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Coração
(Call of the Heart)
Barbara Cartland
Coleção Barbara Cartland Nº 216
Título original: Call of the Heart
Copyright: © Barbara Cartland 1975
Tradução: Carmita Andrade
Copyright para a língua portuguesa: 1988
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3º andar
CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Caixa Postal 2372
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressa na Artes Gráficas Parâmetro Ltda.
Revisão e Digitalização:
Lalitha já ouvira falar de noivas
abandonadas no altar, noivos nunca.
Achava que eram histórias que a mãe
lhe contava nos seus felizes dias de
criança.
Agora, vivendo de favor na casa de
sua madrasta, recebeu uma tarefa
bastante perigosa.
Para salvar sua irmã de um enlace
indesejado, teria de levar uma carta,
sozinha, a lorde Rothwyn, na igreja
marcada para o casamento.
Porém, ao chegar lá, o pavor obrigoua
a fugir desesperada.
O belo e irascível noivo queria que ela
tomasse o lugar da fugitiva!
NOTA DA AUTORA
O tráfico de mulheres e crianças da Inglaterra para o continente europeu crescia dia
a dia. Foi só depois da aprovação de uma emenda no Código Penal, que as jovens inglesas
cessaram de ser enviadas a outros países para serem vendidas como animais.
William Thomas Stead, editor da Pall Mall Gazette começou, em 1880, uma
campanha no sentido de instigar a indignação popular contra esse mercado, e ver se
conseguia com isso transformar em lei uma emenda cuja aprovação vinha sendo adiada
pelo Parlamento por anos a fio.
A fim de provar que esse tráfico realmente existia, ele mesmo comprou uma
menina de treze anos, cuja mãe concordou em receber a quantia de uma libra. Ele exigiu
um certificado por um médico de que a menina era virgem, e levoua a França, colocando
a num albergue a cargo do Exército da Salvação.
Em seguida, publicou em seu jornal o que fizera, e logo despertou o interesse do
público. Mas isso lhe custou uma condenação a três anos de cadeia.
Em 14 de abril de 1885, uma lei foi aprovada no Parlamento, por 179 votos contra
71, proibindo a escravidão de crianças e mulheres, e suprimindo gradativamente os
bordéis.
O tráfico de mulheres ainda floresce em muitas regiões do mundo, especialmente
no Oriente Médio.
CAPÍTULO I
— Sophie, você não pode fazer isso! — disse Lalitha.
— Faço o que quero! — replicou Sophie.
Era difícil imaginar que alguém pudesse ser mais linda que Sophie. Os cabelos
dourados, a pele branca e rosada, as feições perfeitas, faziam de Sophie Studley a jovem
mais famosa da corte de St. James. Após a estadia de um mês em Londres, ela foi
proclamada a "Incomparável" e, depois de dois meses, ficou noiva de Julius Verton que,
com a morte do tio, se tornaria o duque de Yelverton.
Anunciado o noivado na Gazette, os presentes começaram a chegar à casa de
Mayfair, que lady Studley, a filha e a enteada ocupavam durante a temporada em
Londres.
Porém, duas semanas antes do casamento, Sophie declarava sua intenção de
romper o noivado e fugir com lorde Rothwyn.
— Vai haver um tremendo escândalo! — protestava Lalitha. — Afinal, por que agir
assim, Sophie?
Ao lado de Sophie, o ideal de beleza de todos os homens, Lalitha tinha um aspecto
doentio, patético de dar pena. Uma enfermidade que a cometera durante o inverno, a
deixara pele sobre ossos. E, por causa das longas horas que passava costurando para sua
madastra, a mãe de Sophie, com luz inadequada, seus olhos estavam constantemente
vermelhos e inchados. Ela possuía cabelos tão opacos que pareciam quase cinzentos;
penteados para trás, davamlhe um ar de austeridade.
As duas moças tinham mais ou menos a mesma idade, mas, enquanto Sophie era a
personificação de saúde e da alegria de viver, Lalitha assemelhavase a uma sombra
prestes a desfalecer.
— Julius será um dia duque, mas quando? — prosseguiu Sophie. — O duque de
Yelverton, seu tio, não tem mais que sessenta anos, e poderá viver ainda dez ou quinze
anos. Até lá, estarei bastante velha para usufruir de minha posição de duquesa com
prazer.
— Você continuará sendo bonita, Sophie — insistia Lalitha.
Sophie olhouse no espelho. Sorriu com satisfação ao contemplar sua imagem ali
refletida. Não havia dúvida de que seu vestido azul pálido de crepe lhe ia muito bem. O
corpete justo, última moda em Paris, deixava sua cintura muito fina, acentuada também
pelas saias rodadas guarnecidas de buquês de flores e ruches de tule.
— É verdade — concordou Sophie calmamente. — Ainda serei bonita, mas queria
me tornar uma duquesa já, para ocupar um lugar de honra na coroação do próximo rei.
Nosso cansativo e decrépito monarca com certeza morrerá logo. E eu não pretendo esperar
eternamente até que o duque de Yelverton resolva desaparecer do mundo dos vivos. Estou
decidida a fugir com lorde Rothwyn esta noite mesmo! Tudo foi preparado para isso.
— Acha de fato essa sua atitude prudente? — indagou Lalitha.
— Sem dúvida. Lorde Rothwyn é muito rico, um dos homens mais ricos da
Inglaterra, e amigo íntimo do príncipe regente, o que significa que ocupa lugar de
destaque na corte da Inglaterra.
— É mais velho que o Sr. Verton. Contudo, apesar de nunca têlo visto, imagino que
seja atraente.
— E é. Seus cabelos escuros e ar cético lhe dão muito charme.
— Ele ama você, Sophie?
— Ele me adora! Aliás, os dois me adoram! Não obstante, comparandose um ao
outro, lorde Rothwyn é o melhor partido.
— Porém, Sophie, o mais importante é saber com qual dos dois você será mais feliz.
É o que realmente conta num casamento.
— Você anda lendo outra vez aqueles romances bobos, Lalitha. Se mamãe a pega
com um desses livros na mão, vai ter de haver com ela.
— Você pode admitir um casamento sem amor, Sophie?
— Claro. Vou me casar com quem me oferecer melhores vantagens. E lorde
Rothwyn é rico, muitíssimo rico!
Recentemente Sophie recebera três pedidos de casamento: um de Julius Verton,
futuro duque de Yelverton; o segundo, na última semana, de lorde Rothwyn; e o terceiro,
que Sophie pusera de lado imediatamente, de sir Thomas Whernside, um velho e
dissoluto jogador que se apaixonara à primeira vista pela bela Sophie.
Quando Julius Verton propôs casamento a Sophie, ela se considerou a mulher mais
feliz do mundo. Um dia seria duquesa. Todavia, existiam alguns senões a serem
considerados e, o pior deles, era que Julius possuía pouco dinheiro. Vivia da mesada do
tio, aliás bem pequena, o que obrigaria o casal a morar modestamente no campo, até que
herdasse a fortuna dos Yelverton.
O casamento teria lugar na igreja de St. George, em Hanover Square, antes que o
príncipe regente partisse para Brighton.
Sophie passava os dias experimentando vestidos, recebendo presentes que
chegavam diariamente em sua casa em Hill Street, e agradecendo as congratulações.
Ela e a mãe, por não terem residido em Londres muito tempo, não possuíam
grandes amizades na cidade. A verdadeira casa delas era em Norfolk, onde os
antepassados do falecido lorde Studley haviam morado desde os tempos de Cromwell.
Studley era um nome respeitado naquele local, porém pouco conhecido no beau monde de
Londres. O sucesso de Sophie deveuse portanto, exclusivamente à sua beleza.
Tudo ocorria normalmente até o dia em que lorde Rothwyn apareceu em cena.
Sophie encontrouo num dos muitos bailes a que ela e Julius eram convidados, noite após
noite.
Lord Kothwyn estivera afastado de Londres e ficou boquiaberto quando a
contemplou com a luz das velas incidindo sobre seus cabelos dourados, e com aquela pele
alva como a neve, Sophie era mesmo capaz de virar a cabeça de qualquer homem quando
dirigia a ele seu cativante sorriso.
— De onde veio essa criatura? — ela ouviu alguém dizer e, virandose, deu de cara
com um homem moreno e atraente, que a fitava extasiado.
Não se surpreendeu, contudo, pois estava acostumada a tais reações da parte dos
homens.
— Quem é esse cavalheiro que acaba de entrar na sala? — indagou Sophie ao rapaz
que a acompanhava.
— É lorde Rothwyn — respondeu o jovem. — Não foi ainda apresentada a ele?
— Nunca o vi antes.
— É um homem um tanto estranho e de atitudes imprevisíveis, mas riquíssimo, e o
regente o consulta sempre na execução de todos esses edifícios loucos espalhados pela
cidade.
— Bem, se foi ele quem aprovou o novo pavilhão em Brighton, deve ser louco
mesmo! — exclamou Sophie. — Ouvi ontem alguém o descrever como um pesadelo
indiano!
— Ótima comparação! — concordou o rapaz. — Mas vejo que Rothwyn está ansioso
por conhecêla.
Nesse instante, um amigo comum conduziu o lorde para perto de Sophie, dizendo:
— Miss Studley, permitame apresentarlhe lorde Rothwyn. Acho que esses dois
ornamentos de nossa sociedade precisam se conhecer.
Lorde Rothwyn inclinouse com uma elegância fora do comum, e Sophie saudouo
graciosamente, sabendose admirada.
— Estive viajando — explicoulhe lorde Rothwyn. — E, ao voltar, constato que
Londres foi visitada por um meteoro tão saturado de divinos poderes, que tudo parece ter
mudado aqui da noite para o dia.
Foi o começo de uma corte ardente, impetuosa, violenta, que deixou Sophie
encantada.
Flores, cartas e presentes chegavam a cada instante. Lorde Rothwyn levara Sophie
passear em seu faetonte, e a convidava, juntamente com a mãe, para seu camarote na
ópera. Finalmente, organizou uma grande festa em homenagem à jovem, em Rothwyn
House, que excedeu em grandiosidade, luxo e entretenimento a qualquer outra festa a que
Sophie fora convidada.
— Sua Alteza Real compareceu! — contou Sophie mais tarde a Lalitha. — E,
enquanto ele me felicitava por meu noivado com Julius, podia notar que lorde Rothwyn
estava a meus pés. Ele me adora! Se tivesse pedido minha mão antes de Julius, seria meu
noivo hoje!
E agora, repentinamente, Sophie decidia fugir com lorde Rothwyn, abandonando
Julius.
— Vou sacrificar toda a cerimônia de meu casamento — declarava Sophie. — Não
terei damas de honra, recepção, nem vestido de noiva, mas Sua Senhoria me prometeu
uma enorme festa assim que voltarmos de nossa luademel.
— Todo o mundo vai ficar chocado por você romper o compromisso com o Sr.
Verton dessa maneira cruel, Sophie — Lalitha insistia hesitante.
— Isso não vai impedir que "todo o mundo" aceite o convite para comparecer a
Rothwyn House — garantia Sophie. — As chances de Julius poder proporcionar festas, até
se tornar duque, serão mínimas.
— Ainda acho que você deveria se casar com o homem a quem deu sua palavra.
— Graças a Deus não tenho esse tipo de consciência — replicou Sophie. — Ao
mesmo tempo, vou fazer Sua Senhoria entender o sacrifício que estou fazendo em favor
dele.
— Lorde Rothwyn pensa que você o ama?
— Claro que pensa. Eu lhe disse que fugia com ele por estar perdidamente
apaixonada. — Sophie sorriu. — É fácil amar alguém rico como Rothwyn. Todavia,
lamento não poder usar um dia a coroa de duquesa, que ficaria muito bem em meus
cabelos dourados.
Ela deu um suspiro, e depois acrescentou:
— Bem, talvez lorde Rothwyn não viva muito. Nesse caso, viúva rica, poderei me
casar com Julius.
— Sophie! — Lalitha estava horrorizada. — Que coisa feia você está dizendo!
— Por que feia? Afinal, Elisabeth Gunning não era mais bonita que eu e casouse
duas vezes com dois duques. Chamavamna até de "a dupla duquesa".
Lalitha não respondeu, sabendo que nada demoveria Sophie de seu intento.
Sentada em frente à penteadeira, Sophie se contemplava no espelho. Ela observou:
— Este meu vestido é perfeito para eu ir ao encontro de lorde Rothwyn. Como vai
estar um pouco fresco à noite, usarei a capa de veludo azul enfeitada de arminho.
— Lorde Rothwyn vem buscar você aqui?
— Claro que não! — replicou Sophie. — Pensa que mamãe não sabe de nada acerca
de nossos planos. — Sorriu. — Podese ver logo que ele não conhece bem mamãe.
— Aonde você vai se encontrar com ele?
— No adro da igreja de St. Alphage, ao norte de Grosvenor Square. É um templo
pequeno, escuro e mais ou menos pobre, porém Sua Senhoria acredita perfeito para o tipo
de casamento que vamos ter. O mais importante é que o vigário pode ser subornado para
conservar a boca fechada sobre a cerimônia.
— E para onde vocês pretendem ir após o casamento?
Sophie sacudiu os ombros e respondeu:
— Por acaso isso interessa, desde que seja um lugar confortável? Terei a aliança em
meu dedo e serei lady Rothwyn.
— E que vai fazer com o Sr. Verton? — perguntou Lalitha.
— Escrevi algumas linhas para ele e mamãe mandará um lacaio entregálas quando
eu já estiver na igreja. E, como Julius encontra se com a avó em Wimbledon, só vai recebê
las bem depois do casamento. Será tarde demais para ele desafiar Sua Senhoria em duelo.
— Sinto pelo Sr. Verton. Ele a ama muito, Sophie.
— Sei disso. Mas francamente, Lalitha, sempre o achei imaturo e cacete!
Essa resposta não surpreendeu Lalitha. Sabia desde o início do noivado que Sophie
não estava interessada no Sr. Verton como homem. As cartas cheias de paixão que ele lhe
escrevia permaneciam fechadas sobre o aparador, e Sophie mal olhava para as flores e
invariavelmente queixavase dos presentes enviados pelo noivo.
— Que horas são? — indagou ela.
— Sete e meia. — informou Lalitha.
— Por que você ainda não me trouxe alguma coisa para comer?
— Vou buscar já seu jantar.
— Providencie que seja bom. Preciso de algo nutritivo para que possa enfrentar o
que tenho a fazer esta noite. Não é coisa fácil.
— A que horas você vai se encontrar com Sua Senhoria?
— Ele estará na igreja às nove e meia, mas tenciono deixálo esperando por mim. É
bom que fique um pouco apreensivo. — Quando Lalitha ia saindo do quarto, Sophie
gritou: — Mande o lacaio agora para Wimbledon, pois ele levará mais ou menos uma hora
para chegar lá. A nota está na minha escrivaninha.
— Vou procurála — respondeu Lalitha.
Com o bilhete na mão, ela desceu para a cozinha. Havia lá poucas empregadas, de
péssima qualidade. Eram mal pagas, e o pouco dinheiro que lady Studley possuía gastava
o no aluguel da casa em Londres e nas roupas de Sophie, isso tudo usado como isca a fim
de atrair um bom partido para a filha.
Quem sofria com a situação era Lalitha. Enquanto moravam no campo, mesmo
depois da morte do pai dela, grande número de velhos serviçais continuou fiel â família,
trabalhando mais por afeição que por dinheiro. Em Londres, contudo, Lalitha viuse
revezando hora com a cozinheira, ora com a arrumadeira ou até com
O menino de recados, e ocupavase das primeiras horas do dia às últimas da noite.
A madrasta maltratavaa com indisfarçada crueldade, principalmente em Londres, onde
não se encontravam os antigos empregados que conheciam a menina desde que nascera.
Às vezes Lalitha se convencia de que a madrasta esperava que ela morresse de
exaustão, o que consistiria num alívio para todos. Em conseqüência do excesso de trabalho
ela adoecera e ficara muito fraca pois, durante o tempo em que estivera acamada, ninguém
levoulhe comida no quarto. Depois de dias e dias sem alimentação, resolveu levantarse e
ir à cozinha à procura de alimento.
— Se você sentese bem para comer, está boa também para o trabalho — a madrasta
lhe dissera, e Lalitha voltara à lida, fazendo na casa um pouco de tudo, e corrigindo o mau
serviço dos criados.
Naquela hora, com o recado de Sophie, ela entrou na cozinha, cômodo escuro e
necessitando de pintura, não muito limpo também. Um lacaio estava sentado à mesa
bebendo um copo de cerveja, e uma mulher grisalha, em frente ao fogão, cozinhava
alguma coisa com odor pouco apetitoso. Era a cozinheira da casa, uma imigrante irlandesa
que fora contratada numa agência de empregados, sendo a única que aceitara o miserável
salário que lady Studley podia pagar.
Lalitha dirigiuse ao lacaio:
— Você quer, por favor, levar este recado à velha duquesa em Yelverton House?
Fica, penso, na comunidade de Wimbledon.
— Só vou quando terminar com minha cerveja — replicou o criado, de má vontade.
Não se levantou ao falar com Lalitha. Todos os serviçais aprenderam bem depressa
que ela não era pessoa importante na casa, e davamlhe menos consideração do que
recebiam de seus empregados.
— Obrigada — agradeceu Lalitha e, fitando a cozinheira: — Miss Studley deseja
alguma coisa para comer.
— Não há muito. Preparo um ensopado para nós, mas ainda não está pronto.
— Talvez haja ovos para uma omelete — sugeriu Lalitha.
— Não posso interromper meu serviço agora — replicou a mulher de maneira bem
atrevida.
— Então eu mesma faço — disse Lalitha.
Ela contava com aquilo, de qualquer modo. Apanhou uma frigideira, que por sinal
teve de ser lavada, e preparou uma omelete de cogumelos. Colocoua sobre fatias de pão e,
juntamente com um bule de café, encaminhouse para a porta. Ia saindo da cozinha
quando o lacaio resmungou;
— É muito tarde agora para eu ir até Wimbledon. Não pode essa incumbência
esperar até amanhã?
— Sabe que não pode! — replicou Lalitha.
— Sim, eu sei, mas não acho justo eu ter de me arriscar fora de Londres à noite,
quando as estradas estão infestadas de ladrões.
— Eles não têm nada a roubar de você — refutou a cozinheira às gargalhadas. —
Mexase, e, quando voltar, seu jantar estará pronto.
Lalitha foi com a bandeja para o quarto de Sophie e pensava pelo caminho em como
sua mãe se irritaria se ouvisse os empregados falando daquele jeito em sua presença. E, só
em pensar na mãe, seus olhos se encheram de lágrimas.
Sentiase cansada, pois trabalhara muito naquele dia. Além de limpar a casa toda e
fazer as camas, executara inúmeras ordens de Sophie. Seus pés doíam e ela ansiava pelo
momento em que pudesse se sentar e descansar um pouco. Mas esse era um privilégio que
teria apenas tarde da noite, quando se retirasse para dormir. » Abriu a porta do quarto de
Sophie que foi logo dizendo, num tom de voz bem desagradável:
— Como você demorou!
— Desculpe, mas não havia nada pronto.
— O que me trouxe?
— Eu mesma preparei esta omelete.
— Não entendo por que não providencia outras coisas para esta casa — Sophie
censuroua. — Você é uma incompetente!
— O nosso açougueiro não quer mais fornecer carne enquanto não pagarmos as
contas atrasadas — explicoulhe Lalitha. — E quando o peixeiro passou por aqui hoje, sua
mãe estava fora e ele não nos deu crédito nem para um pedaço de bacalhau.
— Você sempre com suas desculpas bobas. Me dá essa omelete e sirvame o café.
— Acho que estão batendo na porta da frente — observou Lalitha. — Jim foi a
Yerlverton House com seu recado e a cozinheira nunca atende à porta.
Então, vá você ver quem é — ordenou Sophie de mau modo.
Lalitha obedeceu. Do lado de fora estava um criado de libré que lhe entregou um
bilhete.
— É para miss Sophie Studley, madame — disse ele.
— Obrigada!
Lalitha julgou que se tratasse de outra carta de amor para Sophie. Essas cartas
chegavam de todas as horas do dia.
Quando ela começou a subir as escadas, ouviu um grito vindo do quarto dos
fundos. Lady Studley dormia num pequeno cômodo no andar térreo, pois detestava
escadas.
Lalitha pôs o bilhete sobre um aparador e foi ao quarto da madrasta. Lady Studley
preparavase para uma recepção a que iria em meia hora. Ela era uma mulher um tanto
pesada, que fora bonita na juventude, mas cujos traços fisionômicos haviam endurecido
com o decorrer dos anos, e engordara muito. Era difícil acreditar que fosse a mãe da bela
Sophie. E, apesar de se comportar de maneira agradável em sociedade, lady Studley, para
os que conviviam com ela, podia ser crudelíssima.
—Venha cá, Lalitha! A madrasta berrou.
Tinha nas mãos um vestido de renda com a bainha descosturada.
— Eu lhe disse ante ontem para arrumar este vestido!
— Sei — replicou Latitha. — Porém, não tive tempo, e não posso fazer isso agora.
Meus olhos ardem muito e é impossível costurar uma fazenda tão delicada à luz de velas.
— Você sempre arranja desculpas para sua incompetência e preguiça. Sua
vagabunda! Me fez perder a paciência! Quando lhe dou uma ordem, essa ordem deve ser
executada imediatamente!
Dito isso, lady Studley atirou o vestido no chão, aos pés de Lalitha, e gritou:
— Apanhe isso! E, para que não se esqueça de me obedecer, vou lhe dar uma boa
lição.
Ela atravessou a sala e pegou uma bengala. Voltou com ela na mão e deu uma
violenta bengalada nas costas de Lalitha, que ainda estava abaixada para apanhar o
vestido. A jovem gemeu, e a madrasta golpeoua novamente, e mais uma vez, até que o
sangue jorrasselhe pelas costas.
— Maldita! — berrava lady Studley. — Eu lhe ensino qual é seu lugar nesta casa!
Lalitha não podia respirar tal a dor que sentia. Quase desfaleceu. De repente, a
porta se abriu e Sophie entrou abruptamente.
— Mamãe! Mamãe!
Lady Studley parou com a bengala no ar.
— Sabe o que aconteceu? — prosseguiu Sophie.
— Que foi?
Ignorando a figura de Lalitha jogada ali no chão, Sophie entregou a carta que
acabara de chegar, e que se encontrava sobre o aparador ao pé da escada.
— O duque de Yelverton está morrendo! — exclamou ela.
— Morrendo? Como soube?
— Alguém me escreveu, a pedido de Julius, explicando que ele teve de partir com
urgência para Hampshire.
— Deixeme ver essa carta — pediu Lady Studley, arrancando o papel das mãos da
filha. Leu em voz alta:
"O Sr. Julius pediume que lhe comunicasse, madame, que ele lamenta muito não poder
comparecer a sua casa esta noite, conforme prometido. Foi chamado para junto do leito de morte de
seu tio, Sua Graça o duque de Yelverton. Acredita que Sua Graça não passe desta noite. O Sr.
Julius partiu à pressas, por esse motivo não teve tempo de escreverlhe pessoalmente.
Com muito respeito, Christopher Dewar".
— Viu o que aconteceu, mamãe? — Sophie exclamou com voz de triunfo.
— Quem poderia acreditar numa coisa dessas? E lorde Rothwyn esperando por
você!
— Mas, mamãe, tenho chance de me transformar numa duquesa logo!
— Claro que tem! E não há dúvida sobre qual dos dois cavalheiros você deve pôr
de lado.
— Vou me comunicar com lorde Rothwyn e dizerlhe que não lenho condições de
me casar com ele — observou Sophie. — Vai ficar furioso!
