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Gênero, cibercultura e novas tecnologias de comunicação digital: reforçando ou desconstruindo

preconceitos? ST 36
Cilmar Santos de Castro
FIOCRUZ / Centro Universitário de Volta Redonda (UGB)
Lucia de La Rocque
FIOCRUZ /UERJ
Palavras-chave: Gênero, Cyberpunk, Matrix

Mulheres Guerreiras ou Heroínas Românticas: Gênero e Preconceito no Universo Cyberpunk da


Trilogia Matrix.

O gênero de ficção científica é terreno fértil para discussões de diversas ordens, partindo do
desenvolvimento científico / tecnológico, com seus desafios éticos / filosóficos, até as mais intrincadas
formas de representação de ser humano e sociedade (MARTINS, 2004; TUCHERMAN, 2004). O
cinema de ficção científica, em particular, possibilita ao grande público o acesso a questionamentos de
temáticas sofisticadas, propiciando a inclusão de propostas educacionais do seu uso (CASTRO, 2006;
ROWLANS, 2005; BRAKE e THORNTON, 2003; MACHADO, 2002).
As mutações e mesclas do corpo biológico para um ente cibernético, simbolizado pela
figura do ciborgue (HARAWAY, 1985) e virtualizado com as novas tecnologias digitais (SIBILIA,
2002) levam, segundo esta autora, a uma corrente fáustica da tecnociência pós-moderna, que busca a
transcendência da condição humana, transpondo sua organicidade e produzindo uma alquimia de um
“homem pós-biológico”, rumo ao infinito.“As criaturas produzidas pelos cientistas da era fáustica
iludem com a sua ambigüidade, dificultando a diferenciação entre o que é “natural” e o que é
“artificial”.” (op. cit, p.143).
Discussões relacionadas a gênero aparecem com freqüência em análises do universo da
ficção científica (LAWRENCE, 2005; LIPP in KAPELL & DOTT, 2004; DE LA ROCQUE &
TEIXEIRA, 2001; DE LA ROCQUE, 1997), havendo inclusive uma corrente de ficção científica
feminista, com escritoras como Marge Pierce, Donna Haraway, Melissa Scott, Ursula Le Guin’s, entre
outras (ROBERTS, 2000). O intuito deste artigo é efetuar uma breve explanação sobre questões de
gênero apresentadas na série de filmes Matrix, buscando evidenciar como alguns de seus principais
personagens femininos são expostos e valorados.
A trilogia Matrix, iniciada em 1999 com The Matrix e concluída em 2003 com Matrix
Reloaded e Matrix Revolutions, dos diretores Larry e Andy Wachowski, representa o mais
emblemático sucesso cinematográfico do cyberpunk, subgênero da ficção científica que se caracteriza
pelo apropriação de tecnologias de ponta para o embate com o poder ditatorial de mega-corporações, da
luta de rebeldes hackeando o sistema (LEMOS, 2004) em um cenário avançado de distopia
(MOYLAN, 2000; BOOKER, 1994). O próprio nome Matrix é uma referência direta ao maior clássico
da literatura cyberpunk, o livro Neuromancer (GIBSON, 1984). A trilogia pode ser considerada a mais
variada e complexa matriz de referências em toda a história do cinema: religião, filosofia, mitologia,
artes marciais, ciência da computação, literatura, um mix de conceitos e simbolismos (CASTRO, 2006,
p.29) formando um enredo complexo, passível de múltiplas análises e interpretações. “A operação
elementar da atividade interpretativa é a associação; dar sentido a um texto é o mesmo que ligá-lo,
conectá-lo a outros textos, e portanto, é o mesmo que construir um hipertexto.” (LÉVY, 1993, p.72).
Figuras como a do Salvador, do oráculo, do traidor, do arquiteto, formam uma trama em que cada vez
que os filmes são vistos, mais se descobre e a estes outros elementos se conectam.
As personagens femininas da trilogia exercem papel de grande relevância na história. Ainda
que o personagem central – o programador Neo (Keanu Reeves) – seja do sexo masculino,
representando claramente a figura do messias, as mulheres, sejam elas biológicas como Trinity, Niobe
e Zee, ou as computacionais como Oráculo, Persephone e a menina Sati, são densas, poderosas e
conduzem grande parte das ações.
Trinity é mais do que somente a parceira de Neo, como pode ser constatado em diversos
momentos. As duas cenas iniciais de The Matrix e de Reloaded, de ação arrebatadora, são
protagonizadas por ela. Na primeira, quando os policiais tentam prendê-la, Trinity dá o golpe em que
pára no ar enquanto a câmera gira em seu entorno e depois corre pelas paredes, neutralizando todos os
guardas. Minutos antes o comandante desta operação diz ao agente Smith: “Nós podemos lidar com
uma garotinha”, obtendo a fatídica resposta: “Seus homens já estão mortos.”. No segundo filme, a
abertura ocorre com Trinity saltando de moto para destruir uma usina de energia, atacando diversos
guardas e finalizando a luta com o golpe do escorpião. Adrenalina e eficácia plena.
No primeiro encontro com Neo, ao se apresentar como Trinity (nome de hacker), ele se
espanta ao saber que se trata de uma mulher, demonstrando o preconceito vigente de que a competência
técnica na área de computação é restrita aos homens. Em Reloaded ela usa seu conhecimento
informático para salvar da morte Neo, Morpheus e o Chaveiro quando estes tentam chegar ao
mainframe (computador central) da máquinas
