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O Aquecimento Global

A Influência do Clima no Apogeu e Declínio das Civilizações

Brian Fagan

Para o Grande Gato de Ra e o Venerável Beda


extraordinários branco-e-pretos

"Está certo", disse o Cheshire Cat; e dessa vez desapareceu lentamente, começando
com a ponta do rabo, e terminando com o sorriso, que permaneceu por algum tempo
depois que o resto se foi.
- LEWIS CARROLL, Alice no País das Maravilhas (1865)

Sumário

Prefácio 9
Nota do Autor 19
1. Uma Época de Aquecimento 21
2. O Manto dos Pobres 43
3. O Mangual de Deus 70
4. O Comércio Dourado dos Mouros 92
5. Inuítes e Qadlunaat 115
6. A Época da Megasseca 137
7. Bolotas e Pueblos 153
8. Senhores das Montanhas de Água 173
9. Os Senhores de Chimor 191
10. Resistindo aos Alísios 212
11. O Oceano dos Peixes Voadores 233
12. A Tristeza da China253
13. O Elefante Silencioso 269
Agradecimentos 285

Prefácio

"Meu nome é Ozymandias, Rei dos Reis,


Contemplem as minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!"
Nada mais resta. Além da decadência
Daquela ruína colossal, sem limites e vazia,
As areias solitárias e planas espalham-se na distância.

- PERCY BYSSHE SHELLEY, Ozymandias (1812)

A grande casa, Pueblo Bonito, descarnada e silenciosa, aninhada sob o precipício


íngreme, os cômodos apertados dando para o céu cinza. Um vento frio levanta as folhas
mortas e delicados flocos de neve pela plaza vazia nesse dia frio de inverno. As nuvens
baixas encobrem os penhascos de Chaco Canyon, Novo México, serpenteando com as
rajadas de vento da tempestade de janeiro. O silêncio é total.
Milhares de anos atrás, Pueblo Bonito era um lugar sagrado, onde ecoavam danças
espetaculares no solstício de verão. De lugares distantes, acorriam visitantes para este
que era o maior de todos os pueblos do sudoeste. Então, no ano de 1130, cinqüenta
anos de seca castigaram Chaco Canyon. As plantações de milho despencaram. Em
poucos anos, Pueblo Bonito ficou vazia. Meio século depois, Chaco Canyon ficou
virtualmente deserto. Depois de muitos séculos dentro dos muros do cânion, o Pueblo
Ancestral mudou-se e estabeleceu-se com os parentes em regiões mais irrigadas.
Nesse dia de inverno, nenhum fantasma aparece para assombrar minha imaginação e
estimular os meus sentidos. O passado está morto, há muito desfeito no esquecimento.
Lembro-me de Ozymandias, de Shelley, "o Rei dos Reis", seus feitos esquecidos, seus
palácios reduzidos a ruínas esfaceladas.
No ano de 1118, uma década antes da chegada da grande seca ao Chaco, Suryavarman
II, o rei-deus do Império Khmer, ascendeu ao trono de Angkor, junto ao lago Sap, no
Camboja, sudeste asiático. Quase que imediatamente, ele começou a construir sua obra-
prima, Angkor Wat. Milhares de súditos trabalharam em seu palácio e templo, imensa
réplica do universo hindu, incluindo montanhas sagradas. Nada mais importava além de
servir o rei-deus. Suryavarman e seus sucessores criaram uma utopia religiosa
centrípeta, erguida sobre uma base de cultivo intensivo de arroz, irrigado por canais,
reservatórios, e arrozais alagados mantidos pelas cheias de verão.
Angkor Wat não ostenta mais torres douradas e templos maravilhosamente pintados.
Mas ainda impressiona, com um labirinto de escadarias e longas galerias enfeitadas, em
todos os espaços possíveis, com procissões reais, exércitos em marcha, e dançarinas
sinuosas prometendo as delícias do paraíso. Então você percebe que o lugar está morto,
é um momento congelado no tempo, abandonado pelos que o construíram quando
estava no auge de seu esplendor, em parte porque a seca acabou com os arrozais e eles
ficaram com fome.
Mais uma vez, Ozymandias me vem à mente. Agkor Wat nos deixa com uma sensação
de futilidade e desespero.
Chaco Canyon e Angkor Wat são testemunhas silenciosas de como o poder do clima
pode afetar a sociedade humana, para o bem ou para o mal.
Não muito tempo depois de os súditos de Suryavarman terem trabalhado em Angkor
Wat, surgiu no nordeste da França a Catedral de Notre Dame de Chartres. Construída em
apenas 65 anos, e concluída no ano de 1195, essa catedral gótica foi a sexta igreja da
região. Como Angkor Wat, Chartres é uma obra-prima, mas até hoje ali são celebradas
missas e entoados salmos. Ali, o infinito se transforma em milagre de pedra e vidro.
Chartres é toda janelas, com magníficos vitrais entre arcos harmoniosos. Como pedras
preciosas, os raios de sol atravessam os vitrais, criando efeitos transcendentais. O
cenário ainda lembra o paraíso na Terra e liga o secular e o espiritual, como há milhares
de anos. Ali, o passado ainda está vivo.
Chartres foi construída em uma época em que a Europa era banhada por um clima mais
quente e favorecida por uma longa série de boas colheitas. Os beneficiados agradeciam
a Deus e às forças desconhecidas do Universo pela generosidade. Construíram uma
catedral em sinal de gratidão.
O mundo de milhares de anos atrás era um lugar vibrante, diversificado, tapeçaria de
civilizações voláteis, grandes senhores e combates endêmicos. Caravanas de camelos, a
Rota da Seda, e ventos de monções ligavam boa parte do Velho Mundo na primeira
interação de uma economia realmente global. Entretanto, a maioria dos seres humanos
ainda vivia em pequenos bandos de caçadores ou como agricultores de subsistência,
sobrevivendo de colheita em colheita, ganhando a vida com o solo. Há muito
conhecemos esse mundo graças à arqueologia, às escavações em grandes cidades,
cavernas e aterros marinhos, aos restos de ferro escandinavo no Ártico, documentos
históricos e tradições orais. Porém, só agora estamos descobrindo o quanto esse clima
mais quente afetou a humanidade. Este livro conta a história de cinco séculos de
mudanças climáticas - na verdade, de um aquecimento global - entre os anos 800 e
1300, e do impacto das mudanças no mundo de mil anos atrás. Como em nossa época, a
mudança climática não seguiu uma linha reta ano após ano e foi diferente de região para
região. Mas seus altos e baixos seguiram uma tendência que pode ser claramente
traçada em retrospecto. Temos muito a aprender com essa história das mudanças
climáticas e do seu poder de afetar nosso próprio futuro. O Período de Aquecimento
Medieval foi nomeado meio século atrás por um meteorologista britânico, Hubert Lamb.
Ele escreveu sobre o período de 800 a 1200, montando um quebra-cabeças com peças
históricas e climáticas: quatro ou cinco séculos de clima relativamente amistoso, que
propiciou boas colheitas para a Europa e permitiu que os escandinavos chegassem à
Groenlândia e à América do Norte. O Período de Aquecimento Medieval deu lugar a seis
séculos de clima altamente inconstante e condições mais frias: a Pequena Idade do Gelo.
Há muito conhecemos inúmeros detalhes dessa mais bem documentada Pequena Idade
do Gelo, em que ocorreu o famoso congelamento das águas do Rio Tâmisa. Houve
escassez e terríveis tempestades, assim como invernos com temperaturas
excepcionalmente frias. Mas o Período de Aquecimento Medieval era, até recentemente,
um mistério climático. Lamb escreveu em uma época em que a paleoclimatologia
(estudo dos climas de antigos períodos geológicos) estava em seus primórdios, e muito
antes de o aquecimento global provocado pelos homens estar no radar científico. Hoje
sabemos muito mais a respeito desse período. Graças às pesquisas da dendrocronologia,
hoje temos informações detalhadas sobre chuvas periódicas e temperaturas na Europa e
sudoeste da América do Norte de até mil anos atrás. Nos capítulos seguintes, artigos
paralelos discutirão alguns dos métodos que utilizamos para estudar o clima pré-
histórico. Testemunhos de gelo da Groenlândia, e também dos picos dos Andes e de
outros locais, fornecem dados importantes sobre ciclos mais frios e mais quentes nos
últimos dois mil anos. As camadas de corais tropicais nos atóis do Pacífico também
documentam mudanças climáticas ao longo de muitos séculos. E seqüências
dendrocronológicas em todo o mundo estão aos poucos recobrindo o esqueleto ainda
indefinido do Período de Aquecimento Medieval.
Os europeus construíram catedrais e os escandinavos navegaram até a América do
Norte durante o Período de Aquecimento Medieval, mas o cenário que estamos
descobrindo com as novas pesquisas revela tanto um vilão quanto um herói climático. É
certo que ocorreu o aquecimento, que se refletiu em muitos lugares com invernos mais
amenos e verões mais longos, mas as diferenças de temperatura nunca foram maiores
do que alguns poucos graus. Tampouco ocorreu o aquecimento em toda parte. No
Pacífico oriental, nos mesmos séculos, houve frio e seca. Foram tempos de mudanças
climáticas súbitas, imprevisíveis e, acima de tudo, áridas. Períodos de seca prolongada
ajudaram a destruir Chaco Canyon e Angkor Wat; contribuíram para o colapso parcial da
civilização maia; e arruinaram dezenas de milhares de lavradores chineses.
Boa parte dessa aridez pode ser atribuída às condições persistentes do La Niña no
Pacífico, especialmente por volta de 1100 a 1200, mas a mudança climática não é a
única vilã. (Veja a explicação paralela no Capítulo 9 sobre o La Niña.) Ninguém em seu
juízo perfeito pode alegar que o clima "provocou" todas as mudanças econômicas,
políticas e sociais descritas nestas páginas. Esse tipo de determinismo ambiental, a
noção de que o clima foi responsável pelos principais acontecimentos da história, foi
desacreditado há quase um século. Os efeitos das mudanças climáticas foram em geral
muito mais indiretos.
Enquanto estava escrevendo este prefácio, dei uma volta em torno de um atoleiro.
Peguei uma pedrinha e a atirei na água parada. Um "plop" e a pedra desapareceu, mas
as ondas concêntricas a partir do ponto de impacto se espalharam até a borda. Um
tempo surpreendentemente longo se passou até desaparecer a última onda. O mesmo
se deu com a mudança do clima. Não foi o impacto imediato de uma grande mudança,
como uma grande seca, ou um ciclo de inundações, ou um El Niño que provocou
mudanças políticas ou sociais. Mas as conseqüências sutis que se espalharam pela
sociedade fizeram a diferença: novas estratégias para o armazenamento da água;
plantio de cereais mais resistentes à seca; desenvolvimento de novas instituições, como
as sociedades secretas que recolhiam informações para prever as chuvas. Este livro fala
de como as sociedades humanas de milhares de anos atrás enfrentaram as mudanças
climáticas, bem como do aquecimento e dos fenômenos climáticos propriamente ditos.

Alguns dos Principais Eventos Históricos

570. Nascimento de Maomé


600. Civilização maia clássica a todo o vapor
618. Início da Dinastia T'ang no norte da China
710. Conquista islâmica da Espanha (al-Andalus)
750. Os abássidas assumem o poder em Bagdá, dando início a uma grande era de
conhecimento e domínio islâmico
793. Incursão escandinava em Lindisfarne, Inglaterra
802. Jayavarman II funda o estado de Angkor, Camboja
814. Morte do rei Carlos Magno da França (742-814)
874. Assentamento escandinavo na Islândia
900. Civilização sicán domina a Costa Norte do Peru; colapso da civilização maia nas
terras baixas do Sul
907. Queda da Dinastia T'ang no norte da China; início das conquistas do período Khitan
na Mandchúria e Mongólia
971. Mahmud, governante ghazi do Afeganistão, domina a Índia por 60 anos
980. Erik, "o Vermelho", coloniza a Groenlândia
990. Descoberta da América do Norte pelos escandinavos; comércio esporádico com
grupos de inuítes na Ilha Baffin
1000. Movimentação de populações thules do Estreito de Bering para leste, pelo Ártico,
em direção à Groenlândia
1066. Guilherme, "o Conquistador", invade a Inglaterra: a conquista da Normandia
1100. Abandono gradual de Chaco Canyon, Novo México
1113. Suryavarman II começa a construir Angkor Wat, Camboja
1181. Jayavarman VII constrói Angkor Thom, Camboja
1200. Cultura Chimu controla a costa norte do Peru; Primeiro assentamento de Rapa Nui
(Ilha de Páscoa); Primeiro assentamento na Nova Zelândia ocorreu em data
desconhecida, mais ou menos nessa época
1206. Gêngis Khan eleito o Grande Khan dos mongóis; dinastias muçulmanas assumem
o poder em Délhi, Índia
1207. Começam as campanhas mongóis contra os Chin do norte da China
1215. Gêngis Khan conquista Pequim
1220. Gêngis Khan destrói o império Khwarizmi
1227. Morte de Gêngis Khan
1230. Um grande fenômeno do El Niño provoca devastação na costa norte do Peru
1241. O general mongol Subutai derrota Henry, o Barbudo em Legnica, na Silésia, e
depois se retira para as estepes
1258. Os mongóis conquistam Bagdá
1276. Grande seca no sudoeste americano durante um quarto de século; Mesa Verde é
abandonada
1279. Kublai Khan torna-se imperador da China e governa até 1294
1315. Fome de sete anos tem início na Europa ocidental
1324. Mansa Musa de Mali visita o Cairo em sua peregrinação para Meca
1348. A Europa medieval é devastada pela Peste Negra
1398. Timur ataca e invade Nova Délhi, Índia
1431. Colapso do Estado de Angkor
1470. Chimu cai diante dos incas
1492. Monarquia espanhola conquista a Espanha islâmica; Cristóvão Colombo viaja para
as Índias
1519. Fernando Cortez desembarca no império asteca
1532. Francisco Pizarro avança sobre os incas

Os seres humanos sempre viveram em ambientes imprevisíveis, em um estado de


constantes mudanças que exigiam adaptações permanentes e oportunas para enfrentar
as mudanças climáticas a curto e a longo prazo. O que é fascinante em relação ao
mundo de milhares de anos atrás é que, hoje, dispomos de informações climáticas
suficientes para ver o que estava acontecendo; podemos examinar as influências ocultas
sobre o clima que ajudaram a levar Angkor ao colapso; ou as que forçaram os cavalos
dos nômades mongóis a procurar novos pastos. Hoje, essas influências ocultas são
brincadeiras de criança para a história. Há uma geração, elas teriam sido ignoradas.

O Grande Aquecimento examina sociedades historicamente indefinidas e outras muito


conhecidas. Não podemos entender o significado do Período de Aquecimento Medieval
sem ir muito além da Europa, onde os efeitos dos séculos mais quentes foram
extremamente positivos e o continente assistiu ao florescimento cultural que hoje
chamamos de Alta Idade Média. As temperaturas mais elevadas e as decorrentes
mudanças nos padrões das chuvas se espalharam pelo globo, trazendo oportunidades e
catástrofes.
Uma das conseqüências foi o aumento no intercâmbio entre sociedades radicalmente
diferentes, separadas por imensas distâncias. Os escandinavos aproveitaram as
condições favoráveis para viajar até a Islândia, Groenlândia e mais adiante, onde
entraram em contato com as tribos de caçadores inuítes na Ilha Baffin. A atividade do El
Niño no Pacífico acabou por reduzir a força dos ventos predominantes de nordeste.
Marinheiros polinésios viajaram para o norte e para o leste a fim de colonizar algumas
das ilhas mais remotas da Terra. Durante os séculos mais quentes, o ouro da Europa
cruzou o Saara em camelos da África Ocidental. Poderosas monções em direção ao
sudoeste impulsionaram viagens sem escalas pelo Oceano Índico, saindo do Mar
Vermelho, Arábia e África Oriental para a Índia e mais adiante. Todas essas ligações de
longa distância mudaram a história, bem como muitas interligações desapareceram e
floresceram com as mudanças no destino político das sociedades humanas e nas
alterações climáticas.
A oportunidade andava de mãos dadas com o infortúnio. Quando vamos além da Europa
e África do Norte para regiões mais secas com pancadas de chuvas aleatórias,
adentramos um mundo medieval em que ciclos de seca e chuvas eventuais podiam fazer
toda a diferença entre vida e morte. Enquanto a Europa se deleitava com verões quentes
e os escandinavos navegavam para o oeste, boa parte da humanidade sofria com o calor
e as secas prolongadas. Uma imensa área do mundo, da América do Norte, passando
pela América Central e do Sul, indo pelo Pacífico até o norte da China, viveu longos
períodos de aridez severa. Ciclos de seca tomaram o Sahel saariano, Vale do Nilo e África
ocidental, causando devastação. Lavradores passaram fome, civilizações desapareceram
e cidades implodiram. A arqueologia e a climatologia nos dizem que a seca foi a
assassina silenciosa do Período de Aquecimento Medieval, uma dura realidade que
desafiou o engenho humano até o limite.
A maioria das sociedades existentes na face da Terra foi afetada pelo aquecimento
medieval, muitas delas para pior.

