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ex—curso

textos à margem: desvios,


derivas, experimentos

série a #4
janeiro 2019

Duas culturas arquitectónicas*


Manfredo Tafuri

Ensaiar um balanço global da situação do debate arquitectónico, no


âmbito internacional, pode parecer pouco realista, se não mesmo
inútil. Contudo, não obstante a fragmentação das experiências, o
carácter contraditório das situações, a multiplicidade dos contextos
que condicionam um panorama cada vez mais complexo, suscitar
uma discussão sobre a transformação do conceito e do papel da
arquitectura assume, hoje, um significado inequivocamente político.
Não faz sentido agitar bandeiras por exércitos destituídos de
estratégia: é inútil conduzir batalhas ideológicas pela «requalificação»
de uma figura profissional tão elástica, convertida em «bonne à tout
faire», como a do arquitecto, sem se clarificar o rumo que a nova
encomenda pública e as novas estruturas universitárias devem
tomar. Uma luta não ilusória contra as distorções de um sistema
capitalista em profunda crise de transformação requer, em primeiro
lugar, uma verificação da «funcionalidade» das formas actuais – não
por acaso negligenciadas – de divisão do trabalho intelectual.
Mas se nos centrarmos nas linhas avançadas da produção
arquitectónica dos anos 70, é muito raro podermos identificar
algum tipo de consciência acerca do seu papel dentro do sistema
produtivo, no qual, querendo ou não, estão inseridas. Na verdade,
nunca como nos últimos anos a arquitectura internacional tentou o
seu próprio relançamento concentrando-se em tarefas, no mínimo,
* Artigo publicado no oitocentistas. A questão dominante parece ser a de como reclamar
jornal Paese Sera no
âmbito da colabora- uma autonomia linguística: demonstrar a sua capacidade de «falar».
ção regular do autor
com o suplemento
Coloca-se assim a «linguagem» no centro de um debate que paira
Arte (entre 1976 e
1979): Paese Sera /
nos céus da ideologia. Em Inglaterra ou em França, enquanto novos
Arte, anno XXVII, n. mecanismos económicos desencadeiam enormes transformações ao
92, Sabato 3 aprile
1976, p. 11. nível territorial, a «arquitectura de sangue azul» revisita a sua história.
Tradução realizada
por Paulo A. M.
Monteiro. As herméticas e habilíssimas investigações de James Stirling ou
Denys Lasdun, ou os cada vez mais esgotados exercícios «futuristas»
stones against diamonds – a tendência das neovanguardas para improváveis «reconstruções
www.revistapunkto.com lúdicas do universo» –, encerram o tema da comunicação no círculo
mágico dos signos pacificados da própria autonomia. A mesma [NdT] 1 Riappaesamento: ter-
mo que corresponde
resposta, nos Estados Unidos, com as refinadas evasões de um a um movimento/
reacção em resposta
Peter Eisenman ou de um John Hejduk, às quais se contrapõe uma ao spaesamento
(palavra que deriva de
revigorada mitologia «neoemersoniana»: o ecletismo de Charles spaesato - perdido - e
significa algo como
Moore ou de Robert Stern inscreve-se num populismo que, em ‘desorientação’,
‘estranhamento’,
comparação com o «neorrealismo» italiano dos anos 50, é sem ‘desenraizamento’,
dúvida formalmente mais astuto, mas muito mais reaccionário etc.), sem equivalente
literal em português.
na utilização de slogans de um democratismo ambíguo. As traduções possí-
veis adquirem vários
sentidos: ‘reencontro’,
Numa vertente oposta, dá-se o avanço da «internacional da ironia». ‘reintegração’,
‘repatriamento’,
Robert Venturi transfere para a arquitectura as técnicas da Pop ‘reenraizamento’,
etc. Considera-se que
Art. O universo do consumo de massas – materializado na capital o autor utiliza este
termo no sentido
do desperdício, Las Vegas – é aclamado como um oceano no qual crítico de uma mítica
acção conciliante, de
inevitavelmente temos de mergulhar; mas apenas para emergir regresso a um con-
dotados de cáusticos instrumentos de «domínio do irracional». (Ou texto familiar, seguro,
por oposição ao estra-
melhor, de «riappaesamento»1, no caos da alienação colectiva). O seu nhamento e alienação
da metrópole.
projecto expositivo para Washington2, no âmbito do bicentenário [NdT] 2 No texto original o
