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II.3.1.3.

A necessidade de fundamentação
da moral – análise comparativa de duas
perspetivas filosóficas: John Stuart Mill e
Immanuel Kant

Immanuel Kant e a
ÉTICA DEONTOLÓGICA
FILOSOFIA - 10º ano - Marina Santos

Immanuel KANT
(1724-1804)
A REVOLUÇÃO ÉTICA
DE KANT

• Kant coloca a origem e justificação da moralidade no próprio


Homem, na sua natureza racional.
A moralidade não deve apoiar-se «nem na terra nem no céu»,
isto é, não tem origem na sociedade, na religião, nem na
busca do prazer ou da felicidade.
 Deve apoiar-se na capacidade humana de pensar e agir por si
mesmo, i.e., na Razão.
 A lei moral é a lei do sujeito e para o sujeito racional: é uma
ética da autonomia.
Cabe a cada sujeito “dar a si mesmo a lei” que o orienta nas
decisões, ouvindo a “voz da Razão”- a consciência moral.

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Os “atores”
do drama moral

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A ética kantiana:
deontológica e intencional
• O critério mais importante para classificar uma ação como moralmente
boa: a intenção do indivíduo cumprir o que a Razão lhe ordena, sem
se preocupar com as consequências que poderão advir da sua
realização.
• Só a intenção de cumprir o dever por respeito absoluto pelo dever
torna uma ação boa.
• Ao cumprir o dever pelo dever, a vontade obedece a uma lei
instituída pela sua própria Razão.
=> autonomia da vontade: capacidade de autodeterminação do
Homem, de se tornar racional, rejeitando influências exteriores à
razão.
• A verdadeira moralidade do Homem reside no princípio formal,
incondicional e a priori determinante da ação.

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A Lei Moral

•Onde reside o princípio que nos diz como devemos cumprir o dever?
Na nossa consciência, como seres racionais que se reconhecem dotados
de liberdade.
•Que princípio é esse (que nos orienta)? A lei moral.
• A lei moral diz-nos: «Deves absolutamente e em qualquer
circunstância cumprir o dever pelo dever»
 Exige um absoluto e incondicional respeito pelo dever;
Diz-nos a forma como devemos agir: é puramente formal;
 É um imperativo categórico* (incondicional), uma ordem que não
está submetida a qualquer condição.

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A Lei Moral
LEI MORAL

ABSOLUTA E APODÍCTICA OU
UNIVERSAL A priori *
INCONDICIONAL NECESSÁRIA

Tem de valer Vale independente- Não deriva da


Tem de ser assim e
para todos os mente das situações experiência.
não pode ser de
seres racionais, concretas, das conse- A sua origem está na
outro modo.
sem excepção. quências da acção. racionalidade humana.

• A priori = antes e independentemente da experiência. Em Kant, designa as


estruturas do sujeito lógico, que constituem a forma do conhecimento.
• A posteriori = após e decorrente da experiência. Os conteúdos que o sujeito
cognitivo obtém a partir da experiência e que constituem a matéria do conhecimento.

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A Lei Moral e o
Imperativo categórico
Exemplo:
A) Se não queres ter problemas, então não ofendas os teus vizinhos.
=> imperativo hipotético: Se queres A, então deves fazer B.

B) Não deves ofender os teus vizinhos porque é esse o teu dever!


=> *imperativo categórico: o dever como fim em si mesmo.

A lei moral apresenta-se como imperativo categórico, porque


no ser humano a razão convive com a sensibilidade.
Ora, a sensibilidade é a sede das inclinações sensíveis ou
empíricas, as quais são um obstáculo ao cumprimento absoluto que a
lei moral/ racional exige. Resta confiar na Razão para nos orientar.

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Imperativos:
hipotético vs. categórico
IMPERATIVO HIPOTÉTICO IMPERATIVO CATEGÓRICO
Faz “A” se queres “B”. Faz “A”!
Ex. Cumpre as tuas promessas se quiseres Ex. Cumpre as tuas promessas!
ser bem visto.
=> Obrigação condicional. => Obrigação incondicionada.
O que ordena é um MEIO para O que ordena é um FIM em si mesmo.
atingir algo.
A vontade é HETERÓNOMA A vontade é AUTÓNOMA (determinada
(determinada do exterior). do interior, pela consciência moral).
Depende da situação. Depende exclusivamente da Razão.

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A validade de uma norma
Uma ação é moral se…
• For dotada de universalidade
«Age segundo uma máxima tal que queiras ao mesmo tempo
que se torne lei universal»
=> 1ª fórmula do imperativo categórico: devemos fazer, somente, o
que possa ser universalizado. Máxima: princípio/ critério para agir bem.

• Respeitar a dignidade humana


«Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto da tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio»
=> princípio da finalidade: recusa da instrumentalização e
coisificação do outro; «fórmula da humanidade».