Atualmente, talvez mais do que há um milênio, vivemos uma época climaticamente


dramática: testemunhamos um aumento constante nas temperaturas globais
acompanhado por desastres ligados a fatos meteorológicos como tsunamis e furacões.
Enquanto os cientistas trabalham silenciosamente nos bastidores, os fofoqueiros e
arautos do juízo final vociferam suas previsões a respeito do desastre provocado pelo
aquecimento global antropogênico. Porém, nenhum desses auto-proclamados profetas
se preocupa em voltar os olhos para as mudanças climáticas ocorridas nos primeiros
séculos e milênios, exceto por discussões de cunho político em que se discute se há mil
anos o mundo era mais quente do que é hoje. Não era; adentramos uma época de
aquecimento constante, desde pelo menos 1860, impulsionada em grande parte pela
atividade humana - pelos gases do efeito estufa provocado pelos combustíveis fósseis.
O debate prolongado sobre o aquecimento global antropogênico acabou, pois as
evidências científicas documentando nossa contribuição para um mundo muito mais
quente no futuro já ultrapassaram o estágio da controvérsia. Agora as discussões estão
mudando de foco, à medida que enfrentamos as grandes questões da redução de
poluentes e da vida em um mundo em que os lençóis de gelo estão derretendo e os
níveis dos oceanos subindo. O derretimento das calotas glaciais e o perigo cada vez
maior de inundações não são questões triviais. Porém, a experiência do Período de
Aquecimento Medieval nos diz que o assassino silencioso e sempre ignorado é a seca,
mesmo durante um período de aquecimento mediano. As projeções computadorizadas
sobre a seca em um mundo antropogenicamente aquecido, descritas no Capítulo 13, são
assustadoras. Nós já sabemos que algo entre 20 e 30 milhões de agricultores tropicais
pereceram como resultado das secas durante o século XIX, quando havia muito menos
gente na Terra.... Agora estamos entrando em um período de aquecimento prolongado,
com milhões de pessoas já correndo risco, vivendo da agricultura em regiões periféricas
ou, como no caso do Arizona e da Califórnia, em grandes cidades, onde pilham a água de
reservatórios e rios.
O Período de Aquecimento Medieval diz muito a respeito de como os seres humanos se
adaptam às crises climáticas, e fornece um alerta sobre secas prolongadas quando
ocorre o aquecimento. Estamos entrando em uma era em que a aridez extrema afetará
uma grande parte da agora muito maior população mundial, em que os desafios da
adaptação à escassez de água e do insucesso nas colheitas são infinitamente mais
complexos. Podemos apenas esperar que nossas qualidades singulares de adaptação,
inventividade e oportunismo nos conduzam por um futuro incerto e desafiador.

Nota do Autor

Os nomes de lugares estão grafados de acordo com o uso mais freqüente.


Os sítios arqueológicos e locais históricos estão grafados da forma que aparecem
comumente nas fontes que utilizei para escrever este livro. Alguns lugares indefinidos
foram omitidos dos mapas por uma questão de clareza; os leitores interessados devem
consultar a literatura especializada.
As notas tendem a dar relevo às fontes com bibliografia extensa a fim de permitir que o
leitor consulte literatura mais especializada, se desejar. Sendo esta uma narrativa
histórica, as explicações paralelas proporcionam informações adicionais a respeito de
fenômenos como a Zona de Convergência Intertropical e importantes métodos de estudo
do clima.
Todos os dados de radiocarbono foram calibrados e é utilizada a convenção a.C./d.C.
As curvas de temperatura foram amenizadas estatisticamente para maior clareza.

CAPÍTULO 1
Uma Época de Aquecimento

A ocorrência na York medieval do inseto Heterogaster urticae, cujo hábitat típico


atualmente são os pés de urtiga em localidades ensolaradas no sul da Inglaterra (...)
segundo pesquisas arqueológicas, ali esteve presente na Idade Média (...) o que
provavelmente indica temperaturas mais elevadas do que as de hoje.

- HUBERT LAMB, Climate History and the Modern World (1982)

Inglaterra Meridional, outono, ano de 1200. A névoa fria paira sobre as copas das
árvores. Um chuvisco insistente cai sobre as faixas de terra aradas, cobrindo os rostos
curtidos dos dois homens que semeiam o trigo contido nas bolsas de lona que levam
penduradas pelo pescoço. Com cabelos desgrenhados e nariz chato, vestidos com
túnicas sujas, presas com cintos, chapéus de palha, eles balançam sem esforço para a
frente e para trás, atirando sementes nos sulcos rasos. Atrás deles, um rastelo puxado
por um boi, uma armação quadrada de madeira com lanças apontando para a terra,
cobre as sementes que acabaram de ser plantadas. Quando uma faixa é semeada, os
homens vão para a próxima, pois o tempo é curto. Eles precisam plantar antes que as
fortes chuvas do outono levem embora as sementes jogadas na terra.
A rotina da semeadura, aprendida na infância, é imutável como a passagem das
estações. Os mais velhos se lembram dos dias frios e sombrios em que nem mesmo um
casaco de pele de carneiro conseguia repelir o frio penetrante. Eles também se lembram
dos anos em que o sol ardia em um céu sem nuvens, com o calor cintilando sobre os
campos. Eram tempos em que o vilarejo apostava que iria chover e plantava de qualquer
forma. Às vezes, a aposta compensava. Com muita freqüência, não. Quando não, havia
fome no ano seguinte.

Agricultores medievais ingleses semeiam os grãos, depois passam o arado para fixá-los
ao solo (acima). Na colheita, as mulheres cortam e amarram os grãos (abaixo).
(Reconstruções baseadas em escavações feitas em Wharram Percy, nordeste da
Inglaterra.)

Esvaziadas as bolsas de sementes, os dois homens se aprumam e penduram outras nos


ombros. Estão cansados após muitos dias de trabalho exaustivo, fazendo a colheita do
verão, depois arando e plantando o trigo do inverno. O trabalho não acaba nunca em um
mundo agrícola onde todos vivem no limite, onde está sempre presente a ameaça não
verbalizada da tome.
O vilarejo teve uma boa colheita de verão, depois de semanas de tempo bom, por isso
há bastante para comer. A boa sorte continua. O inverno é ameno e não muito úmido.
Janeiro e fevereiro trazem a geada, até mesmo um pouco de neve; mas não há nenhuma
queda abrupta de temperatura, e a primavera chega cedo, com temperaturas cálidas e
um pouco de chuva. Enquanto os dias ficam mais compridos, os aldeões removem as
ervas daninhas da colheita. No fim de julho, o grão está maduro e inicia-se a colheita. Os
campos estão banhados pelo sol quente; o céu, de um azul profundo, com nuvens
delicadas. Os homens se curvam para trabalhar, colhendo o trigo maduro com pequenas
foices de ferro, juntando os ramos em feixes nas mãos e cortando-os, parando apenas
para afiar as lâminas. Atrás deles, as mulheres prenderam as saias nos cintos para
liberar as pernas. Lenços coloridos adornando suas cabeças, elas prendem e empilham
os feixes de trigo no campo; logo o grão será levado para dentro, guardado no caule,
para depois ser debulhado e peneirado quando o tempo ficar ruim. As crianças brincam
em torno dos molhos e recolhem os grãos dos restolhos. Os trabalhadores param ao
meio-dia para alongar as costas enrijecidas e beber alguma coisa enquanto os pássaros
passam cruzando por cima de suas cabeças. Logo o trabalho recomeçará, prosseguindo
até a noite, enquanto o vilarejo corre contra o tempo para juntar toda a colheita antes
que chova.
Como os agricultores de subsistência atuais, os do ano de 1200 não deixavam que nada
se perdesse, mesmo em um ano bom como esse. Basta observar as rugas profundas que
marcam o rosto dos adultos para entender. Até os homens e mulheres na casa dos 20
anos parecem velhos, as fisionomias debilitadas pelo trabalho brutal e pela fome
ocasional ou pela má alimentação. Contudo, essas pessoas viviam em um mundo mais
quente do que fora por muitos séculos, que os climatologistas chamam de Período de
Aquecimento Medieval.
Mil anos atrás, tudo na Europa dependia da agricultura. Da Inglaterra e Irlanda até a
Europa Central, 80% a 90% da população lutava para ganhar a vida - e, com sorte,
comida extra do solo. A Europa era um continente de agricultores de subsistência, que
viviam de colheita em colheita, cujo destino dependia dos caprichos das chuvas e da
temperatura.
Havia muito menos gente, então. A população de Londres ultrapassou a casa dos 30 mil
habitantes pela primeira vez em 1170, sendo uma grande metrópole para os padrões da
época. Outros centros populacionais ingleses eram muito menores. Norwich, em East
Anglia, por exemplo, tinha algo entre 7 mil e 10 mil habitantes. As populações conjuntas
da França, Alemanha, Suíça, Áustria e Países Baixos somavam aproximadamente 36
milhões de pessoas em 1200, e hoje somam mais de 250 milhões. Quase todas essas
pessoas viviam em aldeias e vilarejos, ou talvez cidades pequenas, pois as grandes
cidades estavam apenas começando a ser um elemento significativo na vida européia. E
todos, até mesmo o "grande senhor", dependiam de uma zona rural cultivada sem
máquinas, sementes híbridas ou fertilizantes. Cavalos e bois, e até as esposas, puxavam
o arado e o rastelo. A colheita era reunida com as mãos, carregada nas costas das
pessoas, talvez transportada até o mercado por uma carroça puxada por bois ou por
barcaças.
A paisagem rural era um mosaico composto de florestas e bosques, vales de rios e
pântanos, modificados constantemente pela atividade humana. Muitas pessoas viviam
em assentamentos pequenos, dispersos, cercados por campos irregulares. Mas aos
poucos foram se transferindo para vilarejos maiores, mais centralizados, onde a terra
cultivável mais próxima era dividida em campos largos, abertos, que por sua vez eram
subdivididos em pequenas faixas de aproximadamente meio acre (0,2 hectare). Cada
arrendatário possuía várias faixas de terra, geralmente chamadas de furlongs, mas nem
toda essa terra era cultivada ao mesmo tempo. Cada agricultor sabia que a terra
cultivável precisava ser arada e fertilizada por animais, e depois descansar para
recuperar sua fertilidade e minimizar a ocorrência de pragas nas plantas. Os solos mais
leves, com melhor irrigação, recebiam as plantações de cereais. Os animais se
alimentavam não só do restolho, mas também nos bosques e em pasto aberto nos solos
mais pesados, argilosos. Como os agricultores de subsistência da África atual, os
camponeses medievais europeus conheciam as propriedades dos diferentes tipos de
grama, os indicadores sutis da fertilidade renovada do solo, as estações das plantas
selvagens comestíveis. Sua única proteção contra as secas, tempestades ou geadas
repentinas era uma plantação mais diversificada, baseada em muito mais variedades
além dos cereais.
Ganhar a vida com o solo medieval europeu nunca foi tarefa fácil, mas era o que se
fazia, e às vezes com sucesso considerável, especialmente durante os verões mais
quentes e secos. Os agricultores da Inglaterra e França cultivavam principalmente trigo,
cevada e aveia. Grosso modo, cerca de um terço da terra era plantada com trigo, meta -
de com cevada e o resto era ocupado com outros alimentos, incluindo ervilhas. Mesmo
nos bons anos, as colheitas eram pequenas em comparação com os padrões atuais. Uma
boa colheita de trigo rendia entre 8 e 12,5 fanegas (2.8 a 4 hectolitros) por acre (0,4
hectare). As cifras atuais são superiores a 47 fanegas (16,5 hectolitros) por acre. Quando
se sabe que 2,3 fanegas (0,8 hectolitro) colhidos voltavam para o solo como semente
para a próxima colheita, percebe-se como eram pequenas, deixando poucas
possibilidades para que houvesse um excedente de alimentos mesmo nos melhores
anos. Os números da cevada, usada para fazer cerveja, eram um pouco superiores (23,5
fanegas/8,3 hectolitros), mas a quantidade de sementes plantadas era maior. Em anos
bons, o rendimento dos grãos ligeiramente inferior a quatro vezes o das sementes era a
norma. Sobrevivia-se pela diversificação.
Todos plantavam vegetais. Ervilhas e feijões, ricos em vitaminas, eram plantados nos
campos no início da primavera e colhidos no outono; os legumes ficavam nas plantas até
secarem, e os caules eram plantados de volta como fertilizantes. Legumes e hortaliças
de todos os tipos completavam o que era basicamente uma dieta sem carne, à base de
pão e mingau.
A maioria dos agricultores tinha uma pequena criação de animais uma ou duas vacas
leiteiras, alguns porcos, ovelhas, cabras e galinhas e, os que tinham sorte, um cavalo ou
alguns bois, ou pelo menos acesso a eles para arar. Os animais forneciam carne e leite, e
também as peles e a lã. A tosa das ovelhas era um evento importante na primavera, re-
alizada em um dia cuidadosamente escolhido, quando um vento cálido do oeste trazia as
promessas do verão. A brisa espalhava a fumaça da madeira que saía pelas portas e
janelas, abertas pelas mulheres, para que entrasse o ar fresco. Do lado de fora, o
rebanho do vilarejo era reunido em um grande cercado, as ovelhas batendo-se umas nas
outras. O cheiro de lã enchia o ar. Os homens, vestindo coletes de couro, seguravam as
ovelhas e as tosavam, uma de cada vez, com tesouras de ferro, realizando movimentos
habilidosos em torno dos dóceis animais até concluir a tarefa. Os animais tosados e
atônitos sacudiam-se enquanto eram levados por jovens para um curral próximo.
Crianças recolhiam a lã e a colocavam em suportes de madeira para secar ao sol.
Durante a maior parte do ano, os animais pastavam por conta própria - especialmente os
porcos, que se refestelavam com castanhas e frutos dos carvalhos no outono. Mas a
alimentação no inverno era diferente, e o desafio era manter vivos os animais. Os
machos excedentes e vacas que já não davam mais leite eram vendidos ou sacrificados
no outono para que sobrasse mais feno para os animais mais valiosos. A colheita do feno
era muito importante. O corte começava em junho e prosseguia pelo mês de julho,
dependendo do tempo, pois o feno precisava estar absolutamente seco para que não
apodrecesse após a colheita, ficando tão quente que poderia pegar fogo. Em dias bons,
homens com gadanhas de ferro de lâminas afiadas abriam caminho pelo prado,
deixando a colheita secar em fileiras pelo campo. Retornavam posteriormente e a
revolviam algumas vezes para que secasse melhor antes de empilhá-la de tal forma que
a parte externa formasse uma camada de palha para protegê-la da chuva. A colheita do
feno era um acontecimento muito importante, porém tão dependente do tempo seco
que um ano com muitas chuvas podia levar a perdas de alguns animais - senão de todos
- no inverno seguinte. Mais uma vez, tudo dependia do clima.
Mesmo em um ano ruim, o lavrador ainda era obrigado a pagar impostos e dízimos à
igreja, o que reduzia o suprimento de alimentos. Um homem com mulher e dois filhos
poderia sobreviver em circunstâncias normais com 5 acres (2 hectares). Mas todos, até
mesmo as crianças pequenas, tinham que plantar legumes e cavar a terra em busca de
alimentos naturais como cogumelos, nozes e frutas vermelhas. Cinco acres deixavam
muito pouca margem para as colheitas mais pobres, causadas por geadas ou
tempestades. Por vários anos seguidos, isso era sinônimo de escassez e de doenças
relacionadas à má alimentação, e certamente de algumas mortes, especialmente nos
meses frios e miseráveis do fim do inverno, quando os suprimentos estavam sempre
baixos e a Quaresma com seu jejum ainda estava distante.
Todo ano, enquanto o verão amadurecia para dar lugar ao outono, cada comunidade
fazia sua colheita e agradecia a Deus pela generosidade, pois a vida não era fácil. O
interminável ciclo das estações definia a existência humana. Assim como a rotina da
semeadura, desenvolvimento da plantação e colheita; a realidade do nascimento, vida e
morte; e todos acreditavam que esses eram os desígnios arbitrários do Senhor.
Em uma era muito anterior à previsão do tempo, todos, fossem reis ou nobres, senhores
da guerra, mercadores ou lavradores, estavam à mercê dos ciclos em que se alternavam
chuvas pesadas e períodos de seca, tempestades violentas e dias perfeitos de verão.
Eram parceiros involuntários em uma dança climática intrincada conduzida pela
atmosfera e pelos oceanos. Mas, especialmente entre os anos 800 e 1300, a dança foi
lentamente adquirindo o ritmo mais lento de uma valsa, onde o calor do verão e
condições mais estáveis tendiam - ressalte-se: "tendiam" - a ser a norma. Os giros da
mudança climática desaceleraram momentaneamente. A Europa mudou profundamente
durante esses cinco séculos que vão de 800 a 1300, o Período de Aquecimento Medieval.

No grande esquema das coisas, as vinte gerações do aquecimento medieval são como
um piscar de olhos. As mudanças de temperatura relativamente pequenas desses
séculos são mínimas quando comparadas àquelas do fim da última Idade do Gelo. Cerca
de 12 mil anos atrás, o mundo entrou em um período de aquecimento global prolongado,
conhecido pelos geólogos como holoceno (das palavras gregas holos, "todo", e kainos,
"novo", significando "inteiramente novo"), que continua até hoje. Gerações de cientistas,
trabalhando com dados inadequados, criaram imagens de mais de dez milênios de clima
basicamente moderno, com mudanças relativamente pequenas desde o aquecimento
que se seguiu à era do gelo. Mas uma revolução na paleoclimatologia (estudo do clima
antigo) transformou nosso conhecimento do holoceno nos últimos anos.
Atualmente, os climatologistas perfuram os leitos de rios e mares, analisam pedaços dos
leitos de gelo mais profundos da Groenlândia e Antártica, aprofundam-se em estudos
das séries de anéis de troncos de árvores antigas. Suas pesquisas revelaram que o clima
do holoceno sofreu mudanças constantes. Podemos agora discernir não apenas
oscilações de inverno e verão de um milênio atrás, mas também ciclos muito mais
curtos, principalmente nos últimos dois mil anos. As mudanças de ligeiramente mais
úmido para ligeiramente mais seco, de mais quente para mais fresco e o contrário,
nunca acabam. Algumas duram um século ou uma década; outras, como os fenômenos
causados pelo El Niño, não duram mais do que aproximadamente um ano. Poucos
acontecimentos climáticos importantes permaneciam por períodos maiores do que uma
geração, e por isso eram rapidamente esquecidos em épocas em que a expectativa de
vida era de pouco mais de trinta anos. A nova climatologia nos mostrou que o relógio
climático pode acelerar ou diminuir a velocidade, recuar ou mudar de direção subita-
mente, e até mesmo permanecer estável por longos períodos de tempo, mas ele nunca
para.

