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CLÍNICA DA HISTERIA: DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE CASO

O trabalho aqui apresentado é o relato do Estágio Supervisionado em Psicologia


Clínica, realizado com base na Psicanálise. Tanto a prática realizada, quanto o presente
relatório tiveram por objetivo vislumbrar aspectos teóricos que vão desde os elementos
fundamentais da Psicanálise, passando por seu método e direção de tratamento, sua ética
peculiar e o desejo do analista, até a descrição e análise do caso clínico vivenciado no estágio.
Nesse sentido, a forma de trabalho utilizada foi a Escuta e o método o da Associação Livre e,
para tanto, a estagiária seguiu a orientação da manutenção da Atenção Flutuante, buscando as
cadeias associativas que levam o paciente ao encontro de sua verdade, sendo esse o objetivo
principal da análise. Quando se fala em verdade, está se levando em conta o desejo
inconsciente que se contrapõe às regras e necessidades sociais. É entre essas vertentes que o
psiquismo se encontra, em meio a consciente e inconsciente, id, ego e superego. O relato aqui
apresentado é a descrição de uma experiência clínica que traz como hipótese diagnóstica um
caso de histeria com traços obsessivos de um homem de 37 anos. É possível vislumbrar a
existência de uma estrutura histérica pela presença de quatro aspectos fundamentais
encontrados no paciente: identificação histérica, sintomas conversivos, desejo
permanentemente insatisfeito e falta de desejo nas relações sexuais no que se refere ao
encontro genital em contrapartida com uma sexualidade aflorada em todo o resto do corpo e
psiquismo.

Palavras-chave: Psicanálise, Histeria, Inconsciente.


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SUZANE FONTANA

CLÍNICA DA HISTERIA: DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE CASO

Orientadora de Estágio:
Ms. Psic. Michaella Carla Laurindo
Docente do Curso de Psicologia – UNIPAR – Universidade Paranaense.
Mestre em Filosofia – PUC-PR – Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
E-mail: michaella@unipar.br
CRP: 08/07748-6
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1 INTRODUÇÃO

Para obtenção do título de Psicólogo na Universidade Paranaense – UNIPAR – no ano


de 2008, entre outros fatores, é necessário que o acadêmico do quinto ano passe pelo Estágio
Supervisionado em Psicologia Clínica. Atualmente, o profissional em Psicologia atua em
diferentes setores e ênfases, mas a Clínica é uma área que traz ao formando um olhar
individualizado e apurado do ser humano. A UNIPAR ofereceu três abordagens para o
estágio: Comportamental, Existencial e Psicanalítica.
O Estágio foi realizado através de atendimentos clínicos em consultórios nas
dependências do CPA (Centro de Psicologia Aplicada), bem como de supervisões semanais
em grupos, com uma orientadora para cada grupo das diferentes abordagens.
O trabalho aqui apresentado é o relato do Estágio Supervisionado em Psicologia
Clínica, realizado com base na Psicanálise. Nele, é possível vislumbrar aspectos teóricos que
vão desde os elementos fundamentais da Psicanálise, passando por seu método e direção de
tratamento, sua ética peculiar, até a descrição e análise do caso clínico vivenciado no estágio.
A princípio, é preciso que se diga que a Psicanálise, sistematizada por Sigmund Freud,
tem como forma de trabalho a Escuta, sendo o método utilizado o da Associação Livre. Isso
quer dizer que, nas sessões clínicas baseadas na teoria psicanalítica, o paciente fala tudo o que
lhe passa pela cabeça, com a regra única de que não ceda a censura e à vergonha. O que é dito
é ouvido pelo analista de forma a manter a atenção flutuante, sem valorizar algo no discurso
mais que todo o resto. Através desse tipo de fala/escuta são buscadas as cadeias associativas
que levam o paciente ao encontro de sua verdade, sendo esse o objetivo principal da análise.
Quando se fala em verdade, está se levando em conta o desejo inconsciente que se
contrapõe às regras e necessidades sociais. É entre essas vertentes que o psiquismo se
encontra, em meio a consciente e inconsciente, id, ego e superego.
Na clínica, é preciso deixar de lado os preconceitos e até mesmo se despir de toda
teoria para que o sujeito do inconsciente possa ser ouvido. O que interessa ao analista é a
realidade psíquica do paciente, deslocada das regras morais e normas sociais.
O relato clínico aqui apresentado traz como hipótese diagnóstica um caso de histeria
com traços obsessivos. Esse diagnóstico diferencial foi levantado por conta de quatro aspectos
fundamentais da histeria encontrados no paciente: identificação histérica, sintomas
conversivos, desejo permanentemente insatisfeito e falta de desejo nas relações sexuais no
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que se refere ao encontro genital em contrapartida com uma sexualidade aflorada em todo o
resto do corpo e psiquismo. Isso pode ser mais bem esclarecido no decorrer do relatório.
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2 APRESENTAÇÃO DO LOCAL E CONDIÇÕES NAS QUAIS A ATIVIDADE DE


ESTÁGIO ACONTECEU

O Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica foi realizado nas dependências do


Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UNIPAR – Universidade Paranaense – campus
Cascavel. Tal estabelecimento está localizado na Rua Rui Barbosa, 611, no Bairro Jardim
Cristal, com área total de 539,15m².
Essa estrutura foi fundada em 2003 com o duplo objetivo de servir à prática acadêmica
na formação em Psicologia e de oferecer melhorias na saúde mental à comunidade de
Cascavel. Os estagiários do 5º ano recebem supervisão teórica dos Estágios de Psicologia do
Trabalho, Psicologia Escolar, Psicologia Clínica e Psicologia de Grupos, em salas
apropriadas, dentro do CPA.
O CPA possui enquanto quadro de pessoal, 1 coordenadora de estágio, 2 responsáveis
técnicas e 3 secretários, estando acessível para atendimento à comunidade nos períodos da
manhã (8h às 12h), tarde e noite (13h30 às 23h).
As dependências internas do CPA contam com:

• nove consultórios;
• uma sala de alunos com um banheiro;
• quatro salas para supervisão;
• uma sala de espelho;
• uma sala de espera com dois banheiros;
• uma recepção;
• uma sala de reuniões;
• um banheiro para alunos;
• uma sala de coordenação de estágio com um banheiro
• uma sala de arquivos.

Os serviços do CPA estão abertos principalmente à comunidade de baixo poder


aquisitivo. Como forma de pagamento pelo serviço, é cobrada uma taxa de 8% da renda
familiar mensalmente. Existem casos, entretanto, que tal taxa pode ser isenta por conta de
impossibilidade de pagamento. Em outros casos, um valor simbólico pode ser combinado.
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O Consultório utilizado para o atendimento no estágio aqui relatado foi o número


quatro, composto por:

• um divã;
• um tapete;
• duas cadeiras;
• uma mesa com cadeiras para criança;
• uma mesa pequena;
• um ventilador;
• um relógio de parede.
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3 DESCRIÇÃO DO TRABALHO

3.1 A PSICANÁLISE COMO MÉTODO DE TRATAMENTO

A teoria Psicanalítica, sistematizada, teve seu marco inicial em 1900, através da


publicação da obra "A Interpretação dos Sonhos" de Sigmund Freud. A partir dessa obra, ele
passou a organizar seus achados clínicos em uma teoria que chamou de "psicossexual". Freud
(1910), em Cinco lições de psicanálise, fala da nova teoria como um processo semiológico e
terapêutico. A história das primeiras noções da Psicanálise começou, entretanto, muito antes
disto, através de especulações filosóficas acerca da natureza de fenômenos psicológicos
inconscientes e trabalhos no campo da psicopatologia. O próprio conceito de inconsciente não
foi descrito primeiramente por Freud. Já se falava de uma entidade mental não material
existente. Freud não descobriu o inconsciente e sim um modo de estudá-lo.
Junto ao amigo e incentivador, Dr. Breuer, Freud utilizou a técnica da hipnose em uma
paciente conhecida como Anna O, que sofria de histeria. A paciente apresentava sintomas
físicos que não possuíam causa orgânica. Breuer abandonou o caso, mas Freud continuou e o
que verificou e descobriu na prática, passou a descrever e sistematizar teoricamente. Fica
claro que, nesse processo, a teoria nasceu da prática. Em um primeiro momento, o método
utilizado foi a hipnose, na qual o paciente, através de uma regressão sugestionada pelo
analista, lembrava-se de fatos ocorridos. O foco era encontrar o momento e a situação da
formação do sintoma. Freud percebeu que, quando o paciente recordava essas situações, com
o auxílio da interpretação do analista sobre o sintoma, este desaparecia. Ao analista cabia
interpretar para o paciente seus afetos.
Acontece que, depois de algum tempo, Freud se deu conta que o sintoma era apenas
deslocado e a histeria não alcançava sua cura pelo simples fato de recordar o acontecido no
instante da formação do sintoma. O método foi, então, abandonado, dando lugar ao que
chamou de Livre Associação, na qual o paciente deveria falar tudo o que lhe viesse à cabeça,
sem censura, por mais que parecesse incoerente e desnecessário. Ao analista coube, nesse
segundo momento, a tarefa de trabalhar com a resistência do paciente. Sobre tal método, será
dada maior ênfase logo a diante, quando se tratar das considerações sobre a técnica
psicanalítica. Freud modificou o método, mas o objetivo continuava sendo o de encontrar o
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momento exato em que o sintoma foi formado. O paciente deveria superar a resistência para
recordar.
O problema das histéricas, porém, ainda não havia alcançado solução. E Freud
compreendeu que a superação das resistências não era alcançada em sua totalidade, mas que
uma maneira de trabalhar era entender que o paciente continua repetindo aquilo que não pode
recordar. Freud passa a trabalhar com a livre associação no presente, sem focar o momento da
formação do sintoma. O objetivo continua sendo o de recordar o que foi recalcado, mas agora
é compreendido que o paciente repete o tempo todo o que foi esquecido. A partir disso, fica
evidente que a maneira de o paciente atuar com o analista, através da transferência, é uma
repetição de como atuou na formação de seu sintoma. O trabalho passa a ser retroativo.
Fica estruturado, assim, o método utilizado pela psicanálise até os dias atuais. Mas,
para chegar a todas essas conclusões, Freud precisou definir os conceitos teóricos que
baseiam a Psicanálise enquanto método. No que se refere ao aparelho psíquico proposto por
Freud, o autor passa uma noção tópica (de lugar) para explicar o seu funcionamento.
Apresenta tais conceitos em duas tópicas: a primeira topológica e a segunda estrutural.
A Primeira Tópica freudiana sistematiza os conceitos de consciente, pré-consciente e
inconsciente. O que está na consciência são todas aquelas idéias que o sujeito lembra ou está
tendo acesso no momento. As idéias contidas no pré-consciente não estão em evidência, mas
podem ser recordadas a qualquer momento sem muito esforço nem barreiras. As
representações encontradas nessas duas primeiras instâncias podem ser chamadas de conteúdo
manifesto. O que não é suportado pela realidade consciente é recalcado (expulso da
consciência) e mantido no inconsciente. O conteúdo inconsciente (ou latente) não é recordado
e somente vem a consciência através da formação de compromisso (sonhos, atos falhos,
chistes, sintomas, entre outros). Tais ocorrências são assim denominadas por formarem uma
solução em que escondem as representações verdadeiras contidas no inconsciente e mostram
os afetos livres à consciência. Todas essas manifestações comprometem-se tanto com o
inconsciente, quanto com o consciente, escondendo e, ao mesmo tempo, insinuando um
desejo. Diz-se desejo no sentido de algo que o sujeito quer, mas que não lhe é permitido. Para
melhor explicar, discorre-se a seguir sobre a Segunda Tópica freudiana.
A segunda tópica define os conceitos de Id, Ego e Superego. O Id é todo princípio do
prazer. Ele deseja e quer encontrar satisfação e é representado por processos primitivos de
origem sexual. O Superego é constituído pelas leis paternas e sociais. Esta instância impõe
limites aos incontroláveis desejos do Id, sendo punitivo. O Ego é o princípio da realidade, que
tenta equilibrar essa diferença para encontrar a maneira de auto conservar-se.
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Sendo assim, o movimento psíquico é isso: a busca incessante pelo prazer que se
depara com a realidade, fato este que gera uma lacuna, uma falta. É esta falta que dá "vida" ao
psiquismo, ou seja, desejo. O sujeito é então visto como um ser desejante, que se movimenta
através do conflito entre o princípio do prazer (representado pelo Id) e o princípio da realidade
(pulsão do Ego de autoconservação). A satisfação do impulso do Id gera culpa frente ao
Superego. A não satisfação traz sentimento de inferioridade. Como forma de proteção aos
conflitos e de gerar estabilidade emocional, o psiquismo reage com os mecanismos de defesa
do Ego. Estando claro esses conceitos básicos que possibilitam compreender o método, é
possível dar continuidade ao fazer psicanalítico propriamente dito.
Para dar início a um processo de análise, Freud recomenda que se façam algumas
sessões preliminares antes de aceitar por definitivo o paciente. Nesse momento, o analista
deve permitir que o paciente apenas fale, explicando a ele somente o necessário (Freud,
1913). Nas palavras de Freud em “Sobre o inicio do tratamento”:

O material com que se inicia o tratamento é, em geral, indiferente — a história da


vida do paciente, ou a história de sua doença, ou suas lembranças de infância. Mas,
em todos os casos, deve-se deixar que o paciente fale e ele deve ser livre para
escolher em que ponto começará (FREUD, 1913, p. 149)

O objetivo desse início de tratamento é conhecer o caso, fazer um diagnóstico


diferencial, definindo a estrutura clínica do possível paciente (saber se trata de uma neurose,
psicose ou perversão) e estabelecer a transferência (na qual o paciente passa a transferir para a
figura do analista os afetos ligados a outras representações, inclusive as recalcadas).
Algo também importante a se dizer é que o sujeito em psicanálise é o próprio
inconsciente. O que se estuda e o que se quer compreender é esse sujeito que não segue as leis
conscientes e não reage de acordo com o esperado. O que importa na análise é a realidade
psíquica. Ao analista cabe identificar a maneira do funcionamento de tal sujeito. Se o paciente
expressa algo pela palavra, não cabe ao analista buscar verificar o quanto do que foi dito é
verdade. Se for fantasia, essa mesmo é fruto dos mecanismos do inconsciente e é com isso
que deve ser trabalhado. A fantasia aqui foi utilizada como mero exemplo, sendo que
qualquer mecanismo de defesa e todo modo de agir do paciente deve ser trabalhado enquanto
realidade psíquica. Quando o paciente fala, ele está emitindo um significante que contém um
significado. Em análise, quem dá significado ao significante é o próprio paciente. A palavra
dita pode ter várias interpretações, mas quem confere significado deve ser o sujeito da
realidade psíquica analisada, por ser única e ter leis e funcionamento próprio.
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Outro ponto fundamental a ser destacado é a noção de sintoma. Já foi dito brevemente
que o sintoma é uma formação de compromisso. Para a Psicanálise ele possui significado e
está ligado a situações emocionais. Toda representação possui um afeto atrelado a ela.
Quando uma representação (Ra) é recalcada, o afeto (Af) fica livre no psiquismo, podendo se
ligar ao corpo, formando assim o sintoma. Entretanto, é importante que fique claro que o
sintoma é sobredeterminado, ou seja, não provém de uma única causa traumática. Várias
representações estão condensadas em um ponto nodal que forma o sintoma. É por isso que se
trabalha com as associações em análise. Existem várias situações e representações que, se
associadas, podem levar a um ponto comum.
Uma última questão a ser discutida sobre a psicanálise enquanto método de tratamento
é a diferenciação entre este método e o método psiquiátrico em geral. Quando o paciente
procura o psiquiatra ou o analista, o pedido, segundo Miller (1987), é sempre o mesmo: ele
quer alívio e eliminação do sintoma. A resposta que o psiquiatra dá é elaboração de um
diagnóstico que enquadre o paciente dentro de critérios a partir de um saber estabelecido. O
psicanalista não oferece tal resposta, apenas questiona o paciente e o faz buscar a resposta
através de seus significantes já que, como já foi abordado, sua realidade psíquica é única e
possui suas próprias determinações.
Na prática da análise, busca-se manejar a resistência e a transferência para através da
livre associação chegar às representações recalcadas. Ao psicanalista é cobrado que tenha a
atenção flutuante, não privilegiando determinados significantes. Sobre isso Freud fala no
texto “Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise”

A técnica, contudo, é muito simples. Como se verá, ela rejeita o emprego de


qualquer expediente especial (mesmo de tomar notas). Consiste simplesmente em
não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma ‘atenção
uniformemente suspensa’ (...) em face de tudo o que se escuta (FREUD, 1912, p.
125).

Dito isso, é possível passar agora a explanar sobre alguns conceitos sem os quais não é
possível compreender o fazer em Psicanálise.
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3.2 OS QUATRO CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE

Até o momento, foi discorrido sobre a psicanálise enquanto método, deixando claro
que esta é mais do que somente uma técnica: é uma teoria que possui conceitos
fundamentados e descritos a partir da prática. Faz-se conveniente, nesse momento, abordar os
quatro conceitos fundamentais que permeiam a Psicanálise: Inconsciente, Pulsão, Repetição e
Transferência.
No que se refere ao Inconsciente, já foi dito que este conceito já existia antes mesmo
de Freud se interessar pelas histéricas. Também não foi deixado de mencionar o fato de o
Inconsciente possuir regras e leis de funcionamento próprio. A primeira crítica colocada à
Psicanálise, entretanto, é sobre a questão de se provar que o Inconsciente realmente existe.
Ora, ele é uma entidade mental e, portanto, não pode ser vista ou tocada. Tem-se, porém,
meios de perceber as manifestações inconscientes. O que foi recalcado para o Inconsciente
não pode voltar à consciência por ser barrado por algo que Freud denominou resistência. Mas
através dos sonhos, atos falhos, lapsos, chistes e sintomas, podemos ter contato com o
conteúdo latente, aprisionado no inconsciente. Em “O Inconsciente”, Freud (1915) justifica o
conceito de inconsciente dizendo que tal noção “é necessária porque os dados da consciência
apresentam um número muito grande de lacunas, (...) atos psíquicos (...) para os quais, não
obstante, a consciência não oferece qualquer prova” (p. 172).
Outra crítica a psicanálise é pela questão de ser uma teoria denominada primeiramente
por Freud enquanto psicossexual. O que acontece é que, para Freud, o termo "sexualidade" é
muito mais abrangente e vai além de uma mera relação sexual. É aí que entra o segundo
conceito fundamental. Freud fala em pulsão sexual, que difere do que se entende por
genitalidade, sendo que esta visa à reprodução, enquanto aquela busca satisfação em um
sentido bastante amplo. A pulsão é a energia (libido) que movimenta o psiquismo. É um
estímulo interno constante, uma força motora que atua sob efeitos de pressão, finalidade,
objeto e fonte.
A pressão é a própria essência da pulsão, é o motor, “a exigência de trabalho que ela
representa” (FREUD, 1915, p. 127). A finalidade de uma pulsão é a meta aonde esta quer
chegar. Sobre isso, Freud discorre:
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(...)embora a finalidade última de cada instinto (leia-se pulsão)1 permaneça imutável,


poderá ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma finalidade última, de
modo que se pode verificar que um instinto possui várias finalidades mais próximas
ou intermediárias, que são combinadas ou intercambiadas umas com as outras
(FREUD, 1915, p. 143. ).

Sobre os objetos da pulsão, estes são os meios através dos quais a finalidade é
atingida. Existe um número grande de possíveis objetos sexuais para cada pessoa. Qualquer
coisa ou qualquer ser é passível de se tornar objeto de investimento libidinal. E, finalmente,
devem-se mencionar as fontes da pulsão:

Por fonte de um instinto entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou
parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por um instinto. (...) O
estudo das fontes dos instintos está fora do âmbito da psicologia. Embora os
instintos sejam inteiramente determinados por sua origem numa fonte somática, na
vida mental nós os conhecemos apenas por suas finalidades (FREUD, 1915, p.
143/4)

O terceiro conceito fundamental da Psicanálise é o da Repetição. O ser humano possui


compulsão à repetição o que é aproveitado e trabalhado na clínica da psicanálise. Logo em
seus primeiros estudos Freud concluiu que as histéricas sofriam de reminiscências, ou seja,
lembranças encobertas, não acessíveis à consciência. A forma com que essas memórias atuam
é através das ditas repetições. O paciente repete e não se dá conta disso, não conseguindo
recordar o que está recalcado no inconsciente. Nesse sentido, a Repetição substitui o
Recordar. Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud comenta:

(...) Podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e
reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não
como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está
repetindo (Freud, Vol. XII, 1914, p 165)

A repetição é algo pulsional, inerente a condição humana. Mas o que afinal o sujeito
repete? Pode-se dizer que repete tudo o que diz respeito às suas ações e inibições, sua maneira
de ser, agir e pensar e algo bastante importante em análise: seu sintoma.
Freud (1914) adverte que a Repetição aumenta com o início da análise e que quando
se trabalha com as pulsões ligadas a tal repetição, é freqüente que ocorra certa “deterioração
durante o tratamento” (p. 169). Nesse sentido, o analista deve solicitar ao paciente que não

1. Nota da estagiária: em conseqüência da tradução das obras de Freud ser feitas do alemão para o
inglês e só posteriormente para o português alguns termos possuem significados distorcidos. Instinto
e Pulsão em Psicanálise devem ser diferenciados, mas nesse caso - em que a tradução fala de
instinto – deve-se entender enquanto referência à Pulsão.
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tome nenhuma decisão importante no decorrer do tratamento. A fim de manter as pulsões


“cercadas”, o analista precisa colocar-lhes as “rédeas da transferência”. Nas palavras de Freud
(1914) “o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e
transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência” (p. 169).
Dessa forma a transferência tem, em seu manejo, uma das bases para o andamento da
terapia em Psicanálise. Isso porque a transferência se coloca como mais uma das repetições do
paciente. Nos primeiros anos de vida, e de acordo com uma pré-disposição, o indivíduo
concebe uma maneira estereotipada de agir e se relacionar com as demais pessoas, tendo
como base o relacionamento primeiro com seus pais, o que Freud chamou de “clichês
estereotípicos” (FREUD, 1914). Com o analista, o paciente se comportará da mesma forma,
repetindo e, sabedor disto, o psicanalista deve conduzir o analisando até que este perceba sua
repetição e possa elaborá-la.
Com isso, já está se abordando o quarto conceito fundamental: a transferência. A
catexia (energia libidinal) dirigida, pelo paciente, a outro objeto (o qual Freud afirma que é a
mesma dirigida aos pais, a principio) volta-se também para o analista. Sobre isso Freud diz:

(...)é perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha
parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se
também para a figura do médico (FREUD, 1912, p. 112).

Freud, em “A dinâmica da transferência” (1912, p. 112), afirma que "(…)a


transferência surge como a resistência mais poderosa ao tratamento, enquanto que, fora dela,
deve ser encarada como veículo de cura e condição de sucesso”. Mais adiante o autor comenta
ainda:

A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada associação isolada, cada


ato da pessoa em tratamento tem de levar em conta a resistência e representa uma
conciliação entre as forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as
que se lhe opõem, já descritas por mim (Freud, 1912, p. 114/5).

No artigo “Observações sobre o amor transferencial” (1914), Freud fala a respeito de


como lidar com a transferência e, principalmente, com o aparecimento do “amor” do paciente
pelo terapeuta. Para ele, o manejo da transferência é a única dificuldade realmente séria que o
terapeuta precisa enfrentar no decorrer do tratamento.
O discurso de Freud vai ao sentido de que não se deve precaver o paciente desse
acontecimento e sim trabalhar com ele quando surgir. Não analisar esse fenômeno seria
perder uma boa contribuição para o restabelecimento do paciente.
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Em certo momento, a resistência passará a se utilizar desse “amor” para agir, pois,
estando apaixonado, o paciente não corresponde ao tratamento. Aceita tudo o que lhe é dito e
“abandona seus sintomas ou não lhes presta atenção; na verdade, declara que está boa”
(FREUD, 1914, p. 184). Não podemos afirmar que o amor transferencial não tenha caráter de
amor verdadeiro, mas ele é sim uma situação especial. Surge através da análise e intensifica-
se pela resistência.
Então, para que seja possível a continuidade do tratamento e a utilização da
transferência em favor deste, é necessário que seja permitido a manifestação do sentimento
por parte do paciente, mas, ao mesmo tempo, deixar-lhe claro que suas expectativas não serão
saciadas. “É, portanto, tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja
satisfeito, quanto que seja suprimido” (FREUD, 1914, p. 183). A partir disso, o paciente
abrirá espaço para que suas vivências amorosas infantis sejam analisadas. Para Freud, a
transferência é um conjunto de repetições e cópias de situações anteriores.
Quando Freud fala sobre o amor transferencial, é possível perceber que sua orientação
é de que se trabalhe com essa manifestação como qualquer aparição da transferência. O
manejo da transferência é o que faz com que a análise caminhe. A transferência deve ser
encarada como mais uma repetição do paciente e assim trabalhada. Até mesmo as colocações
e intervenções do analista apenas devem ser feitas após ter sido estabelecida a transferência. E
quando a resistência aparece em transferência, deve ser utilizada e colocada a serviço da
análise. Sobre isso Freud afirma:

Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da


repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas
para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual
(FREUD, 1914, p. 166)

Desse modo, o psicanalista faz uso do manejo da transferência e da superação da


resistência para que o paciente possa elaborar o que lhe foi recalcado, re-significando as
representações formadoras do sintoma. Ainda citando o autor, podemos compreender que

A ambivalência nas tendências emocionais dos neuróticos é a melhor explicação


para sua habilidade em colocar as transferências a serviço da resistência. Onde a
capacidade de transferência tornou-se essencialmente limitada a uma transferência
negativa, como é o caso dos paranóicos, deixa de haver qualquer possibilidade de
influência ou cura (Freud, 1912, p. 118)
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Algo importante a se dizer ainda a respeito da utilização da transferência no processo


analítico é o momento em que isso deve ser feito. Freud, em seu artigo denominado “Sobre o
início do tratamento”, adverte que o material conseguido através da transferência somente
deve ser colocado a serviço da análise no momento em que esta passar pela resistência:

Enquanto as comunicações e idéias do paciente fluírem sem qualquer obstrução, o


tema da transferência não deve ser aflorado. Deve-se esperar até que a transferência,
que é o mais delicado de todos os procedimentos, tenha-se tornado uma resistência
(Freud, 1913, p, 154).