— A culpa é dele mesmo! Não devia ter consentido em fugir com você.
— Mas não posso deixálo esperando por mim na igreja! — De repente, ela gritou:.
— Mamãe!
— Que foi?
— Minha carta para Julius! Pedi a Lalitha que mandasse a um Iacaio entregála na
casa da avó.
Ambas olharam para Lalitha que se levantava do chão, gemendo. Tinha o rosto
branco como cera e os olhos congestionados.
— Lalitha! Que você fez da nota destinada ao Sr. Verton? — perguntoulhe lady
Studley.
— Eu a dei... ao lacaio. E ele já saiu.
—Saiu? — gritou Sophie. — Alguém precisa ir atrás dele.
—Tudo bem, minha filha — lady Studley acalmoua. — Julius não vai estar na casa
da avó. De acordo com essa carta do Sr. Dewar, ele já deve ter seguido para Hampshire.
Sophie deu um suspiro de alívio.
—Claro! Claro!
—O que precisamos fazer é ir à casa da velha senhora amanhã cedo para recolhei a
carta — continuou lady Studley. — Podemos um com uma desculpa qualquer, que você
mudou de idéia, por exemplo, acerca de algo que escreveu.
—Você é muito inteligente, mam ãe!
— Se não fosse, você não estaria onde se encontra hoje!
— E o que vamos fazer sobre lorde Rothwyn?
—Ele precisa entender que você desistiu de fugir. Não lhe conte a verdadeira razão,
naturalmente. Expliquelhe que pensou melhor e concluiu não ser honesto quebrar seu
compromisso com Julius.
— Ótimo! Excelente idéia! — concordou Sophie. — Devo escrever uma carta a ele?
— Não! Não! — protestou lady Studley. — Uma carta seria comprometera. Nunca
escreva uma coisa dessas, pode um dia se transformar numa prova contra você.
— Mas eu não quero ir falar com ele! — protestou Sophie alarmada.
— Por que não?
— Porque, francamente, mamãe, lorde Rothwyn me assusta um pouco. Não quero
entrar em discussões com ele. É pessoa muito hábil e pode extorquir a verdade de mim.
Muitas vezes tive dificuldade em responder a perguntas dele.
— Não me parece, nesse caso, que seja o marido ideal! Bem, mas se você não for
alguém precisa ir. Talvez eu?
— Não, você não, mamãe. Menti a ele dizendo o quanto você reprovaria nossa fuga,
se soubesse dela. — Sophie sorriu. — Isso o fez ficar até mais audaz.
— Não duvido — concordou lady Studley. — Não há nada melhor que a oposição
para fazer um homem agressivo.
— Então, como vamos nos comunicar com ele?
— Lalitha fará isso, embora só Deus saiba a confusão que ela irá criar.
Lalitha já estava de pé, e com passos trôpegos encaminhouse para a porta com o
vestido de renda nas mãos.
— Onde vai? — indagoulhe lady Studley.
Lalitha não respondeu e, hesitante, fitou a madrasta com os olhos ainda cheios de
lágrimas. Seu rosto tinha uma palidez impressionante.
— É melhor você lhe dar alguma coisa para beber, mamãe — pediu Sophie. — Dá a
impressão de que Lalitha vai morrer agora mesmo.
— E seria uma sorte para nós.
— Bem, mamãe, mas ao menos a conserve viva até que transmita a lorde Rothwyn
a notícia.
— Essa Lalitha não passa de um estorvo em nossa vida! — exclamou lady Studley,
dirigindose para a cômoda onde havia uma garrafa de conhaque. Ela colocou dois dedos
no copo e deuo a Lalitha.
— Beba! — ordenou. — Embora considere uma coisa boa demais para gastar com
um espantalho!
— Vou ficar... Bem logo — declarou Lalitha, rejeitando a bebida.
— Faça o que estou mandando, sem discutir, a menos que queira outra surra.
Com dificuldade, fazendo esforço para andar, Lalitha foi para junto da madrasta e
pegou o copo. Ainda que detestasse conhaque, bebeuo devagar.
— Agora ouça Lalitha, o que vou lhe dizer. Se cometer algum engano, apanhará até
desfalecer — ameaçoua lady Studley com veemência.
— Estou... Ouvindo... — murmurou Lalitha.
— Você vai à igreja de St. Alphage, de carruagem, às nove e meia. Encontrará lá
lorde Rothwyn e explicará a ele que Sophie é honesta demais para romper com a palavra
dada ao Sr. Verton. Diga a ele que Sophie preferiu casarse com Julius a magoálo, fugindo
nas vésperas do casamento. Entendeu?
— Sim — respondeu Lalitha. — Mas... Por favor... Não me force a fazer isso.
— Já lhe disse o que acontecerá se não me obedecer! — E Lady Studley pegou a
bengala.
— Não mamãe — gritou Sophie. — Se bater mais em Lalitha ela poderá desmaiar e
ficar completamente inutilizada. Deixe que eu me entendo com ela. Temos ainda uma
hora.
— Muito bem — concordou lady Studley a contragosto, como se lamentasse não ter
a oportunidade de bater mais em Lalitha.
Ouviuse nesse instante uma pancada na porta.
Deve ser a carruagem para mim — disse lady Studley. — Vou a casa de lady Corey,
como planejado; ou será melhor eu ficar em i asa aguardando pela notícia da morte
iminente do duque?
— Acho, mamãe, que você deve ficar. Se Julius souber que foi a uma festa, vai se
aborrecer.
— Tem razão. Não pensei nisso, que idiota sou. Estava ainda refletindo sobre
nossos problemas com lorde Rothwyn, e me esqueci completamente de Julius. — Lady
Studley sorriu. — Bem, vou ficar em casa e passar uma noite bem pouco atraente. Mas,
pelo menos, isso me dará chance de fazer planos para o futuro! Oh, querida, sempre
desejei ver em você uma coroa de duquesa!
— Graças a deus recebi a notícia a tempo! Não me perdoaria se tivesse fugido com
lorde Rothwyn e depois recebido a notícia que Julius era um duque.
— Tivemos sorte! — exclamou lady Studley. — Agora, tire esse vestido, Sophie, não
quero que o estrague. É um de seus melhores. E leve esse fantasma daqui com você; só de
olhar para ela fico irritada!
— Ao menos Lalitha será útil para nós uma vez na vida. Não temos mais ninguém
para mandar ao encontro de lorde Rothwyn.
— Ele vai se chocar — caçoou lady Studley. — Jamais vi homem tão apaixonado
como lorde Rothwyn.
— Mas se recuperará logo — replicou Sophie.
Ela saiu do quarto acompanhada de Lalitha que mal podia caminhar.
— Venha depressa! — berrou Sophie. — Sabe muito bem que não consigo me
despir sem seu auxílio.
— Sophie, não me obrigue a ir ao encontro de lorde Rothwyn — suplicoulhe
Lalitha. — Ele vai ficar furioso comigo, mais do que sua mãe.
— Por que não a chama de "mamãe"? Já lhe foi dito isso muitas vezes.
— É... Mamãe...
— Não me surpreende que mamãe a castigue com tanta freqüência. Você é uma
tonta, Lalitha, e se lorde Rothwyn lhe der alguns tapas, é porque mereceu mesmo.
— Não posso agüentar... Mais pancadas hoje.
— Você já disse isso em muitas outras ocasiões. — Sophie fitoua e prosseguiu de
maneira mais amável: — Talvez mamãe tenha exagerado um pouco. Ela é muito forte e
você frágil demais. Surpreendeme que a bengala não tenha quebrado em suas costas.
— Não... Quebrou?
— Não, porque, em tal caso, você não poderia andar.
— É, tem razão. Porém, de qualquer maneira, não vou poder enfrentar... lorde
Rothwyn.
— Você nunca se encontrou com ele! Que sabe sobre a fúria de lorde Rothwyn?
Lalitha não respondeu e Sophie insistiu:
— Fale! Esconde alguma coisa?
— E que... li um livro chamado História das famílias famosas da Inglaterra.
— Interessante? Por que não o mostrou a mim?
— Você não gosta de ler — replicou Lalitha. — Ademais, tive medo de aborrecêla.
— Aborrecerme? Por que haveria eu de me aborrecer? Que diz o livro?
— Relata as origens da família Rothwyn, e como seu fundador, sir Hengist
Rothwyn, venceu na vida, tendo sido um aventureiro pirata.
— Continue — pediu Sophie.
— Ele teve muito sucesso e era também conhecido como um homem impetuoso.
Por séculos, os Rothwyn vêm herdando esse temperamento incontrolável de seu
antepassado. O próprio nome de lorde Rothwyn, "Inigo", significa "violento".
— Dou graças a deus, então, por ter me livrado desse cavalheiro! — argumentou
Sophie.
— Havia no livro um verso sobre sir Hengist, escrito em 1540 — observou Lalitha.
— Que diz o verso?
Lalitha refletiu um pouco e depois, com voz fraca e trêmula, recitou:
"Olhos negros, cabelos negros, Fúria negra. Portanto, cuidado, Se um Rothwyn lhe jurar
vingança".
Sophie riu e caçoou:
Você não está pensando que eu vou ter medo dessa lengalenga, não?
CAPÍTULO II
Lorde Rothwyn olhou para o corpo inanimado de Lalitha e tocou a sineta.
Quando um lacaio entrou na sala, ele já estava com Lalitha nos braços e a levava
para as escadas que conduziam ao quarto.
Era um cômodo espaçoso que dava para o jardim dos fundos da mansão. Todo
enfeitado com lírios brancos, tinha sido preparado provavelmente para receber os noivos.
Lorde Rothwyn colocou Lalitha na cama com muito cuidado, deitandoa de lado
para que não ficasse com as costas feridas em contato com os lençóis, e ficou olhando para
ela, incrédulo.
À luz das velas do quarto ele pôde constatar que os braços de Lalitha também
estavam machucados. Concluiu então que, quando ele a arrastara pela igreja, a fizera
sofrer muito fisicamente, além de têla assustado.
Lalitha não se movia. A porta abriuse e uma senhora idosa entrou. Tinha um rosto
bondoso, enrugado, cabelos grisalhos, e usava o convencional uniforme cinzento das
governantas.
— Mandou me chamar, milorde?
— Venha cá Nattie — respondeu Lorde Rothwyn, com um suspiro de alívio.
A governanta foi para perto da cama c viu as horríveis marcas nas costas de Lalitha.
— Master Inigo! — exclamou. — Quem fez isso?
— Não fui eu, Nattie. Jamais trataria uma mulher assim, nem mesmo um animal.
— Quem poderia ter sido tão infame?
— Outra mulher!
— Que devemos fazer agora?
— É o que lhe pergunto Nattie.
A governanta inclinouse e afastou para os lados o vestido de
Lalitha. Sangrando, inflamado, vermelho, não havia um centímetro no corpo dela,
ao longo das costas do pescoço à cintura, que não tivesse sido atingido pelos golpes da
bengala.
— Ela desmaiou! Quando voltar a si, imagino que a dor será insuportável —
acrescentou Lord Rothwyn.
— E vai! — confirmou a governanta. — Precisamos de óleo de loureiro.
— Mandarei alguém à farmácia imediatamente!
— Farmácia nenhuma tem esse tipo de óleo — replicou ela.
— Então, como poderemos obtêlo, Nattie?
— Na casa da mulher que vende ervas.
— Que mulher é essa? — Lord Rothwyn começou a falar, depois exclamou: —
Lembrome agora! Mora perto de Roth. Minha mãe costumava conversar com ela.
— Essa mesmo. — Nattie tocou a testa de Lalitha para se certificar de que estava
viva, e indagou: — Quem é ela, milorde?
Após curta pausa, Lord Rothwyn respondeu:
— Minha mulher!
— O senhor casouse com essa moça? Mas eu pensei... Nos contaram esta tarde
que...
— Que eu iria trazer para casa uma mulher de rara beleza — Lorde Rothwyn
terminou o pensamento de Nattie, com evidente irritação. — Em vez disso, trouxe para
você, Nattie, alguém que necessita muito de seu cuidado e proteção.
— Farei o melhor que puder, milorde — respondeu ela, acariciando a cabeça de
Lalitha. — Mas temos também que confiar em Deus. Tudo está nas mãos dele!
Lalitha mexeuse na cama e sentiase feliz. Parecia ter voltado ao passado e sonhara
com a mãe.
Aquele era um sonho que se repetia com freqüência. A mãe ficava a seu lado,
carregavaa, e davalhe algo para beber.
— Mamãe... — Lalitha murmurou.
Abriu os olhos e acreditou estar ainda sonhando. Aquele quarto inundado de luz
ela jamais vira. O leito onde repousava tinha colunas entalhadas e, acima do consolo de
mármore da lareira havia um quadro de cores brilhantes.
Ela fechou os olhos de novo. Provavelmente ainda sonhava. Depois, por estar
curiosa, olhou outra vez ao redor e viu que a lareira e o quadro continuavam no mesmo
lugar.
— Se está acordada, beba isso. Uma voz suave se fez ouvir.
Lalitha lembrouse então de que ouvira aquela voz antes, e que fizera parte de
seu sonho. Obedeceu instintivamente.
Uma mulher amável ergueu lhe o corpo e colocou um copo em seus lábios. Um
líquido doce como mel mitigou lhe a sede.
— Onde... Estou? — gaguejou ela, filando a bondosa mulher que sorria.
— Em Roth Park.
— Onde?
— Trouxeram a senhora para cá, milady.
— Mas... Por quê? — De súbito, Lalitha recordouse de alguma coisa. Ela entrara na
igreja e um homem a beijara. Fora depois arrastada para o altar onde se casara.
Estava casada! Uma onda de medo percorreulhe o corpo... O homem com quem se
casara parecia furioso muito furioso... E ela tivera medo, muito medo... Depois, escrevera
uma carta... Uma carta para Sophie... Chegara a terminar a carta? Que acontecera em
seguida?
Lembravase de ter dito algo horrível, algo comprometedor. Sentiu um medo
incrível, mas não conseguia saber exatamente o que revelara. Os fatos voltavam devagar à
sua mente, com intervalos de inconsciência, como se receasse recordar alguns pormenores.
— Vou pedir que lhe tragam qualquer coisa para comer — a mulher que estava a
seu lado declarou. — Se sentirá melhor depois que se alimentar.
Lalitha quis protestar, dizer que não estava com fome. O líquido que bebera fora
reconfortante, a revigorara a ponto de tornar sua mente bem mais clara. Ainda sentia
aquele gosto na boca.
A governanta tocou a sineta e alguém apareceu à porta do quarto. Ela deu algumas
ordens e voltou para o lado da cama.
— Ainda não sabe onde está? — perguntou ela a Lalitha.
— Não estou... Em Londres?
— Na verdade, não na cidade, mas muito perto. Estamos na propriedade de Sua
Senhoria, em Hertfordshire.
— Sua... Senhoria?
Essas palavras fizeram Lalitha estremecer. Agora se lembrava bem de tudo. Casara
se com Lalitha, o nobre com quem Sophie rompera na última hora; o moreno, furioso e
assustador homem que preparara uma armadilha para Sophie, e com quem se casara.
"Por que tudo aquilo?" Lalitha se perguntava. "Que estaria pensando Sophie,
sabendo que fora enganada?"
Lembrouse então de lady Studley e o pavor a invadiu por completo.
— Minha madrasta sabe... Onde estou? — perguntou ela com uma voz que não era
mais que um sussurro.
— Não sei — respondeu a velha senhora. — Porém, não se preocupe com coisa
alguma, Sua Senhoria está cuidando de tudo.
— Mas ele... é tão bravo!
— Não está bravo agora. Apenas deseja que Vossa Senhoria se recupere logo.
Aquelas palavras foram animadoras. Era muito bom saber que Lorde Rothwyn não
estava mais zangado.
Lalitha cerrou os olhos e adormeceu. Quando despertou, a comida a esperava.
Não sentia fome, mas agradavalhe saber que alguém se preocupava com ela,
alimentandoa às colheradas.
Dormiu novamente, mergulhando num país encantado, onde sua mãe se achava, e
onde não existia o medo.
Numa certa manhã, Lalitha acordou e sentiu que as últimas nuvens haviam
desaparecido de sua mente, e pôde enxergar então os acontecimentos com mais nitidez.
O quarto parecia mais lindo que antes. As paredes brancas e douradas, as cortinas
corderosa combinando com o tapete, os enormes espelhos de moldura dourada, os
quadros e as flores, tudo enfim fazia parte do quarto ideal que algumas vezes Lalitha
imaginara poder possuir, mas que nunca vira antes.
Sabia agora que a velha governanta que tratava dela havia sido a babá de Lord
Rothwyn.
— Ele era um menino dócil, e "Nattie" foi a primeira palavra que pronunciou.
Grudouse a mim desde os primeiros meses de vida — contoulhe a governanta.
Ela levou o breakfast e o colocou ao lado da cama. Lalitha não pôde deixar de
comparar a luxuosa porcelana de Worcester, a prata polida e a toalha bordada, com a
imunda cozinha da casa em Hill Street, onde geralmente comia.
Que estaria lady Studley imaginando ter acontecido com sua enteada? Que
explicações dera a ela Lord Rothwyn? Que diriam as duas mulheres quando a vissem de
novo.
Por não desejar responder a essas perguntas, Lalitha jogouas ao esquecimento, e
tentava se concentrar no que Nattie dizia.
— Sabe que já engordou um pouco, milady? Tem alguns quilos a mais, garanto!
— Como é possível? Há quantos dias estou aqui?
— Há quase três semanas.
— Não! Três semanas? Mas como? Não percebi o tempo passar!
— Esteve muito doente — replicou Nattie. — O médico descreveu sua doença como
"exaustão cerebral", mas não prestei atenção ao que ele dizia. Foi Sua Senhoria quem
insistiu em consultálo. A pessoa que a curou foi a mulher das ervas, milady. Não vai
reconhecer suas costas quando se olhar no espelho.
— A mulher das ervas? Quem é ela?
— É famosa por aqui, e pessoas vêm de Londres para consultála. Ela não permite
que se usem remédios receitados pelos médicos. Bobagem costuma dizer!
— É chá de ervas o que tenho bebido? — perguntou Lalitha. — Mesmo
inconsciente, percebi que era delicioso!
— Ervas e frutas do pomar dessa mulher, e mel das abelhas dos favos que ela
mantém. Acredita que só o mel de suas próprias colméias possuem poder curativo.
Lalitha ficou silenciosa por algum tempo, depois disse:
— Estou mesmo mais gorda?
— Um pouco — replicou Nattie. — E já é um progresso.
Nattie foi até a penteadeira e pegou um pequeno espelho com moldura dourada.
Levouo a Lalitha para que pudesse constatar a diferença. Era de fato enorme, ela não
parecia mais aquela menina de pele opaca, ossos salientes, olhos congestionados e cabelos
sem vida.
Ao contrário, agora seus olhos enormes tinham um brilho invulgar, a pele estava
transparente e com um ligeiro tom rosado. Seus cabelos, ondulados e brilhantes, caíam até
os ombros.
—Estou diferente, sem dúvida! — exclamou ela.
— E vai ficar muito melhor depois que eu terminar com seu tratamento —
prometeu Nattie. — Mas precisa me obedecer:
Lalitha sorriu. Ela notava um quê de carinho, zelo, em todas as ordens de Nattie. O
modo autoritário de ela falar escondia uma ternura que Lalitha jamais recebera de pessoas,
após a morte da mãe.
Aquilo era amor, de um certo modo o mesmo amor que a mãe lhe dedicara, porém
com suas características especiais, pois Nattie nunca tolerava "bobagens ou fraquezas".
— Vou fazer tudo o que você mandar, Nattie, porque eu quero ficar boa logo.
Ao falar, contudo, Lalitha se perguntava se realmente desejava recuperar sua saúde
depressa. Quando sã, teria problemas a enfrentar! Problemas talvez insuperáveis!
E não precisava refletir muito para saber de onde viriam os problemas: ele, lorde
Rothwyn, estava sempre presente naquele quarto em seu pensamento; o homem
assustador, bravo; e dessa imagem Lalitha não conseguia escapar.
Nattie trouxelhe uma camisola limpa, um elegante modelo feito em tecido suave,
enfeitado de renda. Penteoulhe os cabelos também, tendo antes friccionado neles uma
loção que a mulher das ervas fornecera.
— Que é isso? — interrogou Lalitha.
— Uma loção feita de cinco folhas, uma gramínea — explicou Nattie. — É
conhecida como a erva de Júpiter.
— Faz de fato os cabelos crescerem?
— Seus cabelos cresceram consideravelmente nestas últimas semanas. De qualquer
maneira, sempre acontece quando se está inconsciente.
— Nunca soube disso!
— Mas é verdade!
— Como pude ficar inconsciente por tanto tempo?
— Acordava de vez em quando, mas com a mente confusa; por essa razão
conversamos com Vossa Senhoria dormindo quase o tempo todo.
— Sob o efeito das ervas, penso — observou Lalitha com um sorriso.
— O sono é o remédio de Deus, embora a gente dê uma ajudazinha a Ele, claro.
— O que foi que a mulher das ervas receitou para mim? — Lalitha estava curiosa.
— Penso que um chá de folhas de alfena, de St. John Woet, e de papoula branca.
Mas pergunte você mesma a ela, ainda que não garanta que revele seus segredos.
Nattie escovou os cabelos de Lalitha mais uma vez; depois, cansada devido aos
cuidados que recebera, Lalitha adormeceu. Quando acordou, a tarde já ia em meio.
Serviramlhe chá com canapés. Ao terminar de comer, Nattie comunicoulhe:
— Sua Senhoria deseja falar.
— Sua... Senhoria? — Instintivamente Lalitha levou as mãos ao peito como para se
proteger.
— Ele veio vêla aqui todos os dias, acompanhou seu progresso. — Nattie sorriu. —
Foi como se estivesse interessado na recuperação de um edifício em ruína, trabalho esse a
que dedica a maior parte de seu tempo.
Lalitha não deu resposta. Tremia de medo. Como iria enfrentar lorde Rothwyn?
Que diria a ele?
Um repentino pensamento perturboua. Com certeza ele ia querer discutir sobre o
futuro dela, e sobre como se livrar de um casamento sem nexo.
Lalitha mal notara que Nattie havia tirado de uma gaveta um xale de chiffon
barrado de renda verdadeira, colocandoo sobre seus ombros. A governanta ajeitou um
pouco mais os cabelos de Lalitha e afofou os travesseiros. Ouviuse logo uma pancada na
porta.
— Entre, milorde — Nattie disse, abrindo a porta.
Lalitha quase não podia respirar. Sem saber por que, esperava ver lorde Rothwyn
de preto, como ele se apresentara na igreja. Lembravase bem da capa que o fazia
assemelharse a um morcego de asas abertas.
Em vez disso, ele usava traje de montaria. Um paletó azul, bem talhado, plastrão
alto, calças brancas e botas reluzentes davam lhe um ar de extrema elegância e menos
assustador.
Lalitha levou uns segundos para ousar encarálo, e constatou que ele não tinha mais
a expressão de Satanás. Ao contrário, era o homem mais sedutor que já vira. Alto e
dominador, contrastava com a estrutura frágil dela, que parecia mais etérea que terrena
muito pequena naquele enorme leito de dossel e cortinas de veludo rosapálido.
O sol da tarde inundava o quarto, emprestandolhe uma tonalidade dourada.
Lorde Rothwyn dizia a si mesmo que nunca vira mulher alguma com cabelos
daquela estranha coloração. Eram quase cinzentos, e os olhos de Lalitha eram cinzentos
também. O profundo cinzento do mar revolto, com uma tênue claridade vinda da linha do
horizonte.
— Fico muito contente por ver que está melhorando — declarou ele com voz grave.