Estudando a Mudança do Clima na Antiguidade


Arqueólogos, historiadores e paleoclimatologistas usam grande variedade de métodos
para estudar as mudanças do clima na Antiguidade. Aqui estão os principais:

Métodos Diretos

REGISTROS INSTRUMENTAIS
Registros instrumentais são a forma mais exata e direta de estudar as mudanças
climáticas. Infelizmente, tais arquivos vão apenas até 150 anos na Europa e América do
Norte, e períodos ainda muito mais curtos rias demais regiões.

DOCUMENTOS HISTÓRICOS
Os arquivos fornecem instantâneos valiosos do clima na Antiguidade, de documentos
como diários, agendas e relatórios oficiais que mencionam acontecimentos
contemporâneos como inundações ou secas. Os mais antigos são os relatos sobre o
florescimento das cerejeiras no Japão e Coréia, que datam de mil anos atrás. Na Europa
e na região do Mediterrâneo, os registros de muitas regiões vão até o ano de 1500
aproximadamente.

Métodos Indiretos (Análises de variáveis)

TESTEMUNHOS DE GELO
Testemunhos profundos coletados nos lençóis de gelo, como os da Groenlândia,
Antártica, Andes e Tibete, fornecem registros contínuos das mudanças de temperatura
provenientes das medições das relações isotópicas de oxigênio e hidrogênio nas
moléculas de água que compõem o gelo. Essas mudanças nas relações podem estar
ligadas a mudanças de temperatura. Um testemunho de gelo na Antártica fornece
registros de mais de 420 mil anos. Seqüências de alta resolução dos últimos dois mil
anos vêm da Groenlândia, dos Alpes e de outros lugares.

TESTEMUNHOS DE MAR PROFUNDO E DE LAGOS


Sedimentos marinhos recuperados em testemunhos de mar profundo contêm
foraminíferas e diatomáceas marinhas, sensíveis à temperatura que podem chegar a
dezenas de milhares de anos. Em alguns locais, como a Bacia de Cariaco, na costa da
Venezuela, e o Canal de Santa Barbara, na Califórnia, a acumulação rápida proporcionou
registros relativamente precisos do aquecimento medieval e do posterior resfriamento.
Testemunhos de lagos fornecem camadas sazonais que registram mudanças no
equilíbrio das águas e, com isso, informações sobre as secas da Antiguidade.

REGISTROS DE CORAIS
Os corais que vivem próximos à superfície do mar produzem estruturas calcárias a partir
do carbonato de cálcio. Medindo as mudanças na relação de 0-8 para 0-16, os
pesquisadores conseguem detectar mudanças de temperatura, pois a relação diminui
com o aumento do calor. Os registros de corais costumam ser incompletos. Poucos vão
além de dois ou três séculos.

ANÉIS DAS ÁRVORES (DENDROCRONOLOGIA)


A dendrocronologia baseia-se no estudo dos anéis das árvores, que indicam o seu
crescimento anual, e da espessura desses anéis, permitindo análises de variáveis das
mudanças das chuvas. Desenvolvidas originalmente no sudoeste americano, as
pesquisas dos anéis das árvores hoje fornecem dados importantes para a análise de
variáveis em muitas partes do mundo. Os registros da Europa são incrivelmente
abrangentes, assim como os de algumas partes da América do Norte. Em anos recentes,
empreenderam-se esforços para coletar mais amostras na Ásia e no hemisfério sul, que
prometem lançar novas luzes tanto sobre o Período de Aquecimento Medieval quando
sobre os eventos provocados pelo E Niño. Os registros dos anéis das árvores remontam
praticamente à idade do gelo na Europa, mas em geral são mais comuns nos últimos mil
ou dois mil anos.

Estes são os mais importantes métodos de análise paleoclimatológica. Existem ainda os


depósitos em cavernas, como as estalagmites, que registram mudanças na temperatura
e na composição isotópica do lençol freático através do tempo, além das informações
sobre temperatura fornecidas pelas perfurações.

Fatores de Precipitação Climática - Forcings

Os forcings são fatores poderosos e incomuns como erupções vulcânicas que podem
provocar mudanças climáticas. No contexto do Período de Aquecimento Medieval, são
mudanças naturais, como a irradiação solar causada por pequenas inclinações na órbita
da Terra e por grandes erupções vulcânicas que afetaram o equilíbrio de energia global.
Grandes eventos vulcânicos acrescentam grandes quantidades de cinza e gases
sulfúricos na atmosfera, diminuindo a quantidade de radiação solar que chega até a
Terra, resfriando-a; os efeitos se limitam a alguns anos. Desde 1860, o principal fator de
precipitação climática tem sido causado pelo homem, em grande parte pelo uso de
combustíveis fósseis.

Softwares
Softwares sofisticados simulam o comportamento do sistema climático mundial,
utilizando cada vez mais dados brutos retirados de balizas, registros instrumentais,
análises de variáveis e satélites. São utilizados tanto para entender a variabilidade
natural do clima global quanto para medir os efeitos de diferentes fatores de
precipitação climática. Eles fornecem a base para avaliar os efeitos do aquecimento
global antropogênico, bem como para as previsões meteorológicas a curto e longo prazo.

Ninguém sabe exatamente o que move o pêndulo climático. É bem provável que
pequenas mudanças na inclinação da Terra provoquem mudanças no clima, assim como
os ciclos de atividade solar: por exemplo, a ausência do sol durante a erupção de um
vulcão. Grandes nuvens de cinzas vulcânicas subiram para a atmosfera, encobrindo o sol
e provocando o célebre "ano sem verão" europeu em 1816. Nos últimos anos,
entretanto, a maioria dos climatologistas passou a acreditar que interações complexas,
embora ainda pouco compreendidas, entre a atmosfera e o oceano desempenham um
papel muito importante nas alterações climáticas. O climatologista George Philander
chama isso de dança entre parceiros muito diferentes, um que se movimenta
rapidamente e outro mais desajeitado. Ele escreve: "Enquanto a atmosfera é rápida e
ágil e responde rapidamente aos toques do oceano, o oceano é pesado e lerdo."
Dançamos convenientemente junto com esses parceiros, às vezes de maneira decidida,
e com freqüência relutantemente.
Aprendemos, também, que os giros da dança climática têm um efeito espantosamente
direto sobre as sociedades humanas, como as chuvas excepcionalmente fortes
provocadas por um El Niño maciço, que destruiu canais de irrigação construídos por
muitas gerações em leitos de rios ao longo da costa norte do Peru no século VI; ou os
grandes ciclos de seca no sudoeste americano, que provocaram deslocamentos
populacionais do Pueblo Ancestral por uma vasta área, mil anos atrás. Assim como os
pueblos do sudoeste abandonavam seus lares por causa da seca, os agricultores
medievais europeus aproveitavam as condições de tempo mais previsíveis e as chuvas
abundantes, mas geralmente não excessivas. Os efeitos das condições um pouco mais
quentes e secas mostravam-se de várias maneiras sutis - colheitas melhores,
crescimento populacional e desmatamento acelerado, explosão do comércio e da pesca
em águas profundas, e uma verdadeira orgia de construção de catedrais. Isso não quer
dizer, é claro, que o calor maior causou todas essas mudanças; longe disso. O que é
instigante é que, hoje, podemos começar a relacionar as mudanças climáticas
aparentemente menores com todos os tipos de acontecimentos históricos, de forma
inimaginável há apenas uma geração. Com poucas e notáveis exceções, como o
historiador suíço Karl Pfister, que passou anos estudando as datas das colheitas para a
fabricação do vinho, a maioria dos historiadores costumava ignorar as mudanças
climáticas principalmente porque, como não cientistas, desconheciam novos dados
climatológicos. Atualmente, podemos ver que as mudanças climáticas foram um dos
fatores que mais contribuíram para moldar a história medieval, principalmente a vida
das pessoas comuns vivendo em pequenas cidades, plantando ou pescando no Mar do
Norte.

Por volta de 1120, o monge e historiador William de Malmesbury viajou pelo Vale de
Gloucester, no oeste da Inglaterra, e admirou a fértil paisagem do verão. “Aqui se podem
contemplar estradas e caminhos públicos cheios de árvores frutíferas, não plantadas,
mas que cresceram naturalmente", ele escreveu. "Nenhum condado da Inglaterra tem
tantos e tão bons vinhedos como este, seja pela fertilidade, seja pela doçura da uva. O
vinho não tem uma aspereza desagradável ou acidez; e é pouco inferior ao francês em
doçura." William observou que as uvas eram plantadas em campo aberto, subindo por
traves, e não protegidas dos ventos frios com muros estrategicamente posicionados.
Naquela época, as condições climáticas eram ideais. As vinhas precisam ser poupadas
das geadas de primavera, especialmente durante ou após o florescimento; também
precisam de sol e calor suficientes no verão, e não muita chuva; e sol e calor de outono
suficientes para elevar o conteúdo de açúcar das uvas. Naquele período, numerosos
vinhedos floresceram na Inglaterra, consideravelmente mais ao norte do que o mais
setentrional dos vinhedos da França e da Alemanha nos anos de 1960. Durante os
séculos XII e XIII, o clima da Inglaterra era tão temperado que seus mercadores
exportavam grandes quantidades de vinho para a França, para desespero dos produtores
franceses, que reclamavam bastante. Não que a Inglaterra estivesse sozinha na pro-
dução de vinho. Entre 1128 e 1437, o vinho era produzido na Prússia Oriental, a 55 graus
de latitude norte, e também no sul da Noruega. A Floresta Negra tinha vinhedos a cerca
de 780 metros acima do nível do mar. Atualmente, os vinhedos mais altos na Alemanha
estão a 560 metros. Naquela época, as temperaturas no verão estavam 1,0°C a 1,4°C
acima da temperatura de meio século atrás na Europa Central, e algumas frações mais
baixas na Inglaterra.
Localidades mencionadas nos capítulos 1 e 2. Algumas regiões menores foram omitidas
para maior clareza.

As primeiras informações a respeito desses séculos de calor foram reunidas no trabalho


do meteorologista e historiador climático inglês Hubert Lamb, um dos heróis pouco
conhecidos da climatologia. Ele estudou as minúcias das mudanças climáticas ocorridas
nos últimos dois mil anos durante as décadas de 1950 e 1960, época em que a maioria
dos historiadores negava que temperaturas e chuvas tivessem algum papel no
desenrolar dos acontecimentos históricos. Lamb foi um detetive meteorológico brilhante,
que não dispunha de modernos métodos de registro para trabalhar, como os anéis das
árvores e testemunhos de gelo. Em vez disso, dependia de dados geológicos dispersos e
registros históricos muito amplos, que ele organizou em um complexo quebra-cabeças
enquanto trabalhava na análise de duzentos anos ou mais de observações feitas em
toda a Europa. Entre seus feitos mais impressionantes estão relatos detalhados de
grandes tempestades no Canal da Mancha e no Mar do Norte. Lamb reconstruiu, por
exemplo, quatro ciclones violentos por volta de 1200, 1200-19, 1287 e 1382, que
mataram pelo menos cem mil pessoas ao longo da costa holandesa e alemã. Seu relato
das gigantescas depressões atlânticas que subjugaram a Armada Espanhola em 1588, é
uma obra-prima de trabalho climatológico investigativo. Os climatologistas ainda citam
com respeito o trabalho de Lamb, assim como o do historiador francês Emmanuel Le Roy
Ladurie, que escreveu um dos primeiros relatos da história européia amparados no
clima, baseado em grande parte nos dados das colheitas de uva durante vários séculos -
precoces nos anos quentes, tardias nos anos frios e úmidos.
Boa parte dos primeiros trabalhos de Lamb são inferências bem fundamentadas. Por
exemplo, ele utilizou cinqüenta anos de médias de umidade no verão e índices de
quedas da temperatura no inverno, colhidas de registros datados até 1432, para
reconstruir o clima da época medieval e até anterior. Ele identificou quatro séculos de
clima significativamente mais quente depois do ano 800, que ele chamou de Período de
Aquecimento Medieval (chamado às vezes de Anomalia Climática Medieval). Ele jamais o
qualificou como um período em que a Europa se deleitou com o calor do sol. Foi mais um
tempo de flutuações cíclicas, com invernos muito frios ocasionalmente, como o de 1010-
11, que cobriu até o Mediterrâneo oriental com frio intenso.
Poucos invernos foram tão frios nos três séculos seguintes. Entretanto, as condições de
calor persistente derreteram calotas de gelo, elevaram as linhas de árvores nas
montanhas e provocaram elevação significativa do nível do mar, da ordem de 60 a 80
centímetros no Mar do Norte, suficiente para causar inundações catastróficas quando a
alta das marés coincidia com ciclones.
Mesmo sem tempestades, a elevação do nível do mar alterou a configuração das costas
baixas. Por exemplo, o Fenland inglês é uma paisagem glacial de pântanos, charcos e
córregos túrgidos. Região distante, inacessível, era ainda no início do século XX ocupada
por pescadores de enguias e moradores dos charcos, que viviam em um mundo à parte,
distantes dos agricultores que os cercavam. O Fenland era não só uma fonte rica de
alimentos quanto um ponto estratégico para aqueles que sabiam utilizá-lo. Como o líder
saxão Hereward, "o Proscrito", que na ilha de Ely, no coração dos Fens, enfrentou Gui -
lherme, "o Conquistador", durante cinco anos após a Conquista da Normandia em 1066:
ele e seus homens se esconderam em meio a um labirinto de ilhas; quando Guilherme
capturou Ely, em 1071, Hereward simplesmente desapareceu e sumiu da história.
O Mar do Norte continuou a subir depois do ano 1000. Na Grã-Bretanha, formou-se uma
barra de maré que chegou até Norwich. Na época de Guilherme, "o Conquistador", a
cidade de Beccles, atualmente muito distante do mar, era um próspero porto de
embarque de arenque. Antes da conquista, os pescadores locais forneciam anualmente
trinta mil arenques para a vizinha Abadia de St. Edmund. Guilherme dobrou a tributação.
Grandes tempestades em 1251 e 1287 inundaram amplas extensões de terra nos Países
Baixos e formaram um imenso golfo, o Zuiderzee, enquanto milhares de acres na costa
da Dinamarca e da Alemanha desapareceram sob o oceano.
Segundo Hubert Lamb, o apogeu do calor em áreas extensas ocorreu em momentos
diferentes. Houve um aquecimento significativo na Groenlândia, do ano 900 ao ano de
1200. A Europa experimentou as temperaturas mais elevadas entre os anos de 1100 e
1300, quando verões secos e invernos amenos eram a regra.

