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e n t r e v i s t a | eduardo jardim

A brasilidade modernista:
sua dimensão filosófica
Filósofo e ensaísta carioca rediscute o modernismo brasileiro
a partir de questões e debates estético-filosóficos
por eduardo cesar maia

Em A brasilidade modernista: Café Colombo – O seu livro busca dis- por modelo o que era feito nas universi-
sua dimensão filosófica – cutir a questão da brasilidade moder- dades da Europa e dos Estados Unidos.
obra publicada pela primeira nista a partir de um panorama da re- Os filósofos brasileiros sofrem de uma
vez em 1978 e recentemente flexão filosófica desenvolvida no país. espécie de complexo de inferioridade: eles
revista e atualizada numa Isso pressupõe o entendimento de que próprios afirmam que a filosofia no Brasil
segunda edição –, o filósofo havia um ambiente de discussões pro- está contida nas obras literárias e não nas
Eduardo Jardim busca revisitar priamente filosóficas. Quem de fato filosóficas! Acham que a filosofia está nos
o modernismo brasileiro a fazia filosofia no país? Ou eram con- livros de Oswald de Andrade ou Guima-
partir de um panorama da reflexão ceitos filosóficos manipulados por ar- rães Rosa, que são grandes escritores!
filosófica desenvolvida no país. O autor tistas e críticos?
divide o modernismo brasileiro em Eduardo Jardim – Como movimento de Por que a importância de Graça Ara-
duas importantes etapas: na primeira, ideias o modernismo insere-se em uma li- nha foi diminuída nas interpretações
a partir de 1917, a urgência era inserir nha de investigações de caráter filosófico. mais comuns do modernismo brasi-
a cultura e a arte brasileira na ordem Essa inserção foi possibilitada por Graça leiro? Como deve ser redimensionado
moderna internacional, através da Aranha, com seu livro A estética da vida, seu verdadeiro legado?
possibilidade de ruptura, que acabou de 1921. Graça Aranha foi um discípulo O modernismo, como todos os grupos
orientando a Semana de 1922. Num de Tobias Barreto, o principal represen- de vanguarda da época, se apresentou
momento posterior, a partir de 1924, tante da Escola de Recife, um dos grupos como um movimento de ruptura com
estabelece-se uma via mais propositiva atuantes em um importante debate dos tudo que veio antes. Graça Aranha era
para essa inserção, a da identificação anos 1870. Esse grupo se posicionou a de outra geração e tinha um estilo anti-
particularidade (ou peculiaridades), favor de uma renovação dos estudos fi- quado. Não poderia ser visto pelo grupo
com a revalorização da tradição cultural losóficos, incorporando uma versão da paulista como um representante do mo-
brasileira. Eduardo Jardim foi professor filosofia crítica de Kant. Deste modo, opu- vimento. De qualquer modo, para nossa
de filosofia na PUC-Rio por muitos nha-se a outro grupo – o positivista – ca- compreensão das bases conceituais do
anos, é autor, ainda, de Eu sou trezentos racterizado por um reducionismo cientifi- movimento modernista, é importante
(2015), biografia de Mário de Andrade cista e com um nítido preconceito contra discutir alguns aspectos da obra de Gra-
premiada com o prêmio Jabuti 2016. a filosofia.Temos dificuldade de ter acesso ça Aranha. A categoria da integração,
Publicou também os livros Limites do a esta matéria por diversos motivos. Um que constitui o núcleo da filosofia mo-
moderno: o pensamento estético de deles é de que, naquele debate, saiu vence- nista do maranhense, está presente no
Mário de Andrade (1999), Mário de dora a solução cientificista anti-filosófica. universalismo modernista, tanto em sua
Andrade: a morte do poeta (2005), A Houve no Brasil o desenvolvimento da so- primeira fase, até 1924, quanto na fase
duas vozes: Hannah Arendt e Octavio ciologia, fruto do positivismo, com enor- nacionalista. Modernizar para os mo-
Paz (2007) e Hannah Arendt: pensadora me sucesso. Em contraste, a reflexão filo- dernistas significava integrar o país em
da crise e de um novo início (2011). sófica não foi incentivada. Quando foram uma totalidade, no universal moderno.
implantadas as universidades, nos anos Também a proposta de integração da in-
  1930, já não havia uma tradição filosófi- teligência brasileira ao ambiente nacio-
ca que se pudesse tomar como referência. nal, defendida por Graça Aranha, fruti-
Os estudos filosóficos entre nós tomaram fica no segundo tempo do modernismo.

