Ensaiar um balanço global da situação do debate arquitectónico, no
âmbito internacional, pode parecer pouco realista, se não mesmo inútil. Contudo, não obstante a fragmentação das experiências, o carácter contraditório das situações, a multiplicidade dos contextos que condicionam um panorama cada vez mais complexo, suscitar uma discussão sobre a transformação do conceito e do papel da arquitectura assume, hoje, um significado inequivocamente político. Não faz sentido agitar bandeiras por exércitos destituídos de estratégia: é inútil conduzir batalhas ideológicas pela «requalificação» de uma figura profissional tão elástica, convertida em «bonne à tout faire», como a do arquitecto, sem se clarificar o rumo que a nova encomenda pública e as novas estruturas universitárias devem tomar. Uma luta não ilusória contra as distorções de um sistema capitalista em profunda crise de transformação requer, em primeiro lugar, uma verificação da «funcionalidade» das formas actuais – não por acaso negligenciadas – de divisão do trabalho intelectual. Mas se nos centrarmos nas linhas avançadas da produção arquitectónica dos anos 70, é muito raro podermos identificar algum tipo de consciência acerca do seu papel dentro do sistema produtivo, no qual, querendo ou não, estão inseridas. Na verdade, nunca como nos últimos anos a arquitectura internacional tentou o seu próprio relançamento concentrando-se em tarefas, no mínimo, * Artigo publicado no oitocentistas. A questão dominante parece ser a de como reclamar jornal Paese Sera no âmbito da colabora- uma autonomia linguística: demonstrar a sua capacidade de «falar». ção regular do autor com o suplemento Coloca-se assim a «linguagem» no centro de um debate que paira Arte (entre 1976 e 1979): Paese Sera / nos céus da ideologia. Em Inglaterra ou em França, enquanto novos Arte, anno XXVII, n. mecanismos económicos desencadeiam enormes transformações ao 92, Sabato 3 aprile 1976, p. 11. nível territorial, a «arquitectura de sangue azul» revisita a sua história. Tradução realizada por Paulo A. M. Monteiro. As herméticas e habilíssimas investigações de James Stirling ou Denys Lasdun, ou os cada vez mais esgotados exercícios «futuristas» stones against diamonds – a tendência das neovanguardas para improváveis «reconstruções www.revistapunkto.com lúdicas do universo» –, encerram o tema da comunicação no círculo mágico dos signos pacificados da própria autonomia. A mesma [NdT] 1 Riappaesamento: ter- mo que corresponde resposta, nos Estados Unidos, com as refinadas evasões de um a um movimento/ reacção em resposta Peter Eisenman ou de um John Hejduk, às quais se contrapõe uma ao spaesamento (palavra que deriva de revigorada mitologia «neoemersoniana»: o ecletismo de Charles spaesato - perdido - e significa algo como Moore ou de Robert Stern inscreve-se num populismo que, em ‘desorientação’, ‘estranhamento’, comparação com o «neorrealismo» italiano dos anos 50, é sem ‘desenraizamento’, dúvida formalmente mais astuto, mas muito mais reaccionário etc.), sem equivalente literal em português. na utilização de slogans de um democratismo ambíguo. As traduções possí- veis adquirem vários sentidos: ‘reencontro’, Numa vertente oposta, dá-se o avanço da «internacional da ironia». ‘reintegração’, ‘repatriamento’, Robert Venturi transfere para a arquitectura as técnicas da Pop ‘reenraizamento’, etc. Considera-se que Art. O universo do consumo de massas – materializado na capital o autor utiliza este termo no sentido do desperdício, Las Vegas – é aclamado como um oceano no qual crítico de uma mítica acção conciliante, de inevitavelmente temos de mergulhar; mas apenas para emergir regresso a um con- dotados de cáusticos instrumentos de «domínio do irracional». (Ou texto familiar, seguro, por oposição ao estra- melhor, de «riappaesamento»1, no caos da alienação colectiva). O seu nhamento e alienação da metrópole. projecto expositivo para Washington2, no âmbito do bicentenário [NdT] 2 No texto original o americano, é sem dúvida um convite irónico para um banquete autor indica a cidade Philadelphia, mas