americano, é sem dúvida um convite irónico para um banquete autor indica a cidade
Philadelphia, mas
nauseante: símbolos desgastados e «novos ícones» da sociedade trata-se de um lapso.
Efectivamente Robert
opulenta apresentam-se, de modo provocatório, a um público Venturi realizou o
projecto expositivo
obrigado a reflectir sobre a sua própria condição angustiante. A “Philadelphia: Three
Centuries of Ameri-
ironia conduz inevitavelmente ao masoquismo. Em Viena, Hans can Art” (Philadelphia
Museum of Art,
Hollein fragmenta, de modo perverso, preciosas caixas mágicas, 1976), integrado nas
comemorações do
enquanto o espanhol Bofill sobrepõe «máscaras» coloridas aos American Revolution
Bicentennial. Contudo,
seus organismos fraccionados, e o americano Johansen – como o autor refere-se à
Maurizio Sacripanti e Guido Canella em Itália, ou Kikutake no exposição “Signs
of Life: Symbols in
Japão – propõe uma espécie de «antigrazioso»3 arquitectónico: um the American City”,
igualmente integrada
«expressionismo gentil» que mimetiza as formas de um protesto no Bicentennial, mas
realizada em Washin-
subjectivo. Ao «banchetto della nausea»4 responde-se, uma vez mais, gton (Renwick
Gallery, 1976).
com a proposta de dignas «dietas espirituais». O ascetismo de [NdT] 3 Antigrazioso: os ter-
um Aldo Rossi ignora maneirismos e neoconstrutivismos, assim mos mais próximos
seriam ‘anti-gracioso’
como desdenha a ironia – incapaz de rir de si mesma – de um ou ‘desagradável’.
Note-se que a palavra
Venturi ou de alguns jovens franceses. Para Rossi, o problema não italiana antigrazioso
remete para o
é sequer como comunicar, mas como alcançar as raízes da «palavra movimento futurista
italiano: a título de
arquitectónica». Não é por acaso que, contra o seu astuto purismo, exemplo, Umberto
Boccioni utiliza este
têm sido lançadas acusações de neomonumentalismo nostálgico. termo tanto nos
títulos de algumas
É evidente que um tal panorama – obviamente incompleto – não das suas obras - “An-
tigrazioso” (1912-13) -
tem nada a ver com os artefactos ou as tendências que condicionam como nos manifestos
futuristas. No contex-
as transformações metropolitanas ou territoriais. Não há ironia to deste movimento,
antigrazioso refere-se e nostalgia nas «ville nouvelles» francesas ou nas arquitecturas
à rejeição dos valores
artísticos tradicio- propagandísticas que, em Paris, como em Londres ou em São
nais, à rejeição da
harmonia graziosa. Francisco, atendem às exigências das grandes Corporations ou às
Neste caso, consi-
dera-se que o autor manobras do capital financeiro. Não queremos ser mal interpretados:
utiliza este termo
no sentido de uma nesta observação não há qualquer moralismo; apenas a constatação
linguagem do bruto,
enquanto provocação de que a linhagem mais decisiva do movimento moderno – aquela
(ou poética da an-
gústia) e montagem
que conduzira as experiências da vanguarda a estabelecerem um
exasperada. nexo directo entre «forma» e «reforma» – se dividiu em dois troncos
[NdT] 4 Banchetto della nau-
sea: a tradução literal
incomunicáveis. Devemos também advertir que seguir a arquitectura
seria ‘banquete da
náusea’. No entanto,
«de qualidade», nas contorcidas explorações dos seus limites, não
opta-se pela expres-
são original pelo facto
é de todo uma operação evasiva. É certo que esta arquitectura não
de esta remeter in- altera – salvo raras excepções – qualquer processo estrutural, mas
tencionalmente para
um artigo de Giulio cria os seus próprios circuitos de fruição, envolve comportamentos
Carlo Argan (sobre a
Pop-Art): “Il banchetto intelectuais generalizados e reconhece que o conceito de «público»
della nausea”, La Botte
e il Violino, anno I, n. – entendido como massa amorfa e compacta – deve ser arquivado.
2, settembre 1964,
pp. 3-8.
Mas o que tem a dizer esta arquitectura a tal cenáculo de entendidos?
[NdT] 5 O autor refere-se,
em particular, ao en- Exprime «opiniões» sobre a sua própria condição de marginalização.
saio Der Autor als Pro-
duzent (1934). Walter
Ainda não lhe chegou a mensagem de Benjamin5: continua a falar
Benjamin, “O autor
como produtor”, in
das suas relações difíceis com o universo produtivo, mas não tem
