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1 A consciéncia da morte e © principio do pensamento organizado Nio é preciso que o universo inteiro se arme para esmaga- lo (ao homem): um vapor, uma gota de Agua, s4o suficien- tes para matd-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que 0 que o mata, por- que ele sabe que morre, conhece a vantagem que 0 universo tem sobre ele; e disso 0 universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento.? Tudo indica que a consciéncia da morte foi a primeira ma- nifestacao da consciéncia humana. Quando teve certeza da morte, o homem também se deparou com a vida, em seu pro- cesso de renova¢gdo que traz sempre a exigéncia da morte; vida que nunca deixa de criar, mas sempre destréi tudo o que gera. A percepcdo da morte, a percepcdo da vida, como um ponto de vista, fez nascer o individuo no humano, 0 que o tornou distinto do conjunto da espécie. O individuo nasce da consciéncia de si. O homem é 0 ser que, a partir de si, avalia. 3 Blaise Pascal, Pensées, frag. 347. ai VIVIANE MOSE Foi pouco antes da extincio do Homo neanderthalensis que a inumagao passou a ser sistematicamente praticada: na mesma €poca, de 100 mil anos para c4, 0 Homo sapiens pas- sou a ter como hébito enterrar e cultuar seus cadaveres. Isto significa que a morte j4 os Ocupava, ndo somente como luta imediata pela sobrevivéncia, mas como projecdo de seu pré- Prio destino, como preocupagio. O que nasceu, ha cerca de 100 mil anos, foi uma diferenciacéo do caddver em relagdo aos outros objetos. A consciéncia da morte nos impulsiona em direcdo a vida; a morte nos imp6e a vida como um valor. As outras espécies conhecem a morte e a evitam — amor fe como uma ameaga, um perigo —, mas o fazem de forma instintiva; 0 que parece nascer com 0 Homo neanderthalensis e se evidencia no Homo sapiens 6 a consciéncia individual da morte como um destino inexoravel, como futuro. “O pro- blema mais pessoal que se pode pér ao homem”, diz Leroy- Gourhan, “€ 0 da natureza de sua inteligéncia, pois que, em vo, ela somente existe pela consciéncia que cada um tem de existir.** E esta consciéncia que, a partir de um certo momento, vai surgir no desenvolvimento dos paleantropi- deos; a inteligéncia ultrapassa o concreto ou a reflexdo do concreto para exprimir sentimentos indeterminados. £ este tipo de inteligéncia, consciente de si e que vai além da so- brevivéncia, que caracteriza a espécie humana. A consciéncia da morte, a consciéncia de si, € a construcio de mecanismos que buscam vencer a morte — mitos, ferramentas, religiao, ciéncia — ou que estimulam a vida como a arte vio marcar 0 processo de humanizacdo deste animal incessante, 4 André Leroy-Gourhan, O gesto ea palavra, liv. 1, p. 108. 22 O HOMEM QUE SABE E possivel dizer que o pensamento consciente tenha se manifestado a partir da incorporagao desta restrigao insu- portavel, deste limite intransponivel que permitira, milhares de anos depois, a instauragao da lei. A morte é 0 grande nao que temos que engolir e aceitar se queremos continuar vi- vendo. Nao é mais uma questao de instinto,> e sim a aurora do pensamento humano, que se traduz em uma espécie de revolta contra a morte. O homem é 0 tinico animal que sabe que vai morrer, 0 finico que tem a morte presente durante toda a vida, o tnico a ter um ritual funerdrio.* O Homo sapiens é o animal que sabe, e este saber se manifesta na consciéncia da provisorie- dade da vida; o que nos constitui como espécie é, antes de tudo, a constatacao da morte como 0 eterno limite. Se tudo nasce e morre, a vida é um intervalo entre uma coisa e outra. A incorporacdo deste primeiro contorno foi, possivelmente, © limite capaz de fazer nascer 0 pensamento. Pensar € um gesto que acontece no vazio cavado pela incorporacio da morte. Ao mesmo tempo, ao ter consciéncia do limitado, o homem ganha também a percep¢do do ilimitado, do gran- dioso, do sublime. Pensar é afirmar ou negar alguma coisa, € estabelecer um li mite para a infinidade e a intensidade exuberante de coisas que nos cerca e constitui. Por isso, o pensamento est4 intimamente vinculado a interpretacao, a definicdo de uma perspectiva, de um ponto de vista. Pensar é afirmar uma direcao, um sentido, em vez de outros. Pensar é limitar 0 excesso, configurar, es- 5 Edgard Morin, O homem ea morte. 