Você está na página 1de 3

UM PRESENTE PARA VITÓRIA

Quando a campainha tocou, um alívio se apoderou de minha alma. Abria porta e o rosto assustado de mãe,
estava diante de mim. Como, quando ainda adolescente, procurava seu ombro para buscar o conforto e alivio
que sempre encontrei, estavam novamente a minha disposição. Joguei-me ao seu encontro e desabei a chorar.
- O que aconteceu minha filha! Que desespero é esse?
Soluçando, tentava responder o a pergunta que nem eu tinha a resposta.
- É a Vitória, mãe!
- O que aconteceu...Meu Deus! O que aconteceu Lídia? – Meu desespero já se transferira para minha mãe, e
seus olhos já estavam marejados, no pensamento de algo ter ocorrido a sua única neta.
- A camisa mãe...a camisa sumiu! – Disse entre lágrimas e soluços.
Minha mãe, um pouco confusa, repetiu algumas vezes “camisa”, como se tentando entender ou certificar-se
das minhas palavras. Até que indagou:
- Camisa? Que camisa minha filha o que você está dizendo/ Não estou compreendendo?
Com muita dificuldade, tentei explicar a ela, mas agora, o próprio som do choro incontrolável de Vitória, que
entrara na sala, me ajudara a explicar o drama por nos vividas. Ao ver a neta, de dez anos, andando
desbaratinada pela casa olhando por de baixo de móveis e atrás de portas, mesmo sem saber o motivo, ou
melhor sem entender muito bem o que se passava ela percebeu a gravidade da situação. E depois de me fazer
sem sentar no sofá da sala, foi ao encontro da neta, que ainda não havia percebido sua chegada.
- Vitória querida, olá! – Disse, procurando chamar atenção da neta. E ela quando viu a vó, correu a o seu
encontro e abraçando-a fortemente, entre soluços quase gritava para a vó.
- A camisa vó...Eu quero a camisa...Minha camisa, vó!
Minha mãe, eu percebia, cada vez ficava mais confusa, e o desconhecimento objetivo do problema que se
abatera na casa, mas sentindo perfeitamente a gravidade do drama, um sentimento de desespero começava a
se apoderar dela.
- Por favor, Vitória, se acalme! – Disse delicadamente a neta, e a mim virou-se e com rispidez, ordenou-me. –
Por favor, quer me dizer o que esta acontecendo nesta casa, pelo amor de Deus!
Como eu a conhecia muito bem, principalmente sabia que aquele doce de criatura, quase um monumento a
serenidade, jamais deveria ser irritado, e minha mãe, talvez por puro desespero, estava irritada. Tratei me
fazer entender.
- Ontem Vitória e eu fomos à festa de aniversário da Clara, filha de Joana, e retornamos muito tarde. Tão
tarde que Vitória adormeceu no carro. Quando acordou hoje cedo, procurou a camisa do pai, e...- o choro
retornou ao ver minha filha desesperar-se novamente e chorar copiosamente. Entre soluços continuei. -...Ela
não encontrou a camisa no quarto nem em parte alguma desta casa, já revirei tudo. Cada centímetro deste
apartamento e nada encontrei....Sumiu simplesmente a camisa sumiu!
O olhar de minha mãe agora demonstrava preocupação. Ela sabia da importância que aquela peça de
vestuário tinha para a neta.
- Meu Deus! – Exclamou