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Classificação das ações

CLASSIFICAÇÃO DAS ACÇÕES


CONTRÁRIAS AO DEVER CONFORMES AO DEVER
POR INTERESSE POR INCLINAÇÃO POR
PESSOAL IMEDIATA DEVER*

• Acção contra o dever: quando um comerciante explora os clientes, cobrando


preços abusivos.
• Acção conforme ao dever: quando um comerciante não vende caro para manter
os clientes habituais e, eventualmente, para atrair novos; ou porque lhe apeteceu.
• Acção por dever: quando um comerciante não vende caro os seus produtos
porque sabe que é esse o seu dever.
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Classificação das ações

Fonte: ilosofarliberta.blogspot.pt/2015/03/agir-por-dever-e-agir-em-conformidade.html

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Exemplo: o Dilema
de Henrique
https://www.youtube.com/watch?v=5czp9S4u26M

"Numa cidade europeia, uma mulher estava a morrer de cancro, contudo um


medicamento descoberto recentemente por um farmacêutico dessa cidade poderia
salvar-lhe a vida. A descoberta desse medicamento tinha custado muito dinheiro ao
farmacêutico, que agora pedia dez vezes mais por uma pequena porção desse remédio.
Henrique (Heinz), o marido da mulher que estava a morrer, foi ter com as pessoas suas
conhecidas para lhe emprestarem o dinheiro e, assim, poder comprar o medicamento.
Apenas conseguiu juntar metade do dinheiro pedido pelo farmacêutico. Então, foi ter
com ele, contou-lhe que a sua mulher estava a morrer e pediu-lhe para lhe vender o
medicamento mais barato. Em alternativa, pediu-lhe para o deixar levar o medicamento,
pagando mais tarde a metade do dinheiro que ainda lhe faltava. O farmacêutico
respondeu que não, que tinha descoberto o medicamento e que queria ganhar dinheiro
com a sua descoberta. O Henrique, que tinha feito tudo ao seu alcance para comprar o
medicamento, ficou desesperado e estava a pensar assaltar a farmácia e roubar o
medicamento para a sua mulher.” (L. Kohlberg, Essays on Moral Development, 1984)

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Exemplo: o Dilema de
Henrique (Heinz)

Fonte: ilosofarliberta.blogspot.pt/2015/03/agir-por-dever-e-agir-em-conformidade.html

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ÉTICA KANTIANA
vs. UTILITARISMO

• Kant é um filósofo anti-consequencialista:


• Se uma ação for boa enquanto meio para atingir um fim
(acção conforme ao dever), então cumpre-se o dever por
interesse, seja altruísta ou egoísta.
• Mas o valor de uma boa vontade consiste na intenção de
praticar o bem, independentemente de qualquer interesse
que possamos ter pelo resultado da acção praticada.
• A moralidade reside na ação boa em si mesma, por dever*

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ÉTICA KANTIANA
vs. UTILITARISMO
• A tese consequencialista/utilitarista de que o prazer é o princípio
determinante da conduta humana é inaceitável para Kant.
A felicidade é uma inclinação natural ou sensível do Homem e, embora
seja legítimo querer ser feliz, não pode constituir a sede de moralidade
de um ato.
 Porque uma ação moral é uma ação puramente racional, não
condicionada por inclinações empíricas, como o desejo de ser feliz ou
de contribuir para o bem-estar dos outros.
Mais importante do que a felicidade ou o bem-estar, é o respeito pela
dignidade do Homem, pelo seu valor absoluto como ser que a Razão
eleva acima de todas as criaturas e o torna autónomo face a Deus.

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ÉTICA KANTIANA
vs. UTILITARISMO
As éticas materiais/de conteúdo/ empíricas/a posteriori
formulam imperativos hipotéticos e são condicionais.
 Todas as éticas materiais procuram determinar, entre os bens,
qual o bem supremo ou fim último do Homem Estabelecido
esse bem supremo (a felicidade, por ex.) a ética daria, então, as
normas para o alcançar.
 São empíricas: o seu conteúdo provém da experiência
 São heterónomas: a lei moral procede do exterior da razão e as
condutas são dominadas pela inclinação.
 As suas normas são condicionais, porque valem apenas como
meios para conseguir certos fins. Neste sentido, não podem ser
universalmente válidas, pois meios e fins variam de sujeito para
sujeito.

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Características da
ética kantiana
1) É uma moral do dever (deontológica): o dever
representa a prevalência dos valores racionais, de
significado universal e humano, sobre as inclinações
naturais/empíricas.
2) É uma ética formal: não estabelece nenhum bem ou fim,
diz-nos como devemos agir e não o que devemos fazer -
a lei moral diz-nos qual a forma que a nossa ação deve
adotar.
3) É uma ética de intenções: a moralidade de um ato não
reside no seu conteúdo, nem nas suas consequências, mas
no princípio que a determina, na racionalidade do
motivo que está na sua base - na intenção.