Assim, fica claro que as falas que revelam a transferência devem ser analisadas como
todos os demais fragmentos do discurso, procurando-se buscar a causa, ou seja, as pulsões
que levam o sujeito a se dirigir ao analista de determinada maneira. A transferência se
apresenta, sob forma ambivalente, em direções ora hostis ora afetuosas ao terapeuta. Ambas
as demonstrações transferenciais podem servir ao trabalho analítico (transferência positiva),
por serem expressão da forma primitiva de relacionamento e comportamento presentes no
paciente. Mas há o caso em que a transferência, tanto hostil quanto afetuosa, se mostra a
serviço da resistência (transferência negativa) e sobre isso é preciso que esta também seja
trabalhada, como qualquer outra resistência.
Dessa forma, ficam assim expostos os conceitos fundamentais da Psicanálise. Torna-se
conveniente, nesse momento, fazer algumas considerações acerca da técnica psicanalítica, o
que será feito a seguir.

3.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA PSICANALÍTICA

Freud representou uma ruptura com o método positivista de tratar as doenças mentais
ao criar uma coligação entre um sistema de pensamentos e um método de tratamento. No
referente a esse novo modo de tratar os que sofrem de adversidades no campo da psique, é
estabelecida a técnica da associação livre em que, da parte do paciente se espera que fale tudo
o que lhe vem à cabeça sem restrições, enquanto, por parte do analista, busca-se que ele
escute o que lhe é dito de maneira a não privilegiar um conteúdo em detrimento de outro.
Freud (1912 b) descreve suas recomendações àqueles que desejam exercer a prática da
psicanálise com seus pacientes, enfatizando o fato de não ser necessário tomar notas do que o
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analisando diz, sendo imperativo apenas o fato de conservar a atenção suspensa ao que ouve.
Sobre isso o autor escreve:

A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a necessidade,


de uma atitude mental para outra, em evitar especulação ou meditação sobre os
casos, enquanto eles estão em análise, e em somente submeter o material obtido a
um processo sintético de pensamento após a análise ter sido concluída (FREUD,
1912, p 128).

Nesse sentido, é preciso que o psicanalista esteja ciente, como já foi abordado, de que
o paciente repete o que não pode ser recordado, sendo necessário trabalhar com dois fatores
que se inter-relacionam na análise: a resistência e a transferência. A primeira delas são
basicamente as ações, por parte do paciente, que visam dificultar ou impedir o trabalho
terapêutico. Quando a resistência aparece, deve-se colocar o paciente a par do fato de suas
ações serem resistências – já que elas são inconscientes e se apresentam sob formas
camufladas1 à consciência e mais que isso,

Deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta resistência com a qual
acabou de se familiarizar, para elaborá-la, para superá-la, pela continuação, em
desafio a ela, do trabalho analítico segundo a regra fundamental da análise. Só
quando a resistência está em seu auge é que pode o analista, trabalhando em
comum com o paciente, descobrir os impulsos instintuais reprimidos que estão
alimentando a resistência; e é este tipo de experiência que convence o paciente da
existência e do poder de tais impulsos (FREUD, 1914, p 170/171).

No momento em que o paciente consegue perceber a força das pulsões é que a


análise começa realmente de fato. Porém o trabalho se inicia bem antes da entrada em análise.
Logo que o paciente chega, solicitando tratamento, Freud (1913) afirma que se deve aceitar
apenas provisoriamente, a fim de que se identifique a estrutura do sujeito e se ela é
compatível com o trabalho em Psicanálise. Cabe ressaltar que Freud deu ênfase na descrição
de casos de neuroses, sendo que, os releitores de sua obra, como o caso de Lacan, fizeram
especulações e uso da psicanálise nas outras duas estruturas. O que é dito em Freud (1913) a
cerca do “tratamento de ensaio” é colocado em Lacan sob o nome de “entrevistas
preliminares”, sendo que esta possui, de acordo com Quinet (1991), três funções: sintomal,
transferencial e diagnóstica.
A função sintomal traz a possibilidade de ouvir a queixa trazida pelo paciente. O que é
queixa não é necessariamente o sintoma analítico, pois para isso o paciente deve passar da

1
Tais formas camufladas aparecem em diversos aspectos como nos mecanismos de defesa de racionalização,
por exemplo. A racionalização é uma maneira de dar motivos mais aceitáveis do ponto de vista lógico ao um
fato cujo motivo real não é percebido ou aceito pelo paciente.
16

fase de procurar os culpados pelo mal que lhe acomete para a fase de retificação subjetiva,
que será abordada logo mais adiante. Para o momento é imprescindível que se diga apenas
que as queixas trazidas fazem parte de um único sintoma analítico dito de diferentes maneiras
pelo sujeito. Nas palavras de Freud (1913) “Uma pessoa padece apenas de uma neurose,
nunca de várias que acidentalmente se tenham reunido num indivíduo isolado” (p 146). Isso
implica em dizer que as queixas trazidas devem ser relacionadas de alguma forma para que
dêem base para a formação do diagnóstico estrutural.
A segunda função citada diz respeito ao estabelecimento da transferência entre o
analista e o analisando, noção esta que já foi destacada anteriormente. A transferência está
presente não só nesse início, mas em todo o decorrer da análise, sendo que as entrevistas
preliminares fazem parte do trabalho psicanalítico, não se diferenciando de maneira
determinista do restante do processo. Desde o início, é importante que o analista saiba
manejar a transferência como uma repetição do possível analisando, percebendo sua maneira
de agir, pensar e sentir frente a sua figura, para, no momento apropriado, devolver seus ditos
em forma de construções.
Quanto à terceira função das entrevistas preliminares, é importante que se tenha claro
o diagnóstico diferencial do paciente, já que Freud (1913) o descreve como o ponto inicial do
tratamento. É necessário que se entenda qual é a estrutura do possível analisando, ou seja,
como é a forma de agir no mundo. Para melhor esclarecer esse aspecto, será feita uma breve
diferenciação e explanação das estruturas clínicas postuladas por Freud no decorrer de sua
obra: a neurose, a perversão e a psicose.
Quinet (1991) afirma que o diagnóstico diferencial das estruturas clínicas é feita de
acordo com a forma que o sujeito se relacionou com a castração e negação do Édipo,
relatando que

É a partir do simbólico que se pode fazer o diagnóstico diferencial estrutural por


meio dos três modos de negação do Édipo -- negação da castração do Outro --
correspondentes às três estruturas clínicas. Um tipo de negação nega o elemento,
mas o conserva, manifestando-se de dois modos: no recalque (Verdrãngung) do
neurótico, nega conservando o elemento no inconsciente e o desmentido
(Verleugnung) do perverso, o nega conservando-o no fetiche. A foraclusão
(Verwerfung) do psicótico é um modo de negação que não deixa traço ou vestígio
algum: ela não conserva, arrasa (p 23).
17

A castração se refere à lei existente no psiquismo na forma de superego2. O neurótico


se relaciona com a lei de forma a sentir culpa pelo desejo “proibido” que possui, recalcando-o,
ou seja, não permitindo que este se apresente a consciência de forma pura. O perverso, por sua
vez, desmente a lei, burlando-a, de maneira que sabe que a lei existe, mas afirma seu desejo
de forma camuflada. O psicótico desconhece a lei no que remete a formação de uma realidade
diferente, com leis próprias.
Em cada estrutura essa negação do desejo – castração – aparece de modo diferente na
vida consciente. O neurótico apresenta o retorno do recalcado sob a forma de sintoma, sendo
que o que foi “negado no simbólico retorna no próprio simbólico”. O perverso traz de volta o
que foi negado no simbólico na forma do fetiche, também simbólico, sendo que desmente sua
afirmação. Já no psicótico, o “negado no simbólico retorna no real” na criação de uma vida
mental a parte, como na alucinação. (QUINET, 1991, p.23).
As neuroses, em diferentes autores possuem distintas classificações, mas Freud, no
decorrer de sua obra, descreveu basicamente três tipos de psiconeuroses: histeria, neurose
fóbica e neurose obsessiva. A neurose histérica será tratada aqui com ênfase por ser a hipótese
diagnóstica levantada sobre o caso atendido no Estágio Supervisionado. É sabido que a
trajetória dos estudos de Freud sobre a histeria se confunde com o que ele buscou
compreender da mulher. O próprio termo deriva do grego histéra que significa útero, já que
era vista como doença típica das mulheres, no entanto, Freud – influenciado por outros
estudiosos como Charcot3 - modificou o pensamento sobre a histeria quando percebeu que
não eram apenas as mulheres que sofriam desse mal. A partir de agora, será abordado como se
dá essa estrutura de acordo com os ditos freudianos.
Histeria é um tipo de neurose caracterizada por sintomas físicos nos casos em que
causas orgânicas são descartadas. A base da Psicanálise se deu através dos estudos da paciente
histérica Anna O, a partir dos estudos de Breuer e Freud que foram publicados em “Estudos
sobre a Histeria” (1895). Eles classificaram os sintomas histéricos enquanto um processo
mental caracterizado por intensa carga de afeto que, por alguma razão, permanecia bloqueado,
impedido de passar para a consciência, deslocando-se em forma de conversão física. Tais
afetos foram vistos como traumas psíquicos procedentes de um passado remoto, sendo que os
pacientes histéricos padecem de conflitos que não podem recordar e tampouco elaborar.

2
Superego é uma das instâncias psíquicas admitidas na segunda tópica freudiana referente às leis morais e
internalização da função paterna. Sobre isso, pode-se ler mais no artigo intitulado “Psicanálise: um método,
uma técnica e uma teoria” de Suzane Fontana, 2008.
3
Charcot foi um médico francês, uma das influências de Freud no uso da hipnose como método de tratamento da
histeria.
18

(BREUER; FREUD, 1895). Então, fica claro que o histérico traz o que foi recalcado para o
corpo, na forma de manifestações de sintomas principalmente de dor e paralisias.
Convém esclarecer o que foi dito: na primeira teoria proposta por Freud, ele acreditava
que a histeria era provocada por um trauma, ou seja, uma experiência sexual sofrida pela
criança que fora forçada por um adulto. Essa situação formava um trauma pelo excedente de
afeto que carregava a representação que, por não ser suportada pela consciência da criança,
sofria o recalcamento. O que constituía o trauma, então, era uma imagem superativada, um
"conteúdo imaginário da representação inscrita no inconsciente e na qual vem se fixar o
excesso de afeto sexual" (p 27). A histeria aparece, então, pelo fato do vestígio psíquico do
trauma, investido de afeto sexual excedente, sofrer o recalcamento, não ter a possibilidade de
escoamento e mais: a defesa do recalcamento falha surgindo a conversão – aparição dos sinais
no corpo. (NÁSIO, 1991).
Essa teoria continua válida, porém, em 1900, Freud fez uma modificação a respeito da
origem da histeria, admitindo que não fosse necessária uma representação de um fato exterior,
mas apenas o próprio "eu infantil" como sede da tensão excessiva denominada desejo. A
origem passou da representação de um evento traumático para a ordem da fantasia
inconsciente. Isso ocorre porque "a sexualidade infantil é traumática e patogênica, por ser
excessiva e transbordante" (p 38), já que a criança possui "meios limitados físicos e
psíquicos" (p 38) de lidar com o aparecimento dessa sexualidade. O trauma se dá, então, pelo
desejo que surge trazendo a possibilidade de satisfação total, o que é insuportável para o
sujeito, porque colocaria em perigo a integridade do ser (NÁSIO, 1991).
Mas como isso passa para os sintomas apresentados pelos histéricos e que são trazidos
para a clínica? Isso ocorre por conta do deslocamento do afeto que está ligado a representação
para o corpo. Cada neurótico, segundo Násio (1991), possui uma modalidade de
deslocamento. O obsessivo desloca o afeto para o pensamento, o fóbico para o mundo
externo, elegendo objetos específicos e o histérico leva seu afeto para o corpo. Dessa forma, a
energia no histérico passa do estado psíquico para o estado somático e essas manifestações
corporais do afeto equivalem a uma satisfação masturbatória, já que o histérico permanece
fixado em sua sexualidade infantil.
Por conta dessa sexualidade infantil, o histérico erotiza todo o seu corpo, investindo
libido em todo o seu ser, como se fosse, ele, o próprio falo4. A única parte que permanece
"anestesiada" e não recebe energia sexual são os genitais. Isso explica a aversão ao coito

