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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 39: 103-114 JUN.

2011

GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA:
1
UMA GENEALOGIA

Mark Bevir

RESUMO

Este artigo trata de problemas na teoria e na prática democráticas. No século XX novas teorias econômicas
e sociológicas da racionalidade dominaram a Ciência Social, enfraquecendo os antigos ideais da democracia
representativa. Por algum tempo, o paradigma burocrático pareceu oferecer uma solução, mas na década
de 1980 a burocracia era criticada como ineficiente e irresponsável. Como se poderia lidar com os problemas
resultantes da governança democrática? Atores políticos responderam a essa pergunta aferrando-se ao
antigo ideal da democracia representativa apoiada por formas de conhecimento técnico baseadas nas
novas teorias da racionalidade. Assim, uma nova governança de mercados e redes difundiu-se pelo mundo.
Com isso, os governos representativos ainda lutam para dirigir o processo político, ao mesmo tempo que um
conhecimento técnico ilusório entulha a participação democrática. A democracia contemporânea sofre
tanto com os limites borrados da accountability quanto com a legitimidade declinante. O artigo conclui
sugerindo que a renovação democrática pode depender de estilos mais interpretativos de conhecimento
técnico, de formas dialógicas de elaboração de políticas públicas e de diversas vias de participação pública.
PALAVRAS-CHAVE: governança; democracia; accountability; modernismo; idéias políticas; políticas
públicas.

I. INTRODUÇÃO na teoria e na prática em direção a mercados e a


redes.
Quando a palavra “governança” refere-se à
organização e à ação públicas, ela captura uma Este ensaio baseia-se em meu livro Democratic
das maiores tendências dos tempos atuais. Cien- Governance (BEVIR, 2010) e oferece uma
tistas sociais, especialmente aqueles que genealogia da governança, assim como explora
pesquisam a administração pública e o governo suas implicações para a democracia. Meus argu-
local, acreditam que a organização e a ação públi- mentos podem ser rapidamente apresentados
cas moveram-se da hierarquia e da burocracia para como segue:
os mercados e as redes. Dúvidas podem perma-
- a governança surgiu e espalhou-se como uma
necer a respeito de qualquer tentativa de exagerar
conseqüência de novas teorias modernistas e das
a mudança: seguramente as hierarquias burocráti-
reformas do setor público que foram inspiradas
cas mantêm-se espalhadas e são, sem dúvida, as
por tais teorias;
formas mais comuns de governo. Questões po-
dem manter-se a respeito da natureza da mudan- - os atores políticos respondem aos desafios
ça: os governos tornaram-se menos capazes de da governança acrescentando às instituições re-
definir seus rumos ou meramente alteraram as presentativas ainda mais conhecimento técnico
formas de fazerem-no? Ainda assim, a despeito modernista.
dessas dúvidas e questões, há um amplo consen-
II. UMA GENEALOGIA DA GOVERNANÇA
so de que a “governança” captura uma alteração
No final do século XIX, a Ciência Política era
dominada por um historicismo desenvolvimentista
1 O presente artigo é a tradução de “Democratic
que inspirou grandes narrativas centradas na na-
ção, no Estado e na liberdade. Esse tipo de
Governance: A Genealogy”, apresentado no X Congresso
Anual da Western Political Science Association, realizado historicismo apelava para narrativas que situavam
de 31 de março a 3 de abril de 2010, em San Antonio eventos e instituições em uma ampla ordem de
(Estados Unidos). Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda progressiva continuidade; exemplos dele incluem
e revisão da tradução de Ricardo V. Silva.

Recebido em 15 de novembro de 2010.


Aprovado em 30 de novembro de 2010.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 39, p. 103-114, jun. 2011
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a história whig2, a filosofia idealista e a teorização surgimento de modos modernistas de conhecimen-


evolucionista. O traço mais significativo da Ciên- to que atomizam o fluxo da realidade. A Tabela 1
cia Social do século XX foi, em claro contraste, o oferece um resumo dessas concepções.

TABELA 1 – SURGIMENTO E VARIEDADES DO MODERNISMO

FONTE: o autor.

A ruptura modernista com o historicismo de; ela surge com a teoria econômica neoclássica
desenvolvimentista teve aspectos formais e subs- e difunde-se com a teoria da escolha racional. Por
tantivos. Em termos formais, os modernistas pas- outro lado, o conceito sociológico de racionalidade
saram de narrativas históricas para modelos for- privilegia a adequabilidade relativamente às nor-
mais, correlações e classificações que perpassam mas sociais; ele surgiu com o funcionalismo e di-
o tempo e o espaço. Eles explicam os resultados fundiu-se com a teoria das redes e com o
por meio de referências a tipos psicológicos, exi- comunitarismo.
gências funcionais dos sistemas, uma
O conceito econômico de racionalidade encon-
racionalidade humana geral e mecanismos e pro-
trado na teoria neoclássica tem uma história espe-
cessos anistóricos. Em termos substantivos, o
cífica. Ao longo do século XIX, os economistas
modernismo incorporou novos tópicos emergen-
fundiram as análises avançadas por Adam Smith
tes, incluindo partidos políticos, grupos de inte-
com temas orgânicos e históricos. A economia
resse e redes políticas. Os aspectos substantivos
neoclássica estabeleceu sua predominância somen-
e formais do modernismo freqüentemente refor-
te quando o historicismo desenvolvimentista ce-
çam um ao outro: as novas técnicas tornaram mais
deu espaço para o modernismo. Mesmo então ela
fácil estudar alguns dos novos tópicos e os novos
não obliterou outras tradições; as abordagens his-
tópicos pareciam requerer novas técnicas para
tórica e institucional da economia continuaram a
obter e organizar os dados.
prosperar, especialmente no continente europeu,
A Ciência Social contemporânea é dominada onde os economistas permaneceram divididos a
por duas variedades de modernismo. Ambas respeito da teoria da utilidade até o final dos anos
constrastam com o historicismo desenvolvimen- 1930. No entanto, a difusão do modernismo viu
tista, mas cada uma contempla diferentes concei- as narrativas diacrônicas do desenvolvimento de
tos formais e anistóricos da racionalidade associ- economias, estados e civilizações ceder espaço para
ada a diferentes formas de explicação e, assim, a os modelos sincrônicos e as correlações estatísti-
diferentes análises da governança e da democra- cas.
cia. Por um lado, o conceito econômico da
A economia neoclássica incorpora um concei-
racionalidade privilegia a maximização da utilida-
to de racionalidade adequado à ênfase modernista
na atomização, na dedução e nas análises
2 A “história whig” refere-se à historiografia desenvolvida sincrônicas. A racionalidade econômica é uma
por pensadores simpáticos ao partido Whig, que eram os propriedade de decisões e ações individuais; ela
liberais e os democratas britânicos, opostos ao partido Tory, não se vincula a normas, práticas ou sociedades,
conservador (nota do tradutor). exceto na medida em que estas sejam julgadas