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Características
da ética kantiana
4) É uma moral do desinteresse: a conformidade da vontade
com a lei moral só tem valor se for independente de uma
expectativa de recompensa.
5) É uma moral autónoma: a lei moral é a lei que a razão
legisladora, e só ela, impõe à vontade.
6) É uma moral racional: a regra da moralidade é estabelecida a
priori pela razão.
A Razão é a faculdade de produzir leis sem recurso à
experiência.
A vontade autónoma é a boa vontade, determinada pela lei
moral com sede na Razão.

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Objeções à ética kantiana

1. Uma regra universalizável pode ser aplicada de muitas maneiras e em


muitas circunstâncias diferentes; assim, criticam alguns, uma máxima
universalizável é inútil se não se estipular algumas condições relevantes
para a sua aplicação em situações concretas.
2. Será que uma ação pode ser considerada moralmente boa
independentemente das suas consequências? Não haverá exceções – por
ex. se ao dizer a verdade resultar, com elevado grau de probabilidade, a
morte de alguém, não somos responsáveis por essa consequência?
3. Não consegue dizer-nos como devemos agir quando duas máximas
universalizáveis se contradizerem.

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Exemplo 1
• A Josefina quer ir ao “Bairro” no sábado à noite, mas sabe que o pai não
a vai deixar ir. Decide mentir dizendo que vai ficar em casa de uma
amiga a estudar. Por volta da meia-noite saem ambas. Diverte-se muito e
os amigos ficam muito satisfeitos por encontrá-la. O pai nunca suspeitou.
 Qual é a máxima desta ação? Esta obedece ao imperativo categórico?
 Como agir para que a máxima da sua ação pudesse ser universalizável?
Máxima da É legítimo mentir para obter um benefício próprio.
ação (máxima: princípio/critério para agir bem)
A máxima é NÃO, porque
universal- - A mentira colocaria em causa a confiança social;
zável? - A Josefina usou o pai como um meio para chegar ao seu objetivo.
Como - Analisar a máxima da ação antes de agir;
deveria ter - Considerar que o curso da ação assente na mentira é moralmente errado;
agido? - Confiar na possibilidade do pai responder afirmativamente ao seu pedido.

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Exemplo 2
O Assassino, de Edvard Munch (1863-1944)

• Passa por nós uma pessoa a gritar que está a ser perseguida por
um assassino. Pouco depois aparece o assassino com uma faca
na mão e pergunta-nos em que direção foi a pessoa que
persegue. O que devemos responder?
• À luz da máxima kantiana não devemos mentir para obter benefícios.
Mas será que é legítimo não o fazer se, em consequência, houver
grande dano? Não seremos responsáveis se a pessoa for assassinada?
• Kant respondeu que a mentira não é aceitável em nenhuma
circunstância. Defende que não podemos controlar as
consequências da nossa ação, mas podemos controlar a nossa própria
ação. Assim, se não mentirmos estaremos a evitar um mal conhecido;
se mentirmos (mesmo por motivos altruístas), estaremos a colocar
uma hipótese da qual até pode decorrer um mal maior.
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Exemplo 2
• Para Kant: se não mentirmos e o assassino matar a vítima,
não somos culpados; se mentirmos, e, na sequência da nossa
mentira, o assassino matar a vítima, somos culpados.
• Para James Rachels: a resposta de Kant parece-nos
moralmente errada, pois dificilmente poderemos deixar de
nos considerar responsáveis pela morte de uma pessoa se a
pudermos evitar, ainda que mentindo ao assassino.

É legítimo obedecer ao imperativo categórico por puro dever


independentemente das consequências da sua aplicação?

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Exemplo 3
A Josefina prometeu a um amigo cumprir a sua última vontade,
a qual deixou expressa numa carta para ser lida após a sua
morte. A sua vontade, como a Josefina descobre depois de ler a
carta, é que ela assassine o João, o seu maior inimigo.
Se a Josefina nunca deve quebrar promessas, então deverá cumprir a
última vontade do seu amigo. Porém, se ela também nunca deve
assassinar alguém, então não deverá cumpri-la.
=> crítica: a aceitação de deveres absolutos conduz-nos por vezes a
conflitos de deveres que não têm solução. Sob a ética kantiana, faça
o que fizer, a Josefina procederá mal.

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2 perspetivas de
fundamentação da moral
A. O que torna as nossas ações certas ou erradas?
UTILITARISMO: Apenas as consequências das nossas ações as tornam certas ou erradas.
Estas são boas apenas em virtude de promoverem imparcialmente o bem-estar.
DEONTOLOGIA: Muitas ações são intrinsecamente erradas, i.e., independentemente
das suas consequências. Poderemos mesmo afirmar que todos devemos respeitar
certos deveres que proíbem a realização de determinados atos.
B. Quando é que as ações estão certas ou erradas?
UTILITARISMO: Uma ação é boa apenas quando maximiza o bem-estar, ou seja,
quando promove tanto quanto possível a felicidade do maior número. Qualquer ação
que não maximize o bem-estar é errada.
DEONTOLOGIA: Uma ação é errada quando com ela infringimos intencionalmente os
nossos deveres.
Ambos: o comportamento moral deve fundamentar-se em princípios éticos imparciais.

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