4
Falo é um significante que designa valor ou poder. É o que poderia, imaginariamente, completar a falta inerente
ao ser humano.
19

sentida pelo histérico. Encontra-se aí um paradoxo, onde o histérico se coloca como sedutor
"procurando erotizar toda e qualquer relação social" (p 45) ao mesmo tempo em que sofre ao
ter que concretizar o ato sexual genital de fato. (NÁSIO, 1991). Ainda sobre a sexualidade do
histérico, Freud (1905) afirmou que o histérico se identifica ora com o homem, ora com a
mulher. Sobre isso, quando descreve o caso Dora enfatiza que ela se pergunta "o que é ser
uma mulher". Esse é o questionamento típico tanto para a histérica, quanto para o histérico.
Uma última explicação poderia ser dada quanto ao tipo de angústia intolerável que se
converte na histeria. A angústia, vivida no nível da fantasia, é a visão do corpo da mãe nu.
Aparece aí o que Freud chamou de angústia de castração. É o medo de ser castrado como o
outro foi. Freud (1926), afirma que a angústia vivida pelo histérico é o medo de perder o amor
do outro.
Maiores esclarecimentos sobre a histeria serão dados adiante, sendo que o tema será
retomado no item sobre a análise do caso apresentado. Por hora, ainda é necessário abordar a
direção do tratamento na psicanálise.

3.4 A DIREÇÃO DO TRATAMENTO

É notável que a psicanálise, diferente das psicologias, não procura fazer intervenções
de modo a dar respostas ao paciente, sendo que, quando estas são encontradas surgem por
parte da análise feita pelo próprio analisando. Torna-se conveniente destacar que, tal prática
utilizada nos tempos atuais – em que se prioriza o encontro de respostas rápidas – por vezes é
questionada pelos contrários à Psicanálise. O que se pode dizer é que a cura não é esperada à
priori. Na maioria dos casos, o que ocorre pode até ser um agravamento daquilo que o
paciente traz como queixa o que se transforma em uma das resistências ao tratamento. Sobre
isso Freud (1937 b) afirma que, quando devolvemos fragmentos do discurso em forma de
construções ao paciente, temos dois casos: se a construção estiver errada, nada de diferente
ocorre, mas se estiver correta, por vezes há o agravamento do quadro apresentado. Porém, a
psicanálise parte do suposto que o mal trazido para análise provém de um passado e de
pulsões desconhecidas pelo paciente, sendo que é preciso buscar questões profundas e difíceis
de serem recordadas. Ora, se tais questões estão em nível inconsciente é porque não podem
ser facilmente aceitas ou suportadas pela consciência, daí a possível elevação do quadro de
sinais de angústia apresentados pelo paciente no início da análise.
20

A Psicanálise não busca reforçar o Ego, ou seja, não pretende trabalhar com o que é
racional e consciente, tampouco elevar a auto-estima do paciente. A direção do tratamento
psicanalítico vai ao sentido de que o analista não pode se recordar do que foi esquecido pelo
paciente, mas pode auxiliá-lo a reconstruir essa lacuna a partir de fragmentos e resquícios que
se apresentam no discurso deste (FREUD, 1937 b). Aí reside um equívoco quando se diz que
a psicanálise é puramente interpretativa, sendo que bem se sabe que o trabalho do
psicanalítico se dá da seguinte maneira:

O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da


análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a
partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e
prossegue, desse modo alternado, até o fim... ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se
faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma
parapraxia. Trata-se de uma ‘construção’, porém, quando se põe perante o sujeito
da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu (FREUD,
1937, p 29).

Mas quando o paciente chega à clínica psicanalítica, ele vem em uma posição de ser
queixante e espera que o analista dê respostas, que lhe diga de qual mal está sofrendo e mais:
o que fazer para se curar. Freud (1913) afirma que por vezes ocorre que o paciente alega não
saber o que falar pedindo ao analista que lhe diga por onde começar. O autor é enfático ao
dizer que “sua solicitação de que lhes digamos sobre o que falar não deve ser atendida nesta
primeira ocasião, não mais do que em qualquer outra, posterior” (p 152). O paciente traz um
sofrimento e lhe faltam duas coisas: saber o caminho pelo qual percorrer para acabar com o
sofrimento e energia suficiente para superar as resistências de tal caminho. A terapia
psicanalítica pode oferecer ambos os elementos para dar início à busca do paciente (FREUD,
1913).
O sujeito que procura análise à busca porque algo lhe falta e acredita que o terapeuta
(como figura representativa do outro) pode lhe dar o que está faltando. Ele busca o prazer,
mas se depara com a realidade que não permite a realização total de seu desejo. Nesse sentido,
Freud (1930) afirma que o sofrimento humano tem uma de suas origens no social já que o
direito de todos não possibilita a liberdade individual.

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo,


condenado à decadência e a dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o
sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode
voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e,
finalmente, de nosso relacionamento com os outros homens. O sofrimento que
provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.
Tendemos à encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito embora ele não
possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras
fontes. (FREUD, 1930, p 95)
21

Isso significa dizer que o homem vive, então, em um estado desejante, no qual está
ligado ao outro, e só através deste se constitui e isso implica em dizer que, como todos os
homens são faltantes, um busca no outro o que lhe falta e se unem por essa lacuna, nunca
sendo capazes de preenchê-la. Então, após a fase das entrevistas preliminares – que não
possuem tempo determinado e só terminam quando o sujeito se permite passar adiante – o
paciente entra em análise, ou seja, passa a se questionar e entender que sua falta é inerente à
própria condição de estar vivo. Quando isso ocorre, o sujeito pode passar a uma condição
diferente que é chamada de retificação subjetiva que, segundo Quinet, (1991) – enfatizando a
pergunta feita por Freud à Dora5 - "consiste em perguntar ‘qual é sua participação na
desordem da qual você se queixa?'” (p 33). Essa retificação subjetiva é o principal objetivo da
análise, ou seja, que o paciente esteja implicado em seu desejo para que encontre a sua
verdade. Aí sim aparece o sintoma analítico diferenciado do "sintoma" trazido nas queixas
iniciais do paciente, isso porque ele passa a ouvir o que diz, em vez de simplesmente fazer um
discurso em que ele não se implica e não obtém o verdadeiro significado.
O que ainda deve ser levado em consideração é que o sintoma é, em última análise,
modo de obter satisfação pulsional. Mesmo sendo origem de desprazer, o sintoma possibilita
ao sujeito sempre um ganho secundário já que se incorpora ao Ego, tornando-se um substituto
da pulsão reprimida (FREUD, 1926). Desse modo, torna-se mais difícil a retirada do sintoma,
já que o paciente, mesmo demandando cura, resiste à perda de seu sintoma que está ali com a
finalidade de evitar angústia. Em primeira vista, não fica claro como é que uma satisfação
pode emitir desprazer. Mas Freud (1926) esclarece que isso ocorre porque o instinto não pode
ser satisfeito de forma direta por conta da repressão, sendo que então, o Ego inibe o processo
excitatório na substituição da satisfação pulsional pelo sintoma. Explicando melhor, o sintoma
é o resultado de um processo de repressão que falhou sendo que, ao passo que esconde o
desejo, mostra-o de forma distorcida. Isso foi trazido à discussão para que se fale da
complexidade sobre o tema da retirada do sintoma e o fim da análise.
Freud (1913) afirma que "a Psicanálise é sempre questão de longos períodos de
tempo" (p 145). O que seria então o fim da análise? Freud (1937 a) relata que existem dois
significados para o término da análise: o primeiro é que o sintoma tenha sido retirado, as
inibições e angústias superadas e que o analista perceba que todos os conteúdos inconscientes
tenham se tornado conscientes; o segundo é que o paciente chegue a um nível total de
normalidade psíquica. A partir desses dois significados dados para o fim da análise é que

5
O caso Dora é um dos relatos e análise de um tratamento feito por Freud com uma paciente histérica publicado
sob o título de “Fragmentos da análise de um caso de Histeria: o caso Dora”, Vol. XII.
22

Freud aponta que a análise pode ser considerada terminável em um aspecto, mas em outro ela
seria infinitamente interminável.
Quanto a retirada do sintoma, isto pode ocorrer em conseqüência de uma análise bem
sucedida. O que a análise pode fazer é a solução de um conflito entre as pulsões do Id e o
princípio de realidade do Ego. Até aí tudo bem. O que ocorre é que curar o sintoma atual não
evita doenças futuras e isso é o que Freud (1937 a) afirma ao se questionar se é possível
garantir a cura permanente e fazer um tratamento profilático que sustente o não aparecimento
de outros sintomas. O fato é que, para o neurótico, sempre haverá questionamento – falta – e
quando uma demanda é preenchida surge outra. Se for analisada essa afirmação, é possível
afirmar que a análise não pode ter um fim. No entanto, o que se pode encontrar como final da
análise, para Freud (1937 a) é o momento em que o sujeito se depara com a castração. A visão
da psicanálise lacaniana é um tanto diversa nesse sentido, como pontua Quinet (1991), ao
falar que o momento em que o sujeito se depara com a sua castração é o auge da angústia,
sendo que o sujeito não se cura de sua falta, pois ela é essência de sua estrutura. O que ocorre
é que, na prática, é preciso que exista um ponto que delimite a chegada ao fim da análise – o
momento em que o paciente recebe alta. O que se pode esperar para que a análise chegue ao
fim é o fato de o sujeito se deparar com a castração e saber-se faltante e elaborar essa lacuna a
ponto de conseguir lidar com seus conflitos de maneira equilibrada.
Sendo que, a direção do tratamento em Psicanálise não busca a retirada do sintoma, ao
analista não cabe moldar o paciente dando conselhos ou respostas que tragam opiniões e
conceitos próprios, mas sim permitir que ele faça sua análise e encontre suas respostas ao ter
consciência de sua responsabilidade e de seus desejos. (FREUD, 1976). A esse respeito, é
conveniente enfatizar o tema da Ética da Psicanálise. A direção do tratamento em Psicanálise
está intimamente relacionada a sua Ética e isso é o que será discutido a seguir.

3.5 A ÉTICA DA PSICANÁLISE E O DESEJO DO ANALISTA

Em 1926, quando Freud escreve seu texto “A questão da análise leiga”, fica claro que
a condição primeira e indispensável para se tornar um analista é fazer a análise pessoal. Antes
mesmo disso, em 1912, Freud já afirmava que
23

(...)quem não se tiver dignado tomar a precaução de ser analisado... Cairá


facilmente na tentação de projetar para fora algumas das peculiaridades de sua
própria personalidade, que indistintamente percebeu, no campo da ciência, como
uma teoria de validade universal; levará o método psicanalítico ao descrédito e
desencaminhará os inexperientes (p. 130).

Isso é dito porque o assunto da ética em psicanálise pode e deve ser tomado a partir do
esclarecimento sobre a posição do analista. Em primeiro lugar, é importante que se diga que o
analista não é aquele que pode dar respostas às questões feitas pelo paciente. Isto é o que ele
não é. Mas então, o que seria o analista? Qual é sua posição? Esses questionamentos sim
devem ser feitos e respondidos o tempo todo por aqueles que buscam trabalhar com a
psicanálise.
Ao analista cabe aproximar o sujeito de seu desejo, de sua verdade, através da busca
pelo que foi recalcado. Esse desejo é sempre contrário às leis sociais – por isso mesmo foi
recalcado – e também não está de acordo com o que o terapeuta tem como leis morais. Ocorre
que, o analista deve estar precavido desse fator e não permitir que fatores seus surjam no
trabalho de análise do paciente. Sobre isso, Freud coloca a questão da ambição terapêutica e
educativa, revelando o quanto o analista pode, através de seus conteúdos, produzir ruídos na
escuta analítica. As palavras de Freud (1912) mostram como isso pode ocorrer:

(...) o sentimento mais perigoso para um psicanalista é a ambição terapêutica de


alcançar, mediante este método novo e muito discutido, algo que produza efeito
convincente sobre outras pessoas. Isto não apenas o colocará num estado de espírito
desfavorável para o trabalho, mas torná-lo-á impotente contra certas resistências do
paciente, cujo restabelecimento, como sabemos, depende primordialmente da ação
recíproca de forças nele (p. 128).

