorde Rothwyn sabia que trinta e três mil libras haviam sido gastas no ano anterior,
e que mais ou menos quarenta mil seriam necessárias no ano corrente.
Porém, ele gostava do regente como homem e admirava o que ele tentava criar, com
seu espírito de fantasia e exuberante romantismo.
— Todos   me   criticam   e   caçoam   do   pavilhão   —   Sua   Alteza   Real   dissera   a   lorde
Rothwyn por ocasião de uma visita deste a Brighton.
— A posteridade julgará seus atos e admirará o progresso introduzido por Vossa
Alteza Real neste país — respondera lorde Rothwyn. — Algum dia, o Pavilhão Real será
considerado o maior empreendimento arquitetônico de Brighton.
Contudo, apesar de admitir que uma visita ao regente seria recomendável naquele
instante, lorde Rothwyn tomou o caminho de Roth Park. Ele mesmo conduzia os cavalos, e
com habilidade ímpar. O cavalariço, sentado no banco traseiro, observava com satisfação
que todas as cabeças se viravam para apreciar seu amo, por onde quer que passassem.
Era de fato impossível não prestar atenção em lorde Rothwyn. Atraente, ele tinha
uma presença marcante; e não se podia deixar de pôr em destaque, também, a qualidade
dos cavalos que puxavam a carruagem aberta.
Em pouco tempo as casas desapareceram e eles se encontraram em pleno campo.
Os animais galopavam ao longo da estrada que
seguia para o norte, através de Barnet e Potters Bar, chegando finalmente ao vale
onde ficava Roth Park.
A   enorme   mansão   apresentava­se   magnífica   ao   pôr­do­sol,   e   os   tijolos   à   vista
brilhavam como gemas preciosas. Uma bandeira tremulava no alto do telhado e, abaixo,
no lago prateado, cisnes brancos moviam­se com graça.
Como sempre, ao ver sua casa, lorde Rothwyn sentiu orgulho, não apenas por ser o
proprietário, mas porque era descendente de uma longa estirpe de homens inteligentes e
criativos.
Ele parou à porta e virou­se para o cavalariço com um sorriso:
— Cobrimos a distância de Londres até aqui melhor que nunca, não, Ned?
— Três minutos mais rápido que da última vez, milorde.
— Muito bom, Ned.
— Bom mesmo, milorde.
Lorde Rothwyn subiu o lance de escadas de pedra e entregou ao mordomo que o
aguardava o chapéu e as luvas.
— Há   uma   senhora   à   sua   espera   no   salão   prateado,   milorde   —   informou­o   o
mordomo.
— Uma senhora?
— Uma miss Studley, milorde.
Lorde Rothwyn de início ficou imóvel. Depois, com uma ruga na testa, dirigiu­se
para o hall. Um lacaio abriu­lhe a porta do salão e ele viu logo Sophie, em pé perto da
janela. Os raios do sol iluminavam­lhe os cabelos dourados e punham em destaque sua
pele alva e rosada, os olhos azuis, e o clássico contorno de seus lábios. Ela deu um grito de
alegria e foi ao encontro dele.
— Inigo!
— Que faz você aqui? — A indagação era rude e abrupta.
— Há necessidade dessa pergunta? — Ela estendeu os braços para lorde Rothwyn e
continuou: — Tive de vir, Inigo, tive de vir!
— Posso  saber  o que  quer  dizer  com "tive de  vir"? — disse  ele,  afastando­se  da
moça. — Não a convidei.
— Sei disso, mas não podia prosseguir vivendo sem você.
— Não temos nada a nos dizer — declarou ele. — Nada na verdade!
— Mas eu tenho muito! Eu te amo, Inigo! Só há pouco descobri o quanto te amo, e
como me é impossível viver longe de você!
— Que   foi   que   provocou   essa   esfuziante   paixão?   A   circunstância   de   Verton   ter
viajado para a França?
Lorde   Rothwyn   notou   uma   mudança   súbita   de   expressão   nos   olhos   de   Sophie,
indicativa de que se surpreendia por ele saber que Julius saíra da Inglaterra. Todavia, o
tom de voz dela permaneceu imutável.
— Cometi um erro, Inigo, ao  mandar Lalitha ao  seu encontro naquela  noite. Foi
culpa de mamãe. Sabe como ela é!
— Então, foi sua mãe que a forçou a abandonar­me na última hora, não?
— Foi, foi, foi mamãe! Ela é muito ditatorial, e eu não pude desobedecê­la. Amo
você, Inigo, e procurei convencê­la disso; sem sucesso, porém.
— Você é boa atriz, Sophie, mas não tão boa como imagina. Sei muito bem por que
veio aqui hoje. Verton contou a todos o que você fez, e sua reputação está perdida no meio
social londrino, e para sempre.
— Não creio! Não obstante, só o que é importante agora é que eu te amo!
— Mesmo não sendo eu um duque? — indagou lorde Rothwyn sarcasticamente.
— Nunca   desejei   me   casar   com   Julius.   Mamãe   quis   forçar   aquele   casamento   e,
enquanto  ele  estava  em  Londres,   eu  não   podia  me  aproximar  de  você.  Agora  que   ele
partiu, as coisas são diferentes.
— Não vê que é tarde demais para mudar de idéia? Estou casado. — Ele fez uma
pausa e após acrescentou: — Já viu Lalitha? Que disse a ela?
— Lalitha foi compreensiva e não vai pôr obstáculos a meus planos.
— Planos? Que planos? Não quero que você aborreça Lalitha.
Ato contínuo, lorde Rothwyn estendeu a mão para tocar a sineta. Adivinhando a
intenção dele, Sophie falou depressa:
— Não mande chamar Lalitha, ela partiu.
— Partiu? Que quer dizer com isso?
— Contei­lhe   que o amava — declarou Sophie. — Ela aceitou minha explicação e
desapareceu de sua vida. De qualquer maneira, você se casou com Lalitha por vingança,
para me punir, não foi?
— Lalitha concordou em desaparecer de minha vida? Mas como? Para onde foi ela?
— Não vai incomodá­lo nunca mais — respondeu Sophie. — Fiz todos os arranjos
para o futuro, você não precisa vê­la de novo.
— Para onde foi Lalitha? — insistia lorde Rothwyn,.
— Não   importa   saber!   Você   não   anunciou   seu   casamento   nos   jornais,   portanto,
ninguém em Londres sabe o que houve. Estou pronta a me casar a qualquer momento,
amanhã ou depois. Assim, poderemos ficar juntos como sempre você desejou.
O entusiasmo de Sophie decrescia  ao perceber  a expressão  de ódio no  olhar de
lorde Rothwyn.
— E você acredita, Sophie, que eu a tocaria e, pior ainda, que me casaria com você,
depois do modo cruel como Lalitha foi tratada em sua casa?
— Isso não tem nada a ver comigo e, se Lalitha lhe contou um monte de mentiras,
não deve dar ouvidos a ela. Lalitha é uma mentirosa, e minha mãe cuidava dela por mera
caridade.
— Para onde foi Lalitha, Sophie?
— Por que está tão interessado em saber? Ela não é ninguém, apenas uma garota
feia e doentia! Estou pronta a me entregar a você, Inigo; pode querer mais?
— Você me enoja, Sophie. E, se não me contar para onde foi Lalitha, arrancarei a
verdade à força. Eu a espancarei da mesma maneira que sua mãe espancou aquela pobre
menina.
Ele falou tão ferozmente que Sophie deu alguns passos para trás e protestou:
— Você deve estar louco para falar assim comigo!
— Falarei ainda com mais violência, se não responder à minha pergunta! Onde está
Lalitha? Será que vou precisar obter essa resposta à força?
Ele avançou para Sophie que se assustou e disse:
— Não me toque! Vou lhe contar!
— Muito bem, então fale depressa!
— Dei dinheiro para que ela fosse a Norfolk. Não sei exatamente onde se encontra
agora, mas deixei­a na diligência.
— Na encruzilhada da estrada?
— Isso mesmo.
— É tudo que preciso saber — declarou ele, encaminhando­se para a porta. Antes de
sair, ordenou: — Saia de minha casa já! Se a encontrar aqui na volta, mandarei que os
criados a ponham na rua!
Ele retirou­se do salão, batendo a porta com violência, e foi direto à estrebaria.
— Prepare meu coche imediatamente — disse ele ao cavalariço.
— Pois não, milorde.
Meia dúzia de empregados correu para atender lorde Rothwyn que esperava com
impaciência. Menos de dez minutos mais tarde, o coche estava pronto, atrelado a dois
animais   velozes.   Lorde   Rothwyn   pulou   para   o   assento   dianteiro,   e   os   cavalos   já   se
movimentavam quando Ned acomodou­se no banco de trás.
Numa   velocidade   incrível,   lorde   Rothwyn   alcançou   a   encruzilhada,   pondo   de
encontro de várias estradas.
— Por qual dessas vias passa a diligência que segue para Londres? — indagou ele
ao cavalariço.
— Pela da esquerda, milorde.
Lorde Rothwyn tomou a direção indicada e, com tanta velocidade, que Ned muitas
vezes teve de se segurar para não ser cuspido do veículo.
Estavam já a alguns quilômetros de Londres, quando, à frente deles, divisaram uma
diligência superlotada, não somente de passageiros, mas de bagagem. Havia todo tipo de
baús no teto do carro, incluindo engradados de galinhas, e até um cabrito que berrava
dentro de um saco.
Sendo a estrada estreita naquele local, lorde Rothwyn teve alguma dificuldade para
ultrapassar a diligência. Enfim, quando o fez, pôs o coche no meio da via obrigando­a a
parar.
— Que pretende fazer? — gritou o cocheiro, homem truculento e bastante irritado.
— Sua Senhoria deve estar lá dentro — disse lorde Rothwyn ao cavalariço. — Vá
chamá­la,
— Pois não, milorde.
Ned   desceu   e   encaminhou­se   para   a   diligência,   abrindo   a   pesada   porta,   e   não
prestando atenção aos gritos do cocheiro e de seu ajudante.
Apertada   entre   bem   nutridos   camponeses,   crianças,   um   padre   e   dois   caixeiros
viajantes, ele viu Lalitha, sentada com a cabeça inclinada, o capuz até o nariz para que
ninguém visse as lágrimas.
Quando   Lalitha   e   Sophie   passaram   pelos   majestosos   portões   de   Roth   Park   e
entraram em plena estrada, Lalitha se convencera de que deixava para trás o homem que
amava. Ela o amava, sim, e desde o instante em que ele a beijara na igreja acreditando ser
ela Sophie. Ela amava, embora temendo­o, o homem que a carregara para o quarto no dia
de sua chegada a Roth Park.
Porém, não era apenas o aspecto físico de lorde Rothwyn que a atraía; havia algo
mais, algo que ela não conseguia definir. Parecia existir dentro dela um instinto que lhe
dizia   ser   aquele   o   homem   de   sua   vida.   E,   quando   sozinha   no   quarto   da   mansão,   ela
sempre sentia que tudo, os móveis, os quadros era como se fosse ele em pessoa. Da mesma
forma que os antepassados de Roth Park haviam deixado na casa um pouco do coração, da
mente, da alma, lorde Rothwyn imprimia em cada coisa sua personalidade.
Conversando   com   ela,   fora   habitualmente   gentil,   de   uma   gentileza   que   Lalitha
jamais   esperara   de   um   homem,   muito   menos   de   um   homem   importante   como   lorde
Rothwyn. Reconhecia, naquela hora, que o perdera irremediavelmente.
"Eu o amo! Eu o amo!", sussurrava. "Nunca mais o verei."
Usara de grande esforço para não cair em pranto no momento em que Sophie a
deixara na encruzilhada.
— Adeus, Lalitha — dissera Sophie. — Não se esqueça de sua promessa. Considere
seu casamento como uma pilhéria, pois lorde Rothwyn nunca mais se lembrará que você
existe.
Lalitha   não   respondera.   Entrara   na   diligência   carregando   sua   trouxa,   e   com
dificuldade encontrara lugar no superlotado veículo.
Sophie nem esperara que o carro partisse, tomando o caminho de volta para Roth
Park.
Fora impossível a Lalitha não chorar enquanto a diligência a levava cada vez mais
longe de tudo o que significara para ela segurança e felicidade.
Estava abafado no interior do veículo; o barulho de vozes e choro de crianças a
incomodavam, adicionando­se a isso  o cheiro de  comida, de  suor e a fumaça. Lalitha,
porém,   só   pensava   na   beleza   de   Sofia   e   no   prazer   que   lorde   Rothwyn   teria   ao   vê­la,
quando voltasse à casa.
Ela o enxergava entrando na mansão, os cachorros correndo para recebê­lo. Aí, ele
encontraria esperando­o, a bela Sophie. Lalitha o visualizava abraçando e beijando sua
antiga namorada.
A   dor   que   sentira,   então,   fora   muito   maior   que   a   dor   física   causada   pelas
bengaladas,   pior   que   qualquer   sofrimento   que   tivera   antes   na   vida.   Fechara   os   olhos,
refletindo:
"Como posso agüentar isso pelo resto de minha existência?"
A   carruagem   seguia   seu   caminho   aos   trambolhões,   parando   em   cada   pequena
aldeia. Alguns passageiros saíam, outros entravam e, ocasionalmente, o cabrito balia.
E Lalitha tinha também em mente a imagem de lorde Rothwyn quando ele a fitava
com   uma   chama   repentina   no   olhar,   deixando­a   paralisada,   impossibilitando­a   até   de
falar.
"Haverá nele um pouco de amor por mim?" pensava. "Ou tratara­se apenas de uma
obrigação moral de que terá prazer em se livrar?"
Mais uma vez sua agonia fora insuportável! Mas tentava se conformar. Afinal de
contas, conhecera lorde Rothwyn por acaso, só porque Sophie lhe preparara uma perfídia.
Ele sentira pena da pobre moça maltratada pela madastra! Como poderia amar mulher,
tão feia, tendo Sophie à sua disposição? Além disso, houvera outras mulheres lindas em
seu   caminho,   com   certeza.   A   tagarelice   de   Nattie   não   a   deixara   na   ignorância   a   esse
respeito.
"Sua Senhoria recebeu demais da vida! É um rapaz mimado, e sempre o foi, desde
que nasceu."
"Era bonito quando criança?", indagara Lalitha.
"Lindíssimo!   Parecia   um   anjo.   Quando   adulto,   começou   a   chamar   a   atenção   de
todos pela beleza. Não admira que as mulheres o perseguissem sem cessar."
"Verdade?"
"Mas claro", replicara Nattie. "Com a atração que ele possui, sua riqueza, o lugar
que ocupa na sociedade, não há moça que não o deseje como marido, e nem mãe que não o
queira como genro."
"É estranho que não tenha se casado até hoje!"
"É o que sempre digo a ele. Mas Sua Senhoria ri e me responde que ainda não
encontrou mulher que corresponda aos seus ideais."
E   agora,   pensava   Lalitha,   ele   encontrara   Sophie,   mulher   que   se   equiparava   em
beleza à atração dele como homem.
O casal perfeito!