Observou que Lalitha segurava o xale contra o peito. Ela não respondia nada, por
isso ele continuou:
— Você causou a Nattie e a mim grande preocupação. Porém, agora podemos ver
seu progresso a cada dia que passa. Muito breve terá condições de se levantar e passear
pelo jardim. Lá há flores lindas nesta época do ano.
— Eu gostaria... Muito... — Lalitha balbuciou.
— Então, faça tudo que Nattie mandar. É o que venho fazendo por toda minha
vida.
Ele sorriu, e um sorriso suave surgiu nos lábios de Lalitha, como resposta. Aí, só
para dizer alguma coisa, ela desculpouse:
— Sinto muito pelo trabalho que tenho dado.
— Não há razão para se desculpar. Eu é que lhe devo desculpas.
— Era minha obrigação ter impedido que o senhor fizesse o que fez. Pensei nisso a
tarde toda... Errei muito em consentir... No nosso casamento.
— Não havia nada que você pudesse fazer, Lalitha.
— Fui... Covarde. Mamãe teria tido vergonha de mim. — Lalitha falava sem pensar.
Só depois lembrouse de que precisava mentir acerca de sua verdadeira mãe.
Lorde Rothwyn viu medo nos olhos dela. Aproximou uma cadeira da cama e
sentouse.
— Estamos casados, Lalitha — disse ele. — Não pode haver mentiras entre nós. Na
noite que você desmaiou por eu havêla forçado cruelmente a se casar comigo, me contou
primeiro que sua madrasta, depois que sua mãe a linha espancado. Vamos tornar as coisas
bem claras: ninguém mais vai maltratála enquanto estiver sob minha proteção. Você é
minha esposa, e o passado deverá ser esquecido.
Uma nova luz surgiu nos olhos de Lalitha. Depois ela sussurrou, ainda receosa:
— Mas eu não posso... Ficar aqui... Para sempre.
— Por que não?
— Porque o senhor... Não me quer. Pode me mandar embora... Ninguém vai saber
que somos casados.
— Está tentando me convencer, Lalitha, de que pretende ocultar nosso casamento?
Que sumirá de minha vida?
— Não seria difícil — replicou ela. — É a solução mais viável que encontrei para
resolver nosso problema.
— Por que considera nossa situação um problema?
— Porque eu não sou o tipo de esposa... Para o senhor. Vossa Senhoria não
pretendia se casar... Comigo.
— Forceia a esse casamento, e ambos sabemos que foi um ato de vingança.
Contudo, tratouse de um contrato legal e religioso. Caseime, afinal, com uma miss
Studley.
Lalitha ficou calada por um momento, em seguida inquiriu:
— Evitei que o senhor perdesse... a aposta de dez mil libras?
— Evitou, mas recusei receber o dinheiro.
— Por que motivo?
— Vou dizerlhe a verdade, como também espero sempre ouvir a verdade de sua
boca. Quando sua irmã disse que fugiria comigo, revelei essa decisão a dois de meus
amigos mais íntimos, e um deles consideroume um verdadeiro idiota.
— Por quê?
— Ele comentou que a única coisa que Sophie Studley desejava era se casar com um
homem de projeção social e, se ela desistisse de Julius em meu favor, seria unicamente por
imaginar que o duque, tio de Julius, viveria por muito tempo. Assim sendo, eu
representava para ela o melhor pretendente do ponto de vista financeiro.
Lalitha lembrouse que Sophie dissera exatamente a mesma coisa. E lorde Rothwyn
continuou:
— Por amar muito sua irmã, briguei com meu amigo. "Sophie me ama", gritei, como
qualquer garoto apaixonado. Então meu amigo sugeriu: "Vamos pôr Sophie à prova.
Aposto dez mil libras que, se ela pensar que o duque vai morrer esta noite, desistirá da
fuga e continuará com Julius Verton". Aceitei o desafio por acreditar que Sophie me amava
e, para provarmos isso, redigimos aquela carta que foi enviada a sua irmã um pouco antes
da hora combinada para nossa fuga.
— Que teste... Cruel — murmurou Lalitha.
— Cruel ou não, provou que eu estava de fato "bancando o bobo" e meu amigo
acertara.
— E ele ganhou a aposta.
— Na verdade, ganhou. Lembreime porém, de repente, ainda na igreja, que o
contrato de casamento referiase a "miss Studley", e não a "miss Sophie Studley".
— Entendo! Mesmo assim, foi muito honesto o senhor não ter ficado com o
dinheiro.
— Alegrome por ver que me aprova. — Lorde Rothwyn sorriu.
— Mas o mal persiste — insistiu Lalitha.
— O mal? Que mal?
— Vossa senhoria continua casado... Comigo!
— Não descreveria nossa união como um "mal", Lalitha.
— O senhor disse para não fingirmos, então vamos falar francamente. O senhor
amava Sophie porque ela é linda, a moça mais bonita da Inglaterra. Ninguém pode ser
mais fascinante que ela! Eu não sou uma esposa amada ou admirada por meu marido. O
mais simples, nessas circunstâncias, é o senhor se livrar de mim.
— Pensa assim realmente, não? — lorde Rothwyn falou bem devagar.
— Preocupome com o senhor.
— E que vai acontecer com você, Lalitha?
— Tudo sairá bem, se o senhor me ajudar um pouco.
— De que maneira?
— Poderia me dar um pouco de dinheiro... Só um pouco, o suficiente para que eu
possa alugar uma casinha no campo... Irei para qualquer lugar... Onde ninguém me
conheça... E o senhor não vai precisar me ver nunca mais. Minha antiga governanta
cuidará de mim com prazer. Minha madr... mãe dispensoua quando nos mudamos de
Norfolk.
— Quanto acha que tudo isso irá custar?
— Não muito. Penso que me arrumarei com... Bem... Com cem libras por ano.
— Em troca dessa "imensa" quantia você pretende sair de minha vida para sempre?
— Nunca mencionarei seu nome... a pessoa alguma — prometeu Lalitha. — O
senhor pode se casar com uma mulher a quem ame...
— Sabe que sou um homem muito rico, não?
— Sophie me disse.
— E, sabendo, ainda admite que cem libras por ano seja uma recompensa justa pelo
serviço que me prestou?
— Não sou muito... Exigente... Em meus gastos.
— Então, é diferente da maior parte das mulheres de sua idade.
— Acho que a felicidade... Não depende do dinheiro.
Ela pensou logo em como fora feliz em sua casa com o pai e a mãe, levando uma
vida bastante modesta. Os três haviam conhecido uma felicidade que jamais poderia ser
traduzida em ouro, não importando em quanto montasse a fortuna.
A voz de lorde Rothwyn quebrou a trilha dos pensamentos de Lalitha.
— Mais uma vez deixeme dizerlhe, Lalitha, que você é diferente da maioria das
mulheres.
— Não sei se devo considerar isso um elogio ou não — comentou ela.
— Você tem planos para o futuro? — Lorde Rothwyn quis saber.
— Talvez. Só espero que o senhor não revele a minha madrasta ou a Sophie... Meu
paradeiro. Elas podem descobrir onde estou, e então...
Num gesto de súplica Lalitha estendeulhe a mão. Lorde Rothwyn cobriua com a
sua, e disse:
— Realmente imagina que eu faria o que quer que fosse para provar um novo
sofrimento em você?
— Acho que minha madrasta... Deseja que eu morra. O senhor até pode lhe dizer
que eu... Morri.
— Você está muito viva! E, embora aprecie suas idéias, tenho meus planos também.
— Quais são eles?
— Alguma vez Sophie disse a você qual era minha ocupação?
— Nunca.
— Tenho dedicado anos de minha vida devolvendo o antigo esplendor a edifícios
esquecidos e negligenciados.
— Deve ser um trabalho muito interessante.
— Acho que sim — concordou lorde Rothwyn.
— Lembrome agora de ter ouvido Sophie falar que o príncipe regente consultava o
senhor sobre esse assunto.
— Possuímos a mesma opinião, ele e eu, em muitas coisas. Dei sugestões a Sua
Alteza Real acerca de edifícios em Regentes Park e em Brighton. Ele me honra aprovando
freqüentemente minhas idéias renovadoras, e transformamos muitas vezes montões de
entulho em obras de arte.
— Gostaria muito de ver um desses prédios.
— Vou lhe mostrar — prometeu ele. — Aqui perto mesmo há uma casa construída
por um estadista da corte da rainha Elisabeth. Pois bem, encontravase em lamentável
estado de ruína. O grande salão onde a rainha costumava jantar converterase em
estrebaria. As vigas de madeira preciosa foram roubadas, utilizadas em construções rurais,
ou queimadas como lenha. Neste momento, a casa já está quase completamente
restaurada.
Lorde Rothwyn falava com eloqüência, o que demonstrou a Lalitha o prazer que
tinha naquele trabalho. E ele prosseguiu:
— Descobri também, por acaso, perto da antiga aldeia de St. Albans, fundada pelos
romanos, uma pequena villa esquecida e toda coberta de mato. Limpei a área e encontrei
mosaicos de um valor inestimável, mármores e pilares de beleza incrível.
— Como o senhor é hábil! — exclamou Lalitha. — Apreciaria muitíssimo ver essas
coisas.
— Tenho orgulho de meu instinto em descobrir preciosidades. O príncipe regente
sentese como eu quando vê uma obra antiga, um quadro, que necessita de restauração.
Ele pode visualizar que, sob a ruína, existe uma obra de arte.
— E o senhor nunca se engana?
— Praticamente nunca! Isso me leva a crer que estou certo sobre você.
— Sobre... Mim?
— Você precisa de restauração! — observou ele sorrindo.
— Tudo o que o senhor encontrou até agora tern sido excepcionalmente precioso.
Não acredito que o mesmo se dê em minha pessoa.
— É muito modesta! É parecida com seu pai ou sua mãe, Lalitha?
— Com minha mãe, porém um pouco menos favorecida. Minha mãe era lindíssima!
Lalitha embaraçouse ao referirse à mãe de novo. Recordou se, então, de que em
diálogos anteriores esquecerase por completo da farsa que representava quanto à sua
filiação. Tentou reparar seu erro, dizendo:
— Claro. Minha mãe... No decorrer dos anos...
— Achei que tínhamos concordado em não mentir um para o outro, Lalitha.
— Dei minha palavra... Mas...
— Qual é o problema? O que a apavora tanto?
— Ela... Me matará... Se souber...
— Tal coisa nunca vai acontecer — garantiu ele. — Contudo, como não quero que
se preocupe com outros problemas enquanto se restabelece, não vou pressionála a
deslindar esse mistério de mãe e madrasta. Concentrese somente em seu
restabelecimento. Logo poderá passear pelo jardim comigo e, quando se sentir mais forte,
a levarei á aldeia perto de St. Albans a fim de visitar a casa a que me referi, antes que seja
habitada. Promete que não vai se preocupar com seu futuro?
— Tentarei...
— Discutiremos nosso assunto de novo quando você estiver mais forte. Por ora,
confesso apenas que ficarei muito desapontado se a restauração do edifício chamado
"Lalitha" ficar além de minha expectativa.
— Por favor, não espere demais de mim — insistiu Lalitha com um sorriso.
— Sou um perfeccionista! — Ele tomou em seguida a mão dela e levoua aos lábios:
— Durma bem, Lalitha, virei vêla amanhã.
Ele já ia saindo do quarto quando Lalitha indagou:
— Por que razão o senhor se encontra no campo? A temporada de Londres ainda
não terminou!
— Mas está quase no fira! E não confio em ninguém quando me proponho a
recuperar meus "edifícios".
Ele sorriu e retirouse. Lalitha recostouse nos travesseiros; seu coração batia mais
forte, mas não era de medo.
"Como lorde Rothwyn tem sido bondoso!", pensava. Mesmo assim, continuou
achando que devia sair de seu caminho o mais breve possível.
Imaginava a má impressão que provavelmente daria aos amigos do marido.
Esperavam que a esposa dele fosse uma Sophie de cabelos de ouro, olhos azuis e pele
perfeita.
Lalitha não ignorava, embora ninguém lhe houvesse dito, que lorde Rothwyn tivera
muitas mulheres em sua vida, tampouco que ele jamais propusera casamento a nenhuma
delas, além de Sophie.
Sophie dissera que lorde Rothwyn era um dos homens mais ricos da Inglaterra.
Nesse caso, toda mãe de filhas casadouras o desejaria como genro. Qualquer moça
adoraria viver em Rothwyn House, em Park Lane, ou ser a castelã de Roth Park. Usando
as jóias da família, seria a anfitriã das grandes personalidades, a começar pelo príncipe
regente. E Sophie possuía o essencial para essa posição: uma beleza deslumbrante.
Além de Sophie, haveria outras mulheres de sangue azul, de grande dote e, quem
sabe, de atraente personalidade à disposição de lorde Rothwyn.
"E eu não tenho nada disso," pensava Lalitha.
Ela encostou o rosto no travesseiro e fechou os olhos. Até que se recuperasse bem,
poderia viver em meio a todo aquele luxo e conforto. Aliás, sempre odiara a feiúra, a
sujeira, a crueldade, as mentiras, enfim tudo o que fizera parte de sua vida nos últimos
tempos.
Agora, escapara! Contudo, não podia esperar que essa existência durasse
eternamente. Lorde Rothwyn fora bondoso, mas só porque ela estava doente, e porque
devido á sua ira forçaraa a um casamento.
"Ao mesmo tempo, com certeza ele me despreza por eu ter sido tão fraca", concluía
ela. — "Se eu houvesse protestado com mais veemência, se houvesse recusado a me casar,
ele não estaria agora na contingência em que se encontrava. Preciso salválo, separando
me dele!"
Lalitha deu um suspiro profundo e logo adormeceu.
Dois dias mais tarde sentiuse bem para descer; porém, antes teve de se encontrar
com a mulher das ervas. Era uma senhora simpática, que parecia terse exposto ao sol até
ficar da cor do bronze, e que tinha olhos azuis como miosótis. Ela encantouse ao constatar
o progresso da Lalitha.
— Mas ainda tem muito chão a percorrer, minha cara — declarou ela logo. —
Contudo, está no caminho certo, e a única coisa que precisa fazer agora é seguir minhas
instruções. — Ela sacudiu o dedo em frente do rosto de Lalitha, ameaçandoa: — E não
tente me tapear.
Lalitha continuou com o uso do óleo de loureiro, que cicatrizara tão bem suas
costas. A mulher receitoulhe outros cremes suaves para passar no corpo após o banho,
feitos à base da seiva de rímulas. Um chá de calaminta, e erva de Mercúrio, foi
recomendado para a cura das afecções da pele e do cérebro.
— A senhora me faz pensar que estou louca! — protestou Lalitha.
— Vossa senhoria deixou o cérebro faminto como também o corpo. Ele precisa ser
alimentado para recuperar energia. A calaminta vai ajudar. Deixo aqui um frasco e avise
me quando terminar.
Temendo se esquecer das instruções, Lalitha tomou nota de tudo.
Uma das recomendações da mulher foi que ela trocasse a loção do cabelo que vinha
usando por uma feita de caroços de pêssego.
— Fervaos com vinagre — ordenou a mulher a Nattie. — Felizmente há muitos
pêssegos nesta época do ano. Eles fazem o cabelo crescer e lhe dão um brilho lindo, como
o do próprio pêssego.
A mulher levou para Lalitha o mel produzido na casa dela, e aconselhoua que
comesse o favo também, tão nutritivo como o mel.
— Onde a senhora aprendeu isso tudo? — indagou Lalitha.
— Meu pai era botânico, e meu avô igualmente. Nicholas Culpeper foi um de meus
antepassados.
— Quem era ele?
— Um famoso médico e astrólogo. O primeiro homem a comunicar ao mundo o
poder das ervas no tratamento da saúde. Escreveu muitos livros sobre o assunto.
— Ignorava que houvesse algo escrito, explicando o emprego medicinal das ervas.
— Nicholas Culpeper dedicou sua vida ao estudo da astrologia e da medicina.
— Que sorte ter ele posto o resultado de suas investigações em livros!
— Durante a Guerra Civil, lutou pelo parlamentarismo, e foi ferido no peito—
informou a mulher. — Restabeleceuse felizmente pois, se tivesse morrido, teria levado
consigo toda sua ciência.
— E nossa perda seria imensa!
— É verdade! Enquanto ele exercia a medicina, encontrava tempo para descrever as
propriedades medicinais das ervas num livro que chamou de Compêndio Herbal.
— Por favor, posso ver esse livro algum dia?
— Claro, esse e outros que ele publicou. Venha visitarme que eu lhe mostrarei os
livros e, estando interessada, pode ver também minha horta, meu laboratório, e falar com
minhas abelhas.
— Falar com as abelhas! — exclamou Lalitha com espanto.
— Elas gostam de conversar com as pessoas que curam. Eu lhes contei tudo acerca
da senhora, expliquei o que esperava que o mágico mel produzido por elas fizesse. Minhas
abelhas nunca falham!
Assim que a mulher das ervas saiu, Nattie ajudou Lalitha a se vestir. Trouxelhe um
vestido novo, com mangas bufantes, bem apertadas no pulso, estilo muito em moda na
época. A saia era rodada, enfeitada com fitas em torno da bainha, evidenciando a origem
da toalete: Paris.
— É para mim? — perguntou Lalitha, incrédula.
— Sua Senhoria comprou vários vestidos em Londres para a senhora. Joguei fora os
trapos que Vossa Senhoria vestia quando aqui chegou.
Lalitha corou murmurando:
— Era só o que tinha!
— Pois bem, agora tem muito mais. Por ora, não quero que se canse examinando
todos os vestidos que a aguardam nos armários.
— Posso dar uma olhadela?
Nattie abriu então a porta de um dos guardaroupas e ela notou que havia lá mais
de uma dúzia de trajes de cores suaves, não iguais
às que Sophie usava, fortes, que iam muito bem com a beleza dourada de sua irmã.
"Como sabia ele que as cores suaves combinam melhor comigo?" Lalitha se
perguntou.
A roupa que ela vestiu naquele dia era de um azul pálido que acentuava o corado
de suas faces. Apesar de se sentir muito elegante, preocupavase com sua aparência
enquanto descia as escadas para ir ao encontro de lorde Rothwyn. Li se ele, depois de todo
seu esforço, se desapontasse ao vêla?
Um criado de libré abriulhe a porta de uma sala cheia de flores, com cortinas de
brocado. Em pé, junto á janela, estava lorde Rothwyn; virouse, encaroua por um
segundo, depois sorriu. Imediatamente Lalitha parou de ter medo, e foi confiante para
perto dele.
CAPÍTULO IV
Lalitha desceu as escadas, saltitante, acompanhada de um cãozinho de pêlo branco
e preto.
Cada dia que ela passara em Roth Park havia sido cheio de novas descobertas e de
alegria. Primeiro, visitou a casa toda, construída no reinado de Charles II. Muitas alas
foram acrescidas ao edifício principal por várias gerações de Rothwyn.
Custavase crer que uma construção tão sólida, tão imponente, pudesse ser
acolhedora, ter uma atmosfera íntima como a de uma casa comum.
Havia tesouros por toda parte: quadros fabulosos e tapeçarias valiosíssimas nas
paredes; móveis importados da França e Itália, obras de um artesanato ímpar.
Na verdade, Lalitha extasiavase com tudo que via, e ter o histórico desses tesouros
narrado por lorde Rothwyn consistia num prazer que ela jamais sonhara experimentar.
Gravadas em pedra acima da porta principal estavam as seguintes palavras:
"Esta casa foi construída por Inigo, primeiro lorde Rothwyn, não apenas com tijolos
e madeiras, mas com a mente, a imaginação e a alma. Foi erigida no ano de 1678 de Nosso
Senhor Jesus Cristo".
— Entendo bem o sentido dessas palavras — comentou Lalitha.
— Eu também — concordou lorde Rothwyn.
— É com esse espírito que o senhor constrói?
— É.
Houve uma pausa, e Lalitha teve ímpetos de lhe perguntar se, ao restaurála, ele
punha também a mente, a imaginação e a alma. Mas era tímida demais para fazer tal
indagação.
Lorde Rothwyn levoua depois à enorme biblioteca, linda, com o teto pintado de
várias cores. Milhares de livros davam às paredes o aspecto de uma colcha de retalhos.
— Posso... Posso... Ler alguns desses livros? — inquiriu Lalitha, fitando lorde
Rothwyn.
— São todos seus! — replicou ele.
— Mal posso acreditar. Passei estes últimos anos sedenta de livros, pois não tinha
permissão de ler.
— Livros não foram a única coisa que faltou a você, Lalitha.
Ela corou e apressouse em dizer:
— Não estou tão feia agora, não é mesmo?
— Nunca foi feia, apenas completamente negligenciada.
— Tento comer bastante, e bebo galões de leite! — Ela franziu o nariz e acrescentou:
— É um grande esforço, por que detesto leite.
— Eu também — confessou lorde Rothwyn. — Nattie sempre insistia que eu
bebesse tudo, até o fim da caneca, e você deve fazer o mesmo.
— Nattie é um amor, mas ao mesmo tempo enérgica.
— Por isso fiquei bemeducado — disse ele com ar de caçoada.
— Ela é muito orgulhosa do senhor, e crê que todas as suas boas qualidades são
obra dela.
— E são. O que me diz você de meus defeitos?
Olhava para Lalitha sorrindo sarcasticamente, e ela percebeu que se referia à crise
de fúria que tivera na noite do casamento.
— Acho que o senhor se assemelha muito a um seu famoso antepassado.
— Sir Hengist? Que sabe sobre ele?
— Li alguma coisa acerca de sir Hengist e do poema que foi escrito sobre o
temperamento impetuoso dele.
— Por isso me disse que amaldiçoar Sophie traria má sorte? Para mim ou para ela?
— Para ambos. O ódio maltrata também quem o sente.
— Vejo que devo ser cuidadoso quando ficar bravo em sua presença.
Lalitha fitouo um pouco receosa, e ele deduziu que a menina faminta, judiada, que
ele carregara para o quarto na primeira noite, não mudara como parecia superficialmente,
pois ainda escondia muito medo. Era como um animalzinho tratado com crueldade uma
vez, e que esperava pancada ao mínimo movimento das mãos de seu dono.
Outras coisas contribuíram para a felicidade de Lalitha, e a principal foi um
cachorrinho, um pequeno Cocker Spaniel que logo se afeiçoou a ela.
Lorde Rothwyn possuía vários e alguns dálmatas que o seguiam por toda parte, e
que balançavam a cauda assim que o viam, sempre prontos para passear. Mas o pequeno
Cocker fora para o lado de Lalitha no primeiro dia em que ela desceu.
— Royal está saudando você — observou lorde Rothwyn.
— Como é o nome dele? — perguntou Lalitha.
— Royalist, mas nós o apelidamos de Royal.
— É um amor. Tive certa vez um cachorro que eu amava muito, mas...
Lalitha não terminou a frase, e lorde Rothwyn concluiu pela expressão dos olhos
dela que o animal lhe fora tirado; outro sofrimento, que a mulher à qual chamava de "mãe"
lhe infligira.
Freqüentemente Lalitha esqueciase do papel que a madrasta a obrigara a
representar, fazendoa chamála de "mãe". E sentenças como: "Antes de mamãe morrer..."
surgiam nos lábios dela sem refletir, e sem que percebesse que aos poucos revelava a
veracidade de fatos de sua vida.
Numa certa manhã, lorde Rothwyn levoua para visitar a casa estilo rainha
Elisabeth que ele restaurara. Mostrou antes a Lalitha o desenho da casa como era quando
ele a descobrira: caindo aos pedaços, com o teto cheio de buracos. As janelas não tinham
vidros e muitos dos lindos tijolos haviam sido arrancados e usados na construção de
chiqueiros.
