1 LEWIS, C.S. O Peso de Glória. 2ª reimpressão. São Paulo: Editora Vida, p. 67-90.
II
Por isso, começo por excluir uma posição pacifista que provavelmente
ninguém aqui defende, mas que é concebível de ser sustentada — a do
homem que afirma saber com base na intuição imediata que todo assassinato
de seres humanos é, em qualquer circunstância, um mal absoluto. Com o
homem que chega à mesma conclusão pelo raciocínio ou pela autoridade, eu
posso discutir. Do homem que afirma não chegar a ela, mas começar por ela,
podemos apenas dizer que ele não tem essa intuição que afirma ter. Ele está
confundindo uma opinião ou, mais provavelmente, uma paixão com uma
intuição. Claro que seria grosseiro dizer-lhe isso. A ele, só podemos dizer que,
se não é um idiota moral, infelizmente o resto da raça humana é, incluindo os
melhores e até mesmo os mais sábios, e essa discussão é impossível com
tamanha brecha.
Depois de excluir esse caso extremo, volto a investigar como devemos
decidir sobre uma questão de moral. Vimos que todo juízo moral implica
fatos, intuição e raciocínio e, se somos sábios bastante para ser humildes, isso
envolverá alguma consideração pela autoridade. Sua força depende da força
desses quatro fatores. Assim, se acho serem claros e pouco polêmicos os fatos
sobre os quais estou trabalhando, se julgo básica e inconfundível a intuição,
forte o raciocínio que relaciona as intuições com esse particular juízo, se estou
de acordo com a autoridade ou (na pior das hipóteses) não estou em
desacordo com ela, posso confiar em meu juízo moral com razoável
segurança. Se, além disso, não encontro quase nenhum motivo para supor que
alguma paixão influencia minha mente, essa confiança se confirma. Se, por
outro lado, acho que os fatos são duvidosos, a suposta intuição não é de
forma nenhuma evidente para qualquer bom homem, o raciocínio é fraco e a
autoridade está contra mim, então devo concluir que provavelmente eu esteja
errado. E, se descubro que a conclusão a que cheguei também lisonjeia alguma
forte paixão minha, então a suspeita que tenho deve aprofundar-se em certeza
moral. Com “certeza moral” refiro-me ao grau de certeza próprio das decisões
morais; pois aqui não há certeza matemática a ser procurada. Agora aplico
esses critérios a este julgamento: “É imoral obedecer quando a sociedade civil
de que sou membro me ordena servir na guerra!”.
Primeiro, aos fatos. O principal fato relevante reconhecido por todas as
partes é que a guerra é muito desagradável. A principal controvérsia que os
pacifistas insistem em considerar como realidade seria o fato de que as guerras
sempre causam mais danos do que bem. Como se pode descobrir se isso é
verdade? Essa afirmação pertence à classe das generalizações históricas, que
VI
grande bastante para enfraquecer seu caráter beligerante, ou não. Se não, não
fez nada. Se for suficientemente grande, o Estado que tolera os pacifistas
estará entregue ao seu vizinho totalitário que não os tolera. O pacifismo desse
tipo está entrando pelo caminho que leva diretamente a um mundo em que
não haverá mais pacifista nenhum.
É de se perguntar se há alguma outra esperança, uma vez que a
esperança de extinguir a guerra pelo pacifismo é frágil. Entretanto, a questão
pertence a um modo de pensamento que para mim é muito estranho. Consiste
em supor que as grandes infelicidades permanentes da vida humana devem ser
curáveis se tão-somente pudermos encontrar a cura certa; e, em seguida,
procede por eliminação e conclui que tudo quanto permanece, embora
improvável para prover a cura, deve, contudo, provê-la. Daí o fanatismo dos
marxistas, dos freudianos, dos eugenistas, dos espiritualistas e dos douglistas,
dos unionistas, dos vegetarianos, e de todos os demais. Eu, porém, não tive
nenhuma garantia de que qualquer coisa que possamos fazer erradicará o
sofrimento. Acredito serem os melhores resultados os obtidos por gente que
trabalha em silêncio e diligentemente com objetivos restritos, como a abolição
do tráfico de escravos ou a reforma do sistema prisional, as leis de proteção
aos trabalhadores das indústrias ou o combate à tuberculose, não por aqueles
que acham que podem alcançar a justiça, a saúde ou a paz universal. Acredito
que a arte da vida consiste em enfrentar, da melhor maneira cada mal
imediato. Evitar ou adiar determinada guerra por sabedoria política, ou
encurtar determinada campanha com força e habilidade ou deixá-la menos
hedionda por misericórdia pelos vencidos e pelos civis é mais útil que todas as
propostas de paz universal que já se fizeram. Exatamente como o dentista que
pode estancar uma dor de dente merece mais da humanidade que todos os
homens que julgam ter um plano para produzir uma raça perfeitamente
saudável.