Lalitha imaginava a excitação que aquele casamento despertaria no beau monde.
Lorde Rothwyn levaria Sophie à Carlton House, às festas do Parlamento, e ela seria
a mulher mais linda na cerimônia da coroação do próximo rei.
Lalitha engoliu um soluço e refletiu:
— "Por que, meu Deus, por que não me apaixonei por um homem comum? Um
homem que não pertencesse à alta sociedade, e com quem eu pudesse acabar meus dias
numa casinha modesta?"
Mas não. Tivera de se apaixonar por uma criatura tão longe de seu alcance como as
estrelas no céu.
"Como   pôde   ser   tão   boba?   Tão   boba?",   as   rodas   do   carro   pareciam   repetir   de
encontro ao solo acidentado da estrada poeirenta e pedregosa.
E a resposta vinha logo:
"Não pude evitar! Não pude evitar!"
As lágrimas rolavam­lhe pela face quando a diligência parou.
Ela ouviu o cocheiro gritar e um dos passageiros, um velho sitiante, dizer:
— Por que essa parada agora? Já estamos bem atrasados.
— É uma desgraça essas diligências não chegarem ao destino na hora marcado —
outro passageiro protestou.
Nesse instante, um cavalariço de libré colocou a cabeça no interior da diligência.
Viu Lalitha e disse:
— Sua Senhoria a espera lá fora, milady.
Lalitha, por momentos, não acreditou no que ouvia; depois repetiu:
— Sua... Senhoria?
— Ele a espera, milady.
Os  outros passageiros a encaravam sem saber  o que pensar, e um dos caixeiros
viajantes queixou­se:
— Se   a   senhora   pretende   descer,   madame,   faça­o   logo.   Já   estamos   bastante
atrasados.
— Desculpe — balbuciou Lalitha.
Ela teve dificuldade para sair de seu lugar, e mais ainda para pular por cima das
pernas das pessoas que estavam entre a porta e ela. Ned ajudou­a a descer da diligência, e
Lalitha logo viu o coche atravessado na estrada. Reconhecendo imediatamente a pessoa
que o dirigia, seu coração pulsou com mais força. Ela sentou­se ao lado de lorde Rothwyn
e o cavalariço cobriu­lhe os joelhos com uma manta. Ninguém falou nada e, assim que
Ned tomou seu lugar, os três prosseguiram viagem.
Lalitha arriscou um olhar para lorde Rothwyn. Observava­o de perfil, e notou a
ruga   na  testa  dele  e   o  ricto   de  irritação   nos  lábios.  Devia  estar   furioso!   Não  obstante,
pensando bem, ela fizera o que julgara melhor, o que traria felicidade a ele.
Chegaram numa encruzilhada onde tiveram de esperar que a diligência, que vinha
logo atrás, passasse. O sol, que brilhara no céu até poucos instantes, como uma cascata
dourada, desaparecia na linha do horizonte, e a escuridão aumentava gradualmente. Mal
se via a estrada que conduzia a Roth Park.
— Por que você fugiu? — perguntou­lhe de repente lorde Rothwyn.
— Pensei... Pensei... Que o senhor não me quisesse mais em sua casa — gaguejou
Lalitha.
Era­lhe difícil falar com clareza, pois se perturbava com a irritação expressa no tom
de voz de lorde Rothwyn.
— Você partiu de livre e espontânea vontade? — indagou ele, ainda zangado.
Aí, quando Lalitha fitou­o para responder, espantada com a pergunta, ele viu sinais
de   lágrimas   no   rosto   dela,   e   notou   que   tinha   os   cílios   ainda   úmidos.   Sorriu   então   e
acrescentou, com suavidade:
— Ainda não aprendeu que nunca deixo um trabalho inacabado?
Lalitha não teve mais medo, não sentiu mais aquele aperto no coração. Uma onda
de inacreditável alegria a invadiu.
"Ele está me levando de volta a casa", disse a si mesma. "De volta... a casa."
Os cavalos iam depressa, mas não com a velocidade anterior. Porém, para Lalitha, a
viagem   parecia   rapidíssima,   comparada   com   a   da   superlotada   diligência.   Não   mais   o
cheiro desagradável de comida, a atmosfera abafada, e a proximidade dos passageiros. A
brisa   penetrando   no   carro   aberto   brincava   com   seus   cabelos,   e   uma   enorme   excitação
enchia­lhe o peito. Não havia necessidade de palavras, apenas tinha consciência de que
lorde   Rothwyn   a   tirara   de   novo   de   um   calabouço   escuro,   para   uma   luz   que   quase   a
cegava.
— Você está bem? — interrogou ele.
— Sim... Bastante bem.
Sentada ao lado do homem que amava, possuía tudo que queria da vida.
A   escuridão   aumentava,   e   as   nuvens   do   céu   prenunciavam   tempestade.
Encontravam­se no meio de uma floresta, numa estrada tortuosa e estreita, com  árvores
altas   e   frondosas   de   ambos   os   lados.   Numa   curva,   ouviram   vozes   e,   quando   lorde
Rothwyn   diminuiu   um   pouco   a   marcha,   dois   homens   a   cavalo   apareceram   diante   do
coche.
— Pare! — um deles berrou.
Dois cavaleiros mascarados aproximaram­se de lorde Rothwyn que tentou tirar do
bolso uma pistola; mas um dos assaltantes o alvejou com sua arma, atingindo­o no ombro
direito. Lorde Rothwyn largou as rédeas e tocou o ombro ferido com a mão esquerda.
— Não se mexa se não quiser morrer! — um dos homens gritou.
— Tirem   esse   carro   da   estrada!   —   outra   voz   ordenou,   e   Lalitha   percebeu,   com
horror, que havia quatro assaltantes ao todo.
"Quatro contra dois!", pensou ela desesperada. "E um dos nossos, ferido!"
— Malditos! — exclamou lorde Rothwyn. — Que diabos querem de nós? Não temos
quase nada de valor conosco.
Um dos homens sorriu de maneira atrevida, e disse:
— Precisamos urgentemente de bons cavalos!
— Maldição!
Durante essa troca de palavras, Lalitha notou que o assaltante erguia a pistola para
dar uma coronhada na cabeça de lorde Rothwyn, que não teria condições de se defender
por  estar  não  somente   ferido  como   em  nível  bem  mais baixo.  Ela levantou­se  então   e
estendeu os braços para protegê­lo, gritando:
— Não! Não! Não faça isso!
— Por que não? — protestou o bandido.
— Por que... Os senhores são conhecidos como "os cavalheiros das estradas", e um
cavalheiro jamais ataca um homem desarmado... E ferido.
O bandido sorriu e observou:
— A menina é corajosa mesmo! Muito bem! Nesse caso, diga a seu companheiro que
guarde para si as maldições.
Lorde Rothwyn ia responder, porém Lalitha cobriu­lhe a boca com a mão. Sabia
que ele estava furioso e se reagisse às conseqüências poderiam ser desastrosas.
Sentindo a mão trêmula de Lalitha em seus lábios, lorde Rothwyn controlou­se,
dizendo a ela:
— Não vou provocá­lo, sossegue.
— Por favor, acalme­se! — declarou Lalitha. — Estou com tanto medo!
Agarrou­se a ele, à procura de proteção.
Dois dos assaltantes desatrelaram os cavalos do coche e levaram­ nos para o meio
do   mato,   seguindo   por   um   atalho   que   ia   até   uma   clareira   onde   árvores   haviam   sido
recentemente derrubadas. Os outros dois arrastaram Ned e o amarraram a um tronco de
árvore.
— Por que estão fazendo isso? — perguntou o cavalariço.
— Não   queremos   que   você   nos   persiga   depressa   demais,   embora   vá   estar   bem
ocupado cuidando de um homem ferido e de uma mulher indefesa.
Um dos marginais chegou perto do coche, ordenando a lorde Rothwyn:
— Sua carteira e todos os valores que possui!
Ato contínuo, retirou do bolso de lorde Rothwyn a pistola. Examinou­a, sorriu e
disse:
— A melhor arma que já tive! Seus cavalos também são bem superiores aos nossos!
— Dê aos "cavalheiros das estradas" minha carteira, Lalitha! — falou lorde Rothwyn
com voz calma, embora sarcástica.
Lalitha   obedeceu,   e   os   olhos   do   bandido   fixaram­se   na   pequena   bolsa   que   ela
carregava.
— A sua também! — insistiu ele. — Será um lindo presente para minha namorada!
Lalitha entregou­lhe a bolsa. O homem abriu­a e assobiou quando deu com as vinte
libras que Sophie havia dado a ela.
— Muito bem! — exclamou ele. — Agora, mocinha, quer acompanhar os cavalheiros
das estradas?
— Não, obrigada. Não desejo viver perseguida, caçada, com medo de ser presa a
qualquer minuto.
O assaltante riu muito.
— Você é valente! Gosto de mulheres assim!
Dito isso, encarou Lalitha com insolência e ela tremeu, encostando­se mais em lorde
Rothwyn. O bandido pôs a mão no braço dela, e Lalitha previu o que iria acontecer.
Nesse   exato   momento,   um   grito   vindo   do   meio   da   floresta   chamou   atenção   do
bandido. Era de seus companheiros que, satisfeitos com os cavalos, preparavam­se para
partir.
O homem que segurava o braço de Lalitha lamentou:
— Não há tempo! Que pena! Você seria um bom prato para mim!
Ele montou e seguiu o grupo.
A chuva começou a cair com intensidade. Lalitha pediu a lorde Rothwyn:
— Deixe­me ver seu ombro. Antes, porém, precisamos encontrar um abrigo. Pode
andar até aquela árvore?
— Sim, claro.
Lalitha notou com preocupação que o paletó dele, no lado do ombro ferido, estava
encharcado de sangue. Ajudou­o a descer do coche e depois dirigiu­se a Ned:
— Vou   desembaraçar   você   dessas   cordas.   Mas   deixe­me   primeiro   cuidar   de   Sua
Senhoria.
— Estou bem, milady, não se preocupe comigo.
Enquanto caminhavam até a árvore, Lalitha divisou ao longe, no meio do mato,
uma cabana. Provavelmente havia sido feita por lenhadores das redondezas. Correu para
lá   assim   que   acomodou   lorde   Rothwyn,   abriu   a   porta   da   cabana   e   uma   onda   de   ar
aquecido   chegou   até   seu   rosto.   Algumas   achas   acesas   ainda   restavam   numa   lareira
improvisada. Ela deixou a porta aberta e foi ao encontro de lorde Rothwyn.
— Encontrei   uma   cabana   onde   poderemos   nos   abrigar!   —   exclamou,   quase   sem
fôlego.
— Que bom! — replicou lorde Rothwyn, mas Lalitha percebeu que ele falava com
esforço.
Ela ajudou­o a ir até a cabana cuja porta era tão baixa que ele teve de se inclinar
para entrar. Assim que o fez, deitou­se no chão áspero, exausto.
Ao sair do coche, Lalitha carregara consigo a trouxa. Abriu­a e tirou de lá umas
roupas e com elas improvisou ataduras.
— Vou cortar a manga de seu paletó — explicou a lorde Rothwyn. — Penso ser mais
lógico, pois o senhor sofreria muita dor se tentasse tirá­lo.
— Obrigado — respondeu lorde Rothwyn.
Lalitha possuía apenas uma pequena tesoura de bordar, mas conseguiu executar o
que pretendia. O ferimento  ficava na parte mais alta do braço, na altura do ombro. O
sangue era tanto que não foi possível ver o local exato. Corria pelo braço todo, chegando
até a mão, tingindo tudo de um vermelho vivo. Ela percebeu que não daria para saber se a
bala atravessara apenas a carne ou se atingira algum osso. Enfim, exposta a parte afetada,
Lalitha tomou as ataduras e colocou­as no lugar de onde parecia brotar o fluxo de sangue.
Lorde Rothwyn estava pálido e sofria muita dor.
— Agora vou soltar Ned — disse ela.
— Há uma garrafa de conhaque no coche — informou lorde Rothwyn. — Quer, por
favor, trazê­la para mim?
— Claro. Por que não me pediu antes?
Lalitha   foi   o   mais   rápido   possível   ao   coche.   Chovia   torrencial­   mente.   Pegou   a
garrafa e a manta, e voltou à cabana. Depois, com a tesoura na mão, dirigiu­se ao encontro
de Ned. tentou desfazer o nó, mas sem sucesso. Cortou então a grossa corda que o prendia
à árvore, com bastante esforço.
Logo que se viu livre, Ned declarou:
— Vou buscar socorro, milady.
— Vá,   por   favor.   Receio   estarmos   bem   distantes   da   última   aldeia   pela   qual
passamos.
— Penso ter de ir mais longe que isso, milady. Essas pequenas aldeias não oferecem
nenhum tipo de condução adequada para transportar Sua Senhoria.
— Tem razão — concordou Lalitha com um suspiro de desânimo. — Nesse caso,
Ned, é melhor irmos buscar as almofadas do coche, a fim de que lorde Rothwyn tenha um
pouco mais de conforto. Há uma lareira rústica na cabana.
— Ótimo,   milady.   Posso   apanhar   mais   lenha.   Assim,   a   senhora   e   Sua   Senhoria
ficarão bem aquecidos enquanto eu for providenciar condução para voltarmos à casa.
Felizmente   havia   muita   lenha   na   redondeza,   e   os   lenhadores,   acostumados   que
estavam a pernoitar na mata, tinham feito uma chaminé no teto da cabana, que permitia a
saída da fumaça produzida pelo fogo.
Ned   acomodou   lorde   Rothwyn   nas   almofadas   e   ativou   a   chama.   Declarou   em
seguida:
— Agora, milorde, me vou. Voltarei o mais depressa que puder.
— Obrigado, Ned — respondeu lorde Rothwyn.
Lalitha achou que ele melhorara depois de ter tomado um pouco de conhaque, e ela
agradecia a Deus pelos assaltantes não terem encontrado a garrafa no coche.
Ned sumiu na escuridão da noite, e ela sentou­se numa das almofadas. Notando
que lorde Rothwyn segurava o braço de maneira desconfortável, saiu da cabana, tirou a
anágua,   e   com   ela   fez   uma   tipóia.   Muito   gentilmente,   colocou­a   no   pescoço   de   lorde
Rothwyn, para que ele apoiasse o cotovelo.
— Está melhor assim? — perguntou.
— Posso ver que é enfermeira competente, Lalitha.
— Espero ter agido corretamente. Mamãe era muito boa para colocar bandagens.
Sempre a chamavam quando alguém na aldeia se machucava, especialmente crianças. Mas
eu mesma nunca fiz isso antes.
— Estou muito grato a você, Lalitha.
— Afinal, foi tudo culpa minha... Como posso lhe pagar... Pela perda dos cavalos?
— Poderíamos ter perdido coisas mais preciosas! — replicou lorde Rothwyn.
Lalitha achou que ele se referia ao fato de os bandidos poderem tê­lo assassinado.
Depois, lembrou­se do homem que a segurara pelo braço.
