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A conduta indiferente
Franklin Leopoldo e Silva*
M uitas vezes, os exemplos que Sartre oferece em cio intelectual, pois não suponho uma situação ideal, mas
O Ser e o nada para esclarecer ou ilustrar as observações fi- observo empiricamente que Pedro não se encontra no bar.
losóficas assemelham-se a pequenos contos: a moça que es- É uma constatação direta que me leva a uma atitude práti-
quece as mãos entre as do parceiro, como se fosse um obje- ca, por exemplo, procurá-lo em outro lugar. Nesse caso, não
to independente de sua vontade, coisa inerte, manifestando duvidar da percepção significa a certeza de que não há ob-
assim a má-fé de quem deseja ocultar o próprio desejo e fin- jeto percebido: estou tão certo da ausência de Pedro quan-
gir que desconhece o desejo do outro; o voyeur que se vê fla- to estaria de sua presença, caso o tivesse encontrado.
grado pelo olhar de um outro que o congela numa condu- E ainda há mais: se alguém me perguntasse: “o que ha-
ta eventual e lhe impõe a essência de voyeur; o garçon que via nesse bar em que Pedro não estava?”, teria grande difi-
se esmera em desempenhar o papel de garçon. Narrar as culdade em responder. Minha atenção focalizava tão estri-
ambigüidades da conduta é um procedimento que vai ao tamente Pedro que a percepção de sua ausência fez
encontro do perfil dramático das grandes questões contem- desaparecer do meu campo de visão tudo mais que poderia
porâneas porque, para o existencialista, a subjetividade in- ter visto. “Cada elemento do lugar, pessoa, mesa cadeira,
dividual é uma história. A recusa da essência e a prevalên- tenta isolar-se, destacar-se sobre o fundo constituído pela
cia do processo abrem o horizonte da história, isto é, de um totalidade dos outros objetos, e recai na indiferenciação des-
sujeito que se conhece e é conhecido na medida em que se se fundo, diluindo-se nele” (Sartre, 2001, p. 50). Cada ele-
constitui e é constituído narrativamente. mento, e a totalidade formada por eles, tornam-se massa
Interessa-nos particularmente a descrição narrativa de amorfa, fundo indistinto e indiferenciado no quadro em
uma outra cena: “Tenho encontro com Pedro às quatro. que Pedro não aparece. A figura que se destaca sobre o fun-
Chego com atraso de quinze minutos; Pedro é sempre pon- do é justamente aquela que não está lá. De tal forma que,
tual; terá esperado? Olho o salão, os clientes, e digo: ‘Não es- à pergunta acerca do que realmente percebi de tudo que lá
tá’”. (Sartre, 2001, p. 50). Essa breve descrição de um epi- estava, só posso responder: nada.
sódio banal nos mostra primeiramente um absurdo: olhar Mas esse nada possui uma característica bastante sin-
o bar e ver que Pedro não está. No entanto, nada há de mais gular: ele foi produzido por mim, pela minha consciência
comum do que, numa situação de um encontro frustrado, perceptiva, pela intencionalidade que governava a minha
dizer: “vi que ele não estava”. Como pode ser tão trivial relação com o lugar. Tanto é assim que, no dia seguinte, al-
perceber, pelo ato direto do olhar, a ausência de alguém? guém que lá estivera poderia me relatar toda uma série de
Será que temos aqui apenas um artifício de linguagem? coisas e pessoas que lá estavam e que eu poderia ter obser-
Se assim for, trata-se de uma estratégia extraordinária, essa de vado tanto quanto ele. Isso não aconteceu porque minha
produzir uma analogia entre o ser e o não-ser, referindo-se a percepção estava inteiramente tomada pelo único objeto
uma ausência como se fosse uma presença, verificando a au- que, no entanto, lá não estava: Pedro, cuja invisibilidade te-
sência de Pedro de modo tão conclusivo como se dissesse: ve o poder de anular todas as coisas visíveis, fazendo com
“lá está ele!”. que a realidade se desvanecesse.