— Assim era a casa antes — explicou ele. — E, observando os alicerces, visualizei
como havia sido originalmente.
— É grande! — exclamou Lalitha.
— As casas destas redondezas são grandes. Não foram construídas apenas por
membros da nobreza, mas por burgueses ricos de Londres que consideravam o local
adequado para se ter uma casa de campo, bem perto da capital.
— Mas esta casa aqui pertenceu a um nobre, não?
— Sim, um aristocrata, lorde Hadley, que com certeza olharia com desprezo para
meus antepassados.
— Imagine se ele soubesse que um descendente de sir Hengist restaurou a casa
dele!
— Espero que, onde quer que esteja, aprove meu trabalho. Há uma coisa, contudo,
que preciso decifrar. Você me ajudará?
— Se eu puder, com muito prazer.
— Aguardei até que você pudesse ver a casa — disse ele. — Agora vamos verificar
se consegue realizar uma tarefa que considero difícil.
Lorde Rothwyn retirou de uma gaveta uma caixa de prata. Abriu a e Lalitha notou
que estava cheia de papel picado.
— Que é? — perguntou ela.
— Encontrei isto num armário atrás de um painel. Os ratos roeram grande parte da
papelada que julguei de início se tratar de algum documento.
— Oh, que pena!
— Quando olhei mais cuidadosamente vi que era parte de um poema. A história
relata que lorde Hadley escrevia sonetos. Aliás, quase todos os cavalheiros da corte da
rainha Elisabeth eram muito românticos e se expressavam em versos à Sua Majestade ou à
mulher amada. — Lorde Rothwyn sorriu. — Isso não significa que eram bons poetas;
contudo, davam prazer a quem lesse seus poemas.
— Especialmente à pessoa para a qual os dedicavam.
— O que quero que você faça, Lalitha, é que tente juntar estes fragmentos. Muitos
pedaços foram destruídos, mas seria interessante procurar saber o que ele escreveu.
— Acha que vou poder? De qualquer modo, estou muito honrada pelo fato de o
senhor me confiar coisa tão preciosa.
— Não se canse com esse trabalho. Quando sentir os olhos fatigados, pare
imediatamente. Por sinal, seus olhos me parecem bem diferentes do que eram antes.
— Costurava até tarde todas as noites, à luz de uma única vela — explicoulhe
Lalitha. — Sou boa em bordado. Quando Nattie o permitir, bordarei monogramas em seus
lenços.
— Agora é minha vez de me sentir honrado, Lalitha. Não obstante, não faça nada
até se recuperar totalmente. Promete?
— Prometo, ainda achando que o senhor e Nattie estão me mimando demais. Vou
ficar gorda, preguiçosa e inútil para tudo, exceto para me recostar em almofadas de cetim.
— É o que gostaria de ver você fazendo — declarou lorde Rothwyn com
sinceridade.
Lalitha encarouo, os olhos de ambos se encontraram, e ela sentiu um inexplicável
nó na garganta. Lorde Rothwyn virou o rosto para o outro lado, pôs a caixa de prata na
mão dela e disse:
— Vou ficar esperando com impaciência para ver o que lorde Hadley escreveu para
alguma beldade da era elisabetana.
Lalitha ardia em curiosidade para saber o que continha o soneto. Na manhã
seguinte sentouse para decifrálo. Porém Nattie forçoua a ir passear pelo jardim. v
— O dia está lindo, milady. Vá tomar um pouco de sol e deixe esse trabalho para os
dias de chuva. Além do mais, Sua Senhoria a aguarda.
Foi o suficiente para apressa; Lalitha a descer. Ela pôs um vestido novo, lilás, cor
que nunca usara antes. Estava ansiosa para ver o que lorde Rothwyn achava daquela
tonalidade para sua cútis.
"Eu sou como as casas que ele restaura" pensou. "Dá mesma maneira que escolhe os
tapetes e as cortinas, escolhe meus vestidos."
Havia algo de impessoal nessa idéia, mas não deixou de dar satisfação a Lalitha.
Finalmente alguém se interessava por ela.
Encaminhouse por um corredor que levava ao escritório, lugar onde em geral lorde
Rothwyn ficava de manhã. Chegava à porta da sala quando um jovem saía de lá, Ele
cobria o rosto com as mãos e estava muito pálido. Lalitha aproximouse para ajudálo.
Então, para grande surpresa sua, constatou que o rapaz chorava.
— Que posso fazer por você? — indagou ela.
— Ninguém pode fazer nada por mim! — respondeu ele com o rosto banhado em
lágrimas.
Havia um que de patético e ao mesmo tempo embaraçoso na imagem de um
homem chorando.
— O que houve, afinal? — interrogou Lalitha.
— A culpa foi minha. Eu sabia que estava errado, mas tive medo de confessar
minha falta.
— Venha cá — confiscouo Lalitha, dirigindose a uma sala vazia. — Conteme o
que aconteceu.
— Tenho vergonha de mim mesmo, madame. Por favor, esqueçase de que me viu.
— Não há razão para tal, quero auxiliálo!
— Já lhe disse, madame, ninguém pode me ajudar. Sua Senhoria está furioso, e com
razão.
— Mas por quê?
— Coloquei uma das colunas da fundação de uma casa em lugar errado. Não
prestei atenção suficiente na planta, acho. Além disso, estava em dúvida, mas receei fazer
perguntas a ele.
— E Sua Senhoria descobriu sua falha, não foi?
— Foi. E me dispensou. Eu sentia tanto orgulho em poder trabalhar para ele. Tentei
acertar, só Deus sabe como tentei acertar. Porém, errei.
— Entendo você muito bem. Isso às vezes sucede. Espere por mim aqui — pediu
Lalitha. — Não vá embora antes que eu volte.
Envergonhado de sua atitude, o jovem declarou:
— Perdoeme, madame, não devia perturbála com meu problema. Prefiro retirar
me já... e com dignidade.
— Não — protestou Lalitha. — Aguarde minha volta!
— Se for o que a senhora deseja... Mas não entendo a razão...
— Espere! — insistiu Lalitha.
Respirando fundo, ela entrou no escritório onde se encontrava lorde Rothwyn.
Sentado numa escrivaninha de tampo de couro, examinava uma série de papéis: plantas
de casa, com certeza. Tremendo um pouco, Lalitha percebeu que ele estava zangado, pois
tinha a mesma expressão fisionômica da noite do casamento. Ao ver Lalitha, exclamou:
— Oh, é você! — A ruga da testa dele desapareceu ao erguerse para recebêla.
Notando o embaraço de Lalitha, acrescentou: — O que a aborrece?
— Tenho algo a lhe dizer. Mas temo que seja atrevimento de minha parte.
— Nada que você possa me dizer, Lalitha, eu consideraria atrevimento. Sentese,
por favor, e fale.
Ela sentouse na beirada de uma poltrona e permaneceu em silêncio.
— Estou esperando! — observou ele com voz amável.
— Como já deve ter percebido, sou covarde e tenho medo de tudo. E sei muito bem
o que uma pessoa pode fazer, simplesmente porque se encontra dominada pelo receio de
falhar.
— Imagino que esteve falando com Jameson, o rapaz que acabei de despedir.
— Entendo como ele deve estar se sentindo, pois Vossa Senhoria pode ser
assustador... às vezes.
— E você pretende me culpar pela incompetência daquele jovem?
— Ele teve medo... De enfrentar o senhor... Como eu também tive.
— Contudo, você está agindo agora com muita coragem, Lalitha, intercedendo por
ele.
— É que sinto pena do pobre moço. Lamento muito o que houve, mas sei bem que
quando uma pessoa é forte e autoconfiante, não entende a fraqueza dos outros, de pessoas
como eu, por exemplo.
— Você realmente pensa que o medo e a timidez são desculpas para um trabalho
mal feito?
— Qualquer um pode errar de vez em quando.
— Muito bem, Lalitha. Vou ver o que posso fazer em relação a esse caso.
Lorde Rothwyn fitoua. Ela estava com os olhos baixos, e os cílios escuros, bem
crescidos agora, faziam contraste com sua pele alva.
— Confesso que é atrevimento meu! — disse Lalitha num sussurro.
— Não considero você tão tímida e medrosa como pensa. Mas, não desejando
aborrecêla, vou falar com Jameson. Onde se encontra ele?
— Na sala ao lado.
— Fique aqui!
Lorde Rothwyn saiu do escritório e fechou a porta. Lalitha ficou rezando para que
tudo saísse bem.
Ninguém poderia entender, pensava ela, o horrível, insidioso medo que, tal qual
uma serpente venenosa, podia percorrer o corpo de uma pessoa, a ponto de fazêla agir
erradamente; e só por não ter condições de pensar com clareza. Mesmo depois de vários
dias na casa de lorde Rothwyn, ela mal podia acreditar que acordava de manhã sem o
pavor de que iria muito breve ser espancada. Lembrouse de que ficava sempre alerta,
procurando ouvir a voz de sua madrasta, tremendo de medo ao pensar que talvez
houvesse feito algo errado, e que fosse ser punida por isso. Não conseguia se libertar do
medo, na casa da madrasta, do momento que se levantava à hora de dormir.
Lorde Rothwyn voltou ao escritório e Lalitha fitouo apreensiva.
— Readmiti Jameson — informou ele. — Está contente agora?
— Oh, muito, muito contente!
— Contudo sempre lhe disse Lalitha, que espero perfeição.
— Eu sei, mas aprecia o belo também, e o belo, como no caso do nariz de Cleópatra
nem sempre é simetricamente perfeito.
— Tem razão! — concordou lorde Rothwyn.
— E a felicidade... é alguma coisa sobre a qual não se pode fazer um planejamento
muito rígido — acrescentou Lalitha com certa hesitação.
Lorde Rothwyn riu muito e comentou:
— Já sei que você vai modificar todas as plantas das casas nas quais pus tanto tempo
e trabalho. Não obstante, não posso refutar seus argumentos. Quem lhe ensinou tudo isso?
— Talvez a vida, o sofrimento destes últimos anos. Aprendi que, o que todos
procuram, é a felicidade; e pensam que ela está no sucesso, no dinheiro, na posição social!
Pode ser verdade para alguns, mas para muito poucos. Pessoas normais vão à cata do
amor, e só conseguem encontrálo onde houver segurança, e não onde existir o pavor; é
impossível haver felicidade... junto do medo.
— Deixeme fazerlhe uma pergunta, Lalitha. Tem sido feliz aqui?
— Muitíssimo. Sinto uma felicidade impossível de descrever. É como se o senhor
tivesse me arrancado de um calabouço escuro, úmido e sem esperança, para a luz do sol.
— Obrigado — replicou lorde Rothwyn suavemente.
Para desviar daquele assunto íntimo, Lalitha perguntou:
— O senhor vai me levar esta tarde, conforme prometeu, para visitar outras casas?
— Pretendia fazer isso, mas será impossível. Vamos deixar nosso programa para
amanhã. Havia me esquecido de um compromisso inadiável, em Londres. Sinto não poder
cumprir minha promessa, Lalitha. É que um amigo meu, Henry Grey Bennet, precisa falar
comigo. Ele é membro do parlamento britânico, encarregado de assuntos referentes a
crimes contra os direitos humanos. Trabalha agora no extermínio do tráfico de mulheres
brancas, enviadas à força diariamente para outros países, algumas delas ainda
adolescentes.
— Enviadas para fazer o quê?
— São negociadas como escravas. Há lugares como Amsterdam onde moças
inglesas alcançam altos preços no mercado, e são vendidas como gado. Umas seguem
direto para o Marrocos, Turquia e Egito.
— E essas mulheres não têm meios de reagir?
— Nenhum! Várias são seqüestradas na rua. Há um grupo de pessoas treinadas que
encontram tais moças quando elas vêm do interior para Londres, e fazemlhes promessas
tentadoras.
— Essas jovens falam com estranhos?
— Nunca estiveram em Londres antes, e se alguém lhes oferece hospedagem e um
emprego lucrativo, concordam facilmente. E nunca mais se ouve falar delas!
— Que coisa horrível! — exclamou Lalitha.
— Esse tráfico assumiu proporções alarmantes, e está mais do que na hora de se
tomar alguma providência. Atualmente a lei é muito fraca, e as pessoas que operam no
chamado "mercado branco de mulheres", raramente são levadas perante o tribunal.
— E o senhor crê na possibilidade de que se aprove uma lei para evitar isso?
—' O projeto de lei apresentado por meu amigo já foi aceito na Câmara dos
Comuns, e esta tarde vai ser submetido à Câmara dos Lordes. Meu amigo não acredita
muito na aceitação fácil do que sugerem por isso me pediu que eu fosse a Londres para lhe
dar um pouco de força com meu apoio.
— O senhor deve ir! É importante, muito importante! É incrível o que acontece com
essas pobres moças. São... Maltratadas?
— Se não fazem o que se requer delas, são espancadas ou drogadas até a submissão.
— Então, vamos rezar para que a lei seja aprovada — declarou Lalitha.
— Farei o possível para isso. Vou a Londres já.
— Volta hoje mesmo?
— Espero regressar esta tarde, talvez na hora do jantar; porém, hoje sem falta.
Podemos jantar juntos!
— Ótimo! — exclamou Lalitha. — Porei um de meus vestidos novos.
— Faremos desse jantar uma celebração para comemorar seu restabelecimento.
— O senhor está usando uma desculpa para me fazer comer. Estou ficando tão
gorda que muito breve não conseguirei entrar em meus lindos vestidos.
— Nesse caso, comprarei outros para você, Lalitha.
— Não gostaria que Vossa Senhoria... Gastasse tanto... Comigo.
Lorde Rothwyn sorriu ao replicar:
— Juro a você que o que gastei não vai me levar à falência.
— O senhor já me deu tanto... Não sei como lhe agradecer.
— Falaremos sobre o assunto no jantar, está bem? Deixo Royal e os outros cachorros
tomando conta de você.
— Eles farão isso até que o senhor volte.
Assim que lorde Rothwyn partiu, Lalitha achou que a casa ficara vazia. Com um ar
de abandono. Foi com os cachorros ao jardim e admirou os gramados aveludados, os
enormes canteiros de flores multicoloridas, o que a fez lembrarse dos quadros da galeria
da mansão. Foi apreciar também o aquário que ficava na outra extremidade do jardim,
cercado por um muro de tijolos vermelhos.
Tudo era lindíssimo, o sol aquecia o ambiente, porém ela contava os minutos para o
retorno de lorde Rothwyn à casa.
"É que preciso saber se a lei passou no parlamento", pensava ela.
Todavia, não ignorava a verdade. Queria ter lorde Rothwyn ao seu lado, queria
conversar com ele sobre temas que interessavam a ambos.
Receando cansarse demais, entrou e se ocupou da decifração das frases que lorde
Hadley escrevera trezentos anos passados. Era surpreendente observar como ainda
sobrara tanto daquilo, apesar da destruição causada pelos ratos, pelos insetos, e pelo
tempo. Felizmente ele escrevera num pergaminho grosso e de boa qualidade, numa
caligrafia firme e legível. Mas os efes e os erres eram quase iguais, e Lalitha necessitava de
tempo e paciência para descobrir o que fora posto no papel.
Trabalhava com afinco quando um lacaio abriu a porta da sala e anunciou:
— Miss Studley deseja vêla, milady.
Lalitha deu um grito e, olhando para a porta, viu Sophie. Estava linda, vestindo um
traje de viagem de seda azul, e tendo na cabeça um pequeno chapéu enfeitado com botões
de rosa. Sorria para Lalitha, que começou a tremer de medo.
— Está surpreendida com minha visita? — indagou Sophie.
— S... sim.
— Desejo falar com você, e tinha certeza de encontrála sozinha esta tarde. Por isso
vim.
— Como soube... Que eu estava só?
— Os jornais desta manhã anunciaram que lorde Rothwyn falaria á tarde na Câmara
dos Lordes. Tal fato me deu a oportunidade de vir aqui para conversa com você a sós.
Lalitha não respondeu e Sophie continuou:
— Que sala linda! Posso me sentar?
— Claro! Desculpe, mas sua visita me surpreendeu.
— Achei que você teria interesse em saber como nós estamos. Mas não se assuste,
Lalitha, mamãe não está zangada com você.
— Não?
— Não. Ela entendeu que não poderia agir de outra forma. Sabemos que se casou
com lorde Rothwyn, pois ele me comunicou através de uma carta.
— Lorde Rothwyn escreveu para você?
— Escreveu. Mas, por estranho que pareça, a notícia do casamento não foi publicada
nos jornais, portanto, ninguém ficou sabendo do evento, exceto mamãe e eu. Isso me faz
concluir que sua estada aqui é temporária. Estou certa?
— Não... Sei.
— Deixeme confessarlhe a verdade, Lalitha. Eu amo lorde Rothwyn, sempre o
amei! Quando o perdi, acreditei ter perdido um pedaço de mim mesma!
Lalitha encarou Sophie atônita, e protestou:
— Mas você nunca... O amou. Disse muitas vezes que ia se casar com ele só porque
era rico.
— Suponho que, por acanhamento, não lhe revelei o quanto lorde Rothwyn
significava para mim. E, na verdade, foi só depois que você saiu com o recado para ele que
eu caí em mim, e constatei que o amava muito.
Lalitha não podia crer que Sophie realmente mudara de idéia.
— E que houve... Com o Sr. Verton? — inquiriu ela.
— Julius nunca recebeu a nota que dirigi a ele. Continua a meus pés, suplicando
para que nos casemos.
— E por que razão não está ainda casada com ele? O casamento havia sido marcado
para duas semanas atrás.
— Não foi o duque que morreu, mas uma tia de Julius, mulher que ele respeitava
muito. Por isso nosso casamento teve de ser adiado para daqui a dois meses.
— Oh, entendo! E, nesse meio tempo, você chegou á conclusão de que ama... lorde
Rothwyn.
— Isso mesmo! — concordou Sophie. — E lhe peço, Lalitha, que me devolva o que
sempre me pertenceu.
— Não compreendo...
— É muito simples. Lorde Rothwyn me ama, como você deve saber.
— Ele ficou... Furioso com o que você fez. Por esse motivo, me forçou ao casamento.
— Por vingança! — Sophie sorriu. — Ele tornou o fato claro na carta que me
escreveu! Ele me adora! Me venera! Um amor assim não muda da noite para o dia.
— Não... Suponho que não...
— Arquitetei um plano muito sensato, com a aprovação de mamãe.
— E qual é ele? — Lalitha estava apreensiva.
— Você deve sair desta casa imediatamente. Vá morar com sua antiga governanta.
Mamãe lhe mandou de presente vinte libras. Pense só nisso, Lalitha, vinte libras! É muito
dinheiro, não acha?
— Porém não posso sair... Desse jeito — protestou Lalitha. — Sua Senhorita tem sido
muito bondoso... Tem feito tanto por mim...
— Sei exatamente o que ele fez, não precisa enumerar. — Pela primeira vez a voz de
Sophie tornouse dura.
— Sabe? Como sabe?
— Essas notícias correm! Há pessoas sempre prontas a relatálas.
— Referese aos criados, Sophie?
— Não importam os detalhes. O certo é que você não pode impor sua presença
nesta casa para sempre. Acha isso justo?
— Não... Não.
— Portanto, em vez de embaraçar lorde Rothwyn pendurando se nele eternamente,
sugiro que desapareça daqui, e já.
— Mas gostaria... De dizer adeus a ele... De agradecerlhe.
— Para quê? Lorde Rothwyn usoua apenas para me magoar. Você foi um
instrumento de vingança, nada mais. Se eu tivesse mandado á igreja uma criada em lugar
de você, ele teria feito a mesma coisa. Suponho que não queira criar um caso para lorde
Rotwyn, forçandoo a despedila como se fosse uma simples empregada. Imagino que
prefira se portar como uma lady. Por isso, mamãe lhe mandou este dinheiro, para que
você possa sair desta casa com dignidade.
— O que quer... Então... Que eu faça?
— Junte alguma roupa, apenas o que possa ser carregada numa trouxa escondida
sob sua capa, para que não chame atenção de ninguém. Minha carruagem esperanos lá
fora.
— E... depois?
— Levoa até a encruzilhada mais próxima onde passam todas as diligências que
vão a Londres. Assim que você chegar a Charing Cross, tome outra diligência para
Norfolk. Há duas por dia e, se se apressar, poderá seguir na da noite. Uma vez em
Norfolk, acredito que ache sua antiga governanta com facilidade. Mamãe disse que você
sabe onde ela mora.
— Sim... sei.
— Então, por que esse ar preocupado?
— É que, não estou certa de estar agindo bem.
— Quando lorde Rothwyn souber que eu vim para entregar a ele meu coração,
disposta a ser sua esposa, não vai querer se incomodar com você.
— Não... isso é verdade. Suponho que esteja com a razão, Sophie.
— Vou ao quarto com você para ajudála a se preparar. Não deixe recado com os
criados, nem escreva nada. Não faça as coisas mais difíceis para lorde Rothwyn do que já
estão. Seria natural que ele se sentisse na obrigação de segurála aqui.
— Mas nós estamos... Casados!
Sophie deu uma gargalhada e comentou:
— Um casamento que pode ser apagado da memória do ministro da igreja com
algumas libras. É fácil destruir a evidência do livro de registro de casamentos.
Lalitha fitou Sophie horrorizada, e gritou:
— Garanto que você... já fez isso!
— Sim, já fiz. E foi muito fácil, na verdade. Não havia ninguém na igreja quando
entrei na sacristia, e o livro de registros achavase aberto sobre uma mesa. Rasguei a
página que me interessava. Além do mais, pessoa alguma acreditará que você se casou
com um homem de coração partido por ter sido abandonado pela namorada.
Lalitha fechou os olhos, desesperada. Mais uma vez Sophie agia segundo sua
conveniência, e não havia nada que ela pudesse fazer.
Ambas foram para o quarto. Àquela hora da tarde, os criados estavam todos
recolhidos, incluindo Nattie. Sophie abriu as portas dos guardaroupas e exclamou:
— Sua Senhoria comprou muitos vestidos para você! E lindos! É uma sorte termos o
mesmo corpo.
— Não creio que você possa usar minhas roupas, sou muito mais magra.
— Nesse caso, vamos jogálas fora. Você não pode levar nada consigo, despertaria
suspeitas.
— Sim... Entendo.
Lalitha apanhou uma camisola e algumas roupas. Colocou tudo sobre um xale
estendido em cima da cama.
— Isso é mais que suficiente — declarou Sophie.
Lalitha amarrou as pontas do xale, fazendo uma pequena trouxa, e vestiu a capa de
viagem.
Sophie abriu o armário dos chapéus.
— São maravilhosos! — observou ela.
— Talvez eu possa usar um deles — sugeriu Lalitha.
— Para quê? Ponha o capuz na cabeça. Assim, os criados não vão achar nada
estranho; pensarão que vai apenas dar um passeio comigo.
Lalitha percebeu que Sophie falava isso por desejar ficar com todos os chapéus.
Contudo, não protestou. Enfim, morando com sua velha governanta em Norfolk, não teria
oportunidade de usar chapéus elegantes, comprados em Bond Street.
— Aqui está seu dinheiro! — declarou Sophie rudemente, passando para as mãos
dela uma pequena carteira que Lalitha pegou com relutância.
Gostaria de poder dizer que não queria nada de Sophie ou da madrasta, mas não
desejava depender exclusivamente de sua velha governanta, que não possuía muito.
Ela pôs a carteira em sua bolsa de cetim, apanhou um lenço e um par de luvas de
camurça. Sophie examinoua.
— Você tem muito melhor aparência agora, Lalitha. Encontrará emprego rápido.