6 Francoise Dastus, A morte, ensaio sobre a finitude. 23: VIVIANE MOSE tabelecer um contorno, propor. Pensar é cortar, entao pensar é criar. E criar € 0 modo afirmativo de se contrapor 4 morte; nao por meio da permanéncia do objeto ou de sua imagem na meméria individual ou coletiva, mas pelo puro movimento da criacdo. Se o homem € 0 tinico animal que sabe que vai mor- rer, ele também € 0 tinico que incessantemente cria, interfere, produz. O homem é um ser que cria valores, e a consciéncia da morte instaura o primeiro valor: a vida. Por estar vinculado 4 consciéncia, o ato de pensar parte de um desdobramento: pensamos quando, ao mesmo tempo que vivemos, nos vemos vivendo, e temos consciéncia de que vive- mos; o homem, ha 100 mil anos se debrucando sobre a vida e se deparando com o fim, incorpora a morte ao mesmo tempo que permanece vivo. Por meio da contemplacao ele se vé vi- vendo e morrendo, ent&o age: luta, se retine, constréi, se ilude, se diverte, se comunica... O homem no apenas vive, mas sabe que vive, porque se vé de fora, e interfere em si mesmo, se transforma. O pensamento diz respeito a agao; pensar é agir. O pensamento é uma dobra, uma flexao que o corpo re- aliza sobre si mesmo.’ A acdo vé a si mesma no espelho e se desdobra: estou aqui escrevendo e, a0 mesmo tempo, me vejo escrevendo e modifico este texto, e assim sucessivamente. O corpo que se dobra produz um espago subjetivo; a cons- ciéncia, ou o pensamento consciente, é a dobra que 0 corpo faz sobre si mesmo, no sentido de se perceber, se interpretar, se 7 Afirmar 0 pensamento como dobra é negar a disting3o entre mundo interior e exterior e afirmar 0 corpo como fundamento do pensamento, o que implica negar também a distingio corpo e alma. O conceito de dobra foi elaborado por Deleuze e diz respeito tanto a um espaco subjetivo quanto a inexisténcia de uma diferenciac3o entre o dentro e o fora. Este conceito aparece em suas obras sobre Foucault (1986) e sobre Leibniz (1988). 24 © HOMEM QUE SABE elaborar. O pensamento nasce, nesta perspectiva, do jogo en- tre as simultaneas interpretagdes que as sensagdes produzem sobre si mesmas. Quando um determinado dominio se estabe- lece, nasce um sentido, um valor, uma palavra, um conceito. Ao mesmo tempo, o homem sabe que esta separado da- quilo que o cerca, ele nao apenas olha, mas interpreta, por isso é um animal que processa 0 que vive, digere, elabora. A possibilidade de configurar o mundo, de criar sistemas, de estabelecer modelos de conduta é resultado desta capacidade da espécie de distanciar-se de si mesma, de posicionar-se em relagao aos outros. Para Espinosa a alma é a conscién- cia que o corpo tem de si mesmo e de sua relagao com as coisas; a alma é a ideia do corpo, mas é também ideia da ideia, porque é consciéncia de que é consciéncia de seu corpo. Ent&o, pensar é ter consciéncia de alguma coisa e ser consciente desta consciéncia. A consciéncia de si, pen- sada aqui como puro espelhamento de si, é 0 principio do pensamento, do conhecimento, da alma. E a humanidade, eu penso, nao adquire a consciéncia de si senao por meio do confronto com 0 todo, com o limite da morte e com 0 infinito do mundo. Aristételes afirma que o pensamento filos6fico é um esta- do que nos atinge quando nos admiramos com alguma coisa, quando nos espantamos. A admiragdo, como uma primeira abertura para o mundo, nos revela quanto o desconhecemos, = a ndés mesmos, 0 quanto somos ignorantes. Todo pensar nasce do nao pensar, o saber é uma necessidade que surge da consciéncia do nao saber. A morte, como fundamento de todo desconhecimento, é a razdo de ser do saber, eu penso, 0 impulso em direc&o a cultura. 