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adequados meios efetivos ou inefetivos para agre- ciólogos modernistas compartimentalizam aspec-
gar as escolhas individuais. Além disso, essa tos da vida social a fim de lidar com os fatos e
racionalidade é postulada como um axioma sobre explicá-los; procuram compreender o particular
o qual se pode elaborar modelos dedutivos; ela não ao localizá-lo em uma narrativa temporal mas
não é estruturada como um princípio com o qual ao reduzi-lo a generalizações formais de nível in-
se possa interpretar fatos descobertos por meio termediário ou universal que supostamente per-
de pesquisa indutiva e empírica. Finalmente, os passam o tempo e o espaço. Os sociólogos, as-
modelos derivados dos axiomas da racionalidade sim como os economistas, podem esboçar mode-
econômica são aplicados a padrões gerais, inde- los dedutivos, mas também eles rejeitam narrati-
pendentemente de tempo e espaço; eles não vas, preferindo classificações formais, correla-
rastreiam as evoluções particulares de indivíduos, ções, funções, sistemas e tipos ideais. Embora
práticas ou sociedades. A perspectiva modernista possamos observar temas funcionalistas no sé-
do conhecimento prepara a cena para o conceito culo XIX, essas formas sociológicas de explica-
econômico de racionalidade, mas é com a ção floresceram somente com o surgimento do
maximização da utilidade que o conceito adquire modernismo; foram Durkheim e Bronislaw
seu conteúdo. Na economia neoclássica, os indi- Malinowski, não Augusto Comte e Herbert
víduos agem de modo a maximizar sua utilidade Spencer, que distinguiram as explicações funcio-
pessoal, em que a utilidade é definida como uma nais que se referem ao papel sincrônico de um
medida da satisfação ou da felicidade obtida de objeto em um sistema ou ordem social (um tipo
um bem consumível ou de outro resultado. de explicação que eles consideravam científica)
tanto da questão psicológica da motivação quanto
As mais proeminentes alternativas para o con-
da questão histórica das origens.
ceito econômico de racionalidade são os concei-
tos sociológicos, que substituem a instrumentali- A passagem do historicismo desenvolvimentista
dade pela adequabilidade. A racionalidade socioló- para o modernismo alterou o conceito e a nature-
gica trata do agir de acordo com normas sociais za do Estado. Como os modernistas rejeitaram as
apropriadas a fim de desempenhar papéis estabe- narrativas históricas, eles também desafiaram o
lecidos em sistemas, processos, instituições ou conceito do Estado como surgindo de uma nação
práticas. Alguns sociólogos, incluindo Emile juntamente com língua, cultura e passado comuns.
Durkheim e Pierre Bourdieu, argumentaram que Em vez disso, os modernistas voltaram-se para
mesmo os modernos indivíduos são melhor con- padrões formais, regularidades ou modelos de ação
cebidos não como atores instrumentais mas como e instituições ao longo do espaço e do tempo.
seguidores de normais e papéis sociais; outros Novamente: quando os modernistas passaram de
sociólogos, incluindo Max Weber e Herbert um foco substantivo no Estado para tópicos como
Marcuse, expressam temores a respeito da difu- partidos políticos, grupos de interesse e redes
são de normas egoístas, aquisitivas e instrumen- políticas, essas instituições subestatais foram es-
tais nas modernas sociedades. Assim, os dois ra- tudadas em termos de leis ou regularidades deri-
mos da Sociologia modernista podem andar jun- vadas, por exemplo, de suas funções em sistemas
tos em amplas condenações da modernidade, do abstratos. Mesmo quando os modernistas perma-
capitalismo ou do consumismo, vistos como neceram estudando o Estado, eles cada vez mais
difusores de normas egoístas e instrumentais que o representaram como fragmentado em interes-
arruínam formas antigas de solidariedade e co- ses facciosos associados a diferentes classes ou
munidade. partidos.
É digno de nota que essas tradições sociológi- O modernismo desafiou a idéia de que a de-
cas, com seus conceitos alternativos de mocracia representativa era uma forma de eleger
racionalidade, datam, assim como a economia e de avaliar os políticos, que por sua vez poderi-
neoclássica, da ampla passagem intelectual do am agir de acordo com o bem comum de uma
historicismo desenvolvimentista para o modernis- nação. Desse modo, a democracia representativa
mo, com sua ênfase em análises sincrônicas. Os estava em perigo de perder muito de sua legitimi-
aspectos comuns dos conceitos econômico e so- dade. Ainda assim, as formas modernistas de co-
ciológico de racionalidade são tão importantes nhecimento revelaram novos modos de elaborar e
quanto suas diferenças. Os economistas e os so- legitimar as políticas públicas nas democracias

