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Brian Fagan
"Está certo", disse o Cheshire Cat; e dessa vez desapareceu lentamente, começando
com a ponta do rabo, e terminando com o sorriso, que permaneceu por algum tempo
depois que o resto se foi.
- LEWIS CARROLL, Alice no País das Maravilhas (1865)
Sumário
Prefácio 9
Nota do Autor 19
1. Uma Época de Aquecimento 21
2. O Manto dos Pobres 43
3. O Mangual de Deus 70
4. O Comércio Dourado dos Mouros 92
5. Inuítes e Qadlunaat 115
6. A Época da Megasseca 137
7. Bolotas e Pueblos 153
8. Senhores das Montanhas de Água 173
9. Os Senhores de Chimor 191
10. Resistindo aos Alísios 212
11. O Oceano dos Peixes Voadores 233
12. A Tristeza da China253
13. O Elefante Silencioso 269
Agradecimentos 285
Prefácio
Nota do Autor
CAPÍTULO 1
Uma Época de Aquecimento
Inglaterra Meridional, outono, ano de 1200. A névoa fria paira sobre as copas das
árvores. Um chuvisco insistente cai sobre as faixas de terra aradas, cobrindo os rostos
curtidos dos dois homens que semeiam o trigo contido nas bolsas de lona que levam
penduradas pelo pescoço. Com cabelos desgrenhados e nariz chato, vestidos com
túnicas sujas, presas com cintos, chapéus de palha, eles balançam sem esforço para a
frente e para trás, atirando sementes nos sulcos rasos. Atrás deles, um rastelo puxado
por um boi, uma armação quadrada de madeira com lanças apontando para a terra,
cobre as sementes que acabaram de ser plantadas. Quando uma faixa é semeada, os
homens vão para a próxima, pois o tempo é curto. Eles precisam plantar antes que as
fortes chuvas do outono levem embora as sementes jogadas na terra.
A rotina da semeadura, aprendida na infância, é imutável como a passagem das
estações. Os mais velhos se lembram dos dias frios e sombrios em que nem mesmo um
casaco de pele de carneiro conseguia repelir o frio penetrante. Eles também se lembram
dos anos em que o sol ardia em um céu sem nuvens, com o calor cintilando sobre os
campos. Eram tempos em que o vilarejo apostava que iria chover e plantava de qualquer
forma. Às vezes, a aposta compensava. Com muita freqüência, não. Quando não, havia
fome no ano seguinte.
Agricultores medievais ingleses semeiam os grãos, depois passam o arado para fixá-los
ao solo (acima). Na colheita, as mulheres cortam e amarram os grãos (abaixo).
(Reconstruções baseadas em escavações feitas em Wharram Percy, nordeste da
Inglaterra.)
No grande esquema das coisas, as vinte gerações do aquecimento medieval são como
um piscar de olhos. As mudanças de temperatura relativamente pequenas desses
séculos são mínimas quando comparadas àquelas do fim da última Idade do Gelo. Cerca
de 12 mil anos atrás, o mundo entrou em um período de aquecimento global prolongado,
conhecido pelos geólogos como holoceno (das palavras gregas holos, "todo", e kainos,
"novo", significando "inteiramente novo"), que continua até hoje. Gerações de cientistas,
trabalhando com dados inadequados, criaram imagens de mais de dez milênios de clima
basicamente moderno, com mudanças relativamente pequenas desde o aquecimento
que se seguiu à era do gelo. Mas uma revolução na paleoclimatologia (estudo do clima
antigo) transformou nosso conhecimento do holoceno nos últimos anos.
Atualmente, os climatologistas perfuram os leitos de rios e mares, analisam pedaços dos
leitos de gelo mais profundos da Groenlândia e Antártica, aprofundam-se em estudos
das séries de anéis de troncos de árvores antigas. Suas pesquisas revelaram que o clima
do holoceno sofreu mudanças constantes. Podemos agora discernir não apenas
oscilações de inverno e verão de um milênio atrás, mas também ciclos muito mais
curtos, principalmente nos últimos dois mil anos. As mudanças de ligeiramente mais
úmido para ligeiramente mais seco, de mais quente para mais fresco e o contrário,
nunca acabam. Algumas duram um século ou uma década; outras, como os fenômenos
causados pelo El Niño, não duram mais do que aproximadamente um ano. Poucos
acontecimentos climáticos importantes permaneciam por períodos maiores do que uma
geração, e por isso eram rapidamente esquecidos em épocas em que a expectativa de
vida era de pouco mais de trinta anos. A nova climatologia nos mostrou que o relógio
climático pode acelerar ou diminuir a velocidade, recuar ou mudar de direção subita-
mente, e até mesmo permanecer estável por longos períodos de tempo, mas ele nunca
para.
Métodos Diretos
REGISTROS INSTRUMENTAIS
Registros instrumentais são a forma mais exata e direta de estudar as mudanças
climáticas. Infelizmente, tais arquivos vão apenas até 150 anos na Europa e América do
Norte, e períodos ainda muito mais curtos rias demais regiões.
DOCUMENTOS HISTÓRICOS
Os arquivos fornecem instantâneos valiosos do clima na Antiguidade, de documentos
como diários, agendas e relatórios oficiais que mencionam acontecimentos
contemporâneos como inundações ou secas. Os mais antigos são os relatos sobre o
florescimento das cerejeiras no Japão e Coréia, que datam de mil anos atrás. Na Europa
e na região do Mediterrâneo, os registros de muitas regiões vão até o ano de 1500
aproximadamente.
TESTEMUNHOS DE GELO
Testemunhos profundos coletados nos lençóis de gelo, como os da Groenlândia,
Antártica, Andes e Tibete, fornecem registros contínuos das mudanças de temperatura
provenientes das medições das relações isotópicas de oxigênio e hidrogênio nas
moléculas de água que compõem o gelo. Essas mudanças nas relações podem estar
ligadas a mudanças de temperatura. Um testemunho de gelo na Antártica fornece
registros de mais de 420 mil anos. Seqüências de alta resolução dos últimos dois mil
anos vêm da Groenlândia, dos Alpes e de outros lugares.
REGISTROS DE CORAIS
Os corais que vivem próximos à superfície do mar produzem estruturas calcárias a partir
do carbonato de cálcio. Medindo as mudanças na relação de 0-8 para 0-16, os
pesquisadores conseguem detectar mudanças de temperatura, pois a relação diminui
com o aumento do calor. Os registros de corais costumam ser incompletos. Poucos vão
além de dois ou três séculos.
Os forcings são fatores poderosos e incomuns como erupções vulcânicas que podem
provocar mudanças climáticas. No contexto do Período de Aquecimento Medieval, são
mudanças naturais, como a irradiação solar causada por pequenas inclinações na órbita
da Terra e por grandes erupções vulcânicas que afetaram o equilíbrio de energia global.
Grandes eventos vulcânicos acrescentam grandes quantidades de cinza e gases
sulfúricos na atmosfera, diminuindo a quantidade de radiação solar que chega até a
Terra, resfriando-a; os efeitos se limitam a alguns anos. Desde 1860, o principal fator de
precipitação climática tem sido causado pelo homem, em grande parte pelo uso de
combustíveis fósseis.
Softwares
Softwares sofisticados simulam o comportamento do sistema climático mundial,
utilizando cada vez mais dados brutos retirados de balizas, registros instrumentais,
análises de variáveis e satélites. São utilizados tanto para entender a variabilidade
natural do clima global quanto para medir os efeitos de diferentes fatores de
precipitação climática. Eles fornecem a base para avaliar os efeitos do aquecimento
global antropogênico, bem como para as previsões meteorológicas a curto e longo prazo.
Ninguém sabe exatamente o que move o pêndulo climático. É bem provável que
pequenas mudanças na inclinação da Terra provoquem mudanças no clima, assim como
os ciclos de atividade solar: por exemplo, a ausência do sol durante a erupção de um
vulcão. Grandes nuvens de cinzas vulcânicas subiram para a atmosfera, encobrindo o sol
e provocando o célebre "ano sem verão" europeu em 1816. Nos últimos anos,
entretanto, a maioria dos climatologistas passou a acreditar que interações complexas,
embora ainda pouco compreendidas, entre a atmosfera e o oceano desempenham um
papel muito importante nas alterações climáticas. O climatologista George Philander
chama isso de dança entre parceiros muito diferentes, um que se movimenta
rapidamente e outro mais desajeitado. Ele escreve: "Enquanto a atmosfera é rápida e
ágil e responde rapidamente aos toques do oceano, o oceano é pesado e lerdo."
Dançamos convenientemente junto com esses parceiros, às vezes de maneira decidida,
e com freqüência relutantemente.
Aprendemos, também, que os giros da dança climática têm um efeito espantosamente
direto sobre as sociedades humanas, como as chuvas excepcionalmente fortes
provocadas por um El Niño maciço, que destruiu canais de irrigação construídos por
muitas gerações em leitos de rios ao longo da costa norte do Peru no século VI; ou os
grandes ciclos de seca no sudoeste americano, que provocaram deslocamentos
populacionais do Pueblo Ancestral por uma vasta área, mil anos atrás. Assim como os
pueblos do sudoeste abandonavam seus lares por causa da seca, os agricultores
medievais europeus aproveitavam as condições de tempo mais previsíveis e as chuvas
abundantes, mas geralmente não excessivas. Os efeitos das condições um pouco mais
quentes e secas mostravam-se de várias maneiras sutis - colheitas melhores,
crescimento populacional e desmatamento acelerado, explosão do comércio e da pesca
em águas profundas, e uma verdadeira orgia de construção de catedrais. Isso não quer
dizer, é claro, que o calor maior causou todas essas mudanças; longe disso. O que é
instigante é que, hoje, podemos começar a relacionar as mudanças climáticas
aparentemente menores com todos os tipos de acontecimentos históricos, de forma
inimaginável há apenas uma geração. Com poucas e notáveis exceções, como o
historiador suíço Karl Pfister, que passou anos estudando as datas das colheitas para a
fabricação do vinho, a maioria dos historiadores costumava ignorar as mudanças
climáticas principalmente porque, como não cientistas, desconheciam novos dados
climatológicos. Atualmente, podemos ver que as mudanças climáticas foram um dos
fatores que mais contribuíram para moldar a história medieval, principalmente a vida
das pessoas comuns vivendo em pequenas cidades, plantando ou pescando no Mar do
Norte.
Por volta de 1120, o monge e historiador William de Malmesbury viajou pelo Vale de
Gloucester, no oeste da Inglaterra, e admirou a fértil paisagem do verão. “Aqui se podem
contemplar estradas e caminhos públicos cheios de árvores frutíferas, não plantadas,
mas que cresceram naturalmente", ele escreveu. "Nenhum condado da Inglaterra tem
tantos e tão bons vinhedos como este, seja pela fertilidade, seja pela doçura da uva. O
vinho não tem uma aspereza desagradável ou acidez; e é pouco inferior ao francês em
doçura." William observou que as uvas eram plantadas em campo aberto, subindo por
traves, e não protegidas dos ventos frios com muros estrategicamente posicionados.
Naquela época, as condições climáticas eram ideais. As vinhas precisam ser poupadas
das geadas de primavera, especialmente durante ou após o florescimento; também
precisam de sol e calor suficientes no verão, e não muita chuva; e sol e calor de outono
suficientes para elevar o conteúdo de açúcar das uvas. Naquele período, numerosos
vinhedos floresceram na Inglaterra, consideravelmente mais ao norte do que o mais
setentrional dos vinhedos da França e da Alemanha nos anos de 1960. Durante os
séculos XII e XIII, o clima da Inglaterra era tão temperado que seus mercadores
exportavam grandes quantidades de vinho para a França, para desespero dos produtores
franceses, que reclamavam bastante. Não que a Inglaterra estivesse sozinha na pro-
dução de vinho. Entre 1128 e 1437, o vinho era produzido na Prússia Oriental, a 55 graus
de latitude norte, e também no sul da Noruega. A Floresta Negra tinha vinhedos a cerca
de 780 metros acima do nível do mar. Atualmente, os vinhedos mais altos na Alemanha
estão a 560 metros. Naquela época, as temperaturas no verão estavam 1,0°C a 1,4°C
acima da temperatura de meio século atrás na Europa Central, e algumas frações mais
baixas na Inglaterra.
Localidades mencionadas nos capítulos 1 e 2. Algumas regiões menores foram omitidas
para maior clareza.
Uma cacofonia assalta o ouvido por todos os lados. As pessoas juntam-se ao redor das
barracas negociando, fuxicando e mexendo com os produtos. Legumes coloridos e
cenouras se amontoam nas barracas do mercado. As mulheres cheiram as maçãs
maduras com desconfiança. À sombra, lavradores de túnicas e meias bebem cerveja em
canecas de madeira. De repente, faz-se silêncio. A multidão se dispersa ante a
aproximação de um cortejo de homens em armas e roupas de gala escoltando o senhor
do castelo pelo mercado. Ele cavalga um belo cavalo branco, ricamente adornado;
usando uma armadura leve e capacete de aço, ele não olha para a direita nem para a
esquerda. Os aldeões silenciosos tocam a testa ou se apóiam em um dos joelhos no
chão. Sua Senhoria acena solenemente e segue, com seus escudeiros e criados
cavalgando logo atrás em ordem unida. Quando o cortejo se vai, recomeça o burburinho.