Como acontece com as idéias nos círculos acadêmicos, o Período de Aquecimento


Medieval tornou-se um conceito fixo na literatura erudita: cinco séculos em que a Europa
se deliciou com verões idílicos. O aquecimento medieval tornou-se um ruído de fundo
para os grandes acontecimentos da história, mas poucos historiadores pesquisaram o
fenômeno mais atentamente, pois as análises comparativas de múltiplas variáveis
estavam apenas começando. O próprio Hubert Lamb nunca pensou no Período de
Aquecimento Medieval como um segmento de tempo determinado, pois tinha muita
consciência da realidade do clima europeu. Meio século de investigações climáticas
desde as pesquisas de Lamb mostraram que ele estava certo. Houve o aquecimento,
especialmente entre 1100 e 1200, mas o clima era, como sempre, infinitamente
variável. O Período de Aquecimento Medieval não foi um episódio discreto, em que o
clima se mostrou distintamente diferente do anterior; como também não o foi a Pequena
Idade do Gelo que veio em seguida, por volta de 1300 (a data do início é incerta) até
1860. Entretanto, como atestam os elogios de William de Malmesbury ao vinho inglês,
uma elevação média, mesmo que de um grau ou dois, pode alterar uma paisagem ou
destruir uma civilização.
A reconstituição do clima do Período de Aquecimento Medieval adquiriu importância
premente para muitos acadêmicos devido ao debate de cunho político e já controvertido
a respeito da realidade do aquecimento global causado pelo ser humano. Aqueles que se
contrapõem ao conceito de aquecimento global antropogênico comparam as curvas de
temperatura dos séculos de calor ao aquecimento constante, quase que em linha reta,
desde o auge da Revolução Industrial em 1860.
A controvérsia explodiu quando três climatologistas, Michael Mann, Raymond Bradley e
Michael Hughes, publicaram uma reconstituição das temperaturas do hemisfério norte
nos últimos seiscentos anos, depois dos últimos mil anos, usando variáveis como anéis
de árvores, testemunhos de gelo e corais, assim como registros instrumentais dos
últimos 150 anos. O gráfico na forma de balanço, com seu registro claro da elevação das
temperaturas desde 1860, recebeu cobertura ampla quando foi publicado no relatório do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 2001. A curva de Mann
é conhecida popularmente como "taco de hóquei", pois mostra uma linha longa, quase
reta, de aquecimento nos últimos 150 anos. Comparado ao aquecimento atual, as
temperaturas dos primeiros séculos são quase planas, o que enfureceu os que negam o
aquecimento global causado pelos humanos. Eles acreditavam que o Período de
Aquecimento Medieval tivera temperaturas mais elevadas do que o clima atual.
Quais as temperaturas desses primeiros séculos no hemisfério norte? Elas eram, de fato,
mais elevadas do que as de hoje? Sabemos por dados instrumentais, desde 1861, que as
temperaturas de inverno subiram cerca de 0,8°C; e as de verão, cerca de 0,4ºC. Para os
primeiros séculos precisamos confiar em análises comparativas de múltiplas variáveis e
registros históricos ocasionais, como aqueles utilizados por Hubert Lamb. Várias análises
nos levam até 1600, revelando que o século XVII foi frio, com temperaturas de verão de
aproximadamente 0,1°C acima da média do milênio. Antes do ano 1000, os registros se
transformam porque faltam boas seqüências de múltiplas variáveis. Parece que Hubert
Lamb estava certo, pelo menos no que diz respeito à Europa. Os séculos XI e XII, e talvez
os dois séculos anteriores, foram relativamente quentes e estáveis, mas com
temperaturas ligeiramente mais baixas do que as atuais. Poucos cientistas duvidam de
que o aquecimento constante atual é único e seja causado pelos seres humanos.
O Período de Aquecimento Medieval pode ser considerado um fenômeno global, marcado
por um aquecimento universal e condições climáticas benignas para todos? Ao contrário
da Pequena Idade do Gelo, que deixou uma marca climática significativa em terras tão
distantes quanto a Nova Zelândia, os Andes e a Groenlândia, os séculos medievais mais
quentes tiveram um impacto mais fugaz. Então, como hoje, todo o clima era local,
mesmo que tivesse origem em interações de grande escala entre a atmosfera e o
oceano. Ciclos prolongados de calor na Europa trouxeram estabilidade para o
fornecimento de alimentos e produziram condições favoráveis que impulsionaram o
desenvolvimento de reinos maiores, mais poderosos. Em compensação, os mesmos
séculos deram origem a episódios com chuvas às vezes catastróficas e secas intensas
em regiões áridas e semi-áridas: no oeste da América do Norte, na Índia, às margens de
desertos - o Saara, por exemplo - e nas estepes da Eurásia, onde os suprimentos de
água variavam enormemente. O Pacífico oriental ficou frio e seco; o Ártico viu muito
menos gelo de verão. O termo "Período de Aquecimento Medieval" é algo um tanto
impróprio, mas a maioria das pessoas continua a usá-lo porque todos sabem quais
séculos estão envolvidos e porque, como veremos, existem evidências mesmo que
superficiais da ocorrência de temperaturas mais quentes do Tibete até os Andes, Europa
Ocidental e América do Norte à África Tropical. O Período de Aquecimento Medieval é
uma espécie de fenômeno global, embora não exatamente o que Hubert Lamb imaginou
meio século atrás. Mas, sem dúvida alguma, esses séculos mais quentes trouxeram
enormes benefícios para a Europa, que se deliciou com o calor dos verões e as boas
colheitas, especialmente entre 1100 e 1300, durante a Alta Idade Média. Esse clima mais
quente, mais estável, durou não mais do que duzentos a trezentos anos, mas foi
suficiente para transformar a história.
Reconstituição das temperaturas no hemisfério norte, reunidas no trabalho de seis
diferentes equipes de pesquisa. Elas foram combinadas com o registro da temperatura
média global na superfície, obtida através de instrumentos (mostrados em escuro). Cada
curva tem poucas diferenças; cada uma delas está sujeita a determinadas incertezas e
limitações que aumentam à medida que recuamos no tempo. Mas as reconstituições são
geralmente consistentes ao longo dos últimos 1.100 anos, especialmente nos últimos
quatro séculos e nos últimos 150 anos, com seu aquecimento. As flutuações de
temperatura do Período de Aquecimento Medieval refletem as mudanças constantes nas
condições do clima. (Do relatório Surface Temperature Reconstructions of the Past 2.000
Years do National Research Council [Washington, D.C.: National Academies Press, 2006],
fig. S-1. Detalhes das diferentes curvas de temperatura, que são irrelevantes aqui,
podem ser encontrados nessa publicação.)

Uma cacofonia assalta o ouvido por todos os lados. As pessoas juntam-se ao redor das
barracas negociando, fuxicando e mexendo com os produtos. Legumes coloridos e
cenouras se amontoam nas barracas do mercado. As mulheres cheiram as maçãs
maduras com desconfiança. À sombra, lavradores de túnicas e meias bebem cerveja em
canecas de madeira. De repente, faz-se silêncio. A multidão se dispersa ante a
aproximação de um cortejo de homens em armas e roupas de gala escoltando o senhor
do castelo pelo mercado. Ele cavalga um belo cavalo branco, ricamente adornado;
usando uma armadura leve e capacete de aço, ele não olha para a direita nem para a
esquerda. Os aldeões silenciosos tocam a testa ou se apóiam em um dos joelhos no
chão. Sua Senhoria acena solenemente e segue, com seus escudeiros e criados
cavalgando logo atrás em ordem unida. Quando o cortejo se vai, recomeça o burburinho.
O senhor poderia surgir em todo o seu esplendor, escoltado por soldados e servos
uniformizados; as guerras endêmicas podiam consumir as energias de reis e barões. Mas
por trás da fachada do cortejo principesco e da exibição esplêndida havia um continente
sob a ameaça constante da fome. A fronteira entre fartura e fome era realmente
estreita, definida por inesperadas geadas de primavera, longas semanas de chuva
pesada ou meses de seca aparentemente interminável. Todos os que viviam no campo
sofriam com períodos de subnutrição. Sabemos disso pelas linhas reveladoras
encontradas em seus ossos, marcas de sofrimento levadas para o túmulo. Mesmo nos
anos bons, muitas comunidades rurais sobreviveram em condições de subsistência, ou
perto disso. Bastava um período de chuva pesada, inundações ou uma epidemia que
atacasse o gado para levar a fome à soleira da porta. Mesmo na melhor das épocas, a
agricultura era um trabalho duro e incansável. A expectativa de vida de um trabalhador
rural de Winchester, em 1245, era de aproximadamente 25 anos - caso sobrevivesse às
doenças infantis. (Se considerarmos a elevada taxa de mortalidade infantil, a
expectativa de vida era ainda menor.) Sequei as ocupacionais, como deformações na
coluna pelo transporte de sacolas pesadas ou pelo corte do feno, são comuns nos mortos
encontrados em cemitérios medievais. Os pescadores sofriam de osteoartrite na coluna
por viverem empurrando os barcos e puxando redes carregadas de arenques. O custo
humano devido ao trabalho duro e alimentação inadequada era enorme, mesmo nos
anos bons.
Tendências climáticas em todo o mundo durante os séculos de calor. Esta é uma tabela
bem generalizada para uma simples orientação
Os séculos mais quentes trouxeram alívio significativo para os agricultores de
subsistência da Europa. A estação de crescimento dos cereais durava três semanas.
Verão após verão, o tempo quente e estável começava em junho e estendia-se por julho
e agosto nos dias febris da colheita. Ainda mais importante, as geadas de maio que
haviam assombrado as plantações durante séculos tornaram-se virtualmente
desconhecidas entre 1100 e 1300. Os verões quentes e invernos amenos permitiram que
as pessoas se arriscassem plantando em terras marginais e em altitudes mais elevadas
onde, até então, as temperaturas mais frias impossibilitavam qualquer tipo de cultivo.
Uma população crescente de lavradores seguiu em direção ao norte e para regiões mais
altas.
Os números falam por si. Pequenas comunidades de agricultores floresceram 320 metros
acima do nível do mar em Dartmoor, sudoeste da Inglaterra, durante o século XII.
Ninguém plantou ali no século XX. Atualmente, não existem plantações nos Montes
Peninos, ao norte da Inglaterra; porém, em 1300, os pastores locais reclamavam dos
lavradores intrusos. A Abadia de Kelso, no sul da Escócia, tinha bem mais do que 250
acres (cerca de 100 hectares) cultivados em uma altitude de mais de 300 metros acima
do nível do mar, muito acima dos limites atuais. Mil e quatrocentas ovelhas e 16 famílias
de pastores viviam nas terras da abadia. Agricultores cultivavam trigo em Trondheim, no
norte da Noruega. Mais ao sul, nos Alpes suíços, pequenos proprietários tinham
plantações em vales profundos que dois séculos antes estavam cobertos por geleiras.
Em altitudes inferiores, épocas de cultivo mais longas reduziam significativamente os
riscos das colheitas, pois as longas semanas de verão aumentavam o período de
amadurecimento das plantações, permitindo um acúmulo maior de alimentos para suprir
vilarejos e cidades cada vez maiores. Os rebanhos cresceram; as populações rurais e
urbanas aumentaram. A demanda por terra cultivável disparou enquanto aumentavam
gradualmente as exigências da Igreja e da nobreza em relação aos plebeus por trabalho,
impostos e dízimos. Pela Europa ecoavam os sons dos machados de ferro derrubando
florestas de carvalho e abrindo novas terras.

CAPÍTULO 2
O Manto dos Pobres

Muitas fazendas agradáveis suprimiram todos os traços do que já foi desperdício


perigoso e sombrio; campos cultivados dominaram florestas; rebanhos e pássaros
expulsaram os animais selvagens; desertos arenosos são semeados (...) e onde antes
havia casinhas solitárias, agora há grandes cidades.

- TERTULIANO, De Anima (século II)

Na escuridão pré-alvorada, o garoto do arado chicoteia os flancos dos bois com o


aguilhão. Os animais abaixam a cabeça e sentem o puxão das cordas dos arreios, as
patas chafurdando no solo viscoso que brilha com a umidade. Atrás, o homem, com os
tornozelos enfiados na lama, segura as alças da roda do arado, fazendo força para baixo,
guiando a lâmina para que penetre no solo pesado. Ele respira com dificuldade devido ao
esforço e empurra novamente, enquanto a lâmina abre um sulco profundo. Devagar, o
arado segue em frente pela faixa estreita, seguindo paralelamente aos sulcos abertos no
dia anterior. A lâmina para e recomeça, empacando no torrão de terra. O menino treme
de frio, gritando e incitando os bois para que não parem de trabalhar.
No fim da tarde, o trabalho de arar a terra termina. O menino desmonta o arado e leva
os bois de volta para o vilarejo. Enche a manjedoura com feno e leva o esterco fresco
para usá-lo depois como fertilizante. Amanhã, o trabalho na lavoura será retomado, o
controle dos animais, a montagem do arado, o trabalho pelos campos.
Essa dura rotina prosseguiu durante séculos, da Inglaterra e Escandinávia ao sul da
França, da Espanha à Europa central. Há mil anos, a Europa era um continente rural, um
lugar com cidades cada vez maiores e vilarejos florescentes, porém um lugar onde a
maioria das pessoas vivia da agricultura de subsistência e a fronteira entre fome e
fartura era muito estreita. Boas colheitas significavam tudo para o campo, e foi no
campo que se sentiu o maior impacto cios séculos de calor. Cada vilarejo, cada
cidadezinha, vivia de estação a estação. O contraste entre verão e inverno era então
maior. Os preciosos meses de verão eram longos e cheios de luz, céus ensolarados,
época de calor, de plantar, depois colher. Esses eram dias de exuberância e de festivais,
de fartura. Os invernos eram frios e escuros, com dias curtos e cores sombrias, os
campos nus, as árvores sem folhagem verde. A estação da escuridão passava sem luz
elétrica ou chamas a gás, iluminada quando muito por velas tremeluzentes e aquecida
apenas pelo fogo fumacento e grandes lareiras nos palácios e castelos da nobreza. As
pessoas dormiam enroscadas umas nas outras para se aquecer. Um manto quente e
uma cama confortável eram luxos apreciados. Os séculos de calor trouxeram alívio
significativo para os duros contrastes entre as estações. Também estimularam o
crescimento da população e da violência.

A violência foi um fato na vida da Europa medieval e parte integral da política.


Assassinatos, traições, alianças transitórias e campanhas militares brutais faziam parte
da existência da elite e dos privilegiados. Os cavaleiros e os membros mais poderosos da
sociedade davam ênfase à exibição de coragem e força. Torneios testavam a bravura
individual e a habilidade com a lança. Confrontos entre proprietários rivais não
envolviam necessariamente uma longa lista de vítimas. Muitas vezes apresentavam-se
como forma de definir fronteiras territoriais e políticas, de avaliar limites da autoridade
estabelecida e definir quem poderia explorar quem. Algumas campanhas foram
realmente rituais de exibição. Em época de boas colheitas, os combates, mesmo que em
pequena escala, surgiam em algum lugar quase todos os verões.
Poderosas forças de desunião dificultavam o surgimento de grandes entidades políticas.
A França, o reino da França, era pouco mais do que um conceito abstrato no início do
século XI, uma série de entidades autogovernadas que estavam sempre se envolvendo
em disputas freqüentemente acirradas. Na França, a autoridade real se estendia apenas
às terras que o rei podia taxar e explorar. Os primeiros reis capetianos, cuja dinastia
começou em 987, governaram não pelo direito de nascimento, mas em virtude de suas
habilidades individuais. Criaram uma ideologia que os proclamava escolhidos por Deus e
passaram a maior parte dos séculos XI e XII forçando seus rivais - barões e ricos
proprietários de terra com seus castelos fortificados - a se submeterem. Fizeram isso, em
parte, pela Igreja, cujas paróquias e monastérios eram os alvos favoritos dos senhores
predadores.
O ponto e contraponto da violência fluiu e refluiu durante os séculos de calor. Os
senhores leigos, príncipes episcopais e comunidades religiosas que controlavam o campo
próspero, com seus vinhedos, plantações abundantes e grandes rebanhos eram alvos
atraentes para salteadores e senhores ambiciosos sedentos por anexações. Poucos
vilarejos e cidades pequenas tinham proteção contra os saqueadores em uma época em
que a atividade econômica e as populações rurais estavam se expandindo rapidamente.
Algumas partes da França, como a Bretanha, lembravam um campo de batalha devido
às disputas ferozes entre vizinhos gananciosos que lançavam olhos cheios de cobiça
sobre as terras mais produtivas. Somente as regiões mais ocidentais, de língua celta,
escaparam à invasão, pois estavam longe de ser férteis, com a maioria da população
concentrada em vilarejos de pescadores ao longo da costa.
A guerra se nutria dos excedentes - da capacidade dos senhores ambiciosos de
alimentar seus exércitos e financiar a construção de castelos de pedra que serviam
como postos avançados e bases para reprimir a rebelião. O controle sobre as terras ricas
e suas plantações era conseguido através de casamentos políticos e força bruta. No
entanto, algumas regiões, como a Normandia, ao norte, com suas fazendas de laticínios
e plantações abundantes, alcançaram estabilidade considerável. O ducado da Borgonha
se vangloriava de suas terras férteis, pequenas explorações agrícolas e propriedades
maiores; foi visivelmente próspero durante os séculos de calor, graças especialmente a
um comércio florescente de vinho que satisfazia a sede de lugares tão distantes quanto
a Espanha e a Inglaterra.
Com o rápido crescimento populacional e o aumento no volume do comércio de longa
distância, rivalidades e alianças inconstantes entre os grandes senhores marcaram a
paisagem política. A busca pelo poder girou basicamente em torno do rico potencial
agrícola do norte, onde hoje situa-se a França. Os séculos de calor trouxeram colheitas
abundantes para uma região conhecida por seus cereais, frutas e vinho. Pastos
abundantes e bem irrigados propiciaram grande aumento dos rebanhos e produção de lã
ainda maior. Plantações de produtos não-alimentícios, como a fibra do linho e as plantas
usadas para o tingimento, ocuparam ainda mais terras agrícolas. As extensas florestas
do norte ofereciam pasto para os porcos, mas também eram muito exploradas para a
obtenção de toras de madeira, lenha e carvão, utilizado na produção de ferro. A guerra
crônica da época estimulava a indústria de armas e armaduras, embora as mesmas
habilidades pudessem produzir machados, lâminas de arados e outros implementos para
a lavoura em tempos de paz. As rivalidades principescas, no entanto, impediram uma
transformação econômica espetacular.
A guerra foi endêmica durante os séculos de calor, mas os reis capetianos conseguiram
aos poucos impor sua autoridade e forjaram um reino de verdade em meio ao caos. O rei
Felipe II, "o Augusto", fez de Paris a capital da França, em 1194. A Normandia foi
anexada em 1204; em 1249, a maior parte do sul da França estava sob o controle real.
Graças a uma administração inteligente, as elites das terras conquistadas
desenvolveram um interesse documentado no sucesso do reino, sendo a coroa o ícone
da unidade francesa. Assim, os séculos de calor, com suas colheitas seguras, que
estimulavam tanto o comércio quanto a guerra, testemunharam o início da Europa
moderna.