Não encontro, portanto, nenhuma razão irrefutável bem clara para
inferir do princípio geral da beneficência a conclusão de que devo
desobedecer se for convocado por uma autoridade legal para me alistar como
soldado. A seguir, passo a estudar a Autoridade. Autoridade é especial ou geral
e, de novo, humana ou divina.
A autoridade humana especial que recai sobre mim nesse caso é a da
sociedade a que pertenço. Essa sociedade, com sua declaração de guerra,
decidiu a questão contra o pacifismo, neste caso em particular, e por meio de
suas instituições e práticas há séculos decidiu contra o pacifismo em geral. Se
X
5 Simpliciter,
do latim, “simplesmente” ou “naturalmente”. Em lógica, diz-se de qualquer coisa
considerada absolutamente ou sem restrição. Opõe-se a secundum quid. [N. do T.]
XIII
possamos ter de permitir depois acerca de ofensas secundum quid.6 Isto é, uma
vez que os únicos fatores pertinentes no caso sejam uma ofensa a mim
praticada por meu próximo e o desejo de minha parte de retaliar, considero
que o Cristianismo ordena a absoluta mortificação desse desejo. Sem
nenhuma clemência para com a nossa voz interior que diz: “Ele me fez isso,
então vou fazer o mesmo a ele”. No momento, porém, que se introduzem
outros fatores, o problema se altera, é claro. Será que alguém supõe que os
ouvintes de Nosso Senhor entendiam que ele queria dizer que, se um louco
homicida, ao tentar assassinar um terceiro, procurasse me afastar do seu
caminho, eu deveria manter-me à parte e deixá-lo atingir sua vítima? De
qualquer forma, acho impossível que eles o tenham entendido assim. Penso
também ser igualmente impossível eles terem presumido que Ele estivesse
dizendo que a melhor maneira de criar uma criança seria deixá-la atingir os
pais toda vez que tivesse uma crise de mau humor ou, quando tivesse roubado
a geleia, dar-lhe também o mel. Acredito que o sentido das palavras estava
perfeitamente claro — “Visto que você não passa de um homem com raiva
que acabou de ser ofendido, mortifique sua raiva e não revide a ofensa”. Além
disso, deve-se presumir que, sendo o ofendido um magistrado atingido por
um cidadão particular, um pai atingido por um filho, um mestre, pelo aluno,
uma pessoa sã por um lunático, ou um soldado pelo inimigo público, sua
obrigação é muito diferente, diferente porque pode haver outros motivos
diversos da retaliação egoísta para reagir. Na verdade, como a plateia era de
cidadãos particulares numa nação desarmada, é improvável que alguém
pudesse supor que Nosso Senhor se estivesse referindo à guerra. Não era em
guerra que eles estariam pensando. O que mais provavelmente devia estar na
mente deles eram os conflitos da vida cotidiana entre os aldeões.
Essa é a principal razão por que prefiro essa interpretação. Qualquer
afirmação deve ser tomada no sentido em que seria naturalmente entendida na
época e no lugar em que foi proferida. No entanto, acho também que,
entendida dessa forma, ela se harmoniza com as palavras de João Batista aos
soldados e com o fato de que uma das poucas pessoas a quem Nosso Senhor
elogiou sem reservas foi um centurião romano. Isso também me permite
supor que o Novo Testamento é coerente com o que ele mesmo expõe. O
apóstolo Paulo aprova que o magistrado use da espada (Romanos 13.4), assim
como o apóstolo Pedro (I Pedro 2.14). Se as palavras de Nosso Senhor forem
entendidas sem ressalvas, no sentido que os pacifistas exigem, seríamos
6 Secundum quid, do latim, “de acordo com algo”, opõe-se a simpliciter. [N. do T.]
XIV