— Acho... que sim. Você me faz lembrar que seria interessante carregar comigo
agulhas e linha de bordar.
Dito isso, ela apanhou todo o material de costura numa gaveta, e colocouo também
na bolsa.
— Venha! — gritou Sophie impaciente. — Se vai levar tudo de que precisa,
ficaremos aqui até amanhã.
Lalitha lançou um último olhar ao quarto onde fora tão feliz. Parecialhe um local
de segurança e paz. De repente, sentiuse desesperada. Voltava para o mundo ameaçador,
deixando lorde Rothwyn para sempre!
— Depressa! — Sophie insistia. — Se perder a diligência, terá de passar a noite em
Londres.
Lalitha apavorouse. E se encontrasse lá uma daquelas pessoas encarregadas de
arrebanhar moças para enviálas como escravas a outros países? O pânico tomou conta
dela, não queria mais sair. Talvez fosse prudente chamar Nattie e contarlhe o que se
passava. Mas, seria muita humilhação. Sophie estava certa, lorde Rothwyn não a amava.
Sem uma palavra, acompanhou Sophie. No hall, o mordomo as viu e disse a
Lalitha:
— Vai dar um passeio, milady?
— Sim, um pequeno passeio — replicou Sophie adiantandose a Lalitha. —
Voltaremos logo.
— Muito bem, miss. — E depois, dirigindose a Lalitha: — Vai levar Royal?
Só então Lalitha se deu conta de que o cãozinho estava a seus pés. Pegouo nos
braços. Ela amava aquele cachorro, e era mais uma coisa difícil de abandonar. Beijou com
carinho a cabeça se: dosa do animal, e disse ao mordomo:
— Leveo a Nattie.
Royal ganiu, protestando contra o fato de ser abandonado por sua dona.
Na rua, o cavalariço abriu a porta da carruagem, pôs uma manta sobre os joelhos
das duas mulheres, e os cavalos se puseram em movimento.
"Voume embora", pensou Lalitha, sentindo uma mágoa profunda. "Nunca mais
voltarei, nunca mais o verei!"
Olhou para trás. O sol da tarde incidia em cheio sobre as paredes da mansão, a casa
que fora seu porto seguro, que a abrigara com tanto carinho! Agora, partia.
— Adeus... Meu amor! — sussurrou ela.
Quando as palavras lhe saíram dos lábios, percebeu que não era à casa que ela dizia
"adeus", mas a seu proprietário.
CAPÍTULO V
Quando lorde Rothwyn retirouse da Câmara dos Lordes, seu amigo Henry Gray
Bennet o aguardava à porta.
— Sinto muito, Henry.
— Esperava que isso acontecesse — respondeu o Sr. Bennet. — Contudo, tentarei de
novo, não tenha dúvida. Tentarei até conseguir que essa lei passe no congresso.
— E eu lhe darei todo o apoio possível — prometeu lorde Rothwyn.
— Você já fez muito. Seu discurso foi excelente.
— Obrigado.
— Onde podemos nos consolar de nossa decepção? Talvez no clube White?
Lorde Rothwyn teve um momento de hesitação. Estava quase aceitando o convite
quando teve um pressentimento de que deveria voltar a Roth Park. Não sabia explicar
bem o que sentia, mas achou que precisava retornar com urgência.
— Perdoeme, Henry, fica para outra vez. Vim até Londres somente para atender
seu pedido, mas agora tenho de voltar.
— É estranho você permanecer no campo nesta época do ano. Perdeu até as corridas
de Ascot.
Lorde Rothwyn não respondeu. Foi imediatamente para o local onde se encontrava
sua carruagem. Assim que entrou no veículo, pareceulhe rude, estando em Londres, não
fazer uma visita ao príncipe regente.
Este viajara de Brighton para a capital a fim de assistir ao batizado da filha do
duque e da duquesa de Kent, Alexandrina Victoria.
Lorde Rothwyn sabia que Sua Alteza Real consideraria grande grosseria se ele,
estando em Londres, não fosse visitálo.
O príncipe regente desejava discutir com lorde Rothwyn sobre as reformas do
palácio real de Brighton, que ele transformara num pavilhão indiano.
A própria rainha, entusiasmada com as idéias do filho, contribuíra com cinqüenta
mil libras de seu próprio bolso para as alterações necessárias, amenizando em parte as
críticas que tal empreendimento vinha causando. Mas, apesar do auxílio dado pela rainha,
todo o trabalho de restauração havia custado uma fortuna aos cofres públicos.
Os enormes candelabros no formato de flores, os biombos chineses da sala de
música, laqueados de dourado e vermelho, e a decoração luxuosa da sala de banquetes
aumentaram aquela já fabulosa despesa.
Lorde Rothwyn sabia que trinta e três mil libras haviam sido gastas no ano anterior,
e que mais ou menos quarenta mil seriam necessárias no ano corrente.
Porém, ele gostava do regente como homem e admirava o que ele tentava criar, com
seu espírito de fantasia e exuberante romantismo.
— Todos me criticam e caçoam do pavilhão — Sua Alteza Real dissera a lorde
Rothwyn por ocasião de uma visita deste a Brighton.
— A posteridade julgará seus atos e admirará o progresso introduzido por Vossa
Alteza Real neste país — respondera lorde Rothwyn. — Algum dia, o Pavilhão Real será
considerado o maior empreendimento arquitetônico de Brighton.
Contudo, apesar de admitir que uma visita ao regente seria recomendável naquele
instante, lorde Rothwyn tomou o caminho de Roth Park. Ele mesmo conduzia os cavalos, e
com habilidade ímpar. O cavalariço, sentado no banco traseiro, observava com satisfação
que todas as cabeças se viravam para apreciar seu amo, por onde quer que passassem.
Era de fato impossível não prestar atenção em lorde Rothwyn. Atraente, ele tinha
uma presença marcante; e não se podia deixar de pôr em destaque, também, a qualidade
dos cavalos que puxavam a carruagem aberta.
Em pouco tempo as casas desapareceram e eles se encontraram em pleno campo.
Os animais galopavam ao longo da estrada que
seguia para o norte, através de Barnet e Potters Bar, chegando finalmente ao vale
onde ficava Roth Park.
A enorme mansão apresentavase magnífica ao pôrdosol, e os tijolos à vista
brilhavam como gemas preciosas. Uma bandeira tremulava no alto do telhado e, abaixo,
no lago prateado, cisnes brancos moviamse com graça.
Como sempre, ao ver sua casa, lorde Rothwyn sentiu orgulho, não apenas por ser o
proprietário, mas porque era descendente de uma longa estirpe de homens inteligentes e
criativos.
Ele parou à porta e virouse para o cavalariço com um sorriso:
— Cobrimos a distância de Londres até aqui melhor que nunca, não, Ned?
— Três minutos mais rápido que da última vez, milorde.
— Muito bom, Ned.
— Bom mesmo, milorde.
Lorde Rothwyn subiu o lance de escadas de pedra e entregou ao mordomo que o
aguardava o chapéu e as luvas.
— Há uma senhora à sua espera no salão prateado, milorde — informouo o
mordomo.
— Uma senhora?
— Uma miss Studley, milorde.
Lorde Rothwyn de início ficou imóvel. Depois, com uma ruga na testa, dirigiuse
para o hall. Um lacaio abriulhe a porta do salão e ele viu logo Sophie, em pé perto da
janela. Os raios do sol iluminavamlhe os cabelos dourados e punham em destaque sua
pele alva e rosada, os olhos azuis, e o clássico contorno de seus lábios. Ela deu um grito de
alegria e foi ao encontro dele.
— Inigo!
— Que faz você aqui? — A indagação era rude e abrupta.
— Há necessidade dessa pergunta? — Ela estendeu os braços para lorde Rothwyn e
continuou: — Tive de vir, Inigo, tive de vir!
— Posso saber o que quer dizer com "tive de vir"? — disse ele, afastandose da
moça. — Não a convidei.
— Sei disso, mas não podia prosseguir vivendo sem você.
— Não temos nada a nos dizer — declarou ele. — Nada na verdade!
— Mas eu tenho muito! Eu te amo, Inigo! Só há pouco descobri o quanto te amo, e
como me é impossível viver longe de você!
— Que foi que provocou essa esfuziante paixão? A circunstância de Verton ter
viajado para a França?
Lorde Rothwyn notou uma mudança súbita de expressão nos olhos de Sophie,
indicativa de que se surpreendia por ele saber que Julius saíra da Inglaterra. Todavia, o
tom de voz dela permaneceu imutável.
— Cometi um erro, Inigo, ao mandar Lalitha ao seu encontro naquela noite. Foi
culpa de mamãe. Sabe como ela é!
— Então, foi sua mãe que a forçou a abandonarme na última hora, não?
— Foi, foi, foi mamãe! Ela é muito ditatorial, e eu não pude desobedecêla. Amo
você, Inigo, e procurei convencêla disso; sem sucesso, porém.
— Você é boa atriz, Sophie, mas não tão boa como imagina. Sei muito bem por que
veio aqui hoje. Verton contou a todos o que você fez, e sua reputação está perdida no meio
social londrino, e para sempre.
— Não creio! Não obstante, só o que é importante agora é que eu te amo!
— Mesmo não sendo eu um duque? — indagou lorde Rothwyn sarcasticamente.
— Nunca desejei me casar com Julius. Mamãe quis forçar aquele casamento e,
enquanto ele estava em Londres, eu não podia me aproximar de você. Agora que ele
partiu, as coisas são diferentes.
— Não vê que é tarde demais para mudar de idéia? Estou casado. — Ele fez uma
pausa e após acrescentou: — Já viu Lalitha? Que disse a ela?
— Lalitha foi compreensiva e não vai pôr obstáculos a meus planos.
— Planos? Que planos? Não quero que você aborreça Lalitha.
Ato contínuo, lorde Rothwyn estendeu a mão para tocar a sineta. Adivinhando a
intenção dele, Sophie falou depressa:
— Não mande chamar Lalitha, ela partiu.
— Partiu? Que quer dizer com isso?
— Conteilhe que o amava — declarou Sophie. — Ela aceitou minha explicação e
desapareceu de sua vida. De qualquer maneira, você se casou com Lalitha por vingança,
para me punir, não foi?
— Lalitha concordou em desaparecer de minha vida? Mas como? Para onde foi ela?
— Não vai incomodálo nunca mais — respondeu Sophie. — Fiz todos os arranjos
para o futuro, você não precisa vêla de novo.
— Para onde foi Lalitha? — insistia lorde Rothwyn,.
— Não importa saber! Você não anunciou seu casamento nos jornais, portanto,
ninguém em Londres sabe o que houve. Estou pronta a me casar a qualquer momento,
amanhã ou depois. Assim, poderemos ficar juntos como sempre você desejou.
O entusiasmo de Sophie decrescia ao perceber a expressão de ódio no olhar de
lorde Rothwyn.
— E você acredita, Sophie, que eu a tocaria e, pior ainda, que me casaria com você,
depois do modo cruel como Lalitha foi tratada em sua casa?
— Isso não tem nada a ver comigo e, se Lalitha lhe contou um monte de mentiras,
não deve dar ouvidos a ela. Lalitha é uma mentirosa, e minha mãe cuidava dela por mera
caridade.
— Para onde foi Lalitha, Sophie?
— Por que está tão interessado em saber? Ela não é ninguém, apenas uma garota
feia e doentia! Estou pronta a me entregar a você, Inigo; pode querer mais?
— Você me enoja, Sophie. E, se não me contar para onde foi Lalitha, arrancarei a
verdade à força. Eu a espancarei da mesma maneira que sua mãe espancou aquela pobre
menina.
Ele falou tão ferozmente que Sophie deu alguns passos para trás e protestou:
— Você deve estar louco para falar assim comigo!
— Falarei ainda com mais violência, se não responder à minha pergunta! Onde está
Lalitha? Será que vou precisar obter essa resposta à força?
Ele avançou para Sophie que se assustou e disse:
— Não me toque! Vou lhe contar!
— Muito bem, então fale depressa!
— Dei dinheiro para que ela fosse a Norfolk. Não sei exatamente onde se encontra
agora, mas deixeia na diligência.
— Na encruzilhada da estrada?
— Isso mesmo.
— É tudo que preciso saber — declarou ele, encaminhandose para a porta. Antes de
sair, ordenou: — Saia de minha casa já! Se a encontrar aqui na volta, mandarei que os
criados a ponham na rua!
Ele retirouse do salão, batendo a porta com violência, e foi direto à estrebaria.
— Prepare meu coche imediatamente — disse ele ao cavalariço.
— Pois não, milorde.
Meia dúzia de empregados correu para atender lorde Rothwyn que esperava com
impaciência. Menos de dez minutos mais tarde, o coche estava pronto, atrelado a dois
animais velozes. Lorde Rothwyn pulou para o assento dianteiro, e os cavalos já se
movimentavam quando Ned acomodouse no banco de trás.
Numa velocidade incrível, lorde Rothwyn alcançou a encruzilhada, pondo de
encontro de várias estradas.
— Por qual dessas vias passa a diligência que segue para Londres? — indagou ele
ao cavalariço.
— Pela da esquerda, milorde.
Lorde Rothwyn tomou a direção indicada e, com tanta velocidade, que Ned muitas
vezes teve de se segurar para não ser cuspido do veículo.
Estavam já a alguns quilômetros de Londres, quando, à frente deles, divisaram uma
diligência superlotada, não somente de passageiros, mas de bagagem. Havia todo tipo de
baús no teto do carro, incluindo engradados de galinhas, e até um cabrito que berrava
dentro de um saco.
Sendo a estrada estreita naquele local, lorde Rothwyn teve alguma dificuldade para
ultrapassar a diligência. Enfim, quando o fez, pôs o coche no meio da via obrigandoa a
parar.
— Que pretende fazer? — gritou o cocheiro, homem truculento e bastante irritado.
— Sua Senhoria deve estar lá dentro — disse lorde Rothwyn ao cavalariço. — Vá
chamála,
— Pois não, milorde.
Ned desceu e encaminhouse para a diligência, abrindo a pesada porta, e não
prestando atenção aos gritos do cocheiro e de seu ajudante.
Apertada entre bem nutridos camponeses, crianças, um padre e dois caixeiros
viajantes, ele viu Lalitha, sentada com a cabeça inclinada, o capuz até o nariz para que
ninguém visse as lágrimas.
Quando Lalitha e Sophie passaram pelos majestosos portões de Roth Park e
entraram em plena estrada, Lalitha se convencera de que deixava para trás o homem que
amava. Ela o amava, sim, e desde o instante em que ele a beijara na igreja acreditando ser
ela Sophie. Ela amava, embora temendoo, o homem que a carregara para o quarto no dia
de sua chegada a Roth Park.
Porém, não era apenas o aspecto físico de lorde Rothwyn que a atraía; havia algo
mais, algo que ela não conseguia definir. Parecia existir dentro dela um instinto que lhe
dizia ser aquele o homem de sua vida. E, quando sozinha no quarto da mansão, ela
sempre sentia que tudo, os móveis, os quadros era como se fosse ele em pessoa. Da mesma
forma que os antepassados de Roth Park haviam deixado na casa um pouco do coração, da
mente, da alma, lorde Rothwyn imprimia em cada coisa sua personalidade.
Conversando com ela, fora habitualmente gentil, de uma gentileza que Lalitha
jamais esperara de um homem, muito menos de um homem importante como lorde
Rothwyn. Reconhecia, naquela hora, que o perdera irremediavelmente.
"Eu o amo! Eu o amo!", sussurrava. "Nunca mais o verei."
Usara de grande esforço para não cair em pranto no momento em que Sophie a
deixara na encruzilhada.
— Adeus, Lalitha — dissera Sophie. — Não se esqueça de sua promessa. Considere
seu casamento como uma pilhéria, pois lorde Rothwyn nunca mais se lembrará que você
existe.
Lalitha não respondera. Entrara na diligência carregando sua trouxa, e com
dificuldade encontrara lugar no superlotado veículo.
Sophie nem esperara que o carro partisse, tomando o caminho de volta para Roth
Park.
Fora impossível a Lalitha não chorar enquanto a diligência a levava cada vez mais
longe de tudo o que significara para ela segurança e felicidade.
Estava abafado no interior do veículo; o barulho de vozes e choro de crianças a
incomodavam, adicionandose a isso o cheiro de comida, de suor e a fumaça. Lalitha,
porém, só pensava na beleza de Sofia e no prazer que lorde Rothwyn teria ao vêla,
quando voltasse à casa.
Ela o enxergava entrando na mansão, os cachorros correndo para recebêlo. Aí, ele
encontraria esperandoo, a bela Sophie. Lalitha o visualizava abraçando e beijando sua
antiga namorada.
A dor que sentira, então, fora muito maior que a dor física causada pelas
bengaladas, pior que qualquer sofrimento que tivera antes na vida. Fechara os olhos,
refletindo:
"Como posso agüentar isso pelo resto de minha existência?"
A carruagem seguia seu caminho aos trambolhões, parando em cada pequena
aldeia. Alguns passageiros saíam, outros entravam e, ocasionalmente, o cabrito balia.
E Lalitha tinha também em mente a imagem de lorde Rothwyn quando ele a fitava
com uma chama repentina no olhar, deixandoa paralisada, impossibilitandoa até de
falar.
"Haverá nele um pouco de amor por mim?" pensava. "Ou tratarase apenas de uma
obrigação moral de que terá prazer em se livrar?"
Mais uma vez sua agonia fora insuportável! Mas tentava se conformar. Afinal de
contas, conhecera lorde Rothwyn por acaso, só porque Sophie lhe preparara uma perfídia.
Ele sentira pena da pobre moça maltratada pela madastra! Como poderia amar mulher,
tão feia, tendo Sophie à sua disposição? Além disso, houvera outras mulheres lindas em
seu caminho, com certeza. A tagarelice de Nattie não a deixara na ignorância a esse
respeito.
"Sua Senhoria recebeu demais da vida! É um rapaz mimado, e sempre o foi, desde
que nasceu."
"Era bonito quando criança?", indagara Lalitha.
"Lindíssimo! Parecia um anjo. Quando adulto, começou a chamar a atenção de
todos pela beleza. Não admira que as mulheres o perseguissem sem cessar."
"Verdade?"
"Mas claro", replicara Nattie. "Com a atração que ele possui, sua riqueza, o lugar
que ocupa na sociedade, não há moça que não o deseje como marido, e nem mãe que não o
queira como genro."
"É estranho que não tenha se casado até hoje!"
"É o que sempre digo a ele. Mas Sua Senhoria ri e me responde que ainda não
encontrou mulher que corresponda aos seus ideais."
E agora, pensava Lalitha, ele encontrara Sophie, mulher que se equiparava em
beleza à atração dele como homem.
O casal perfeito!
Lalitha imaginava a excitação que aquele casamento despertaria no beau monde.
Lorde Rothwyn levaria Sophie à Carlton House, às festas do Parlamento, e ela seria
a mulher mais linda na cerimônia da coroação do próximo rei.
Lalitha engoliu um soluço e refletiu:
— "Por que, meu Deus, por que não me apaixonei por um homem comum? Um
homem que não pertencesse à alta sociedade, e com quem eu pudesse acabar meus dias
numa casinha modesta?"
Mas não. Tivera de se apaixonar por uma criatura tão longe de seu alcance como as
estrelas no céu.
"Como pôde ser tão boba? Tão boba?", as rodas do carro pareciam repetir de
encontro ao solo acidentado da estrada poeirenta e pedregosa.
E a resposta vinha logo:
"Não pude evitar! Não pude evitar!"
As lágrimas rolavamlhe pela face quando a diligência parou.
Ela ouviu o cocheiro gritar e um dos passageiros, um velho sitiante, dizer:
— Por que essa parada agora? Já estamos bem atrasados.
— É uma desgraça essas diligências não chegarem ao destino na hora marcado —
outro passageiro protestou.
Nesse instante, um cavalariço de libré colocou a cabeça no interior da diligência.
Viu Lalitha e disse:
— Sua Senhoria a espera lá fora, milady.
Lalitha, por momentos, não acreditou no que ouvia; depois repetiu:
— Sua... Senhoria?
— Ele a espera, milady.
Os outros passageiros a encaravam sem saber o que pensar, e um dos caixeiros
viajantes queixouse:
— Se a senhora pretende descer, madame, façao logo. Já estamos bastante
atrasados.
— Desculpe — balbuciou Lalitha.
Ela teve dificuldade para sair de seu lugar, e mais ainda para pular por cima das
pernas das pessoas que estavam entre a porta e ela. Ned ajudoua a descer da diligência, e
Lalitha logo viu o coche atravessado na estrada. Reconhecendo imediatamente a pessoa
que o dirigia, seu coração pulsou com mais força. Ela sentouse ao lado de lorde Rothwyn
e o cavalariço cobriulhe os joelhos com uma manta. Ninguém falou nada e, assim que
Ned tomou seu lugar, os três prosseguiram viagem.
Lalitha arriscou um olhar para lorde Rothwyn. Observavao de perfil, e notou a
ruga na testa dele e o ricto de irritação nos lábios. Devia estar furioso! Não obstante,
pensando bem, ela fizera o que julgara melhor, o que traria felicidade a ele.
Chegaram numa encruzilhada onde tiveram de esperar que a diligência, que vinha
logo atrás, passasse. O sol, que brilhara no céu até poucos instantes, como uma cascata
dourada, desaparecia na linha do horizonte, e a escuridão aumentava gradualmente. Mal
se via a estrada que conduzia a Roth Park.
— Por que você fugiu? — perguntoulhe de repente lorde Rothwyn.
— Pensei... Pensei... Que o senhor não me quisesse mais em sua casa — gaguejou
Lalitha.
Eralhe difícil falar com clareza, pois se perturbava com a irritação expressa no tom
de voz de lorde Rothwyn.
— Você partiu de livre e espontânea vontade? — indagou ele, ainda zangado.
Aí, quando Lalitha fitouo para responder, espantada com a pergunta, ele viu sinais
de lágrimas no rosto dela, e notou que tinha os cílios ainda úmidos. Sorriu então e
acrescentou, com suavidade:
— Ainda não aprendeu que nunca deixo um trabalho inacabado?
Lalitha não teve mais medo, não sentiu mais aquele aperto no coração. Uma onda
de inacreditável alegria a invadiu.
"Ele está me levando de volta a casa", disse a si mesma. "De volta... a casa."
Os cavalos iam depressa, mas não com a velocidade anterior. Porém, para Lalitha, a
viagem parecia rapidíssima, comparada com a da superlotada diligência. Não mais o
cheiro desagradável de comida, a atmosfera abafada, e a proximidade dos passageiros. A
brisa penetrando no carro aberto brincava com seus cabelos, e uma enorme excitação
enchialhe o peito. Não havia necessidade de palavras, apenas tinha consciência de que
lorde Rothwyn a tirara de novo de um calabouço escuro, para uma luz que quase a
cegava.
— Você está bem? — interrogou ele.
— Sim... Bastante bem.
Sentada ao lado do homem que amava, possuía tudo que queria da vida.
A escuridão aumentava, e as nuvens do céu prenunciavam tempestade.
Encontravamse no meio de uma floresta, numa estrada tortuosa e estreita, com árvores
altas e frondosas de ambos os lados. Numa curva, ouviram vozes e, quando lorde
Rothwyn diminuiu um pouco a marcha, dois homens a cavalo apareceram diante do
coche.
— Pare! — um deles berrou.
Dois cavaleiros mascarados aproximaramse de lorde Rothwyn que tentou tirar do
bolso uma pistola; mas um dos assaltantes o alvejou com sua arma, atingindoo no ombro
direito. Lorde Rothwyn largou as rédeas e tocou o ombro ferido com a mão esquerda.