O sol ainda batia na janela, apesar de já ser mais de sete horas na noite, efeitos do horário de verão. O sábado
não havia sido ruim, apesar das preocupações que qualquer aniversário de criança trazia. Mas minha mãe e
minhas irmãs estavam junto a mim, e como tudo que faço sempre é realizado com muito planejamento,
poucos detalhes faltavam. Vitória faria quatro anos de idade no próximo dia. O primeiro aniversário dela que
seria comemorado exatamente na data de seu nascimento, um domingo!
Uma ansiedade me acompanhava desde o raiar do sol, e mesmo agora quando ele já estava por se por e
ansiedade somente aumentava. As vezes as mulheres se preocupam tanto que se por um acaso tudo corre
bem, a preocupação se dá pela esperada de um imprevisto. Tudo estava acertado para a festa, a única que não
estava pronta era o bolo, que tinha que ser feito no dia da festa e os salgadinhos que estavam prontos faltando
somente serem fritos. E a ansiedade não me abandonava, talvez a preocupação com a própria Vitória, este
seria o único motivo a me afligir naquele dia.
Nem este motivo eu tinha mais, pois escutei, sentada na sala de estar com minha mãe e minas irmãs o veiculo
de meu pai estacionar na frente de casa e com ele, além de Vitória, meu marido Lúcio. Os três romperam a
sala aos gritos, que indicavam a vitória do time do coração.
Coxa, Coxa, Coxa! – bradavam, e a pequena Vitória, um cisco de gente, como meu marido costumava
chamá-la, acompanhava-os no coro.
Minha mãe, balançou a cabeça, como sempre fazia, não discutia com papai mas achava uma idiotice aquela
paixão por um clube de futebol. Eu nunca liguei para o fato de Lúcio ser, como papai um apaixonado, até
porque me crie vendo aquela paixão em casa. Mandei-os então para o banheiro para que se lavassem e
fizessem um lanche, mesmo sabendo que os dois deviam ter enchido a pequena Vitória de porcarias no
estádio. Meu marido, tirou a camisa do clube, toda suada e disse que tomaria um banho, o que fez Vitória,
resmungar:
- Quero tomar banho com você, papi!
Aquela menina desde pequena era o grude do pai, e ele, adorava isso. Sempre que estava em casa, os dois
estavam juntos, e ela mais parecia um garotinho pois fazia tudo que o pai fazia. No inicio, at’;e sentia ciúmes
deles, mas, o tempo me fez ver que aquela relação quase de dependência, era muito mais saudável que um
afastamento.
- Toma aqui minha camisa, Vic, leva para o papai e vamos para o banho garotinha! – Disse ele atirando a
camisa para ela.
- Coloque a camisa no cesto filha, e a mamãe já leva tua roupa e toalhas para os dois porquinhos! – Disse eu,
sob os olhares reprovadores de mamãe e de minhas irmãs.
Neste momento, um barulho de gritaria fez-se ouvir, e meu pai foi o primeiro a olhar na janela de nossa casa.
- O que está havendo lá na portaria? – Indagou. De nossa casa tínhamos a visão da portaria do condomínio
que morávamos. Um pequeno condomínio de casas. Lucio foi até a janela e observou também.
- Tem um pessoal aqui da vila, e acho que estão com os garotos da casa aqui do lado,...o Rodrigues, está indo
para lá correndo. – Fechando a cortina ele se dirigiu até a porta. – Vou ver o que ta pegando. – E saiu de casa,
sem que isto trouxesse qualquer anormalidade aparente, afinal ele, Lucio, era o síndico do condomínio.
Estava me dirigindo para o quarto de Vitória, quando ouvimos o estampido. Um único estampido, e neste
segundo, minha ansiedade passava e um terror tão repentino quanto a ansiedade que se desvanecia,
apoderava-se de minha alma. Meu pai foi o primeiro a sair de casa, enquanto as mulheres resguardavam-se
aterrorizadas na sala. Não tive coragem de me dirigir até o lado de fora da casa, a única atitude de que fui
capaz, foi agarrar-se a minha filha, e observar quando meu pai entrou novamente na casa, pálido como um
fantasma, e os olhos petrificados.
As horas e os dias que se sucederam àquela fatídica tarde de sábado, foram os mais tenebrosos de minha
vida. Presenciar o enterro de meu amado marido, no dia em que nossa filha completava quatro anos, foi uma
experiência que não gostaria de repetir nunca. Tanto que o primeiro pedido que faço desde então, dia após
dia, em minhas orações, solicita que Deus me mate antes de ver minha filha dentro de um caixão, como vi
meu querido Lúcio.
Meu marido fora morto, por um rapaz completamente ensandecido, torcedor do clube que havia sido
derrotado pelo time de coração de pai, minha filha e daquele que não mais estava entre nós. Uma agressão
aos garotos que também, voltavam do estádio, seguido de perseguição até defronte o nosso condomínio, onde
as agressões continuaram. Ao se aproximar da balburdia, o peito nu de Lucio fora atingido por um certeiro
balaço, detonado da arma daquele irresponsável. Nenhuma palavra dita. Lucio falecera na hora, vítima da
intolerância, sem se quer saber porque ou quem o tirara a vida.
Vitória, nosso bem mais precioso, na sua infância não compreendera de imediato o que fazia seu querido pai
dentro daquela caixa escura, no dia em que ganharia uma nova bicicleta, que escolhera com o pai nos dias
que antecederam a tragédia. Mesmo não compreendendo, a falta do pai a fizera sofrer muito. Seguidamente
acordava à noite e chorando pedia pelo papai que não mais a via, e com o coração despedaçado, tive que ser
mais forte que minha dor, para sucumbir minha tristeza e consolar minha filha. Com o passar dos anos, seus
questionamentos sobre o pai não traziam mais lágrimas, mesmo sem que a dor sumisse de seus olhos.
Quando ela completou oito anos, conversei com ela, sobre a camisa que guardava, da mesma maneira que o
pai lhe dera naquela tarde, sem permitir que sequer ela fosse lavada. A resposta cortou meu coração, ainda
que muito falássemos do assunto.
- O cheiro dele, mami! – Respondeu-me sem pestanejar, e num choro copioso que brotava me meus olhos,
ela acariciava placidamente meus cabelos. - Sinto o cheiro dele, mami. Consigo ver seu rosto e seus olhos,
isto me deixa feliz e me sinto melhor.
Nunca mais toquei no assunto, um pacto se estabelecera entre nos, e mesmo que pessoas achassem muito
estranha aquela atitude de minha filha, fui sua aliada. A camisa verde e branca que ela guardava e que muitas
vezes, vi em seus braços enquanto dormia, permanecia entre nós, como a imagem de nosso amor.