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divulgação
entrevista

Além do mais, a importância atribuída


por Graça Aranha à intuição como via
de acesso à realidade está presente tanto
em Oswald de Andrade, do movimento
Pau-brasil e da Antropofagia, quanto no
verde-amarelismo de Plínio Salgado.

Como os modernistas conciliaram fi-


losoficamente o impulso de renovação
estética de caráter mais internaciona-
lista com a posterior interpelação de
cunho mais nacionalista?
Mário de Andrade foi o formulador da
concepção internacionalista ou univer-
salista característica do movimento mo-
dernista em suas duas fases. Isto tinha a
ver com o anseio de participação dos ar-
tistas brasileiros no “concerto das nações
cultas”. Em um primeiro tempo, de 1917
a 1924, essa participação seria viabili- O escritor e pesquisador da cultura Mário de Andrade
zada pela incorporação das linguagens
artísticas consideradas modernas. Foi o a incorporação, na literatura, dos sabe- mendava a seus alunos que lessem, nem
tempo do contato com os movimentos res popular e folclórico; o indianismo, que fosse em manuais de história da filo-
europeus, das viagens a Paris, da leitu- apesar de terem versões diferentes; a sofia. Quando assumiu a cadeira de His-
ra das revistas internacionais. Em 1924, pesquisa de uma dicção literária própria tória e Filosofia da Arte, na Universidade
houve uma mudança na maneira de se do Brasil. O modernismo “internaliza” do Distrito Federal, em 1938, intensifi-
definir a incorporação no universal mo- os propósitos do romantismo. Isto é: os cou seus estudos, como comenta em vá-
derno. A partir deste momento, todo o românticos ainda consideravam o país rias cartas. Era um trabalho apaixonante,
grupo modernista passou a entender como cenário em que as histórias se pas- mas árduo, já que não se sentia prepa-
que a entrada do país no cenário mo- savam, isto é, como algo externo. Para rado para ser professor universitário. O
derno dependia da afirmação dos traços Oswald de Andrade, o índio de Alencar resultado está em “O artista e o artesão”,
nacionais da cultura brasileira. Oswald era ainda decorativo. Já o modernismo a aula inaugural.
de Andrade expressou essa posição no opera uma nacionalização do próprio A palestra apresenta uma visão dos im-
“Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, Má- pensar. Mais ainda: o escritor modernis- passes da arte moderna, marcada pelo
rio de Andrade, em Macunaíma, Ensaio ta se considera como um componente individualismo e pelo formalismo, e in-
sobre música brasileira e Clã do Jabuti. na fixação da nacionalidade. No final de dica um caminho para sua superação.
Assim, de modos diferentes, o universa- Macunaíma, depois que o herói da nos- Este consiste na adoção pelo artista de
lismo esteve na base do modernismo nos sa gente virou a Ursa Maior, sobrou só uma “atitude estética”. O conceito de
seus dois tempos. o papagaio como testemunha daqueles “atitude estética” tem afinidade com a
“tempos de dantes”. Ele vem narrar para noção de “desinteresse”, apresentada por
Você afirma que “É verdade que algu- o escritor os feitos relatados no livro que Kant na Crítica do juízo. É possível que o
ma afinidade do modernismo com o acabou de ser lido. O escritor modernis- contato de Mário de Andrade tenha sido
romantismo do século XIX pode ser ta é portador da identidade nacional. A indireto, pela leitura de A educação esté-
notada”; porém, que cada movimento “inteligência” está comprometida com a tica do homem, de Schiller. Há no texto
teria tratado o tema da brasilidade de formação da brasilidade. de Mário uma engenhosa articulação da
maneira peculiar. Que peculiaridades estética alemã com a filosofia da arte do
você enxerga? Qual o alcance propriamente filosófico neotomista Jacques Maritain, exposta
Mário de Andrade teve a ideia de dedi- das concepções de Mário de Andrade? em Arte e escolástica.
car Macunaíma ao romântico José de Com exceção de um curto período em Os ensaios de Mário de Andrade da fase
Alencar, chamando-o de “pai dos vivos” que estudou no Mosteiro de São Bento, final indicam que ele, o principal líder do
e “meu irmão”. Existem várias afinidades em São Paulo, Mário de Andrade não movimento modernista, fazia, naquele
entre o modernismo e o romantismo: a teve um contato escolar com filosofia. momento, uma revisão da doutrina mo-
preocupação em fixar o caráter nacional; Leu muito, em várias direções, e reco- dernista, denunciava seu esgotamento

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e considerava novas possibilidades. A

divulgação
conferência O movimento modernista,
de 1942, a série de artigos O banquete
e outros escritos refletem este estado de
ânimo.