— Isso mesmo! — continuou lorde Rothwyn, como se lesse os pensamentos dela. —
Mas agora, tudo está acabado, só temos de esperar por Ned. Sugiro que você sente­se bem
perto de mim, para que a manta cubra a ambos.
— Sim, tem razão — concordou Lalitha. — É o melhor que eu tenho a fazer.
Ela aproximou sua almofada e não pôde deixar de sentir um frenesi percorrer­lhe o
corpo. Contudo, há bem pouco tempo, pensara nunca mais vê­lo! Rendeu graças a Deus
por tamanha ventura!
— Acho que o jantar que tínhamos planejado para esta noite não vai se realizar,
Lalitha. E teria sido uma grande comemoração para nós.
— Estou muito contente aqui... de qualquer maneira — replicou ela.
— Você   é   valente!   Tome   um   pouco   de   conhaque,   deve   estar   exausta   física   e
emocionalmente.
Lalitha quis protestar, mas resolveu obedecê­lo. Serviu­se e insistiu para que ele
bebesse um pouco mais, pois devia estar sofrendo bastante dor.
— Sente­se melhor agora? — perguntou ele.
— Sinto­me... Muito... Bem. Mas o senhor  é que nos preocupa,  não há problema
algum comigo.
Ela pôs mais umas achas na lareira e, quando voltou para perto de lorde Rothwyn,
percebeu que ele quase dormia.
— O mais prudente agora, para nós, é tentarmos dormir — observou ele com voz
cansada.
— Vamos então tentar — assentiu Lalitha.
Ele bocejou e fechou os olhos. Aquele cansaço era natural, uma reação normal após
o que se havia passado, e conseqüência da perda de sangue.
Lalitha contemplou­o à luz das chamas. Era incrivelmente bonito. E ela lá estava,
sozinha com ele, sem necessidade de dizer­lhe adeus para sempre.
Que acontecera depois que ela partira da casa? Que dissera Sophie a ele, e por que a
seguira?
Havia dúzias de perguntas sem respostas, mas aquele não era o momento oportuno
para  obtê­las. A  única  coisa  que  podia  fazer  seria  alegrar­se  com o  que   os  deuses   lhe
haviam concedido. O homem que ela amava estava ali a seu lado e, não importava o que o
futuro reservasse, ela ficaria com ele pelo menos um pouco mais de tempo.
"Eu te amo!", teve vontade de dizer em voz alta.
Em lugar disso, repetiu para si mesma muitas, muitas vezes:
"Eu te amo! Eu te amo!".
CAPÍTULO VI

De início, quando lorde Rothwyn sugeriu que ambos dormissem, ele acomodou­se
de   lado,   com   a   cabeça   nas   almofadas   trazidas   do   coche.   Não   era   uma   posição   muito
confortável,   mas   ao   menos   o   ombro   ferido   ficava   livre   de   qualquer   contato.   Ele
adormeceu, mas seu sono foi muito agitado. Lalitha, acordada, só pensava em quanto o
amava.
Lorde Rothwyn delirou, e murmurava palavras ininteligíveis, com certeza devido à
febre.  Lalitha  não  sabia   o  que  fazer;  sentada   ali  ao  lado,  cuidava  para   que   ele   não  se
movesse a fim de que o ferimento não recomeçasse a sangrar.
Num dado momento, lorde Rothwyn agitou­se, e ela automaticamente segurou­o
nos braços, e fez com que recostasse a cabeça em seu peito. Pareceu ser a posição que ele
vinha procurando porque, depois disso, caiu em sono profundo e repousante.
Lalitha   tinha  medo   de   se   mexer,   quase   até   de   respirar,   para   não   acordá­lo,  e   o
sentido de tê­lo tão perto de si despertou nela uma estranha reação, jamais sentida antes.
Amava­o desesperadamente, e o que experimentava, era não somente amor por um
homem   forte,   másculo,   atraente,   mas   um   amor   que   tinha   qualquer   coisa   de   proteção,
carinho maternal. Desejava salvá­lo de tudo que pudesse lhe ser desagradável, penoso e
cruel na vida, como se ele fosse um menino que precisasse de alguém para defendê­lo da
infelicidade, da miséria, da solidão.
Abraçou­o com mais força, e encostou os lábios nos cabelos sedosos dele. Ao beijá­
los, teve vergonha de si mesma, de sua ousadia. Contudo, lorde Rothwyn jamais saberia
daquilo e, mais tarde, quando tudo estivesse acabado, ela teria algo de que se recordar: a
cabeça   dele   recostada   em   seu   peito,   o   movimento   que   ele   fazia,   mesmo   dormindo,   à
procura de sua proteção.
Lalitha não fechou os olhos a noite toda, e tinha o braço adormecido; mas o êxtase
que tomou conta dela compensou todo seu sofrimento do passado. Era alguma coisa que
ninguém, nem mesmo Sophie, poderia tirar dela e, pelo resto da vida, guardaria aquilo
como seu precioso tesouro.
O sol começava a surgir no céu quando Lalitha ouviu passos na floresta, vindo na
direção da cabana. Lorde Rothwyn dormia, e ela, muito gentilmente para não assustá­lo,
sussurrou:
— Ned já está de volta.
Lorde Rothwyn abriu os olhos e se deu conta de que Lalitha o segurava nos braços,
e que sua cabeça repousava nos seios dela. Por segundos não se moveu, mas, quando Ned
abriu a porta, ergueu um pouco o corpo.
Lalitha afastou­se, o braço dolorido, e procurou falar com naturalidade:
— Você trouxe uma carruagem, Ned?
— Sim, uma bastante confortável, milady.
— Ótimo.
— Ajude­me a levantar, Ned — ordenou lorde Rothwyn.
O cavalariço apressou­se em obedecer e auxiliou seu amo a subir na carruagem.
Percorreram os poucos quilômetros até Londres quase em silêncio. Lá chegando, Lalitha
ajudou lorde Rothwyn a ir para o quarto, e pediu a Ned que fosse chamar um cirurgião.
— Sua Senhoria gosta muito do Dr. Henry Clive, milady — informou o mordomo.
— É um dos especialistas a serviço de Sua Alteza Real.
— Então, Ned, peça a ele que venha aqui o mais rápido possível — pediu ela. — E,
qual é o médico clínico de Sua Senhoria? — indagou ao mordomo.
— Esse é sir William Knighton — respondeu  ele. — Outro médico  que atende à
família real.
Ambos foram chamados e, só depois de ter ouvido a opinião dos médicos, Lalitha
foi para a cama. Dormiu até bem tarde no dia seguinte. Quando acordou, viu que Nattie
entrava em seu quarto, trazendo consigo Royal.
Lalitha regozijou­se ao vê­los, e Nattie começou logo a dar ordens, e a providenciar
o necessário para o bom andamento da casa.
Apesar de seus protestos, Nattie obrigou Lalitha a permanecer na cama por três
dias e, depois disso, só lhe permitiu que fizesse curtos passeios pelo jardim da mansão.
Dias mais tarde, Lalitha ocupou­se da leitura e da decifração das linhas escritas por lorde
Hadley.
— Estou   bem,   estou   muito   bem,   Nattie   —   insistia   ela,   quando   a   governanta
ordenava que tivesse moderação em suas atividades.
— A minha opinião diverge da sua, milady — Nattie respondia invariavelmente.
Mas, embora relutasse em admitir, Lalitha sentia­se fraca e in­ dolente.
"Foi um choque ver lorde Rothwyn baleado", dizia a si mesma. "Mas foi um choque
ainda maior ter sido posta fora da casa por Sophie, e ver­me lançada na obscuridade e no
abandono."
Estava de volta a Londres, em Rothwyn House. Porém, seu prazer não era completo
por não poder estar junto de lorde Rothwyn.
Esperava que ele mandasse chamá­la, mas os dias se sucediam e, embora Nattie a
informasse de que ele melhorava progressivamente, não a convidava para que fosse visitá­
lo.
Enfim, ela pediu a Nattie:
— Posso ver Sua Senhoria?
— Os médicos proibiram visitas nos dois primeiros dias, e agora, apesar de ele ter
permissão de recebê­las, não mandou chamar a senhora.
— Adoraria vê­lo, Nattie. Por que não me manda chamar?
Nattie sorriu e explicou:
— Todos os homens, milady, e talvez master Inigo mais que qualquer outro, tem
vergonha de serem vistos doentes, de cama. Master Inigo sempre foi assim, desde menino.
Não admitia sentir dor, não admitia fraquezas. Certo dia, quando ainda criança e estando
muito doente, surpreendi­o no quarto repetindo para si mesmo: "Estou bem! Estou bem!"
Lalitha lembrou­se de como ele fora corajoso ao ser ferido, apesar de sentir muita
dor.
De certa maneira era animador saber que ele não queria recebê­la por questão de
princípio, de orgulho, e não por não sentir necessidade de sua presença. Mesmo assim,
ansiava por vê­lo.
Uma bela manhã Lalitha acordou com a camareira abrindo as cortinas do quarto.
Continuou imóvel por alguns minutos, observando os raios luminosos do sol refletindo no
teto e aquecendo todo o quarto.
A camareira vinha acompanhada de Nattie, que trazia Royal pela coleira, pronto
para um passeio pelo jardim.
Fazia já mais de uma semana que eles haviam voltado a Londres. Não conseguindo
se conter, Lalitha sentou­se na cama e perguntou a Nattie:
— Como está Sua Senhoria esta manhã?
— Ainda não o vi, mas, a se julgar pela quantidade de comida que foi servida a ele
no quarto, imagino que esteja em boa forma.
— Você me disse ontem que a ferida estava quase cicatrizada.
— O médico parece muito satisfeito com a recuperação de Sua Senhoria — replicou
Nattie. — Disse que nunca viu ninguém se restabelecer tão depressa de um ferimento
daquele tipo.
— Que bom! — exclamou Lalitha. E, após uma pausa, prosseguiu: — O dia está
lindo, vou me levantar e dar uma volta com Royal.
— Mas cuidado com os canteiros de flores — preveniu­a Nattie. — Os jardineiros se
queixaram do estrago que Royal fez no jardim ontem.
— Sei disso, Nattie. Entrou na cabeça dele que havia um osso escondido entre os
gerânios!
Por achar que lorde Rothwyn pudesse se divertir com o procedimento de Royal,
Lalitha fez para ele um esboço de um cachorrinho cavoucando um canteiro de flores, e
jogando a terra por todo o lindo e verdejante gramado. Ela pôs o desenho num envelope e
pediu a Nattie que o entregasse a Sua Senhoria.
Quando soube que o desenho o fizera rir, fez mais um, de uma porta fechada e,
atrás   dela,   um   cachorrinho   pacientemente   esperando   que   alguém   o   levasse   para   um
passeio.
Lalitha nunca aprendera desenho, mas costumava esboçar caricaturas para seu pai,
que o divertiam muito.
Dava­lhe muita satisfação enviar aqueles desenhos para lorde Rothwyn, pois era
um jeito de se comunicar com ele.
Lalitha até ousava esperar que ele lhe mandasse um bilhete como resposta, mas isso
não aconteceu. Talvez, pensou com certo medo, ele já lamentasse haver impedido que ela
sumisse em Norfolk. Talvez achasse que errara em segui­la, e não se interessasse mais por
ela.   Logo   em   seguida,   contudo,   lembrou­se   de   que   lorde   Rothwyn   dissera   jamais   ter
deixado um trabalho inacabado.
Ela não estava acabada ainda, mas... E quando estivesse?
Algum dia isso iria acontecer e ela, com certeza, teria de se separar do homem que
amava. Então, uma nuvem escura pareceu toldar o céu que até aquele instante estivera
lindo!
Lalitha levou Royal ao jardim e ficou brincando com ele o tempo todo, o que fez
com que o cachorrinho se comportasse muito bem.
Mais tarde almoçou sozinha e, quando subiu para repousar, Nattie a esperava no
quarto.
— Vai   tentar   dormir,   não,   milady?   Não   se   canse   demais   lendo   seus   livros   —
recomendou a governanta ao ver o que Lalitha tinha nas mãos.
— Vou ler só um pouquinho.
— Tudo bem, então. Mas descanse, pois precisa estar bonita esta noite.
— Por que está noite?
— Sua Senhoria quer que a senhora jante com ele.
— Oh, Nattie! Sua Senhoria... Já está completamente bom?
— Acho que sim, pois vamos todos voltar para Roth Park amanhã. Sua Senhoria
prefere ficar no campo.
— Que bom! Estou muito contente.
Lalitha tinha vontade de dançar, de voar até a lua. Ele estava melhor, e queria vê­la!
Iriam jantar juntos!
Por   desejar   ter   o   melhor   aspecto   possível,   fez   esforço   para   dormir.   Depois,
permaneceu acordada contando os minutos para a hora de se aprontar para o jantar.
Nattie lhe trouxe uma roupa nova, dizendo:
— Sua Senhoria deseja que a senhora use esta toalete hoje.
Era um vestido bem diferente dos demais. Consistia em várias saias de gaze nos
tons verde e azul, sobre um forro prateado. O vestido revelava as suaves curvas de seu
corpo bem­feito, e fazia com que ela parecesse mais etérea que terrena. Nattie foi buscar
um estojo de couro e o pôs sobre a penteadeira.
— Sua Senhoria pede que a senhora use estas jóias.
Lalitha abriu o estojo e lá encontrou um colar de pequenos brilhantes em forma de
estrelas, tão delicado que parecia ter sido feito por mãos de fada. Havia também algumas
pedras soltas, para ela colocar nos cabelos, e uma pulseira de brilhantes igual ao colar.
Os cabelos de Lalitha não tinham mais aquela aparência desagradável, mas caíam
sobre os ombros em suaves ondas, e possuíam um brilho diferente, denotando saúde. Isso
devia­se, Lalitha achava, à loção à base de pêssegos que Nattie aplicava neles todas as
noites, a conselho da mulher das ervas.
Os olhos dela brilhavam como os diamantes dos cabelos. Seria difícil reconhecer
naquela   criatura   a   menina   miserável,   magra,   assustada,   com   quem   lorde   Rothwyn   se
casara por vingança.
— Está linda, milady — exclamou Nattie.
Apesar do elogio, olhando­se no espelho, Lalitha enxergou, em vez de sua imagem,
o rosto lindo de Sophie, com aqueles olhos azuis, cabelos dourados, e pele acetinada.
Mas   era   inútil   se   preocupar   com   isso.   Ela   não   esperava   que   lorde   Rothwyn   a
admirasse como admirava Sophie, porém, quem sabe, ele seria bondoso com ela como fora
antes. E Lalitha desejava vê­lo, com tanta intensidade, que foi com grande esforço que não
desceu as escadas correndo até o salão.
Pensara nele o tempo todo durante a semana; não obstante, ao vê­lo, constatou que
quase havia se esquecido de como era lindo e elegante.
Lorde Rothwyn a aguardava no salão, e estava irresistível com seu traje de noite:
casaca muito bem talhada, plastrão branco e colarinho alto. Não tinha a pele bronzeada
como de hábito, mas, apesar disso, parecia ainda mais sedutor.