O senhor poderia surgir em todo o seu esplendor, escoltado por soldados e servos
uniformizados; as guerras endêmicas podiam consumir as energias de reis e barões. Mas
por trás da fachada do cortejo principesco e da exibição esplêndida havia um continente
sob a ameaça constante da fome. A fronteira entre fartura e fome era realmente
estreita, definida por inesperadas geadas de primavera, longas semanas de chuva
pesada ou meses de seca aparentemente interminável. Todos os que viviam no campo
sofriam com períodos de subnutrição. Sabemos disso pelas linhas reveladoras
encontradas em seus ossos, marcas de sofrimento levadas para o túmulo. Mesmo nos
anos bons, muitas comunidades rurais sobreviveram em condições de subsistência, ou
perto disso. Bastava um período de chuva pesada, inundações ou uma epidemia que
atacasse o gado para levar a fome à soleira da porta. Mesmo na melhor das épocas, a
agricultura era um trabalho duro e incansável. A expectativa de vida de um trabalhador
rural de Winchester, em 1245, era de aproximadamente 25 anos - caso sobrevivesse às
doenças infantis. (Se considerarmos a elevada taxa de mortalidade infantil, a
expectativa de vida era ainda menor.) Sequei as ocupacionais, como deformações na
coluna pelo transporte de sacolas pesadas ou pelo corte do feno, são comuns nos mortos
encontrados em cemitérios medievais. Os pescadores sofriam de osteoartrite na coluna
por viverem empurrando os barcos e puxando redes carregadas de arenques. O custo
humano devido ao trabalho duro e alimentação inadequada era enorme, mesmo nos
anos bons.
Tendências climáticas em todo o mundo durante os séculos de calor. Esta é uma tabela
bem generalizada para uma simples orientação
Os séculos mais quentes trouxeram alívio significativo para os agricultores de
subsistência da Europa. A estação de crescimento dos cereais durava três semanas.
Verão após verão, o tempo quente e estável começava em junho e estendia-se por julho
e agosto nos dias febris da colheita. Ainda mais importante, as geadas de maio que
haviam assombrado as plantações durante séculos tornaram-se virtualmente
desconhecidas entre 1100 e 1300. Os verões quentes e invernos amenos permitiram que
as pessoas se arriscassem plantando em terras marginais e em altitudes mais elevadas
onde, até então, as temperaturas mais frias impossibilitavam qualquer tipo de cultivo.
Uma população crescente de lavradores seguiu em direção ao norte e para regiões mais
altas.
Os números falam por si. Pequenas comunidades de agricultores floresceram 320 metros
acima do nível do mar em Dartmoor, sudoeste da Inglaterra, durante o século XII.
Ninguém plantou ali no século XX. Atualmente, não existem plantações nos Montes
Peninos, ao norte da Inglaterra; porém, em 1300, os pastores locais reclamavam dos
lavradores intrusos. A Abadia de Kelso, no sul da Escócia, tinha bem mais do que 250
acres (cerca de 100 hectares) cultivados em uma altitude de mais de 300 metros acima
do nível do mar, muito acima dos limites atuais. Mil e quatrocentas ovelhas e 16 famílias
de pastores viviam nas terras da abadia. Agricultores cultivavam trigo em Trondheim, no
norte da Noruega. Mais ao sul, nos Alpes suíços, pequenos proprietários tinham
plantações em vales profundos que dois séculos antes estavam cobertos por geleiras.
Em altitudes inferiores, épocas de cultivo mais longas reduziam significativamente os
riscos das colheitas, pois as longas semanas de verão aumentavam o período de
amadurecimento das plantações, permitindo um acúmulo maior de alimentos para suprir
vilarejos e cidades cada vez maiores. Os rebanhos cresceram; as populações rurais e
urbanas aumentaram. A demanda por terra cultivável disparou enquanto aumentavam
gradualmente as exigências da Igreja e da nobreza em relação aos plebeus por trabalho,
impostos e dízimos. Pela Europa ecoavam os sons dos machados de ferro derrubando
florestas de carvalho e abrindo novas terras.
CAPÍTULO 2
O Manto dos Pobres
A chuva torrencial muda para chuva de granizo e castiga a vila, transformando caminhos
enlameados em pequenos rios. Violentas lufadas de vento arrancam os galhos das
árvores nuas. A ventania implacável passa assobiando pelas sebes e telhados de palha,
empurrando as nuvens cinzas pelo céu, cortando a fumaça de madeira que sobe das
chaminés e telhados. Não se vê viva alma. O conjunto de moradias parece abraçar a
terra, com medo das rajadas de vento. Dentro de casa, o ruído da tempestade é
abafado, porém mal se consegue enxergar por causa da fumaça asfixiante que se forma
acima dos feixes de madeira. Odores fortes atacam as narinas - esterco das vacas,
alimentos em decomposição, excrementos. Todos se encolhem silenciosamente, envoltos
em peles de carneiro e caneleiras. O gado se mexe inquieto no estábulo, em uma
extremidade da casa. Animais e seres humanos esperam por uma trégua do temporal.
Mesmo na década mais quente, o clima da Europa medieval foi de extremos. Semanas
de neve, temporais de inverno memoráveis, fortes vagas marítimas causadas por
tempestades no Mar do Norte, longas secas de verão: a agricultura de subsistência era
um empreendimento desafiador mesmo no ano mais quente. Com chuvas e
temperaturas imprevisíveis, os agricultores medievais eram conservadores mesmo nos
melhores momentos, assim como seus iguais dos dias de hoje nas regiões em
desenvolvimento. Quando se vive sob o espectro da fome, a tendência é proteger o que
se tem. As inovações de qualquer tipo podem definhar diante da oposição cautelosa da
opinião pública. Nas comunidades de subsistência - baseadas, freqüentemente, na
experiência coletiva adquirida ao longo de muitos anos - o consenso é o cerne da
sobrevivência. Isso fazia com que a escolha de datas para plantar e colher cereais, uvas
e outros vegetais fosse uma questão de deliberação cuidadosa, mesmo em épocas mais
quentes, quando o resultado das colheitas tendia a ser maior. A elevação das densidades
populacionais e as condições climáticas em geral favoráveis ameaçavam seriamente o
conservadorismo dos agricultores medievais. Importantes inovações nos métodos
agrícolas foram implantadas nos séculos de calor devido à escassez de terra e ao
número maior de bocas para alimentar.
Os invernos mais amenos, os verões mais quentes e estações de plantio mais longas no
Período de Aquecimento Medieval foram um poderoso catalisador para o crescimento
populacional constante, estimulado por boas colheitas. À medida que cresciam as
populações rurais, também a demanda por solos mais leves, com boa drenagem e de
cultivo fácil, excedia a oferta. A terra macia desse tipo de terreno podia ser revolvida
eficientemente com um arado leve, do tipo criado há mais de mil anos, da época anterior
aos romanos. Tratava-se basicamente de uma lâmina que fazia um sulco na terra, mas
não revirava o torrão. Os agricultores medievais usavam bois para puxar os arados, ou,
se não tivessem animais, a dupla composta por marido e mulher arava a terra, um
puxando o arado e o outro guiando. Desde que a terra fosse suficientemente leve, esse
tipo de arado representava uma forma simples de cortar o campo e foi amplamente
utilizado por pelo menos quatro mil anos.
Mas o arado romano tinha sérias limitações. Era muito menos eficiente nos solos mais
pesados, mais argilosos, onde a camada superior era mais dura, especialmente em
períodos mais secos. Épocas de seca prolongada, como as dos séculos mais quentes,
iam contra a aragem fácil. Com o aumento da demanda por terras cultiváveis, os
lavradores se transferiram para esses solos úmidos, potencialmente produtivos, em geral
com densas florestas, mas difíceis de cultivar. Felizmente, um novo conceito de arado
surgiu durante o século VII, ou mais ou menos nesse período, a tempo para os séculos
de calor e mais eficiente para solos mais pesados. A charrua tinha lâminas afiadas, que
cortavam o solo, revirado pela aiveca, que enterrava o mato e revolvia os nutrientes.
Parelhas de bois normalmente puxavam as charruas até que alguém do continente
desenvolveu uma nova técnica de atrelagem, o arnês, que substituiu o 'colar de pescoço.
Com a utilização de cavalos, a força dos bois foi superada em quatro ou cinco vezes. Os
cavalos também eram mais rápidos, mas o uso de quatro cavalos, ou oito bois, para um
único arado, embora viável em casas religiosas e terras arrendadas, era uma alternativa
muito dispendiosa. Os agricultores dos vilarejos resolveram o problema compartilhando
os animais na época de arar a terra. Mesmo com os bois, o trabalho era brutal, do nascer
ao pôr-do-sol.
Os arados com rodas e cavalos passaram a ser amplamente utilizados mais ou menos na
mesma época da adoção do sistema trienal de cultivo, que surgiu em terras monásticas
no nordeste da França durante o século IX e se espalhou gradualmente por toda a
Europa. No início, plantava-se metade dos campos de cada vez. Posteriormente, eram
cultivados dois terços, com o terceiro descansando. Com o sistema trienal produziram-se
mais grãos e forragem para os animais, alimentos mais nutritivos, famílias maiores e
mais animais de tração - desde que houvesse gente suficiente para realizar o trabalho
extra de plantar e colher; e também mais arados, arreios, cangas e outros equipamentos
que precisavam de carpinteiros, ferreiros e trabalhadores especializados.
O sistema de cultivo trienal envolvia o plantio de um campo com cereais de inverno -
trigo, cevada ou centeio. Um segundo campo era utilizado na primavera com aveia,
grão-de-bico, ervilha, lentilha ou favas. O terceiro campo ficava em repouso. O sistema
trienal estendeu as necessidades de mão-de-obra mais uniformemente ao longo do ano,
além de fornecer aveia para alimentar os cavalos. Legumes, como ervilhas e feijões,
fixavam nitrogênio no solo e mantinham sua fertilidade, de forma que era possível ter
mais animais. O risco de fome foi reduzido significativamente, ao mesmo tempo em que
havia mais estrume para fertilizar o solo. Com o aumento na ingestão de proteína, houve
uma melhora da nutrição e da saúde, e a população cresceu. E, o mais importante, os
excedentes alimentícios aumentaram consideravelmente, tanto pelo aumento do calor e
melhora das colheitas quanto pela agricultura intensiva.
As colheitas de cereais nos vilarejos medievais eram baixas. Ali, o ritmo das inovações
era mais lento. Mas em algumas regiões eram muito maiores, notadamente nos Países
Baixos e no norte da França, além de partes do sudeste e leste da Inglaterra, onde
arrendamentos e pequenas propriedades agrícolas supriam mercados urbanos
crescentes ou navios que transportavam grãos além-mar. A lavoura mista intensiva em
algumas propriedades de Norfolk no século XIV chegava a produzir de 15 a 25 bushels
(alqueires) por acre (5,28 a 8,8 hectolitros) ou mais, colheitas normalmente associadas
aos métodos de lavoura intensiva e altamente eficiente introduzidos na Inglaterra no
século XVIII. Esse tipo de propriedade mista combinava agricultura com criação de gado
e principalmente de ovelhas, produzindo dois terços mais do que as bem administradas
terras arrendadas em lugares como Winchester, no sul da Inglaterra. Não é difícil
descobrir a causa dessa produtividade: a necessidade de alimentar populações
crescentes nas pequenas e grandes cidades.
Um arado em sua forma mais sofisticada (acima) e uma charrua simples com aiveca
(abaixo).
CAPÍTULO 3
O Mangual de Deus
Agora que chegara ao acampamento do Kahn, no fim do terceiro mês, a grama era verde
e as árvores floresciam por toda a parte, e as ovelhas e os cavalos estavam bem
crescidos. Mas quando ele partiu, no fim do quarto mês, já não havia uma lâmina de
grama ou qualquer vegetação.
Gêngis Khan se autoproclamava "o mangual de Deus". Guerreiro brutal, ele se atirou
sobre a China e a Ásia Central com sede de sangue, com a força de uma marreta. Em
1220, dirigiu-se aos cidadãos aterrorizados de Bukhara, do púlpito da mesquita central
da cidade: "Ó, povo, saibam que cometeram grandes pecados, e que os grandes entre
vocês cometeram esses pecados. Se me perguntarem que provas tenho dessas palavras,
digo que é porque sou eu a punição de Deus". Ele falou com astuto conhecimento dos
conquistados.
Como as secas e as pragas, Gêngis Khan parecia um instrumento de vingança divina.
Tanto cristãos quanto muçulmanos ficaram apavorados com sua aproximação. Os
compiladores anônimos das Crônicas de Novgorod, importante ponto das rotas de
comércio que ligavam Bizâncio ao Báltico, chamaram os mongóis de "ímpios e pagãos".
Eram implacáveis na vitória. "Deus enviou os pagãos para cima de nós por causa de
nossos pecados", lamentaram os cronistas em 1238. "O demônio se regozija com os
assassinatos brutais e o derramamento de sangue." Deus estava punindo a cidade com
"morte por causa da fome; ou através do castigo dos pagãos; ou com a seca; ou com a
chuva pesada; ou com outras punições... Mas nós sempre nos voltamos para o mal,
como suínos, sempre chafurdando na sujeira dos nossos pecados."
Gêngis Khan desempenhou o papel de conquistador com habilidade consumada. Ele era
"um homem de grande estatura, constituição física vigorosa, corpo robusto, pelos
escassos e esbranquiçados no rosto, com olhos de gato, possuidor de grande energia,
discernimento, gênio e entendimento, que despertava terror; um açougueiro, justo,
resoluto, destruidor de inimigos, intrépido, sanguinário e cruel". Embora preferisse que
seus inimigos se rendessem e se submetessem, recorria à carnificina se o desafiavam.
Quando a rica cidade chinesa de Chung-Tu, atual Pequim, se recusou à submissão,
Gêngis Khan atacou-a violentamente, colocando os prisioneiros como tropas de ataque
na linha de frente e depois arremessando as cabeças das vítimas para as linhas inimigas.
Alguns anos depois, um visitante muçulmano reparou em uma colina branca perto da
cidade reconstruída: ela era formada pelos ossos dos milhares de massacrados na queda
de Chung-Tu, e foi queimada. O maior de todos os conquistadores mongóis derramou rios
de sangue por onde quer que seus exércitos acampassem.