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representativas; em particular, a Ciência Social do século XX; no entanto, uma forma de aproxi-
modernista inspirou uma nova crença na especia- mação dessas narrativas é percebê-las como in-
lização formal. Os representantes eleitos não pre- corporando diferentes análises modernistas. Al-
cisam mais expressar um caráter nacional e o bem gumas narrativas da crise do Estado desafiaram a
comum; eles podem definir objetivos políticos e burocracia, o corporativismo e o Estado de Bem-
verificar a atividade de especialistas. Cientistas Estar Social em termos do conceito econômico
sociais, profissionais e servidores públicos de racionalidade. Concepções neoclássicas sobre
generalistas poderiam usar seus conhecimentos o nível “micro” informam, por exemplo, narrati-
técnicos para elaborar políticas racionais e cientí- vas que tentaram apresentar as crises fiscais como
ficas de acordo com esses objetivos. A Ciência sendo uma patologia constituída no interior do
Social modernista ajudou assim a criar as condi- Estado de Bem-Estar Social. Essas narrativas pro-
ções para o Estado administrativo. cediam como se segue. Os cidadãos, sendo ato-
res racionais, tentam maximizar seus interesses
Uma justificativa importante para a criação de
de curto prazo, privilegiando as políticas de bem-
uma burocracia crescentemente insulada e cen-
estar que os beneficiam como indivíduos, em vez
tralizada foi a necessidade de lidar com abusos e
dos efeitos de longo prazo, cumulativos e com-
irracionalidades nos processos democráticos. Ci-
partilhados resultantes do aumento dos gastos
entistas sociais modernistas, como Mosei
estatais. De maneira semelhante, os políticos, sen-
Ostrogrorski, Graham Wallas e W. F. Willoughby,
do atores racionais, tentam maximizar seus inte-
escreveram a respeito do facciosismo, da doutri-
resses eleitorais de curto prazo, promovendo po-
nação política e das extravagâncias financeiras a
líticas que obterão os votos dos cidadãos racio-
que os governos democráticos estão predispos-
nais, em vez de perseguir a responsabilidade fis-
tos. Muitos acreditavam que uma burocracia in-
cal. Considerações políticas estreitas assim pre-
sulada e centralizada poderia tanto preservar a
valecem sobre imperativos econômicos. Grupos
democracia quanto remover seus piores aspectos
de eleitores demandam mais e mais benefícios de
– a instabilidade, a irracionalidade e o sectarismo
bem-estar e políticos constantemente aprovam
– das atividades diárias do governo. O
legislação de bem-estar em benefício desses elei-
corporativismo e o Estado de Bem-Estar Social
tores. Essas narrativas de um Estado sobrecarre-
surgiram em parte como arranjos burocráticos
gado e da crise do Estado apontam para uma cla-
para superar o facciosismo e a irracionalidade.
ra solução – a austeridade fiscal, o controle mo-
Com o corporativismo, a burocracia procurou
netário e uma redução do tamanho do Estado.
organizar os interesses e intermediar suas dispu-
tas. O Estado corporativista conferiu às associa- Outras narrativas da crise do Estado elabora-
ções particulares um status privilegiado como re- ram análises mais sociológicas das mudanças no
presentantes dos grupos sociais e econômicos. mundo; elas implicam que o Estado tinha que
As associações privilegiadas eram envolvidas na mudar em resposta a pressões internacionais e
formulação de políticas públicas e elas retribuíam domésticas. Internacionalmente, a crescente mo-
ajudando a assegurar a implementação dessas po- bilidade do capital tornara mais difícil para os es-
líticas. A burocracia também procurou cidadãos tados dirigirem a atividade econômica. O Estado
individuais, assumindo maiores responsabilidades não poderia mais atuar sozinho, tendo, em vez
pelo seu bem-estar. O Estado de Bem-Estar Soci- disso, que tratar da coordenação e da regulação
al assumiu o controle dos interesses individuais através das fronteiras. As indústrias que agiam no
com educação, pensões e seguro-desemprego; ele âmbito do Estado nacional tornaram-se
desenvolveu políticas não somente para redistribuir crescentemente transnacionais em suas ativida-
recursos mas também para assegurar que esses des. Os crescentes número e proeminência das
recursos seriam usados racionalmente para atin- corporações transnacionais originaram problemas
gir as necessidades dos cidadãos. de coordenação e questões de jurisdição. Havia
um vazio entre as atividades nacionais das estru-
A governança surgiu em grande parte devido a
turas regulatórias e a economia crescentemente
uma crise no Estado modernista. As supersim-
internacional. Domesticamente, o Estado confron-
plificações abundarão em qualquer tentativa de
tou-se com as crescentes demandas de seus ci-
diferenciar a pletora de idéias que alimentam as
dadãos; tais demandas surgiram do descontenta-
narrativas a respeito da crise do Estado no final
mento popular com a maneira como o Estado li-