Enquanto Lalitha pensava no que dizer, ele exclamou:
— Finalmente   sei   de   que   cor   são   seus   cabelos!   Nunca   pude   definir   a   exata
tonalidade deles, mas agora sei que são da cor do luar refletido nas águas do lago.
Lalitha   não   sabia   o   que   responder,   tal   sua   surpresa.   E   ele,   beijando­lhe   a   mão,
continuou:
— Perdoe­me! Devia ter lhe dito antes como estou feliz em vê­la.
— O senhor está bem agora? — indagou ela.
— Os médicos me disseram que fui um paciente exemplar!
Lalitha teve vontade de indagar por que não permitira que ela o visitasse, mas antes
que tivesse tempo de formular essa pergunta, lorde Rothwyn prosseguiu:
— O   descanso   fez   bem   a   você,   Lalitha,   e   é   o   que   eu   queria.   Tem   aspecto   bem
diferente agora, e acho que engordou um pouco.
— Muito! — Ela deu uma risada. — Quase dois quilos!
— Parabéns!
Lalitha   achava   difícil   encará­lo,   mas   sentia   ondas   de   prazer   percorrendo­lhe   o
corpo. Não podia falar, e quase nem respirar, e só tinha em mente a cabeça dele pousada
em seu peito.
— Temos   muito   a   conversar   —   declarou   lorde   Rothwyn;   mas,   antes   que   ele   o
fizesse, o mordomo anunciou que o jantar estava servido.
Lalitha não tinha idéia do que comia ou bebia, mas sua alegria era imensa por estar
perto dele e por ouvir­lhe a voz.
A mesa, decorada com orquídeas, foi servida por lacaios bem treinados, todos eles
de libré.
Lalitha acreditava estar sonhando. Era possível ser ela a mesma moça que comia na
cozinha porque a madrasta não lhe permitia que fizesse as refeições na sala? A mesma
moça que preparava suas próprias refeições, e isso quando havia tempo?
Depois do jantar, já no salão, lorde Rothwyn declarou:
— Sabia que essas jóias ficariam bem em você. Pertenceram a minha mãe, e eram
suas preferidas.
— São lindas! — exclamou Lalitha. — E o senhor foi muito amável em deixar que eu
as usasse.
— São suas agora, Lalitha! E tenho outro presente para lhe dar.
— Mas o senhor... Não precisava...
— Quero   recompensá­la   pelo   cuidado   que   teve   comigo,   pois,   se   não   tivesse   me
protegido  do  assaltante,  levantando  os  braços,  meu   ferimento   teria   sido  muito  pior.  E
vendo a expressão de pavor de Lalitha ao se referir ao assalto, ele acrescentou: — Não há
razão para falarmos sobre esse assunto. Temos outras coisas a discutir.
— Não sei como lhe agradecer... Mas também tenho um presente para o senhor.
— Para mim? — indagou lorde Rothwyn, surpreendido.
Lalitha foi à escrivaninha e tirou da gaveta um pedaço de papel dobrado.
— Decifrei   as   linhas   escritas   por   lorde   Hadley   disse   ela.   —   Tive   de   adivinhar
algumas palavras, aliás, não muito importantes.
— Quer ler para mim?
Ela abriu o papel e, com sua voz suave, começou a ler:

"O apelo do coração é o apelo do amor,
E eu juro por tudo que é sagrado
Que meu amor por você será eterno,
Se seu coração chamar pelo meu".

Ao terminar, ela fitou lorde Rothwyn esperando pela aprovação.
— Você   foi   muito   hábil   ao   reconstituir   essas   linhas.   Acho   que   lorde   Hadley
expressou­se com muita eloqüência.
— Imagino como a mulher em questão deve ter se sentido envaidecida ao receber
essa mensagem.
— Você acha que o coração dela chamou pelo dele?
A pergunta foi feita com voz grave, e pareceu a Lalitha um tanto íntima, pessoal.
Ela não sabia por que, mas teve dificuldade em responder, e ele prosseguiu:
— Agora, deixe­me lhe dar um presente  que   é de certo  modo uma resposta aos
esboços que você me enviou.
— Achei que poderiam diverti­lo.
— E me divertiram muito — replicou lorde Rothwyn. — E, embora o que tenho para
você não a faça rir, penso que lhe dará prazer.
Ele pegou uma pasta que estava sobre a mesa e a pôs nas mãos de Lalitha. Ela
abriu­a e encontrou lá dentro desenhos feitos a crayon. Examinou­os e arregalou os olhos,
estupefata.
— Este   é   de   Michelangelo   —   explicou   lorde   Rothwyn,   tomando   um   deles.   —
Chama­se The Running Youth.
— É lindo, incrivelmente lindo! — exclamou Lalitha.
O   segundo   era   uma   paisagem   repleta   de   detalhes,   um   panorama   que   Lalitha
poderia contemplar por horas a fio.
— Foi desenhado por Pieter Brueghel — comentou lorde Rothwyn. — E o último é o
que agradará mais a você, penso.
Representava a cabeça de um anjo, e a expressão mística, espiritual da face dele fez
Lalitha concluir que, enfim, tinha diante dos olhos a verdadeira beleza.
— É de Leonardo da Vinci — continuou lorde Rothwyn. — Foi um dos primeiros
ensaios para a tela The Virgin on the Rocks.
— Tudo isso é para mim? indagou Lalitha, mal podendo acreditar.
— Sim, mas antes quero que me responda a uma pergunta. Olhe para a tela que está
sobre a lareira.
Lalitha fez o que ele mandou e viu um quadro de Rubens, valiosíssimo. As cores
vivas e brilhantes eram magníficas.
— Agora, diga­me — acrescentou ele —, qual dos dois trabalhos significa mais para
você, o quadro de Rubens, aclamado como sua obra­prima, ou os croquis que tem nas
mãos?
Lalitha pensou por segundos e respondeu:
— Cada um deles é lindo em sua categoria, mas... — ela fez uma pausa.
— Continue — insistiu lorde Rothwyn.
— Talvez seja por motivos pessoais, mas os esboços falam mais a meu coração.
Lorde Rothwyn sorriu e observou:
— William Blake, um amigo meu, artista e poeta, disse mais ou menos a mesma
coisa: "Esses desenhos comunicam qualquer coisa à alma".
— É   o   que   acontece...   Comigo.   Tenho   a   impressão   de   que   não   estou   vendo   os
esboços com meus olhos... Mas com minha alma. — E depois, achando que talvez estivesse
sendo   emotiva   demais,   declarou:   —   O   senhor   vai   rir   de   mim...   Por   eu   ser   muito
sentimental!
— Não vou rir, não, e quero lhe dizer algo.
Ele tomou­lhe a mão e cobriu­a com a sua. Lalitha não estava certa se fora o toque
dos dedos dele, ou o tom de voz o que a imobilizara por completo: mas ela sentia que
alguma coisa estranha e maravilhosa estava para acontecer.  Levantou os olhos e ficou
quase enfeitiçada: lorde Rothwyn a fitava de maneira diferente, como homem algum a
fitara antes.
— Lalitha! — exclamou ele.
A porta abriu­se nesse instante e o mordomo anunciou:
— Sir William Knighton, milorde.
Então, a magia se rompeu, e lorde Rothwyn levantou­se, exclamando:
— Sir William! Não o esperava hoje!
— É verdade, milorde, mas é que vou viajar. Perdoe minha intromissão a estas horas
da   noite,   porém   o   príncipe   regente   pediu­   me   que   fosse   a   Brighton,   e   preciso   partir
amanhã bem cedo.
Sir William Knighton era um homem de meia­idade, consciencioso e discreto que,
além de ser o médico de Sua Alteza Real, se tornara a pessoa de confiança do regente.
— Entendo a razão de sua visita, sir William — declarou lorde Rothwyn.
— Em   vez   de   lhe   causar   inconveniência   vindo   aqui   antes   do  breakfast,  preferi
examinar   seu   ombro   esta   noite.   Se   tudo   estiver   bem,   Vossa   Senhoria   poderá   voltar
sossegado park o campo.
— É muita amabilidade sua — agradeceu lorde Rothwyn, e depois acrescentou: —
Acho que ainda não conhece minha esposa.
— Sua   esposa?   —   exclamou   sir   William   espantado,   enquanto   cumprimentava
Lalitha.
— Sim.   Casamo­nos   secretamente,   e   ficaria   muito   grato   ao   senhor   se   não
mencionasse esse fato a Sua Alteza até que ele receba minha carta.
— Vou honrar a confiança que o senhor deposita em mim. Como deve saber, sou a
descrição em pessoa.
Lorde Rothwyn sorriu e disse:
— Nós   dois   não   ignoramos   como   o   regente   fica   furioso   quando   não   sabe   de
qualquer coisa referente aos amigos íntimos, antes de outras pessoas.
— Isso é verdade — concordou sir William.
— Não   queremos   retê­lo   aqui   por   muito   tempo,   pois   sabemos   como   é   ocupado.
Vamos ao meu quarto?
— Claro, milorde.
Lorde Rothwyn hesitou um pouco antes de dizer:
— Nesse caso, Lalitha, é melhor que eu lhe diga boa­noite agora. Não quero que
fique   acordada   até   tarde,   considerando­se   que   teremos   um   dia   cansativo   amanhã.
Partiremos ao meio­dia. Está bem para você?
— Esperarei pronta — respondeu Lalitha.
Lorde Rothwyn beijou­lhe a mão, demorando mais que habitualmente os lábios em
sua pele suave. Depois, ele e o médico subiram para o quarto.
Lalitha ficou desapontada! Sentia­se como uma criança a quem fora negado um
divertimento   na  última  hora.  Enfim,  haveria   um amanhã  em  Roth  Park.  Eles  estariam
juntos,   fariam   passeios   juntos,   pensou,   e   retomariam   a   conversa   do   ponto   onde   fora
interrompida.
Ela abriu a pasta com as gravuras. Como lorde Rothwyn fora amável em lhe dar
coisas tão lindas! Ela calculava que os desenhos haviam custado uma fortuna. Porém, isso
era o de menos; o importante foi que ele encontrara algo que coincidia exatamente com
seu gosto. Lalitha tinha a sensação de que lorde Rothwyn tentara lhe dizer alguma coisa
por meio dos desenhos.
Ela olhou outra vez para o anjo e experimentou um tipo de frenesi, o mesmo que
sentira quando ele lhe beijara a mão.
Como   pôde   lorde   Rothwyn   adivinhar   que   os   croquis   lhe   agradariam   mais   que
qualquer tela de valor? E havia tanto que ela queria lhe dizer, tanto que queria ouvir...
Quase automaticamente arrumou as almofadas do sofá, como fizera muitas vezes
na casa da madrasta. Em seguida, pegou a pasta e notou que o papel do poema de lorde
Hadley não estava mais lá. Com certeza lorde Rothwyn o levara consigo. Estaria satisfeito
com seu esforço? Como gostaria de ter podido conversar com ele sobre as dificuldades que
tivera para decifrá­lo!
Bem devagar, Lalitha encaminhou­se para o quarto. Aquela noite fora maravilhosa,
e teria sido ainda melhor se sir William não os tivesse interrompido. Que quereria lorde
Rothwyn dizer a ela? Não se atreveria a adivinhar!
No quarto não encontrou Nattie nem miss Robinson, esta última a velha empregada
que geralmente a ajudava a se despir; lá estava uma jovem que ela mal conhecia, apesar de
saber­lhe o nome.
— Boa noite, Elsie — disse Lalitha. — Onde está Nattie?
— A governanta não se sente bem, milady, e miss Robinson igualmente.
— O que há com elas? — indagou Lalitha.
— Acho que foi alguma coisa que comeram no jantar, milady. Ambas estão doentes,
por isso vim para servir Vossa Senhoria.
— Espero que não seja nada grave. Acha que eu deveria ir vê­las?
— Penso que elas preferem ficar sozinhas, milady. Ninguém gosta de receber visitas
quando está doente.
— Isso é verdade — concordou Lalitha. — Mas o médico está aqui, seria interessante
que fosse ver o que há.
— Oh,  não,  milady.  Elas  não  estão  mal  assim.  Penso  que  tenha  sido  o   peixe  do
jantar, e tanto a governanta como miss Robinson têm estomago delicado. Eu estou bem e
comi a mesma, coisa.
— Então, o caso não pode ser grave. — Lalitha sorriu, foi para a penteadeira e tirou
o colar do pescoço.
Seria possível que lorde Rothwyn o dera a ela? Talvez o presente fora só pelo tempo
em que ela estivesse em Roth Park.
Lalitha não podia pensar claramente, nem se lembrar bem do que havia acontecido.
A   proximidade   de  lorde  Rothwyn  e   o  tom  grave  da   voz  dele  a  afetara  o   tempo   todo
durante o jantar e na conversa do salão.
Nesse instante, ela ouviu uma pancada ria porta.
— Espero que seja alguém trazendo Royal — disse ela a Elsie.
Um lacaio costumava passear com o cãozinho à noite. Depois,
Royal ficava com ela uns quinze minutos antes de ser levado para dormir.
Elsie foi atender à porta, falou com o empregado, e voltou para  < o lado de Lalitha,
informando­a:
— Sinto muito, senhora, mas Royal sofreu um acidente.
— Um acidente? Onde? O que houve?
— Não foi nada sério, milady. Vossa Senhoria deseja vê­lo?
— Sim, sim, claro. Onde está Royal?
— Venha comigo, milady — pediu Elsie.
Lalitha seguiu­a, desceu as escadas e foi por um corredor que provavelmente ia dar
no jardim. Estava muito aflita, pois amava Royal e sabia que o cachorrinho correspondia a
seu afeto. Ela acostumara­se a vê­lo sempre a seu lado, dormindo muitas vezes na cama
com ela, embora Nattie protestasse contra aquilo. A qualquer lugar que fosse, lá estava ele,
como uma sombra, grudado a seus calcanhares.
"Como poderia alguma coisa ter acontecido a ele?", ponderava Lalitha.
Os lacaios sempre o mantinham preso  à coleira quando o levavam passear, pela
manhã e à noite. Apenas na companhia dela Royal tinha permissão de andar solto, pois a
obedecia prontamente.
Elsie a conduzia por uma ala da casa onde Lalitha nunca estive­ ra antes. Todos os
criados já tinham ido dormir, excetuando­se o lacaio de plantão, no hall.
Enfim, as duas chegaram a um pequeno portão no jardim, que Elsie abriu. Havia
uma carruagem na rua.
"Royal deve ter sido atropelado", supôs logo Lalitha, com terror.
— Royal está dentro do carro, milady — declarou Elsie.
Lalitha olhou para o interior do veículo, escuro como breu. De súbito, um pano foi
jogado em sua cabeça. Ela tentou reagir, mas foi forçada a entrar no carro e jogada no
assento   traseiro.   Assim   que   a   porta   se   fechou,   os   cavalos   se   puseram   em   movimento.
Lalitha não podia entender o que se passava. Lutava em vão para se livrar do pano que a
envolvia, mas este era resistente e a cobria da cabeça à cintura; mãos grosseiras amarraram
uma corda em volta de seu corpo, imobilizando­lhe os braços.