Nesse caso, fica claro que algo que faz parte das questões do terapeuta (o possível fato
de este almejar que a outra pessoa perceba sua capacidade, por exemplo) leva, não com rara
freqüência, a dificuldades na prática da análise. Ainda citando Freud (1912), percebe-se que
“a ambição educativa é de tão pouca utilidade quanto a ambição terapêutica” (p. 132). O papel
do terapeuta em psicanálise não é de ensinar nada ao paciente, nem de almejar que ele se
torne mais erudito ou intelectualizado e tampouco de atribuir tarefas como pensar sobre algo,
já que isso não solucionaria nenhuma das teias da neurose. Enquanto ser humano, o analista
pode estar tentado por vezes a ceder aos caprichos de seu desejo em instruir ou curar o
paciente. Mas Ângulo (1990) afirma que “O desejo do analista deve ser um desejo advertido”
(p. 100).
Mas afinal, o que o desejo do analista tem a ver com a Ética em Psicanálise? Ocorre
que quando se fala em Ética da Psicanálise, tem-se que saber que esta se diferencia de outros
24

tipos de Ética. Isso porque ao longo da história diferentes tipos de Éticas foram colocados
através de pensadores filosóficos. Cabe fazer alusão aos diferentes tipos de Éticas encontrados
para desvinculá-los da Ética em Psicanálise.
Segundo Cabas et al (1990), Sócrates foi o pensador que trouxe a tona uma primeira
elaboração Ética, sendo que ele vincula a Ética à questão do Bem, buscando saber sobre a
felicidade humana. Para Platão, a felicidade seria alcançada através do amor, do que seria
Belo e Bom. “Platão acaba postulando o supremo bem na contemplação da Beleza. Uma ética
finalista cujo ponto culminante pertence ao mundo das idéias” (p. 198). Aristóteles também
postula sua Ética a cerca do Bem, mas para ele, a felicidade é alcançada através das virtudes
do ser humano. Além disso, Aristóteles enfatiza sua ética no prazer, que segundo ele tem seu
ponto forte nas atividades do pensar e da razão. “Trata-se do bom funcionamento da razão
unicamente conseguido através da repetição dos bons hábitos, ou seja, da virtude” (p. 199).
As duas Éticas citadas podem ser ditas como a Ética do Bem.
Kant, por sua vez funda a Ética chamada legalista, que postula que a conduta humana
deve estar ligada a Leis Universais e não ter como finalidade um bem ou um temor (a Deus,
por exemplo). Sua Ética está ligada a livre vontade racional do homem. Já Sade, abriga sua
Ética nas leis da natureza. A finalidade é o prazer do gozo e o sujeito deve seguir seu instinto
(CABAS et al, 1990). Estas duas formulações seguem a Ética do Dever.
Diferenças a parte, fica claro que as primeiras Éticas destacadas tinham como
finalidade a felicidade do homem. As segundas, por sua vez, se dividem entre o dever seguir a
Lei Moral ou a Lei da Natureza. Ocorre que em tudo isso diverge a Ética da Psicanálise. Em
primeiro lugar porque a felicidade não é objeto plenamente alcançável do ser humano e
depois porque a Psicanálise concebe o sujeito enquanto ser dividido entre consciente e
inconsciente, razão e pulsão. Como pode então o ser alcançar a felicidade se não pode
obedecer somente a Moral nem tampouco apenas à Natureza?
Forbes et al (1997) fala de conflito moral e conflito pulsional colocando a idéia,
presente na obra de Freud, de um conflito intrínseco à satisfação. O autor diz que a
Psicanálise não busca o equilíbrio entre o que é moral e o que é pulsão, afirmando que “no
fim de sua obra, Freud não deixa espaço algum para a busca de uma homeostase, de um
equilíbrio ou de um compromisso” (p. 41). Fica claro então que a Psicanálise não tem como
objetivo o fim do conflito instalado. Nesse sentido, a Ética em Psicanálise não está
subordinada à cura e o analista não deve estar atrelado ao desejo de curar. É então que entra
em questão novamente o Desejo do analista. “A ética freudiana é uma ética do desejo, ela não
define simplesmente o que podemos esperar de um tratamento analítico, mas também o que
25

um psicanalista deve fazer ou não, seja no nível dos conselhos técnicos ou dos princípios” (p.
42). A Ética em Psicanálise postula que o analista deve recusar ser o mestre. O desejo do
analista então está vinculado a “um desejo que seria mais forte do que o desejo de ser o
mestre” (p. 15). É interessante citar ainda outra elaboração de Forbes, quando diz que

Não se trata para o analista de adaptar o sujeito a uma realidade que só é fantasma
nem de restituir nele o funcionamento do princípio do prazer, de assegurar a
regulação psíquica. O analista também não é o representante do princípio da
realidade, uma vez que esse é apenas o circuito de evitação do que faz fracassar o
princípio do prazer (FORBES et al, 1997, p. 17).

Dessa forma, a Ética em Psicanálise é a ética do Bem Dizer. O analisando deve dizer
tudo: moral ou não, racional ou não. E o desejo do analista deve ser, nesse sentido, o Desejo
de Saber o que o analisando tem a dizer e não o desejo de curar. Isso porque o analista não
possui nenhuma resposta prévia e não deve estar preso a nenhum preconceito.
Sobre isso, Ângulo (1990) alega que o analista precisa “deixar o ser de lado” (p. 97).
Ele deve deixar que o inconsciente o surpreenda. Isso vai de encontro ao que já foi dito a
cerca da ambição terapêutica e educativa. Fica, então, novamente fundamentado que o
analista não deve possuir idéias prévias a respeito do que é trazido. Isso não quer dizer que o
analista está isento de qualquer responsabilidade para com a cura do paciente, mas a autora
acima citada afirma que essa responsabilidade não está a nível moral e sim ético.
Tendo em vista o que foi dito, conclui-se que a Ética da Psicanálise está atrelada à
direção de cura que ela propõe – sem prometer o encontro com a felicidade e levando o
analisando ao saber-se faltante – bem como está ligada ao desejo do analista. A Ética da
Psicanálise, em uma última observação, é também uma ética do Bem, mas o bem proposto é
diferente do bem supremo da felicidade. Esse Bem é o encontro do sujeito com sua verdade –
seu desejo.
É possível passar a enfatizar, agora, o relato do caso atendido no Estágio
Supervisionado em Psicologia Clínica. Essa prática caminha junto à questão da Ética aqui
explanada. Sobre isso, é possível utilizar as palavras de Miller (1998) ao afirmar que na
Psicanálise “não há um único ponto técnico não vinculado à questão ética” (p. 221). É por
esse motivo que o autor enfatiza que não existe “jeito lacaniano de fazer análise” (p. 221). Em
toda a descrição do caso foram utilizados conceitos que estão voltados para a sistematização
da teoria, mas não é possível falar única e exclusivamente em técnica psicanalítica. Isso
porque em análise, o analista se dirige ao sujeito e a única técnica possível se transforma na
própria Ética da Psicanálise: a Ética do Bem Dizer.
26

3.6 APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

3.6.1 Dados de Identificação e História de Vida

O caso a ser relatado é do paciente João6 de trinta e sete anos, sexo masculino,
morador da cidade de Cascavel. De acordo com a história de vida relatada pelo paciente, ele
veio do Rio de Janeiro em novembro de 2006 para Cascavel com sua esposa – na época
namorada – pois ela havia passado em um concurso público nesta cidade. João relata que
deixou o trabalho e veio com a intenção de estudar para concurso público, sendo que hoje não
trabalha. Seu pai faleceu alguns meses antes de sua vinda para Cascavel e no Rio de Janeiro
deixou sua mãe, um irmão e uma irmã. O paciente tem um filho de dez anos com uma ex-
namorada com quem ficou amasiado até o menino completar um ano. João possui graduação
em Administração, mas não atua na área. Sua esposa é Agente Penitenciário e arca com as
despesas dos dois.

3.6.2 A Queixa Inicial

A queixa inicial – com a qual procurou tratamento – eram alguns sintomas físicos que
havia sentido na ocasião da morte de seu pai. O paciente relatou sofrer de hipertensão e sentir
grande ansiedade e medo de que crises como as sentidas anteriormente voltassem. João
aponta como crise principal e mais forte aquela que ocorreu no momento em que seu pai fora
hospitalizado por conta de um infarto que ocasionou, dias mais tarde, sua morte.

3.6.3 Análise e Discussão do Caso

Ao chegar pela primeira vez para atendimento, após a triagem feita no CPA, João
conta brevemente sobre sua vida e logo descreve aquela que dizia ser a primeira crise,
denominando-a como “crise de ansiedade”. Tal relato foi o seguinte:

6
Nome fictício.
27

Paciente: Meu pai veio a falecer, teve um infarto e quase que eu tive
outro (risos). (…) Fui tomar banho e foi só a água cair, dois minutos
de banho, começou tudo escurecer e faltar o ar. (…) Tava tudo
girando, não conseguia respirar e o batimento tava muito acelerado.

A esse respeito, tem-se a citação a seguir que pode dar início à análise do caso:

Conhecemos o significado e a intenção dessas crises semelhantes à morte.


Significam uma identificação com uma pessoa morta, seja com alguém que está
realmente morto ou com alguém que ainda está vivo e que o indivíduo deseja que
morra. O último caso é o mais significativo. A crise possui, então, o valor de uma
punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra pessoa e
estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que,
para um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai, e de que a crise (denominada
de histérica) constitui assim uma autopunição por um desejo de morte contra um
pai odiado (FREUD, 1928, p 211)

Pode-se fazer uma referência ao que João relata em sua crise como sendo o medo da
punição por desejar – é claro que de forma inconsciente – a morte do pai, seu rival, aquele que
castra, que não permitia sua união com a mãe em termos simbólicos. Em vários pontos das
sessões é possível perceber o amor pela mãe, como quando ele afirma que:

P: Mãe é uma pessoa que não se pode desrespeitar.

Nessa primeira sessão, João fala da morte de seu pai e afirma que era "apegado" (SIP)7
a ele. O interessante em relação a essa primeira demanda trazida, é que, em nenhuma outra
sessão o paciente trouxe a temática das crises, sendo que, nessa mesma sessão primeira
afirmou já estar bem. Em suas palavras:

P: Agora já to melhor, abaixo de remédios (…) sei que to muito


melhor com os remédios.

O que acontece é que, no mesmo momento em que construía um discurso afirmando


estar "tranqüilo" (SIP) trazia fatores, em sua fala, que mostram fatos que facilmente
favoreceriam o aparecimento de angústia. Isso pode trazer a questão da negativa, ou seja, traz
um discurso negando ou recusando a existência do afeto – angústia – instalado. Isso pode ser
mais bem entendido quando acompanhamos sua fala:

7
Abreviação para a expressão: "segundo informações do paciente".
28

P: Agora eu sei que pode dar um infarto em qualquer um, qualquer


hora, mas fico tranqüilo. (…) Dessa última vez que fui (para o Rio de
Janeiro) fiquei tranqüilo, deitei no banco e dormi. Por eu não ter
dinheiro compro umas coisas no Paraguai e levo pra vender no Rio e
entrou um monte de muambeiro no ônibus, pensei: 'se a polícia parar
vai apreender tudo, mas eu só tinha duas malinhas de rodinha, fiquei
tranqüilo.

Quando João traz o significante “polícia”, suscita um representante do falo, ou seja, da


lei, do poder e, em última análise, do Nome do Pai. É nesse momento que aparece a angústia
em seu discurso, que, como foi dito é negada conscientemente.
Pode-se pensar que, mesmo as crises tendo desaparecido, o paciente buscou e
prosseguiu no tratamento. Isso mostra que o que é dito do sintoma neurótico é fato: o real
sintoma – aquele que poderá ser analisado na terapia – está encoberto, esperando para ser
decifrado por meio do percurso da cadeia associativa, trazida no discurso do paciente.
Ainda no que diz respeito às crises apontadas por João, pode-se verificar que antes
mesmo desse fato ocorrido na circunstancia da morte de seu pai, outra crise já havia ocorrido.
O paciente, porém traz primeiro para a terapia o relato da crise sofrida quando seu pai está na
iminência da morte. Mas faz-se necessário mostrar o relato da crise ocorrida ainda antes desta,
contada depois por João:

P: Tinha um trabalho grande pra fazer e os donos da empresa


viajaram e falaram pra mim segurar as pontas. Só que deu uns
problemas nas máquinas e vieram pra cima de mim, perguntando o
que fazer. Só que eu fui ficando muito preocupado, tava tudo na
minha mão. Aí minha pressão subiu e eu fui pro hospital. Me deram
remédio pra baixar a pressão mas só que a causa era ansiedade aí
conforme o remédio da pressão foi fazendo efeito eu fui ficando
irritado, com uma coisa ruim no corpo, vontade de quebrar tudo o
que tinha na frente.