— Não se mexa se não quiser morrer! — um dos homens gritou.
— Tirem esse carro da estrada! — outra voz ordenou, e Lalitha percebeu, com
horror, que havia quatro assaltantes ao todo.
"Quatro contra dois!", pensou ela desesperada. "E um dos nossos, ferido!"
— Malditos! — exclamou lorde Rothwyn. — Que diabos querem de nós? Não temos
quase nada de valor conosco.
Um dos homens sorriu de maneira atrevida, e disse:
— Precisamos urgentemente de bons cavalos!
— Maldição!
Durante essa troca de palavras, Lalitha notou que o assaltante erguia a pistola para
dar uma coronhada na cabeça de lorde Rothwyn, que não teria condições de se defender
por estar não somente ferido como em nível bem mais baixo. Ela levantouse então e
estendeu os braços para protegêlo, gritando:
— Não! Não! Não faça isso!
— Por que não? — protestou o bandido.
— Por que... Os senhores são conhecidos como "os cavalheiros das estradas", e um
cavalheiro jamais ataca um homem desarmado... E ferido.
O bandido sorriu e observou:
— A menina é corajosa mesmo! Muito bem! Nesse caso, diga a seu companheiro que
guarde para si as maldições.
Lorde Rothwyn ia responder, porém Lalitha cobriulhe a boca com a mão. Sabia
que ele estava furioso e se reagisse às conseqüências poderiam ser desastrosas.
Sentindo a mão trêmula de Lalitha em seus lábios, lorde Rothwyn controlouse,
dizendo a ela:
— Não vou provocálo, sossegue.
— Por favor, acalmese! — declarou Lalitha. — Estou com tanto medo!
Agarrouse a ele, à procura de proteção.
Dois dos assaltantes desatrelaram os cavalos do coche e levaram nos para o meio
do mato, seguindo por um atalho que ia até uma clareira onde árvores haviam sido
recentemente derrubadas. Os outros dois arrastaram Ned e o amarraram a um tronco de
árvore.
— Por que estão fazendo isso? — perguntou o cavalariço.
— Não queremos que você nos persiga depressa demais, embora vá estar bem
ocupado cuidando de um homem ferido e de uma mulher indefesa.
Um dos marginais chegou perto do coche, ordenando a lorde Rothwyn:
— Sua carteira e todos os valores que possui!
Ato contínuo, retirou do bolso de lorde Rothwyn a pistola. Examinoua, sorriu e
disse:
— A melhor arma que já tive! Seus cavalos também são bem superiores aos nossos!
— Dê aos "cavalheiros das estradas" minha carteira, Lalitha! — falou lorde Rothwyn
com voz calma, embora sarcástica.
Lalitha obedeceu, e os olhos do bandido fixaramse na pequena bolsa que ela
carregava.
— A sua também! — insistiu ele. — Será um lindo presente para minha namorada!
Lalitha entregoulhe a bolsa. O homem abriua e assobiou quando deu com as vinte
libras que Sophie havia dado a ela.
— Muito bem! — exclamou ele. — Agora, mocinha, quer acompanhar os cavalheiros
das estradas?
— Não, obrigada. Não desejo viver perseguida, caçada, com medo de ser presa a
qualquer minuto.
O assaltante riu muito.
— Você é valente! Gosto de mulheres assim!
Dito isso, encarou Lalitha com insolência e ela tremeu, encostandose mais em lorde
Rothwyn. O bandido pôs a mão no braço dela, e Lalitha previu o que iria acontecer.
Nesse exato momento, um grito vindo do meio da floresta chamou atenção do
bandido. Era de seus companheiros que, satisfeitos com os cavalos, preparavamse para
partir.
O homem que segurava o braço de Lalitha lamentou:
— Não há tempo! Que pena! Você seria um bom prato para mim!
Ele montou e seguiu o grupo.
A chuva começou a cair com intensidade. Lalitha pediu a lorde Rothwyn:
— Deixeme ver seu ombro. Antes, porém, precisamos encontrar um abrigo. Pode
andar até aquela árvore?
— Sim, claro.
Lalitha notou com preocupação que o paletó dele, no lado do ombro ferido, estava
encharcado de sangue. Ajudouo a descer do coche e depois dirigiuse a Ned:
— Vou desembaraçar você dessas cordas. Mas deixeme primeiro cuidar de Sua
Senhoria.
— Estou bem, milady, não se preocupe comigo.
Enquanto caminhavam até a árvore, Lalitha divisou ao longe, no meio do mato,
uma cabana. Provavelmente havia sido feita por lenhadores das redondezas. Correu para
lá assim que acomodou lorde Rothwyn, abriu a porta da cabana e uma onda de ar
aquecido chegou até seu rosto. Algumas achas acesas ainda restavam numa lareira
improvisada. Ela deixou a porta aberta e foi ao encontro de lorde Rothwyn.
— Encontrei uma cabana onde poderemos nos abrigar! — exclamou, quase sem
fôlego.
— Que bom! — replicou lorde Rothwyn, mas Lalitha percebeu que ele falava com
esforço.
Ela ajudouo a ir até a cabana cuja porta era tão baixa que ele teve de se inclinar
para entrar. Assim que o fez, deitouse no chão áspero, exausto.
Ao sair do coche, Lalitha carregara consigo a trouxa. Abriua e tirou de lá umas
roupas e com elas improvisou ataduras.
— Vou cortar a manga de seu paletó — explicou a lorde Rothwyn. — Penso ser mais
lógico, pois o senhor sofreria muita dor se tentasse tirálo.
— Obrigado — respondeu lorde Rothwyn.
Lalitha possuía apenas uma pequena tesoura de bordar, mas conseguiu executar o
que pretendia. O ferimento ficava na parte mais alta do braço, na altura do ombro. O
sangue era tanto que não foi possível ver o local exato. Corria pelo braço todo, chegando
até a mão, tingindo tudo de um vermelho vivo. Ela percebeu que não daria para saber se a
bala atravessara apenas a carne ou se atingira algum osso. Enfim, exposta a parte afetada,
Lalitha tomou as ataduras e colocouas no lugar de onde parecia brotar o fluxo de sangue.
Lorde Rothwyn estava pálido e sofria muita dor.
— Agora vou soltar Ned — disse ela.
— Há uma garrafa de conhaque no coche — informou lorde Rothwyn. — Quer, por
favor, trazêla para mim?
— Claro. Por que não me pediu antes?
Lalitha foi o mais rápido possível ao coche. Chovia torrencial mente. Pegou a
garrafa e a manta, e voltou à cabana. Depois, com a tesoura na mão, dirigiuse ao encontro
de Ned. tentou desfazer o nó, mas sem sucesso. Cortou então a grossa corda que o prendia
à árvore, com bastante esforço.
Logo que se viu livre, Ned declarou:
— Vou buscar socorro, milady.
— Vá, por favor. Receio estarmos bem distantes da última aldeia pela qual
passamos.
— Penso ter de ir mais longe que isso, milady. Essas pequenas aldeias não oferecem
nenhum tipo de condução adequada para transportar Sua Senhoria.
— Tem razão — concordou Lalitha com um suspiro de desânimo. — Nesse caso,
Ned, é melhor irmos buscar as almofadas do coche, a fim de que lorde Rothwyn tenha um
pouco mais de conforto. Há uma lareira rústica na cabana.
— Ótimo, milady. Posso apanhar mais lenha. Assim, a senhora e Sua Senhoria
ficarão bem aquecidos enquanto eu for providenciar condução para voltarmos à casa.
Felizmente havia muita lenha na redondeza, e os lenhadores, acostumados que
estavam a pernoitar na mata, tinham feito uma chaminé no teto da cabana, que permitia a
saída da fumaça produzida pelo fogo.
Ned acomodou lorde Rothwyn nas almofadas e ativou a chama. Declarou em
seguida:
— Agora, milorde, me vou. Voltarei o mais depressa que puder.
— Obrigado, Ned — respondeu lorde Rothwyn.
Lalitha achou que ele melhorara depois de ter tomado um pouco de conhaque, e ela
agradecia a Deus pelos assaltantes não terem encontrado a garrafa no coche.
Ned sumiu na escuridão da noite, e ela sentouse numa das almofadas. Notando
que lorde Rothwyn segurava o braço de maneira desconfortável, saiu da cabana, tirou a
anágua, e com ela fez uma tipóia. Muito gentilmente, colocoua no pescoço de lorde
Rothwyn, para que ele apoiasse o cotovelo.
— Está melhor assim? — perguntou.
— Posso ver que é enfermeira competente, Lalitha.
— Espero ter agido corretamente. Mamãe era muito boa para colocar bandagens.
Sempre a chamavam quando alguém na aldeia se machucava, especialmente crianças. Mas
eu mesma nunca fiz isso antes.
— Estou muito grato a você, Lalitha.
— Afinal, foi tudo culpa minha... Como posso lhe pagar... Pela perda dos cavalos?
— Poderíamos ter perdido coisas mais preciosas! — replicou lorde Rothwyn.
Lalitha achou que ele se referia ao fato de os bandidos poderem têlo assassinado.
Depois, lembrouse do homem que a segurara pelo braço.
— Isso mesmo! — continuou lorde Rothwyn, como se lesse os pensamentos dela. —
Mas agora, tudo está acabado, só temos de esperar por Ned. Sugiro que você sentese bem
perto de mim, para que a manta cubra a ambos.
— Sim, tem razão — concordou Lalitha. — É o melhor que eu tenho a fazer.
Ela aproximou sua almofada e não pôde deixar de sentir um frenesi percorrerlhe o
corpo. Contudo, há bem pouco tempo, pensara nunca mais vêlo! Rendeu graças a Deus
por tamanha ventura!
— Acho que o jantar que tínhamos planejado para esta noite não vai se realizar,
Lalitha. E teria sido uma grande comemoração para nós.
— Estou muito contente aqui... de qualquer maneira — replicou ela.
— Você é valente! Tome um pouco de conhaque, deve estar exausta física e
emocionalmente.
Lalitha quis protestar, mas resolveu obedecêlo. Serviuse e insistiu para que ele
bebesse um pouco mais, pois devia estar sofrendo bastante dor.
— Sentese melhor agora? — perguntou ele.
— Sintome... Muito... Bem. Mas o senhor é que nos preocupa, não há problema
algum comigo.
Ela pôs mais umas achas na lareira e, quando voltou para perto de lorde Rothwyn,
percebeu que ele quase dormia.
— O mais prudente agora, para nós, é tentarmos dormir — observou ele com voz
cansada.
— Vamos então tentar — assentiu Lalitha.
Ele bocejou e fechou os olhos. Aquele cansaço era natural, uma reação normal após
o que se havia passado, e conseqüência da perda de sangue.
Lalitha contemplouo à luz das chamas. Era incrivelmente bonito. E ela lá estava,
sozinha com ele, sem necessidade de dizerlhe adeus para sempre.
Que acontecera depois que ela partira da casa? Que dissera Sophie a ele, e por que a
seguira?
Havia dúzias de perguntas sem respostas, mas aquele não era o momento oportuno
para obtêlas. A única coisa que podia fazer seria alegrarse com o que os deuses lhe
haviam concedido. O homem que ela amava estava ali a seu lado e, não importava o que o
futuro reservasse, ela ficaria com ele pelo menos um pouco mais de tempo.
"Eu te amo!", teve vontade de dizer em voz alta.
Em lugar disso, repetiu para si mesma muitas, muitas vezes:
"Eu te amo! Eu te amo!".
CAPÍTULO VI
De início, quando lorde Rothwyn sugeriu que ambos dormissem, ele acomodouse
de lado, com a cabeça nas almofadas trazidas do coche. Não era uma posição muito
confortável, mas ao menos o ombro ferido ficava livre de qualquer contato. Ele
adormeceu, mas seu sono foi muito agitado. Lalitha, acordada, só pensava em quanto o
amava.
Lorde Rothwyn delirou, e murmurava palavras ininteligíveis, com certeza devido à
febre. Lalitha não sabia o que fazer; sentada ali ao lado, cuidava para que ele não se
movesse a fim de que o ferimento não recomeçasse a sangrar.
Num dado momento, lorde Rothwyn agitouse, e ela automaticamente segurouo
nos braços, e fez com que recostasse a cabeça em seu peito. Pareceu ser a posição que ele
vinha procurando porque, depois disso, caiu em sono profundo e repousante.
Lalitha tinha medo de se mexer, quase até de respirar, para não acordálo, e o
sentido de têlo tão perto de si despertou nela uma estranha reação, jamais sentida antes.
Amavao desesperadamente, e o que experimentava, era não somente amor por um
homem forte, másculo, atraente, mas um amor que tinha qualquer coisa de proteção,
carinho maternal. Desejava salválo de tudo que pudesse lhe ser desagradável, penoso e
cruel na vida, como se ele fosse um menino que precisasse de alguém para defendêlo da
infelicidade, da miséria, da solidão.
Abraçouo com mais força, e encostou os lábios nos cabelos sedosos dele. Ao beijá
los, teve vergonha de si mesma, de sua ousadia. Contudo, lorde Rothwyn jamais saberia
daquilo e, mais tarde, quando tudo estivesse acabado, ela teria algo de que se recordar: a
cabeça dele recostada em seu peito, o movimento que ele fazia, mesmo dormindo, à
procura de sua proteção.
Lalitha não fechou os olhos a noite toda, e tinha o braço adormecido; mas o êxtase
que tomou conta dela compensou todo seu sofrimento do passado. Era alguma coisa que
ninguém, nem mesmo Sophie, poderia tirar dela e, pelo resto da vida, guardaria aquilo
como seu precioso tesouro.
O sol começava a surgir no céu quando Lalitha ouviu passos na floresta, vindo na
direção da cabana. Lorde Rothwyn dormia, e ela, muito gentilmente para não assustálo,
sussurrou:
— Ned já está de volta.
Lorde Rothwyn abriu os olhos e se deu conta de que Lalitha o segurava nos braços,
e que sua cabeça repousava nos seios dela. Por segundos não se moveu, mas, quando Ned
abriu a porta, ergueu um pouco o corpo.
Lalitha afastouse, o braço dolorido, e procurou falar com naturalidade:
— Você trouxe uma carruagem, Ned?
— Sim, uma bastante confortável, milady.
— Ótimo.
— Ajudeme a levantar, Ned — ordenou lorde Rothwyn.
O cavalariço apressouse em obedecer e auxiliou seu amo a subir na carruagem.
Percorreram os poucos quilômetros até Londres quase em silêncio. Lá chegando, Lalitha
ajudou lorde Rothwyn a ir para o quarto, e pediu a Ned que fosse chamar um cirurgião.
— Sua Senhoria gosta muito do Dr. Henry Clive, milady — informou o mordomo.
— É um dos especialistas a serviço de Sua Alteza Real.
— Então, Ned, peça a ele que venha aqui o mais rápido possível — pediu ela. — E,
qual é o médico clínico de Sua Senhoria? — indagou ao mordomo.
— Esse é sir William Knighton — respondeu ele. — Outro médico que atende à
família real.
Ambos foram chamados e, só depois de ter ouvido a opinião dos médicos, Lalitha
foi para a cama. Dormiu até bem tarde no dia seguinte. Quando acordou, viu que Nattie
entrava em seu quarto, trazendo consigo Royal.
Lalitha regozijouse ao vêlos, e Nattie começou logo a dar ordens, e a providenciar
o necessário para o bom andamento da casa.
Apesar de seus protestos, Nattie obrigou Lalitha a permanecer na cama por três
dias e, depois disso, só lhe permitiu que fizesse curtos passeios pelo jardim da mansão.
Dias mais tarde, Lalitha ocupouse da leitura e da decifração das linhas escritas por lorde
Hadley.
— Estou bem, estou muito bem, Nattie — insistia ela, quando a governanta
ordenava que tivesse moderação em suas atividades.
— A minha opinião diverge da sua, milady — Nattie respondia invariavelmente.
Mas, embora relutasse em admitir, Lalitha sentiase fraca e in dolente.
"Foi um choque ver lorde Rothwyn baleado", dizia a si mesma. "Mas foi um choque
ainda maior ter sido posta fora da casa por Sophie, e verme lançada na obscuridade e no
abandono."
Estava de volta a Londres, em Rothwyn House. Porém, seu prazer não era completo
por não poder estar junto de lorde Rothwyn.
Esperava que ele mandasse chamála, mas os dias se sucediam e, embora Nattie a
informasse de que ele melhorava progressivamente, não a convidava para que fosse visitá
lo.
Enfim, ela pediu a Nattie:
— Posso ver Sua Senhoria?
— Os médicos proibiram visitas nos dois primeiros dias, e agora, apesar de ele ter
permissão de recebêlas, não mandou chamar a senhora.
— Adoraria vêlo, Nattie. Por que não me manda chamar?
Nattie sorriu e explicou:
— Todos os homens, milady, e talvez master Inigo mais que qualquer outro, tem
vergonha de serem vistos doentes, de cama. Master Inigo sempre foi assim, desde menino.
Não admitia sentir dor, não admitia fraquezas. Certo dia, quando ainda criança e estando
muito doente, surpreendio no quarto repetindo para si mesmo: "Estou bem! Estou bem!"
Lalitha lembrouse de como ele fora corajoso ao ser ferido, apesar de sentir muita
dor.
De certa maneira era animador saber que ele não queria recebêla por questão de
princípio, de orgulho, e não por não sentir necessidade de sua presença. Mesmo assim,
ansiava por vêlo.
Uma bela manhã Lalitha acordou com a camareira abrindo as cortinas do quarto.
Continuou imóvel por alguns minutos, observando os raios luminosos do sol refletindo no
teto e aquecendo todo o quarto.
A camareira vinha acompanhada de Nattie, que trazia Royal pela coleira, pronto
para um passeio pelo jardim.
Fazia já mais de uma semana que eles haviam voltado a Londres. Não conseguindo
se conter, Lalitha sentouse na cama e perguntou a Nattie:
— Como está Sua Senhoria esta manhã?
— Ainda não o vi, mas, a se julgar pela quantidade de comida que foi servida a ele
no quarto, imagino que esteja em boa forma.
— Você me disse ontem que a ferida estava quase cicatrizada.
— O médico parece muito satisfeito com a recuperação de Sua Senhoria — replicou
Nattie. — Disse que nunca viu ninguém se restabelecer tão depressa de um ferimento
daquele tipo.
— Que bom! — exclamou Lalitha. E, após uma pausa, prosseguiu: — O dia está
lindo, vou me levantar e dar uma volta com Royal.
— Mas cuidado com os canteiros de flores — preveniua Nattie. — Os jardineiros se
queixaram do estrago que Royal fez no jardim ontem.
— Sei disso, Nattie. Entrou na cabeça dele que havia um osso escondido entre os
gerânios!
Por achar que lorde Rothwyn pudesse se divertir com o procedimento de Royal,
Lalitha fez para ele um esboço de um cachorrinho cavoucando um canteiro de flores, e
jogando a terra por todo o lindo e verdejante gramado. Ela pôs o desenho num envelope e
pediu a Nattie que o entregasse a Sua Senhoria.
Quando soube que o desenho o fizera rir, fez mais um, de uma porta fechada e,
atrás dela, um cachorrinho pacientemente esperando que alguém o levasse para um
passeio.
Lalitha nunca aprendera desenho, mas costumava esboçar caricaturas para seu pai,
que o divertiam muito.
Davalhe muita satisfação enviar aqueles desenhos para lorde Rothwyn, pois era
um jeito de se comunicar com ele.
Lalitha até ousava esperar que ele lhe mandasse um bilhete como resposta, mas isso
não aconteceu. Talvez, pensou com certo medo, ele já lamentasse haver impedido que ela
sumisse em Norfolk. Talvez achasse que errara em seguila, e não se interessasse mais por
ela. Logo em seguida, contudo, lembrouse de que lorde Rothwyn dissera jamais ter
deixado um trabalho inacabado.
Ela não estava acabada ainda, mas... E quando estivesse?
Algum dia isso iria acontecer e ela, com certeza, teria de se separar do homem que
amava. Então, uma nuvem escura pareceu toldar o céu que até aquele instante estivera
lindo!
Lalitha levou Royal ao jardim e ficou brincando com ele o tempo todo, o que fez
com que o cachorrinho se comportasse muito bem.
Mais tarde almoçou sozinha e, quando subiu para repousar, Nattie a esperava no
quarto.
— Vai tentar dormir, não, milady? Não se canse demais lendo seus livros —
recomendou a governanta ao ver o que Lalitha tinha nas mãos.
— Vou ler só um pouquinho.
— Tudo bem, então. Mas descanse, pois precisa estar bonita esta noite.
— Por que está noite?
— Sua Senhoria quer que a senhora jante com ele.
— Oh, Nattie! Sua Senhoria... Já está completamente bom?
— Acho que sim, pois vamos todos voltar para Roth Park amanhã. Sua Senhoria
prefere ficar no campo.
— Que bom! Estou muito contente.
Lalitha tinha vontade de dançar, de voar até a lua. Ele estava melhor, e queria vêla!
Iriam jantar juntos!
Por desejar ter o melhor aspecto possível, fez esforço para dormir. Depois,
permaneceu acordada contando os minutos para a hora de se aprontar para o jantar.
Nattie lhe trouxe uma roupa nova, dizendo:
— Sua Senhoria deseja que a senhora use esta toalete hoje.
Era um vestido bem diferente dos demais. Consistia em várias saias de gaze nos
tons verde e azul, sobre um forro prateado. O vestido revelava as suaves curvas de seu
corpo bemfeito, e fazia com que ela parecesse mais etérea que terrena. Nattie foi buscar
um estojo de couro e o pôs sobre a penteadeira.
— Sua Senhoria pede que a senhora use estas jóias.
Lalitha abriu o estojo e lá encontrou um colar de pequenos brilhantes em forma de
estrelas, tão delicado que parecia ter sido feito por mãos de fada. Havia também algumas
pedras soltas, para ela colocar nos cabelos, e uma pulseira de brilhantes igual ao colar.
Os cabelos de Lalitha não tinham mais aquela aparência desagradável, mas caíam
sobre os ombros em suaves ondas, e possuíam um brilho diferente, denotando saúde. Isso
deviase, Lalitha achava, à loção à base de pêssegos que Nattie aplicava neles todas as
noites, a conselho da mulher das ervas.
Os olhos dela brilhavam como os diamantes dos cabelos. Seria difícil reconhecer
naquela criatura a menina miserável, magra, assustada, com quem lorde Rothwyn se
casara por vingança.
— Está linda, milady — exclamou Nattie.
Apesar do elogio, olhandose no espelho, Lalitha enxergou, em vez de sua imagem,
o rosto lindo de Sophie, com aqueles olhos azuis, cabelos dourados, e pele acetinada.
Mas era inútil se preocupar com isso. Ela não esperava que lorde Rothwyn a
admirasse como admirava Sophie, porém, quem sabe, ele seria bondoso com ela como fora
antes. E Lalitha desejava vêlo, com tanta intensidade, que foi com grande esforço que não
desceu as escadas correndo até o salão.
Pensara nele o tempo todo durante a semana; não obstante, ao vêlo, constatou que
quase havia se esquecido de como era lindo e elegante.
Lorde Rothwyn a aguardava no salão, e estava irresistível com seu traje de noite:
casaca muito bem talhada, plastrão branco e colarinho alto. Não tinha a pele bronzeada
como de hábito, mas, apesar disso, parecia ainda mais sedutor.
Enquanto Lalitha pensava no que dizer, ele exclamou:
— Finalmente sei de que cor são seus cabelos! Nunca pude definir a exata
tonalidade deles, mas agora sei que são da cor do luar refletido nas águas do lago.
Lalitha não sabia o que responder, tal sua surpresa. E ele, beijandolhe a mão,
continuou:
— Perdoeme! Devia ter lhe dito antes como estou feliz em vêla.