— Socorro! — ela gritava. — Socorro!
Mas o som de sua voz saía abafado. Alguém ameaçou­a:
— Continue com esse barulho que eu dou­lhe um soco que fará se calar.
Era uma pessoa rude que falava; com certeza faria o que prometera. O medo de ser
maltratada, medo esse que a afligira no passado, voltou com toda a intensidade. Era­lhe
impossível emitir um som, impossível até se mover; podia apenas permanecer  deitada
num canto da carruagem, completamente indefesa.
O homem amarrara também seus tornozelos juntos, e a corda cortava­lhe a pele,
causando­lhe grande sofrimento.
— Assim está melhor — disse ele. — Se falar, espancarei você até ficar inconsciente.
Entendeu?
Lalitha estava apavorada demais para responder. O homem deu uma gargalhada
de satisfação, sentou­se no banco ao lado dela, e começou a fumar.
Que iria acontecer? Para onde a levavam? Que tinha aquilo tudo a ver com Royal?
Não, não, essa encenação nada tinha a ver com Royal, ele não fora atropelado, fora
só   usado   como   isca   para   atraí­la,   para   levá­la   do   quarto   à   rua,   onde   a   carruagem   a
aguardava.
Mas por quê? Que significava aquilo?
De súbito, de modo traiçoeiro, vindo à sua mente como o deslizar de uma serpente
revoltante, surgiu a possível resposta. Ela estava sendo raptada por um grupo de pessoas
conhecidas como "traficantes de escravas brancas".
Não, não, não podia ser verdade. Com certeza imaginava coisas. Ela não estava
metida em nada tão horrível, tão degradante, tão assustador! Mas a idéia persistia.
Para onde iria? Quem a desejava? Não são ladrões seus raptores, pois não possuía
nada de valor consigo. Além disso, quem sabia que ela usara jóias no jantar?
Lalitha pensou logo em Elsie. Era uma criada simpática, mas não exatamente o tipo
de menina simples, vinda de cidade pequena, como geralmente o eram as empregadas que
trabalhavam em mansões como a de lorde Rothwyn. Sua mãe dissera muitas vezes que os
grandes   proprietários   de   terras   empregavam   para   seu   serviço   gerações   e   gerações   de
pessoas da mesma família. Os homens começavam como auxiliares na despensa, depois
passavam a lacaio, e finalmente a mordomo. As mulheres iam da copa para a cozinha,
como meras  ajudantes,  em seguida trabalhavam como  camareiras,  como  assistentes  de
cozinheira, e enfim como cozinheiras.
Em que categoria se encontraria Elsie? Teria mentido ao dizer que Nattie e miss
Robinson estavam doentes? E a mentira fora inventada por ela ou teria sido induzida a
isso por alguém?
Havia muitas perguntas para as quais Lalitha não possuía resposta, mas cada uma
delas   lhe   causava   mais   pânico,   mais   pavor   acerca   do   que   a   aguardava.   Se   fosse   algo
referente ao mercado de escravas brancas, quem poderia estar atrás daquilo tudo? Havia
apenas uma pessoa que a odiava a ponto de desejar vê­la morta, uma pessoa que queria se
vingar porque Sophie não era a esposa de lorde Rothwyn.
Uma   mulher,   sim,   uma   mulher   que   a   apavorava   mais   que   qualquer   coisa   no
mundo: sua madrasta.
CAPÍTULO VII

Lorde Rothwyn mexeu­se na cama, tendo a impressão de que alguém o chamava.
Logo depois, ouviu o ganido de um cachorro.
De   onde   poderia   estar   vindo   aquele   ruído?   Bem   depressa   concluiu   se   tratar   de
Royal. Ele dormia numa cesta, no quarto de Lalitha, que se comunicava com o seu por
uma porta que permanecia sempre fechada.
Lorde Rothwyn deduziu, então, que algo de errado se passava. Royal não estaria
ganindo daquele jeito se Lalitha estivesse no quarto.
Ele levantou­se, acendeu uma vela, e pôs o robe. Bateu gentilmente na porta de
comunicação. A única resposta que obteve foi um latido de Royal e, após esperar mais um
pouco, abriu a porta.
O  quarto  estava em  completa escuridão,  ele  foi buscar  a vela e  Royal seguiu­o,
pulando. Voltou ao quarto de Lalitha. Uma suave fragrância enchia o ar, perfume que ele
associava sempre a ela. Porém, quando ergueu a vela para iluminar a cama, notou que
estava vazia. Não podia imaginar o que acontecera! Onde teria ido Lalitha? Por que razão
não se encontrava lá? Era inconcebível, àquela hora da noite, que ainda estivesse no salão
onde a deixara ao subir com sir William Knighton. Cheio de apreensão, lorde Rothwyn
voltou a seu quarto e tocou a sineta chamando o camareiro.
O andar térreo estava completamente às escuras, e só se ouvia o tique taque do
relógio do hall.
Que teria acontecido? Como pudera Lalitha sumir daquela maneira?
O   valete   entrou   no   quarto,   ainda   abotoando   o   paletó,   o   cabelo   despenteado,   a
expressão preocupada.
— Que houve, milorde? — indagou. — Vossa Senhoria está doente?
— Não, não há nada comigo, mas Sua Senhoria não se encontra no quarto.
— Não, milorde?
— Ela tem de estar em algum lugar da casa — continuou lorde Rothwyn, querendo
convencer a si mesmo. — Vá ao quarto de Nattie e veja se Sua Senhoria esta lá. Se não
estiver, acorde o mordomo e diga­lhe que venha aqui imediatamente.
— Pois não, milorde.
O valete saiu correndo do quarto e lorde Rothwyn começou a se vestir. Olhou para
o relógio e constatou que eram duas horas da madrugada.
Teria Lalitha fugido de novo? Mas ela parecia tão contente por estar de volta! Ele
vira lágrimas nos olhos dela quando saíra da diligência para entrar no coche. Também,
pela expressão dos olhos dela durante o jantar, percebera que estava mais feliz que nunca.
"Se abandonou esta casa, não foi por sua própria decisão", refletiu lorde Rothwyn.
"Todavia, quem a teria persuadido a me deixar mais uma vez?"
Já   estava   quase   pronto   quando   o   valete   voltou   ao   quarto   na   companhia   do
mordomo.
Lorde Rothwyn dirigiu­se a este último:
— Robson, corra a casa toda de cima a baixo e descubra se alguém viu Sua Senhoria
sair.
— Pois não, milorde.
— Antes me diga; alguém esteve aqui depois que sir William Knighton saiu?
— Ninguém, milorde, enquanto eu estive no hall, mas vou saber ao certo do lacaio
de plantão.
— Faça   isso,   e   depressa   —   observou   lorde   Rothwyn.   —   Ao   mesmo   tempo
providencie uma carruagem. Posso precisar de uma.
O mordomo retirou­se e o valete ajudou seu amo a vestir o paletó.
Lorde Rothwyn não falou mais nada. Conjecturava sobre aonde teria ido Lalitha,
sobre onde devia procurá­la. Mesmo que ela tencionasse, por qualquer estranho motivo,
voltar a Norfolk, não seria provável fazer isso no meio da noite. Diligências não partiam
de Londres antes das seis ou sete da manhã e, o mais cedo que ela sairia de casa seria uma
hora antes apenas.
— Você sabe se Nattie notou qualquer coisa diferente quando ajudou Sua Senhoria a
se deitar ontem à noite? — ele finalmente indagou ao valete.
— A governanta não viu a Sua Senhoria na noite passada, milorde. Estava doente,
como também três outras empregadas.
— Então, quem serviu Sua Senhoria?
— Acho que foi Elsie, milorde.
— Vá buscar Elsie já.
O valete apressou­se em obedecer.
Lorde   Rothwyn   colocou   algumas   libras   em   sua   carteira,   onde   já   havia   bastante
dinheiro. Julgou que talvez necessitasse disso mais tarde. Tinha idéia de que precisava
estar preparado.
Royal, perto  da lareira, observava tudo, e lorde Rothwyn se perguntou o que o
cachorro sabia, o que poderia contar se falasse.
No caso de haver partido, teria Lalitha levado alguma roupa? Ele foi ao quarto dela
e  abriu   as  portas  do  guarda­roupa.  Estava cheio   de  vestidos,  todos  escolhidos  por  ele
mesmo. Notou duas coisas, porém: o vestido que ela usara no jantar não se achava lá, e a
capa de viagem, a única que Lalitha possuía, estava pendurada num canto do armário.
Sobre a penteadeira, ele viu um estojo de jóias com o colar, a pulseira e os brilhantes
que ela pusera nos cabelos.
Enquanto   lorde   Rothwyn   examinava   tudo,   o   mordomo   entrou   no   quarto   com
quatro criados.
— Descobriu alguma coisa? — lorde Rothwyn perguntou.
— Sim, milorde. Descobri algo muito estranho.
— Que foi?
— Henry levou Royal para passear no jardim, como de hábito, milorde...
— Não fiz nada de mal, juro que não fiz nada de mal, milorde — interrompeu­o
Henry, soluçando.
— Fique quieto! — gritou o mordomo. — Deixe­me falar com Sua Senhoria.
— Continue, Robson — ordenou lorde Rothwyn.
— Henry não conduziu o cachorro de volta para milady, como de uso — prosseguiu
o mordomo. — Bem tarde, à noite, George ouviu Royal ganindo e arranhando a porta da
cozinha.
— Tem certeza de que era Royal? — inquiriu lorde Rothwyn, dirigindo­se a George.
— Absoluta, milorde, embora não pudesse vê­lo.
— E você não abriu a porta?
— Não, milorde, tentei, mas não consegui, pois estava trancada.
— Então, como sabe que era Royal?
— Eu passeei com o cachorro muitas vezes, milorde. Quando assobio ele fica quieto.
Foi o que fiz para ter certeza.
— E que providência você tomou até agora, Robson? — indagou lorde Rothwyn,
falando com o mordomo.
— Conversei bastante com Henry, milorde — replicou o mordomo, apontando para
Henry que parecia apavorado.
— Que disse ele?
— Para eu ficar com a boca calada! — Após uma pausa, o mordomo acrescentou: —
Também descobri que a governanta, e duas criadas ficaram doentes logo depois do jantar.
Por esse motivo Elsie cuidou de milady ontem.
Lorde   Rothwyn   lançou   um   olhar   a   Elsie.   Ela   usava   um   xale   de   flanela   sobre   a
camisola, e tinha os cabelos em desordem. Muito pálida, parecia amedrontada.
— Que   aconteceu   depois   que   Sua   Senhoria   se   deitou,   Elsie?   —   inquiriu   lorde
Rothwyn.
— Nada, milorde.
— Não   é   verdade,   milorde   —   protestou   Henry.   —   Mas   não   queríamos   que
acontecesse nada, juro, milorde! A culpa foi da mulher que vinha aqui quase todos os dias,
querendo   saber   coisas   sobre   milady.   Certa   ocasião   ela   foi   à   porta   lateral   e   me   fez
perguntas, dando­me depois uma libra. Não vi nada de mal nisso, milorde, nada de mal.
— E o que houve em seguida?
— Ela apareceu três vezes na semana passada.
— E cada vez lhe deu gorjeta?
— Sim, milorde, e pediu para falar com uma das empregadas. Pensei logo em Elsie,
que aceitou a idéia.
— E onde se encontraram, a mulher, e Elsie?
— Numa casa em Hill Street, milorde.
Lorde Rothwyn começava a entender tudo. E prosseguiu com sua investigação.
— Por que você pensou logo em Elsie? Ela raramente serve Sua Senhoria.
— Porque a governanta ou miss Robinson não iriam, milorde.
Lorde   Rothwyn   tornou   a   olhar   para   Elsie.   Ela   estava   visivelmente   nervosa,
torcendo os dedos, e explicou:
— Como Henry, não quis fazer mal a milady.
— Que houve então? — interrompeu lorde Rothwyn. — Quero saber palavra por
palavra da conversa que você teve com aquela mulher.
Elsie deu um profundo suspiro.
— Era uma senhora simpática, milorde. Falou coisas tão agradáveis sobre milady!
Disse que conhecia desde criança.
— Que quis ela saber?
Elsie corou e não respondeu.
— Fiz­lhe uma pergunta — observou lorde  Rothwyn, já impaciente. — E espero
uma resposta.
— Ela me perguntou se Vossa Senhoria e Sua Senhoria dormiam no mesmo quarto.
— E o que você respondeu?
— Disse que não.
— Que falou a mulher?
— Dirigiu­se a um homem e declarou: "É como eu informei a você".
— Um homem? Que homem?
— Havia um homem na sala com ela.
— Como era esse homem?
— Parecia ser estrangeiro, milorde.
— Descreva­o.
— Um pouco gordo, milorde, e usava muitas jóias.
— Velho ou moço?
— Não muito moço, milorde.
— Que respondeu ele à mulher?
Silêncio   novamente.   Pareceu   desta   vez   que   Elsie   tentava   se   lembrar   o   que   fora
conversado. Em seguida, replicou:
— Não sei se entendi  bem,  milorde,  mas ela disse uma coisa que não fez muito
sentido para mim: "Isso torna a mercadoria mais valiosa".
— E depois? Quero a verdade, Elsie.
— A   mulher   me   prometeu   cinco   libras,   milorde,   se   eu   convencesse   milady   a   ir
conversar   por   um   segundo   apenas   com   aquele   homem   que   a   esperaria   na   porta   da
mansão, numa  carruagem.   Contudo,  jamais pensei   que  ele   a levaria  embora!   Juro   que
nunca sonhei.
— Todavia, não é você a camareira de Sua Senhoria.
— Sei disso, mas a mulher me deu um pó para pôr na comida das empregadas.
Garantiu que não ia fazer mal à governanta nem às outras criadas.
— E foi também idéia dessa mulher inventar que Royal sofrerá um acidente?
— Foi.
— E quanto Henry recebeu?
— Cinco libras — murmurou Henry.
— Eles falaram mais alguma coisa, a mulher c o homem, enquanto você estava lá?
Pense um pouco, Elsie, pode ser importante.
— No momento em que eu saía da sala, milorde, o homem falou qualquer coisa
sobre "porto".
Lorde   Rothwyn   deu   uma   exclamação   e   retirou­se   correndo   do   quarto.   Royal
seguiu­o sem que ninguém percebesse. Um lacaio entregou a ele o chapéu e a capa, e abriu
a porta da frente. A carruagem o aguardava.
— Para o porto, a toda velocidade — ordenou ele ao co­ cheiro.
Só quando o lacaio fechou a porta do carro foi que ele viu Royal sentado a seu lado.
Lalitha tinha a impressão de que estava sendo levada para muito longe. Era jogada
de um lado para o outro, com os solavancos da carruagem. A corda a machucava cada vez
mais, e ela quase não podia respirar. Procurava refletir, mas não conseguia, e teve um
medo horrível.