Na verdade, trata-se de uma convicção, não somente Sartre tem uma explicação para isso:
de um modo de falar. A convicções desse tipo chamamos
juízo. No juízo afirmativo determinamos algo que é, que Mas, precisamente, eu esperava ver Pedro, e minha es-
constitui uma presença. No juízo negativo, constatamos o pera fez chegar a ausência de Pedro como acontecimento real
que não é, uma ausência. Mas essa distinção lógica parece alusivo a este bar; agora, é fato objetivo que descobri tal ausên-
falhar nesse caso, em que afirmamos que algo não é, que cia, que se mostra como relação sintética entre Pedro e o salão
Pedro não está – como se fizéssemos um juízo afirmativo onde o procuro; Pedro ausente infesta este bar e é condição de
acerca da negação da presença. E não se trata de um exercí- sua organização nadificadora como fundo (Sartre, 2001, p. 51).
Ou seja, para a consciência que tenho da realidade, tividade e, portanto, ele é posterior. Daí a pertinência dessa
alimentada pela expectativa de ver Pedro, nada é mais pre- estranha palavra: nadificação. Ela indica que o nada é fruto
sente do que a sua ausência. Em outros termos, o nada é de um ato porque a contraposição do nada ao ser é a ação
presente e o ser é ausente. Se é Pedro que desejo ver, o na- de negar. É a dependência do nada em relação ao ser que
da de sua presença é mais forte do que tudo que se faz pre- produz a intuição da ausência. Posso ver aquele que não es-
sente. Minha consciência nadificou a presença e presentifi- tá porque nego tudo que está, tudo que poderia ver de di-
cou a ausência. Porque trazia comigo a presença de Pedro, reito. Por isso o nada é menos o oposto do ser do que aqui-
tinha de perder todas as presenças que não eram essa. lo que é gerado no seu próprio centro. “O nada não pode
Nossa consciência tem esse poder: intuir a ausência e per- nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser..., no bojo do
der a presença; determinar a negação e indeterminar a afir- ser, em seu coração, como um verme” (Sartre, 2001, p. 64).
mação; visar o nada e abstrair o ser. Ver apenas o que está Esse ato de distanciamento radical é bem singular:
fora da presença visível e ignorar o que está dentro de seus como se pode conceber uma ação nadificadora senão a par-
limites. Estranha dialética: de um lado, estamos muito pró- tir de uma instância que pode produzir o nada porque já o
ximo do que não é, convivemos com isso como se fosse o traz em si? Mas como se pode compreender justamente es-
mais familiar; mas, por outro lado, não significa que troca- sas duas expressões: “produzir o nada” e “trazê-lo em si”?
mos o ser pelo nada, através de uma inversão que valoriza O célebre “trabalho do negativo” de Hegel explica apenas
a ausência. Na verdade, convivemos com a ausência porque em parte essa etapa fenomenológica. O negativo, o verme
dela temos consciência e seu caráter negativo não torna no coração do ser, corrói; mas essa corrosão engendra a rea-
menos intensa a relação. Isso significa que o nada não de- lidade negativa e negadora que é responsável pelo nada: um
riva do ser, mas usurpa, de alguma maneira, a sua plenitu- parasita que se constitui junto ao ser-em-si e a partir dele.
de. “O não, brusca descoberta intuitiva, aparece como Nesse sentido, constitui menos o ser-em-si como objeto do
consciência (de ser) consciência do não” (Sartre, 2001, que a si mesmo como sujeito ou para-si. Extraordinária me-
p. 52). Não há propriamente inversão, mas talvez interver- tamorfose do cartesianismo: o sum do cogito ergo sum é va-
são: a expectativa de Pedro, que não é a sua presença, real, zio, é projeto de ser. É preciso abandonar o projeto da
no entanto a precede; e a negação dessa presença não a des- Segunda Meditação, que seria passar da intuição da exis-
faz, antes desfaz o contexto em que essa presença não se dá, tência à definição da existência como posição da essência
rompendo os laços com o imediato e mantendo a força da- (o que sou?). Mas é somente abandonando o itinerário car-
quilo que, ontologicamente, deveria ser. Assim se explica tesiano que se pode descortinar a existência como processo
porque a constatação do negativo é a consciência do nega- indeterminado de auto-constituição. Não é possível definir
tivo como forma de visar o seu ser. no interior do cogito as propriedades de um Eu substancial,
Essa força do negativo mostra-se primeiramente na susceptível de ser absolutamente conhecido na sua interio-
indagação e na expectativa: Pedro está? “Terá esperado”? ridade essencial. Não se pode mais contar com a ligação tra-
Mas, prolonga-se também na resposta e na confirmação da dicional entre atributo essencial e atributos acidentais, for-
ausência: “não está”; “vi que não está”. A negação interrom- mando uma totalidade constituída. Os modos-de-ser se
pe a continuidade do que deveria ser familiar e imediata- constituirão no processo da existência. Todo existente é, pri-
mente presente, mas também, como vimos, usurpa e toma o meiramente, “sem qualidades”.