Gêngis Khan era de origem humilde, tendo alcançado proeminência graças à pura
habilidade e à crueldade. No início ele era um dos muitos líderes de uma colcha de
retalhos formada por tribos nômades, compreendendo cerca de dois milhões de pessoas
espalhadas pelas vastas estepes da Eurásia. A guerra era um meio de vida para os
nômades, que lutavam a cavalo. Eles eram lutadores experientes e combatentes
implacáveis, também encarniçadamente independentes, liderados por chefes tribais que
faziam alianças com o único objetivo de acumular riquezas com animais domésticos. Em
1206, Gêngis Khan foi eleito o Grande Khan dos mongóis. Ele era estrategista e
conquistador brilhante, era igualmente um talentoso administrador. Rompeu
rapidamente a antiga estrutura tribal, organizou seu exército em unidades-padrão
rigidamente estruturadas em múltiplos de dez, começando com o harban (dez homens)
e terminando com o tümen (dez mil soldados). As tropas lutavam como unidades; não
era preciso dar ordens a mais do que dez pessoas de cada vez. Os exércitos mongóis
eram famosos pela habilidade para disparar suas flechas em todas as direções a pleno
galope. Cada cavaleiro usava uma camisa de seda sob uma armadura ou roupa de couro,
que o protegia efetivamente das flechas. Usavam capacetes de metal ou couro e
carregavam dois arcos complicados, feitos de pedaços de madeira e chifre de iaque, e
pelo menos 60 flechas. Alguns carregavam lanças pesadas, clavas e cimitarras; outros,
espadas e dardos. Cada guerreiro carregava suas próprias provisões, utensílios para
cozinhar e outros equipamentos em um alforje inflável feito com o estômago de uma
vaca. Os exércitos mongóis conquistavam com mobilidade, estratagemas e táticas de
engodo, além de usarem fogos de artifício feitos com pólvora para aterrorizar o exército
que os esperava. Eles sabiam que deixavam os inimigos aterrorizados e tiravam proveito
disso.
No início, o reino de Gêngis Khan era pouco mais do que uma colcha de retalhos
composta por tribos e mantida pela força da sua personalidade, suas habilidades
militares e a perspectiva de um saque além da imaginação, adquirido com as conquistas
e ataques a terras ocupadas. Porém, em pouco mais de vinte anos, os exércitos de
Gêngis Khan varreram as estepes e o sul com rapidez de tirar o fôlego e eficiência
implacável. Os mongóis massacraram tantos seres humanos que o historiador persa
Juvaini afirmou que as faltas jamais se tornariam coisas boas no Dia do Juízo Final.
Cidades famosas foram reduzidas a escombros; o sistema de irrigação do Iraque,
desenvolvido durante muitos séculos, foi totalmente destruído. Milhares de habitantes de
Bagdá foram massacrados sem misericórdia, em 1258. Os reflexos dessas conquistas se
espalharam para longe. A cristandade ficou enfraquecida. O islamismo foi fortalecido,
mas a fé que emergiu a partir do calvário das conquistas era mais estreita, mais limitada
e fechada para novas idéias. As grandes tradições do conhecimento islâmico na
medicina, matemática, história, geografia e astronomia que haviam florescido do ano
800 até 1200 agora murchavam diante da ortodoxia religiosa. Gradualmente, a primazia
intelectual e científica passou do mundo islâmico para a Europa Ocidental. Enquanto
isso, as condições de paz na Ásia Central encorajaram alguns poucos viajantes europeus
a se aventurarem pelo intrincado traçado da antiga Rota da Seda até a China, entre eles
o veneziano Marco Polo (1254-1324), que foi contratado pelo imperador mongol Kublai
Khan. Em 1260, um frade franciscano era o arcebispo de Pequim.
Gêngis Khan não se destacou apenas nas conquistas, mas também em sua compreensão
de que um império - diferentemente de um reino - precisava ter como base um governo
estável, uma administração eficiente, comércio próspero entre as estepes e as terras
colonizadas, além de lei e ordem. Ele transformou os domínios mongóis em um imenso
império ligado por uma eficiente rede de comunicação e mantido em ordem por
ameaças militares veladas e a reputação selvagem de suas tropas. Foi Gêngis Khan
quem disse aos exércitos para conquistarem primeiro; depois, saquearem, e não as duas
ações ao mesmo tempo. Rebeldes e chefes condenados por traição recebiam punição
brutal. Às vezes, eram enrolados em tapetes e arrastados por cavalos. Ou, como
aconteceu com um chefe curdo, eram amarrados, cobertos com gordura de ovelha e
abandonados para morrer de inanição e consumidos por vermes.
O Grande Khan considerava a si mesmo um instrumento da punição divina, mas, na
realidade, suas conquistas vertiginosas deveram-se muito não só à sua liderança e
carisma, mas também à realidade do clima medieval nas estepes e a um estilo de vida
que dependia da mobilidade e anatomia única do cavalo. Os ritmos da vida nômade
acompanhavam as oscilações da bomba do deserto, que trazia seca, ondas de calor, frio
intenso e inundações. Esses ritmos se revelaram profundamente na história, muito antes
de os quatro séculos de aquecimento medieval terem descido sobre as estepes. Porém,
onde Gêngis Khan revelou sua genialidade foi na tentativa de levar seus domínios muito
além da tirania dos cavalos e da bomba do deserto. Nisso, tanto ele quanto seus
sucessores, pelo menos em parte, foram bem-sucedidos. O palco nômade cobria uma
área enorme de terreno variado, que ia do Danúbio, a oeste, até um cinturão cada vez
mais aberto que se tornava parte das estepes da Ásia Central, a leste do Rio Volga. O
país dos cavalos estendia-se até a Grande Muralha da China, mais de 7 mil quilômetros
para leste. Escritores populares normalmente pintam as estepes como um imenso
gramado que se estende por milhares de quilômetros sem qualquer alteração. Na
verdade, o termo "estepe" encerra uma impressionante variedade de ambientes - estepe
florestal, com árvores e irrigação relativamente melhor; pastos abertos; vales de rios;
áreas pantanosas e montanhosas. Os pântanos, florestas e tundra aberta marcavam os
limites setentrionais inóspitos da estepe. Para o sul, pastos e desertos iam das
montanhas Nan Shan e Tian Shan às "Montanhas do Paraíso", no leste, ao longo do Rio
Oxus (Amu Darya) e do platô iraquiano, depois pulavam contra os bastiões naturais do
Mar Negro, os Cárpatos e o Danúbio. Mas o coração da estepe sempre foram os pastos
ao longo da fronteira setentrional da cordilheira Tian Shan e da fronteira sul da
cordilheira de Altai. Desde a época dos citas, mais de mil e quinhentos anos atrás,
cavaleiros nômades galoparam pelos desfiladeiros baixos entre essas cadeias de
montanhas, da Ásia para a Europa.
As distâncias são enormes para qualquer padrão, abrindo-se para paisagens onde as
pessoas e seus animais parecem pontos diminutos em relação à terra e ao céu. O frei
medieval William de Rubreck, que se apresentou à corte mongol como enviado do papa
em 1253-55 e visitou um dos sucessores de Gêngis Khan, Möngke, disse que as estepes
eram "como o oceano", vastas, praticamente desabitadas e perigosas. Viajar através
desse país é estar perdido na imensidão da paisagem, ser reduzido à insignificância pela
pura escala do terreno. As estepes diminuem o indivíduo. Eu me lembro de uma vez ter
cruzado o vale do Rio Kafue, na África Central, uma várzea totalmente plana, inundada
sazonalmente. Vimos o que pareciam ser algumas árvores a distância; então elas
começaram a se mexer. Era uma manada composta por milhares de antílopes. Os
cavaleiros de Gêngis Khan deviam parecer árvores em movimento na imensidão das
estepes, que traziam perigo, ameaça e carnificina. Dizem que o Grande Khan falou para
William de Rubreck: “Assim como o sol estende seus raios, também meu poder... se
estende por toda parte".
Localidades mencionadas no texto. Algumas regiões menores foram omitidas.
Ano 1100. O vento norte extremamente frio açoita o rosto dos cavaleiros, encolhidos em
seus selins, inclinados na escuridão. Seus cavalos compactos trotam firmemente,
indiferentes ao frio, seguindo um caminho praticamente impossível de distinguir através
do vale estreito. Mais adiante estão os limites intermináveis de pastos áridos, onde um
homem pode se perder em questão de horas sem que encontre qualquer referência para
orientá-la. Mal começou o ano e já estão se mudando, sabendo que a sobrevivência
depende de sua jornada de reconhecimento. Eles seguiram para o Norte deixando o
refúgio do acampamento de inverno, viajando pelo vale onde eles e seus ancestrais
pastoreiam seus animais há mais tempo do que são capazes de lembrar. Enquanto
cavalgam, conservam o olhar atento, perscrutando o horizonte à procura de outros
cavaleiros, talvez hostis, buscando lugares de bom pasto e sinais de que a chuva caiu
enquanto a neve derretia. Em poucos dias, cavalgarão em direção ao Sul, com o vento
às suas costas, armados com a inteligência intuitiva a respeito dos elementos da vida
nas estepes - grama para o pastoreio e água. De volta ao acampamento de inverno, o
Khan e seus conselheiros ouvirão suas recomendações para programar a movimentação
do grupo em direção ao Norte, para as pastagens de verão.
Para os mongóis, o cavalo era tudo - comida, leite, queijo, iogurte e até mesmo fonte de
álcool na forma do leite fermentado das éguas, o cúmis. Os cavalos eram riqueza,
prestígio, potente arma militar e, acima de tudo, fonte de liberdade, e mobilidade. Na
época do Grande Khan, o corcel compacto e vigoroso dos mongóis era parte integrante
da vida nas estepes havia pelo menos 4.500 anos.
Os cavalos foram domesticados em torno de 3.500 a.C., muito depois dos bois, cabras e
ovelhas, às margens das estepes e provavelmente em vários locais: na região do Mar
Negro; provavelmente, também nas Montanhas Altai, que ainda são pouco conhecidas
arqueologicamente. Os cavalos se adaptavam muito melhor do que outros animais ao
frio intenso e à neve, e isso desde a idade do gelo, quando passaram a ser uma das
presas favoritas de um pequeno número de caçadores das planícies. Entre 3.300 e 3.100
a.C., um ciclo climático mais frio, mais seco (que coincidiu com uma seca rigorosa na
Mesopotâmia) levou à domesticação mais ampla de cavalos, que logo se tornaram
fundamentais para a vida humana na estepe e mudaram a história.
A equitação representou uma mudança revolucionária, apesar de lógica, no transporte
humano. Diminuía o tempo de viagem através da estepe, permitindo que as pessoas
explorassem recursos alimentares muito dispersos, aumentando os limites territoriais em
cinco vezes e zombando das limitações anteriores. Nas estepes, os recursos alimentícios
podiam ser ricos em algumas áreas, como nos vales de rios maiores, mas grandes
extensões de território pobre, às vezes hostil, separavam áreas de abundância. Quem
quer que conseguisse cobrir essas distâncias com relativa rapidez poderia sobreviver na
estepe, e o resultado foi a mudança de toda a forma da sociedade. Agora era possível
transportar grandes quantidades de comida e outros produtos com facilidade,
especialmente quando se combinavam os cavalos com os carros de bois. A riqueza seria
medida ao menos em parte pelos cavalos; a interdependência com os vizinhos e
fazendeiros estabelecidos aumentaria porque os cavalos eram uma mercadoria
desejável, que facilitara o comércio de longas distâncias. Acima de tudo, os cavaleiros
montados poderiam cruzar longas distâncias para atacar seus inimigos e depois recuar
em segurança para escapar de seus perseguidores a pé. Na época de Gêngis Khan, as
pilhagens, os ataques e a guerra eram parte integrante da vida nas campinas havia
milhares de anos. Seus precursores remotos, os citas, eram os "bárbaros" típicos,
rondando o norte do mundo clássico civilizado. O historiador grego Heródoto escreveu a
respeito de suas guerras selvagens descrevendo como eles escalpelavam seus inimigos,
transformando suas caveiras em canecas, que eles fixavam com ouro e carregavam em
seus cintos. Quando atacados, simplesmente desapareciam na vastidão da estepe.
Os citas são considerados a melhor cavalaria leve do mundo. Foram esses mestres
cavaleiros que introduziram os cavalos na Europa temperada. Acredita-se que seus
sucessores, os sármatas, que interromperam seu domínio no século IV a.C., inventaram
o estribo, o que permitiu que carregassem longas lanças enquanto se mantinham em
cima da sela e derrubassem seus inimigos dos cavalos.
Os nômades da estepe não se fixavam em um só lugar, pois isso seria um convite ao
desastre devido ao pastoreio excessivo. Eles viviam de suas manadas e seus cavalos; às
vezes plantavam cereais em locais convenientes, abandonavam as plantações sem
cuidados e voltavam meses depois para a colheita. Mas também se envolviam em uma
dança intrincada com o pêndulo climático por causa de suas vulneráveis montarias.
Os cavalos traziam mobilidade, mas também podiam ser uma grande desvantagem
devido à sua ineficiência digestiva. O gado se alimenta com eficiência no sentido de que
excreta apenas 25% da proteína que consome. Isso significa que pode comer grama
seca, com pouca proteína, e ainda assim sobreviver. Os cavalos digerem apenas 25% da
proteína que consomem; o resto é excretado. Ambos usam o que é chamado de câmara
de fermentação para transformar a proteína das plantas em energia. A câmara da vaca,
ou rúmen, fica em um ponto do corpo em que a comida ainda não foi digerida. Ali, a
ação das bactérias quebra a proteína da planta, boa parte dela presa nas paredes das
células das plantas. A proteína que acaba de ser quebrada para o duodeno, é quebrada
ainda mais em aminoácidos. A partir daí, a proteína passa para o intestino delgado; ali,
ela é absorvida pela corrente sanguínea e utilizada para objetivos importantes, como a
formação de músculos e alimentação dos fetos. O rúmen do cavalo fica no intestino
grosso, em uma posição onde o alimento já passou pelo duodeno e intestino delgado.