A Europa transbordava energia durante os séculos de calor. O historiador da arte


Kenneth Clark define bem a situação: "Era como uma primavera russa. Em todos os
ramos da vida - ação, filosofia, organização, tecnologia - havia um transbordamento de
energia e intensificação da existência." Os feitos de monarcas e príncipes tinham pouco
significado para a maioria dos europeus, fossem livres ou escravos, estes últimos
representando cerca de 10% da população em algumas regiões. A Europa era um
continente rural no início dos séculos de calor: a vida da maioria das pessoas girava em
torno da aldeia, do vilarejo e da interminável rotina de plantar e colher. Apesar da alta
taxa de mortalidade entre crianças e bebês, grande número de natimortos, epidemias
freqüentes e penúria extrema, ocasionalmente a população cresceu. Entre o ano 1000 e
a eclosão da Peste Negra, em 1347, a população do continente subiu de
aproximadamente 35 milhões para cerca de 80 milhões de pessoas. Onde hoje é a
França, havia cerca de 5 milhões de habitantes no ano 1000, e algo em torno de 19
milhões em 1350. Os números da Itália subiram de 5 milhões para cerca de 10 milhões,
enquanto na Inglaterra foram de aproximadamente 2 milhões para cerca de 5 milhões.
Esse crescimento ocorreu em toda a Europa, embora com índices diferentes, chegando a
cerca de meio milhão de pessoas na Noruega, em 1300, onde era pequena a oferta de
terras aráveis devido a uma estação de cultivo relativamente curta. O rápido
crescimento populacional, durante séculos de condições climáticas relativamente
favoráveis, porém com limitada disponibilidade de terras agrícolas, formou uma lacuna
imperceptível, mas crescente entre a população cada vez mais numerosa para ser
alimentada e uma área cada vez menor para prover o alimento. Os números somente na
Inglaterra são desanimadores. No ano 1000, uma área de aproximadamente 8,5 milhões
de acres de terras aráveis (3,4 milhões de hectares), com cereais e outras plantações,
alimentava cerca de 2,5 milhões de pessoas. Mesmo após três séculos de crescimento
populacional, longos períodos de boas condições para a lavoura, o aumento para 11,5
milhões de acres (4,6 milhões de hectares), boa parte deles fincada em terras agrícolas
marginais, era difícil alimentar 5 milhões de pessoas. Essas estatísticas podem ser
enganosas, pois havia arrendamentos engajados na agricultura intensiva, especialmente
aquelas envolvidas com o fornecimento de cereais para as cidades. O rápido
crescimento populacional, entretanto, em parte estimulado pelas condições climáticas
favoráveis, criou problemas para os agricultores de subsistência.
As catedrais góticas, os manuscritos iluminados, os delicados trabalhos de madeira - as
conquistas materiais da Alta Idade Média dependiam de excedentes de alimentos
produzidos pelo trabalho anônimo dos agricultores de subsistência. Esses excedentes
alimentícios geravam riqueza e dinheiro para pagar os salários de artesãos e outros
trabalhadores, assim como os meios para honrar o senhor. Quando as colheitas eram
abundantes e a vida era boa, tanto os nobres quanto os comuns agradeciam a Deus e
faziam doações generosas para que ele não despejasse sua ira na forma de pragas,
guerras e fome. Nos anos menos prósperos, as doações escasseavam e o ritmo de
construção de catedrais diminuía. Apesar dos anos de boas colheitas, as realidades de
fartura e fome definem os séculos de calor, quando a Europa medieval prosperou e
tornou-se precursora de um continente de estados soberanos.

A chuva torrencial muda para chuva de granizo e castiga a vila, transformando caminhos
enlameados em pequenos rios. Violentas lufadas de vento arrancam os galhos das
árvores nuas. A ventania implacável passa assobiando pelas sebes e telhados de palha,
empurrando as nuvens cinzas pelo céu, cortando a fumaça de madeira que sobe das
chaminés e telhados. Não se vê viva alma. O conjunto de moradias parece abraçar a
terra, com medo das rajadas de vento. Dentro de casa, o ruído da tempestade é
abafado, porém mal se consegue enxergar por causa da fumaça asfixiante que se forma
acima dos feixes de madeira. Odores fortes atacam as narinas - esterco das vacas,
alimentos em decomposição, excrementos. Todos se encolhem silenciosamente, envoltos
em peles de carneiro e caneleiras. O gado se mexe inquieto no estábulo, em uma
extremidade da casa. Animais e seres humanos esperam por uma trégua do temporal.
Mesmo na década mais quente, o clima da Europa medieval foi de extremos. Semanas
de neve, temporais de inverno memoráveis, fortes vagas marítimas causadas por
tempestades no Mar do Norte, longas secas de verão: a agricultura de subsistência era
um empreendimento desafiador mesmo no ano mais quente. Com chuvas e
temperaturas imprevisíveis, os agricultores medievais eram conservadores mesmo nos
melhores momentos, assim como seus iguais dos dias de hoje nas regiões em
desenvolvimento. Quando se vive sob o espectro da fome, a tendência é proteger o que
se tem. As inovações de qualquer tipo podem definhar diante da oposição cautelosa da
opinião pública. Nas comunidades de subsistência - baseadas, freqüentemente, na
experiência coletiva adquirida ao longo de muitos anos - o consenso é o cerne da
sobrevivência. Isso fazia com que a escolha de datas para plantar e colher cereais, uvas
e outros vegetais fosse uma questão de deliberação cuidadosa, mesmo em épocas mais
quentes, quando o resultado das colheitas tendia a ser maior. A elevação das densidades
populacionais e as condições climáticas em geral favoráveis ameaçavam seriamente o
conservadorismo dos agricultores medievais. Importantes inovações nos métodos
agrícolas foram implantadas nos séculos de calor devido à escassez de terra e ao
número maior de bocas para alimentar.
Os invernos mais amenos, os verões mais quentes e estações de plantio mais longas no
Período de Aquecimento Medieval foram um poderoso catalisador para o crescimento
populacional constante, estimulado por boas colheitas. À medida que cresciam as
populações rurais, também a demanda por solos mais leves, com boa drenagem e de
cultivo fácil, excedia a oferta. A terra macia desse tipo de terreno podia ser revolvida
eficientemente com um arado leve, do tipo criado há mais de mil anos, da época anterior
aos romanos. Tratava-se basicamente de uma lâmina que fazia um sulco na terra, mas
não revirava o torrão. Os agricultores medievais usavam bois para puxar os arados, ou,
se não tivessem animais, a dupla composta por marido e mulher arava a terra, um
puxando o arado e o outro guiando. Desde que a terra fosse suficientemente leve, esse
tipo de arado representava uma forma simples de cortar o campo e foi amplamente
utilizado por pelo menos quatro mil anos.
Mas o arado romano tinha sérias limitações. Era muito menos eficiente nos solos mais
pesados, mais argilosos, onde a camada superior era mais dura, especialmente em
períodos mais secos. Épocas de seca prolongada, como as dos séculos mais quentes,
iam contra a aragem fácil. Com o aumento da demanda por terras cultiváveis, os
lavradores se transferiram para esses solos úmidos, potencialmente produtivos, em geral
com densas florestas, mas difíceis de cultivar. Felizmente, um novo conceito de arado
surgiu durante o século VII, ou mais ou menos nesse período, a tempo para os séculos
de calor e mais eficiente para solos mais pesados. A charrua tinha lâminas afiadas, que
cortavam o solo, revirado pela aiveca, que enterrava o mato e revolvia os nutrientes.
Parelhas de bois normalmente puxavam as charruas até que alguém do continente
desenvolveu uma nova técnica de atrelagem, o arnês, que substituiu o 'colar de pescoço.
Com a utilização de cavalos, a força dos bois foi superada em quatro ou cinco vezes. Os
cavalos também eram mais rápidos, mas o uso de quatro cavalos, ou oito bois, para um
único arado, embora viável em casas religiosas e terras arrendadas, era uma alternativa
muito dispendiosa. Os agricultores dos vilarejos resolveram o problema compartilhando
os animais na época de arar a terra. Mesmo com os bois, o trabalho era brutal, do nascer
ao pôr-do-sol.
Os arados com rodas e cavalos passaram a ser amplamente utilizados mais ou menos na
mesma época da adoção do sistema trienal de cultivo, que surgiu em terras monásticas
no nordeste da França durante o século IX e se espalhou gradualmente por toda a
Europa. No início, plantava-se metade dos campos de cada vez. Posteriormente, eram
cultivados dois terços, com o terceiro descansando. Com o sistema trienal produziram-se
mais grãos e forragem para os animais, alimentos mais nutritivos, famílias maiores e
mais animais de tração - desde que houvesse gente suficiente para realizar o trabalho
extra de plantar e colher; e também mais arados, arreios, cangas e outros equipamentos
que precisavam de carpinteiros, ferreiros e trabalhadores especializados.
O sistema de cultivo trienal envolvia o plantio de um campo com cereais de inverno -
trigo, cevada ou centeio. Um segundo campo era utilizado na primavera com aveia,
grão-de-bico, ervilha, lentilha ou favas. O terceiro campo ficava em repouso. O sistema
trienal estendeu as necessidades de mão-de-obra mais uniformemente ao longo do ano,
além de fornecer aveia para alimentar os cavalos. Legumes, como ervilhas e feijões,
fixavam nitrogênio no solo e mantinham sua fertilidade, de forma que era possível ter
mais animais. O risco de fome foi reduzido significativamente, ao mesmo tempo em que
havia mais estrume para fertilizar o solo. Com o aumento na ingestão de proteína, houve
uma melhora da nutrição e da saúde, e a população cresceu. E, o mais importante, os
excedentes alimentícios aumentaram consideravelmente, tanto pelo aumento do calor e
melhora das colheitas quanto pela agricultura intensiva.
As colheitas de cereais nos vilarejos medievais eram baixas. Ali, o ritmo das inovações
era mais lento. Mas em algumas regiões eram muito maiores, notadamente nos Países
Baixos e no norte da França, além de partes do sudeste e leste da Inglaterra, onde
arrendamentos e pequenas propriedades agrícolas supriam mercados urbanos
crescentes ou navios que transportavam grãos além-mar. A lavoura mista intensiva em
algumas propriedades de Norfolk no século XIV chegava a produzir de 15 a 25 bushels
(alqueires) por acre (5,28 a 8,8 hectolitros) ou mais, colheitas normalmente associadas
aos métodos de lavoura intensiva e altamente eficiente introduzidos na Inglaterra no
século XVIII. Esse tipo de propriedade mista combinava agricultura com criação de gado
e principalmente de ovelhas, produzindo dois terços mais do que as bem administradas
terras arrendadas em lugares como Winchester, no sul da Inglaterra. Não é difícil
descobrir a causa dessa produtividade: a necessidade de alimentar populações
crescentes nas pequenas e grandes cidades.
Um arado em sua forma mais sofisticada (acima) e uma charrua simples com aiveca
(abaixo).

O número de cidades aumentou exponencialmente entre os anos 1000 e 1400. Somente


na Europa Central, surgiram mil e quinhentas cidades do século XI até 1250, e mais
cinqüenta no meio século seguinte. As cidades variavam enormemente de tamanho,
sendo algumas pouco maiores do que grandes vilarejos e, outras, comunidades de duas
a três mil pessoas. A ocupação de todas as cidades medievais era mais densa do que a
dos vilarejos. Também havia mais artesãos, pessoas com ocupações mais especializadas:
ferreiros, oleiros, tecelões e muitos outros. Todas as cidades tinham um mercado regular;
nenhuma delas teria sobrevivido sem ele. Algumas tinham até uma casa da moeda, pois
a base dos mercados não era a troca, mas o direito de cunhar moedas. Às vezes eram
edifícios públicos imponentes, como grandes igrejas e saguões de mercados, além de
outras estruturas. Acima de tudo, as cidades eram locais fervilhantes, onde havia até
"congestionamentos". William Chester Jordan relaciona algumas causas na medieval
Southwark, perto de Londres. "A grande atividade dos carros de bois chocando-se contra
as carruagens, longas filas de charretes carregando frutas e vegetais, a aparentemente
interminável cavalgada de homens montados e mulheres levando mensagens, fazendo
compras, visitas ou comparecendo a reuniões e gritando para os outros abrirem
passagem nas ruas." Ele acrescenta: "Sem congestionamento, não é cidade".
No início, as cidades eram politicamente fracas em relação aos senhores do campo, que
normalmente as controlavam. Seus agentes disputavam o controle político com os
clérigos, mas os mercadores e o setor comercial acabaram por assumir um poder e
influência cada vez maiores graças a uma explosão de atividades comerciais de todos os
tipos. Na época anterior às boas estradas, a maioria dos produtos viajava para cima e
para baixo através de rios, canais e das costas marítimas. Esse comércio remontava a
uma época anterior aos romanos. No século IX, o rei Carlos Magno controlava
importantes rotas comerciais do Mar do Norte. O Mosa, o Escalda e o Reno penetravam
no coração da Europa e chegavam à costa baixa de Flandres, onde cidades de comércio
movimentado como Bruges, Gent e Ypres logo se tornaram cidades populosas e
prósperas. Além dos centros antigos, como Londres e Paris, desenvolveram-se outros
entrepostos importantes: Southampton, no sul da Inglaterra, protegida pela ilha de
Wight; Dieppe, centro de comércio vinícola e pesca de arenque; lugares como Bergen,
com seus armazéns de bacalhau; e Rostock, no mar Báltico, com suas ligações com o Rio
Vístula e a Eurásia.
O crescimento das cidades teve conseqüências políticas e econômicas duradouras. Só na
Inglaterra, por volta de 1300 havia pelo menos 16 cidades com dez mil habitantes ou
mais; esse número grande e cada vez maior de pessoas dependia de outras para
alimentá-las. As cidades medievais tornaram-se ímãs não só para artesãos e mercadores
bem relacionados, mas também para os pobres e aqueles que não possuíam terras, que
viviam em habitações coletivas e cabanas dentro ou fora dos muros da cidade. Como as
pequenas, as grandes cidades eram lugares populosos e movimentados, fervilhando de
desamparados e gente pobre, com todo o potencial explosivo pra a agitação social. Em
tempos de penúria, a fome alimentava a raiva em cortiços superlotados, onde a
violência estava à espreita, bem próxima à superfície. Nos séculos de calor, as colheitas
foram de modo geral muito fartas, mas as cidades que rapidamente se formaram em sua
esteira foram ficando cada vez mais vulneráveis às más colheitas. Em épocas mais
recentes, o maior temor dos monarcas da família Tudor, na Inglaterra, era a agitação
urbana provocada pela escassez de cereais.
A população mudou rapidamente durante o Período de Aquecimento Medieval. No final,
Londres talvez tivesse de 80 mil a 100 mil habitantes, população que só perdia em
número para Paris, entre as cidades ao norte dos Alpes. Grande porto marítimo e fluvial,
a cidade dependia de uma área irregular de aproximadamente 10,35 quilômetros
quadrados para seu suprimento de cereais, boa parte de propriedades a mais de 160
quilômetros de distância. As cidades cada vez maiores dependiam de fontes de
suprimento confiáveis. Quando uma grande penúria se abateu sobre a Inglaterra em
1315-17, o rei ordenou aos seus funcionários que fossem buscar provisões essenciais e
forragem para sua moradia em lugares tão distantes como Sussex, Cambridgeshire,
Norfolk e Gloucestershire, a cerca de 240 quilômetros de distância. Londres expandia-se
e contraía-se de acordo com as condições climáticas e as colheitas resultantes. Durante
as melhores décadas dos séculos de calor, a capital ocupou provavelmente um quinto do
total de terras cultiváveis da Inglaterra, das quais menos da metade fornecia cereais
regularmente. Cidades como Winchester ocupavam uma área muito menor, que se
estendia por não mais do que 19 quilômetros. Em um mundo em que provavelmente
10,5% da população da Inglaterra vivia em cidades grandes e pequenas - isto é, 420 mil
pessoas - as necessidades agrícolas dos mercados urbanos ainda eram restritas e
seletivas. Mas isso iria mudar no futuro, com o crescimento das cidades e com as
condições climáticas cada vez mais imprevisíveis.
O impacto real de condições agrícolas mais favoráveis e épocas de plantio mais longas
foi sentido no campo. E ali, com o crescimento dos vilarejos e a ocupação dos solos mais
leves, a falta de alimentos tornou-se realidade. A solução lógica foi ocupar mais terras,
áreas fora dos limites por causa dos solos mais pesados, dos pântanos, terrenos mais
elevados, alguns deles marginais porque sujeitos à erosão com chuvas pesadas. A maior
parte das novas terras aráveis, no entanto, surgiu com a abertura de uma paisagem
coberta por florestas desde a era do gelo.