lugar do imediatamente dado. Todas aquelas coisas e pessoas ***
que lá estão não deveriam estar; Pedro é que deveria estar. Entretanto, esse sujeito sem qualidades tem pela fren-
Por isso eu as faço recuar para a ausência e o nada, para que te a subjetivação como tarefa: será o que fizer de si, terá os
Pedro se mostre na intensidade de sua ausência. atributos que lograr atribuir a si mesmo. Estará sempre, de
O que supera a aparente banalidade desse episódio é alguma maneira, longe de si, mas em busca de si, porque o
que aí se manifesta a situação do luto. Com efeito, o luto desejo fundamental, para Sartre, é o desejo de ser. E como
consiste em olhar o mundo e ver que alguém não está; e que ser significa tornar-se o que se projeta ser, o sujeito é um
todas as presenças não valem essa única ausência. Nesse sen- nada que é tudo: somente de sua nulidade pode extrair o
tido, é impossível dizer que a ausência é simplesmente o seu ser, isto é, determinar-se por liberdade. Por isso a liber-
contrário da presença ou que o nada é o contrário do ser dade é característica ontológica e não propriedade da subs-
– na modalidade da relação lógica que Sartre acredita estar tância-sujeito. É a liberdade que move o desejo de ser si
no primeiro movimento da lógica hegeliana, em que o ser mesmo, de atingir o si do para-si. Daí a ambigüidade en-
“passa ao” nada pela intermediação de sua própria genera- volvida em não ser o que é e ser o que ainda não é, que é a
lidade vazia (Sartre, 2001, p. 54). Parmênides, afinal, tinha marca do sujeito sartriano.
razão: o ser é, o não-ser não é. Para que se possa falar de não- Podemos dizer, a partir daí, que essa noção de subje-
ser há que se pensar o ser. O nada não se opõe ao ser por si tividade se localiza no centro da crise moderna do sujeito,
mesmo simplesmente porque o nada não é, ele não pode se isto é, entre o sujeito substancial ou formal (cartesiano ou
opor. O nada se introduz no ser pelo movimento de nega- kantiano) e o desaparecimento do sujeito como tema do
pensamento estrutural e “pós-moderno”. Não é por outra realidade, vista no limite como processo de dissolução, im-
razão que Sartre diz que só podemos seguir Descartes pede inclusive que a observação empírica possa reter qual-
abandonando-o tão logo incorporemos sua descoberta quer aspecto. É como se o único fenômeno observável fosse
fundamental. O cogito só é verdadeiro ponto de partida se o do desaparecimento.