Por isso o cavalo produz pequenas quantidades de aminoácidos e não absorve grandes
quantidades de proteína pelas paredes do intestino. A proteína da planta é quebrada
pela ação de bactérias num ponto ineficaz e se transforma em proteína rica em
hidrogênio, que beneficia o solo, não o animal.
Normalmente, o pasto é tão abundante nas estepes que nem o gado nem os cavalos
precisam reter toda a proteína das plantas que comem. Mas, em épocas de seca, a
proteína se torna escassa. A grama viva tem cerca de 15% de proteína; morta, apenas
4%. Quando a seca mata a grama fresca, a retenção de proteína se torna extremamente
importante. O gado retém três vezes mais proteína do que os cavalos.
Os cavalos tinham mais utilidade em termos de estratégia militar e para levar cargas,
mas um único inverno frio ou um verão intenso poderiam matar dezenas de animais,
especialmente quando o chão ficava coberto por uma grande camada de neve ou
quando faltava alimentação no inverno. As fêmeas não conseguiam alimentar os filhotes;
animais famintos começariam a morrer alguns meses depois, com a seca destruindo não
só os filhotes mas também uma fonte vital de leite, queijo e iogurte. Os nômades eram
obrigados a comer seus cavalos mortos. Se o ciclo de seca durasse dois ou três anos, os
efeitos seriam ainda mais desastrosos. Incapazes de encontrar comida, sem os seus
cavalos, e incapazes de se defender ou atacar, eles não tinham escolha senão juntar-se
a outros grupos, morrer de fome, ou mudar-se. Em alguns anos, milhares de cavalos
iriam morrer. Só havia uma solução: procurar pastos melhores. Estes normalmente
ficavam ao sul, às margens das terras - e às vezes nas próprias - cultivadas por
lavradores.
A dança entre os nômades e a seca começou muito antes de Gêngis Khan e persiste até
nossos dias. Nela talvez esteja uma das razões por que as hordas do Grande Khan
irromperam oito séculos atrás sobre um mundo despreparado, que de nada suspeitava.
As estepes são um grande vazio no que diz respeito aos estudos climáticos: as
observações instrumentais, ainda hoje, são poucas e espaçadas. Por isso mesmo, os
registros históricos da época medieval são uma raridade preciosa, mesmo aqueles que
dizem muito pouco sobre os acontecimentos climáticos. Os climatologistas russos
catalogaram eventos climáticos extremos, como grandes secas na Eurásia desde o início
do século XI, registrando ciclos de calor excepcional e períodos de frio de mais de trinta
anos. Eles relacionaram esses ciclos aos registros de trinta anos de temperatura e
chuvas tirados de variáveis locais como anéis de árvores e informação hidrológica. As
curvas de temperatura resultantes falam de um ciclo de aquecimento de quatro séculos
começando por volta do ano 850, com invernos moderados e verões secos, o que
coincide com as condições de aquecimento na Europa Ocidental. Não que o clima tenha
sido sempre benigno. As Crônicas de Novgorod falam de chuvas de outono catastróficas
em 1143 e 1145, que destruíram colheitas e provocaram fome. Os cronistas também
falam a respeito de 17 anos de fome provocada pelo clima durante o início do século XIII,
culminando com um período de fome induzida pela seca em 1215, que forçou os
habitantes da cidade a comerem cascas de árvore e vender suas crianças para servirem
de escravos. Em 1230, outra seca trouxe mais sofrimento: “Algumas pessoas comuns
mataram os vivos e os comeram; outras cortaram a carne morta e os cadáveres e os
comeram; outras ainda comeram cães e gatos... Outras se alimentaram de musgo,
lesmas, cascas dos pinheiros, folhas de visgo e olmo, e o que quer que encontrassem".
Esses desastres ocorreram no auge de épocas de aquecimento bem-documentadas na
Europa Ocidental, quando navios nórdicos ainda viajavam para a Islândia e Groenlândia
e traziam madeira de Labrador. No mesmo período, os eslavos colonizaram a costa do
Ártico russo, em Novaya Zemlya, antes da chegada da Pequena Idade do Gelo.
Os cronistas de Novgorod dizem que o clima dos séculos de aquecimento da Eurásia
jamais foi estático; graves secas e invernos rigorosos se alternaram com períodos mais
tranqüilos, mais benignos, como os do início do século XlV. Desde a Idade do Gelo, a
Oscilação do Atlântico Norte e sua gangorra de pressão atmosférica entre os Açores e a
Islândia governaram o clima da Europa Ocidental. A alta pressão sobre os Açores e a
baixa pressão sobre a Islândia trazem sempre ventos de Oeste e invernos amenos. Mas
quando a alta pressão se forma sobre a Islândia e Escandinávia, as temperaturas de
inverno despencam tanto no Ocidente quanto nas estepes. A Ásia Central está longe das
influências moderadoras do Atlântico e do Pacífico; os sistemas do clima continental
causam mudanças dramáticas nas chuvas e temperaturas, alterando o ambiente das
planícies em poucos dias. Mesmo uma primavera ligeiramente tardia ou poucas semanas
de seca de verão podem devastar o pasto de um ano. Os registros dos cronistas de
Novgorod não se aplicam, é claro, às estepes, mas podemos ter certeza de que o padrão
de ciclos mais frios e mais úmidos, mais quentes e mais secos, aplicava-se a quase toda
a Eurásia.
A Oscilação do Atlântico Norte - North Atlantic Oscillation (NAO) é uma gangorra irregular
de mudanças na pressão atmosférica entre a alta contínua sobre as Ilhas dos Açores, no
Atlântico, e uma baixa que permanece sobre a Islândia. As mudanças da NAO fazem
parte da complexa dinâmica entre oceano e atmosfera no Atlântico Norte, que ainda
hoje é pouco compreendida. Mas a NAO tem importância crítica, pois afeta a posição e a
força de tormentas no Atlântico Norte, que levam chuva para a Europa e partes da
Eurásia. Quando a baixa pressão persiste sobre a Islândia e a alta pressão se forma
próximo a Portugal e os Açores, ventos de oeste persistem sobre o Atlântico Norte,
tempestades de inverno são fortes, chuvas na Europa Setentrional são abundantes e
temperaturas de inverno são amenas. Inverta-se o índice de "alto" para "baixo", quando
a pressão é alta no norte e baixa no sul, e a Europa sofre com temperaturas muito mais
frias de inverno enquanto os ventos de oeste ficam mais fracos. Um ar extremamente
frio sopra do sul e do oeste do Pólo Norte e da Sibéria. Ninguém conseguiu ainda prever
as alterações da NAO, que pode permanecer em "alta" ou em "baixa" por sete anos ou
mais, até mesmo por décadas, mas às vezes está sujeita a mudanças rápidas.
Há outro gradiente de pressão que também afeta os invernos da Europa. Durante
"baixas" extremas, formam-se sistemas de alta pressão constante entre a Groenlândia e
a Escandinávia. As temperaturas ficam então acima da média na Groenlândia e muito
mais baixas do que o normal tanto no norte da Europa quanto no leste da América do
Norte. Quando a pressão sobre a Groenlândia é mais baixa do que na Europa, invertem-
se as temperaturas, e os invernos europeus são mais amenos. Essa "baixa na
Groenlândia" deve ter persistido durante os séculos de aquecimento.
O comportamento da NAO depende de muitos fatores complexos, entre eles as
temperaturas da superfície da água no Atlântico, das águas mornas na Corrente do Golfo
e dos poderosos mergulhos perto do sul da Groenlândia, que fazem com que grandes
quantidades de água pesada, salgada, da Corrente do Golfo afundem bem abaixo da
superfície dos oceanos para abastecer a corrente transportadora do oceano que circula
água pelos mares do mundo. Existem ligações claras entre a NAO e as rotações
complexas da oscilação no Pacífico Sul (ver Capítulo 9), que geram os fenômenos El Niño
e La Niña, mas eles ainda não foram muito bem definidos.
As secas na estepe são causadas geralmente por sistemas persistentes de alta pressão
sobre o Ártico. Esses sistemas, que podem permanecer estacionários por longos
períodos, impedem a passagem dos sistemas frontais que normalmente levam as chuvas
e atraem um frio intenso e ar seco dos mares do Norte. O ar fresco do Ártico acentua as
condições de ar seco. Em 1972, por exemplo, um anticiclone centrado sobre Moscou
permaneceu durante todo o verão, bloqueando a passagem das depressões do Atlântico.
Condições extremamente quentes, quase desérticas, em regiões como o Volga e a
Ucrânia, cortaram as chuvas de verão em 20% a 30% em média e resultaram em
umidade relativa muito baixa. As temperaturas ficaram 3ºC a 7°C acima do padrão; o
calor sugou toda a umidade que vinha do solo. Sem dúvida, secas de intensidade
semelhante ocorreram nos séculos anteriores.
Os nômades medievais tinham consciência das variações climáticas de ano para ano.
Invernos longos, com muita neve, despojavam os pastos de sua grama. A preciosa
alimentação de inverno tinha que ser esticada por dois meses ou mais, sendo oferecida
em quantidades cada vez menores. Os bois e o gado subsistiam com as raízes da grama
e perdiam peso. Alguns ficavam tão fracos que precisavam de ajuda para se erguer. As
perdas nos partos aumentavam vertiginosamente. Animais emaciados pereciam com o
frio ou se perdiam na neve alta. Durante os invernos especialmente frios, tanto animais
quanto seres humanos morriam em números elevados.
O verão chegava de repente. A neve derretia rapidamente, transformando as planícies
em charcos, córregos transbordantes, o que atrapalhava os movimentos nas pastagens
de verão. Temperaturas crescentes significavam que havia pouca água penetrando o
solo, o crescimento da grama era fraco, e o pasto de verão era, na melhor das hipóteses,
pobre. A única proteção contra esses desastres era o movimento. Nas regiões centrais
da estepe, os nômades viajavam o máximo que podiam em direção ao sul durante os
meses frios para garantir que os pastos ficassem sem grama pelo menor tempo possível.
No verão, seguiam em direção ao norte, para vales de rios estratégicos, abrigados, áreas
onde as chuvas eram um pouco mais abundantes e a grama, de melhor qualidade.
A água e sua distribuição pela paisagem também eram variáveis críticas. Cada tribo
definia seu território ao redor de sistemas fluviais, principalmente dos vales de rios
incrustados na estepe, que eram a fonte de vida desse território. Os nômades passavam
o inverno em casas construídas em elevações no vale, abaixo do nível da planície; então,
migravam para o norte na primavera, às vezes já em fevereiro ou março nos anos mais
amenos, ou no fim de maio, naqueles mais frios. O movimento sazonal em direção ao
norte parava e continuava, dependendo do pasto que encontravam, e às vezes era
interrompido por rios mais largos. Eventualmente, deixavam os animais se alimentarem
em pastagens ricas, que podiam cobrir até 8.400 quilômetros quadrados. Em anos
amenos, semeavam cereais, negligenciados até quase a mudança para o sul. Nos anos
secos e frios, não conseguiam plantar, pois chegavam muito tarde às pastagens de
verão para semear, tendo pouco tempo até que o tempo frio do inverno destruísse a
plantação.
Cada mudança na temperatura e nas chuvas alterava a relação entre os nômades e o
meio ambiente. Os períodos mais secos, com ameaças à vida, traziam pastos mirrados,
dizimavam os rebanhos, ampliavam a busca por grama e água, e, inevitavelmente,
levavam a violentas invasões dos territórios vizinhos. Nos ciclos com mais água, os
rebanhos aumentavam, a capacidade de pastagem das terras melhorava muito, e os
territórios encolhiam, com uma redução nas guerras. Durante séculos, aqueles que
viviam às margens da estepe viveram com medo dos nômades violentos, que chegariam
sem aviso e causariam destruição em sua busca por melhores pastagens.
O afastamento de Batu Khan coincidiu com a volta de condições mais frias e úmidas, o
que beneficiou as pastagens das estepes. Seu reino floresceu por gerações de boas
pastagens, quando a guerra cessou. Embora Batu mantivesse a ambição de voltar para o
Ocidente, as boas condições de pastagem em casa permitiam que seu povo ocupasse
um grande território desde o Volga-Don até a Bulgária. Não havia incentivos para
conquistas ambiciosas quando existiam pastagens abundantes e florescia o comércio
com terras mais ao sul.
Mas o que teria acontecido se o pêndulo climático não tivesse balançado, e se as secas
tivessem se intensificado na estepe? A julgar pelos séculos anteriores, as guerras e a
movimentação desassossegada teriam continuado e, quase certamente, Batu Khan e
seus generais teriam retornado para o Ocidente. Seus espiões já haviam fornecido um
quadro dos reinos beligerantes e de seus exércitos com guerreiros de armaduras, que já
haviam mostrado que não eram páreo para os cavaleiros e arqueiros mongóis. Eles
teriam seguido seus planos originais, elaborados com o general Subutai: invadir a
Áustria e destruir Viena primeiro; depois, avançar contra os principados germânicos
antes de voltar sua atenção para a Itália. Se tudo corresse bem, eles teriam então
marchado sobre a França e a Espanha. Em poucos anos, talvez já em 1250, a Europa
teria se tornado parte do império mongol ocidental.
Será que isso de fato iria ocorrer? Os mongóis já haviam derrotado formidáveis exércitos
europeus em batalhas decisivas nas planícies húngaras, onde milhares haviam perecido.
As histórias de conquistas implacáveis e carnificina indiscriminada que os precederam
teriam dado a eles uma grande vantagem psicológica em uma Europa dividida em
facções e rivalidades crônicas. Na época em que Batu dominou a Europa, os mongóis
haviam acumulado grande experiência não apenas nas conquistas, mas também na sua
assimilação e adaptação a outras culturas e religiões. Se a história da Ásia Central pode
servir de guia, a civilização européia teria continuado a florescer enquanto novos
conquistadores seriam absorvidos em seu tecido.