nauseante: símbolos desgastados e «novos ícones» da sociedade trata-se de um lapso. Efectivamente Robert opulenta apresentam-se, de modo provocatório, a um público Venturi realizou o projecto expositivo obrigado a reflectir sobre a sua própria condição angustiante. A “Philadelphia: Three Centuries of Ameri- ironia conduz inevitavelmente ao masoquismo. Em Viena, Hans can Art” (Philadelphia Museum of Art, Hollein fragmenta, de modo perverso, preciosas caixas mágicas, 1976), integrado nas comemorações do enquanto o espanhol Bofill sobrepõe «máscaras» coloridas aos American Revolution Bicentennial. Contudo, seus organismos fraccionados, e o americano Johansen – como o autor refere-se à Maurizio Sacripanti e Guido Canella em Itália, ou Kikutake no exposição “Signs of Life: Symbols in Japão – propõe uma espécie de «antigrazioso»3 arquitectónico: um the American City”, igualmente integrada «expressionismo gentil» que mimetiza as formas de um protesto no Bicentennial, mas realizada em Washin- subjectivo. Ao «banchetto della nausea»4 responde-se, uma vez mais, gton (Renwick Gallery, 1976). com a proposta de dignas «dietas espirituais». O ascetismo de [NdT] 3 Antigrazioso: os ter- um Aldo Rossi ignora maneirismos e neoconstrutivismos, assim mos mais próximos seriam ‘anti-gracioso’ como desdenha a ironia – incapaz de rir de si mesma – de um ou ‘desagradável’. Note-se que a palavra Venturi ou de alguns jovens franceses. Para Rossi, o problema não italiana antigrazioso remete para o é sequer como comunicar, mas como alcançar as raízes da «palavra movimento futurista italiano: a título de arquitectónica». Não é por acaso que, contra o seu astuto purismo, exemplo, Umberto Boccioni utiliza este têm sido lançadas acusações de neomonumentalismo nostálgico. termo tanto nos títulos de algumas É evidente que um tal panorama – obviamente incompleto – não das suas obras - “An- tigrazioso” (1912-13) - tem nada a ver com os artefactos ou as tendências que condicionam como nos manifestos futuristas. No contex- as transformações metropolitanas ou territoriais. Não há ironia to deste movimento, antigrazioso refere-se e nostalgia nas «ville nouvelles» francesas ou nas arquitecturas à rejeição dos valores artísticos tradicio- propagandísticas que, em Paris, como em Londres ou em São nais, à rejeição da harmonia graziosa. Francisco, atendem às exigências das grandes Corporations ou às Neste caso, consi- dera-se que o autor manobras do capital financeiro. Não queremos ser mal interpretados: utiliza este termo no sentido de uma nesta observação não há qualquer moralismo; apenas a constatação linguagem do bruto, enquanto provocação de que a linhagem mais decisiva do movimento moderno – aquela (ou poética da an- gústia) e montagem que conduzira as experiências da vanguarda a estabelecerem um exasperada. nexo directo entre «forma» e «reforma» – se dividiu em dois troncos [NdT] 4 Banchetto della nau- sea: a tradução literal incomunicáveis. Devemos também advertir que seguir a arquitectura seria ‘banquete da náusea’. No entanto, «de qualidade», nas contorcidas explorações dos seus limites, não opta-se pela expres- são original pelo facto é de todo uma operação evasiva. É certo que esta arquitectura não de esta remeter in- altera – salvo raras excepções – qualquer processo estrutural, mas tencionalmente para um artigo de Giulio cria os seus próprios circuitos de fruição, envolve comportamentos Carlo Argan (sobre a Pop-Art): “Il banchetto intelectuais generalizados e reconhece que o conceito de «público» della nausea”, La Botte e il Violino, anno I, n. – entendido como massa amorfa e compacta – deve ser arquivado. 