Para onde estaria ela sendo levada? Estava certa, agora, de que fora raptada. Seria
talvez transportada para outro país e vendida como escrava! Era inocente demais para
saber   o   que   aconteceria   depois   que   fosse   posta   à   venda,   mas   não   duvidava   ser   algo
degradante   e   horroroso.   E,   mais   ainda,   ninguém   a   acharia,   nunca   mais   veria   lorde
Rothwyn.
Pensava   no   pouco   que   tinha   a   recordar:   o   beijo   que   ele   lhe   dera   quando   a
confundira com Sophie, o peso da cabeça dele contra seu peito... e só. Seria isso suficiente
para mantê­la mentalmente sã, durante os dias de terror que a aguardavam?
Como poderia lorde Rothwyn encontrá­la num país estranho, num país que nem
ela sabia qual era?
Estaria lorde Rothwyn pensando que ela fugira? Não, não, impossível admitir essa
fuga após a felicidade do último jantar, o modo como conversaram, e a alegria que ela
demonstrara ao receber os desenhos.
Lalitha revivia tudo o que se passara naquela noite:
"Lalitha!", dissera ele num tom diferente de voz, que a fez vibrar de emoção.
"O senhor vai rir de mim por eu ser muito sentimental!", ela falara e ele replicara:
"Não estou rindo, e quero dizer­lhe algo".
Que   tencionava   ele   dizer?   Lembrava­se   do   brilho   no   olhar   de   lorde   Rothwyn
quando pronunciara aquelas palavras.
Quem sabe não era nada importante. A suposição de que lorde Rothwyn desejava
lhe   dizer   coisas   maravilhosas   provinha   do   fato   de   ela   estar   cega   de   amor.   Amava­o
profundamente, e estar perto dele era como ouvir uma música divina, vinda do coração.
Recordava­se de que ela lhe revelara que admirava uma pintura não com os olhos,
mas com a alma. Depois que lera o poema, ele lhe perguntara se achava que a mulher a
quem lorde Hadley dirigira aquelas linhas o amava de verdade!
Lorde   Rothwyn   era   tão   bondoso,   tão   simpático.   Agora,   nunca   mais   saberia   a
resposta a todas as perguntas que desejava lhe fazer. Estava sendo levada para longe, para
muito longe! Seu futuro seria mil vezes pior que tudo que sofrerá nas mãos da madrasta.
Quis gritar, mas sabia o que sucederia se o fizesse. Temia ser espancada.
"Escaparei eu desse destino maldito?", pensou. E pareceu­lhe ouvir uma voz que
lhe respondia, sarcasticamente: "Só depois da morte"!
Então Lalitha concluiu que, a ser verdade o que suspeitava, seria mesmo conduzida
a   um   país   estrangeiro,   e   humilhada.   Nesse   caso,   preferia   morrer.   Perguntava­se   se
suicidar­se   seria   difícil.   Não   possuía   pistola   nem   faca;   sendo   assim   como   morrer?
Encontraria um meio, sim, encontraria um meio, mas só depois de ter absoluta certeza de
que lorde Rothwyn não a resgataria. Imagine se ele, após procurá­la por toda parte e,
encontrasse morta?
Em seguida, zombando de si mesma, pensou que talvez lorde Rothwyn até sentisse
um alívio por ter se livrado de uma incumbência desagradável!
Lembrou­se de repente que não soubera o que ele havia dito a Sophie em Roth
Park. Sophie insistira que tudo o que lorde Rothwyn desejava era o amor dela e, uma vez
conseguido, não pensaria mais na mulher que desposara por vingança! Porém, ele deixara
Sophie para procurá­la! E a achara! Se ela tivesse chegado a Norfolk, teria sido muito mais
difícil encontrá­la. Nem ela mesma sabia onde sua velha governanta morava!
De   súbito,   Lalitha   teve   a   impressão   de   ver   uma   luz   no   fim   do   túnel,   havia
esperança! Sim, ela acreditava que lorde Rothwyn não a abandonaria, ele a encontraria,
com certeza. Mas como?
Tudo   fora   feito   com   tanta   habilidade!   Nattie   e   as   empregadas   doentes,   Elsie
servindo­a,   e   o   "acidente"   de   Royal.   Ela   saíra   correndo   do   quarto,   sem   que   ninguém
soubesse   para   onde   ia.   Lorde   Rothwyn,   provavelmente,   ainda   estava   dormindo,
acreditando que ela dormisse ali ao lado. Aí, pensou na porta de comunicação. Quantas
vezes olhara para aquela porta! Quando lorde Rothwyn estava doente, ela se via abrindo­a
e indo ao encontro dele, mesmo sem ser convidada. Ele teria ficado surpreendido com seu
atrevimento, talvez até zangado! Contudo, ela o veria, ouviria a voz dele. Ouvir­lhe a voz,
mesmo irritada, era melhor que nada.
"Que vai suceder de manhã, quando ele acordar e souber que eu não passei a noite
na mansão? Nattie, se estiver melhor, dará a notícia. Mas muito tempo se passará até que
alguém venha  à minha procura". Lalitha teve vontade de chorar,  agora outra vez sem
esperança.
A carruagem  parou. Ela ouviu o apito de  um navio e deduziu  que  estavam na
margem do rio.
Pela primeira vez o homem que viajava a seu lado falou.
— Fique quieta e não se mova! Se ouvir qualquer ruído, a espancarei!
Ele abriu a porta da carruagem e saiu. Mãos rudes a pegaram e a levaram para fora.
Eram dois os homens, isso ela pôde perceber. Eles a colocaram numa maca e um terceiro a
cobriu da cabeça aos pés com um pano grosso. Lalitha mal podia respirar. Os homens a
carregaram e ela percebeu que subiam por uma prancha de embarque.
— Para o porão — outro homem gritou com um forte sotaque estrangeiro.
Ela  acertara  em  seu  prognóstico.  Estava num  navio   e  iria atravessar   o  canal  da
Mancha. Começou então a rezar para que lorde Rothwyn a encontrasse.
"Salve­me! Salve­me! Salve­me porque, do contrário, prefiro morrer."
Os homens que a carregavam puseram a maca no convés e um deles pegou­a e a
colocou sobre o ombro. Sua cabeça ficou pendurada nas costas do homem que, com o
braço, lhe segurava as pernas. Ele desceu por uma escada que levava ao porão do navio. A
passagem era tão estreita que os ombros do homem roçavam as paredes laterais. No fim
da escada havia uma pequena porta que ele destrancou para logo em seguida jogar Lalitha
no chão da minúscula cabine, e com tanta brutalidade que lhe machucou as costas. Ela deu
um grito de dor. O homem desamarrou a corda que segurava o pano. Por segundos, ela
não enxergava nada, e imaginou estar cega. Sem dizer uma palavra, o homem atou­lhe as
mãos e, retirando um lenço de seu próprio bolso, o pôs na boca de Lalitha, amordaçando­a
firmemente. E disse:
— Isso   é   paca   você   aprender   a   ficar   quieta.   Eu   a   preveni   antes   sobre   o   que
aconteceria se emitisse um som, qualquer que fosse. E a mesma coisa é válida para todas
vocês.
Lalitha percebeu que havia uma minúscula escotilha na cabine, e que a razão da
dificuldade em ver residia no fato de estar escuro lá fora.
O homem que a amordaçara retirou­se e bateu  a porta com força, dando várias
voltas à chave. Lalitha tentava adivinhar a quem ele se referira ao dizer "todas vocês".
Pouco a pouco ela se acostumou  ã escuridão e viu, no chão do cubículo de teto baixo,
desprovido de móveis, outras mulheres deitadas, amordaçadas também, e com os braços
amarrados nas costas, da mesma maneira que ela.
Amanhecia,   e   os   primeiros   raios   de   sol,   penetrando   pela   vigia,   começaram   a
dispersar as trevas. Lalitha sentou­se com esforço, apoiando­se contra uma parede. Agora
podia   distinguir   bem   tudo.   Havia   oito   mulheres,   todas  elas   com   olhos   arregalados   de
pavor.
"Nove mulheres ao todo", pensou Lalitha.
E, enquanto refletia sobre o número de vítimas, ouviu passos pelo corredor. A porta
foi destrancada e o mesmo homem apareceu carregando no ombro outra mulher. Jogou­a
no chão, removeu o pano que a cobria, amarrou­lhe as mãos e amordaçou­a. Essa era
muito jovem, loira e bonita.
—  Vamos partir em poucos minutos — comunicou ele. — Quando estivermos no
oceano, vocês serão desamarradas, mas isso se se comportarem bem.
Ele saiu e trancou a porta.
"Vamos deixar a Inglaterra", concluiu Lalitha."Ninguém jamais saberá o que houve
comigo."
Ela pensou em tentar se desamarrar. Talvez conseguisse, mas, como sair daquele
lugar? A porta estava trancada e a única vigia dava para o rio. E ela não ignorava o tipo de
punição que a aguardava se fosse apanhada fugindo.
Olhando ao redor viu duas moças de olhos fechados que pareciam dormir. Mas
teve a impressão de que não era um sono normal. As outras tinham os olhos arregalados,
as pupilas dilatadas. Todas aparentavam ser muito jovens, não tendo mais de quinze ou
dezesseis anos, e estavam modestamente vestidas.
"Qual será o destino dessas criaturas? E o meu?", raciocinava Lalitha.
Ela ouvia o barulho do navio que zarpava, e o ruído do vento que enfunava as
velas. Sentia muito frio com seu vestido leve.
Encontravam­se já no meio do rio. O sol brilhava com mais intensidade e Lalitha se
perguntava   se   o   quarto   de   lorde   Rothwyn   também   estava   cheio   de   sol,   e   se   ele   já
despertara.
Seria mesmo possível se comunicar com alguém ausente? Ela acreditava no poder
da mente, sempre se convencera de que a mente não tinha limites nem fronteiras. Tal
crença funcionaria na prática?
"Venha em meu socorro, milorde! Salve­me!", suplicava ela em pensamento. "Por
favor, meu Deus, faça com que ele me ouça, faça­o saber que estou em perigo. Por favor,
meu Deus!"
Aí, ela chegou à conclusão de que seu caso era sem esperança, pois o navio movia­
se rapidamente rio abaixo ajudado pela maré.
Suas preces falharam. Não havia possibilidade de salvação para ela e para as outras
companheiras de desventura.
A moça sentada a seu lado conseguira se desvencilhar da mordaça, e perguntou a
Lalitha, com voz cheia de medo:
— Que está acontecendo? Para onde estamos indo?
Era uma menina simples, bonita apesar de um pouco gorda, e com as faces coradas
típicas de uma camponesa.
Vendo que ela se livrara da mordaça, Lalitha procurou fazer o mesmo. Moveu os
lábios repetidas vezes e o lenço caiu. A moça então disse:
— Assim é melhor, ao menos podemos conversar.
— É verdade — concordou Lalitha.
— Eu não entendo por que estamos aqui.
— De onde você veio? — indagou Lalitha.
— De Somerset. Prometeram­me um emprego em Londres.
 — Que tipo de emprego?
— De ajudante de cozinheira, na casa de um nobre. E eu dei à mulher meu endereço
certo.
— Que mulher? — inquiriu Lalitha.
— A   mulher   que   foi   falar   comigo   na   estação   terminal   da   diligência.   Ela   me
perguntou para onde eu queria ir, e eu disse. Então, me ofereceu sua carruagem. Achei
mais interessante ir para meu emprego de carro que a pé.
— O que houve depois?
— Não   sei  bem.   A   única  lembrança   que   tenho   é   de   que   a  mulher   me  fez   beber
alguma coisa, alegando que eu devia estar muito cansada. Depois disso, vim parar neste
navio, amarrada aqui no chão. Qual é o motivo de tudo isso? Que querem de nós?
Lalitha ficou silenciosa. Não havia razão para assustar a pobre menina.
— Mais cedo ou mais tarde vamos saber — Lalitha enfim falou. — Mas penso que
fomos raptadas.
— Raptadas?! — exclamou a garota. — Mas por quê? Não tenho quase dinheiro
algum, só uma moeda de pouco valor.
Lalitha passou o olhar pelas outras moças e viu que elas também tentavam remover
a mordaça. Contudo, ou não eram tão habilidosas ou as mordaças tinham sido colocadas
mais fortemente, pois nada conseguiram. A moça de Somerset começou a choramingar:
— Quero   minha   mãe!   Quero   ir   para   casa!   Pretendia   encontrar   um   emprego   em
Londres para ajudar minha família, mas agora estou com medo, muito medo. Quero ir
para casa!
"Nós todas queremos", Lalitha ia responder.
Todavia, apenas disse com muito sangue­frio:
— Você precisa ser corajosa. Não adianta irritar as pessoas que nos raptaram. Vão
nos castigar por isso.
— Acha que baterão em nós? — indagou a moça.
Lalitha   não   respondeu,   mas   lembrou­se   de   que   lorde   Rothwyn   dissera   que   os
traficantes de escravas brancas espancavam ou drogavam as moças que não obedeciam.
"Meu Deus, ajude­nos!", rezava Lalitha.
O   navio   movia­se   em   grande   velocidade,   impulsionado   pelo   vento   forte.   Se
continuasse assim, chegariam em poucas horas à Holanda, ou em qualquer outro local do
continente europeu.
Lalitha olhou mais uma vez para as outras moças, e concluiu que ela era a mais
velha   de   todas.   Não   havia   motivo   para   estar   incluída   naquele   carregamento   humano.
Aquilo fora idéia de sua madrasta, não restava dúvida. Com certeza Sophie contara à mãe
que,   em   vez   de   lorde   Rothwyn   se   alegrar   com   a   visita   dela,   correra   para   alcançar   a
diligência. Lalitha podia imaginar a fúria de sua madrasta, ao constatar que Sophie, apesar
de toda beleza, perdera tão vantajoso pretendente.
Lalitha duvidava, apesar do que Sophie dissera, que Julius Verton ainda estava a
seus pés. Se fosse verdade, ela se contentaria com o homem de quem estava noiva, e não
correria atrás de lorde Rothwyn.
Julius recebera, por certo, a carta de rompimento e, mesmo com o coração partido,
seu orgulho não o permitiria aceitar Sophie de volta. Herdeiro que era de um ducado,
poderia fazer casamento muito melhor, pois sua união com Sophie não passava de uma
mésalliance.  E a única esperança que restava a Sophie, não tendo conseguido nem Julius
nem   lorde   Rothwyn,   era   se   casar   com   o   devasso,   velho   e   desagradável   sir   Thomas
Whernside, o terceiro na lista de seus pretendentes.
"Não há a menor dúvida de que tanto Sophie como a mãe jamais me perdoarão",
pensava Lalitha com humildade.
Todavia, embora lorde Rothwyn a tivesse seguido, acreditava que ele ainda amava
Sophie.   Como   poderia   um   homem   resistir   a   tanta   beleza,   a   tanta   sedução?   Qualquer
mulher ficava insignificante perto dela.
"Como ouso esperar que ele se interesse por mim?"
Seus   pensamentos   a   levaram   para   longe   da   situação   em   que   se   encontrava   no
momento, e ela só voltou à realidade quando a moça de Somerset lhe perguntou:
—­ Não podemos mesmo fazer nada? Não podemos escapar disto tudo?