Mas existem questões fascinantes. A Europa teria se transformado em continente
muçulmano, ou teriam os mongóis, com sua tolerância religiosa, deixado em paz a igreja
católica? Se tivesse ocorrido a conquista, teriam existido incentivos para que os
exploradores e mercadores europeus encontrassem novos caminhos para alcançar as
riquezas da Ásia, abrindo novas rotas marítimas através do Atlântico e contornando o
Cabo da Boa Esperança até a índia, quando poderiam ter rotas por terra através de um
império unificado? E qual teria sido o impacto dos mongóis sobre a Espanha muçulmana?
Ali, poder-se-ia esperar o mesmo processo ocorrido na Ásia Central: um ambiente em
que floresceria o islamismo, e talvez até se expandisse para o Norte, passando os
Pireneus.
Haveria um ponto em que o ritmo da conquista desaceleraria - talvez quando os
conquistadores alcançassem o Atlântico, ou até antes. Se o pêndulo climático não
tivesse balançado de volta, não teria havido incentivo para voltar para casa, para
encontrar uma terra árida, devastada pela seca. E nem a paz teria descido sobre as
estepes, onde, sob condições benéficas e com amplas pastagens, a cada verão as tribos
deixavam seus acampamentos de inverno no sul, perto do Mar de Azov e de Astracã-
Sarai, e seguiam para as pastagens de verão às margens dos rios Don e Oka. Com todo o
poder de atração da estepe e da vida nômade, o centro de gravidade política e
econômica do império da Horda Dourada teria ido para o Oeste, para terras melhor
irrigadas e mais estáveis. Mas, mesmo assim, tal como acontecera com os domínios de
Gêngis Khan, a mera dimensão do império, a corrupção e a administração ineficiente
poderiam ter provocado a divisão da Europa em uma colcha de retalhos, composta por
estados muito diferentes daqueles que testemunharam a Renascença e a Era dos
Descobrimentos.
O fluxo e refluxo do poder mongol teria dependido em parte da realidade da vida
nômade, como havia acontecido durante milhares de anos. Quando as pastagens eram
boas, havia paz; quando o clima piorava e a seca devastava as estepes, a guerra
irrompia e os povos das terras assentadas tremiam de medo. O ritmo incessante de
quente e frio, de chuvas abundantes e períodos de seca, de grama mais do que
suficiente e nenhuma forragem, era um importante motor da história, a seu modo tão
poderoso quanto as mudanças econômicas, o fluxo e refluxo da intriga política, e as
habilidades de cada governante. Gêngis Khan e seus exércitos, assim como a menor das
tribos das grandes estepes, eram afetados pela mesma realidade. Quando a seca das
planícies coincidia com inquietações sociais e comandantes brilhantes, os alicerces da
história eram sacudidos. E, caso as secas tivessem continuado, a civilização européia
poderia ter atualmente uma fisionomia muito diferente.
CAPÍTULO 4
O Comércio Dourado dos Mouros
Eles começam a partir de uma cidade chamada Sijilmassa (...) e viajam pelo deserto
como se estivessem no mar, tendo guias para orientá-los pelas estrelas e pelas pedras
dos desertos.
A história climática do Saara e do Sahel, região dominada por vegetação de savana que
ocupa a margem sul do deserto, é uma crônica implacável das alterações caóticas, bem
documentada tanto do ponto de vista dos registros instrumentais modernos quanto dos
estudos das variáveis de testemunhos do fundo do mar perto da costa da Mauritânia.
Podemos até ligar alguns desses registros a testemunhos de alto-mar da importante
Bacia de Cariaco, na costa da Venezuela, descrita no Capítulo 8.
Os testemunhos do mar da Mauritânia revelam mudanças abruptas, recentes, de até
2,16°C na temperatura da superfície do mar no Atlântico Norte Oriental. Ao mesmo
tempo, mudanças na salinidade do oceano em diferentes níveis podem afetar o
funcionamento da corrente transportadora oceânica, fundamental para o clima mundial,
por transferir o calor dos trópicos para latitudes setentrionais. A temperatura da
superfície do mar no Atlântico Norte Oriental tem grande efeito sobre os ventos secos
que sopram pelo Saara. Se as temperaturas da superfície do mar estiverem mais baixas
no Atlântico Oriental, entre 10° e 25º ao norte, e mais altas no Golfo da Guiné, os ventos
de monção são deslocados para o sul, provocando seca no Sahel e no Saara. Sabemos
disso porque, entre 1300 e 1900, um resfriamento documentado nos núcleos do mar da
Mauritânia provocou condições de estiagem no Sahel, incluindo secas que podem ter
sido piores do que a desastrosa megasseca da década de 1960. Os núcleos nos
permitem fazer uma tentativa de reconstrução das condições climáticas dos últimos dois
mil anos, e durante o Período de Aquecimento Medieval:
. Entre 300 a.C. e próximo ao ano 300, as condições na África Ocidental eram estáveis e
secas - como acontecia tanto no Sudeste Asiático quanto na Bacia Amazônica -, com
chuvas um pouco abaixo dos níveis atuais. As pessoas se deslocaram para regiões com
melhor abastecimento de água, como o Médio Níger, onde surgiram vilarejos.
. Depois do ano 300, os índices pluviométricos devem ter aumentado de 125% a 150%
em relação aos níveis atuais, até o ano 700, época em que o Lago Chade, antes
insignificante, expandiu-se dramaticamente. (Não há evidências de períodos de seca
intercalados, mas pode ser que não tenham sido detectados.) Então, entre os anos 900 e
1100, ocorreu uma transição abrupta para condições muito mais instáveis, refletidas
numa variabilidade crescente das monções na Bacia de Cariaco, no outro lado do
Atlântico. Às vezes, ocorriam precipitações de chuva estáveis, elevadas; em outras
vezes, seca. As margens do Saara estavam mudando constantemente.
Nas estepes eurasianas, a vida dependia do gado e dos cavalos, das boas pastagens.
Quando as temperaturas subiam e a seca se abatia sobre os pastos, os nômades saíam
em busca de água e novas pastagens. As planícies e planaltos desolados do Saara não
eram um lugar em que gado e cavalos poderiam prosperar mil anos atrás, mesmo que
houvesse um ligeiro aumento nas chuvas. Na era clássica, o deserto era um ermo
assustador. Heródoto afirmou que a Líbia, na costa mediterrânea, "estava infestada de
animais selvagens. Mais para o interior, longe da área cheia de animais, a Líbia é um
deserto arenoso, totalmente sem água, e completamente desabitada por alguém ou
alguma coisa". Somente alguns pastores nômades dispersos sobreviviam perto dos
oásis, e para eles a distância entre sobrevivência e inanição era tão fina quanto uma
lâmina. Quem quer que vivesse ali era forte, engenhoso, e estava sempre se deslocando.
Os romanos transformaram a África do Norte em um próspero celeiro, mas jamais
cruzaram o deserto em direção às terras tropicais do sul. Não tinham animais de carga
para poder viajar durante dias numa época sem água. Cruzar regularmente o Saara com
animais carregados significava combinar um comportamento altamente adaptável com
um animal capaz de ficar até dez dias sem água. Esse animal era o camelo. E seu pêlo
era extraordinariamente imune à seca.
O comércio do ouro jamais teria prosperado sem o camelo, mas foi o desenvolvimento
de uma sela capaz de transportar carga que o transformou em "barco do deserto". O
camelo armazena gordura na corcunda; o pescoço longo possibilita que se alimente de
árvores e arbustos; e a pata acolchoada permite que caminhe na areia macia. Os
camelos conservam a água através de um eficiente sistema renal e absorvem o calor
permitindo que a temperatura corporal suba significativamente sem transpirar. Os
romanos sabiam tudo sobre camelos. Usavam-nos na África do Norte para puxar
carroças, e até como barreiras defensivas para proteger os soldados. Eles sabiam que
esses animais irritadiços adaptavam-se muito bem nas condições do deserto. Mas suas
vantagens tinham valor limitado sem uma sela eficiente para transportar carga, que os
romanos desconheciam.
A sela do camelo saariano começou a ser usada no início da Era Cristã, provavelmente
em torno do Vale do Nilo, no que agora é conhecido como o moderno Sudão, não para
luta, mas para carga. A sela fica sobre os ombros do animal, à frente da corcunda, e
posicionada de forma a maximizar sua capacidade de carga, sua resistência e controle.
O responsável pela condução do camelo saariano dirigia o animal usando uma vara ou
os dedos dos pés. Pela primeira vez, caravanas de camelos podiam carregar água e
provisões suficientes (para os seres humanos do grupo) na travessia de longas distâncias
entre os oásis da África do Norte até o Sudão Ocidental.
Ninguém sabe quando foi que as primeiras caravanas de camelos atravessaram o Saara
Ocidental, mas isso ocorreu bem antes da conquista da África do Norte pelos exércitos
islâmicos no século VII. Eles seguiam por trilhas vagas que logo se transformaram em
rotas de comércio controladas pelos comerciantes muçulmanos que vinham de uma
cultura com visão muito mais ampla do mundo do que seus predecessores da África do
Norte.
As caravanas saarianas seguiam uma rotina bem definida. Camelos abarrotados de
carga arrastavam-se penosamente para o sul a partir de Sijilmassa, até Taghaza, onde
pegavam sal nas minas vizinhas. Na África, o sal é um bem precioso até hoje, pois faltam
fornecedores locais. De Taghaza eles seguiam até Walata, Gana e Jenne, no meio do Rio
Níger. A jornada era perigosa mesmo sob circunstâncias favoráveis. O deserto era
sempre hostil, mesmo em épocas de precipitações pluviométricas um pouco mais
elevadas. O calor e a desidratação eram lima ameaça constante. Assim como os
nômades do deserto, vestidos com albornozes azuis, armados com escudos bordados e
lanças, que atacavam impiedosamente sem qualquer aviso. A maioria dos organizadores
de caravanas negociava acordos com os chefes nômades para garantir uma passagem
segura pelos oásis que eles controlavam. Os nômades também forneciam guias, que
usavam formações rochosas e estrelas para se orientar. Forneciam camelos para os
mercadores, que os vendiam de volta no fim da jornada.
As caravanas eram comboios bem organizados. Os camelos carregados com mercadorias
eram acompanhados por muitos outros carregando água e provisões, ou servindo de
montaria. A segurança estava nos números - segurança em relação aos ataques de
nômades, com grande número de animais carregando água e alimento, e capacidade
para transportar grandes cargas e lucrar bastante. No século XII, algumas caravanas
chegaram a ter de mil e duzentos a dois mil animais.
A jornada em si durava entre seis semanas e dois meses, com a partida no outono. O
contemporâneo geógrafo muçulmano al-Idrisi escreve: "Os camelos são carregados
muito cedo e viaja-se até o sol aparecer no horizonte e o calor produzido na terra ficar
insuportável". As caravanas descansavam até o fim da tarde, depois prosseguiam
silenciosamente durante a noite, guiadas pelas estrelas, como acontece até hoje.
As caravanas de camelos empreenderam a longa jornada através do Saara mesmo nos
anos mais quentes do Período de Aquecimento Medieval. Aqueles que cruzavam o
deserto passavam boa parte do tempo adquirindo conhecimento a respeito do
suprimento de água, pois os poços e os oásis eram vitais para uma jornada segura. As
condições nunca eram as mesmas de um ano para outro. Os ciclos de seca e umidade
afetavam os padrões do comércio. Quando as condições eram de maior umidade,
perfurava-se um grande número de poços no cascalho aquoso do Saara Central, em
torno do Maciço de Hoggar e Adrar des Iforas. Muitas caravanas seguiam então rotas
diretas pelas dunas do Saara Central até Taghaza e a cidade de Awdaghust (na atual
Mauritânia), na fronteira do deserto, um importante centro do comércio de sal. Durante
os ciclos de seca, as caravanas seguiam por rotas mais sinuosas até o oeste, ou,
passando a leste ou ao norte de Bilad es-Soudan, viajavam até Adrar des Iforas, depois
para oeste, terminando em Sijilmassa. A versatilidade do camelo garantia flexibilidade
suficiente para seguir a rotação da bomba do deserto. O número de animais mortos ou
exaustos podia ser enorme; as perdas freqüentemente rondavam a casa das centenas,
somente em uma caravana. Os esqueletos gastos de camelos e de seus condutores
ficavam espalhados pelas rotas, mas o comércio do ouro nunca foi interrompido. O
camelo e sua sela de carga revelaram-se uma arma eficiente contra o calor e a seca
mesmo nos piores anos, quando a aridez extrema afetou o gado e as pessoas que viviam
ao sul do deserto.
O rei se enfeita tal qual uma mulher, usando colares em torno do pescoço e braceletes
nos antebraços; na cabeça, usa uma touca alta decorada com ouro e envolta por um
turbante de algodão fino. Ele mantém uma audiência em um pavilhão abobadado em
torno do qual ficam dez cavalos cobertos com materiais bordados a ouro; e à sua direita
estão os filhos dos reis-vassalos de seu país, usando vestimentas esplêndidas e com os
cabelos salpicados de ouro.
À porta do pavilhão estão cães de excelente linhagem. Em torno do pescoço eles usam
colares de ouro e prata, enfeitados com várias contas feitas com os mesmos metais.
A descrição que al-Bakhri faz de Gana é composta por material extraído de lendas. Ele
nunca visitou o Sahel, mas construiu seus relatos a partir de fontes dos arquivos de
Córdoba. Sua Gana era uma corte de estilo Mediterrâneo enterrada na África, uma
capital com duas cidades; uma com doze mesquitas, freqüentadas por mercadores
muçulmanos, e a outra, uma mistura de bosques sagrados e tumbas reais, a pratica-
mente dez quilômetros de distância. O tesouro real incluía um lingote de ouro que diziam
pesar cerca de 13,6 quilos, tão grande que ficou famoso tanto no mundo cristão quanto
no muçulmano.