Fica claro que tal crise ocorreu no momento em que o paciente se deparou com a
situação de ter o controle nas mãos. A questão do controle é bastante presente no discurso de
João, sendo um indício do que poderíamos buscar sobre sua repetição.
No que se refere ao conceito de Repetição, que para Freud (1914) é a forma de
recordar do paciente, pode-se apontar para alguns trechos surgidos nas sessões. O paciente
repete aquilo que foi recalcado na forma de ações (acting out). O trecho que segue mostrará
29

aparições de sinais de repetição, principalmente sobre a questão do “controle”, que são


analisados adiante:

Primeira sessão:
P: Eu sempre fui corajoso. Me virava, tinha três empregos uma
época. Depois que perdi o controle.
P: (…) eu me sinto controlado. Até a maneira que eu falo ou uma
brincadeira com os outros, que eu sou bem palhação, ela (esposa)
fica dizendo pra eu não fazer.

Segunda sessão:
P: Ai, ela (esposa) fica me controlando em tudo.
P: Eu acho um saco ela fica no meu pé falando que tenho que
estudar. E os meus estudos, Suzane, não ta indo. Eu não consigo, sei
lá. Parece que alguma coisa não deixa eu estudar. Quando vou pro
Rio eu consigo estudar, levo a sério (…) Mas aqui não consigo, sei
lá.
Estagiária: Diga o que é diferente aqui e no Rio, independente da
questão do estudo.
P: Ah, eu gosto daqui. Mas no Rio estão as pessoas que eu amo, a
minha família, lá tem o meu filho que eu sou amarradão. E aqui tem
essa cobrança.

Terceira sessão:
P: Eu não sei se é isso que eu quero, ficar com uma pessoa tão
diferente de mim.

Quarta sessão:
P: Quando eu era criança, minha mãe era muito exigente, tinha que
ser tudo certinho. Se a gente fosse numa festinha, nunca que
começávamos a comer antes dela mandar. (…) Minha mãe
controlava tudo, tinha uma mania de limpeza louca. (…) o controle
era tão grande que eu sempre tive medo do não. Pra ir brincar tinha
que ser por perto da mãe, não dava pra ir longe.

Nesses fragmentos é possível notar que o paciente se queixa de um controle vindo da


esposa, colocando em dúvida o desejo de ficar com essa mulher. Ocorre que a esposa traz a
característica pela qual o paciente define a mãe – o controle. Ele se questiona a respeito do
motivo que o une a esposa, sem perceber que está amarrado em sua repetição. O "medo do
não" afirmado no discurso consciente está ligado ao amor por este “não” que representa, em
última análise, a figura materna. Bem se sabe que o medo e o repúdio estão unidos ao amor e
ao desejo para a Psicanálise. Outro fragmento do discurso que pode demonstrar a forma com
que João se amarra no seu desejo é o seguinte:
30

P: Se ela achar que não dá mais, eu falei, tem que me extraditar. A


gente brinca com esse termo, não cabe no meu caso, mas a gente
brinca, ela às vezes fala: ‘olha que eu vou te extraditar’.

P: A Roberta8 tem essa característica de querer ter o cabresto na


mão.
E: Quem mais é assim? Você conhece mais alguém?
P: Conheço. A mãe do Joãozinho9 era cheia de achar que mandava e
que era minha dona. Aí eu fui com calma até que saí do cabresto, me
mandei.
E: E aí entrou em outro?
P: É entrei. Mas eu não quero cabresto. Eu não gosto.

Em outras sessões, João relata:

P: Eu penso que eu deveria ir embora, que isso seria o certo. Mas eu


não sei se é o momento ainda. As vezes eu fecho os olhos e imagino:
como seria se eu me auto-extraditasse? Eu consigo ver que eu
voltaria pro Rio, arrumaria um emprego, continuaria com meus
estudos, estaria perto do meu filho. Mas aí eu penso que eu já fiz
amigos aqui, eu gosto da cidade (...) e depois tem a Andréia, minha
psiquiatra e você, o nosso trabalho aqui.

P: Eu não agüento mais essa posição de, vamos dizer assim,


submisso.

Esses fragmentos mostram como, por via consciente, João não quer o controle imposto
por sua mãe e pelas outras relações. Contudo, não conseguindo sair dessas amarras, evidencia
o desejo do sujeito do inconsciente. O paciente não conseguiu perceber as contradições de seu
discurso, mas elas ficam claras, já que se queixa de um controle desde a infância, mas repete
frases como:

P: Eu acho que se meus pais tivessem me cobrado mais eu teria


gostado de estudar.

Ainda no referente às repetições do sujeito e suas amarras no desejo, foi possível


encontrar discursos como:

8
Nome fictício para a esposa do paciente.
9
Nome fictício para o filho do paciente, que possui o mesmo nome dele e é chamado no diminutivo.
31

P: Eu tenho meus erros, até de minha criação, com um pai que fez
muito, mas errou em algumas coisas. Quando a gente queria
trabalhar ele perguntava quanto ia ganhar e acabava pagando pra
gente não trabalhar.

Aliado a essa frase, tem-se o fato de João depender financeiramente da esposa, com a
qual fez um “combinado” (sip) para apenas estudar e não trabalhar. Ao se encontrar as
repetições do sujeito em análise é preciso trabalhar com elas através de suas associações com
a resistência e a transferência. O manejo da transferência é a base do tratamento psicanalítico.
Esse conceito se refere aos sentimentos e atitudes transferidas ao analista e que são a forma
que o paciente se relacionou em um primeiro momento com as figuras paternais. A
transferência pode ser negativa ou positiva conforme auxilia ou impede o avanço do
tratamento e ela pode se manifestar de forma hostil ou afetuosa para com o analista, como já
foi mencionado anteriormente. Tanto a hostilidade quanto o afeto dirigido pelo paciente ao
terapeuta podem servir de veículo para o andamento da análise e isso depende da forma como
o terapeuta faz o seu manejo. Alguns momentos das sessões mostram o estabelecimento da
transferência no caso:

E: (…) Vou te atender duas vezes por semana, aí te espero na quinta


às 11h, tudo bem?
P: Ta legal, assim eu te vejo mais vezes. Você sempre morou aqui?
E: Por que você quer saber?
P: Por causa do frio.

P:Você é católica? Não, né?!


E: Você tem perguntado bastante sobre mim, o que será que isso quer
dizer?
P: Desculpa, é que a gente fica curioso!
E: Tudo bem, é que mesmo essa curiosidade deve ser analisada aqui.

P: Oi. Então é daí que você vem?(observando que a estagiária sai da


porta que dá acesso à sala dos alunos)
E: Você tinha pensado sobre isso?
P: É, eu pensei: de onde será que ela vem?

A transferência apareceu, em todo o decorrer do tratamento, sob forma afetuosa e


amorosa, sendo marcado por falas que poderiam estar relacionadas ao que Freud chamou de
amor de transferência. Segue alguns fragmentos desse tipo de discurso emergido nas sessões
com João:
32

P: Pra namorar eu sempre tive problema porque eu não conseguia


chegar pra garota e dizer assim: Suzane, eu to a fim de você, quero
ficar contigo.

P: Eu até pensei: some, manda ligar que não vai ter, tudo bem. (fala
em encontro posterior a uma sessão desmarcada através do secretário
do CPA)

Tal tipo de transferência da mesma forma que permitiu um enlace entre a estagiária e o
paciente, também se prestou a serviço da resistência. Isso porque João deixava de questionar e
se aprofundar acerca de seu desejo por estar envolvido com questões que desejava saber sobre
a estagiária. Dessa forma, o paciente não corresponde ao tratamento, já que como Freud
(1914) advertia, o ele passa a aceitar tudo o que lhe é dito, deixando de lado os sintomas e por
vezes afirmando que está bem.

P:Hoje eu quero te falar de coisa boa. As pessoas vêm aqui e só


devem contar coisa ruim. Eu também só falo coisas ruins mas eu
tenho coisas legais pra contar.

P: Você gosta da feirinha?


E: Como?
P: Aquela feirinha que tem lá no centro. Você gosta?
E: Por que você ta perguntando?
P: Porque eu gosto.

P: Eu queria vir aqui, sentar e só ouvir você falar de sua vida.


E: Ah é? Você pensa como é a minha vida?
P: Penso.
E: E o que você pensa?
P: Eu penso que você também deve ter problemas, como todo mundo.
Eu penso que você é uma boa estagiária. Quando me falaram daqui,
que eu ia ser atendido por uma estagiária, eu pensei: “ihh, não vai
ser legal”. Mas aí, você tem uma postura tão profissional que eu
acho bem legal.

P: Eu to até tendo problemas lá em caso por tua causa. É que a


Roberta10 vai entrar de férias e o Joaozinho11 vai ta aí e ela quer
viajar pro Rio. Mas eu não queria te perder.
E: Me perder?

10
Nome fictício para a esposa do paciente.
11
Nome fictício para o filho do paciente.
33

P: É (risos) é que eu sei que com três faltas consecutivas eu perco a


vaga mas eu não quero te perder!
E: João, você perde a vaga com três faltas sem justificativa, mas
como você ta me dizendo que tem interesse em continuar e ta
demonstrando desejo pelo tratamento, vou segurar sua vaga.
P: Ai, que alívio! Assim eu não te perco!

Pode-se pensar, por exemplo, que quando o paciente diz: "não queria te perder", é
possível que esteja manifestando o medo da perda do amor da mãe. O medo da perda do amor
do outro é a própria angústia de castração (medo de ser castrado como o outro foi). Essa
interpretação não teve bases mais fortes para ser reconhecida como verdadeira, já que a
estagiária não questionou esse significante – perda – no momento em que foi dito pelo
paciente. Mais adiante, esse trecho será retomado, para tratar de questões referentes ao desejo
do analista e ambição terapêutica.
A transferência surgiu ainda como forma de vivenciar, com a estagiária, situações,
inibições e angústias experimentadas fora do ambiente terapêutico. Exemplo disso era o medo
que João sentia de ser “extraditado” – em suas palavras – pela esposa, que se fez presente em
falas dirigidas à estagiária, como:

P: Tem que ter alguma mudança em mim senão daqui um pouco


ninguém mais agüenta. Aí você também me dispensa daqui, não vai
me agüentar mais também.

P: Você como estagiária, pode assim, se eu chegar num nível, não sei
como vocês chamam, de me dispensar, você pode?

Além do manejo da transferência, no sentido de decifrar o sintoma latente e tornar


consciente o que está recalcado, a terapia trabalha com elementos em que o inconsciente se
manifesta, ou seja: os lapsos, chistes, atos falhos, sonhos e sintoma. São as chamadas
formações de compromisso que escondem e ao mesmo tempo dão demonstração do que está
inconsciente. Um exemplo de ato falho produzido por João está no trecho a seguir, quando
este falava do medo que sentia em suas crises:

P: Mas agora o medo não tem mais tanta intenção. Antes era maior.
E: Intenção?
P: É, não sei se coloquei da forma correta, mas eu quis dizer que
antes era maior, mais intenso.
34

E: Mas você disse a palavra intenção. O que é intenção?


P: Acho que falei errado mesmo.
E: Eu to te questionando sobre a palavra porque na terapia eu
trabalho com as palavras que surgem. Você queria dizer intensidade,
mas disse intenção. Quero que me diga o que significa para você
essa palavra, porque se você trocou de alguma forma não foi por
acaso. Me diga os significados de "intenção".
P: Eu não sei, troquei mesmo por alguma razão, mas não sei.

Esse fragmento é da primeira sessão com o paciente, e foi necessário explicar como
funciona a terapia, na tentativa de que João trouxesse associações que dessem significado ao
seu ato falho. Isso não ocorreu, pode-se pensar, por estar na fase de entrevista preliminar – na
qual o sujeito não retifica, ou seja, não consegue ainda uma modificação em relação a sua
demanda e, portanto não pode escutar o seu sujeito “falando” – por conta de resistências ou
por não ter sido estabelecida transferência. Outro exemplo de ato falho ocorrido nas sessões
foi o seguinte:

P: Quando eu vim pra Cascavel não era pra estudar. Quer dizer era
só pra estudar, não trabalhar.
E: Você disse que veio pra não estudar.
(...)
P: É, mas eu me enganei.
E: É com essa troca que a gente trabalha.
P: Ah é? Eu não sei... Eu nunca fui de estudar mesmo. Eu não
consigo.