o deixamos assim que o descobrimos. Essa atitude filosófi- Nem mesmo se pode dizer que restaria a funcionali-
ca constitui o núcleo da concepção existencial de sujeito. dade de elementos, pois sua eventual agregação não pode-
A evidência do cogito é inquestionável no plano do eu sou ria ser vista nem a partir de uma causa formal ou eficiente
e impossível na esfera do que sou. Portanto, à intuição ful- nem com respeito a qualquer finalidade imanente. É nesse
gurante de que sou segue-se a obscuridade inevitável do contexto que aparece o homem sem qualidades. “Não é di-
que sou. De certa forma, a intuição de si é também uma in- fícil descrever esse homem chamado Ulrich, de trinta e dois
tuição da ausência, porque é o conhecimento de uma pre- anos, em seus traços fundamentais, embora ele próprio sai-
sença não revelada. ba apenas que está a um tempo longe e perto de todas as
Podemos encontrar essa afirmação da negação em qualidades, e que todas, suas ou não, lhe são estranhamen-
O homem sem qualidades de Robert Musil. A ausência de te indiferentes” (Musil, 1989, p. 110). A construção da per-
qualidades é a falta de um conjunto de atributos organica- sonagem por via de análise psicológica faz prevalecer a de-
mente interligados que deveriam formar uma subjetividade composição, em dois sentidos. Em primeiro lugar, a análise
substancial. Se houver no mundo algum núcleo de substan- é dissolvente, isto é, não visa mostrar como os elementos se
cialidade, não será certamente o que se tem designado co- compõem na constituição da personagem Ulrich, mas sim
mo sujeito. Implicitamente, é a própria ontologia substan- como a análise de uma “personalidade” pode resultar na
cialista que está sendo posta em dúvida. Já não podemos impessoalidade. Dito de outro modo, a análise da subjeti-
conservar a certeza de que seria possível abordar as coisas a vidade visa mostrar, por decomposição, a ausência de sub-
partir de um esquema categorial revelador de realidades es- jetividade, como se a construção ficcional do sujeito obe-
senciais. Conseqüentemente, a realidade se dissolve no pró- decesse ao critério da destituição de sua subjetividade: uma
prio feixe de percepções pelo qual julgamos fixá-la. Seriam busca cujo sentido está justamente em nada encontrar.
elementos que desaparecem antes de que se realize a con- Em segundo lugar, a descrição do sujeito visa mostrar
vergência do percebido num núcleo unificador. A organiza- a sua decomposição humana – ou ética. Não no sentido
ção do mundo foi um pressuposto que acabou por se reve- de uma deterioração do caráter, mas como demonstração de
lar uma ilusão, e essa constatação é a própria experiência uma ausência de caráter, um vazio que, antes de ser moral,
histórica. De tal modo que a presença de atributos consti- o que seria uma qualificação, é ontológico, espécie de falta
tuintes da realidade já não é mais a forma “de se orientar no de impulso e de persistência no ser. O trabalho analítico vi-
pensamento”. Vista a partir de sua história tardia, a moder- sa, assim a impersonalização, como se o objetivo fosse o de
nidade ser caracteriza então pela erosão e não pela sedi- descrever uma neutralidade factual e axiológica mais pro-
mentação. A aposta cultural do humanismo foi perdida e as funda do que a própria indeterminação existencial.
convicções iluministas se evaporaram juntamente com os “Todas as qualidades..., suas ou não, lhe são estranha-
princípios formais que sustentavam a ordem racionalista. mente indiferentes”. Em outras palavras, “um homem sem
Isso se refere tanto a fatos quanto a valores. Ernst Mach, qualidades consiste em qualidades sem homem” (Hanke,
o filósofo sobre quem Musil escreveu uma tese, era partidá- 2004, p. 132). Não se trata apenas de afirmar que qualida-
rio de um “monismo psico-físico” que consistia numa dis- des existiriam objetivamente sem serem incorporadas por
solução da realidade, inclusive subjetiva, num complexo sen- um sujeito; visar indiferentemente as qualidades (como
sorial de elementos, o que tornava impossível conceber num processo de intencionalidade sem consciência) resul-
qualquer substância ou identidade. Nada pode ser integral- ta em despojá-las até mesmo da dimensão objetiva, como
mente representado. Não há qualquer fundamento que pos- numa modalidade de consciência da inexistência. Note-se
sa conferir realidade a algum Eu unitário considerado como que nesse caso o vazio subjetivo se projeta “objetivamente”
suporte psicológico ou instância valorativa. Os elementos como esvaziamento do mundo, ao modo de uma absorção
que porventura componham a realidade (“exterior” ou “in- da realidade pelo próprio vazio.