Acredita-se que a capital de aparência imponente, Kumbi Saleh, ficasse a cerca de 480
quilômetros a sudoeste de Timbuktu e da curva do Rio Níger. Há realmente muitas ruínas
de pedra nessa área, e também inscrições em árabe, mas não há vestígios de qualquer
construção real ou dos túmulos descritos por mercadores muçulmanos. As ruínas ficam
nos limites mais setentrionais do Sahel, onde a agricultura teria sido praticamente
impossível mesmo em períodos de muita chuva. É bem provável que Kumbi não tenha
sido a capital de Gana, mas uma pequena comunidade comercial, parte de um reino
inteiramente diferente, mais descentralizado. Até o momento, o reino de Gana per-
manece indefinível, sua capital itinerante. Nossa única certeza é de que não era um
sistema islâmico, mas um império nativo africano, muito diferente daquilo descrito por
al-Bakri, com raízes profundas na África Ocidental, de onde vinha o ouro.
Durante muito tempo, as fontes do ouro permaneceram um mistério. Escrevendo no ano
872, o historiador al-Yaqubi repetiu uma história bastante difundida sobre o ouro
brotando da terra como se fosse cenoura. Como sempre acontece quando o assunto é
ouro, as histórias foram aumentando até produzirem uma "Ilha do Ouro", em que o metal
precioso seria de quem o encontrasse. Os mineiros tinham consciência do valor do ouro
e mantinham os locais de seus depósitos do minério em segredo para impedir que
forasteiros tentassem controlar o suprimento. Por esse motivo, recusavam-se a fazer
negócio cara a cara: os mercadores empilhavam as mercadorias às margens do rio, de
pedras de sal em sua maior parte, e passavam sem ser vistos enquanto a população
local amontoava o ouro junto de cada pilha. Se os visitantes estivessem satisfeitos,
levariam o ouro e partiriam batendo em tambores para sinalizar o fim da transação. Em
certa ocasião, eles capturaram um mineiro para tentar descobrir a fonte do ouro. Ele de-
finhou até morrer sem revelar qualquer coisa. O comércio cessou por três anos até ser
retomado.
Os mineiros de Bambuk e Buré, outra área a leste, eram tímidos, pessoas retiradas que
protegiam zelosamente suas atividades de mineração de ouro, motivo pelo qual se
organizaram no comércio silencioso. Nenhum mercador berbere do Saara jamais visitou
os campos de ouro, por isso, a Ilha de Ouro permaneceu um mistério. Continua a ser um
enigma geográfico até hoje. No século XII, al-Idrisi descreveu a ilha como uma área de
aproximadamente 500 quilômetros de comprimento por 300 de largura, que todos os
anos alagava, onde a população local "juntava ouro". A posição da ilha em seu mapa
coincide com a que era sazonalmente alagada no delta do Médio Niger, habitada por
pescadores e lavradores que falavam mande.
O Níger é um dos grandes rios da África, subindo pelas montanhas da Guiné, perto da
fronteira de Serra Leoa, e depois seguindo para o nordeste, desaguando em um grande
delta interior, uma colcha de retalhos composta por afluentes, canais, pântanos e lagos.
Essa planície interior é o que o arqueólogo Roderick McIntosh chama de "um vasto
jardim aluvial adjacente ao desolado Saara". Ali, as redes de caravanas do deserto
entraram em contato com rotas de comércio fluvial muito mais antigas. A várzea do
Médio Níger era rica em cereais e outras mercadorias básicas, incluindo argila para
cerâmica, mas, assim como a Mesopotâmia, carecia de pedra, minério e sal. Durante
muitos séculos, agricultores e pescadores mandes da região desenvolveram uma rede
de contatos com outros povos próximos e distantes para suprirem suas necessidades.
Eles também eram participantes ativos do comércio de ouro saariano.
Os povos mandes (o termo se refere à língua comum de muitos grupos) descendem de
povos saarianos, e se estabeleceram no Sahel durante uma série de secas que afetaram
a região, cerca de dois mil anos atrás. Atualmente, os que falam a língua mande ocupam
uma grande área da África Ocidental, que vai da Gâmbia à Costa do Marfim. Eram
lavradores de painço e pastoreavam gado, além de mercadores, que trocavam cobre, sal
e pedras semipreciosas com seus contatos no deserto. Em seu movimento para o sul,
muitos deles colonizaram as bacias férteis do Rio Níger.
Atualmente, as cheias anuais inundam cerca de 55 mil quilômetros quadrados de
charcos e lagos, mas cobriram uma área muito maior em épocas mais úmidas no
passado. O ambiente da várzea é diverso, imprevisível, e constituído por solos e
acidentes geográficos radicalmente diferentes. Ali vivem os bozos, que são pescadores,
e os markas, que cultivam muitas variedades de arroz africano (Oryza glaberrima). Os
bozos estão sempre se mudando, suas vidas são ditadas pelos ciclos de reprodução dos
peixes pequenos e da enorme perda do Nilo. Em algumas ocasiões, até 150 canoas se
reúnem em torno de barragens artificiais, para grandes pescarias. Os markas ajudam
com os peixes grandes. Em troca, os bozos ajudam os markas com a colheita do arroz
durante grandes enchentes, quando a pesca é ruim.
Os markas, agricultores, comerciantes, artistas e músicos trabalham em um ambiente
absolutamente estressante. Diante de uma enchente repentina e de chuvas torrenciais,
o trabalho duro de um ano inteiro pode ser destruído em uma semana. Enchentes tardias
ou prematuras podem deixar os vilarejos arrasados. As chuvas irregulares do início da
temporada de chuva, ou anos de aridez, acabam com os campos que acabaram de ser
preparados, sem contar a depredação causada por roedores e pássaros. Os markas
combatem essas incertezas cultivando inúmeras variedades de arroz. Porém, acima de
tudo, seu sucesso depende de uma reserva de conhecimento sobre previsão do tempo
adquirida através de muitas gerações. Enquanto as qualidades únicas do camelo
forneceram aos líderes das caravanas a possibilidade de driblar os golpes climáticos, os
povos da Bacia do Níger adaptaram sua sociedade ao ambiente hostil e imprevisível com
uma brilhante combinação de engenharia social e observação ritual.
As sociedades que floresceram no Médio Níger milhares de anos atrás prosperaram com
a mudança constante em um lugar onde culturas diferentes viviam em um ambiente
excepcionalmente heterogêneo. Elas prosperaram não apenas cultivando uma grande
variedade de plantações, mas também fazendo uso extensivo da memória social.
Roderick McIntosh chama a Bacia do Médio Níger de "reservatório simbólico", um lugar
em que um corpo compartilhado de valores sociais que se originaram num tempo
remoto sobreviveu por milhares de anos para definir a história e a sociedade. Esse não
era um mundo de reinos altamente centralizados e autoritários, com todo o poder fluindo
para o centro, como foi o caso da antiga Mesopotâmia com sua suas cidades-estado
concorrentes. Não havia hierarquia de poder, como entre os antigos maias ou na Europa
medieval. Poderosos grupos aparentados e povos engajados em atividades de todos os
tipos, vivendo juntos sob um sistema com separação de poderes, que dava a todos uma
autonomia considerável, apoio mútuo e mais chances de sobrevivência no clima
imprevisível das margens do deserto.
As descrições de Gana feitas pelo geógrafo al-Bakri surgem durante os poucos séculos
de clima estável e relativamente favorável. A Gana que ele descreveu era um reino
fluido, marcado por sua organização heterogênea e flexível, forjada em parte pela
conquista, mas, o mais importante, por seus poderes independentes que sempre fizeram
parte da existência mande. Gana realmente possuía grande riqueza, porém seu maior
tesouro não vinha do ouro ou de coisas materiais, mas das ricas práticas e tradições de
sua cultura nativa, que permitia a seus membros prosperarem em um clima de extremos
impiedosos e violentos.
Diz a tradição que, no fim da vida, Dinga passou seu nyama acumulado para o filho, a
cobra-d'água Bida, gêmea do chefe fundador de Gana, Diabé Sissé. Bida concordou em
fornecer chuva e ouro suficientes de Bambuk, que ficava a vários dias de distância para
sudoeste, se lhe fosse entregue todos os anos a mais bela virgem do reino. Mas houve
um ano em que o pretendente da virgem matou a cobra. A cabeça decepada pulou sete
vezes e foi parar no rico Buré, muito mais perto de Mali. A produção de ouro transferiu-se
de Bambuk para Mali. Sete anos de fome e seca devastaram Gana. O reino desmoronou.
Quando o animal-espírito morreu, o nyama maligno interveio. O fato de Gana ter tido
problemas com seus vizinhos do deserto, assim que terminou o período de relativa
estabilidade climática, não foi uma coincidência.
As tradições orais são a história filtrada pela caprichosa memória humana. Talvez a
história do trágico fim de Bida e as secas que vieram em seguida constituam uma vaga
recordação das violentas oscilações climáticas; quem sabe uma seca memorável tenha
provocado o desaparecimento de um reino sempre flexível. Numa época de crescimento
das conquistas e da influência muçulmana, Gana permaneceu pagã até 1076, quando o
líder almorávida Abu Bakr capturou Koumbi e impôs o islamismo aos seus habitantes.
Um século e meio depois, no leste, o reino de Mali adquiriu proeminência, com o império
do ouro conquistando fama mundial através da peregrinação de Mansa Mussa, em 1324.
CAPÍTULO 5
Inuítes e Qadlunaat
Eles aprontaram o navio e o colocaram no mar. O primeiro lugar a aportar foi o país que
Bjarni vira por último. Eles se aproximaram da praia e lançaram âncora, depois
abaixaram um barco e desembarcaram. Não havia grama à vista, e o interior era coberto
por grandes geleiras, e, entre as geleiras e a praia, a terra era como uma grande laje de
pedra. Pareceu-lhes que aquele era um país imprestável.
Ano 1000. O nevoeiro paira sobre as ondas do Estreito de Davis, a oeste da Groenlândia,
compondo um delicado traçado em meio às sombras circundantes. O barbudo capitão
nórdico observa atentamente a escuridão, indiferente ao frio penetrante. A tripulação se
encolhe nos capotes pesados, exceto pelo timoneiro, que comanda o leme de esparrela
na popa. Dois jovens preenchem o tempo afiando suas espadas de ferro, passando
gordura pela superfície brilhante para evitar que enferrujem. A vela quadrada range e
geme com o movimento do barco, subindo e descendo com a ondulação do mar, o casco
flexível contorcendo-se sem esforço com as ondas. O navio navega lentamente, uma
pequena ilha na imensidão indistinta de trevas e ondas capazes de virar um barco. Um
vento frio do norte sopra através da escuridão, permitindo o mínimo de velocidade
náutica, nada mais. Os jovens tripulantes já passaram por situações incertas – esperas
intermináveis no meio de um temporal, dias e dias indo à deriva numa calmaria distante
da terra.
As horas passam lentamente enquanto a neblina adensa, diminui momentaneamente e
depois volta. Por fim, o vento se desloca para leste e fica mais forte. O vento leve se
transforma em boa brisa para velejar. A névoa se dissipa, revelando um horizonte claro e
um profundo mar azul. O timoneiro grita e aponta para a frente. Montanhas irregulares,
cobertas de neve, postam-se corajosamente contra o céu agora brilhante, destacadas
pelo sol de fim de tarde. Um suspiro de alívio coletivo cruza o barco. Se o vento de popa
se mantiver, eles chegarão no dia seguinte a um ancoradouro protegido entre as ilhas a
oeste.
Quando alcançarem a terra, os nórdicos sabem que encontrarão caçadores inuítes, cuja
subsistência é garantida, como sempre foi, pela pesca e por mamíferos marinhos. Eles
vieram à procura do marfim das morsas, mas têm apenas uma coisa em comum com os
habitantes nativos - o ferro.
A Eurásia e o Saara podem ter sofrido com a seca, mas os séculos de aquecimento foram
benéficos para aqueles que viviam no Ártico. No extremo norte, as condições de gelo
foram menos severas, e houve uma onda de navegações nórdicas em direção ao
Ocidente, para a Islândia e mais além. Esta é a história de como as condições favoráveis
no Atlântico Norte e no Ártico Canadense colocaram em contato transitório, durante os
séculos de aquecimento, dois mundos completamente diferentes - o dos nórdicos e o dos
povos inuítes, cuja ascendência chegava até o Estreito de Bering.
Ao contrário da crença popular, os nórdicos nunca navegaram para longe em seus navios
de guerra. Em vez disso, confiavam no knarr, um navio mercante robusto, capaz de
atravessar o oceano. Os knarrs eram leves, mas fortes, fáceis de consertar no mar ou em
praias remotas. As tripulações se mantinham com o peixe salgado, o bacalhau seco cura-
do nos ventos frios da primavera do Ártico, nas Ilhas Lofoten, junto à costa norte da
Noruega. Quando começou o aquecimento, capitães experientes navegaram para o
oeste por águas desconhecidas, exceto para um grupo de monges irlandeses que
haviam viajado até a Islândia em grandes umiaques algumas gerações antes. Poucas
tripulações aventureiras escreveram a respeito de suas experiências, que passaram para
as lendas celebradas pelas sagas nórdicas. Muitos navios jamais retornaram,
naufragando nas costas depois de ficarem retidos por causa das tempestades, ou
afundando sem deixar rastro devido a temporais em mar aberto. No entanto, colonos
nórdicos se estabeleceram nas Ilhas Orkney e Shetland, na costa norte da Escócia, no
início do ano 800, e nas Ilhas Faroe: pouco depois. No ano 874, o norueguês Ingólf
aportou na Islândia. No ano 900, os colonos tinham se estabelecido na ilha, levando sua
economia de laticínios. Nessa época, os invernos foram mais amenos do que haviam sido
durante séculos. Atualmente, os limites ao sul da massa de gelo do norte ficam a cerca
de 100 quilômetros da costa norte da Islândia; quando os primeiros colonos nórdicos
chegaram, o gelo tinha pelo menos o dobro dessa distância. Mesmo sob condições mais
amenas, a vida na Islândia era dura, especialmente depois de um inverno frio. Os
colonos combinaram os laticínios com a caça às focas e a pesca costeira do bacalhau. Os
verões mais amenos permitiram que cultivassem feno como forragem de inverno e
plantassem cevada até o século XII, quando condições mais frias tornaram novamente
impossível o cultivo de cereais até o início dos anos de 1900.