A escala do desmatamento durante os séculos mais quentes é surpreendente. No ano


500, talvez quatro quintos da temperada Europa Central e Ocidental eram ocupados por
florestas e pântanos. Essa paisagem foi reduzida pela metade, ou ainda menos, por volta
de 1200, e a maior parte da ocupação ocorreu durante o Período de Aquecimento Medie -
val, com um ataque pesado ao meio ambiente. Nos Países Baixos, os agricultores
recuperaram terras do Mar do Norte no que foi chamado de "drenagem ofensiva", que
transformou ilhas pequenas dos arquipélagos costeiros em ilhas maiores. Grandes áreas
de turfas atrás da costa foram drenadas com fossos e depois laboriosamente
recuperadas em uma luta de gato-e-rato com a água enquanto a turfa permanecia. No
início, os lavradores dependiam de fossos cada vez mais profundos; depois, passaram a
contar com bombas e moinhos de ar ou de água. Foi necessário um trabalho imenso,
desenvolvido por várias gerações, mas, no final, as turfas se transformaram em pasto
para as ovelhas e gado e terras aráveis para as plantações.
Arrancar as florestas primordiais da Europa foi um ato de grandes implicações culturais,
econômicas e políticas. Os agricultores que abriram as florestas se privaram da rede
protetora que um provérbio escandinavo chamava de "o manto dos pobres". As florestas
forneciam materiais para a construção, madeira, lenha e jogos, plantas medicinais e
alimento, pasto e pastoreio para os animais. O agricultor medieval usava mais ferro do
que jamais usara antes, para os machados, arados e armas - o metal fundido com o
carvão da floresta. As árvores grandes forneciam madeira para catedrais e palácios, para
os navios e estruturas simples como os moinhos. Os moinhos de água eram o novo
maquinário da época e, como os moinhos de vento, eram feitos quase inteiramente de
madeira. Em 1322, a demanda por madeira para pás de moinhos de vento em
Northamptonshire, Inglaterra, era tão grande que surgiram reclamações contra o
desmatamento. No século XII, o uso das florestas foi submetido a regulamentos
intrincados que cobriam tudo, dos direitos de pastoreio à coleta de lenha. Todos os que
tinham interesse na floresta, incluindo a coroa e a nobreza, assim como o cidadão
comum, tinham também direitos, como o direito de caçar, de pastorear os animais e de
usar as clareiras. Por exemplo, muitos camponeses ingleses tinham o direito de adquirir
madeira para construção; e lenha, madeira morta que fora arrancada das árvores de
qualquer modo. As árvores densas e a vegetação rasteira eram meios para a
sobrevivência. Regulamentações cada vez mais complexas cercaram as florestas e o
direito de uso e desmatamento, exigindo um equilíbrio entre os privilégios reais e os
direitos de proprietários contra antigas necessidades econômicas dos camponeses.
As florestas negras eram uma presença complexa na vida medieval, com muitas
utilidades e importância simbólica destacada, lugares onde forças poderosas
espreitavam e onde viviam grandes animais, como o feroz bisão, boi selvagem com
longos dentes. A floresta era também o palco da nobre caçada real, atividade reservada
à aristocracia que significava muito mais do que a aquisição de carne. A caçada era uma
exibição de cerimônia elegante e poder, até mesmo uma encenação da conquista da
natureza através da dominação de animais selvagens. O Metropolitan Museum of Art de
Nova York possui sete tapeçarias do período medieval, "The Hunt of the Unicorn", tecidas
entre 1495 e 1505, que celebram séculos de ritual de caça. Elas mostram uma caça
medieval simbólica: os cães de caça sem coleira; a descoberta do unicórnio em seu
esconderijo; a perseguição; o animal mítico encurralado; e então a morte com a espada
do caçador. O unicórnio é uma criatura imaginária, e as tapeçarias mostram uma
imagem idealizada da caçada, mas transmitem sua natureza cerimonial, elaborada. A
ligação entre a presença real e o domínio da natureza era irresistível, por isso surgiram
conflitos inevitáveis entre a nobreza, que queria preservar as florestas para a caça, e o
resto da sociedade, que valorizava os produtos da terra florestada. No final, prevaleceu a
agricultura. As florestas primordiais encolheram rapidamente durante os séculos de
aquecimento, no fermento da mudança e da experimentação, e em virtude da
intensificação da agricultura provocada por centros urbanos cada vez maiores, den-
sidades populacionais mais elevadas e mais bocas para alimentar.
Depois do colapso do Império Romano do Ocidente no ano 476, tribos germânicas do
leste do Reno, como os borgonheses e os vândalos, ocuparam a maior parte do que
tinha sido a Gália. Os invasores chegaram, cerca de oito mil deles, numa época em que a
população da Europa Ocidental havia sofrido uma queda de aproximadamente 40% em
relação ao pico de 26 milhões no período romano, como resultado da praga e da fome no
século VI. Os recém-chegados simplesmente ocuparam a terra existente, boa parte da
qual havia sido abandonada.
Para as tribos germânicas, a floresta, entidade sagrada que deveria ser respeitada, era
inviolável e protegida. Por isso, o período de grande desmatamento não começou senão
após o século X, quando a migração da Escandinávia e da Europa Central somou-se à
expansão econômica e ao crescimento populacional na Europa Ocidental.
O aumento do desmatamento surgiu durante o Período de Aquecimento Medieval, numa
época em que a queda do nível das chuvas chegou a 10% e as temperaturas subiram de
0,5° a 1°C. Com o crescimento da população local, as pessoas ocuparam terras
abandonadas ou negligenciadas. É provável que a disponibilidade de áreas novas, que
exigiam apenas limpeza, tenha levado a casamentos precoces, ao aumento da
natalidade e talvez a famílias mais numerosas. As guerras constantes geravam exércitos
famintos, somando-se as demandas crescentes de uma igreja agora mais poderosa,
aumentando o problema do fornecimento de alimentos. Confrontadas com a questão da
escassez potencial, as famílias cada vez maiores tinham duas escolhas: poderiam
diminuir o número de anos em que deixavam parte do campo descansando (prática
perigosa a longo prazo, por causa da diminuição catastrófica na produção pelo cansaço
da terra), ou poderiam abrir novos campos. Felizmente, havia muita terra disponível, por
isso as pessoas começaram a ocupar as margens das florestas, processo conhecido
como arroteamento. Isso implicava também abater árvores e eliminar suas raízes, parte
essencial dessa ocupação.
Dia após dia, homens com machados subiam em árvores altas e derrubavam galhos que
eram então empilhados e queimados. Às vezes um jovem perdia o equilíbrio e
despencava, provocando um barulho surdo ao cair no chão duro. Talvez tivesse sorte e
escapasse com alguns ferimentos. Com freqüência, quebravam um braço ou uma perna,
e podiam ficar paralíticos para o resto da vida, ou na melhor das hipóteses podiam
tornar-se mais uma boca para alimentar até estarem em condições de manter-se
novamente. Depois de cortados todos os galhos, os troncos altos ficavam nus na
margem da floresta até serem derrubados por homens fortes que trabalhavam em
uníssono, parando de vez em quando para afiar os machados. No vilarejo, o ferreiro teria
muito trabalho pela frente, martelando as lâminas envergadas e forjando novos
machados para atender a demanda. Lentamente, um novo campo iria surgir na floresta,
tomado por imensas toras de madeira. Depois de derrubadas as árvores e queimados os
galhos para a fertilização da terra com as cinzas, os habitantes do vilarejo transferiam-se
para o local e punham-se a cortar e arrancar laboriosamente os troncos do chão, usando
bois ou cavalos para ajudá-los com cordas fortes e correntes de ferro.
O arroteamento era árduo e exigia trabalho intensivo, normalmente um processo
prolongado. Começava com a queima periódica para limpar o mato e os arbustos mais
pesados da floresta circunvizinha. Finalmente, a floresta se deteriorava, e nesse
momento os arroteadores se instalavam, limpavam as toras de madeira e fundavam
novos vilarejos. Assentamentos completamente novos surgiam em locais remotos da
floresta, especialmente os de casas monásticas que procuravam a reclusão em lugares
ermos.
Os séculos de aquecimento viram surgir milhares de novos assentamentos em toda a
Europa. No Vale Yonne, a sudeste de Paris, os senhores encorajavam os assentamentos
concedendo a autogestão para aqueles que desbravavam novas terras e reduzindo ou
abolindo impostos. Também renunciavam aos pagamentos: os camponeses tinham
permissão de seus senhores para casar fora de sua própria comunidade. Como observou
certa vez o historiador francês Marc Bloch, uma espécie de "intoxicação megalomaníaca"
tomou conta de muitos proprietários com visões grandiosas de novas paisagens, onde
terras improdutivas se tornavam áreas lucrativas que produziriam mais riqueza e
aliviariam a pressão sobre a população para arar a terra. No leste, senhores germânicos,
tanto leigos quanto eclesiásticos, encorajavam os colonizadores a se apoderarem de
terras pantanosas e florestais a leste de Berlim, onde viviam pequenos bandos de
caçadores esquivos. De acordo com uma dessas convocações: "Esses pagãos são os
piores homens, mas sua terra é a melhor, com carne, mel e farinha. Se for cultivada, a
produção da terra será incomparavelmente maior que todas as outras".
Pode-se argumentar que houve uma ligação direta entre o aquecimento medieval, o
crescimento populacional e as inovações agrícolas, mas também houve fatores sociais e
religiosos subjacentes. Nos primeiros tempos, proprietários tentaram manter os
camponeses arrendatários confinados às suas terras porque assim podiam controlá-los e
acumular mais riquezas. Com o aquecimento, os administradores locais e líderes
religiosos em uma era cada vez mais devota faziam esforços constantes para consolidar
seu controle com objetivos políticos e também para acumular riquezas. Foram
assumindo gradualmente o direito de dispor de terras não utilizadas de florestas, como
se fossem governantes, concedendo as terras virgens a grupos de colonos que as
limpavam e aravam, "trazendo-as para o reino dos negócios humanos". As pessoas e seu
trabalho tornaram-se fonte de riqueza para os senhores. Esses colonizadores logo se
tornaram agricultores livres, donos da terra, e podiam ganhar dinheiro com suas
colheitas. Com a emancipação dos plebeus e a ampla adoção da primogenitura, os filhos
mais jovens precisavam ter seu próprio negócio - terra nova. A ocupação das florestas foi
para eles o que as Cruzadas e as guerras de conquista foram para a nobreza.
Os religiosos desempenharam papel importante na ocupação das florestas e na
revolução agrícola. Os beneditinos, em especial, consideravam o trabalho manual tão
importante quanto a leitura ou as orações. O trabalho trazia recompensas espirituais.
São Bernardo escreveu: "Um lugar selvagem, que não foi consagrado pela oração e pelo
ascetismo, e que não é cenário de qualquer vida espiritual, está em estado de pecado
original. Mas ao se tornar fértil e adquirir um objetivo, adquire também grande
significado". As comunidades beneditinas fizeram muito para dissipar o antigo temor das
florestas primordiais entre os camponeses medievais. O historiador Michael Williams
chama as ordens religiosas de "tropas de choque" da ocupação das florestas. Os
números contam a história. Entre 1098 e 1675, os cistercianos fundaram, sozinhos, 742
comunidades, 95% das quais já existentes por volta de 1351. Cada casa se envolvia com
a agricultura intensiva e ocupação da floresta. Gerald de Barri escreveu: "Dê a esses
monges uma turfa nua ou uma floresta selvagem, espere passar alguns anos e
encontrará não só lindas igrejas, como residências humanas ao redor delas".
Qualquer que seja o padrão, o desmatamento na Europa durante os séculos de
aquecimento está entre os episódios mais significativos do gênero na história. As
florestas francesas tiveram sua área reduzida de 74 milhões para 32 milhões de acres
(de 30 milhões para 13 milhões de hectares) entre os anos de 800 e 1300, mas 1/4 do
país ainda era coberto por florestas. No geral, talvez mais de metade das florestas da
Europa foi derrubada entre 1100 e 1350. A ocupação da Bretanha foi mais fragmentada,
com desmatamento menos planejado. Mesmo assim, as estatísticas a respeito do
crescimento da população são impressionantes, superando todos os padrões. Em apenas
uma pequena paróquia inglesa, Hanbury, no nordeste de Worcestershire, a população
saltou de 266 pessoas em 1086 para 725, em 1299.

Junto com o desmatamento e a inovação agrícola houve um crescimento dramático da


pesca marítima, estimulada por condições climáticas mais favoráveis na costa, pela
doutrina cristã e pela demanda crescente por rações militares. Carlos Magno e seus
sucessores haviam criado rotas de comércio marítimas que ligavam as costas do Mar do
Norte e do Báltico, em parte porque o Mediterrâneo era um mar islâmico. A maior parte
da navegação ocorria nos meses de verão, porém, mesmo então, as águas rasas e as
marés represadas da Inglaterra Oriental e dos Países Baixos eram responsáveis por
embarcações mercantes muito lentas. O Período de Aquecimento Medieval trouxe
temperaturas ligeiramente mais elevadas e verões mais longos para as águas do norte
da Europa. A julgar pelas condições da época moderna, os meses de aquecimento teriam
testemunhado períodos de altas temperaturas e condições anticiclônicas prolongadas
quando os ventos estavam calmos e as águas do mar pareciam espelhos. Comparadas
com a Pequena Idade do Gelo dos últimos séculos, as condições foram em geral menos
propensas a tempestades durante o verão, embora os vendavais de inverno ainda
pudessem afluir para terra firme, provocando a inundação das terras baixas,
especialmente nos Países Baixos. Os séculos de aquecimento viram uma rápida
expansão do comércio marítimo, que foi em parte reflexo das melhores condições em
terra firme. Ao mesmo tempo, a pesca marítima adquiriu importância crescente,
especialmente o comércio de arenque salgado.
O Clupea harengus, o arenque do Atlântico, está entre os peixes mais prolíficos, tomando
conta do Atlântico Norte a cada primavera, indo posteriormente em direção ao sul, para
o Báltico, e para as costas do Mar do Norte ao longo da Escócia e da Inglaterra no verão
e início do outono. Ninguém sabe se os arenques são sensíveis às temperaturas da
superfície do mar, mas é bem provável que sejam, pois houve flutuações notáveis nos
cardumes de arenques ao longo dos séculos, que não se devem apenas à pesca
predatória. Qualquer que seja sua sensibilidade às condições do mar, os arenques foram
promiscuamente abundantes durante o Período de Aquecimento Medieval, enquanto
poucas pessoas haviam comido ou pescado esses peixes em épocas anteriores. Para
pescá-los, eram necessários barcos abertos e redes de arrasto, além de ventos calmos
nas águas rasas do Mar do Norte. Uma combinação de condições favoráveis,
especialmente no início do outono, e uma demanda inexorável por peixes do mar
transformaram o arenque em uma indústria internacional importante durante os séculos
de aquecimento.
O arenque é um peixe gordo. Quando pescado, se decompõe rapidamente a menos que
seja salgado. A salmoura é uma técnica muito antiga, mas as rudimentares, como a
colocação dos peixes em pilhas de sal, eram ineficazes com o Clupea. Em algum
momento durante os séculos IX ou X, quando houve um leve aquecimento da
temperatura do mar, os pescadores do Báltico desenvolveram um método para salgar o
arenque em barris lacrados, o que permitia transportá-los aos milhões. O novo método
logo se espalhou pelos portos do Mar do Norte. Pela primeira vez, era possível
transportar peixe salgado por longas distâncias em terra. Uma grande indústria surgiu
quase que da noite para o dia.
Desde os primeiros dias do cristianismo, o devoto jejuava e fazia refeições sem carne
nos dias santos e durante a Quaresma. A maioria das pessoas seguia uma dieta sem
carne, com leite e cereais, por isso a proibição afetava mais os nobres e os ricos, assim
como as casas religiosas. O número de dias sem carne crescia sem parar. Em 1200,
praticamente metade dos dias do ano eram classificados como dias santos. Os peixes,
ricos em proteína, eram considerados alimento aceitável nesses dias, mas não havia
peixe de água doce suficiente, apesar da explosão da piscicultura sob os auspícios dos
monastérios e propriedades senhoriais. Aqui, mais uma vez, o aquecimento ajudou. Os
verões mais quentes do Período de Aquecimento Medieval proporcionaram as
circunstâncias ideais para a piscicultura de peixes de águas rasas como a carpa. A
Cyprinus carpio viceja nas águas turvas do Danúbio e em outros rios do sudeste
europeu. Entre o ano 1000 e 1300, a carpa se expandiu rapidamente pela Europa
Continental, quando o aquecimento e os verões mais longos elevaram as temperaturas
da água dos lagos e rios. A Cyprinus era relativamente fácil de criar, a ponto de a
piscicultura da carpa ter se transformado em grande indústria na Europa medieval. Mas
o peixe era caro. Em 1356, uma centena de carpas servidas em um casamento em
Namur custou o dobro do preço de uma vaca. As casas religiosas e os nobres ricos eram
assíduos freqüentadores do mercado e monopolizavam o peixe cultivado, tornando-o
inacessível para as pessoas comuns.
Felizmente para os devotos e para aqueles preocupados em alimentar os pobres das
cidades, surgiu um substituto barato - o arenque. Houve uma revolução nos hábitos
alimentares em relação ao consumo de peixes do mar durante os séculos de
aquecimento. Entre os séculos VII e X, o peixe marítimo aparece apenas nos montes de
esterco (depósitos de lixo) dos portos e cidades de estuário. Fragmentos de ossos
encontrados nesses montes de resíduos são um verdadeiro tesouro, com informações
acerca da dieta na Antiguidade, fornecendo dados tão esotéricos quanto o peso do
bacalhau medieval e a idade dos bois que os açougueiros costumavam matar. Em 1030,
o arenque era abundante na cidade costeira de Hamwic (atual Southampton) e
comercializado em terra. Estima-se que perto do fim do século XI, cerca de 3.298.000
arenques tenham sido desembarcados somente em portos ingleses, fora o desembarque
no continente. No século XII, o arenque havia se tornado algo comum em lugares tão
distantes do mar quanto Viena. O peixe se tornou tão importante para os cristãos que
em 1170 o Papa Alexandre II permitiu a pescaria aos domingos na temporada do aren-
que. Todo outono, durantes seis semanas, uma grande feira do arenque em Yarmouth, no
leste da Inglaterra, fornecia milhões de peixes em barris para povos de ambos os lados
do Mar do Norte. As vendas eram enormes. Os reis alimentavam seus exércitos com o
arenque salgado. As cidades pagavam impostos com dezenas de milhares de Clupeas.
Em 1390, o esmoler do rei da França comprou 78 mil arenques no mercado de Paris para
distribuir entre os hospitais e asilos.
O arenque salgado era barato e onipresente, mas não era um alimento atraente,
desdenhado quando possível até pelos pobres, pois tinha o gosto de madeira a menos
que fosse preparado com temperos elaborados. Mas a demanda era insaciável. A época
de glória da pesca do arenque ocorreu no início do século XlV, nas últimas décadas do
período de aquecimento. Talvez não seja coincidência o fato de as escolas de arenque e
os descarregamentos de peixe em lugares como Yarmouth terem sofrido grande declínio
com o esfriamento e a queda das temperaturas na superfície da água do Mar do Norte
ocorridos a partir de 1300. A combinação da pesca excessiva em resposta à demanda
inesgotável com a melhoria dos métodos para salgar o peixe, e, talvez, a mudança no
clima fizeram com que a indústria medieval do arenque tenha passado de sustentável
para insustentável.
Os nórdicos introduziram uma alternativa muito mais palatável em seus navios de guerra
e embarcações mercantis: bacalhau seco e salgado, conhecido entre eles como
stockfish. Gadus morhua, o bacalhau do Atlântico, é um peixe branco de carne firme com
baixo teor de gordura. Nos meses de inverno, os pescadores das Ilhas Lofoten, no norte
da Noruega, pescavam e secavam o bacalhau, que os nórdicos usavam como gênero de
primeira necessidade em suas viagens. Pilhas firmemente embaladas de bacalhau
alimentavam as tripulações durante as grandes viagens no Período de Aquecimento
Medieval. Nesses mesmos séculos, a Liga Hanseática do Báltico, que já dominava boa
parte do comércio de cereais no norte da Europa, e a produção de suas abundantes co-
lheitas, descobriu que podia ter lucros enormes trocando os cereais dos climas mais
temperados pelo bacalhau carregado em Bergen, no sul da Noruega. A Hansa já
dominava o comércio do arenque. Agora acrescentava o bacalhau ao seu estoque, por
isso os pescadores ingleses começaram a se afastar da costa, indo em busca do
bacalhau até o sul da Islândia, onde poderiam levar vantagem sobre a Hansa. Ao mesmo
tempo, eles encontraram um substituto para o arenque numa época de temperaturas
mais frias. Seus barcos de pesca, sua tecnologia e sua experiência provinham de séculos
de pescaria nas águas do Mar do Norte durante os verões benevolentes e outonos
amenos dos séculos de aquecimento. Esse aprendizado foi bom para eles quando as
esquadras de bacalhau foram para a Irlanda e Islândia, e depois para o Novo Mundo, nos
séculos posteriores.