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dava com a economia e com sua aparente Uma primeira onda de reformas baseou-se na
irresponsabilidade: muitos estados foram sobre- insatisfação pública com a burocracia e também
carregados com grandes dívidas; a globalização no neoliberalismo e na teoria da escolha racional,
provocou ansiedades a respeito da competitividade ambos os quais explicaram e legitimaram essa in-
e dos salários; partes do público preocuparam-se satisfação. Os neoliberais comparam o modo de
com que o Estado tivesse perdido o controle. Da organização estatal – hierárquico, de cima para
mesma forma, atores estatais freqüentemente con- baixo – com a estrutura descentralizada e compe-
sideraram que estavam sujeitos a variadas e mes- titiva do mercado. Eles argumentam que o mer-
mo contraditórias demandas do público. Os elei- cado é superior ao Estado e concluem que quan-
tores demandavam melhores serviços e menores do possível os mercados ou quase-mercados de-
impostos; eles queriam um Estado mais efetivo vem substituir a burocracia. A busca por eficiên-
mas também mais transparente e responsabilizável; cia conduziu-os a propor que o Estado transferis-
queriam líderes decididos e ainda mais participa- se organizações e atividades para o setor privado:
ção popular. as organizações poderiam ser transferidas por meio
da privatização, isto é, da transferência de bens
A nova governança consiste nas teorias e nas
do Estado para o setor privado por meio da aber-
reformas interconectadas por meio das quais os
tura de capital ou da cessão do controle acionário;
povos conceberam a crise do Estado e responde-
as atividades poderiam ser transferidas por meio
ram a ela. Essas teorias e reformas rejeitaram o
da terceirização, isto é, o Estado pagaria a uma
conhecimento técnico associado ao Estado pos-
organização do setor privado para que esta reali-
terior à II Guerra Mundial. Entretanto, em vez de
zasse tarefas em seu benefício.
desafiar a idéia de aplicar o conhecimento técnico
modernista à vida social, os atores políticos vira- Muitos neoliberais combinam sua fé nos mer-
ram-se para modos modernistas alternativos de cados com uma fé em que a disciplina do merca-
conhecimento para apoiar novas formas de co- do deveria de alguma forma validar as práticas
nhecimento técnico. A governança surgiu então gerenciais do setor privado; assim, redefinem os
em duas ondas analiticamente distintas da refor- servidores públicos como gerentes ou provedo-
ma do setor público. A primeira consistiu nas re- res de serviços e os cidadãos como consumido-
formas associadas ao conceito econômico de res ou usuários de serviços. Mais especificamen-
racionalidade – o neoliberalismo, a Nova Admi- te, as reformas neoliberais da administração pú-
nistração Pública [New Public Management3] e a blica freqüentemente refletem análises formais. Os
terceirização. A segunda consistiu em reformas economistas neoliberais primeiramente desenvol-
associadas a conceitos sociológicos de veram a teoria de diretor-agente [principal-agent
racionalidade – a Terceira Via4, a governança theory] para analisar o problema da discriciona-
joined-up5 e redes e parcerias. ridade delegada no setor privado, argumentando
que delegar a tomada de decisões dos diretores
(acionistas) para os agentes (gerentes) é arrisca-
3 O New Public Management foi uma forma de pensar do, pois os agentes podem agir em favor de seus
prevalecente nos Estados Unidos entre as décadas de 1980
e 2000 que afirmava serem necessárias reformas em direção
interesses particulares. Esses economistas propu-
ao mercado para o Estado melhorar seu desempenho; tais seram minimizar esse risco com o uso de incenti-
reformas incluíam a diminuição da estrutura estatal, assim vos e de mecanismos de mercado, a fim de ali-
como a concepção de que os cidadãos são consumidores nhar os interesses dos agentes com os dos direto-
(N. T.). res. No setor público, os diretores são os eleito-
4 A Terceira Via foi um movimento político teorizado pelo res e seus representantes eleitos, ao passo que os
sociólogo inglês Anthony Giddens em apoio às reformas agentes são os servidores públicos. Para os teóri-
liberalizantes do Primeiro-Ministro trabalhista Tony Blair cos da escolha racional, portanto, assim como o
(1997-2007). De acordo com eles, o Estado deveria dimi-
nuir sua atuação direta na economia e dar mais espaço para
a iniciativa privada, mas sem abrir mão de seus mecanis-
mos de controle e direção sócio-econômica e de combate às delimitando metas e objetivos transversais a eles, buscan-
desigualdades sociais (N. T.). do a coordenação e a sinergia dos esforços e dos resultados.
Evidentemente, ele opõe-se às ações específicas – e por
5 A expressão “joined-up” é de difícil tradução no presente vezes contrapostas – de cada um dos setores envolvidos.
contexto. O governo joined-up é uma proposta para que O governo joined-up foi proposto pelo Primeiro-Ministro
diferentes setores de um governo trabalhem em conjunto, inglês Tony Blair ano longo dos anos 1990 (N. T.).

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problema básico das corporações do setor priva- lismo, à teoria das organizações e ao funcionalis-
do parecia ser garantir que os gerentes atuem em mo. Os governos social-democráticos então o
benefício dos acionistas, o problema básico da assumiram e adotaram-no para contraporem-se
administração pública parecer ser assegurar que às idéias e políticas neoliberais. Os problemas cap-
os servidores públicos trabalhem em benefício dos ciosos são geralmente definidos em termos como
cidadãos. Os neoliberais estenderam ao setor pú- estes: um problema de natureza mais ou menos
blico os incentivos e os mecanismos de mercado única; a falta de qualquer formulação definitiva de
que os economistas determinaram para alinhar os tal problema; a existência de múltiplas explicações
interesses dos agentes aos dos diretores. para ele; a ausência de um teste para decidir o
valor de qualquer resposta para ele; todas as res-
As narrativas popular e neoliberal combinaram-
postas são melhores ou piores que “verdadeiro”
se com análises mais formais para produzir uma
ou “falso”; cada uma tem importantes conseqü-
mudança de paradigma no modernismo. O novo
ências de modo que não há possibilidade de apren-
paradigma denunciava a burocracia e os servido-
der a lidar com ele por tentativa e erro. Tipica-
res públicos e defendia os mercados e os empre-
mente essas características implicam fortemente
sários. Ele afastou-se do que era agora ridiculari-
que os problemas capciosos são interrelacionados;
zado como “elefante branco” [big government],
por exemplo, um problema capcioso particular
burocracia inchada e soluções homogeneizantes;
poderia ser explicado em termos de suas relações
dirigiu-se para um setor privado que era agora
com outros, ou qualquer resposta para ele pode-
celebrado como competitivo, eficiente e flexível.
ria influenciar outros. Exemplos clássicos desses
Essa mudança de paradigma é também relativa a
problemas incluem temas urgentes da governança,
definições institucionais de bom governo, que
como segurança, meio ambiente e decadência ur-
enfatiza divisões evidentes de responsabilidades,
bana.
em um contexto de relações hierárquicas, em di-
reção a novas definições de processos eficientes Assim, muitos institucionalistas aceitam os
definidos em termos de prestação de serviços e argumentos neoliberais a respeito da natureza in-
resultados com uma ênfase correlata na transpa- flexível e irresponsiva das hierarquias, mas, em
rência, na acessibilidade dos usuários [user- vez de promoverem os mercados, eles apelam para
friendliness] e nas estruturas de incentivo. as redes como uma alternativa adequadamente fle-
xível e responsiva baseada no reconhecimento de
Quando os cientistas sociais inspirados pelas
que os atores sociais operam em relações
teorias sociológicas da racionalidade estudaram as
estruturadas. Eles argumentam que a eficiência e
reformas neoliberais do setor público, com fre-
a eficácia derivam de relações estáveis caracteri-
qüência foram altamente críticos, argumentando
zadas pela confiança, pela participação social e
que as reformas incrementaram problemas de
pelas associações voluntárias. Em sua perspecti-
coordenação e de orientação; por seu turno, pro-
va, embora as hierarquias possam fornecer um
moveram redes e o governo joined-up. Os defen-
contexto para a confiança e a estabilidade, o seu
sores das redes distinguem-nas das hierarquias e
tempo já passou, pois não se ajustam à nova eco-
dos mercados. Os antigos institucionalistas acre-
nomia global baseada no conhecimento. Esse novo
ditavam que as hierarquias tornam mais fácil lidar
mundo crescentemente lança problemas capcio-
com muitas atividades ao dividi-las em tarefas
sos que requerem redes e governança joined-up.
menores, cada qual pode ser então realizada por
Assim, foi um neo-institucionalismo, com seu
uma unidade especializada. Os neo-
conceito sociológico de racionalidade, que inspi-
institucionalistas argumentam que essa abordagem
rou uma segunda onda de reformas, incluindo
de solução de problemas não se adapta mais ao
muitas políticas do New Labour6, da agenda aus-
mundo contemporâneo. Hoje os formuladores de
políticas crescentemente se confrontam com “pro-
blemas capciosos” que não são acessíveis pela
divisão e pela especialização: solucionar esses pro- 6 O New Labour consistiu nas reformas políticas, econô-
blemas requer as redes. micas e sociais conduzidas pelo Partido Trabalhista in-
glês (Labour Party) sob a liderança de Tony Blair ao lon-
O conceito de “problemas capciosos” surge go dos anos 1990, que combinava, como indicado anteri-
como parte de uma Ciência Social de escopo in- ormente, a proteção social com reformas voltadas para o
termediário e amorfa associada ao instituciona- mercado (N. T.).