Por volta do ano 985, Erik, "o Vermelho", banido da Islândia por causa de brigas
familiares que resultaram em assassinato, navegou em direção ao Ocidente e aportou no
sul da Groenlândia. Ali ele encontrou pastagens melhores do que havia em casa. Em
pouco tempo, floresceram duas colônias, uma nas águas protegidas da costa sudoeste e
outra mais ao norte, no atual distrito de Godthab, na parte superior do Ameralik Fjord.
Os colonos viram-se em uma costa sem gelo durante quase todo o verão, naquela
época, aquecida pela corrente quente da Groenlândia que vinha do norte para abraçar a
praia. Essa corrente favorável levava os barcos de pesca dos colonos até os fiordes e
ilhas ao redor de Disko Bay, para um lugar em que abundava o bacalhau, as focas, as
narvais e as morsas. Ali, no que chamavam de Nordrsetur, juntaram marfim suficiente
para pagar, durante muitos anos, os dízimos às autoridades diocesanas na distante
Noruega.
A corrente da Groenlândia Ocidental caminha em direção ao centro do Nordrsetur e
Baffin Bay, onde dá lugar às correntes mais frias, que vêm do sul. Um simples passeio
pela costa teria mostrado aos nórdicos as montanhas cobertas de neve da Ilha de Baffin,
do outro lado do Estreito de Davis, que tem pouco mais de 325 quilômetros em seu
ponto mais estreito. As águas mais frias no lado oeste do estreito, ao longo da Ilha de
Baffin, Labrador e Terra Nova, são submetidas a uma estação fria mais longa, que forma
uma cobertura de gelo capaz de durar até o verão. Porém, durante os séculos mais
amenos do Período de Aquecimento Medieval, quando a camada de gelo se dispersava
relativamente cedo, a movimentação pelas margens orientais pode ter sido
consideravelmente mais fácil e menos perigosa.
Não sabemos quando os primeiros navios nórdicos chegaram à Ilha de Baffin, mas pode
ter sido antes da primeira vista documentada de Labrador, feita por Bjarni Herjólfsson
por volta do ano 985. Perdido no nevoeiro em meio aos ventos leves do norte, numa
passagem da Islândia para a Groenlândia, ele acabou avistando uma costa baixa coberta
por floresta muito diferente das montanhas geladas de seu destino pretendido. Voltou
sem ter desembarcado e foi criticado por isso. Posteriormente, seguiu-se a famosa
viagem de Leif Erikson, filho de Erik, "o Vermelho", que ancorou junto a uma costa
rochosa coberta de gelo; seguiu depois para o sul, com ventos de nordeste em
"Markland", na costa sul de Labrador, até chegar à boca do Rio St. Lawrence; depois,
mais para o sul em uma área ao sul do grande estuário, que ele chamou de Vinland, por
conta das uvas selvagens que encontrou ali. Fundou um pequeno assentamento em L'
Anse aux Meadows, na península setentrional do que hoje é a Terra Nova. O
assentamento continuou sendo utilizado durante anos.
Expedições posteriores, em busca da madeira de Labrador, entraram em contato com
numerosos nativos, o povo beothuk, que os combateram com tamanha ferocidade que
os nórdicos nunca se estabeleceram permanentemente na costa ocidental. "Quando eles
se aproximaram houve uma batalha feroz e uma chuva de projéteis veio voando", dizem
as Vinland Sagas. Durante dois séculos, navios da Groenlândia navegaram na direção
norte e oeste, utilizando posteriormente as correntes favoráveis para costear em direção
ao sul. Assim que construíam os barcos, ou simplesmente adquiriam a madeira, iam
direto para casa nas asas dos ventos de sudoeste. Os nativos e recém-chegados parece
que se evitavam.
Viajar pelas costas orientais do Estreito de Davis e pelo Labrador era perigoso, mesmo
nos séculos mais quentes. As tripulações enfrentavam nativos americanos hostis, ursos
polares, icebergs e tempestades repentinas junto à costa em águas reconhecidamente
castigadas pelo vento. A navegação nas águas geladas e próximas à costa era muito
mais perigosa para os nórdicos em seus barcos de madeira do que para os inuítes, com
seus umiaques e caiaques leves, que podiam ser retirados da água facilmente, eram
relativamente imunes a furos e fáceis de consertar. O gelo formado pela queda brusca
da temperatura poderia destruir um knarr em minutos, mesmo no verão. Tanto quanto
possível, os nórdicos mantinham-se longe das margens de gelo, que se desfazia durante
o verão. Contudo, apesar de todos os perigos, o bacalhau em abundância e as condições
mais amenas permitiam que os groenlandeses viajassem livremente pelo Estreito de
Davis e através dos canais estreitos do arquipélago canadense. Ali eles encontraram os
caçadores inuítes, que lhes deram as boas-vindas porque desejavam o que para eles era
uma substância exótica: o ferro. Ao contrário dos beothuks de Labrador, os inuítes
faziam parte de um mundo ártico muito maior, ligado por redes de comércio informal a
outros grupos de caçadores com ancestrais comuns que se estendiam até o Estreito de
Bering.
Podemos então examinar esse comércio voltado para o Ocidente e fazer uma conexão
com os séculos de aquecimento?
Ano 1000. O Estreito de Bering é uma vastidão sombria de ondas cobertas de gelo. O
vento está tranqüilo, a temperatura congelante e a superfície da água levemente
agitada. Acima pairam nuvens baixas. O caçador está sentado, absolutamente imóvel,
em seu caiaque de pele, os olhos examinando silenciosamente o oceano escuro. O
equipamento de caça está à mão, o remo mal toca a água. A vida na água é sua
segunda natureza, muitas vezes mais confortável do que na terra.
Uma cabeça preta aparece momentaneamente na superfície. Uma foca olha ao redor
inquisitivamente. O caçador espera. Sua presa desaparece sob a água, restando apenas
uma leve agitação. Começa a familiar vigília, o bote parado na água. Enquanto espera, o
caçador checa seu arpão e a bobina de linha ligada ao cabeçote afiado. A espera se
estende desde a manhã até a noite, Ele vê a foca novamente a alguma distância; ela
desaparece de novo. Ele rema suavemente até o centro da ondulação e volta a esperar.
De repente, a presa ressurge dentro dos limites do arpão. O esquimó atira. A ponta de
ferro penetra na foca, que afunda imediatamente. A linha flutua enquanto o eixo se
separa do cabeçote. Por algumas horas, o caçador segue o ondear agitado enquanto a
presa vai enfraquecendo até morrer. Quando a carcaça vem à tona, ele a puxa para seu
caiaque e vai para casa.
O Estreito de Bering é um lugar inóspito, implacável, onde os invernos podem durar nove
meses no ano, Uma neblina densa cobre o oceano de cor cinza durante dias a fio,
reduzindo a visibilidade para alguns poucos metros, Ventos uivantes sopram através da
neblina. A não ser pelo breve verão, massas de gelo partidas entopem os estreitos,
lançando-se ocasionalmente para a praia em tempestades violentas. A costa da Sibéria é
o lado mais acidentado, com escarpas íngremes e pontos de referência bastante nítidos.
Planícies costeiras baixas, inúmeros lagos e planícies baixas marcam o lado do Alasca. A
melhor caça a mamíferos marinhos está nas praias ocidentais, protegida por
promontórios estratégicos, Mil e duzentos anos atrás, quando os knarrs nórdicos
estavam cruzando o Atlântico Norte pela primeira vez, sociedades sofisticadas, baseadas
na caça de renas e de animais marinhos, prosperaram tanto na costa asiática quanto na
americana desse mundo duro e exigente.
Leste do Yukon, uma vasta área de terras baixas, território ondulante que se estende
para leste em direção ao distante Oceano Atlântico. Uma grossa camada de gelo cobria
essa terra rochosa, envolta por geleiras, há apenas quinze mil anos. A Baía de Hudson é
o marco dominante, pouco mais do que uma bacia rasa. Esse terreno improdutivo do
arquipélago canadense, obstruído pelo gelo, fica ao norte da região principal, separado
por uma pequena distância da Groenlândia, com sua vasta cobertura de gelo. Em todo
esse mundo impiedosamente frio, raramente há mais de três meses sem gelo por ano.
Mesmo nos séculos de aquecimento, o subsolo teria permanecido congelado, coberto por
pântanos e brejos nos meses de verão, de forma que a viagem por terra teria sido difícil
na melhor das hipóteses. Essas dificuldades teriam sido agravadas por enxames de
mosquitos. A cobertura vegetal é esparsa, mas era possível caçar renas e bois
almiscarados, assim como pequenos animais e pássaros. Porém, os ricos recursos do
Oceano Ártico garantiam uma fartura de alimentos para as pequenas populações tuniits
que foram para leste a partir do Alasca ao longo da costa e para o arquipélago há cerca
de cinco mil anos.
Os tuniits eram fortes, seres habilidosos que sobreviveram em alguns dos ambientes
mais hostis da terra com a mais simples das tecnologias. O arqueólogo canadense
Moreau Maxwell descreveu certa vez o que deveria ter sido a vida em suas pequenas
tendas de couro de boi almiscarado, equipados com pequenas fornalhas nas profundezas
do inverno, por volta de 1700 a.C. O cheiro forte das lamparinas de óleo de foca dentro
das tendas impregnava tudo. "Os duros meses de inverno deveriam ser passados em um
estado de semissonolência, com as pessoas deitadas debaixo de peles quentes e grossas
de boi, os corpos bem juntos uns dos outros, e com a comida e o combustível à mão."
Todos limitavam as saídas ao mínimo possível e basicamente hibernavam.
A cultura tuniit desenvolveu-se lentamente durante muitos séculos. Essa cultura Dorset,
como é chamada pelos arqueólogos, estava sempre se movimentando, indo para o norte
nos séculos mais quentes, recolhendo-se diante de condições mais frias. Acima de tudo,
eram caçadores de focas, que também pegavam renas. Durante os séculos de clima
mais frio, desenvolveram nova caça no gelo e métodos de pesca que lhes permitiram
adquirir alimentos no meio do inverno, em vez da semi-hibernação de seus
predecessores. Eles tinham apenas a lança mais básica, e nenhum arco-e-flecha, assim
como não tinham barcos sofisticados ou arpões articulados dos povos do Mar de Bering.
Sua caça dependia da vigília atenta e da infinita paciência que lhes permitia aproximar-
se da presa e matá-la com um simples arremesso da lança. Essas armas eram valiosas
para a caça através de furos na camada de gelo, especialmente depois do ano 1000 e
durante os séculos de aquecimento, quando os caçadores começaram a usar armas com
pontas feitas com o ferro forjado, puro, e extremamente raro da região do Cabo York,
obtido devido a uma chuva de meteoros que caiu sobre a Terra há pelo dez mil anos.
Outros grupos exploraram o cobre nativo proveniente da região do Rio Coppermine no
Ártico Central.
Tanto o ferro do meteorito quanto o nativo tinham grandes vantagens sobre o osso e o
marfim - as armas com ponta de metal eram mais fortes e letais - e por isso esse metal
era tão precioso. A julgar pelas medições das ranhuras em instrumentos de osso
abandonados, o precioso ferro era reciclado muitas vezes. Pelo menos um pouco desse
ferro estava nas mãos de capitães de pequenos barcos baleeiros. Mais de 46% dos ossos
encontrados em uma residência com instrumentos de caça à baleia, em um
assentamento dos thules em Qariaraqyuk, na Ilha de Somerset, haviam sido equipados
com lâminas de metal. Em uma casa menor das proximidades, 9,6% dos instrumentos
haviam tido lâminas de metal; todos esses artefatos eram usados para a caça em terra
firme. Pequenas quantidades de ferro foram passando lentamente de mão em mão por
distâncias enormes, chegando em alguns casos a 600 quilômetros de distância da sua
origem. Com o tempo, um pouco do minério, ou artefatos feitos com ele, pode ter
viajado para oeste e alcançado grupos famintos pelo metal no Estreito de Bering.
É provável que sempre tenha existido algum tipo de contato entre o Estreito de Bering e
pontos a leste, mas foi durante o Período de Aquecimento Medieval que essas ligações
aumentaram significativamente.
Como os nórdicos, capitães empreendedores que comandavam suas canoas pelo Estreito
de Bering eram dotados de curiosidade insaciável e estavam famintos por novas
oportunidades comerciais. O aquecimento posterior ao ano 1000 teria trazido mais
semanas livres de gelo, assim como corredores mais largos entre o gelo, ao longo dos
quais os barcos de pele poderiam passar em segurança em busca dos mamíferos mari-
nhos e baleias migratórias. Com maior abundância no suprimento de alimentos, as
populações locais devem ter aumentado, o que por sua vez deve ter levado os capitães
baleeiros a procurar novos locais para a caça. E com as condições mais favoráveis, os
umiaques podiam seguir as baleias da Groenlândia por mar aberto e por amplas
passagens sem gelo quando migravam para leste pelas costas do Ártico canadense e
para o arquipélago. As baleias da Groenlândia, Balaena mysticetus, são baleias-francas
do Ártico com cabeça em forma de arco que chega a 40% do comprimento do corpo.
Elas vivem perto da superfície e se movimentam em pequenos grupos, durante a
primavera e o verão, e em grandes grupos durante o outono.