Que visão de brasilidade tinham os


verde-amarelistas? E no caso da antro-
pofagia, que projeto de nacionalidade
se ligava ao seu ideário estético?
A introdução da questão da brasilidade
no modernismo, em 1924, suscitou um
intenso debate sobre como conceber a
entidade nacional. Duas principais ver-
tentes se opuseram. A primeira, repre-
sentada por Mário de Andrade, defendia
uma apreensão analítica da brasilidade.
Mário entendeu que a nacionalidade
estava contida na cultura popular. Esta,
por sua vez, era identificada à “coisa fol-
clórica”. Para se chegar à definição da
brasilidade era preciso fazer o levanta-
mento e a análise dos elementos conti-
dos na cultura popular. Mário de Andra-
de nunca conseguiu realmente alcançar
seu objetivo, apesar de toda a pesquisa
realizada no Ensaio sobre música brasi-
leira, de 1928. Em geral, em momentos J. G. Merquior criticava a falta de “informação filosófica” da crítica literária brasileira
mais significativos, a brasilidade como
ente unitário escapou, como aconteceu comunicação com o solo.” Esta máxima cava a maioria da crítica literária bra-
em Macunaíma, que é, afinal, a história do “Manifesto Antropófago”, de 1928, sileira. Você compartilha do diagnósti-
de um herói sem nenhum caráter. Em exprime este anseio de integração. Um co? Ele segue atual? 
outra direção estão o grupo verde-ama- aspecto que precisa ainda ser discuti- Merquior, no ensaio “Crítica, razão e
relista, liderado por Plínio Salgado, e a do diz respeito à dimensão política au- lírica”, em Razão do poema, cobra da
Antropofagia de Oswald de Andrade. toritária dessas orientações. O próprio crítica literária a explicitação das bases
Nos dois casos, a apreensão da entidade Plínio Salgado fez referência às fontes filosóficas de suas apreciações. Talvez
nacional é intuitiva, emocional. A pre- verde-amarelistas do integralismo, o seja uma cobrança exagerada, já que o
sença da categoria da integração, apre- fascismo brasileiro. O poder divinatório ajuizamento estético não depende do
sentada por Graça Aranha em A Estética do Chefe tinha, para ele, o mesmo valor conhecimento teórico, mas de uma ati-
da vida, é, aqui, muito mais atuante. Em da intuição verde-amarelista. E quan- tude de abertura diante daquilo que se
primeiro lugar, a própria nacionalidade to à Antropofagia? Algumas passagens aprecia. Mas o objetivo dessa passagem
é considerada como produto de uma fu- da Revista de Antropofagia, na segunda é de estimular um adensamento do es-
são, alcançada pelo casamento do bran- fase ou “dentição”, mostram a presença pírito crítico, uma aprendizagem do
co com o índio, para os verde-amarelis- do mesmo espírito. É possível que essas gosto. Esse apelo continua pertinente,
tas, ou pela devoração antropófaga. Em duas correntes modernistas façam parte talvez até mais do que na época em que
segundo lugar, a via de acesso à realidade de uma orientação autoritária do pen- o livro foi escrito, no início dos anos
nacional também é vista como uma for- samento político brasileiro muito mais 1960. Em contraste com o que se passa-
ma de integração. Era preciso eliminar a ampla, muito expressiva nos anos 1920 e va, quando predominava uma certa in-
distância entre o sujeito e o objeto do co- 1930, e da qual possivelmente ainda não genuidade, atualmente, por trás de uma
nhecimento, em uma espécie de emoção terminamos de fazer a crítica. enorme erudição pode estar mascarado
totalizante. Daí a preferência por formas um vazio de pensamento. Nesse senti-
intuitivas, não analíticas, de abordagem José Guilherme Merquior dizia que a do, concordo com o ponto de vista do
do real. “Contra as elites vegetais, em falta de informação filosófica prejudi- então jovem crítico.

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