— O senhor está bem agora? — indagou ela.
— Os médicos me disseram que fui um paciente exemplar!
Lalitha teve vontade de indagar por que não permitira que ela o visitasse, mas antes
que tivesse tempo de formular essa pergunta, lorde Rothwyn prosseguiu:
— O descanso fez bem a você, Lalitha, e é o que eu queria. Tem aspecto bem
diferente agora, e acho que engordou um pouco.
— Muito! — Ela deu uma risada. — Quase dois quilos!
— Parabéns!
Lalitha achava difícil encarálo, mas sentia ondas de prazer percorrendolhe o
corpo. Não podia falar, e quase nem respirar, e só tinha em mente a cabeça dele pousada
em seu peito.
— Temos muito a conversar — declarou lorde Rothwyn; mas, antes que ele o
fizesse, o mordomo anunciou que o jantar estava servido.
Lalitha não tinha idéia do que comia ou bebia, mas sua alegria era imensa por estar
perto dele e por ouvirlhe a voz.
A mesa, decorada com orquídeas, foi servida por lacaios bem treinados, todos eles
de libré.
Lalitha acreditava estar sonhando. Era possível ser ela a mesma moça que comia na
cozinha porque a madrasta não lhe permitia que fizesse as refeições na sala? A mesma
moça que preparava suas próprias refeições, e isso quando havia tempo?
Depois do jantar, já no salão, lorde Rothwyn declarou:
— Sabia que essas jóias ficariam bem em você. Pertenceram a minha mãe, e eram
suas preferidas.
— São lindas! — exclamou Lalitha. — E o senhor foi muito amável em deixar que eu
as usasse.
— São suas agora, Lalitha! E tenho outro presente para lhe dar.
— Mas o senhor... Não precisava...
— Quero recompensála pelo cuidado que teve comigo, pois, se não tivesse me
protegido do assaltante, levantando os braços, meu ferimento teria sido muito pior. E
vendo a expressão de pavor de Lalitha ao se referir ao assalto, ele acrescentou: — Não há
razão para falarmos sobre esse assunto. Temos outras coisas a discutir.
— Não sei como lhe agradecer... Mas também tenho um presente para o senhor.
— Para mim? — indagou lorde Rothwyn, surpreendido.
Lalitha foi à escrivaninha e tirou da gaveta um pedaço de papel dobrado.
— Decifrei as linhas escritas por lorde Hadley disse ela. — Tive de adivinhar
algumas palavras, aliás, não muito importantes.
— Quer ler para mim?
Ela abriu o papel e, com sua voz suave, começou a ler:
"O apelo do coração é o apelo do amor,
E eu juro por tudo que é sagrado
Que meu amor por você será eterno,
Se seu coração chamar pelo meu".
Ao terminar, ela fitou lorde Rothwyn esperando pela aprovação.
— Você foi muito hábil ao reconstituir essas linhas. Acho que lorde Hadley
expressouse com muita eloqüência.
— Imagino como a mulher em questão deve ter se sentido envaidecida ao receber
essa mensagem.
— Você acha que o coração dela chamou pelo dele?
A pergunta foi feita com voz grave, e pareceu a Lalitha um tanto íntima, pessoal.
Ela não sabia por que, mas teve dificuldade em responder, e ele prosseguiu:
— Agora, deixeme lhe dar um presente que é de certo modo uma resposta aos
esboços que você me enviou.
— Achei que poderiam divertilo.
— E me divertiram muito — replicou lorde Rothwyn. — E, embora o que tenho para
você não a faça rir, penso que lhe dará prazer.
Ele pegou uma pasta que estava sobre a mesa e a pôs nas mãos de Lalitha. Ela
abriua e encontrou lá dentro desenhos feitos a crayon. Examinouos e arregalou os olhos,
estupefata.
— Este é de Michelangelo — explicou lorde Rothwyn, tomando um deles. —
Chamase The Running Youth.
— É lindo, incrivelmente lindo! — exclamou Lalitha.
O segundo era uma paisagem repleta de detalhes, um panorama que Lalitha
poderia contemplar por horas a fio.
— Foi desenhado por Pieter Brueghel — comentou lorde Rothwyn. — E o último é o
que agradará mais a você, penso.
Representava a cabeça de um anjo, e a expressão mística, espiritual da face dele fez
Lalitha concluir que, enfim, tinha diante dos olhos a verdadeira beleza.
— É de Leonardo da Vinci — continuou lorde Rothwyn. — Foi um dos primeiros
ensaios para a tela The Virgin on the Rocks.
— Tudo isso é para mim? indagou Lalitha, mal podendo acreditar.
— Sim, mas antes quero que me responda a uma pergunta. Olhe para a tela que está
sobre a lareira.
Lalitha fez o que ele mandou e viu um quadro de Rubens, valiosíssimo. As cores
vivas e brilhantes eram magníficas.
— Agora, digame — acrescentou ele —, qual dos dois trabalhos significa mais para
você, o quadro de Rubens, aclamado como sua obraprima, ou os croquis que tem nas
mãos?
Lalitha pensou por segundos e respondeu:
— Cada um deles é lindo em sua categoria, mas... — ela fez uma pausa.
— Continue — insistiu lorde Rothwyn.
— Talvez seja por motivos pessoais, mas os esboços falam mais a meu coração.
Lorde Rothwyn sorriu e observou:
— William Blake, um amigo meu, artista e poeta, disse mais ou menos a mesma
coisa: "Esses desenhos comunicam qualquer coisa à alma".
— É o que acontece... Comigo. Tenho a impressão de que não estou vendo os
esboços com meus olhos... Mas com minha alma. — E depois, achando que talvez estivesse
sendo emotiva demais, declarou: — O senhor vai rir de mim... Por eu ser muito
sentimental!
— Não vou rir, não, e quero lhe dizer algo.
Ele tomoulhe a mão e cobriua com a sua. Lalitha não estava certa se fora o toque
dos dedos dele, ou o tom de voz o que a imobilizara por completo: mas ela sentia que
alguma coisa estranha e maravilhosa estava para acontecer. Levantou os olhos e ficou
quase enfeitiçada: lorde Rothwyn a fitava de maneira diferente, como homem algum a
fitara antes.
— Lalitha! — exclamou ele.
A porta abriuse nesse instante e o mordomo anunciou:
— Sir William Knighton, milorde.
Então, a magia se rompeu, e lorde Rothwyn levantouse, exclamando:
— Sir William! Não o esperava hoje!
— É verdade, milorde, mas é que vou viajar. Perdoe minha intromissão a estas horas
da noite, porém o príncipe regente pediu me que fosse a Brighton, e preciso partir
amanhã bem cedo.
Sir William Knighton era um homem de meiaidade, consciencioso e discreto que,
além de ser o médico de Sua Alteza Real, se tornara a pessoa de confiança do regente.
— Entendo a razão de sua visita, sir William — declarou lorde Rothwyn.
— Em vez de lhe causar inconveniência vindo aqui antes do breakfast, preferi
examinar seu ombro esta noite. Se tudo estiver bem, Vossa Senhoria poderá voltar
sossegado park o campo.
— É muita amabilidade sua — agradeceu lorde Rothwyn, e depois acrescentou: —
Acho que ainda não conhece minha esposa.
— Sua esposa? — exclamou sir William espantado, enquanto cumprimentava
Lalitha.
— Sim. Casamonos secretamente, e ficaria muito grato ao senhor se não
mencionasse esse fato a Sua Alteza até que ele receba minha carta.
— Vou honrar a confiança que o senhor deposita em mim. Como deve saber, sou a
descrição em pessoa.
Lorde Rothwyn sorriu e disse:
— Nós dois não ignoramos como o regente fica furioso quando não sabe de
qualquer coisa referente aos amigos íntimos, antes de outras pessoas.
— Isso é verdade — concordou sir William.
— Não queremos retêlo aqui por muito tempo, pois sabemos como é ocupado.
Vamos ao meu quarto?
— Claro, milorde.
Lorde Rothwyn hesitou um pouco antes de dizer:
— Nesse caso, Lalitha, é melhor que eu lhe diga boanoite agora. Não quero que
fique acordada até tarde, considerandose que teremos um dia cansativo amanhã.
Partiremos ao meiodia. Está bem para você?
— Esperarei pronta — respondeu Lalitha.
Lorde Rothwyn beijoulhe a mão, demorando mais que habitualmente os lábios em
sua pele suave. Depois, ele e o médico subiram para o quarto.
Lalitha ficou desapontada! Sentiase como uma criança a quem fora negado um
divertimento na última hora. Enfim, haveria um amanhã em Roth Park. Eles estariam
juntos, fariam passeios juntos, pensou, e retomariam a conversa do ponto onde fora
interrompida.
Ela abriu a pasta com as gravuras. Como lorde Rothwyn fora amável em lhe dar
coisas tão lindas! Ela calculava que os desenhos haviam custado uma fortuna. Porém, isso
era o de menos; o importante foi que ele encontrara algo que coincidia exatamente com
seu gosto. Lalitha tinha a sensação de que lorde Rothwyn tentara lhe dizer alguma coisa
por meio dos desenhos.
Ela olhou outra vez para o anjo e experimentou um tipo de frenesi, o mesmo que
sentira quando ele lhe beijara a mão.
Como pôde lorde Rothwyn adivinhar que os croquis lhe agradariam mais que
qualquer tela de valor? E havia tanto que ela queria lhe dizer, tanto que queria ouvir...
Quase automaticamente arrumou as almofadas do sofá, como fizera muitas vezes
na casa da madrasta. Em seguida, pegou a pasta e notou que o papel do poema de lorde
Hadley não estava mais lá. Com certeza lorde Rothwyn o levara consigo. Estaria satisfeito
com seu esforço? Como gostaria de ter podido conversar com ele sobre as dificuldades que
tivera para decifrálo!
Bem devagar, Lalitha encaminhouse para o quarto. Aquela noite fora maravilhosa,
e teria sido ainda melhor se sir William não os tivesse interrompido. Que quereria lorde
Rothwyn dizer a ela? Não se atreveria a adivinhar!
No quarto não encontrou Nattie nem miss Robinson, esta última a velha empregada
que geralmente a ajudava a se despir; lá estava uma jovem que ela mal conhecia, apesar de
saberlhe o nome.
— Boa noite, Elsie — disse Lalitha. — Onde está Nattie?
— A governanta não se sente bem, milady, e miss Robinson igualmente.
— O que há com elas? — indagou Lalitha.
— Acho que foi alguma coisa que comeram no jantar, milady. Ambas estão doentes,
por isso vim para servir Vossa Senhoria.
— Espero que não seja nada grave. Acha que eu deveria ir vêlas?
— Penso que elas preferem ficar sozinhas, milady. Ninguém gosta de receber visitas
quando está doente.
— Isso é verdade — concordou Lalitha. — Mas o médico está aqui, seria interessante
que fosse ver o que há.
— Oh, não, milady. Elas não estão mal assim. Penso que tenha sido o peixe do
jantar, e tanto a governanta como miss Robinson têm estomago delicado. Eu estou bem e
comi a mesma, coisa.
— Então, o caso não pode ser grave. — Lalitha sorriu, foi para a penteadeira e tirou
o colar do pescoço.
Seria possível que lorde Rothwyn o dera a ela? Talvez o presente fora só pelo tempo
em que ela estivesse em Roth Park.
Lalitha não podia pensar claramente, nem se lembrar bem do que havia acontecido.
A proximidade de lorde Rothwyn e o tom grave da voz dele a afetara o tempo todo
durante o jantar e na conversa do salão.
Nesse instante, ela ouviu uma pancada ria porta.
— Espero que seja alguém trazendo Royal — disse ela a Elsie.
Um lacaio costumava passear com o cãozinho à noite. Depois,
Royal ficava com ela uns quinze minutos antes de ser levado para dormir.
Elsie foi atender à porta, falou com o empregado, e voltou para < o lado de Lalitha,
informandoa:
— Sinto muito, senhora, mas Royal sofreu um acidente.
— Um acidente? Onde? O que houve?
— Não foi nada sério, milady. Vossa Senhoria deseja vêlo?
— Sim, sim, claro. Onde está Royal?
— Venha comigo, milady — pediu Elsie.
Lalitha seguiua, desceu as escadas e foi por um corredor que provavelmente ia dar
no jardim. Estava muito aflita, pois amava Royal e sabia que o cachorrinho correspondia a
seu afeto. Ela acostumarase a vêlo sempre a seu lado, dormindo muitas vezes na cama
com ela, embora Nattie protestasse contra aquilo. A qualquer lugar que fosse, lá estava ele,
como uma sombra, grudado a seus calcanhares.
"Como poderia alguma coisa ter acontecido a ele?", ponderava Lalitha.
Os lacaios sempre o mantinham preso à coleira quando o levavam passear, pela
manhã e à noite. Apenas na companhia dela Royal tinha permissão de andar solto, pois a
obedecia prontamente.
Elsie a conduzia por uma ala da casa onde Lalitha nunca estive ra antes. Todos os
criados já tinham ido dormir, excetuandose o lacaio de plantão, no hall.
Enfim, as duas chegaram a um pequeno portão no jardim, que Elsie abriu. Havia
uma carruagem na rua.
"Royal deve ter sido atropelado", supôs logo Lalitha, com terror.
— Royal está dentro do carro, milady — declarou Elsie.
Lalitha olhou para o interior do veículo, escuro como breu. De súbito, um pano foi
jogado em sua cabeça. Ela tentou reagir, mas foi forçada a entrar no carro e jogada no
assento traseiro. Assim que a porta se fechou, os cavalos se puseram em movimento.
Lalitha não podia entender o que se passava. Lutava em vão para se livrar do pano que a
envolvia, mas este era resistente e a cobria da cabeça à cintura; mãos grosseiras amarraram
uma corda em volta de seu corpo, imobilizandolhe os braços.
— Socorro! — ela gritava. — Socorro!
Mas o som de sua voz saía abafado. Alguém ameaçoua:
— Continue com esse barulho que eu doulhe um soco que fará se calar.
Era uma pessoa rude que falava; com certeza faria o que prometera. O medo de ser
maltratada, medo esse que a afligira no passado, voltou com toda a intensidade. Eralhe
impossível emitir um som, impossível até se mover; podia apenas permanecer deitada
num canto da carruagem, completamente indefesa.
O homem amarrara também seus tornozelos juntos, e a corda cortavalhe a pele,
causandolhe grande sofrimento.
— Assim está melhor — disse ele. — Se falar, espancarei você até ficar inconsciente.
Entendeu?
Lalitha estava apavorada demais para responder. O homem deu uma gargalhada
de satisfação, sentouse no banco ao lado dela, e começou a fumar.
Que iria acontecer? Para onde a levavam? Que tinha aquilo tudo a ver com Royal?
Não, não, essa encenação nada tinha a ver com Royal, ele não fora atropelado, fora
só usado como isca para atraíla, para levála do quarto à rua, onde a carruagem a
aguardava.
Mas por quê? Que significava aquilo?
De súbito, de modo traiçoeiro, vindo à sua mente como o deslizar de uma serpente
revoltante, surgiu a possível resposta. Ela estava sendo raptada por um grupo de pessoas
conhecidas como "traficantes de escravas brancas".
Não, não, não podia ser verdade. Com certeza imaginava coisas. Ela não estava
metida em nada tão horrível, tão degradante, tão assustador! Mas a idéia persistia.
Para onde iria? Quem a desejava? Não são ladrões seus raptores, pois não possuía
nada de valor consigo. Além disso, quem sabia que ela usara jóias no jantar?
Lalitha pensou logo em Elsie. Era uma criada simpática, mas não exatamente o tipo
de menina simples, vinda de cidade pequena, como geralmente o eram as empregadas que
trabalhavam em mansões como a de lorde Rothwyn. Sua mãe dissera muitas vezes que os
grandes proprietários de terras empregavam para seu serviço gerações e gerações de
pessoas da mesma família. Os homens começavam como auxiliares na despensa, depois
passavam a lacaio, e finalmente a mordomo. As mulheres iam da copa para a cozinha,
como meras ajudantes, em seguida trabalhavam como camareiras, como assistentes de
cozinheira, e enfim como cozinheiras.
Em que categoria se encontraria Elsie? Teria mentido ao dizer que Nattie e miss
Robinson estavam doentes? E a mentira fora inventada por ela ou teria sido induzida a
isso por alguém?
Havia muitas perguntas para as quais Lalitha não possuía resposta, mas cada uma
delas lhe causava mais pânico, mais pavor acerca do que a aguardava. Se fosse algo
referente ao mercado de escravas brancas, quem poderia estar atrás daquilo tudo? Havia
apenas uma pessoa que a odiava a ponto de desejar vêla morta, uma pessoa que queria se
vingar porque Sophie não era a esposa de lorde Rothwyn.
Uma mulher, sim, uma mulher que a apavorava mais que qualquer coisa no
mundo: sua madrasta.
CAPÍTULO VII
Lorde Rothwyn mexeuse na cama, tendo a impressão de que alguém o chamava.
Logo depois, ouviu o ganido de um cachorro.
De onde poderia estar vindo aquele ruído? Bem depressa concluiu se tratar de
Royal. Ele dormia numa cesta, no quarto de Lalitha, que se comunicava com o seu por
uma porta que permanecia sempre fechada.
Lorde Rothwyn deduziu, então, que algo de errado se passava. Royal não estaria
ganindo daquele jeito se Lalitha estivesse no quarto.
Ele levantouse, acendeu uma vela, e pôs o robe. Bateu gentilmente na porta de
comunicação. A única resposta que obteve foi um latido de Royal e, após esperar mais um
pouco, abriu a porta.
O quarto estava em completa escuridão, ele foi buscar a vela e Royal seguiuo,
pulando. Voltou ao quarto de Lalitha. Uma suave fragrância enchia o ar, perfume que ele
associava sempre a ela. Porém, quando ergueu a vela para iluminar a cama, notou que
estava vazia. Não podia imaginar o que acontecera! Onde teria ido Lalitha? Por que razão
não se encontrava lá? Era inconcebível, àquela hora da noite, que ainda estivesse no salão
onde a deixara ao subir com sir William Knighton. Cheio de apreensão, lorde Rothwyn
voltou a seu quarto e tocou a sineta chamando o camareiro.
O andar térreo estava completamente às escuras, e só se ouvia o tique taque do
relógio do hall.
Que teria acontecido? Como pudera Lalitha sumir daquela maneira?
O valete entrou no quarto, ainda abotoando o paletó, o cabelo despenteado, a
expressão preocupada.
— Que houve, milorde? — indagou. — Vossa Senhoria está doente?
— Não, não há nada comigo, mas Sua Senhoria não se encontra no quarto.
— Não, milorde?
— Ela tem de estar em algum lugar da casa — continuou lorde Rothwyn, querendo
convencer a si mesmo. — Vá ao quarto de Nattie e veja se Sua Senhoria esta lá. Se não
estiver, acorde o mordomo e digalhe que venha aqui imediatamente.
— Pois não, milorde.
O valete saiu correndo do quarto e lorde Rothwyn começou a se vestir. Olhou para
o relógio e constatou que eram duas horas da madrugada.
Teria Lalitha fugido de novo? Mas ela parecia tão contente por estar de volta! Ele
vira lágrimas nos olhos dela quando saíra da diligência para entrar no coche. Também,
pela expressão dos olhos dela durante o jantar, percebera que estava mais feliz que nunca.
"Se abandonou esta casa, não foi por sua própria decisão", refletiu lorde Rothwyn.
"Todavia, quem a teria persuadido a me deixar mais uma vez?"
Já estava quase pronto quando o valete voltou ao quarto na companhia do
mordomo.
Lorde Rothwyn dirigiuse a este último:
— Robson, corra a casa toda de cima a baixo e descubra se alguém viu Sua Senhoria
sair.
— Pois não, milorde.
— Antes me diga; alguém esteve aqui depois que sir William Knighton saiu?
— Ninguém, milorde, enquanto eu estive no hall, mas vou saber ao certo do lacaio
de plantão.
— Faça isso, e depressa — observou lorde Rothwyn. — Ao mesmo tempo
providencie uma carruagem. Posso precisar de uma.
O mordomo retirouse e o valete ajudou seu amo a vestir o paletó.
Lorde Rothwyn não falou mais nada. Conjecturava sobre aonde teria ido Lalitha,
sobre onde devia procurála. Mesmo que ela tencionasse, por qualquer estranho motivo,
voltar a Norfolk, não seria provável fazer isso no meio da noite. Diligências não partiam
de Londres antes das seis ou sete da manhã e, o mais cedo que ela sairia de casa seria uma
hora antes apenas.
— Você sabe se Nattie notou qualquer coisa diferente quando ajudou Sua Senhoria a
se deitar ontem à noite? — ele finalmente indagou ao valete.
— A governanta não viu a Sua Senhoria na noite passada, milorde. Estava doente,
como também três outras empregadas.
— Então, quem serviu Sua Senhoria?
— Acho que foi Elsie, milorde.
— Vá buscar Elsie já.
O valete apressouse em obedecer.
Lorde Rothwyn colocou algumas libras em sua carteira, onde já havia bastante
dinheiro. Julgou que talvez necessitasse disso mais tarde. Tinha idéia de que precisava
estar preparado.
Royal, perto da lareira, observava tudo, e lorde Rothwyn se perguntou o que o
cachorro sabia, o que poderia contar se falasse.
No caso de haver partido, teria Lalitha levado alguma roupa? Ele foi ao quarto dela
e abriu as portas do guardaroupa. Estava cheio de vestidos, todos escolhidos por ele
mesmo. Notou duas coisas, porém: o vestido que ela usara no jantar não se achava lá, e a
capa de viagem, a única que Lalitha possuía, estava pendurada num canto do armário.
Sobre a penteadeira, ele viu um estojo de jóias com o colar, a pulseira e os brilhantes
que ela pusera nos cabelos.
Enquanto lorde Rothwyn examinava tudo, o mordomo entrou no quarto com
quatro criados.
— Descobriu alguma coisa? — lorde Rothwyn perguntou.
— Sim, milorde. Descobri algo muito estranho.
— Que foi?
— Henry levou Royal para passear no jardim, como de hábito, milorde...
— Não fiz nada de mal, juro que não fiz nada de mal, milorde — interrompeuo
Henry, soluçando.
— Fique quieto! — gritou o mordomo. — Deixeme falar com Sua Senhoria.
— Continue, Robson — ordenou lorde Rothwyn.
— Henry não conduziu o cachorro de volta para milady, como de uso — prosseguiu
o mordomo. — Bem tarde, à noite, George ouviu Royal ganindo e arranhando a porta da
cozinha.
— Tem certeza de que era Royal? — inquiriu lorde Rothwyn, dirigindose a George.
— Absoluta, milorde, embora não pudesse vêlo.
— E você não abriu a porta?
— Não, milorde, tentei, mas não consegui, pois estava trancada.
— Então, como sabe que era Royal?
— Eu passeei com o cachorro muitas vezes, milorde. Quando assobio ele fica quieto.
Foi o que fiz para ter certeza.
— E que providência você tomou até agora, Robson? — indagou lorde Rothwyn,
falando com o mordomo.
— Conversei bastante com Henry, milorde — replicou o mordomo, apontando para
Henry que parecia apavorado.
— Que disse ele?
— Para eu ficar com a boca calada! — Após uma pausa, o mordomo acrescentou: —
Também descobri que a governanta, e duas criadas ficaram doentes logo depois do jantar.
Por esse motivo Elsie cuidou de milady ontem.
Lorde Rothwyn lançou um olhar a Elsie. Ela usava um xale de flanela sobre a
camisola, e tinha os cabelos em desordem. Muito pálida, parecia amedrontada.