João Barrento (ed.), qualquer ideia sobre como «repensar» o seu papel dentro das relações
A modernidade. Obras
escolhidas de Walter de produção. Algo que, ao invés, parece ocorrer a um nível teórico, ou
Benjamin, Assírio &
Alvim, Lisboa, 2006, em algumas experiências com arquitectos directamente integrados
pp. 271-293.
nas estruturas de gestão urbana e territorial, nas organizações
cooperativas, no aparelho da política cultural, como técnicos do
movimento operário organizado. Os novos estudos relativos à análise
urbana – como por exemplo os de Aymonino –, aos ciclos do sector
da construção, às técnicas de plano e à sua história, estão alinhados
com as experiências nos centros históricos realizadas pelas comunas
de Bolonha e de Pésaro e com o debate sobre a gestão descentralizada
do património cultural e o novo papel do operador público.
Perfilam-se, assim, «duas culturas» arquitectónicas: a primeira, zelosa
da sua autonomia, dirigida para o passado, mesmo (e precisamente)
nas suas expressões mais sinceras; a segunda, decidida a identificar
novas saídas profissionais, reconhecendo ao intelectual um papel de
«trabalhador» inserido nas contradições do desenvolvimento.
Desejar em abstracto a reunificação destas «duas culturas» é um
sonho reaccionário. Porque a crise da disciplina arquitectónica
e das suas ferramentas de intervenção não deve ser, de todo,
artificialmente encoberta com sínteses pacificadoras. Tanto os [NdT] 6 O autor refere-se
ao colóquio “Pour
modelos da urbanística tradicional – dos planos exclusivamente un urbanisme…”
realizado em Abril
vinculativos às intervenções sectoriais –, como aqueles propostos de 1974, cujas actas
foram publicadas em:
pelo grande patronato – «projectos especiais» e «novos sistemas Pour un urbanisme...,
La Nouvelle Critique,
urbanos» – ou pelas novas sociedades de capital misto – como a Italstat n° spécial 78 bis,
Novembre 1974.
–, bem como os que emergem do debate das forças democráticas,
[NdT] 7 O autor refere-se
sempre dissociados uns dos outros, devem ser colocados em crise ao artigo “Di
alcuni motivi in
ou discutidos precisamente enquanto «modelos». Reestruturar e Walter Benjamin
controlar a periferia urbana é prioritário em cidades como Roma ou (da «Ursprung des
deutschen Trauers-
Milão, onde a experiência bolonhesa não é aplicável, assim como é piels» a «Der Autor als
Produzent»)”, Nuova
perigoso fazer bandeira do mítico equilíbrio entre centro histórico, Corrente, n. 67, 1975,
pp. 209-243.
tipologias «originárias» e modos de vida «alternativos». Mesmo as
contendas «antidesperdício» ou a favor de ambientes «equilibrados»,
se usadas como receitas genéricas e generalizadas, correm o risco
de apenas conduzirem a derrotas já dadas como certas no plano
histórico. Ou seja, é necessário um debate contínuo e aberto que
assuma a crise da tradição disciplinar da arquitectura e da urbanística
moderna: o que significa adoptar linhas estratégicas e de gestão
para estabelecer e actualizar um «fazer-se político» das disciplinas
reestruturadas. (Independentemente dos seus resultados, o congresso
dos urbanistas comunistas franceses, realizado em Grenoble, é um passo
em tal direcção.)6
Contudo, mais do que nunca, é necessário reconhecer que, para
a arquitectura, é inútil profetizar sobre o seu futuro. Ao invés, a
arquitectura deve, como e quando puder, pôr em crise permanente
as relações sociais e de produção em que, pela sua natureza, está
inserida: colocar-se ao nível dessas relações, apreendidas na sua
estrutura global; ser produtiva sempre que souber operar os processos
de transformação sem dissimular a crise, mas partindo desta,
aceitando-a. Mas isso também significa reconhecer a natureza técnica
do novo trabalhador intelectual, o qual, inserido como força de massa
dentro das instituições, movido pelo seu «desencanto», deve lutar
por uma permanente crise-transformação do seu próprio status.
Além do mais – como advertiu Massimo Cacciari («Nuova Corrente»,
1975-67)7–, qualquer esforço tendente a reformas estabilizadoras será
apenas «apologia do sistema».

issn 2184-2337 stones against diamonds

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