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traliana do whole-of-government7, das tentativas lapso do historicismo desenvolvimentista enfra-


internacionais de lidar com os estados falidos e da queceu inúmeros dos pressupostos que havia
política de segurança estadunidense posterior aos muito acompanhavam a democracia representati-
atentados de 2001. va. Não se poderia mais ver o Estado como a ex-
pressão do bem comum de um povo ou de uma
III. E A RESPEITO DA DEMOCRACIA?
nação; não se poderia mais assumir que políticos
Tenha ou não o surgimento da governança e servidores responsáveis agiriam de acordo com
conduzido a serviços públicos mais eficientes e o bem comum. O problema de assegurar que re-
responsivos, ela certamente sugere problemas de presentantes fossem responsáveis cedeu lugar para
transparência e de legitimidade. Os atores do se- o de torná-los responsivos. Ainda assim, mesmo
tor público não são democraticamente eleitos e é que o modernismo tenha revelado fraturas na de-
raro que eles sejam diretamente responsabilizáveis mocracia representativa, ele escondeu-as graças
perante os representantes eleitos. Assim, um au- a apelos a um conhecimento técnico aparentemente
mento de sua importância no setor público origi- neutro. A nova governança fez algo muito pareci-
na questões sobre a accountability. do. A principal mudança foi o contexto do conhe-
cimento técnico e o pano de fundo de hoje é uma
Alguns dos temas que confrontam a
mistura de teoria da escolha racional com o neo-
governança democrática recuam no tempo até o
institucionalismo. A Tabela 2 sumaria esse padrão.
surgimento da Ciência Social modernista. O co-

TABELA 2 – ADMIRÁVEL NOVA DEMOCRACIA

FONTE: o autor.

Para os historicistas desenvolvimentistas, a modo a promover o bem comum mais que pro-
democracia representativa era uma aquisição his- curar vantagens pessoais; era perseguir interes-
tórica. A sociedade civil (ou o estágio da civiliza- ses nacionais e, assim, superar facciosismos mes-
ção) que era necessário para manter a democra- quinhos. Palavras e conceitos próximos a “res-
cia representativa servia para promover ideais ponsabilidade” eram igualmente proeminentes em
morais e comportamentos como os elaborados outras línguas européias, como verantwoorde-
para o governo responsável. A responsabilidade lijkheid (neerlandês), responsabilité (francês),
referia-se tanto ao caráter dos políticos e servido- verantwortlichkeit (alemão), responsabilità (itali-
res quando ao seu relacionamento com o público. ano) e responsabilidad (espanhol). Em marcado
Os políticos e servidores tinham o dever de res- contraste, “accountability” raramente apareceu em
ponder às demandas, aos desejos e às necessida- dicionários ou enciclopédias antes do século XX.
des do povo. Agir responsavelmente era agir de
O conceito de accountability surgiu ao longo
do modernismo. Por um lado, o modernismo es-
7 A política australiana do whole-of-government, que tra- tava associado a uma perda de fé nos princípios
duzido literalmente significaria “[de] todo o governo”, é a que haviam sustentado a crença no progresso das
versão local das políticas que lidam com problemas cuja nações em direção ao Estado organizado
solução exige tratamentos colegiados da parte dos órgãos [statehood], à liberdade e ao governo representa-
públicos. Em outras palavras, é o mesmo princípio de
governança do que na Inglaterra, como vimos, é denomina-
tivo e responsável. Os modernistas crescente-
do “governo joined-up” e nos Estados Unidos, de governo mente descreveram a própria nação como frag-
em rede (networked government) (N. T.). mentada e assim a democracia pareceu menos