— Não saberia como — respondeu Lalitha. — Você não conseguiria, por exemplo,
desamarrar a corda que prende suas mãos nas costas!
— Não a de minhas mãos, mas talvez a das suas.
— De que jeito? — interrogou Lalitha curiosa.
— Se nos sentarmos costas contra costas.
— Você é esperta mesmo! — exclamou Lalitha. — E eu que não havia pensado nisso
antes!
As duas se acomodaram, então, com as costas unidas. Lalitha sentiu logo os dedos
ágeis   da   moça   remexendo   na   corda   que   prendia   suas   mãos   na   cintura.   Levou   algum
tempo, mas enfim ela conseguiu desamarrar as mãos de Lalitha que fez o mesmo com as
dela.
— Eles disseram que vão nos soltar assim que estivermos em alto mar — observou
Lalitha. — Por isso, quando vierem aqui, é melhor fingirmos que ainda estamos presas.
— Entendo — concordou a moça. — E quanto às outras?
— Acho que posso livrá­las da mordaça. Porém, talvez seja mais prudente que nós a
coloquemos de volta na hora que ouvirmos passos no corredor.
Lalitha e a moça de Somerset agiram depressa. As moças todas, logo que puderam
falar, repetiam a mesma coisa:
— Para onde vamos? Que querem eles de nós? Estou com medo!
Quando  Lalitha chegou perto  das duas moças de olhos fechados, constatou que
dormiam um sono pesado. Deduziu, então, que estavam drogadas. Ambas eram bonitas,
louras e bem­feitas de corpo.
"Talvez sejam mais felizes dormindo que acordadas", pensou ela. "Ao menos não se
preocupam com o futuro."
O navio começou a jogar, e as ondas do rio pareciam turbulentas. De repente, ela
notou que os homens de bordo berravam, e achou que havia uma nota de alarme na voz
deles. Alguns falavam num idioma estrangeiro, outros em inglês.
Aí,   inesperadamente,   ouviram­se   sons   de   passos   no   corredor   próximo  à  cabine
onde elas se encontravam, bem depressa, as moças recolocaram a mordaça e puseram as
mãos para irás, enrolando as na corda.
Quatro   homens   entraram   na   cabine.   Para   espanto   de   Lalitha,   eles   abriram   um
painel   corrediço,   atrás   do   qual   havia   uma   escura   cavidade.   Os   homens   começaram   a
carregar   as   meninas,   uma   a   uma,   e   a   jogá­las   no   buraco   atrás   do   painel.   Quando
descobriram que todas haviam desamarrado a corda e tirado a mordaça, prenderam­nas
novamente.
— Vocês   serão   castigadas   mais   tarde   pelo   que   fizeram.   —   Ameaçou   um   dos
homens.
Dois deles pegaram Lalitha e a atiraram na cavidade; ela bateu em cheio no suporte
de madeira rústica do pequeno compartimento que ficava na popa do navio.
O espaço era mínimo, havia pouco ar, e as moças estavam amontoadas.
— Um só grito e eu arrebento todas vocês — berrou o homem que conduzira Lalitha
a bordo.
Ele  voltou para a cabine e recolocou o painel no lugar. Nem uma réstia de luz
penetrava no esconderijo.
O navio diminuía a marcha, e Lalitha ouviu o som de outra embarcação que se
aproximava. Ela tremia de frio e de medo, e todas as moças estavam apavoradas.
Depois de muito tempo, quando já começava a acreditar que se enganara, e que não
havia outro barco seguindo o delas, vozes e passos se fizeram ouvir, bem perto da cabine.
A porta foi aberta e, com o coração aos pulos, Lalitha escutou a voz de lorde Rothwyn.
— Que há aqui? — indagou ele.
— Apenas uma cabine, sir.
Lalitha lutava para se livrar da mordaça, mas em vão. Teria batido os pés no chão,
porém estava em cima de outra moça.
"Ele não vai ver... nem ouvir... nada!", pensou ela em desespero. "Salve­me... estou
aqui! Salve­me!", ela quis gritar.
Escutou então um ganido e arranhões no painel corrediço. Era Royal. Ela conhecia
bem   os   sons   que   ele   fazia   quando   excitado,   ou   quando   queria   ir   para   junto   dela.   Em
seguida, ouviu lorde Rothwyn declarar:
— Gostaria de saber o que está excitando meu cachorro assim! Parece­me que há
algo atrás dessa parede.
— São ratos, sir! — explicou um dos homens. — O navio está infestado deles! O
senhor possui um bom cão de caça.
— É   estranho   ele   estar   tão   excitado!   Chame   imediatamente   o   comandante.   Há
alguma coisa a investigar.
— Não há nada aqui, sir — insistia o homem. — Nada mesmo! Está perdendo seu
tempo, sir!
— Confio no instinto de meu cachorro! — replicou lorde Rothwyn friamente.
Em poucos minutos dois oficiais da Marinha apareceram, um deles o comandante
do barco.
— O senhor deseja falar comigo, milorde? — indagou o comandante.
— Sim. Acho que meu cachorro farejou qualquer coisa aqui. Foi então que Lalitha,
com esforço sobre­humano, soltou as mãos. Tirando a mordaça da boca, ela gritou; não foi
um grito estridente, mas pôde ser ouvido.
Isso   forçou   os   oficiais   a   empurrarem   o   painel.   Royal   pulou   logo   para   a   escura
cavidade, latindo e lambendo o rosto de Lalitha.
Ela foi conduzida à cabine e, com os tornozelos ainda atados, viu­se abraçada por
lorde Rothwyn.
— Você... Veio! — exclamou, escondendo o rosto no ombro dele. — Sabia... tinha
certeza de que atenderia... Meu apelo, o apelo de meu coração.
CAPÍTULO VIII

Lalitha,   na   semiconsciência,   deu   um   grito   de   pavor,   para   depois   constatar   que


estava em sua própria cama, em Rothwyn Park.
Apesar das cortinas fechadas, ela podia distinguir os móveis, os cupidos do espelho
da penteadeira, e os enormes vasos de lírios e rosas que perfumavam o ambiente.
Estava salva! Estava em casa e não precisava mais ter medo.
Era difícil recordar tudo o que acontecera desde o minuto em que lorde Rothwyn a
abraçara na cabine do navio que a conduzia para fora da Inglaterra.
Alguém lhe desamarrara a corda dos tornozelos, e lorde Rothwyn tirara a capa de
seus   próprios   ombros   e   a   cobrira   com   ela.   Depois   a   auxiliara   a   ir   até   o   convés   da
embarcação onde soldados da guarda aduaneira, bem armados, mantinham presa toda a
tripulação. Mas lorde Rothwyn não se demorou no convés, e levou Lalitha a um pequeno
escaler, através de uma escada de corda.
Havia um grande barco da guarda ­ costeira ao lado do navio. Lalitha, contudo, só
pensava em lorde Rothwyn, que estava bem perto dela, e no fato de que não precisava
mais ter receio de nada.
Foram num barco a remo até o cais onde ela havia embarcado. A distância que
percorreram pelo rio foi bastante grande, e a carruagem de lorde Rothwyn os esperava no
porto.
Assim   que   Lalitha   entrou   no   carro,   Royal   pulou   para   o   lado   dela,   colocando   a
cabeça em seu colo. Talvez tenha sido essa demonstração de carinho o que quebrou o
controle emocionante que Lalitha procurara manter desde o instante em que fora salva. E
ela começou a chorar com o rosto escondido no ombro de lorde Rothwyn.
— Tudo está bem agora, Lalitha! Tudo está acabado! — Ele tentava consolá­la.
— Eu tinha certeza de que você me salvaria — sussurrou ela. — Chamei­o com toda
força de meu coração, como no poema de lorde Hadley.
— Eu ouvi seu apelo, Lalitha, e acordei. Mas deve mesmo sua salvação a Royal.
— Você teria desistido... Se Royal não tivesse arranhado a parede?
— Minha intenção, na verdade, era arrebentar com aquele  navio, reduzi­lo a mil
pedaços. Mas a insistência de Royal ajudou muito.
— E como você pôde ter tanta certeza de que eu estava lá, ou até de que havia
partido da Inglaterra?
— Eu lhe contarei noutra ocasião por que soube que você partira. No momento, vou
lhe falar sobre Royal. No porto, ao longo do cais, havia grande número de embarcações
alinhadas, bem junto umas das outras. Andei por algum tempo procurando adivinhar em
qual delas você se encontrava. Notei, de repente, que um único ancoradouro estava vazio.
Royal, farejando o solo naquele  lugar, tornou bem claro que você passara por ali. Um
guarda   da   polícia   marítima   me   acompanhava,   pois   expliquei   a   ele   a   razão   de   minha
suspeita.
— Ah, foi isso então... — murmurou Lalitha.
— Nós perguntamos ao responsável pelo porto que navio havia partido, e ele nos
disse se tratar de um barco holandês que, por sinal, ainda estava a vista. Quando o policial
indagou acerca do tipo de carregamento que o navio levava, o homem respondeu, rindo
muito: "Um dos fardos era de cadáveres." Tal comentário confirmou nossa suspeita e, por
essa razão, saímos num barco da guarda ­ costeira em perseguição ao seu navio.
— Achei   que   nunca   mais   o   veria   —   declarou   Lalitha   com   o   rosto   banhado   em
lágrimas.
Ela julgou que lorde Rothwyn fosse lhe dizer alguma coisa, mas apenas abraçou­a
até que ela parasse de chorar. Em seguida, deu­ lhe um lenço.
Quando chegaram a Rothwyn Park, ainda manhã bem cedo, metade da criadagem
os   esperava   na   porta,   incluindo   Nattie,   ainda   muito   pálida   mas   contente   com   o   feliz
resultado da busca.
Achando   que   Lalitha   estava   muito   fraca   para   subir   as   escadas,   lorde   Rothwyn
carregou­a e a pôs gentilmente sobre a cama.
— Cuide dela, Nattie — falou com sua voz grave. — Sua Senhoria está exausta. E do
que ela mais precisa agora é de umas boas horas de sono.
Ele ia deixá­la, mas Lalitha segurou­lhe a mão, sussurrando:
— Vai... Embora?
— Preciso sair um pouco, mas prometo que ficará bem protegida. Ninguém entrará
neste   quarto   a   não   ser   com   a   permissão   de   Nattie,   e   dois   de   meus   melhores   guardas
ficarão na porta. Isso, não porque ache que esteja insegura. — Vendo que Lalitha ainda
parecia amedrontada, ele acrescentou: — Confie em mim! Juro que não a perderei nunca
mais.
Os olhos de Lalitha se iluminaram de felicidade. Logo que lorde Rothwyn saiu do
quarto, Nattie preparou­a para dormir e serviu­ lhe uma bebida, uma mistura de ervas e
mel, o que fez Lalitha repousar por muitas horas.
— Cinco...   Seis...   Sete...   Impossível!   —   exclamou   Lalitha,   depois   de   contar   as
badaladas do relógio do hall. — Sete horas da noite?
Ela olhou à volta e viu Nattie sentada na poltrona ao lado da lareira.
— Está acordada, milady? — perguntou­lhe a governanta.
— São mesmo sete horas, Nattie?
— São.   A   senhora   dormiu   bastante,   vai   melhorar   agora.   Pedirei   que   lhe   tragam
alguma coisa para comer.
Ato contínuo, Nattie tocou a sineta.
— Não vou jantar com Sua... Senhoria? — indagou Lalitha.
— Sua Senhoria ainda não voltou.
— Não... Voltou? Por quê? Onde foi ele?
Mas, antes mesmo que Nattie dissesse qualquer coisa, ela adivinhou a resposta. Ele
fora com certeza ver o que podia fazer em favor das moças que haviam sido raptadas
também. Lorde Rothwyn consideraria seu dever providenciar algo para elas, e levar o caso
à justiça.
Quando   o   jantar   foi   levado   ao   quarto,   uma   série   de   pratos   deliciosos,   Lalitha
esforçou­se para comer um pouco de cada, a fim de agradar Nattie. Porém, não sentia
fome; só o que queria era ver lorde Rothwyn, descobrir o que acontecera e, acima de tudo,
saber se o futuro não traria a ela mais situações de terror.
Lalitha lamentou não ter contado a ele que desconfiava ser a madrasta a mandante
do seqüestro. Quis fazer perguntas a Nattie sobre Elsie, mas receou entrar no assunto na
ausência de lorde Rothwyn. Tinha o pressentimento de que ele não gostaria.
Ao terminar o jantar, constatou que não estava mais cansada e que a exaustão que
sentira antes havia desaparecido por completo. O sono profundo, e talvez as ervas, varreu
todo o cansaço físico proveniente da experiência desagradável que sofrerá, mas ela não
ignorava   que   precisaria   encarar   outros   problemas,   aos   quais   apenas   lorde   Rothwyn
poderia apresentar uma solução.
As horas passavam e Nattie insistiu que ela voltasse à cama. Escovou­lhe os cabelos
até brilharem, e trouxe­lhe uma outra camisola.
Royal foi levado para seu passeio habitual.
— Quem vai cuidar dele? — perguntou Lalitha, não escondendo sua apreensão.
— O Sr. Robson!
Lalitha sorriu. O mordomo estava sendo muito compreensivo em se sujeitar à tarefa
geralmente executada por empregado do categoria inferior.
Um pouco mais tarde, Nattie voltou ao quarto levando uma garrafa de champanhe
dentro de um balde de gelo, e duas taças de cristal numa bandeja de prata.
— Sua Senhoria chegou — anunciou ela.
— Chegou?!
— Ela foi tomar um banho e se trocar. Logo estará aqui.
Lalitha ficou emocionada, não conseguia nem falar. Cada fibra de seu corpo voltava
à vida. Aquele era na realidade o momento pelo qual ela esperara há muito.
— Vou deixá­la agora, milady — declarou Nattie. — A senhora não precisa mais de
mim?
— Não, Nattie, e muito obrigada. Estou grata a você por ter passado o dia todo
comigo. Deve ter sido cansativo.
— Fiquei rezando para agradecer a Deus pelo retorno de Vossa Senhoria sã e salva.
Nattie falava com voz embargada, e Lalitha acreditou ver lágrimas nos olhos da
velha governanta.
"Será que ela gosta tanto assim de mim?", Lalitha se perguntou com humildade, e
sentiu­se muito agradecida por ter alguém que se importasse com sua sorte.
Logo que Nattie saiu, Royal entrou no quarto e pulou para cima da cama. Estava
tão agitado que Lalitha teve a impressão de que ele também aguardava por seu dono, e
sabia que ele viria.
Os   dois   esperaram   por   lorde   Rothwyn   um   tempo   que,   para   ambos,   foi   longo
demais.   Numa   dada   hora,   Royal   começou   a   abanar   a   cauda   e   imediatamente   depois
ouviu­se   uma   leve   batida   na   porta   de   comunicação.   Sem   esperar   pela   resposta,   lorde
Rothwyn entrou; pareceu a Lalitha que o local acabava de ser iluminado por mais de uma
centena de velas.