25 aaa VIVIANE MOSE Aristételes considera, ainda, que todo conhecimento hu- mano tem origem em um movimento proprio da natureza, que se regozija com os sentidos. “Todos os homens”, ele diz, “por natureza, desejam conhecer. Uma indicacao disso é 0 deleite que obtemos dos sentidos; pois estes, além de sua uti- lidade, sao amados por si mesmos; e acima de todos os de- mais 0 sentido da visdo. Pois nao sé com vistas 4 acdo, mas, mesmo quando nao vamos fazer nada, preferimos ver a tudo o mais.”* O homem busca conhecer porque se deleita espe- cialmente com a visao: ele nao apenas olha, mas elabora esta visdo, se regozija com ela. Conhecer faz parte da natureza humana, ele diz, do modo préprio como a espécie se relacio- na com o mundo e consigo mesma. A admirac&o nasce do distanciamento, do olhar cons- ciente de si que percebe, distingue, interpreta. E o saber do homem é antes de tudo a constatacéo do desconhecimento em que vive. Talvez seja isso o que queira dizer Montaig- ne quando afirma que a filosofia é um modo de aprender a morrer.’ A consciéncia da morte é a revelacdo do imenso desconhecimento que caracteriza a vida. E os outros animais, porque nao se admiram, permanecem presos 4 determinagao natural. Jé os homens, mais do que ver, criam perspectivas, interpretam a si mesmos e ao mundo. O cuidado com os mortos — nao profanar os cadave- res, nao permitir que sejam comidos pelos outros animais — € uma das primeiras e mais rigorosas restrigdes de que temos noticia em nossa cultura ocidental. Na Iliada, poema 8 Aristoteles, Metafisica, livro A. 2 Titulo do capitulo XIX do livro I de Ensaios. 26 OOOO een LLL O HOMEM QUE SABE homérico escrito cerca de oito séculos antes de Cristo, tao importante quanto defender a vida de um guerreiro era lutar pela preservacdo do seu corpo, para que pudesse receber as honras fiinebres. Cerca de trés séculos mais tarde, a tragédia Antigona, de S6focles, trataria exatamente deste tema: An- tigona é encerrada viva em uma caverna, onde devera per- manecer até a morte, mas nao abre mao de sepultar 0 irmao gue, por trair a cidade, havia sido condenado a nao receber 0 tratamento digno dado aos mottos. Nao permitir que 0 corpo humano sirva de alimento aos outros animais é dar um outro destino ao corpo, um valor. O que significa suspender a determinagao natural pela aco: nasce 0 individuo. Mas também surgem restrigdes a sexuali- dade, o que reforga a necessidade da espécie de se libertar dos astintos: as restrigées sexuais, em vez de impedir a sexua- lidade humana, a libertam, ao menos em parte, da escravidio istintiva. O impedimento moral liberta, em algum grau, 0 humano das cadeias biolégicas da reprodugio, fazen- do nascer um outro tipo de aproximagao, o desejo erético, nsgressor das proibi¢es. O erotismo transgride as distan- » aproxima, suspende a légica, os conceitos, a linguagem, evolve o homem ao ilimitado, aquele de que ele teve que orir mo para se constituir como individuo. Trataremos te tema no préximo capitulo. Ao se afastar, mais do que 0s outros animais, das condu- determinadas pela espécie, ao quebrar lagos instintivos determinavam sua conduta, o homem Passou a estar denado a uma estranha liberdade: ele deve agora limitar mesmo, deve construir Para si mesmo as determinacées mpostas pela natureza. Era este o sentido da palavra Sn ane toe 27 660 VIVIANE MOSE liberdade quando surgiu na Grécia antiga. Os gregos niio suportavam a perda de liberdade com relagao a outros gru- pos, mas, antes de tudo, temiam se tornar escravos de sua propria natureza. Primavam, assim, pela contencdo, pela so- fisticagao dos gestos, pelo autocontrole. Portanto, liberdade € um conceito que nasceu relacionado 4 conduta, 4 possi- bilidade de o homem exercer sua ago, especialmente sobre si mesmo, em vez de ser dominado pelas forcas excessivas da natureza. O homem é um ser que cria limitag6es para si mesmo. Sua grande liberdade é dizer nado a si mesmo. “A natureza”, diz Schiller, “nao trata melhor o homem do que suas outras obras, ela age em seu lugar onde ele ainda nao pode agir por si proprio como inteligéncia livre. O que o faz homem, porém, é justamente no se bastar com o que dele a natureza fez, mas ser capaz de refazer, com a razao e regressi- vamente, 0s passos que ela nele antecipa, transformar a obra da necessidade em obra de sua livre escolha e elevar a determi- nacio fisica a determinagdo moral.”