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CULTURA
O filme A chegada mostra como a linguagem influencia nossos pensamentos
A trama usa o aprendizado de um idioma extraterrestre para provar que as palavras
podem moldar nossa visão de mundo
NINA FINCO E RUAN DE SOUSA GABRIEL
02/12/2016 - 15h54 - Atualizado 02/12/2016 16h54
Cena do filme A chegada (Foto: Divulgação)
ESPERANTO INTERGALÁCTICO
A linguista Louise Banks (Amy Adams) tenta conversar com aliens. Conhecer a língua
deles abrirá seus olhos para uma nova realidade (Foto: Divulgação)
Em 1940, Benjamin Lee Whorf, um engenheiro químico interessado em antropologia,
publicou o artigo “Ciência e linguística” na revista do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos. No texto, Whorf
aplicava as ideias do linguista alemão Edward Sapir sobre a influência da linguagem
no modo de pensar dos indivíduos – ele defendia a tese de que os indígenas
americanos tinham uma visão de mundo diferente dos falantes de inglês porque suas
línguas originais não diferenciam a conjugação dos tempos verbais. Devido a essa
peculiaridade, os nativos tinham dificuldade de compreender o conceito de
temporalidade, mas conseguiriam intuir a teoria da relatividade de Albert Einstein,
segundo a qual o tempo passa de forma diferente de acordo com o ponto de vista do
observador.

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Essa teoria sobre como a língua materna molda a forma como vemos o mundo recebeu o
nome de Hipótese Sapir-Whorf, ou relativismo linguístico. Nas últimas décadas,
cientistas tentaram provar essa teoria por meio de várias experiências. Nenhum
deles foi tão bem-sucedido quanto o cineasta canadense Denis Villeneuve no filme A
chegada, que estreou na quinta-feira (24). Valendo-se dos recursos da ficção
científica, Villeneuve coloca em prática os conceitos de Sapir-Whorf. Mas, em vez
de línguas humanas, a trama se debruça sobre línguas alienígenas.

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Baseado no conto “História da sua vida”, do americano Ted Chiang, A chegada


acompanha a linguista Louise Banks (Amy Adams), recrutada pelo governo americano
para aprender a língua dos alienígenas que visitam a Terra. Os sons que esses seres
emitem não se assemelham em nada ao que ela já ouviu. É preciso partir do zero.
Para aprender o novo idioma, ela escreve palavras em inglês numa lousa e faz
mímicas sobre seu significado repetidas vezes, até que o alienígena lhe apresente a
palavra correspondente em sua língua. Essa é a técnica que linguistas usam para
decifrar idiomas desconhecidos de tribos isoladas da sociedade. Baseia-se no
conceito de “gramática universal”, segundo o qual todos os idiomas humanos
compartilham alguns princípios básicos, como a organização em verbos e
substantivos. Ao desvendar o idioma alienígena e sua forma de escrita, Louise
experimenta uma nova e inusitada forma de enxergar o mundo a seu redor – exatamente
como a Hipótese Sapir-Whorf diz que a linguagem influencia nossa percepção do
mundo, nossa memória e nosso comportamento.

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Pesquisas já atestaram que um vocabulário mais amplo, por exemplo, permite
distinguir mais cores. Um estudo publicado em 1954 mostra que os falantes de zunhi
(língua de tribos indígenas do sul dos Estados Unidos) tinham dificuldade de
distinguir a cor laranja da amarela, pois contavam com apenas uma palavra para as
duas tonalidades. Outro estudo, de 2007, mostrou que os russos, que têm vocábulos
diferentes para azul-claro (goluboy) e azul-escuro (siniy), eram melhores que os
anglófonos para perceber as gradações do azul.

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A língua materna também está ligada à construção das memórias. Durante seu exílio
americano, o escritor russo Vladimir Nabokov escreveu uma autobiografia em inglês,
Conclusive evidence (Evidência conclusiva). Quando se ofereceu para traduzi-la para
o russo, atendendo a um pedido de uma pequena editora nova-iorquina, Nabokov teve
uma experiência proustiana: o contato com a língua de sua infância trouxe de volta
lembranças que permaneceram encobertas quando escreveu a obra em inglês. O número
de páginas aumentou. Anos depois, ele fez uma nova tradução, do russo para o
inglês, intitulada Fala, memória. “Nabokov passou toda a sua infância na Rússia e
talvez ele se sentisse mais confortável para escrever sobre aquela experiência em
sua língua materna”, afirma a linguista Jessica Coon, consultora do filme. “As
pessoas podem associar determinada língua a um determinado tempo ou cenário.”

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O economista comportamental Keith Chen vai além e argumenta que a língua pode até
mesmo influenciar a capacidade de poupar dinheiro. Suas pesquisas concluíram que
falantes de línguas que não diferenciam a conjugação de verbos no presente e no
futuro, como o japonês e o chinês, são mais econômicos. Entre eles, o hábito da
poupança é 30% maior do que entre anglófonos. As gramáticas de línguas como o
inglês (e o português) constroem uma ideia de futuro distante do presente, o que
desestimularia a poupança em favor dos gastos imediatos.

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Em A chegada, a análise da linguista Louise conclui que o idioma dos alienígenas


não se apoia em definições claras de presente, passado e futuro. Por isso, a
escrita extraterrestre não é linear como as línguas humanas, escritas da direita
para a esquerda ou da esquerda para a direita. Todas as palavras se juntam em
símbolos circulares nos quais os verbos não têm conjugação. Tampouco há
correspondência entre a língua falada e a língua escrita. Os alienígenas falam por
meio de sons que a garganta humana é incapaz de imitar, mas os círculos que eles
escrevem não são a representação gráfica desse discurso. É nesse aspecto que A
chegada se torna um filme mais ficcional que científico. Segundo a linguista
Jessica, há sempre uma correspondência entre o escrito e o falado nas línguas
humanas. Mas esse é o tipo de licença poética (ou, no caso, científica) que cabe
bem nos filmes de ETs.

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