— Que aconteceu depois que Sua Senhoria se deitou, Elsie? — inquiriu lorde
Rothwyn.
— Nada, milorde.
— Não é verdade, milorde — protestou Henry. — Mas não queríamos que
acontecesse nada, juro, milorde! A culpa foi da mulher que vinha aqui quase todos os dias,
querendo saber coisas sobre milady. Certa ocasião ela foi à porta lateral e me fez
perguntas, dandome depois uma libra. Não vi nada de mal nisso, milorde, nada de mal.
— E o que houve em seguida?
— Ela apareceu três vezes na semana passada.
— E cada vez lhe deu gorjeta?
— Sim, milorde, e pediu para falar com uma das empregadas. Pensei logo em Elsie,
que aceitou a idéia.
— E onde se encontraram, a mulher, e Elsie?
— Numa casa em Hill Street, milorde.
Lorde Rothwyn começava a entender tudo. E prosseguiu com sua investigação.
— Por que você pensou logo em Elsie? Ela raramente serve Sua Senhoria.
— Porque a governanta ou miss Robinson não iriam, milorde.
Lorde Rothwyn tornou a olhar para Elsie. Ela estava visivelmente nervosa,
torcendo os dedos, e explicou:
— Como Henry, não quis fazer mal a milady.
— Que houve então? — interrompeu lorde Rothwyn. — Quero saber palavra por
palavra da conversa que você teve com aquela mulher.
Elsie deu um profundo suspiro.
— Era uma senhora simpática, milorde. Falou coisas tão agradáveis sobre milady!
Disse que conhecia desde criança.
— Que quis ela saber?
Elsie corou e não respondeu.
— Fizlhe uma pergunta — observou lorde Rothwyn, já impaciente. — E espero
uma resposta.
— Ela me perguntou se Vossa Senhoria e Sua Senhoria dormiam no mesmo quarto.
— E o que você respondeu?
— Disse que não.
— Que falou a mulher?
— Dirigiuse a um homem e declarou: "É como eu informei a você".
— Um homem? Que homem?
— Havia um homem na sala com ela.
— Como era esse homem?
— Parecia ser estrangeiro, milorde.
— Descrevao.
— Um pouco gordo, milorde, e usava muitas jóias.
— Velho ou moço?
— Não muito moço, milorde.
— Que respondeu ele à mulher?
Silêncio novamente. Pareceu desta vez que Elsie tentava se lembrar o que fora
conversado. Em seguida, replicou:
— Não sei se entendi bem, milorde, mas ela disse uma coisa que não fez muito
sentido para mim: "Isso torna a mercadoria mais valiosa".
— E depois? Quero a verdade, Elsie.
— A mulher me prometeu cinco libras, milorde, se eu convencesse milady a ir
conversar por um segundo apenas com aquele homem que a esperaria na porta da
mansão, numa carruagem. Contudo, jamais pensei que ele a levaria embora! Juro que
nunca sonhei.
— Todavia, não é você a camareira de Sua Senhoria.
— Sei disso, mas a mulher me deu um pó para pôr na comida das empregadas.
Garantiu que não ia fazer mal à governanta nem às outras criadas.
— E foi também idéia dessa mulher inventar que Royal sofrerá um acidente?
— Foi.
— E quanto Henry recebeu?
— Cinco libras — murmurou Henry.
— Eles falaram mais alguma coisa, a mulher c o homem, enquanto você estava lá?
Pense um pouco, Elsie, pode ser importante.
— No momento em que eu saía da sala, milorde, o homem falou qualquer coisa
sobre "porto".
Lorde Rothwyn deu uma exclamação e retirouse correndo do quarto. Royal
seguiuo sem que ninguém percebesse. Um lacaio entregou a ele o chapéu e a capa, e abriu
a porta da frente. A carruagem o aguardava.
— Para o porto, a toda velocidade — ordenou ele ao co cheiro.
Só quando o lacaio fechou a porta do carro foi que ele viu Royal sentado a seu lado.
Lalitha tinha a impressão de que estava sendo levada para muito longe. Era jogada
de um lado para o outro, com os solavancos da carruagem. A corda a machucava cada vez
mais, e ela quase não podia respirar. Procurava refletir, mas não conseguia, e teve um
medo horrível.
Para onde estaria ela sendo levada? Estava certa, agora, de que fora raptada. Seria
talvez transportada para outro país e vendida como escrava! Era inocente demais para
saber o que aconteceria depois que fosse posta à venda, mas não duvidava ser algo
degradante e horroroso. E, mais ainda, ninguém a acharia, nunca mais veria lorde
Rothwyn.
Pensava no pouco que tinha a recordar: o beijo que ele lhe dera quando a
confundira com Sophie, o peso da cabeça dele contra seu peito... e só. Seria isso suficiente
para mantêla mentalmente sã, durante os dias de terror que a aguardavam?
Como poderia lorde Rothwyn encontrála num país estranho, num país que nem
ela sabia qual era?
Estaria lorde Rothwyn pensando que ela fugira? Não, não, impossível admitir essa
fuga após a felicidade do último jantar, o modo como conversaram, e a alegria que ela
demonstrara ao receber os desenhos.
Lalitha revivia tudo o que se passara naquela noite:
"Lalitha!", dissera ele num tom diferente de voz, que a fez vibrar de emoção.
"O senhor vai rir de mim por eu ser muito sentimental!", ela falara e ele replicara:
"Não estou rindo, e quero dizerlhe algo".
Que tencionava ele dizer? Lembravase do brilho no olhar de lorde Rothwyn
quando pronunciara aquelas palavras.
Quem sabe não era nada importante. A suposição de que lorde Rothwyn desejava
lhe dizer coisas maravilhosas provinha do fato de ela estar cega de amor. Amavao
profundamente, e estar perto dele era como ouvir uma música divina, vinda do coração.
Recordavase de que ela lhe revelara que admirava uma pintura não com os olhos,
mas com a alma. Depois que lera o poema, ele lhe perguntara se achava que a mulher a
quem lorde Hadley dirigira aquelas linhas o amava de verdade!
Lorde Rothwyn era tão bondoso, tão simpático. Agora, nunca mais saberia a
resposta a todas as perguntas que desejava lhe fazer. Estava sendo levada para longe, para
muito longe! Seu futuro seria mil vezes pior que tudo que sofrerá nas mãos da madrasta.
Quis gritar, mas sabia o que sucederia se o fizesse. Temia ser espancada.
"Escaparei eu desse destino maldito?", pensou. E pareceulhe ouvir uma voz que
lhe respondia, sarcasticamente: "Só depois da morte"!
Então Lalitha concluiu que, a ser verdade o que suspeitava, seria mesmo conduzida
a um país estrangeiro, e humilhada. Nesse caso, preferia morrer. Perguntavase se
suicidarse seria difícil. Não possuía pistola nem faca; sendo assim como morrer?
Encontraria um meio, sim, encontraria um meio, mas só depois de ter absoluta certeza de
que lorde Rothwyn não a resgataria. Imagine se ele, após procurála por toda parte e,
encontrasse morta?
Em seguida, zombando de si mesma, pensou que talvez lorde Rothwyn até sentisse
um alívio por ter se livrado de uma incumbência desagradável!
Lembrouse de repente que não soubera o que ele havia dito a Sophie em Roth
Park. Sophie insistira que tudo o que lorde Rothwyn desejava era o amor dela e, uma vez
conseguido, não pensaria mais na mulher que desposara por vingança! Porém, ele deixara
Sophie para procurála! E a achara! Se ela tivesse chegado a Norfolk, teria sido muito mais
difícil encontrála. Nem ela mesma sabia onde sua velha governanta morava!
De súbito, Lalitha teve a impressão de ver uma luz no fim do túnel, havia
esperança! Sim, ela acreditava que lorde Rothwyn não a abandonaria, ele a encontraria,
com certeza. Mas como?
Tudo fora feito com tanta habilidade! Nattie e as empregadas doentes, Elsie
servindoa, e o "acidente" de Royal. Ela saíra correndo do quarto, sem que ninguém
soubesse para onde ia. Lorde Rothwyn, provavelmente, ainda estava dormindo,
acreditando que ela dormisse ali ao lado. Aí, pensou na porta de comunicação. Quantas
vezes olhara para aquela porta! Quando lorde Rothwyn estava doente, ela se via abrindoa
e indo ao encontro dele, mesmo sem ser convidada. Ele teria ficado surpreendido com seu
atrevimento, talvez até zangado! Contudo, ela o veria, ouviria a voz dele. Ouvirlhe a voz,
mesmo irritada, era melhor que nada.
"Que vai suceder de manhã, quando ele acordar e souber que eu não passei a noite
na mansão? Nattie, se estiver melhor, dará a notícia. Mas muito tempo se passará até que
alguém venha à minha procura". Lalitha teve vontade de chorar, agora outra vez sem
esperança.
A carruagem parou. Ela ouviu o apito de um navio e deduziu que estavam na
margem do rio.
Pela primeira vez o homem que viajava a seu lado falou.
— Fique quieta e não se mova! Se ouvir qualquer ruído, a espancarei!
Ele abriu a porta da carruagem e saiu. Mãos rudes a pegaram e a levaram para fora.
Eram dois os homens, isso ela pôde perceber. Eles a colocaram numa maca e um terceiro a
cobriu da cabeça aos pés com um pano grosso. Lalitha mal podia respirar. Os homens a
carregaram e ela percebeu que subiam por uma prancha de embarque.
— Para o porão — outro homem gritou com um forte sotaque estrangeiro.
Ela acertara em seu prognóstico. Estava num navio e iria atravessar o canal da
Mancha. Começou então a rezar para que lorde Rothwyn a encontrasse.
"Salveme! Salveme! Salveme porque, do contrário, prefiro morrer."
Os homens que a carregavam puseram a maca no convés e um deles pegoua e a
colocou sobre o ombro. Sua cabeça ficou pendurada nas costas do homem que, com o
braço, lhe segurava as pernas. Ele desceu por uma escada que levava ao porão do navio. A
passagem era tão estreita que os ombros do homem roçavam as paredes laterais. No fim
da escada havia uma pequena porta que ele destrancou para logo em seguida jogar Lalitha
no chão da minúscula cabine, e com tanta brutalidade que lhe machucou as costas. Ela deu
um grito de dor. O homem desamarrou a corda que segurava o pano. Por segundos, ela
não enxergava nada, e imaginou estar cega. Sem dizer uma palavra, o homem atoulhe as
mãos e, retirando um lenço de seu próprio bolso, o pôs na boca de Lalitha, amordaçandoa
firmemente. E disse:
— Isso é paca você aprender a ficar quieta. Eu a preveni antes sobre o que
aconteceria se emitisse um som, qualquer que fosse. E a mesma coisa é válida para todas
vocês.
Lalitha percebeu que havia uma minúscula escotilha na cabine, e que a razão da
dificuldade em ver residia no fato de estar escuro lá fora.
O homem que a amordaçara retirouse e bateu a porta com força, dando várias
voltas à chave. Lalitha tentava adivinhar a quem ele se referira ao dizer "todas vocês".
Pouco a pouco ela se acostumou ã escuridão e viu, no chão do cubículo de teto baixo,
desprovido de móveis, outras mulheres deitadas, amordaçadas também, e com os braços
amarrados nas costas, da mesma maneira que ela.
Amanhecia, e os primeiros raios de sol, penetrando pela vigia, começaram a
dispersar as trevas. Lalitha sentouse com esforço, apoiandose contra uma parede. Agora
podia distinguir bem tudo. Havia oito mulheres, todas elas com olhos arregalados de
pavor.
"Nove mulheres ao todo", pensou Lalitha.
E, enquanto refletia sobre o número de vítimas, ouviu passos pelo corredor. A porta
foi destrancada e o mesmo homem apareceu carregando no ombro outra mulher. Jogoua
no chão, removeu o pano que a cobria, amarroulhe as mãos e amordaçoua. Essa era
muito jovem, loira e bonita.
— Vamos partir em poucos minutos — comunicou ele. — Quando estivermos no
oceano, vocês serão desamarradas, mas isso se se comportarem bem.
Ele saiu e trancou a porta.
"Vamos deixar a Inglaterra", concluiu Lalitha."Ninguém jamais saberá o que houve
comigo."
Ela pensou em tentar se desamarrar. Talvez conseguisse, mas, como sair daquele
lugar? A porta estava trancada e a única vigia dava para o rio. E ela não ignorava o tipo de
punição que a aguardava se fosse apanhada fugindo.
Olhando ao redor viu duas moças de olhos fechados que pareciam dormir. Mas
teve a impressão de que não era um sono normal. As outras tinham os olhos arregalados,
as pupilas dilatadas. Todas aparentavam ser muito jovens, não tendo mais de quinze ou
dezesseis anos, e estavam modestamente vestidas.
"Qual será o destino dessas criaturas? E o meu?", raciocinava Lalitha.
Ela ouvia o barulho do navio que zarpava, e o ruído do vento que enfunava as
velas. Sentia muito frio com seu vestido leve.
Encontravamse já no meio do rio. O sol brilhava com mais intensidade e Lalitha se
perguntava se o quarto de lorde Rothwyn também estava cheio de sol, e se ele já
despertara.
Seria mesmo possível se comunicar com alguém ausente? Ela acreditava no poder
da mente, sempre se convencera de que a mente não tinha limites nem fronteiras. Tal
crença funcionaria na prática?
"Venha em meu socorro, milorde! Salveme!", suplicava ela em pensamento. "Por
favor, meu Deus, faça com que ele me ouça, façao saber que estou em perigo. Por favor,
meu Deus!"
Aí, ela chegou à conclusão de que seu caso era sem esperança, pois o navio movia
se rapidamente rio abaixo ajudado pela maré.
Suas preces falharam. Não havia possibilidade de salvação para ela e para as outras
companheiras de desventura.
A moça sentada a seu lado conseguira se desvencilhar da mordaça, e perguntou a
Lalitha, com voz cheia de medo:
— Que está acontecendo? Para onde estamos indo?
Era uma menina simples, bonita apesar de um pouco gorda, e com as faces coradas
típicas de uma camponesa.
Vendo que ela se livrara da mordaça, Lalitha procurou fazer o mesmo. Moveu os
lábios repetidas vezes e o lenço caiu. A moça então disse:
— Assim é melhor, ao menos podemos conversar.
— É verdade — concordou Lalitha.
— Eu não entendo por que estamos aqui.
— De onde você veio? — indagou Lalitha.
— De Somerset. Prometeramme um emprego em Londres.
— Que tipo de emprego?
— De ajudante de cozinheira, na casa de um nobre. E eu dei à mulher meu endereço
certo.
— Que mulher? — inquiriu Lalitha.
— A mulher que foi falar comigo na estação terminal da diligência. Ela me
perguntou para onde eu queria ir, e eu disse. Então, me ofereceu sua carruagem. Achei
mais interessante ir para meu emprego de carro que a pé.
— O que houve depois?
— Não sei bem. A única lembrança que tenho é de que a mulher me fez beber
alguma coisa, alegando que eu devia estar muito cansada. Depois disso, vim parar neste
navio, amarrada aqui no chão. Qual é o motivo de tudo isso? Que querem de nós?
Lalitha ficou silenciosa. Não havia razão para assustar a pobre menina.
— Mais cedo ou mais tarde vamos saber — Lalitha enfim falou. — Mas penso que
fomos raptadas.
— Raptadas?! — exclamou a garota. — Mas por quê? Não tenho quase dinheiro
algum, só uma moeda de pouco valor.
Lalitha passou o olhar pelas outras moças e viu que elas também tentavam remover
a mordaça. Contudo, ou não eram tão habilidosas ou as mordaças tinham sido colocadas
mais fortemente, pois nada conseguiram. A moça de Somerset começou a choramingar:
— Quero minha mãe! Quero ir para casa! Pretendia encontrar um emprego em
Londres para ajudar minha família, mas agora estou com medo, muito medo. Quero ir
para casa!
"Nós todas queremos", Lalitha ia responder.
Todavia, apenas disse com muito sanguefrio:
— Você precisa ser corajosa. Não adianta irritar as pessoas que nos raptaram. Vão
nos castigar por isso.
— Acha que baterão em nós? — indagou a moça.
Lalitha não respondeu, mas lembrouse de que lorde Rothwyn dissera que os
traficantes de escravas brancas espancavam ou drogavam as moças que não obedeciam.
"Meu Deus, ajudenos!", rezava Lalitha.
O navio moviase em grande velocidade, impulsionado pelo vento forte. Se
continuasse assim, chegariam em poucas horas à Holanda, ou em qualquer outro local do
continente europeu.
Lalitha olhou mais uma vez para as outras moças, e concluiu que ela era a mais
velha de todas. Não havia motivo para estar incluída naquele carregamento humano.
Aquilo fora idéia de sua madrasta, não restava dúvida. Com certeza Sophie contara à mãe
que, em vez de lorde Rothwyn se alegrar com a visita dela, correra para alcançar a
diligência. Lalitha podia imaginar a fúria de sua madrasta, ao constatar que Sophie, apesar
de toda beleza, perdera tão vantajoso pretendente.
Lalitha duvidava, apesar do que Sophie dissera, que Julius Verton ainda estava a
seus pés. Se fosse verdade, ela se contentaria com o homem de quem estava noiva, e não
correria atrás de lorde Rothwyn.
Julius recebera, por certo, a carta de rompimento e, mesmo com o coração partido,
seu orgulho não o permitiria aceitar Sophie de volta. Herdeiro que era de um ducado,
poderia fazer casamento muito melhor, pois sua união com Sophie não passava de uma
mésalliance. E a única esperança que restava a Sophie, não tendo conseguido nem Julius
nem lorde Rothwyn, era se casar com o devasso, velho e desagradável sir Thomas
Whernside, o terceiro na lista de seus pretendentes.
"Não há a menor dúvida de que tanto Sophie como a mãe jamais me perdoarão",
pensava Lalitha com humildade.
Todavia, embora lorde Rothwyn a tivesse seguido, acreditava que ele ainda amava
Sophie. Como poderia um homem resistir a tanta beleza, a tanta sedução? Qualquer
mulher ficava insignificante perto dela.
"Como ouso esperar que ele se interesse por mim?"
Seus pensamentos a levaram para longe da situação em que se encontrava no
momento, e ela só voltou à realidade quando a moça de Somerset lhe perguntou:
— Não podemos mesmo fazer nada? Não podemos escapar disto tudo?
— Não saberia como — respondeu Lalitha. — Você não conseguiria, por exemplo,
desamarrar a corda que prende suas mãos nas costas!
— Não a de minhas mãos, mas talvez a das suas.
— De que jeito? — interrogou Lalitha curiosa.
— Se nos sentarmos costas contra costas.
— Você é esperta mesmo! — exclamou Lalitha. — E eu que não havia pensado nisso
antes!
As duas se acomodaram, então, com as costas unidas. Lalitha sentiu logo os dedos
ágeis da moça remexendo na corda que prendia suas mãos na cintura. Levou algum
tempo, mas enfim ela conseguiu desamarrar as mãos de Lalitha que fez o mesmo com as
dela.
— Eles disseram que vão nos soltar assim que estivermos em alto mar — observou
Lalitha. — Por isso, quando vierem aqui, é melhor fingirmos que ainda estamos presas.
— Entendo — concordou a moça. — E quanto às outras?
— Acho que posso livrálas da mordaça. Porém, talvez seja mais prudente que nós a
coloquemos de volta na hora que ouvirmos passos no corredor.
Lalitha e a moça de Somerset agiram depressa. As moças todas, logo que puderam
falar, repetiam a mesma coisa:
— Para onde vamos? Que querem eles de nós? Estou com medo!
Quando Lalitha chegou perto das duas moças de olhos fechados, constatou que
dormiam um sono pesado. Deduziu, então, que estavam drogadas. Ambas eram bonitas,
louras e bemfeitas de corpo.
"Talvez sejam mais felizes dormindo que acordadas", pensou ela. "Ao menos não se
preocupam com o futuro."
O navio começou a jogar, e as ondas do rio pareciam turbulentas. De repente, ela
notou que os homens de bordo berravam, e achou que havia uma nota de alarme na voz
deles. Alguns falavam num idioma estrangeiro, outros em inglês.
Aí, inesperadamente, ouviramse sons de passos no corredor próximo à cabine
onde elas se encontravam, bem depressa, as moças recolocaram a mordaça e puseram as
mãos para irás, enrolando as na corda.
Quatro homens entraram na cabine. Para espanto de Lalitha, eles abriram um
painel corrediço, atrás do qual havia uma escura cavidade. Os homens começaram a
carregar as meninas, uma a uma, e a jogálas no buraco atrás do painel. Quando
descobriram que todas haviam desamarrado a corda e tirado a mordaça, prenderamnas
novamente.
— Vocês serão castigadas mais tarde pelo que fizeram. — Ameaçou um dos
homens.
Dois deles pegaram Lalitha e a atiraram na cavidade; ela bateu em cheio no suporte
de madeira rústica do pequeno compartimento que ficava na popa do navio.
O espaço era mínimo, havia pouco ar, e as moças estavam amontoadas.
— Um só grito e eu arrebento todas vocês — berrou o homem que conduzira Lalitha
a bordo.
Ele voltou para a cabine e recolocou o painel no lugar. Nem uma réstia de luz
penetrava no esconderijo.
O navio diminuía a marcha, e Lalitha ouviu o som de outra embarcação que se
aproximava. Ela tremia de frio e de medo, e todas as moças estavam apavoradas.
Depois de muito tempo, quando já começava a acreditar que se enganara, e que não
havia outro barco seguindo o delas, vozes e passos se fizeram ouvir, bem perto da cabine.
A porta foi aberta e, com o coração aos pulos, Lalitha escutou a voz de lorde Rothwyn.
— Que há aqui? — indagou ele.
— Apenas uma cabine, sir.
Lalitha lutava para se livrar da mordaça, mas em vão. Teria batido os pés no chão,
porém estava em cima de outra moça.
"Ele não vai ver... nem ouvir... nada!", pensou ela em desespero. "Salveme... estou
aqui! Salveme!", ela quis gritar.
Escutou então um ganido e arranhões no painel corrediço. Era Royal. Ela conhecia
bem os sons que ele fazia quando excitado, ou quando queria ir para junto dela. Em
seguida, ouviu lorde Rothwyn declarar:
— Gostaria de saber o que está excitando meu cachorro assim! Pareceme que há
algo atrás dessa parede.
— São ratos, sir! — explicou um dos homens. — O navio está infestado deles! O
senhor possui um bom cão de caça.
— É estranho ele estar tão excitado! Chame imediatamente o comandante. Há
alguma coisa a investigar.
— Não há nada aqui, sir — insistia o homem. — Nada mesmo! Está perdendo seu
tempo, sir!
— Confio no instinto de meu cachorro! — replicou lorde Rothwyn friamente.
Em poucos minutos dois oficiais da Marinha apareceram, um deles o comandante
do barco.
— O senhor deseja falar comigo, milorde? — indagou o comandante.
— Sim. Acho que meu cachorro farejou qualquer coisa aqui. Foi então que Lalitha,
com esforço sobrehumano, soltou as mãos. Tirando a mordaça da boca, ela gritou; não foi
um grito estridente, mas pôde ser ouvido.
Isso forçou os oficiais a empurrarem o painel. Royal pulou logo para a escura
cavidade, latindo e lambendo o rosto de Lalitha.
Ela foi conduzida à cabine e, com os tornozelos ainda atados, viuse abraçada por
lorde Rothwyn.
— Você... Veio! — exclamou, escondendo o rosto no ombro dele. — Sabia... tinha
certeza de que atenderia... Meu apelo, o apelo de meu coração.
CAPÍTULO VIII
FIM
Quem é Barbara Cartland?