2, settembre 1964, pp. 3-8. Mas o que tem a dizer esta arquitectura a tal cenáculo de entendidos? [NdT] 5 O autor refere-se, em particular, ao en- Exprime «opiniões» sobre a sua própria condição de marginalização. saio Der Autor als Pro- duzent (1934). Walter Ainda não lhe chegou a mensagem de Benjamin5: continua a falar Benjamin, “O autor como produtor”, in das suas relações difíceis com o universo produtivo, mas não tem João Barrento (ed.), qualquer ideia sobre como «repensar» o seu papel dentro das relações A modernidade. Obras escolhidas de Walter de produção. Algo que, ao invés, parece ocorrer a um nível teórico, ou Benjamin, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, em algumas experiências com arquitectos directamente integrados pp. 271-293. nas estruturas de gestão urbana e territorial, nas organizações cooperativas, no aparelho da política cultural, como técnicos do movimento operário organizado. Os novos estudos relativos à análise urbana – como por exemplo os de Aymonino –, aos ciclos do sector da construção, às técnicas de plano e à sua história, estão alinhados com as experiências nos centros históricos realizadas pelas comunas de Bolonha e de Pésaro e com o debate sobre a gestão descentralizada do património cultural e o novo papel do operador público. Perfilam-se, assim, «duas culturas» arquitectónicas: a primeira, zelosa da sua autonomia, dirigida para o passado, mesmo (e precisamente) nas suas expressões mais sinceras; a segunda, decidida a identificar novas saídas profissionais, reconhecendo ao intelectual um papel de «trabalhador» inserido nas contradições do desenvolvimento. Desejar em abstracto a reunificação destas «duas culturas» é um sonho reaccionário. Porque a crise da disciplina arquitectónica e das suas ferramentas de intervenção não deve ser, de todo, artificialmente encoberta com sínteses pacificadoras. Tanto os [NdT] 6 O autor refere-se ao colóquio “Pour modelos da urbanística tradicional – dos planos exclusivamente un urbanisme…” realizado em Abril vinculativos às intervenções sectoriais –, como aqueles propostos de 1974, cujas actas foram publicadas em: pelo grande patronato – «projectos especiais» e «novos sistemas Pour un urbanisme..., La Nouvelle Critique, urbanos» – ou pelas novas sociedades de capital misto – como a Italstat n° spécial 78 bis, Novembre 1974. –, bem como os que emergem do debate das forças democráticas, [NdT] 7 O autor refere-se sempre dissociados uns dos outros, devem ser colocados em crise ao artigo “Di alcuni motivi in ou discutidos precisamente enquanto «modelos». Reestruturar e Walter Benjamin controlar a periferia urbana é prioritário em cidades como Roma ou (da «Ursprung des deutschen Trauers- Milão, onde a experiência bolonhesa não é aplicável, assim como é piels» a «Der Autor als Produzent»)”, Nuova perigoso fazer bandeira do mítico equilíbrio entre centro histórico, Corrente, n. 67, 1975, pp. 209-243. tipologias «originárias» e modos de vida «alternativos». Mesmo as contendas «antidesperdício» ou a favor de ambientes «equilibrados», se usadas como receitas genéricas e generalizadas, correm o risco de apenas conduzirem a derrotas já dadas como certas no plano histórico. Ou seja, é necessário um debate contínuo e aberto que assuma a crise da tradição disciplinar da arquitectura e da urbanística moderna: o que significa adoptar linhas estratégicas e de gestão para estabelecer e actualizar um «fazer-se político» das disciplinas reestruturadas. (Independentemente dos seus resultados, o congresso dos urbanistas comunistas franceses, realizado em Grenoble, é um passo em tal direcção.)6 Contudo, mais do que nunca, é necessário reconhecer que, para a arquitectura, é inútil profetizar sobre o seu futuro. Ao invés, a arquitectura deve, como e quando puder, pôr em crise permanente as relações sociais e de produção em que, pela sua natureza, está inserida: colocar-se ao nível dessas relações, apreendidas na sua estrutura global; ser produtiva sempre que souber operar os processos de transformação sem dissimular a crise, mas partindo desta, aceitando-a. Mas isso também significa reconhecer a natureza técnica do novo trabalhador intelectual, o qual, inserido como força de massa dentro das instituições, movido pelo seu «desencanto», deve lutar por uma permanente crise-transformação do seu próprio status. Além do mais – como advertiu Massimo Cacciari («Nuova Corrente», 1975-67)7–, qualquer esforço tendente a reformas estabilizadoras será apenas «apologia do sistema».