Naquela manhã, o desespero dela, era também meu desespero. A camisa amarelada fazia parte me minha vida
também. Mesmo quando mamãe, conhecedora que era da estória do objeto, se juntara a nós na busca
fracassada pela peça, já não encontrara mais explicação para o sumiço, e procurava nos fazer entender que
algo de irreparável havia acontecido, nem isso tirava de Vitória, uma garota de dez anos, a força para buscar
em cada canto do apartamento, que desde o primeiro ano da morte de Lúcio era nosso habitat, pois não
consegui mais tirar a presença sempre saudosa de Lucio da antiga casa, a relíquia de tecido.
Já havia revisado com minha mãe cada passo dado no dia anterior, e em nenhum momento qualquer pessoa
estranha havia entrado no apartamento ou sequer tínhamos retirado o objeto do lugar que sempre ficava, na
gaveta de Vitória. Sentadas as duas na sala, somente observávamos Vitória que continuava sua busca, já
olhando repetidas vezes nos lugares do imóvel. Foi assim que em dado momento a porta se abriu, e
ingressava no apartamento Isabel, a empregada, que agora me prestava serviços, carregando um embrulho
debaixo do braço, e foi Vitória que a indagou, sem que praticamente respirasse ao falar com a jovem
empregada.
Isabel, assustada com a intensidade do questionamento, mal conseguia balbuciar.
- Você está perguntando daquela camisa do Coxa, que estava fedendo dentro da sua gaveta?
Minha mãe foi quem, aflita, agarrou os braços da jovem.
- Sim a camisa da gaveta, você a viu, pelo amor de Deus criatura, o que você fez com ela?
O rosto de Isabel tornara-se pálido e já com os olhos marejados, ofereceu a minha mãe o embrulho que trazia
consigo.
- Eu levei a camisa para o tintureiro, para lavar!
Vitória sentou-se no chão onde estava e debruçada sobre as pernas, com as mãos no rosto, gritava entre
soluços.
- Meu pai! Você levou meu pai...
A abracei e mais uma vez esqueci minha dor para conforta-la, sem nada dizer pois entendia sua dor, afinal
era a mesma que eu sentia. Isabel somente se desculpava, não entendo que mal terrível fizera.
Reticente, minha mãe vagarosamente desfizera o embrulho, e com lágrimas nos olhos, abaixara-se no
trazendo nas mãos a camisa, agora branca e perfumada de amaciante, estendedo-a em nossa direção.
Inconsolável Vitória apanhara a camisa seu rosto infantil e já tão sofrido se encobria pela peça de tecido.
Minha dor aumentava cada vez mais, sentindo a perda que minha adorada criança ra submetida. Uma simples
peça de tecido, lavada por mãos que jamais poderiam imaginar o dor que causariam a uma pequena alma
sofrida.
Meus olhos que já haviam presenciado tanto dor e amargura, não acreditaram quando o rosto de Vitória
aparecera por de traz da peça com um sorriso resplandecente e angelical. A confusão se estabelecera em
minha mente, mas suas palavras doces e ternas, encheram o ambiente, como uma lufada de candura.
- O cheiro mãe, o cheiro ainda está aqui. – Suas palavras fizeram novas lágrimas brotarem de meus olhos e
das demais pessoas que presenciaram a cena. – O cheiro do papai ainda está aqui...Papai está aqui, mãe!

FIM

Você também pode gostar