Ele não se vestia como de hábito, mas usava um comprido robe de seda. Fechou a
porta e acercou­se de Lalitha que estava no enorme leito de dossel entalhado, recostada
em travesseiros de barra rendada, os cabelos caindo­lhe sobre os ombros. Tinha aspecto
muito frágil, etéreo e, sob o fino tecido da camisola, ele podia distinguir a suave curva dos
seios dela. Olhos enormes enchiam seu rosto delicado, e possuíam um brilho diferente
naquela noite.
— Você está bem? — perguntou ele.
— Muito bem, mas você é que deve estar bem cansado — replicou Lalitha. — O
ferimento não o incomoda? Não acha que se excedeu muito hoje?
— Está realmente preocupada comigo, Lalitha?
— É claro. Devia ter mais cuidado em seu primeiro dia de convalescença.
Lorde Rothwyn sorriu e disse:
— Acho que, em consideração às circunstâncias, nós dois merecemos uma taça de
champanhe!
— Está aí em cima — informou Lalitha, apontando para a garrafa e as taças.
Lorde Rothwyn serviu o champanhe. Ofereceu uma taça a Lalitha e pegou a outra,
dizendo:
— Precisamos celebrar a ventura de estarmos juntos outra vez. Vamos beber à nossa
felicidade?
— Eu adoraria... Fazer... Isso — sussurrou Lalitha.
Lorde Rothwyn ergueu a taça.
— Que sejamos felizes para todo o sempre! — disse ele com voz compenetrada, e
bebeu.
Lalitha fez o mesmo e sentiu que uma onda de alegria tomava conta de si. Um
pouco timidamente, sugeriu:
— Você precisa sentar­se. Há muitas coisas que desejo lhe perguntar, mas não quero
fatigá­lo.
Lorde Rothwyn tornou a encher a taça antes de responder:
— Não posso me considerar cansado. Não obstante, como temos muito a nos dizer,
pretendo ficar o mais confortável possível. Vamos nos sentar­bem junto, como fizemos na
cabana, na noite em que fomos assaltados?
Lalitha arregalou os olhos. Sem esperar por sua permissão, lorde Rothwyn sentou­
se na cama, ao lado dela, apoiando as costas nos travesseiros, e com as pernas esticadas
por cima da linda colcha de cetim e renda. Lalitha excitou­se devido  à proximidade do
homem que amava. Lorde Rothwyn a abraçara no caminho de volta do navio, mas ela
estava confusa e angustiada demais, para pensar em outra coisa que não fosse seu resgate.
Naquele instante, contudo, em plena consciência, era difícil reprimir o impulso de
esconder seu rosto no ombro dele, mais uma vez.
— Por onde vamos começar? — indagou lorde Rothwyn.
— Diga­me como conseguiu saber que eu estava em perigo, pediu Lalitha.
— Acordei às duas horas da madrugada com a sensação de que você me chamava.
— Então, quer dizer que me ouviu! — exclamou ela numa voz cheia de entusiasmo.
— Tinha certeza de que escutaria o apelo de meu coração e me salvaria!
— Logo que despertei, ouvi Royal ganindo — continuou lorde Rothwyn.
Depois ele narrou a Lalitha como descobrira que Henry e Elsie haviam estado com
a madrasta dela.
A simples menção do nome da mulher que a fizera padecer tanto, Lalitha tremeu e
observou:
— Sabia que era ela! Sabia que jamais me perdoaria por você não ter ficado com
Sophie em lugar de ir atrás de mim. Ela não vai descansar enquanto não me destruir!
— Isso é coisa que ela nunca fará!
— Mas tentou... E continuará tentando... — murmurou Lalitha, desanimada.
E lorde Rothwyn foi adiante com sua narrativa.
— Depois consegui que a guarda ­ costeira incriminasse não somente o comandante
do navio como também o dono da embarcação. Este último, juntamente com dois outros
sócios   é,   sem   dúvida,   o   cabeça   de   uma   grande   organização   que   vem   operando   nesse
tráfico há anos.
— Você o apanhou, então! — gritou Lalitha. — Que bom!
— Após fazer tudo isso e encaminhar as moças às respectivas famílias, fui fazer uma
visita a Sra. Clements, em Hill Street.
— A... Sra... Clements? — Gaguejou Lalitha.
— Ela nunca se casou com seu pai, Lalitha — prosseguiu lorde Rothwyn. — Fiz uma
investigação por algum tempo, baseando­ me nas informações que você deixava escapar
de vez em quando. Uni os fatos e formei uma idéia exata do que acontecera.
—    Você   adivinhou...   Que   ela   tomara   o   lugar   de   mamãe,   lançando   mão   de
mentiras?
— Certo. E descobri também o que ela fez para impingir Sophie como filha legítima
de seu pai a fim de introduzi­la no mundo social londrino.
Lalitha estremeceu de novo, e ele falou depressa:
— Você não precisa mais ter medo. Ela está morta!
— Morta?
— Eu a ameacei com uma ordem de prisão — continuou lorde Rothwyn. — Fiz
contra ela uma acusação de fraude, para a qual a penalidade é o banimento do país, e
outra   de   rapto   e   exploração   de   menor   para   fins   imorais,   que   requer   pena   de   morte.
Contudo,   considerando­se   que   seu   nome,   Lalitha,   seria   envolvido   inevitavelmente   no
processo, eu dei a Sra. Clements a chance de fugir antes que a polícia a prendesse. Um
navio ia partir para Gales do Sul ao meio­dia de hoje, e eu informei­a de que a sentença
iria ser posta em execução somente se ela regressasse ao país.
— E ela... Concordou em sair? — Lalitha parecia incrédula.
— Não teve outra escolha. Acompanhei­a até o cais. O navio lá estava pronto para
levantar âncora. Os últimos passageiros, conduzidos num escaler, iam embarcar...
— E ela seguia nesse escaler?
— Sim. Fiquei observando, pois queria ter certeza de que entrava mesmo a bordo, e
de que não usaria de trapaça no último instante. Então, quando o escaler encostou no
navio e a escada de corda foi baixada, ela atirou­se no rio.
Lalitha deu uma exclamação de horror.
— A maré estava alta e a correnteza era grande. Percebi que ela não sabia nadar,
tampouco os remadores do escaler — explicou lorde Rothwyn.
— E ela... Afogou­se — sussurrou Lalitha.
— Não houve possibilidade de salvá­la. Foi arrastada pelas águas e, antes que todos
se dessem conta do que sucedia, ela sumiu na voracidade da correnteza.
Lalitha   teve   dificuldade   até   de   respirar.   Lorde   Rothwyn   abraçou­   a   com   muito
carinho, dizendo:
— Seu pesadelo acabou! Não haverá mais trevas obscurecendo sua vida. Você está
livre, Lalitha! Livre de tudo que a atormentava e a fazia tão infeliz nestes últimos anos. Sei
agora quem você é, sei que seu pai foi um homem respeitado por todos que o conheceram,
e que sua mãe foi amada pelos que a rodeavam.
Lalitha soluçou, e ele prosseguiu:
— Ambos queriam sua felicidade, e é o que pretendo lhe proporcionar agora: uma
felicidade para sempre.
— E Sophie! Que houve com Sophie?
— Eu pretendia de início, que ela partisse com a mãe. Depois, em consideração ao
que   significou   um   dia   para   mim,   dei­lhe   permissão   para   que   se   casasse   com   Thomas
Whernside, conforme desejo dela.
— Como... É possível... Que ela quisesse se casar com ele? É um homem horrível!
— Mas ela quis. E Whernside, de acordo com o que ele mesmo me confessou com
franqueza, não tem condições financeiras de continuar morando em Londres. Vai levar
Sophie consigo para sua propriedade no norte do país, e talvez nunca mais volte para cá.
— Porém você a amava! E ela é... Linda!
Houve uma pausa que pareceu a Lalitha longa demais, antes de lorde Rothwyn
responder:
— Ontem à noite eu pedi sua opinião sobre o que era mais bonito, o quadro da
lareira ou os desenhos que lhe dei. Lembra­se? . — Claro!
— E você me disse que os croquis falavam ao seu coração muito mais que a tela de
grande valor e beleza indiscutível.
— É... Eu disse... Isso.
— Comprei aqueles três desenhos porque cada um deles me falava de você.
— De... Mim?
— Há tanto a se considerar neles! Tanto, por baixo daquela superfície! The Running
Youth,  aquela jovem correndo, expressa a alegria de viver que existe em você agora que
está bem de saúde. The landscape é uma paisagem que representa sua mente cativante, que
fascina mesmo. — Ele fez uma pausa e continuou, bem devagar: — E o anjo de Leonardo
da Vinci tem um aspecto espiritual, místico, do qual homem algum jamais se cansará. E é
tal qual o seu.
— Não... Entendo. — balbuciou Lalitha.
— O que estou tentando lhe dizer é que você não é apenas a pessoa mais linda que
já conheci, mas que sua beleza me encanta, me delicia, me inspira. Nunca me cansarei de
olhar para você.
— Isso não pode... Ser verdade. É mesmo possível que você esteja dizendo todas
essas coisas para mim?
Lorde Rothwyn fitou­a e disse com muito afeto:
— E você não havia adivinhado até agora que eu a amava?
Uma luz de satisfação iluminou o rosto de Lalitha. E lorde
Rothwyn prosseguiu:
— Quando vi como você tinha sido judiada, pensei que sentia apenas piedade. Ao
mesmo tempo, fui tomado de um irresistível desejo de restaurá­la, de reconstruí­la, como
faço com meus edifícios. — Ele abraçou­a com mais força. — Percebia, por instinto, que
sob as cicatrizes e a ruína a que você fora reduzida, existia uma beleza e um tesouro sem
preço! Você chamou por mim, Lalitha, e foi um apelo vindo do coração, de seu amor!
— Como pode ter tanta certeza disso? Às vezes penso que estou sonhando!
Ele sorriu ante o terror quase infantil da jovem, e respondeu:
— Não   está   sonhando,   não.   Eu   é   que   tenho   tido   medo   de   confessar   meu   amor,
tesouro! Receei assustá­la mais do que já estava. Porém, eu te amo muito! E não arriscarei
perdê­la pela terceira vez!
Lalitha fitou­o bem dentro dos olhos e constatou que ele dizia a verdade.
— O  único  jeito  de garantir que não  vou perdê­la, Lalitha,  é conservá­la sempre
junto de mim, dia e noite, e como minha mulher.
Com muita suavidade, ele a fez levantar os olhos para encará­lo.
— Eu te amo querida! — confessou com paixão. — E agora, diga­me, o que sente por
mim?
— Eu amo... Você! Sempre o amei! Acho que desde o dia de seu primeiro beijo, na
igreja. Mas nunca imaginei, nunca sonhei que eu pudesse significar alguma coisa..., para
você.
— E eu nunca me esqueci do toque de seus lábios. Um toque suave, cheio de medo,
diferente de qualquer outro que eu tenha experimentado antes. — Ele inclinou a cabeça na
direção dela e pediu: — Posso ter uma prova agora de que esse loque é maravilhoso, como
me lembro?
Os  lábios de Lalitha esperavam pelos dele, e quando se encontraram, ela sentiu
todo o encanto e o êxtase de um amor que era tal como uma labareda se transformando
em   algo   sublime,   divino.   Como   aquilo   com   que   sonhara   muitas   vezes,   sem   jamais
acreditar que pudesse acontecer com ela.
Os lábios de lorde Rothwyn foram suaves de início, mas depois, vendo que Lalitha
correspondia   à   chama   que   queimava   dentro   dele,   tornaram­se   mais   possessivos,   mais
ardentes.   Ele   levantou   em   seguida   os   olhos   para   fitá­la   e   viu   que   Lalitha   estava
transfigurada pelo amor!
— Meu tesouro! Minha querida! Vou fazê­la muito feliz, vou protegê­la de tal modo
que ninguém mais a fará sofrer no futuro.
— Eu amo você — murmurou Lalitha. — Contudo, tenho medo de falhar.
Lorde Rothwyn sorriu e disse: 
—  Não tenha medo! Preciso de você como nunca precisei de mulher alguma! As
mulheres todas de minha vida sempre exigiam uma coisa de mim e, apesar de eu lhes dar
tudo   o   que   pediam,   sentia   que   faltava   algo   para   eu   ser   feliz,   sem   conseguir   definir
exatamente o que era. Aquela noite na cabana dos lenhadores descobri do que se tratava.
— E... Que foi? — perguntou Lalitha.
— A proteção que a mulher proporciona ao homem quando o ama sem restrições,
como acredito que seja seu amor por mim. — Sua voz tornou­se muito terna ao continuar:
— Quando acordei e senti seus braços em volta de mim, e minha cabeça apoiada em seu
peito, concluí que o que eu nunca tivera de uma mulher antes era esse sentido de ser
protegido, de que ela desejava me salvar. Porém, não sei bem de que!
Lalitha, então, explicou bem hesitante:
— Eu queria salvar você de tudo que fosse... Desagradável... E mau. Eu também...
— Continue — insistiu lorde Rothwyn.
— Vi em você um filho — sussurrou ela. — Um filho que eu precisava defender
contra a infelicidade... E a solidão.
— Meu tesouro! Minha adorada! — exclamou ele. —  É o que imaginei que você
faria. E isso é o que sempre quis encontrar numa mulher, sem contudo poder traduzir em
palavras!
Eles se beijaram mais uma vez e Lalitha declarou:
— Era o meu coração... Que chamava pelo seu!
— Certo, querida, o apelo do amor que permanecerá conosco por toda vida.
Lorde Rothwyn beijou­a com lábios ainda mais insistentes, mais apaixonados.
Lalitha percebeu que ele lhe pedia algo e, embora não soubesse precisar do que se 
tratava, entregou­se por completo: sua alma, seu corpo, sua mente. E lorde Rothwyn 
também se entregou totalmente à mulher que amava. Eram duas pessoas numa só, 
completavam­se mutuamente. O apelo do coração estava sendo respondido com o amor.

FIM
Quem é Barbara Cartland?

As  histórias de amor de Barbara  Cartland já venderam  mais de 350 milhões  de


livros   em   todo   o   mundo.   Numa   época   em   que   a   literatura   dá   muita   importância   aos
aspectos mais superficiais do sexo, o público se deixou conquistar por suas heroínas puras
e seus heróis cheios de nobres ideais. E ficou fascinado pela maneira como constrói suas
tramas, em cenários que vão do esplendor do palácio  da rainha Vitória às misteriosas
vastidões   das   florestas   tropicais   ou   das   montanhas   do   Himalaia.   A   precisão   das
reconstituições de época é outro dos atrativos desta autora,que, além de já ter escrito mais
de trezentos livros, é também historiadora e teatróloga. Mas Barbara Cartland se interessa
tanto pelos valores do passado quanto pelos problemas do seu tempo. Por isto, recebeu o
título de Dama da Ordem de São João de Jerusalém, por sua luta em defesa de melhores
condições   de  trabalho   para  as enfermeiras   da Inglaterra,  e   é  presidente   da  Associação
Nacional Britânica para a Saúde.

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