Na Europa, os séculos de aquecimento tiveram seu efeito mais profundo no homem


comum, nas pessoas anônimas que alimentavam a sociedade. Reis, príncipes e senhores
tinham propriedades e terras, envolviam-se em intrigas, guerras e às vezes em
cruzadas. Tinham uma vida de cerimonial elaborado, cavalheirismo, crueldade e
violência. Suas habilidades tinham pouca relevância para o conhecimento necessário
para trabalhar a terra, para lidar com os caprichos das mudanças climáticas repentinas.
A maioria dos homens comuns trabalhava na terra; grande porcentagem era de
trabalhadores livres, muitos com habilidades específicas. Boa parte deles cuidava das
plantações de cereais; essas pessoas conheciam a rotação de culturas, as doenças que
podiam atacar as plantas e como era feito o armazenamento. Havia pastores de ovelhas,
de vacas, de porcos; outros eram peritos em drenagem. Catadores de enguias
prosperavam nos rios, lagos e em pântanos distantes, pois a enguia defumada tinha se
tornado moeda-padrão para o aluguel. As mulheres criavam abelhas, produziam cerveja
e fiavam a lã. Cada geração aprendeu na prática com sua predecessora, ou na forma do
boca-a-boca, passando grande número de informações, muitas vezes secretas,
descobertas com o trabalho na terra em qualquer época, onde as alternâncias do clima,
de quente para frio, de úmido para seco, podiam ocorrer praticamente do dia para a
noite.
Para os senhores e príncipes, o campesinato era uma presença anônima que cultivava o
solo e proporcionava alimentos. Mas foram essas pessoas simples que mantiveram a
Europa alimentada e que ajustaram as lavouras ao aquecimento. Seus excedentes
alimentaram os exércitos e os trabalhadores que construíram não apenas palácios, mas
também a mais impressionante de todas as estruturas medievais: as catedrais góticas.
Seu trabalho derrubou árvores para fazer vigas, extraiu as pedras para as torres e naves
sublimes. As enormes igrejas, que podiam ser avistadas a grandes distâncias, uniam o
mundo vivo ao mundo divino, pois, naqueles dias de devoção, todas as coisas ema-
navam do reino de Deus. Grandes catedrais, como Sens e Chartres, construídas com
grandes somas, foram sacrifícios metafóricos de pedra e bens materiais oferecidos na
expectativa de favores divinos. O favor mais esperado era uma boa colheita, pois,
mesmo nessas épocas mais quentes, o lavrador não podia relaxar.

Quatro séculos de rápido crescimento populacional e oferta de alimentos geralmente


abundante, de ocupação desenfreada das florestas e crescimento acelerado de vilas e
cidades: a Europa era um continente muito diferente no final dos séculos de
aquecimento. Porém, no final do século XIII, a Europa enfrentava sérios problemas
econômicos, pois o crescimento populacional tinha ultrapassado os vários saltos de
crescimento da produção agrícola. Em 1300, boa parte da população vivia em condições
piores do que no século anterior porque a inflação corroía a riqueza e as classes
superiores exigiam cada vez mais dos comuns. Os lavradores responderam a isso
ocupando terras marginais e tomando outros atalhos, como a diminuição do período de
repouso do solo, o que, em época de verões relativamente previsíveis, podia parecer
uma maneira lógica de melhorar o resultado das colheitas. Fatalmente, aumentaram as
dívidas dos lavradores com os proprietários de terras, ao mesmo tempo em que a
incerteza econômica também se abateu sobre quem vivia nas cidades, onde os
caprichos do comércio de lã e outras indústrias podiam causar devastação, e os
bloqueios militares faziam parte da vida.
Todos esses problemas tinham potencial para transformar boa parte da Europa Ocidental
em um barril de pólvora, mas eventos climáticos interferiram dramaticamente em 1315.
"Durante essa estação [primavera de 1315] choveu maravilhosamente e durante muito
tempo", escreveu um cronista da época, Jean Desnouelles. A chuva começou sete
semanas depois da Páscoa, justamente quando as novas safras estavam no chão. Em
pouco tempo, campos que tinham acabado de ser lavrados se transformaram em
charcos, com as sementes sendo arrancadas da terra. O solo lamacento escorreu pelas
recém-abertas encostas de terras marginais, criando sulcos profundos em novos
campos. Culturas de milho e aveia, pesadas com a umidade, mal conseguiram
amadurecer. O dilúvio continuou no outono. Houve fome no Natal pelo "aumento
exorbitante da farinha". Até as campanhas militares, que normalmente prosseguiam
qualquer que fosse o tempo, interromperam seus movimentos. Quando as batalhas
foram retomadas, impediram a distribuição de cereais para comunidades famintas. As
chuvas continuaram em 1316, levando muita gente à penúria, pois as plantações
simplesmente não amadureceram. "Houve grande falta de vinho em todo o reino da
França" porque o míldio atacou as videiras. O sofrimento continuou por sete anos,
terminando em 1322, com um inverno rigoroso que imobilizou os navios em uma vasta
área.
Ao longo desses anos, a produção de cereais em boa parte do norte da Europa deve ter
caído cerca de um terço, embora, é claro, os efeitos fossem diferentes de um lugar para
outro. Os rebanhos foram reduzidos em até 90% por causa de doenças, como a peste
bovina e a fasciolíase, trazidas pelo tempo úmido. As frutas apodreciam nas árvores
saturadas; as costas e os lagos de peixes foram devastados, tudo isso fora o estrago
causado às culturas industriais, como o linho. Pelo menos 30 milhões de pessoas corriam
o risco de desnutrição. Ninguém sabe exatamente quantos europeus morreram de fome
e doenças relacionadas, mas houve pelo menos 1,5 milhões de mortos, pobres em sua
maioria.
Inevitavelmente, em uma época religiosa e supersticiosa, a fome foi atribuída à ira de
Deus. Procissões de penitentes fanáticos vagavam pelas ruas de vilas e cidades.
Quando terminaram os anos de fome, o clima mais estável dos séculos de aquecimento
era uma lembrança distante. Condições muito mais imprevisíveis, tempestades muito
mais fortes e ciclos de invernos muito frios ou verões quentes marcaram o início gradual
da Pequena Idade do Gelo. Mas o pior ainda estava por vir, em pouco mais de uma
geração. Em 1347, um navio do Mar Negro parece ter trazido a praga para a Itália. A
bactéria da praga, Yersinia pestis, vive nas pulgas, que habitam hospedeiros de sangue
quente, como ratos, gatos ou seres humanos. A Peste Negra, que deve esse nome às
descolorações escuras da pele resultantes da infecção do sangue, espalhou-se
rapidamente pelas rotas de comércio até a França. Em 1348, chegou à Inglaterra e
Espanha, depois à Escandinávia. Entre 1348 e 1485, houve 31 grandes surtos somente
na Inglaterra. Em 1346, oitenta milhões de pessoas viviam na Europa. Vinte e cinco
milhões morreram devido à pandemia entre 1347-51. Tendo atingido o nível mais baixo
em 1450, só em 1600 a população da Inglaterra conseguiu recuperar os níveis anteriores
à praga, e a da Noruega, apenas em 1750.
Não havia defesa contra a Peste Negra, que se espalhou como fogo entre as populações
urbanas. Nenhum remédio fitoterápico funcionava; sanguessugas e sangrias não
proporcionavam qualquer alívio. Como ninguém sabia como se espalhava a doença,
ninguém tomou providências para eliminar os ratos e outros animais que carregavam as
pulgas infectadas. Quando ficou claro que o risco de infecção era menor longe das
cidades populosas, a nobreza e a classe média mudaram-se para o campo. Algumas
comunidades religiosas, nas quais os monges viviam em lugares fechados, perderam
cerca de 60% de seus membros. A Igreja mergulhou na crise; a produção agrícola caiu
vertiginosamente; os proprietários tinham dificuldade para encontrar camponeses para
trabalhar em suas terras. Os soldos na agricultura subiram rapidamente, mas a situação
dos agricultores de subsistência talvez fosse ainda melhor, pois havia mais terras
disponíveis e menos bocas para alimentar, tanto no campo quanto nas cidades. As terras
marginais agora podiam descansar. Mas novas ondas de infecção na década de 1360
logo varreram todos os ganhos, para não falar do impacto emocional causado pela perda
de um terço (a porcentagem é controvertida) da população da Europa em poucos anos.
Somente as guerras constantes continuaram, mantidas pelos governantes na convicção
de que Deus havia trazido a fome e a praga para castigar as pessoas por seus pecados.
Aqueles que combatiam uns aos outros ou praticavam a opressão econômica
acreditavam que estavam cumprindo as ordens de Deus com atos virtuosos que
restaurariam a justiça no mundo. A violência rural e urbana atingiu níveis sem
precedentes em uma Europa que, depois da Peste Negra e dos séculos de aquecimento,
nunca mais seria a mesma.
Mas o Período de Aquecimento Medieval tinha ajudado a mudar a Europa de maneira a
deixá-la irreconhecível e havia ampliado os limites mentais e físicos da sociedade
européia. Durante esses séculos, os navegadores nórdicos aproveitaram as condições
favoráveis do gelo no Atlântico Norte para chegarem até a Islândia, Groenlândia e
Labrador - terras que antes estavam fora da consciência européia. Essas viagens serão
descritas no Capítulo 6.

CAPÍTULO 3
O Mangual de Deus

Agora que chegara ao acampamento do Kahn, no fim do terceiro mês, a grama era verde
e as árvores floresciam por toda a parte, e as ovelhas e os cavalos estavam bem
crescidos. Mas quando ele partiu, no fim do quarto mês, já não havia uma lâmina de
grama ou qualquer vegetação.

- CH’ANG CH'N, The Travels of an Alchemist (1228)


"A credita-se que a Europa represente um terço de todo o mundo", informa um
enciclopedista do século XIV. "A Europa começa no Rio Tanais [Don] e se estende pelo
Mar do Norte até o fim da Espanha. As partes leste e sul sobem do mar chamado Pontus
Euxinus [o Mar Negro] e todos se juntam ao Grande Mar [o Mediterrâneo], terminando
nas ilhas de Cadiz [Gibraltar]. Para os europeus medievais, as terras longínquas da
planície européia em direção ao oriente eram um reino virtualmente desconhecido, em
que um terreno que ondulava suavemente desaparecia na distância e a Europa acabava
se tornando a Ásia. A população era esparsa e, em sua maior parte, mudava-se
constantemente, com seus movimentos sendo ditados em grande medida pelos ciclos da
seca.
Ambientes desérticos e semi-áridos são extremamente sensíveis até a variações
mínimas de chuvas. Poucos milímetros a mais de chuva podem diminuir as fronteiras de
um deserto em centenas de metros quadrados. Água parada pode surgir onde nada
existiu durante várias gerações. Agora imagine se o volume de chuva continua
crescendo um pouquinho durante alguns anos. Os pastos surgem como que por mágica;
bandos de antílopes se alimentam do que era até recentemente terra árida. Os nômades
pastoreiam suas ovelhas e gado perto de poços de água e por onde quer que encontrem
pasto. Então falta água. Os leitos dos córregos secam; os poços de água desaparecem; a
grama resseca e morre. Com a experiência de gerações, os pastores levam seus animais
para as margens dos desertos, para terras abastecidas por água. Terras áridas como as
estepes e desertos funcionam como grandes bombas. Quando a chuva aumenta, mesmo
que ligeiramente, o deserto atrai os animais, plantas e pessoas com suas promessas de
água e terra para pastorear. Como um pulmão gigante, a bomba pode prender a
respiração por algum tempo, mas é inevitável que volte a expirar com o retorno das
secas, expulsando os nômades, seus rebanhos e antílopes para as suas margens.
A Europa foi bem abastecida de água durante o Período de Aquecimento Medieval, com
temperaturas ligeiramente mais elevadas e um pouco de seca, mas certamente
favoráveis para a agricultura de subsistência. Os europeus viviam em uma península
geográfica cercada por ambientes muito mais áridos, onde a bomba do deserto
determinava o ritmo da existência humana. A seca era a dura realidade de um mundo
mais quente nesses ambientes, com potencial para mudar a história.
Os gregos e romanos viam as tribos nômades da Eurásia como bárbaros que ficavam à
espreita junto aos portões, ameaçando-os com a destruição, saques e pilhagem. Não se
pode culpá-los inteiramente: os nômades citas ao norte do Mar Negro eram conhecidos
pelo fato de usarem as caveiras de suas vítimas para beber. Da mesma forma, a Europa
medieval imaginava-se cercada por um mundo hostil - pressionada pelo islamismo no
leste, cercada no oeste por um oceano que se estendia em direção a um horizonte
tempestuoso, e ameaçada pelas tribos nômades das planícies sem fim da Eurásia. A
ameaça dos nômades era real. No dia 9 de abril de 1241, um exército de mongóis
comandados por um general chamado Subutai derrotou os príncipes poloneses
comandados por Henrique II, "o Devoto", em Legnica, na Silésia, que agora faz parte da
Polônia. Os cavaleiros de armaduras pesadas de Henrique II não foram páreo para os
ágeis mongóis com suas flechas. Diz-se que os conquistadores juntaram nove sacos
cheios de orelhas direitas dos corpos de suas vítimas brutalmente assassinadas.
Somente a morte do Grande Khan Ogötai Khan em sua pátria no final daquele mesmo
ano impediu que o líder mongol Batu Khan continuasse sua investida para o Ocidente
até chegar à costa atlântica.
As estepes da Eurásia são um ambiente hostil, sujeitas à seca e a chuvas torrenciais,
castigadas por imenso calor e frio implacável. Foram elas o lar de um dos grandes
conquistadores da história: Ginghis (Gêngis) Khan, cujo império se expandiu
rapidamente durante o Período de Aquecimento Medieval.