terior”) não possuem qualquer densidade qualitativa a par- Sabemos que, fenomenologicamente, a consciência
tir da qual pudessem ser vistos como constituintes de uma não é nada além de um movimento na direção das coisas –
totalidade de direito apreensível. Nesse sentido, o indivíduo visar a realidade. Ora, esse vazio da consciência, ao mesmo
não é portador de possibilidades subjetivas de organização tempo em que a torna nada (em termos substanciais ou
representativa da realidade. Temos aqui algo mais do que a formais) também a redefine como movimento que vai ao
crítica do essencialismo a partir da exacerbação de aspectos encontro das coisas. A consciência não é interioridade re-
da ontologia do empirismo britânico e da lógica neo-positi- ceptiva justamente porque consiste em sair (de si) para en-
vista. Não se trata apenas de uma refutação da atitude me- contrar o mundo lá onde ele está. Mas o que pode signifi-
tafísica em prol da relevância de uma epistemologia. Pois a car visar o mundo pela indiferença, senão projetar o vazio
da subjetividade numa completa anulação de qualquer cipal é proporcionar meios de defesa dos direitos indivi-
compromisso com as coisas, ou com as “qualidades” do duais considerados naturais. Nesse sentido, o indivíduo re-
mundo, inclusive intersubjetivo? Tudo indica que um mun- fere-se politicamente a si mesmo e a comunidade política
do analisado até o limite de sua dissolução não pode ofere- refere-se ao indivíduo. O sujeito, nos níveis metafísico e
cer qualquer resistência ao movimento da consciência, su- transcendental, e o indivíduo, no plano histórico, político
pondo que esse movimento ocorresse. Mas como o Eu e social, são os fundamentos da liberdade de pensar e de
também foi reduzido à sua própria dissolução, nem mes- agir. Nesse caso, portanto, as referências subjetivas e indi-
mo há movimento que pudesse encontrar eventual resis- viduais só podem ser elaboradas pela razão autônoma por-
tência. Assim, tudo se passa como se houvesse uma relação que só ela pode medir o alcance de seu próprio poder.
tácita entre a ausência de consciência de si e ausência de Ao mesmo tempo, a subjetividade como grande re-
consciência das coisas. A auto-consciência como relação ferencial, para ser dotado de universalidade, precisa ser
puramente negativa do Eu consigo próprio encontra o afirmado objetivamente. Isso significa que o sujeito deve
mundo desabitado, isto é, as “qualidades sem homem”. se objetivar na sua experiência: para saber algo acerca de
Entretanto, o mundo de Ulrich prima pela exatidão. si, deve compreender-se na dimensão objetiva porque a
É como se a falta de ser (e não apenas a falta de significado) razão moderna, embora fundada na esfera da subjetivida-
devesse ser vivida com absoluta precisão. Talvez se possa di- de, tem como vocação expandir-se na exterioridade por
zer que aqui se define a posição de Musil no contexto da mo- via do conhecimento e da técnica vistos como instru-
dernidade, isto é, na experiência de seu esgotamento. Pois o mentos de dominação da realidade. A relação entre saber
que se trata de descrever exatamente é o mundo vazio co- e poder, característica da modernidade, implica o desdo-
mo cenário de uma experiência sem referências. O anoni- bramento objetivo da razão, o que faz com que a marca
mato integral como irrealização da subjetividade e da inter- da racionalidade moderna seja a instrumentalidade.
subjetividade pode ser visto também como conseqüência da Na perspectiva do humanismo fundador da era moderna,
análise levada até a dissolução. Daí a ausência de referenciais essa expansão objetiva da razão ocorreria sempre a partir
narrativos: Musil recusa a atitude do narrador que julga po- da subjetividade, o que deveria assegurar que o processo
der dizer “quando”, “antes”, “depois”, ou seja, estabelecer de objetivação nunca poderia contrariar os critérios de
uma ordem para ocultar as “multiplicidades desordenadas emancipação progressiva, vistos como a própria raiz do
da vida” (Hanke, 2004, p. 135). A indiferença deve ser mi- desenvolvimento da racionalidade.
nuciosamente narrada para que a Falta se sobreponha ao A experiência histórica, como sabemos, não foi fiel
episódio e para que se veja como as coordenadas do Eu nau- a esse desideratum. As contradições do processo levaram
fragam na fragmentação da experiência. O próprio roman- o sujeito a perder-se na experiência da objetivação de si.