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uma forma de expressar o bem comum e mais Os mecanismos para tornar os servidores pú-
uma disputa entre facções ou classes. Por outro blicos fiscalizáveis parecem mais firmes. A
lado, o modernismo deu origem a novas formas accountability administrativa ocorre em hierarqui-
de Ciências Sociais aparentemente neutras. A Ci- as burocráticas, que são constituídas para definir
ência Social desenvolveu-se para fornecer um claramente uma divisão do trabalho especializada
conhecimento técnico neutro que poderia guiar a e funcional; elas especificam papéis claros para
formulação de políticas; ela poderia mostrar-nos os indivíduos no processo de tomada de decisões,
quais políticas poderiam produzir melhor quais- tornando assim possível identificar quem é res-
quer resultados ou valores que nossos represen- ponsável pelo quê. De modo típico, os servidores
tantes eleitos escolhessem. O modernismo, por- individuais são assim diretamente interpeláveis por
tanto, ajudou a manter a agora clássica distinção seus superiores (e, em última análise, por seus
entre política e administração. O processo políti- mestres políticos) por suas ações. Some-se a isso
co gera valores ou decisões políticas, das quais o que a accountability administrativa foi
ministros são, dessa forma, os porta-vozes; os crescentemente complementada por uma varie-
servidores públicos fornecem o conhecimento dade de ouvidores e outros meios judiciais para
técnico politicamente neutro que formula e investigar-se a má administração e mesmo a
implementa as políticas que estão de acordo com corrupção.
esses valores ou decisões políticas. Nesse con-
Enquanto a accountability administrativa pa-
texto, a responsabilidade, como concebida pelos
receu mais firme que a accountability política, ela
historicistas desenvolvimentistas, torna-se menos
foi comprovadamente um instrumento grosseiro.
relevante que a accountability dos servidores pú-
A accountability administrativa forneceu uma pers-
blicos em relação aos seus mestres políticos e a
pectiva teórica para dividir a culpa e procurar a
accountability dos políticos perante o eleitorado.
reparação em casos de má administração. Mas os
Uma íntima conexão entre a accountability e críticos da narrativa burocrática reclamaram que
o conhecimento técnico-burocrático aparece no ela não fornece um meio de garantir e responder a
conteúdo da accountability. A teoria, quando não diferentes níveis de desempenho. As novas teori-
a prática, da accountability aplica-se muito mais as da governança, incluindo a teoria da escolha
firmemente aos servidores públicos que aos polí- racional e a teoria das redes, ressaltaram preocu-
ticos. Os políticos são fiscalizáveis por meio das pações que se sobrepuseram à questão do desem-
instituições da democracia representantiva; os le- penho do setor público.
gisladores são fiscalizáveis pelos eleitores que pe-
A teoria da escolha racional reformulou a
riodicamente decidem se devolvê-los-ão ou não
accountability nos termos do problema diretor-
aos parlamentos mais uma vez. O poder Executi-
agente. O postulado dos atores racionais e auto-
vo, especialmente os presidentes em sistemas
interessados enfraqueceu a idéia de que servido-
políticos com forte separação dos poderes, tam-
res públicos poderiam geralmente ser confiáveis
bém pode ser diretamente fiscalizável pelo eleito-
para agir desinteressadamente em benefício do
rado; de maneira alternativa, o poder Executivo,
bem comum. O problema não é verificar como
notadamente os primeiros-ministros e os gabine-
eles comportam-se, mas criar um quadro em que
tes, podem ser fiscalizáveis por legislaturas que
seus interesses estejam alinhados aos daqueles em
podem revogar a autoridade do governo. As teori-
benefício de quem eles trabalham. Em vez de pen-
as modernistas com freqüência sugerem que es-
sar em como tornar os agentes (políticos ou ser-
sas formas de accountability política são frágeis.
vidores públicos) fiscalizáveis por seus diretores
Mesmo que os políticos e os governos possam
(o eleitorado e os ministros, respectivamente), os
perder eleições, com freqüência eles controlam o
teóricos da escolha racional sugeriram que a ques-
conhecimento, as agendas e os recursos de ma-
tão é como fazer os agentes atuarem de acordo
neiras que os tornam mais poderosos que aqueles
com os interesses dos diretores; eles responde-
que procurariam forçá-los a prestar contas. Além
ram essa questão largamente em termos da oferta
disso, mesmo quando os políticos e os governos
de incentivos adequados para os agentes.
perdem eleições, com freqüência parece que suas
quedas devem menos às suas condutas enquanto A teoria das organizações, e seu impacto nas
ocupavam os cargos que a tendências sociais e teorias institucionalista e das redes, revelou um
políticas mais amplas. mundo em que a tomada de decisões era mais

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complexa que um processo envolvendo vários rias diferem dos argumentos em favor da prote-
atores políticos em redes. Essa complexidade su- ção constitucional de direitos no fato de que eles
geriu que havia algo de ilusório, e mesmo injusto, baseiam-se não em valores morais mas em teori-
no pressuposto de que as pessoas acima da hie- as da racionalidade alegadamente científicas. Tais
rarquia burocrática pudessem ser fiscalizáveis teorias fiam-se em análises técnicas dos custos
pelas decisões e ações de seus subordinados. Os políticos de transação e de um vazio de
papéis e as decisões administrativos e políticos credibilidade associadas a um problema de incon-
raramente poderiam ser distinguidos uns dos ou- sistência temporal [time-inconsistency problem]
tros; a responsabilidade ministerial tornou-se de para sugerir que a delegação de poderes para cor-
maneira bastante óbvia um mito para ser levada a pos não-majoritários reduz os custos políticos de
sério; a accountability procedimental parecia transação em que os políticos incorrem porque
inapropriada, e também muito limitada, especial- lhes faltaria uma “tecnologia de compromisso”
mente quando concebida como reativa a decisões confiável.
que já tinham sido tomadas.
Os cientistas sociais inspirados pelos concei-
Mesmo que as novas teorias da governança tos mais sociológicos de racionalidade com fre-
tenham enfraquecido as formas de conhecimento qüência ficam desconfortáveis com o crescimen-
técnico e de accountability associadas à narrativa to de organizações não-majoritárias e não-demo-
burocrática, elas promoveram novas formas de cráticas. Muitos deles associam o papel crescen-
conhecimento técnico modernista que apontam te de tais organizações à crescente hostilidade
para novas abordagens da democracia e da pública à política e ao governo. Os institucionalistas
accountability. Mesmo o conceito econômico da respondem aos temas democráticos surgidos com
racionalidade inspirou os cientistas sociais a su- os novos mundos da governança tentando expan-
gerir que poderíamos beneficiar-nos com menos dir o conceito de legitimidade, de modo que este
democracia. Os neoliberais com freqüência con- considere a efetividade, a accountability legal e a
trastam a democracia – que permite aos cidadãos inclusão social. Às vezes eles vinculam a legitimi-
expressar sua preferência ao votar apenas uma dade à efetividade das organizações em fornecer
vez a cada poucos anos e somente com um “sim” bens públicos; às vezes eles atribuem a legitimi-
ou “não” a toda uma lista de políticos – com o dade a organizações que são criadas e reguladas
mercado – que permite aos consumidores expres- por estados democráticos, não importando quão
sar suas preferências continuamente, com varia- distantes e obscuras sejam as linhas da delegação:
das intensidades e para itens individuais. Além dis- a legitimidade persiste porque as organizações in-
so, como vimos, os teóricos da escolha racional dependentes são legalmente fiscalizáveis e porque
às vezes incomodam-se com o fato de que a de- um governo democrático terá aprovado as leis
mocracia implica custos políticos de transação que relevantes. Finalmente, às vezes eles sugerem que
conduzem a incessantes aumentos dos gastos a legitimidade das organizações e das decisões
públicos. Eles argumentam que o custo de vários poderia residir em sua eqüidade e em sua
itens dos gastos públicos é distribuído de maneira inclusividade. Os proponentes dessa visão
rarefeita para uma grande população, de modo que enfatizam a importância de uma sociedade civil
os eleitores individuais não têm motivos para opo- forte para assegurar uma forma de accountability
rem-se a ele; mas os benefícios são concentrados baseada no escrutínio público. Grupos voluntári-
em uma pequena parcela da população, que assim os, os meios de comunicação e os cidadãos ati-
cobra o aumento dos gastos. Eles defendem insti- vos monitoram as instituições e as decisões para
tuições não-majoritárias para proteger áreas polí- assegurar que elas sejam justas e inclusivas e, as-
ticas cruciais – como o setor bancário ou o orça- sim, para conferir ou recusar às organizações a
mento público – da democracia. credibilidade requerida para participar efetivamente
dos processos de tomada de decisões.
Talvez valha dizer explicitamente que “não-
majoritário” é um pouco mais que um eufemismo O surgimento da governança tem sido acom-
para “não-democrático”. Há razões conhecidas panhada, portanto, de conceitos de accountability
para querermos proteger uma série de bens, in- que enfatizam o desempenho mais que os proce-
cluindo os direitos humanos, da tomada de deci- dimentos. A accountability de desempenho iden-
sões democrática. Ainda assim, os argumentos da tifica a legitimidade primariamente com a satisfa-
escolha racional para as instituições não-majoritá- ção dos dirigentes com os resultados, desviando-