Nesse momento João já consegue perceber que a troca pode ter algum sentido, mas
não consegue fazer maiores associações.
Até aqui, alguns conceitos psicanalíticos foram demonstrados enquanto presentes no
discurso do paciente. Resta agora embasar a hipótese diagnóstica feita quanto à estrutura do
paciente no referente aos elementos do seu discurso. Algumas indicações podem ser feitas,
mas a princípio, seguem-se as falas para, em seguida, serem feitas as devidas colocações.

P: Fui tomar banho e foi só a água cair, dois minutos de banho,


começou tudo escurecer e faltar o ar. (…) Tava tudo girando, não
conseguia respirar e o batimento tava muito acelerado.

P: Quando entrei no carro, tava tão nervoso que chorei e senti um


bolo na garganta, naquele dia sim poderia ter tido um infarto.
35

Esses dois fragmentos podem fazer alusão ao que é chamado de conversão histérica,
ou seja, quando o afeto sexual é deslocado para o corpo físico do neurótico. Seguem mais
fragmentos:

P: Eu pensei "meu Deus, que mulher é essa? Se faz isso com o filho, o
que não vai fazer com o marido?"

Esse trecho estava inserido em um discurso no qual o paciente relatava que a mãe de
seu filho não tinha paciência, alterando-se por conta do choro da criança recém-nascida. Ao
dizer “que mulher é essa” o paciente traz indícios de uma identificação histérica, já que é
como se perguntasse “o que é ser uma mulher?”. Isso também pode ser vislumbrado no trecho
abaixo, quando o paciente fala de um ex namorado de sua esposa:

P: E mesmo com isso, com o relacionamento que a gente sabe que


não dá mais, não consigo tomar uma atitude. (...) Eu namorei com
ela cinco anos e um dia ela terminou comigo12 e eu fiquei muito mal,
sofri muito. E ela não (...) Aí ela começou a namorar um outro cara e
se apaixonou muito por ele, mas ele não agüentou (...) e terminou
com ela. (...) Sempre foi ela que terminou os namoros e esse cara foi
ele que terminou e ela sofreu muito, foi difícil pra ela. (...)E eu quero
terminar mas fico com medo de voltar pro Rio.

Ora, João diz querer terminar o relacionamento e não conseguir e relata que aquele por
quem sua esposa foi apaixonada sim foi capaz de terminar o namoro. Em outras palavras,
João vê no ex namorado de sua esposa a força de atitude que gostaria de ter. O paciente diz
não ser um “homem de atitude”, mas o homem que sua esposa realmente amou sim era.
Nesse momento, o paciente se questiona – como Dora fez – o que é ser uma mulher e,
mais que isso, se pergunta o que é ser um homem. Aí está implicada a sexualidade infantil
que não consegue diferenciar exatamente os sexos, buscando tais definições no Outro. Ainda
sobre a sexualidade do histérico, podem-se apontar os seguintes fragmentos:

P: Sobre a minha esposa, a gente se da muito bem, mas eu não sei se


é amor mesmo. Às vezes parece que é como uma mãe e não esposa.

12
João namorou Roberta por cinco anos e o relacionamento teve fim. Permaneceram algum tempo separados,
ambos tiveram outros relacionamentos e João teve um filho. Alguns anos depois, voltaram a se relacionar.
36

P: Pra namorar sempre tive problema (…) eu tinha, não era


vergonha, como é a palavra? Timidez. E engraçado que, do meu jeito
eu sempre consegui ficar com muita mulher. Se for ver, em termos de
número, eu já beijei mais de 600 mulheres.

Aqui é possível fazer uma pausa para analisar a questão da sexualidade no histérico.
Para melhor esclarecer, é interessante fazer uso das palavras de Násio (1991) ao afirmar que
"há homens e mulheres excessivamente preocupados com a sexualidade, procurando erotizar
toda e qualquer relação social, e de outro lado, eles sofrem – sem saber porque sofrem – por
ter que passar pela experiência do encontro genital com o sexo oposto" (p 45). Na primeira
fala, temos o paciente falando que vê em sua esposa a figura de uma mãe – que segundo a lei
da proibição do incesto não pode ser tida como amante. Essa visão de João mostra a renúncia
e a aversão pelo ato sexual de fato – contato genital. Em contrapartida, em sua segunda fala,
mostra o quanto pode ser sedutor e preocupado com a sexualidade. É exatamente dessa forma
que se dá a sexualidade histérica: infantil, com uma busca insaciável por ela, mas ao mesmo
tempo recusando o ato da união genital em si. A vergonha colocada pelo paciente (porque
quando nega está afirmando, já que é a palavra utilizada) pode ser substituta da aversão à
sexualidade, mas essa hipótese também não pode ser concluída, já que o paciente falou pouco
a respeito da sexualidade no sentido genital. A única passagem na qual se referiu a vida
sexual foi a seguinte:

P: Desde sempre eu era muito ligado sexualmente e quando a gente


começou era tudo maravilha, porque ela tinha ciúmes eu acho da
minha ex. E eu comparava as duas mesmo e adorava ela. Só que
depois de um tempo ela mudou. Eu procurava ela, chegava todo
taradão e ela começou a se esquivar. Eu ficava louco, cheio de tesão
e ela não queria. Aos poucos eu fui entendendo e aceitando, só que
hoje acontece o seguinte: ela quer e eu não quero. A gente ter
relação é muito raro, porque eu não consigo, não quero.

Pode-se até levantar uma hipótese acerca do desejo que se mantém insatisfeito no
histérico, mas isso também não traz conclusões definitivas sobre a questão da sexualidade
histérica nesse caso. Mas isso abre espaço para fazer referência à falta inerente à condição de
neurótico e, para tanto, pode-se citar como outro exemplo a seguinte fala:

P: Eu falei pra ela "pô, Roberta, quando eu fico longe de você eu fico
tão bem, me dá saudades, eu sinto que gosto mais de você".
37

Pode-se fazer a seguinte análise: quando o objeto de desejo está longe, o neurótico
quer mais que nunca alcançá-lo. Porém, assim que o objeto pode ser obtido, aparece o medo
da concretização do desejo – que, como já foi mencionado, colocaria em risco a integridade
do ser. Ainda sobre isso, pode-se apontar o seguinte trecho:

P: Eu não sei do que a Roberta reclama. Ganha R$4500,00 por mês


tem a casa que tem... eu não entendo. Nunca ta bom.
E: Você lembra que você também me dizia que estava numa posição
privilegiada, que muita gente queria estar no seu lugar? Antes você
dizia que gostava disso, agora não quer mais.
P: Não, mas é diferente. Deixa eu ver se é diferente. É tem algumas
semelhanças. São situações diferentes mas tem a ver sim. Espertinha
você, heim?

Fica clara, com os argumentos colocados acima, a definição da hipótese diagnóstica


enquanto histeria. Ocorre que alguns traços obsessivos puderam se fazer notados no discurso
de João e isso não pode deixar de ser mencionado. Seguem falas emergidas em diferentes
sessões para que em seguida sejam feitas colocações a respeito destas:

P: Eu e a Roberta uma vez locamos esses DVD´s do curso da PRF e


gravamos. Eu sei que isso não é legal, que é crime, mas ninguém
precisa ficar sabendo.

Nesse primeiro fragmento, observa-se a questão da lei, que era algo bastante apontado
por João. Ele relatou passagens em que tentava ultrapassar a lei, mas sempre com medo, como
no caso em que fala de compras de produtos no Paraguai para revender no Rio de Janeiro, ou
de pipas que comprou, na infância, de um garoto que as roubava. Essas passagens podem ser
vistas como demonstrações da tentativa de suplantar a lei, o que é evidenciado nas neuroses
obsessivas, como mostra Freud (1909) em escritos como O Homem dos Ratos. Nesse estudo,
Freud aponta para a natureza das idéias obsessivas que, segundo ele, podem ser “desejos,
tentações, impulsos, reflexões, dúvidas, ordens ou proibições”.
Os indícios obsessivos no discurso de João podem ser vistos em mais falas que
mostram a relação dele com a lei – representada pela figura do pai – e o apelo ao Nome-do-
Pai.
38

P: Eu não suportava ver aquilo, porque eu era acostumado a ver meu


pai lá no exército, na mesa dele, mandando e desmandando. E ali ele
ficava daquele jeito, numa empresinha, sendo que ele nem precisava
trabalhar.

P: Meu pai nunca teve orgulho dos filhos, nunca viu muito futuro na
gente. Ele criou três burrinhos, sabe.

P: Foi muito legal porque eu sempre via meus primos falando com
meu pai: “tio João”. E aí quando eu ouço “tio João”, só que pra
mim, é muito legal.

E: Ao que você acha que se deve essa sua engrenada nos estudos?
P: Eu não sei. Na verdade tenho uma fé grande e acho que meus
pedidos estão sendo atendidos.

P: Foi até engraçado que semana passada não fui na missa e acabei
caindo de moto e discutindo com ela.

João mostra que era insuportável ver a figura paterna em uma situação em que não
estivesse a frente da lei: mandando e desmandando. Ao mesmo tempo, faz menção ao seu pai
quando diz que não se deu bem nos estudos porque este nunca o incentivou. O terceiro trecho
é declarado pelo paciente com demonstrações de estranheza por estar no lugar do pai. Os
últimos dois fragmentos mostram o apelo a Deus – representação do Nome-do-Pai – para
conseguir o que deseja. O termo Nome-do-Pai é um significante introduzido nos escritos de
Lacan. O Nome-do-Pai é uma releitura do que em Freud era visto como Édipo e Lacan (1957-
1958) aponta que tal significante é a metáfora paterna.
O paciente mostra em seu discurso a posição de uma criança frente à autoridade da
figura paterna o que fica evidente nas seguintes falas:

P: Eu to um pouco atrasado hoje, né? (...) eu falei: vou mesmo assim,


mesmo que eu leve uma bronca.

P: A Roberta sempre me fala que não é pra encher tanto o saco dela,
que é pra parar com essas brincadeirinhas, porque a menina precisa
ter o espaço dela13. (...) É chato você ver que é chato (...) parece que
é meu desde criança isso. Eu lembro que uma vez eu levei um baita
esporro do meu pai por ficar pentelhando os outros.

P: Aí eu fiz uma promessa que eu vou me comportar.

13
Ao falar das brincadeiras que faz o tempo todo com a amiga que mora com eles.
39

P: Eu não consigo imaginar como uma criança, como um ser


humano pode ficar bem sem o pai.

P: (...)Mas eu já fui feliz.


E: Quando?
P: Quando era moleque. Na verdade isso mudou quando a mãe do
meu filho engravidou. (...)Ter um filho é um peso muito grande.

E se é assim que o paciente se apresenta, é com isso que se trabalha: o sujeito do


inconsciente. Sobre isso, Miller (1991) enfatiza que a psicanálise não se preocupa com o
adulto que chega ao consultório, mas sim com a demanda trazida onde está sempre a criança
no adulto. Além disso, é importante ressaltar que

(...)o fato de um homem ou uma mulher se apresente demandando uma análise não
é devido a que ele ou ela seja uma pessoa grande (...) mas justamente porque não
conseguem atingir este ideal é que vem dirigir-se a uma pessoa sobre a qual supõe ,
bem erradamente, ter atingido esse famoso ideal (p. 136).

Isso fica evidenciado quando João se dirige à estagiária nos seguintes termos:

P: Deve ser difícil ter que encarar uma situação assim de profissional
sem ter terminado a formação por completo.

É como se o paciente questionasse: “como você consegue assumir essa posição e eu


não consigo?” E isso é repetido quando fala de sua esposa que consegue estudar e ele não
consegue, sendo que precisa dela para ensiná-lo.
É preciso falar ainda que o trabalho em Psicanálise é antes de tudo uma tarefa que lida
com seres humanos e aí está implicada a questão ética. Como foi bem esclarecido
anteriormente, a Ética em Psicanálise é distinta da Ética enquanto Moral, mas se propõe da
mesma forma a um respeito para com o sujeito – respeito esse que se manifesta na forma de
escuta. E ao falar de ética em Psicanálise é preciso que se enfatize o conceito de Desejo do
Analista. Por vezes o trabalho aqui apresentado se fez dificultoso para a estagiária. A falta de
experiência prática fez com que intervenções no sentido de ambição educativa aparecessem,
como por exemplo, quando a estagiária dá explicações e corta a livre associação do paciente:

P: Me perdi do que tava te falando quando troquei a palavra.


40

E: Você estava me dizendo que seu medo não era mais tão grande.