Trinity é nitidamente uma guerreira cyberpunk, mas sem abrir mão de suas propriedades
humanas e até mesmo românticas, como a crença no amor. É com base no amor que Trinity ressuscita
Neo, morto pelos Agentes. A força deste sentimento é capaz de superar a perfeição da simulação
neuro-interativa da Matrix, valorizando a humanidade de suas ações. Em Reloaded Neo retribui ao
salvar Trinity, com uma bala alojada no coração. “Agora estamos quites”, diz ela, em sinal de
equivalência de papéis. Até mesmo a morte de Trinity, em Revolutions, não pode ser associada à sua
condição de mulher e sim pela fragilidade de ser humano, onde somente o Escolhido (em inglês, One,
um anagrama de Neo) com suas capacidade sobre-humanas seria capaz de chegar à cidade das
máquinas. Lembrando que o final de Revolutions deixa margem à inúmeras interpretações em relação à
morte de Neo, de uma possível sétima versão do escolhido, em uma continuação da série.
Niobe é outra mulher forte, seja em Zion (última cidade humana, no mundo real) ou dentro
da Matrix. Capitã de uma das naves, toma decisões contundentes, como emprestá-la para Neo ir até a
cidade das máquinas. Namorou Morpheus e o comandante Locke, o que demonstra sua
heterosexualidade. Ao contrário da popular e preconceituosa colocação de que “mulheres não sabem
dirigir”, Niobe é quem melhor pilota naves, a única a conseguir conduzir um hovercraft em uma antiga
rota de navegação mecânica, até chegar aos portais de Zion, em Revolutions.
Zee, esposa do operador Link, e Charra, são mulheres na infantaria, lutando lado a lado
com homens. Ainda que Charra tenha uma aparência mais masculinizada, assemelhando-se a Ripley,
personagem de Sigourney Weaver na série de filmes Alien (KAVENEY, 2005, p.131), Zee é
impulsionada pelo amor ao marido e busca forças em simbolismos místicos / religiosos, oferecendo um
colar a Link que simboliza sua fé.
Até as figuras femininas computacionais, ou seja, softwares cujas representações digitais
são avatares dentro da Matrix como Oráculo, Persephone e a menina Sati, possuem força e
características humanas. O Oráculo é um programa originalmente criado para investigar aspectos da
psiquê humana, que optou por auxiliar os rebeldes, adotando uma perspectiva de um convívio entre
homens e máquinas. É considerada a mãe da Matrix e seu papel acolhedor se opõe ao do Arquiteto,
entidade criadora da Matrix, figura masculina, clean e sinistra. Enquanto o propósito do Arquiteto é
manter o sistema, a “perfeição matemática” e “balancear as equações”, o Oráculo busca mudanças ao
“desbalancear as equações”, servindo de guia de auto-conhecimento para os rebeldes. Persephone,
esposa do traficante de informação Merovíngio, apresenta carências, ciúmes e toma atitudes de
vingança contra o marido, libertando o personagem Chaveiro, após pedir um beijo para Neo,
provocando Trinity, numa das cenas de ciúmes mais interessantes do cinema. A menina Sati, filha de
Kamala e Rama Kandra – isto mesmo, uma “família” de programas, um dos aspectos novos
incorporados em Revolutions – além da amorosidade e pureza evidentes, sinaliza a renovação, a
criatividade e a esperança, gerando um por do sol na última cena da trilogia.
Em outros pontos pode ser percebida a equivalência / harmonização de gênero. O conselho
de Zion é composto por homens e mulheres, tendo uma mulher como líder. Dentro das naves e em
outras instâncias de trabalho, a equivalência se apresenta. Além da harmonização de gênero, percebe-se
o mesmo fenômeno em relação às raças / etnias. “Nós não achamos sinais de tensão racial em Zion, e
a competência da mulher nunca é questionada.” (LAWRENCE, 2005, p.86).
Em suma, ao rever questões de gênero na trilogia Matrix, aparece um quadro de valorização
do papel feminino, o que não é uma tradição na ficção científica. Uma postura equânime entre
mulheres e homens e a força de personagens, destacando Trinity, Niobe e Oráculo, permitem afirmar
que as mulheres vão além da condição de subserviência ou hipersexualização, conduzindo partes
significativas da trama. Elas são guerreiras sim, preparadas para as duras condições das batalhas com as
máquinas, mas ainda preservam traços românticos, dando uma maior humanidade a seus atos. Ainda
que o messias Neo seja masculino, como sinaliza Martina Lipp (in KAPEEL e DOTH, 2004, p. 29), a
função de Trinity não é ser somente uma “escada” para o Escolhido. Um Neo ou um Jesus Cristo
encarnado em uma mulher pode ser uma possibilidade muito interessante, mas talvez para uma outra
história, pelo vínculo que a trama faz com as referências intertextuais, principalmente as religiosas do
Catolicismo, Catolicismo Gnóstimo e Judaísmo, o que poderia dificultar a amarração conceitual com o
conhecimento prévio dos espectadores, em uma obra cujo entendimento já requer ver o filme por
algumas vezes. Mais importante do que o sexo do Escolhido – que afinal de contas, até que ponto ele
pode ser considerado humano? – é o somatório de poderes, sentimentos e atitudes demonstrados pelas
mulheres da trilogia Matrix.

Referências

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