ce é um imenso fragmento “uma obra de arte ... que neces- As conseqüências, como já exaustivamente mostrado por
sariamente tinha que ficar inacabada” (Raddatz citado por várias vertentes críticas contemporâneas, foi o esvazia-
Hanke, 2004, p. 136). Com efeito, a “estrutura interna” do mento da subjetividade nos seus aspectos éticos e meta-
fragmento é necessária para que a desordem pluridimen- físicos, bem como o desaparecimento das condições pa-
sional, paradoxalmente arquitetada segundo rigorosos cri- ra a afirmação das singularidades individuais. O sujeito
térios de precisão, venha a superar a narrativa unidimen- perdeu a densidade ontológica que o fazia exercer o pa-
sional, procedimento anacrônico no contexto da descrição pel de fundamento, e o indivíduo perdeu o lastro ético-
dissolvente do mundo, da sociedade e do sujeito. Musil político que o fazia o centro do processo social. Em ou-
“narra” na época da impossibilidade das narrativas. tras palavras, teria ocorrido na história da modernidade
A perda das referências – transcendentes ou imanen- uma separação paradoxal entre o sujeito e os atributos
tes – produz o fenômeno da individualidade abstrata. próprios da subjetividade, de modo que o sujeito con-
Pode-se dizer que no início da modernidade o projeto de temporâneo, destituído de realidade, seria pouco mais do
rearticulação do mundo e do homem ocorre em duas ver- que uma forma abstrata que se manifestaria em condu-
tentes paralelas: a instauração cartesiana do sujeito metafí- tas marcadas pela alienação. Se o considerarmos como
sico e concepção política do indivíduo em Locke. A posição indivíduo, também constataremos que se tornou uma re-
do sujeito como centro ordenador das representações im- ferência residual e abstrata de direitos formais. Essa abs-
plica, como se sabe, uma crítica severa da tradição, nota- tração deriva, em grande parte, de que a recusa, pelo ho-
damente no que diz respeito ao saber e às crenças fundadas mem moderno, das referências transcendentes – recusa
em critérios extrínsecos à subjetividade. A autonomia do necessária para a afirmação da subjetividade – foi segui-
sujeito passa a ser sua única referência, mesmo quando da pela perda das referências imanentes de caráter psico-
a busca se refere ao que estaria além da subjetividade. lógico, histórico, social e político. A comunidade dos su-
Ao mesmo tempo, o indivíduo é concebido como elemen- jeitos não constitui referência para cada sujeito, assim
to originário de toda a organização política, e, é, em torno como a sociedade de indivíduos não se apresenta como
dele, que se constrói a organização social cuja função prin- referência para cada indivíduo.
O anonimato de processos sociais sem sujeitos é a tuiria porque a dimensão objetiva das determinações reais
versão social de um ‘mundo de qualidades sem homem’, permanece oculta. “Eu é um outro” só pode significar, nes-
‘de vivências sem aquele que as vive’. Nas instituições e ações se caso, vivências alternadas de sucessivas despersonaliza-
sociais... uma objetividade abstrata e ordenada apoderou-se ções – processo de fragmentação.
da experiência primária dos sujeitos (Rentsch citado por O processo de subjetivação inclui uma espécie de alte-
Hanke, 2004, p. 136). ridade interna ou alteração do Eu. O que sou implica o que
já fui e o que ainda não sou e esses três aspectos constituem
Essa seria a dimensão social do romance de Musil: a tentativa de totalização da experiência na temporalidade.
a inserção do indivíduo no contexto histórico deixa de ser A alteração como ação de alterar a mim mesmo pela via das
a dialética entre o subjetivo e o objetivo para ser uma rela- opções acontece, em Sartre, porque a liberdade é uma fata-
ção entre duas dimensões destituídas de realidade. Isso nos lidade e o seu exercício é inevitável. Sempre respondo às so-
leva a supor algo além da negatividade, se por isso enten- licitações do mundo, inclusive quando deixo de fazê-lo.