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GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA: UMA GENEALOGIA

se desse modo dos problema que as novas teorias O exemplo dos governos central e local no
da governança associaram à accountability Reino Unido exibe aderência contínua à imagem
procedimental. Se o Estado é julgado por seu de- representativa da democracia, à disposição de
sempenho ou pelos resultados, há menor necessi- conferir poder a instituições não-majoritárias e a
dade de aferrar-se à mística distinção entre os reformas do setor público ativamente direcionadas
domínios administrativo e político. Além disso, a para usar os mercados e as redes para favorecer
accountability de desempenho torna menos im- a legitimidade. De início, as extensas reformas
portante que as ações dos agentes ou dos subor- constitucionais dos últimos 15 anos sugerem que
dinados sejam diretamente supervisionadas e a idéia dominante de democracia permanece liga-
julgadas pelo diretor. da às instituições representativas. Sucessivos go-
vernos perseguiram a visão liberal de governos
Uma forma de conceber a accountability de
territoriais em vários níveis e experimentos eleito-
desempenho é em termos de quase-mercados. Os
rais mais ou menos até a exclusão de formas al-
cidadãos atuam como consumidores e expressam
ternativas de pluralismo e de participação. Assem-
sua satisfação ao comprarem ou selecionarem
bléias e eleições representativas mantêm-se como
serviços fornecidos por uma agência em vez de
os focos das reformas. A devolução de poderes à
por outra. Ainda assim, as agências públicas com
Escócia e ao País de Gales consistiu largamente
freqüência não têm os mecanismos de preço, de
na criação de novos parlamentos em Edimburgo e
níveis de lucro e de orçamentos duros que pode-
em Cardiff. A desafortunada reforma das regiões
riam fazer do mercado um indicador da satisfa-
inglesas tratava da criação de novas legislaturas
ção do consumidor. Desse modo, uma outra for-
territorialmente baseadas. Também em Westmins-
ma de conceber a accountability de desempenho
ter as reformas concentraram-se no parlamento,
é em termos de medidas de resultados. Metas,
especialmente na Câmara dos Lordes9. Um outro
benchmarks8 e outros padrões e indicadores for-
aspecto das novas assembléias é a introdução de
necem uma base para monitorar-se e auditar-se o
diversos sistemas eleitorais, mas isso de maneira
desempenho das agências públicas. Finalmente, a
bastante óbvia permanece firmemente nos qua-
accountability de desempenho poderia ser incluí-
dros da democracia representativa.
da em trocas horizontais entre um sistema de ato-
res; cada ator poria em questão o desempenho de O New Labour, embora inadvertidamente,
outro. ecoou a lógica das instituições não-majoritárias em
seu primeiro gesto dramático – a concessão de
É importante enfatizar que essas respostas aos
independência ao Banco da Inglaterra10. Uma ló-
problemas da governança democrática – as res-
gica similar aparece em suas reformas judiciais: o
postas dos cientistas sociais inspiradas pelos con-
governo respondeu aos dilemas de eficiência e
ceitos econômico e sociológico de racionalidade
confiança promovendo a judicialização. Ele vol-
– não são somente acadêmicas; elas informam
tou-se para os juízes como especialistas que po-
muito das políticas públicas. Assim como os ato-
dem fornecer proteção eficiente aos direitos hu-
res políticos realizaram duas ondas de reformas
manos e ao bem-estar social, na esperança de que
do setor público que se basearam em versões for-
os juízes criariam uma confiança generalizada nes-
mais e populares das teorias das Ciências Sociais,
se novo padrão de governo, desse modo confe-
eles responderam a questões democráticas vin-
rindo ao Estado maior legitimidade. Novamente,
culadas às reformas aferrando-se às instituições
representativas complementadas pelas instituições
não-majoritárias, pela inclusão social e pela
accountabilities de desempenho e horizontal. 9 A expressão “Westminster” refere-se à sede do parla-
mento britânico; considerando que o Reino Unido é um
país parlamentarista, por metonímia trata-se da sede do
8 A expressão “benchmark” é de difícil tradução; ela expri- governo. Já a Câmara dos Lordes é a câmara alta do Reino
Unido; ela é composta apenas pela nobreza (indicada pelo
me o processo de comparação das práticas adotadas por
rei, ou rainha, da Inglaterra), pela participação na Igreja
várias organizações que satisfazem de maneiras diferentes
Anglicana ou por hereditariedade (N. T.).
as mesmas necessidades ou que produzem os mesmos bens;
não é tanto a simples comparação o que interessa, mas a 10 É necessário indicar que o Banco da Inglaterra tem
identificação (para posterior adoção) das “melhores práti- funções de banco central, controlando a taxa de juros e a
cas” (N. T.). política monetária do Reino Unido (N. T.).