Em 1921-24, Knud Rasmussen, um estudioso groenlandês, liderou uma expedição feita
com trenós puxados por cachorros, da Groenlândia até o Alasca, estudando grupos
inuítes e fazendo escavações em sítios arqueológicos ao longo do caminho. Para sua
surpresa, os arqueólogos, comandados por Therkel Mathiassen, desenterraram uma
cultura muito diferente daquela dos inuítes vivos. Eles identificaram uma sociedade até
então desconhecida, de mil anos atrás, em casas abandonadas perto de Thule, no
noroeste da Groenlândia. Logo depois, encontraram sítios semelhantes em uma enorme
faixa do Ártico que vai do Estreito de Davis até o norte do Alasca. Esses povos thules
foram os caçadores de baleias e mamíferos marinhos que atravessaram o Alto Ártico
durante o Período de Aquecimento Medieval; caçadores tão bem-sucedidos que
estabeleceram comunidades permanentes de inverno, com casas de pedra e turfa com
vigas de ossos de baleia no teto.
A migração thule do ano 1000 passou para a literatura acadêmica como um movimento
de caçadores de baleias que se deslocaram rapidamente para leste, ao longo da costa
do Ártico a partir do Estreito de Bering, perseguindo as baleias da Groenlândia que
prosperaram nas águas mais abertas durante os séculos mais quentes do Período de
Aquecimento Medieval. Na verdade, os eventos por trás da migração podem ter sido
muito mais complexos, envolvendo não apenas a caça às baleias, mas também a
procura do ferro.
Em que medida o aquecimento desempenhou um papel importante no movimento do
povo thule para leste, a partir do Alasca, é algo que não sabemos. Existem algumas
indicações de que os dois séculos mais quentes também trouxeram fortes ventos do
Norte e muitas tempestades. Porém, quaisquer que fossem as condições, os thules e
seus ancestrais do Estreito de Bering foram mais do que capazes de sobreviver
confortavelmente, de se adaptarem sem muito esforço ao frio e ao calor maior. Não
podemos ter certeza se foi o ferro ou as baleias o que motivou pequenos grupos desses
povos a navegar por milhares de quilômetros. As baleias com certeza foram um
elemento crítico, e continuaram assim. Mas o verdadeiro chamariz pode ter sido o ferro
do meteorito de Cape York, e também forasteiros do outro lado do oceano, que
aparentemente possuíam o precioso metal em abundância. No mundo ártico, onde as
pessoas cobriam longas distâncias e onde o conhecimento a respeito das condições do
gelo, da migração das baleias c das colônias de animais marinhos era extremamente
importante, podemos ter certeza de que os thules, como os tuniits, tinham ouvido
histórias a respeito dos misteriosos qadlunaats, estranhos de olhos azuis que vinham do
outro lado do mar, que usavam armas de ferro e tinham boa quantidade desse metal, e
às vezes se dispunham a fazer negócios com ele.
O enredo fica mais complicado quando percebemos que os primeiros sítios thules
encontram-se no extremo Alto Ártico e costas adjacentes presas pelo gelo aos depósitos
de ferro do meteorito de Cape York. Nesses primeiros assentamentos foram descobertos
não só o ferro do meteorito, mas também fragmentos de ferro e outros artefatos
nórdicos que só podem ter vindo da Groenlândia. Além disso, os artefatos desses
assentamentos thules são idênticos aos instrumentos utilizados pelas comunidades ao
redor do Estreito de Bering. O arqueólogo canadense Robert McGhee e outros acreditam
que isso pode ser um sinal de que os povos da região do Estreito de Bering seguiram
rapidamente pelo norte até a região de Cape York, num esforço para assumir o controle
sobre as fontes do ferro, em uma época de clima mais quente e condições de gelo talvez
mais favoráveis. A datação por radiocarbono dos primeiros sítios thules no leste indica
que os assentamentos começaram em algum momento entre o século XII ou XIII, numa
época em que os assentamentos nórdicos na Groenlândia gozavam de prosperidade
considerável, quando a fronteira do verão ia até o extremo norte da Islândia, e as
condições para viajar no Atlântico Norte eram relativamente tranqüilas durante o verão.
Uma vez estabelecidos no leste, os grupos thules espalharam-se gradualmente por todo
o leste do Ártico. Suas tradições orais falam sobre como eles mataram ou expulsaram os
tuniist quando assumiram o controle das fontes de ferro. Nos séculos XIII e XIV, os
últimos assentamentos tuniits foram abandonados. Também houve um momento em que
bandos de thules seguiram para o sul a partir do noroeste, entraram em contato com
comunidades nórdicas e coexistiram com elas. Nenhum dos lados se esforçou para
expulsar o outro, pois podiam oferecer um ao outro mercadorias que não poderiam ser
obtidas de outra maneira.
CAPÍTULO 6
A Época da Megasseca
No início não havia sol, não havia lua, nem estrelas. Tudo era escuro, e por toda a parte
só havia água.
- Lenda da Criação Maidu, Califórnia
Você transpira mesmo sentado sob a sombra profunda de um abrigo de pedra. Um vasto
panorama de paisagem desértica se estende à sua frente - picos áridos de montanhas,
um céu azul empoeirado, pálido. O calor cintila sobre o solo desértico, dunas e leitos de
rios, sobre a vegetação esparsa e rasteira. O sol está indo para oeste, mas o ar está
parado, o silêncio é total. Não há qualquer sinal de vento que levante algum grão de
areia pelas planícies escaldantes. Dia após dia, as pessoas se levantam com o nascer do
sol e buscam refúgio do calor implacável bem antes do meio-dia. E só estamos no início
de junho, com semanas ainda muito mais quentes pela frente.
Como acontece com freqüência, a mente volta para o passado distante, nesse caso para
gerações de forrageadores que visitaram esse lugar e encontraram a mesma vista árida.
Chegavam apenas alguns visitantes de cada vez, talvez uma dúzia de homens, mulheres
e crianças; os adultos muito magros, ágeis e enrugados, como que tostados pelo sol do
deserto. As mulheres acendiam o fogo quando o sol se aproximava do horizonte, no
oeste, enquanto os homens iam atrás dos coelhos selvagens que se alimentavam às
margens do aluvião nas proximidades. De volta ao abrigo, as mulheres iriam moer
alguns pinhões de um suprimento precioso trazido na pele de um cervo. O barulho suave
das pedras de moer compunham um som familiar, parte da busca interminável por
comida que mantinha o grupo em movimento durante quase todo o ano. A refeição é na
melhor das hipóteses frugal. Ninguém está com fome, mas não há muitas plantas
comestíveis. Mesmo os coelhos são difíceis de encontrar depois de um ano muito árido.
O oeste americano é a paisagem em grande escala, matéria de lendas, de John Wayne e
dos faroestes clássicos. De uma altura de 12 mil metros, você observa o terreno seco
hora após hora, em um mundo semi-árido maior do que a vida. Esse país brutal e
despovoado produz lendas e estereótipos de homens obstinados e mulheres
desembaraçadas, personagens amadas por Hollywood. A realidade, entretanto, era
muito mais complexa, porém só o tamanho da paisagem do oeste faz encolher a
humanidade e nos encher de espanto diante dos caçadores e horticultores que
conseguiram sobreviver nesse mundo inóspito, milhares de anos antes que o primeiro
cowboy resolvesse criar gado nessas paragens. A Europa pode ter se regalado com
fartas colheitas e os nórdicos podem ter viajado com mais liberdade pelo Atlântico Norte,
mas, como a Eurásia e o Sahel na África Ocidental, o oeste americano sofreu com
megassecas.
A luz acinzentada do céu claro que antecede a alvorada se espalha pelo leito de um lago
seco. Os homens se agacham entre os arbustos no chão seco de um lago enorme, que
está encolhendo rapidamente, no que hoje é a Califórnia. Esse é o ano mais seco de que
conseguem se lembrar. O lago foi secando diante de seus olhos durante meses de muito
calor, deixando camadas de areia em seu lugar. Eles e seus vizinhos tinham acampado
onde havia água. Os homens se posicionaram muito antes do nascer do sol, usando os
penhascos e leitos dos rios para ficar fora de vista. Cada caçador carrega um arco em
uma aljava com flechas, os olhos perscrutando à esquerda e à direita por um veado que
estivesse se alimentando no frescor da manhã. O mais provável é que os animais se
aproximem de um pequeno buraco de água próximo da beirada do lago. Dois homens
jovens trocam olhares ao verem um macho comendo.
Localidades mencionadas nos capítulos 6 e 7. Alguns locais menores foram omitidos para
maior clareza.
Eles se movimentam lentamente, cercando a presa, alertas ao mais leve som da brisa
matutina que possa carregar seu cheiro. Com cuidado infinito, eles se aproximam ainda
mais do veado. Depois de meia hora ele está ao seu alcance. De repente, a presa ergue
os olhos, farejando o ar. Talvez tenha sentido o cheiro humano. Os homens se
imobilizam, as armas paradas. Passam alguns minutos enquanto o macho olha ao redor.
Finalmente, recupera a confiança e volta a comer. Os homens erguem os arcos,
lentamente colocam as flechas com pontas de pedra no lugar. Eles se agacham para
atirar melhor, mas o pé de alguém bate em uma pedra do chão. O veado assustado sai
correndo. Duas flechas são disparadas, mas erram o alvo, deslizando inofensivamente
pelo leito do rio. Agora o sol já está alto, por isso a caça terá que esperar pelo entardecer
ou por um novo dia.
O Lago Owens, no flanco oriental das montanhas de Sierra Nevada, no leste da
Califórnia, fornece evidências das secas memoráveis que se abateram sobre o oeste
entre os anos 900 e 1250. O lago chegou a cobrir mais de 300 quilômetros quadrados na
foz do Rio Owens e durante pelo menos 800 mil anos foi coberto por água. (O Lago
Owens tinha mais de 75 metros de profundidade até o Departamento de Águas e Energia
Elétrica de Los Angeles ter desviado os afluentes que o alimentavam, em 1913, e ele se
transformou em um grande depósito de sal.) As águas que escoavam da montanha
sofreram variações dramáticas de ano para ano ao longo de séculos, de décadas, e até
mesmo de ciclos anuais, oscilando entre muita chuva e grandes secas. Nos períodos de
maior seca, choupos-do-canadá e pinheiros cresciam nos solos úmidos do leito vazante
do lago. Quando os anos de maior precipitação elevavam os níveis da água, as árvores
eram encobertas. Em muitos anos, os troncos e galhos mortos ficaram acima da água,
mas acabavam por se desintegrar, ficando apenas as cepas enraizadas no leito do rio
coberto pela água.
O geógrafo Scott Stine dedicou boa parte de sua carreira ao estudo desses tocos de
árvore, expostos quando os níveis da água baixavam nos anos de seca. Com a datação
radiocarbônica das camadas mais exteriores das árvores, e a contagem dos anéis das
árvores nos tocos, ele reconstruiu uma cronologia precisa dos períodos de secas e cheias
durante o Período de Aquecimento Medieval, que são espantosamente consistentes em
uma grande área do oeste americano.
A pesquisa de Stine começou durante uma grande seca na década de 1980, quando a
seca e uma grande demanda por água em Los Angeles provocaram uma queda de mais
de 15 metros na barragem do Lago Mono, que fica no extremo norte da Califórnia. Ele
recolheu amostras de inúmeros tocos, fez a datação radiocarbônica e descobriu que
havia duas gerações de árvores e arbustos que cresceram no lago durante o Período de
Aquecimento Medieval. A primeira geração desapareceu quando o lago subiu cerca de
19 metros, por volta do ano 1100. Essa elevação ocorreu durante um breve ciclo de
grandes precipitações pluviométricas, quando as chuvas foram mais fortes do que em
qualquer outro ano da era moderna, ficando em quarto lugar nos últimos quatro mil
anos. Mas a abundância de chuvas deu lugar a uma fase de seca intensa por volta de
1250, que durou mais de um século. O nível do lago caiu acentuadamente e uma
segunda geração de árvores cresceu no leito do rio.
Os tocos de árvore do Lago Mono registram um Período de Aquecimento Medieval
marcado por alterações extremas nas precipitações pluviométricas em períodos de um
século ou até menos. Intrigado, Stine voltou então sua atenção para o Lago Walker, no
nordeste, um corpo de água alimentado por dois rios da Sierra Nevada. O mais ocidental
dos dois rios corre através de um cânion estreito coberto por grandes tocos de pinho
submersos. Como o cânion é muito estreito e o movimento lateral do rio é restrito,
parece certo que essas árvores floresceram em uma época onde o fluxo da água foi
bastante reduzido, pois as raízes dos pinheiros não conseguem suportar mais do que
breves períodos de inundação. Os tocos de árvores serviram como documentação de um
nível muito baixo, por volta do ano 1025, quando as águas estavam mais de 40 metros
abaixo do nível atual; a isso seguiu-se um breve ciclo de maior umidade, posteriormente
outra seca, sendo a cronologia idêntica à do Lago Mono.
O Lago Owens também forneceu evidências de secas medievais severas na mesma
época. Caçadores que vagaram pelo leito do lago seco entre 650 e 1350 deixaram para
trás pontas de projéteis numa época em que o lago ficou muito seco. A datação
radiocarbônica das raízes de um arbusto das proximidades, que deve ter florescido nessa
época, limitou a ocupação à época da primeira grande seca registrada no Lago Walker.
Os lagos Mono, Walker e Owens registram os mesmos ciclos de seca da era medieval. O
primeiro começou antes do ano 910 e durou até aproximadamente 1100. O segundo
começou antes de 1210 e terminou por volta de 1350. Qual a intensidade dessas secas?
Stine utilizou uma linha de verificação moderna, a da seca de seis anos na Califórnia,
que começou em 1987, quando o escoamento proveniente de Sierra Nevada ficou em
apenas 65% do normal. Apesar da seca prolongada, o nível dos lagos nunca ficou tão
baixo quanto em épocas anteriores. Para explicar o ressecamento do Lago Owens, por
exemplo, o fluxo de água