dermos a ação subjetiva de negar exercida sobre a realida- A subjetivação ocorre em sucessivas situações nas quais a
de e a sociedade. Tal ação não poderia ser remetida a um consciência se defronta com tudo aquilo a que ela deve atri-
sujeito que se demitiu de sua subjetividade. O niilismo, se buir significação. Tudo aquilo que me espera ao longo de
entendermos o termo como resultado de um processo de minha história, significará algo para mim, pelo simples fa-
niilização (regressão da realidade ao nada) talvez possa to de que será representado: o mundo é humano e, quan-
apresentar uma sugestão semântica que nos aproxime da do ele é estranho, é porque o homem o fez estranho tor-
compreensão do processo. Com efeito, do ponto de vista nando-se estranho a ele. Dizer que mundo é desumano
dialético, “processos sociais sem sujeitos” não são de fato significa dizer que nós o tornamos assim. Toda impossibi-
processos sociais, assim como sujeitos sem processo de sub- lidade de reconhecimento é engendrada pelas escolhas en-
jetivação histórica não são realmente sujeitos. Essa é a ques- tre as possibilidades humanas. Quando o homem não mais
tão de fundo na narração que mostra a inserção do “ho- se reconhece na história, no trabalho, nos outros homens,
mem sem qualidades” num “mundo de qualidades sem isso acontece porque ele se fez estranho ao que produz e às
homem” ou numa “sociedade sem qualidades”. A subjeti- realidades com que convive. Produzir a desumanidade é al-
vidade é abstrata porque o sujeito não pode viver a sua pró- go que se situa entre as escolhas humanas.
pria experiência; e a experiência, do ponto de vista objeti- Ora, o que encontramos em Musil, ao que tudo indi-
vo, também é abstrata porque constituída de “vivências ca, é que o reconhecimento não pode ser considerado uma
sem aquele que as vive”. opção abandonada. Não há propriamente uma gênese psi-
*** cológica ou histórica da impossibilidade do reconheci-
Esse cenário em que predomina a ausência torna abs- mento, e não se pode dizer que o sujeito tenha sido res-
tratas até mesmo as possibilidades. Vimos que, para Sartre, ponsável pela situação de estranhamento. Como não se
o sujeito está fora de si ou adiante de si porque o processo pode falar de alteração, mas sim de alternância, não há co-
existencial é, sobretudo, constituído pelo futuro, pelas pos- mo pensar num sujeito histórico que tenha produzido
sibilidades de escolha no percurso de subjetivação. Aquilo uma situação em que ele não mais se reconheça e nem re-
que o sujeito pode se tornar ou vir-a-ser é referência im- conheça os outros. Como vimos, não se trata de um sujei-
portante porque não há determinações essenciais que to que negue a si, aos outros, à realidade; trata-se de um
atuem anteriormente ao efetivo processo de subjetivação. sujeito que vive a nulidade de si, dos outros e da realidade.
O futuro é o tempo forte porque é o tempo da liberdade e Ele não se fez nem foi feito estranho a si e ao mundo: essa
as possibilidades são os meios de realização desse futuro. separação (abstração) de si, dos outros e do mundo é, por
Serei o que fizer de mim por via da minha liberdade: por assim dizer, constitutiva de uma vivência aquém da expe-
isso se pode dizer que a realidade humana consiste em ser riência efetiva, como um olhar que não vê. Ele não é aque-
o que ainda não é. “Eu é um outro”, mas esse outro signi- le outro que o esperaria em algum ponto de sua própria
fica um projeto de ser si-mesmo através das escolhas. história, porque ele não é uma história. A dialética entre a
Em Musil há também uma pluralidade indefinida de pos- ignorância de si e o reconhecimento de si supõe a relação
sibilidades, mas como o sujeito perdeu a capacidade de entre a história pessoal e a história objetiva que só aconte-
atribuir significação ao futuro, essa abertura assume a fei- ce como tensão entre realidades, na qual estão as possibi-
ção de um deserto, isto é, nega-se a si mesma enquanto lidades de o sujeito se perder e se encontrar. Afinal, o su-
via para a livre determinação de uma possibilidade de ser. jeito se perde: “Toda realidade humana é uma paixão, já
As transformações são alternâncias do mundo e do sujeito que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo
e não incluem a assunção de opções no itinerário de subje- tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sen-
tivação. A experiência é constituída de vivências alternadas do fundamento de si mesmo, o ens causa sui que as reli-
das quais está ausente a ação de auto-constituir-se. giões chamam de Deus” (Sartre, 2001, p. 750). Mas, esse
Tampouco o sujeito pode identificar aquilo que o consti- fracasso é a própria existência finita, atravessada pela falta