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Leituras do Brasil: Casa-grande & Senzala

Um olhar sobre o clássico de Gilberto Freyre

Poucos são os livros que provocam tanto rebuliço como Casa-grande & Senzala. Escrito
pelo sociólogo e antropólogo pernambucano Gilberto Freyre, a obra procura interpretar
o Brasil colonial e compreender como os ecos desse passado ainda reverberam no país que
veio a se formar posteriormente.

Publicado em 1933, numa época em que o Brasil passava por conturbadas transformações
(como a centralização do poder estatal e a proliferação dos centros urbanos), o livro veio
a chocar, impressionar, encantar e perturbar o meio intelectual nacional e internacional.
Para o leitor dos nossos dias é bem certo que a leitura da obra cause desconforto e espanto,
resultado do contexto histórico em que fora escrita, carregando consigo muitos dos
preconceitos que eram vigentes.

Mas, apesar disso, Freyre não pode ser ignorado. Seu livro nos transporta para os tempos
de descobrimento e de povoamento da terra que os portugueses encontraram; onde se deu
o contato com os nativos e para onde trouxeram o negro escravo do continente africano. É
através desses três elementos — o português, o índio e o negro — que Freyre irá construir
sua interpretação do Brasil.

As relações desse três grupos teriam possibilitado o surgimento de um país miscigenado,


com uma grande população adaptada ao clima dos trópicos. O hibridismo característico
do brasileiro é visto como algo positivo por Freyre, indo contra várias correntes do seu
tempo que consideravam este um traço de degeneração humana. Importante frisar que
estamos falando de uma época onde as teorias racistas possuíam não somente muito espaço
no meio científico, como também eram política de Estado em diversos países.

Freyre não abdica do conceito de raça e em muitos momentos nos deparamos com
declarações que atualmente seriam tidas como um racismo descarado (embora, podemos
arriscar, fossem brandas se comparadas com outras da década de 1930), mas ele não coloca
as questões raciais como determinantes. A cultura e o ambiente externo pesariam muito
mais do que a biologia dos povos.

A Casa-grande (onde os proprietários dos grandes latifúndios viviam), complementada


pela Senzala (morada dos negros escravos), teria sido o centro dessa sociedade colonial
brasileira, organizada desta forma pela monocultura da cana-de-açúcar. Da Casa-grande e
da Senzala brotavam a economia, a política, a religiosidade e a sexualidade, colocando
negros e brancos em intensivo contato, das mais diversas maneiras. Este contato teria
equilibrado os antagonismos entre senhores e escravos, gerando uma certa harmonia que
não se encontrava em outras nações, como no segregado EUA.

Para Freyre, nosso processo de colonização teria sido muito menos severo e cruel do que
noutras colônias, como as espanholas e as inglesas, principalmente pelos valores mais
flexíveis que os portugueses possuíam; os ibéricos já seriam um povo miscigenado, e o
colonizador português não teria tido nenhum receio em se misturar com índios e negros,
populando a costa da colônia com os filhos frutos da mestiçagem — aliás, segundo o livro,
não haveria outro meio de povoar tão vasto território, visto que Portugal possuía uma
população muito pequena para dar conta de tanta terra.
Freyre também valoriza o papel do negro em nossa formação. A herança negra estaria em
todos os cantos do país e em cada brasileiro, impossível de ser desvinculada do seu âmago.
“Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na
música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão
sincera da vida, trazemos quase todos a marca da influência negra” (p. 366).

O autor propõe ainda que os indivíduos negros não se encontravam nas posições que
ocupavam na sociedade por serem negros (ou seja, por uma determinação racial inerente,
por uma incapacidade biológica de serem diferentes), e sim por serem escravos. Em outras
palavras: era a escravidão, um fenômeno social, que impedia os negros de ascender na
sociedade, limitando-os e os expondo a vários males, como as doenças sexualmente
transmissíveis dos europeus. Muitos negros letrados e com aptidões para os mais diversos
ofícios, vindos das regiões e reinos da África com presença islâmica, eram a evidência de
um potencial ignorado.

Uma outra característica importante a ser ressaltada é o lugar que os espaços do íntimo, do
cotidiano e do banal adquirem na obra. Ao invés de somente enxergar grandes
personalidades e momentos, temos um retrato das pessoas comuns e de como viviam, de
como comiam, se vestiam, brincavam, trabalhavam e se relacionavam social e
sexualmente — o sexo, até então um tabu, marca presença de tal forma que houveram
tentativas de proibir o livro de ser vendido no mercado, pois teria uma linguagem
demasiadamente vulgar.
Gilberto Freyre

Contudo, seu trabalho possui pontos problemáticos. A tese de harmonia racial brasileira
(democracia racial para alguns) hoje não parece corresponder com o sistema opressor que
reinou até o fim da escravidão e que deixou cicatrizes vívidas na nossa história. Outra
questão é a figura do índio, colocada de escanteio como algo sem muito peso na formação
brasileira quando comparada aos portugueses e negros (Darcy Ribeiro tentaria,
posteriormente, dedicar mais atenção aos nativos); sem falar na figura da mulher que
também não encontra um espaço maior, muitas vezes abordada como um simples objeto
de prazer sexual, descritas pelos seus atributos físicos que seriam interessantes aos olhos
dos homens.

A escrita de Freyre carrega um tom idealista, romanceando um período que não foi um
paraíso na terra (muito pelo contrário). Seu texto também traz um ar de saudosismo pelos
tempos do patriarcado que agora estariam perdidos, frente aos novos tempos da
industrialização e da modernidade. De fato, não podemos esquecer que Freyre escreveu de
uma posição e que a mesma possui peso: a do branco e do senhor de engenho, com a
nostalgia de uma outra época brotando de cada página sem muito receio, numa sútil
tentativa de justificá-la.

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