Outras dificuldades surgiram por aspectos do caso ir ao encontro de conteúdos da


estagiária. A princípio, a estagiária relutou em pegar o caso, por se tratar de um paciente do
sexo masculino. Isso, por razões trabalhadas mais tarde, trazia a sensação de que a estagiária
se sentiria infantil, inferiorizada e impotente frente a um homem no consultório. Aí é possível
perceber a questão do desejo do analista, enquanto aquele que deseja ser o sujeito suposto
saber. Ora, quem pode saber algo a respeito da verdade do paciente é somente ele mesmo.
Superada tal resistência, o tratamento teve início e seqüência, sendo permeado de
obstáculos principalmente por conta da transferência acentuada. Isso se mostrou em
intervenções que poderiam ter sido feitas e não foram, quando o paciente surpreendia a
estagiária com discursos como:

P: Eu to até tendo problemas lá em caso por tua causa. É que a


Roberta14 vai entrar de férias e o Joaozinho15 vai ta aí e ela quer
viajar pro Rio. Mas eu não queria te perder.
E: Me perder?
P: É (risos) é que eu sei que com três faltas consecutivas eu perco a
vaga mas eu não quero te perder!
E: João, você perde a vaga com três faltas sem justificativa, mas
como você ta me dizendo que tem interesse em continuar e ta
demonstrando desejo pelo tratamento, vou segurar sua vaga.
P: Ai, que alívio! Assim eu não te perco!

Outro fator interessante de mencionar é a ocorrência de uma sessão em que o paciente


demandou, indiretamente, muitas respostas e atitudes da estagiária. Isso porque, nesta sessão,
João apareceu mais queixoso que nas outras, repetindo várias vezes a expressão “eu não
consigo”. Isso resultou em mal estar para a estagiária, o que pôde ser percebido depois como
uma dificuldade em lidar novamente com a impotência frente a dor do paciente. Mesmo
sabendo da teoria que diz que o analista não dá respostas à demanda do analisando, a
estagiária provou mais uma vez da ambição terapêutica, sentindo-se mal por não ser capaz de
atender aos apelos do paciente.
Tais fatores só não se tornaram empecilhos maiores por conta da discussão em
supervisão, da análise feita pela estagiária e pelo desejo e investimento no caso atendido.

14
Nome fictício para a esposa do paciente.
15
Nome fictício para o filho do paciente.
41

Apesar da resistência primeira, a estagiária se viu bastante dedicada à escuta do sujeito do


inconsciente que se dispôs a falar para aquela que representava o sujeito suposto saber, sem
nada saber em verdade.
Ao fazer a análise do percurso de João desde a primeira sessão até a última, é possível
perceber que ele não conseguiu fazer um grande giro no discurso, em termos de retificação.
Isso pôde ser vislumbrado em situações como por exemplo: João consegue perceber que
Roberta mantém um controle sobre ele, mas não se questiona qual sua participação nisso, nem
tampouco consegue ver que não é verdade absoluta quando diz que não gosta desse controle.
Mas não se pode deixar de notar que mudanças foram feitas e que, no mínimo, muitos
questionamentos foram levantados. Exemplo disso é a mudança relativa ao discurso do
paciente que por vezes afirmava não querer “perder” a estagiária – ou o tratamento – o que é
estendido para outras relações. Nas últimas sessões o discurso se mostrou da seguinte
maneira:

P: Mas eu não queria te deixar.


E: Mudou a palavra né? Antes era “eu não quero te perder”. Agora
é “eu não quero te deixar”.
P: Perder eu tinha mais medo. Eu tinha medo de te perder. E deixar
parece que é assim, que pode acontecer alguma coisa e eu te deixar.

Na mesma sessão:
P: (...) eu mudei algumas coisas e agora não teria mais aquele medo
de ficar sem ela (esposa).

Na última sessão, como forma de deixar questionamentos ao paciente, sugerindo a


continuidade de um tratamento, a estagiária fez um apanhado das questões levantadas e não
respondidas durante as sessões:

E: Você levantou vários questionamentos aqui na terapia e com


certeza não foi um trabalho concluído. Você se questionou sobre o
controle e a sua dependência com a Roberta, você falou sobre suas
crises, que não foram por acaso. Uma quando teve que assumir uma
posição de controle na gráfica e outra na morte do seu pai. Inclusive
a morte do seu pai não vejo que é um luto elaborado. Então, já que
você até comentou, sugiro que você dê continuidade a esse trabalho.

Quanto à questão da transferência apresentada sob forma de questionamentos por parte


de João acerca da estagiária, na última sessão foi possível fazer uma intervenção mostrando
que o paciente fala de si, sem perceber:
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P: E aí, Suzane, quer me falar um pouco de você?


E: O que você quer saber?
P: Ah, tem tanta coisa...
E: Então pergunta!
P: Ah, eu queria saber como é a vida de estagiária, o que mais você
faz, se você pretende seguir nessa carreira, se você tem irmão, se tem
namorado, se você é casada, se mora bem ou mora longe da família.
E: Você percebe que quando me faz perguntas você pode estar se
questionando?
P: Como assim?
E: Você quer saber por exemplo se eu vou seguir nessa carreira, e
você? Quer seguir que carreira? Me pergunta se eu tenho irmão, ou
se tenho namorado ou sou casada. E você? É casado? Como é a sua
relação?
P: (silêncio).

A análise do caso aqui apresentada torna possível vislumbrar os conceitos freudianos


na prática, de modo a comprovar os ditos da Psicanálise. Quanto aos resultados e conclusões,
estes serão apresentados adiante. No momento, faz-se conveniente rever ainda o que Freud
(1910) fala a respeito do tratamento que tinham os histéricos, naquela época, por parte dos
médicos. O autor afirma que os médicos não conseguiam explicar o que ocorria com o
paciente histérico, já que organicamente não se observava nada de anormal. Para Freud, o
médico, que "não pode compreender a histeria, diante da qual se sente como um leigo,
posição nada agradável a quem tenha em alta estima o próprio saber" (p 279), acreditava que
os histéricos estavam simulando e exagerando seus sintomas, sendo que os privavam de
qualquer interesse de sua parte. (FREUD, 1910). Nesse sentido, pode-se fazer uma alusão aos
histéricos de hoje, que continuam sendo acusados de simulação, por suas famílias e por
muitos médicos que não querem admitir a existência dos processos inconscientes no ser
humano. Isso, segundo o paciente do caso aqui descrito e analisado, ocorreu com ele, sendo
que sua esposa ignorava suas crises, insinuando que seriam “frescuras”. Nesse sentido, e para
finalizar esta análise do caso, é importante que se diga que quando se recebe um paciente
histérico na clínica, é fundamental que se tenha um olhar sobre ele enquanto alguém que
possui um sofrimento que merece ser ouvido e dirigido para análise. Seja qual for a queixa
trazida, sempre existe algo encoberto e é nisso que o analista deve apostar.
43

4 APRECIAÇÃO SOBRE O DESENROLAR DAS ATIVIDADES E DOS DESAFIOS


ENFRENTADOS

A experiência psicoterápica experimentada nesse estágio foi de grande valia por


possibilitar bem mais que a pura obtenção do grau de psicóloga à estagiária. As dificuldades e
possibilidades apreciadas no decorrer da prática tornaram possível vivenciar os
conhecimentos teóricos adquiridos no decorrer da graduação, bem como permitiu o
questionamento a cerca de estigmas sobre a Psicanálise, a histeria e o próprio ser humano.
Um dos maiores desafios enfrentados foi quanto à vivência da estagiária com o
atendimento clinico, no qual foi possível estar cara a cara com o dito desejo do analista. Por
vezes, as palavras pronunciadas pelo paciente foram difíceis sem que a estagiária soubesse o
motivo de tal dificuldade. Outras tantas vezes foi preciso lidar com insegurança de quem
sabia apenas o básico da teoria e, pela primeira vez, se deparava com um paciente que lhe
dizia “você é o sujeito suposto saber”. Tais questões foram, em sua maioria, questionadas e
superadas em supervisão. O aprendizado final foi maior que o esperado a princípio e a
estagiária pôde finalmente descobrir que para ter a melhor escuta, é preciso deixar a teoria do
lado de fora do consultório e ouvir apenas o que é dito, sem nenhum pré-julgamento. Para
além de tudo isso, o trabalho aqui apresentado é fruto de amor e dedicação para com a clínica
e principalmente para com o ser humano.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao chegar ao final do relato do Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica,


baseado na Psicanálise, tem-se a sensação de dupla satisfação. Primeiro por conta dos
conhecimentos teóricos que foram somados ao que já se tinha até o início do estágio. E
também pelo percurso prático que trouxe a possibilidade de vislumbrar os ditos freudianos de
forma a demonstrar que a teoria Psicanalítica contempla uma importante porção do campo do
conhecimento acerca do ser humano.
A prática clínica aqui descrita permitiu experimentar a existência de conceitos teóricos
como o Inconsciente e suas manifestações. O paciente cujo caso foi relatado trouxe com
clareza as demonstrações da histeria, bem como os traços obsessivos existentes. Até o
momento da interrupção do tratamento, o paciente não entrou em análise, permanecendo em
suas demandas de busca pelos “culpados” pelas suas angústias. Por esse motivo, até a última
sessão, o paciente se queixou de uma dependência e de não gostar do controle exercido por
sua esposa sobre ele. Entretanto, ele não conseguiu perceber que tal dependência e controle
existem desde muito antes em sua vida – com seus pais, com seus outros relacionamentos.
Fica a questão: ele não gosta desta situação? Se não gosta, o que o amarra a ela? O que se
pode afirmar é que o “não gostar” é sentimento consciente e racionalizado. O Inconsciente
abriga coisas que não são simples de serem compreendidas a princípio.
Isso quer dizer apenas que o paciente não ouviu seu sujeito falar, sendo que isso
ocorreu por conta de fatores que vão além do que pode ser descrito aqui. Da parte do desejo e
investimento da estagiária no caso, isso foi buscado a cada sessão, de forma que o paciente foi
ouvido enquanto um sujeito desejante. Nesse sentido, através do atendimento deste caso, a
estagiária pôde experimentar situações que com certeza permearão seu futuro profissional:
angústia, insegurança, frustração, superação e realização.
Por tudo isso, é possível enfatizar que a Psicanálise se mostra enquanto um método
(uma maneira de fazer), uma técnica (conjunto de processos) e também uma teoria (um
saber). É um conhecimento a respeito da mente humana e ao mesmo tempo um fazer ou uma
prática para o alívio do sofrimento e das enfermidades psíquicas. É um fazer que se diferencia
de outras práticas psicoterápicas. Se é ciência, ou se tem a pretensão de um dia vir a ser, esse
é um assunto que poderia ser tema de um escrito em específico, não cabendo discutir aqui. O
que se pode afirmar é que a Psicanálise é complexa e mostra sua finalidade e seus resultados
na prática clínica, como ficou claro no relato do Estágio Supervisionado em Psicologia
45

Clínica aqui exposto. É sabido que muito se fala contra a Psicanálise. Acredita-se, porém, que
com o que foi relatado neste trabalho, surgem questões que trazem o direito de tal método,
técnica ou teoria ser no mínimo respeitada.
Conclui-se, desta maneira, o relato da prática em Psicologia Clínica exigida para
graduação em Psicologia. Inicia-se, ao mesmo momento, a caminhada pela prática
profissional, desejada há muito tempo.

6 RESUMO

O trabalho aqui apresentado é o relato do Estágio Supervisionado em Psicologia


Clínica, realizado com base na Psicanálise. Tanto a prática realizada, quanto o presente
relatório tiveram por objetivo vislumbrar aspectos teóricos que vão desde os elementos
fundamentais da Psicanálise, passando por seu método e direção de tratamento, sua ética
peculiar e o desejo do analista, até a descrição e análise do caso clínico vivenciado no estágio.
Nesse sentido, a forma de trabalho utilizada foi a Escuta e o método o da Associação Livre e,
para tanto, a estagiária seguiu a orientação da manutenção da Atenção Flutuante, buscando as
cadeias associativas que levam o paciente ao encontro de sua verdade, sendo esse o objetivo
principal da análise. Quando se fala em verdade, está se levando em conta o desejo
inconsciente que se contrapõe às regras e necessidades sociais. É entre essas vertentes que o
psiquismo se encontra, em meio a consciente e inconsciente, id, ego e superego. O relato aqui
apresentado é a descrição de uma experiência clínica que traz como hipótese diagnóstica um
caso de histeria com traços obsessivos de um homem de 37 anos. É possível vislumbrar a
existência de uma estrutura histérica pela presença de quatro aspectos fundamentais
encontrados no paciente: identificação histérica, sintomas conversivos, desejo
permanentemente insatisfeito e falta de desejo nas relações sexuais no que se refere ao
encontro genital em contrapartida com uma sexualidade aflorada em todo o resto do corpo e
psiquismo.
46

9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Associação Coisa Freudiana – Transmissão em Psicanálise, 1990.

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Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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__________ O Inconsciente (1915) In: Edição Standard das oras completas de Freud. Vol.
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