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ao conferir poder às cortes com uma nova capa- sentativas com um conhecimento técnico basea-
cidade de rever a legislação doméstica – por exem- do em novas teorias modernistas da governança.
plo, com a Lei de Direitos Humanos (de 1998) –, É útil distinguir dois tipos de conhecimento técni-
o governo efetivamente deu as boas-vindas às co. Um primeiro baseia-se no conceito econômi-
cortes no processo de tomada de decisões, de uma co de racionalidade encontrado na economia
forma que, para o bem ou para o mal, reduziu o neoclássica e na teoria da escolha racional. Ele
espectro de decisões que poderiam ser tomadas inspira uma erosão da democracia evidente em
democraticamente. O poder Judiciário é uma ins- tentativas de restringir o escopo da tomada de-
tituição não-democrática cujo novo papel restrin- mocrática de decisões a fim de lidar com as
ge (sem eliminar) o escopo de posteriores toma- irracionalidades coletivas. Os assuntos públicos
das democráticas de decisões. são transferidos para instituições não-majoritári-
as, incluindo bancos centrais independentes e juízes
Embora a natureza não-escrita da constituição
e cortes. Da mesma forma, decisões democráti-
britânica borre a distinção entre os assuntos cons-
cas futuras são constrangidas por leis que reque-
titucionais e administrativos ainda mais que o usual,
rem que a legislação, por exemplo, equilibre orça-
mantém-se uma clara distinção entre eles. A re-
mentos ou respeito direitos jurídicos. Um segun-
forma do governo local pode ser primariamente
do tipo de conhecimento técnico baseia-se no
constitucional ou administrativa. Os governos bri-
conceito sociológico de racionalidade encontrado
tânicos recentes flertaram com inovações demo-
no institucionalismo e em formas semelhantes de
cráticas, notadamente com prefeitos eleitos. Ain-
Ciência Social. Ele inspira um repensar da demo-
da assim, sua abordagem para o governo local
cracia que é evidente em novas ênfases na
concentrou-se quase inteiramente em reformas
accountability horizontal e na inclusão social. As
administrativas, incluindo o best value11, o “de-
hierarquias burocráticas cedem espaço para re-
sempenho fiscal abrangente”12 e os local area
des joined-up. A segurança pública, a educação e
agreements13. Essas reformas administrativas às
outros serviços públicos crescentemente são ba-
vezes refletem a idéia de que os mercados e as
seados em parcerias que incluem organizações do
redes podem favorecer uma admirável nova de-
setor privado e grupos comunitários.
mocracia baseada na escolha ampliada e na inclu-
são social; mais freqüentemente, contudo, elas são Hoje, os formuladores de políticas regularmente
tentativas de reafirmar o controle central e esta- evocam um admirável mundo novo de
belecer padrões mínimos. descentralização, envolvimento público e cessão
de poder [empowerment]. Seria tolice desprezar
Os formuladores de políticas com freqüência
essas falas. Os formuladores de políticas podem
respondem aos temas democráticos contemporâ-
genuinamente acreditar que os mercados e as re-
neos tentando complementar as instituições repre-
des podem e devem promover ideais democráti-
cos. No entanto, sua fé com freqüência deriva
11 “Best value” é um programa do governo central britâni- pelo menos implicitamente de afirmações de es-
co que orienta os administradores locais a buscarem o má- pecialistas segundo as quais mercados e redes in-
ximo de eficiência, eficácia e economia em suas gestões, clusivos podem apoiar uma governança eficiente
buscando satisfazer as necessidades dos cidadãos dos lo- que é percebida como legítima. Como tal, há uma
cais que administram. A tradução literal da expressão é possível tensão nesse admirável mundo novo. A
“melhor valor”, mas como evidentemente ela perde o sen- participação e o diálogo são meios para a
tido na tradução, preferimos mantê-la no original (N. T.).
governança eficiente e a legitimidade percebida ou
12 No original, “comprehensive performance assessment”. são meios para promover valores democráticos?
Trata-se de um programa de auditoria fiscal britânico, em O que acontecerá se o objetivo de promover a
que os gastos dos governos locais são fiscalizados e avali- governança efetiva e a legitimidade percebida en-
ados de acordo com os parâmetros anteriormente indica-
dos: eficácia, eficiência, economia, satisfação das necessi-
trar em conflito com o de estender a inclusão so-
dades dos cidadãos (N. T.). cial e a participação política?
13 Os “local area agreements” são planos trienais elabo- IV. CONCLUSÃO
rados por conselhos municipais para orientar os gastos
públicos nos governos locais britânicos. Literalmente a ex- A nova governança substitui um tipo de mo-
pressão significa “acordos de áreas locais”, mas também dernismo por outro. Vão embora a narrativa bu-
neste caso a tradução perde o sentido original (N. T.). rocrática, o conhecimento técnico neutro das pro-

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GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA: UMA GENEALOGIA

fissões e a accountability prodecimental; entram ológica, poderíamos conceber a vida social em


os mercados e as redes, a teoria da escolha racio- termos de formas mais contingentes de razão lo-
nal e o institucionalismo de redes e a accountability cal. Em vez de mover-nos da accountability
de desempenho. As mudanças são dramáticas. procedimental para a de desempenho, poderíamos
Ainda assim, a nova governança, tanto como teo- encorajar a accountability procedimental, talvez a
ria quanto como prática, continua sendo parte de tornando menos relativa a decisões que já foram
um modernismo que desde há tempos luta para o tomadas e mais relativa a cidadãos tornando pes-
fim da compreensão que o século XIX tinha do soas fiscalizáveis durante os processos de toma-
Estado. das de decisões. Em vez de apelar para a falácia
do conhecimento técnico, poderíamos explorar a
Quando historicizamos o modernismo – quan-
possibilidade de um envolvimento e de um con-
do o mostramos como uma forma particular e
trole mais diretos pelos cidadãos por meio da for-
contestável de conhecimento –, criamos a possi-
mação e da implementação de políticas públicas;
bilidade de mover-nos além dele. A Tabela 3 ilus-
poderíamos defender conceitos mais plurais e
tra essa possibilidade. Em vez das abordagens
participativos de democracia.
modernistas às racionalidades econômica e soci-

TABELA 3 – APÓS O MODERNISMO

FONTE: o autor.

Mark Bevir (mbevir@berkeley.edu) é Doutor em Teoria Política pela Universidade de Oxford (Inglater-
ra) e Professor do Departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia (Estados Unidos),
campus de Berkeley.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BEVIR, M. 2010. Democratic Governance.
Princeton: Princeton University.

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