!° A liberdade do homem se encontra, aqui, pautada por uma relac&o com a natureza e nao com a cultura, o que significa limitar os instintos e criar para si mesmo uma conduta. Agir é, antes de tudo, controlar seus proprios impulsos e paixdes, dando uma diregdo As for- ¢as, o que significa se afastar da violéncia da natureza presente em seu préprio corpo. Ser livre é ser capaz de estabelecer uma conduta em re- lacdo 4 totalidade, uma direc3o, mesmo que esta seja uma submissdo: dizer “sim, eu me submeto” é um ato de liberda- de, quer dizer, é a afirmag3o de uma submissa0 imediata em 10 Friedrich Schiller, Cartas sobre a educacao estética da bumanidade, carta MM. 28 eons © HOMEM QUE SABE | =ome de uma liberdade maior. Mas esta concepcio de liber- de foi sendo substituida 4 medida que a nogao de conduta, a¢do, foi se tornando um principio em si mesmo: 0 eu, mo princfpio de ag&o, nao quer mais agir na natureza, ele er controlar a natureza, a si mesmo, o mundo. Falaremos 2 isso no capitulo “O sujeito moderno”. Nietzsche, assim como Schiller, afirma que a civilizacdo beleceu como uma negacao da vida como uma contra- Teza, O que a vontade humana passou a manifestar foi vontade de negacao. Para se afirmar, a cultura precisou meter a natureza, ou acreditar que a submete, ao con- 10 de se aliar a ela, de completaé-la ou de contempla-la. lag&o que predomina especialmente no Ocidente é a de onto; © homem submisso, tentando vencer os obsta- oS gue a natureza impée, tentando domin4-la, mas 0 ho- este “animal que sabe”, nao pode se opor ao universo, universo e permanece de algum modo atado 4 natureza, metido a ela. Negamos a natureza no campo que é seu de direito, diz schiller, para afirmar sua tirania no campo moral. A forga ex- a da natureza em nds, a violéncia que buscamos contro- por meio da moral, nao desaparece, ao contrario, perdu- permanecemos exercendo nossa animalidade, agora por 0 da palavra, da astticia, da coagdo moral, da inteligén- A natureza n4o diz mais a primeira palavra, mas acaba do a ultima, j4 que continuamos passionais, violentos, seiros. “A cultura, longe de dar-nos a liberdade, através cada forga criada cria também uma nova necessidade.” A itura se tornou uma nova natureza que, ao contrario de 2a VIVIANE MOSE O que o homem busca no é conhecer, como quer Aristé- teles, diz Nietzsche, mas dominar a natureza, a exterioridade infinita que o domina, e a interioridade caética de seus prd- prios instintos, sua animalidade. A vontade de saber termina por revelar uma vontade de substitui¢ao da vida pelos cédigos: © que os homens buscam no € conhecer, mas traduzir o des- conhecido em conhecido; e se veem cada vez mais reduzidos 4 linguagem, aos conceitos, as imagens. A isto Nietzsche chama niilismo: a vontade de saber é uma vontade de nada. Veremos esta questao adiante. E também nesta diregdo que Nietzsche caminha quando cria a ideia de uma mé consciéncia: em vez de um espelha- mento, de um jogo afirmativo de percepgoes, de sensagdes que terminam por se constituir como um campo interpreta- tivo, a consciéncia acabou se configurando como a instancia de avaliagdo que inverte a direcdo das forcas, fazendo nascer um homem reduzido a pensar, a calcular, em um jogo auto- destrutivo e cruel: a forga instintiva, antes dirigida para fora, passou a agir no espago da interioridade ¢ criou a maior de todas as doencas, “o homem doente de si mesmo”."* Da consciéncia 4 m4 consciéncia, do pensamento vivo, intenso, ao pensamento como lamina cruel, como instancia niilista: este € 0 caminho que buscamos trilhar e investigar neste livro. 11 Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral, segunda dissertacao. Voltaremos a este tema mais tarde.

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