Gêngis Khan se autoproclamava "o mangual de Deus". Guerreiro brutal, ele se atirou
sobre a China e a Ásia Central com sede de sangue, com a força de uma marreta. Em
1220, dirigiu-se aos cidadãos aterrorizados de Bukhara, do púlpito da mesquita central
da cidade: "Ó, povo, saibam que cometeram grandes pecados, e que os grandes entre
vocês cometeram esses pecados. Se me perguntarem que provas tenho dessas palavras,
digo que é porque sou eu a punição de Deus". Ele falou com astuto conhecimento dos
conquistados.
Como as secas e as pragas, Gêngis Khan parecia um instrumento de vingança divina.
Tanto cristãos quanto muçulmanos ficaram apavorados com sua aproximação. Os
compiladores anônimos das Crônicas de Novgorod, importante ponto das rotas de
comércio que ligavam Bizâncio ao Báltico, chamaram os mongóis de "ímpios e pagãos".
Eram implacáveis na vitória. "Deus enviou os pagãos para cima de nós por causa de
nossos pecados", lamentaram os cronistas em 1238. "O demônio se regozija com os
assassinatos brutais e o derramamento de sangue." Deus estava punindo a cidade com
"morte por causa da fome; ou através do castigo dos pagãos; ou com a seca; ou com a
chuva pesada; ou com outras punições... Mas nós sempre nos voltamos para o mal,
como suínos, sempre chafurdando na sujeira dos nossos pecados."
Gêngis Khan desempenhou o papel de conquistador com habilidade consumada. Ele era
"um homem de grande estatura, constituição física vigorosa, corpo robusto, pelos
escassos e esbranquiçados no rosto, com olhos de gato, possuidor de grande energia,
discernimento, gênio e entendimento, que despertava terror; um açougueiro, justo,
resoluto, destruidor de inimigos, intrépido, sanguinário e cruel". Embora preferisse que
seus inimigos se rendessem e se submetessem, recorria à carnificina se o desafiavam.
Quando a rica cidade chinesa de Chung-Tu, atual Pequim, se recusou à submissão,
Gêngis Khan atacou-a violentamente, colocando os prisioneiros como tropas de ataque
na linha de frente e depois arremessando as cabeças das vítimas para as linhas inimigas.
Alguns anos depois, um visitante muçulmano reparou em uma colina branca perto da
cidade reconstruída: ela era formada pelos ossos dos milhares de massacrados na queda
de Chung-Tu, e foi queimada. O maior de todos os conquistadores mongóis derramou rios
de sangue por onde quer que seus exércitos acampassem.
Gêngis Khan era de origem humilde, tendo alcançado proeminência graças à pura
habilidade e à crueldade. No início ele era um dos muitos líderes de uma colcha de
retalhos formada por tribos nômades, compreendendo cerca de dois milhões de pessoas
espalhadas pelas vastas estepes da Eurásia. A guerra era um meio de vida para os
nômades, que lutavam a cavalo. Eles eram lutadores experientes e combatentes
implacáveis, também encarniçadamente independentes, liderados por chefes tribais que
faziam alianças com o único objetivo de acumular riquezas com animais domésticos. Em
1206, Gêngis Khan foi eleito o Grande Khan dos mongóis. Ele era estrategista e
conquistador brilhante, era igualmente um talentoso administrador. Rompeu
rapidamente a antiga estrutura tribal, organizou seu exército em unidades-padrão
rigidamente estruturadas em múltiplos de dez, começando com o harban (dez homens)
e terminando com o tümen (dez mil soldados). As tropas lutavam como unidades; não
era preciso dar ordens a mais do que dez pessoas de cada vez. Os exércitos mongóis
eram famosos pela habilidade para disparar suas flechas em todas as direções a pleno
galope. Cada cavaleiro usava uma camisa de seda sob uma armadura ou roupa de couro,
que o protegia efetivamente das flechas. Usavam capacetes de metal ou couro e
carregavam dois arcos complicados, feitos de pedaços de madeira e chifre de iaque, e
pelo menos 60 flechas. Alguns carregavam lanças pesadas, clavas e cimitarras; outros,
espadas e dardos. Cada guerreiro carregava suas próprias provisões, utensílios para
cozinhar e outros equipamentos em um alforje inflável feito com o estômago de uma
vaca. Os exércitos mongóis conquistavam com mobilidade, estratagemas e táticas de
engodo, além de usarem fogos de artifício feitos com pólvora para aterrorizar o exército
que os esperava. Eles sabiam que deixavam os inimigos aterrorizados e tiravam proveito
disso.
No início, o reino de Gêngis Khan era pouco mais do que uma colcha de retalhos
composta por tribos e mantida pela força da sua personalidade, suas habilidades
militares e a perspectiva de um saque além da imaginação, adquirido com as conquistas
e ataques a terras ocupadas. Porém, em pouco mais de vinte anos, os exércitos de
Gêngis Khan varreram as estepes e o sul com rapidez de tirar o fôlego e eficiência
implacável. Os mongóis massacraram tantos seres humanos que o historiador persa
Juvaini afirmou que as faltas jamais se tornariam coisas boas no Dia do Juízo Final.
Cidades famosas foram reduzidas a escombros; o sistema de irrigação do Iraque,
desenvolvido durante muitos séculos, foi totalmente destruído. Milhares de habitantes de
Bagdá foram massacrados sem misericórdia, em 1258. Os reflexos dessas conquistas se
espalharam para longe. A cristandade ficou enfraquecida. O islamismo foi fortalecido,
mas a fé que emergiu a partir do calvário das conquistas era mais estreita, mais limitada
e fechada para novas idéias. As grandes tradições do conhecimento islâmico na
medicina, matemática, história, geografia e astronomia que haviam florescido do ano
800 até 1200 agora murchavam diante da ortodoxia religiosa. Gradualmente, a primazia
intelectual e científica passou do mundo islâmico para a Europa Ocidental. Enquanto
isso, as condições de paz na Ásia Central encorajaram alguns poucos viajantes europeus
a se aventurarem pelo intrincado traçado da antiga Rota da Seda até a China, entre eles
o veneziano Marco Polo (1254-1324), que foi contratado pelo imperador mongol Kublai
Khan. Em 1260, um frade franciscano era o arcebispo de Pequim.
Gêngis Khan não se destacou apenas nas conquistas, mas também em sua compreensão
de que um império - diferentemente de um reino - precisava ter como base um governo
estável, uma administração eficiente, comércio próspero entre as estepes e as terras
colonizadas, além de lei e ordem. Ele transformou os domínios mongóis em um imenso
império ligado por uma eficiente rede de comunicação e mantido em ordem por
ameaças militares veladas e a reputação selvagem de suas tropas. Foi Gêngis Khan
quem disse aos exércitos para conquistarem primeiro; depois, saquearem, e não as duas
ações ao mesmo tempo. Rebeldes e chefes condenados por traição recebiam punição
brutal. Às vezes, eram enrolados em tapetes e arrastados por cavalos. Ou, como
aconteceu com um chefe curdo, eram amarrados, cobertos com gordura de ovelha e
abandonados para morrer de inanição e consumidos por vermes.
O Grande Khan considerava a si mesmo um instrumento da punição divina, mas, na
realidade, suas conquistas vertiginosas deveram-se muito não só à sua liderança e
carisma, mas também à realidade do clima medieval nas estepes e a um estilo de vida
que dependia da mobilidade e anatomia única do cavalo. Os ritmos da vida nômade
acompanhavam as oscilações da bomba do deserto, que trazia seca, ondas de calor, frio
intenso e inundações. Esses ritmos se revelaram profundamente na história, muito antes
de os quatro séculos de aquecimento medieval terem descido sobre as estepes. Porém,
onde Gêngis Khan revelou sua genialidade foi na tentativa de levar seus domínios muito
além da tirania dos cavalos e da bomba do deserto. Nisso, tanto ele quanto seus
sucessores, pelo menos em parte, foram bem-sucedidos. O palco nômade cobria uma
área enorme de terreno variado, que ia do Danúbio, a oeste, até um cinturão cada vez
mais aberto que se tornava parte das estepes da Ásia Central, a leste do Rio Volga. O
país dos cavalos estendia-se até a Grande Muralha da China, mais de 7 mil quilômetros
para leste. Escritores populares normalmente pintam as estepes como um imenso
gramado que se estende por milhares de quilômetros sem qualquer alteração. Na
verdade, o termo "estepe" encerra uma impressionante variedade de ambientes - estepe
florestal, com árvores e irrigação relativamente melhor; pastos abertos; vales de rios;
áreas pantanosas e montanhosas. Os pântanos, florestas e tundra aberta marcavam os
limites setentrionais inóspitos da estepe. Para o sul, pastos e desertos iam das
montanhas Nan Shan e Tian Shan às "Montanhas do Paraíso", no leste, ao longo do Rio
Oxus (Amu Darya) e do platô iraquiano, depois pulavam contra os bastiões naturais do
Mar Negro, os Cárpatos e o Danúbio. Mas o coração da estepe sempre foram os pastos
ao longo da fronteira setentrional da cordilheira Tian Shan e da fronteira sul da
cordilheira de Altai. Desde a época dos citas, mais de mil e quinhentos anos atrás,
cavaleiros nômades galoparam pelos desfiladeiros baixos entre essas cadeias de
montanhas, da Ásia para a Europa.
As distâncias são enormes para qualquer padrão, abrindo-se para paisagens onde as
pessoas e seus animais parecem pontos diminutos em relação à terra e ao céu. O frei
medieval William de Rubreck, que se apresentou à corte mongol como enviado do papa
em 1253-55 e visitou um dos sucessores de Gêngis Khan, Möngke, disse que as estepes
eram "como o oceano", vastas, praticamente desabitadas e perigosas. Viajar através
desse país é estar perdido na imensidão da paisagem, ser reduzido à insignificância pela
pura escala do terreno. As estepes diminuem o indivíduo. Eu me lembro de uma vez ter
cruzado o vale do Rio Kafue, na África Central, uma várzea totalmente plana, inundada
sazonalmente. Vimos o que pareciam ser algumas árvores a distância; então elas
começaram a se mexer. Era uma manada composta por milhares de antílopes. Os
cavaleiros de Gêngis Khan deviam parecer árvores em movimento na imensidão das
estepes, que traziam perigo, ameaça e carnificina. Dizem que o Grande Khan falou para
William de Rubreck: “Assim como o sol estende seus raios, também meu poder... se
estende por toda parte".
Localidades mencionadas no texto. Algumas regiões menores foram omitidas.

O clima continental da Eurásia é sempre duro, com temperaturas médias caindo do


oeste para o leste. A topografia plana, baixos índices de chuva e ventos secos freqüentes
inibem o crescimento de árvores. Os invernos duram oito meses, são secos,
normalmente com frio intenso e muito vento. As ventanias intermináveis redistribuem a
cobertura de neve, tal como ela é. Os verões são tórridos; as ondas de calor e seca são
comuns. Seguindo em direção a leste, passando os Montes Urais, as temperaturas caem
ainda mais, a neve do inverno fica mais tempo no chão e o clima é consideravelmente
mais seco. Por toda a estepe, as plantas enraízam-se profundamente no chão em
resposta à aridez, enquanto que a maioria dos animais menores vive sob o solo. Nos
tempos antigos, cavalos selvagens e asnos, assim como antílopes saiga, atravessavam
as estepes em manadas de até mil cabeças. Eles não causavam qualquer dano à
vegetação, que vicejava com pastoreio moderado. Mas o pastoreio excessivo,
principalmente quando o solo está molhado na primavera e perde rapidamente a
umidade, destrói o pasto.
As estepes eram uma pátria exigente, até mesmo para os pastores mais experientes.
Gêngis Khan podia varrer exércitos e derrubar reis, mas não podia controlar a realidade
do ambiente da estepe ou as limitações dos cavalos que compunham seus exércitos.

Ano 1100. O vento norte extremamente frio açoita o rosto dos cavaleiros, encolhidos em
seus selins, inclinados na escuridão. Seus cavalos compactos trotam firmemente,
indiferentes ao frio, seguindo um caminho praticamente impossível de distinguir através
do vale estreito. Mais adiante estão os limites intermináveis de pastos áridos, onde um
homem pode se perder em questão de horas sem que encontre qualquer referência para
orientá-la. Mal começou o ano e já estão se mudando, sabendo que a sobrevivência
depende de sua jornada de reconhecimento. Eles seguiram para o Norte deixando o
refúgio do acampamento de inverno, viajando pelo vale onde eles e seus ancestrais
pastoreiam seus animais há mais tempo do que são capazes de lembrar. Enquanto
cavalgam, conservam o olhar atento, perscrutando o horizonte à procura de outros
cavaleiros, talvez hostis, buscando lugares de bom pasto e sinais de que a chuva caiu
enquanto a neve derretia. Em poucos dias, cavalgarão em direção ao Sul, com o vento
às suas costas, armados com a inteligência intuitiva a respeito dos elementos da vida
nas estepes - grama para o pastoreio e água. De volta ao acampamento de inverno, o
Khan e seus conselheiros ouvirão suas recomendações para programar a movimentação
do grupo em direção ao Norte, para as pastagens de verão.
Para os mongóis, o cavalo era tudo - comida, leite, queijo, iogurte e até mesmo fonte de
álcool na forma do leite fermentado das éguas, o cúmis. Os cavalos eram riqueza,
prestígio, potente arma militar e, acima de tudo, fonte de liberdade, e mobilidade. Na
época do Grande Khan, o corcel compacto e vigoroso dos mongóis era parte integrante
da vida nas estepes havia pelo menos 4.500 anos.
Os cavalos foram domesticados em torno de 3.500 a.C., muito depois dos bois, cabras e
ovelhas, às margens das estepes e provavelmente em vários locais: na região do Mar
Negro; provavelmente, também nas Montanhas Altai, que ainda são pouco conhecidas
arqueologicamente. Os cavalos se adaptavam muito melhor do que outros animais ao
frio intenso e à neve, e isso desde a idade do gelo, quando passaram a ser uma das
presas favoritas de um pequeno número de caçadores das planícies. Entre 3.300 e 3.100
a.C., um ciclo climático mais frio, mais seco (que coincidiu com uma seca rigorosa na
Mesopotâmia) levou à domesticação mais ampla de cavalos, que logo se tornaram
fundamentais para a vida humana na estepe e mudaram a história.
A equitação representou uma mudança revolucionária, apesar de lógica, no transporte
humano. Diminuía o tempo de viagem através da estepe, permitindo que as pessoas
explorassem recursos alimentares muito dispersos, aumentando os limites territoriais em
cinco vezes e zombando das limitações anteriores. Nas estepes, os recursos alimentícios
podiam ser ricos em algumas áreas, como nos vales de rios maiores, mas grandes
extensões de território pobre, às vezes hostil, separavam áreas de abundância. Quem
quer que conseguisse cobrir essas distâncias com relativa rapidez poderia sobreviver na
estepe, e o resultado foi a mudança de toda a forma da sociedade. Agora era possível
transportar grandes quantidades de comida e outros produtos com facilidade,
especialmente quando se combinavam os cavalos com os carros de bois. A riqueza seria
medida ao menos em parte pelos cavalos; a interdependência com os vizinhos e
fazendeiros estabelecidos aumentaria porque os cavalos eram uma mercadoria
desejável, que facilitara o comércio de longas distâncias. Acima de tudo, os cavaleiros
montados poderiam cruzar longas distâncias para atacar seus inimigos e depois recuar
em segurança para escapar de seus perseguidores a pé. Na época de Gêngis Khan, as
pilhagens, os ataques e a guerra eram parte integrante da vida nas campinas havia
milhares de anos. Seus precursores remotos, os citas, eram os "bárbaros" típicos,
rondando o norte do mundo clássico civilizado. O historiador grego Heródoto escreveu a
respeito de suas guerras selvagens descrevendo como eles escalpelavam seus inimigos,
transformando suas caveiras em canecas, que eles fixavam com ouro e carregavam em
seus cintos. Quando atacados, simplesmente desapareciam na vastidão da estepe.
Os citas são considerados a melhor cavalaria leve do mundo. Foram esses mestres
cavaleiros que introduziram os cavalos na Europa temperada. Acredita-se que seus
sucessores, os sármatas, que interromperam seu domínio no século IV a.C., inventaram
o estribo, o que permitiu que carregassem longas lanças enquanto se mantinham em
cima da sela e derrubassem seus inimigos dos cavalos.
Os nômades da estepe não se fixavam em um só lugar, pois isso seria um convite ao
desastre devido ao pastoreio excessivo. Eles viviam de suas manadas e seus cavalos; às
vezes plantavam cereais em locais convenientes, abandonavam as plantações sem
cuidados e voltavam meses depois para a colheita. Mas também se envolviam em uma
dança intrincada com o pêndulo climático por causa de suas vulneráveis montarias.
Os cavalos traziam mobilidade, mas também podiam ser uma grande desvantagem
devido à sua ineficiência digestiva. O gado se alimenta com eficiência no sentido de que
excreta apenas 25% da proteína que consome. Isso significa que pode comer grama
seca, com pouca proteína, e ainda assim sobreviver. Os cavalos digerem apenas 25% da
proteína que consomem; o resto é excretado. Ambos usam o que é chamado de câmara
de fermentação para transformar a proteína das plantas em energia. A câmara da vaca,
ou rúmen, fica em um ponto do corpo em que a comida ainda não foi digerida. Ali, a
ação das bactérias quebra a proteína da planta, boa parte dela presa nas paredes das
células das plantas. A proteína que acaba de ser quebrada para o duodeno, é quebrada
ainda mais em aminoácidos. A partir daí, a proteína passa para o intestino delgado; ali,
ela é absorvida pela corrente sanguínea e utilizada para objetivos importantes, como a
formação de músculos e alimentação dos fetos. O rúmen do cavalo fica no intestino
grosso, em uma posição onde o alimento já passou pelo duodeno e intestino delgado.
Por isso o cavalo produz pequenas quantidades de aminoácidos e não absorve grandes
quantidades de proteína pelas paredes do intestino. A proteína da planta é quebrada
pela ação de bactérias num ponto ineficaz e se transforma em proteína rica em
hidrogênio, que beneficia o solo, não o animal.
Normalmente, o pasto é tão abundante nas estepes que nem o gado nem os cavalos
precisam reter toda a proteína das plantas que comem. Mas, em épocas de seca, a
proteína se torna escassa. A grama viva tem cerca de 15% de proteína; morta, apenas
4%. Quando a seca mata a grama fresca, a retenção de proteína se torna extremamente
importante. O gado retém três vezes mais proteína do que os cavalos.
Os cavalos tinham mais utilidade em termos de estratégia militar e para levar cargas,
mas um único inverno frio ou um verão intenso poderiam matar dezenas de animais,
especialmente quando o chão ficava coberto por uma grande camada de neve ou
quando faltava alimentação no inverno. As fêmeas não conseguiam alimentar os filhotes;
animais famintos começariam a morrer alguns meses depois, com a seca destruindo não
só os filhotes mas também uma fonte vital de leite, queijo e iogurte. Os nômades eram
obrigados a comer seus cavalos mortos. Se o ciclo de seca durasse dois ou três anos, os
efeitos seriam ainda mais desastrosos. Incapazes de encontrar comida, sem os seus
cavalos, e incapazes de se defender ou atacar, eles não tinham escolha senão juntar-se
a outros grupos, morrer de fome, ou mudar-se. Em alguns anos, milhares de cavalos
iriam morrer. Só havia uma solução: procurar pastos melhores. Estes normalmente
ficavam ao sul, às margens das terras - e às vezes nas próprias - cultivadas por
lavradores.
A dança entre os nômades e a seca começou muito antes de Gêngis Khan e persiste até
nossos dias. Nela talvez esteja uma das razões por que as hordas do Grande Khan
irromperam oito séculos atrás sobre um mundo despreparado, que de nada suspeitava.
As estepes são um grande vazio no que diz respeito aos estudos climáticos: as
observações instrumentais, ainda hoje, são poucas e espaçadas. Por isso mesmo, os
registros históricos da época medieval são uma raridade preciosa, mesmo aqueles que
dizem muito pouco sobre os acontecimentos climáticos. Os climatologistas russos
catalogaram eventos climáticos extremos, como grandes secas na Eurásia desde o início
do século XI, registrando ciclos de calor excepcional e períodos de frio de mais de trinta
anos. Eles relacionaram esses ciclos aos registros de trinta anos de temperatura e
chuvas tirados de variáveis locais como anéis de árvores e informação hidrológica. As
curvas de temperatura resultantes falam de um ciclo de aquecimento de quatro séculos
começando por volta do ano 850, com invernos moderados e verões secos, o que
coincide com as condições de aquecimento na Europa Ocidental. Não que o clima tenha
sido sempre benigno. As Crônicas de Novgorod falam de chuvas de outono catastróficas
em 1143 e 1145, que destruíram colheitas e provocaram fome. Os cronistas também
falam a respeito de 17 anos de fome provocada pelo clima durante o início do século XIII,
culminando com um período de fome induzida pela seca em 1215, que forçou os
habitantes da cidade a comerem cascas de árvore e vender suas crianças para servirem
de escravos. Em 1230, outra seca trouxe mais sofrimento: “Algumas pessoas comuns
mataram os vivos e os comeram; outras cortaram a carne morta e os cadáveres e os
comeram; outras ainda comeram cães e gatos... Outras se alimentaram de musgo,
lesmas, cascas dos pinheiros, folhas de visgo e olmo, e o que quer que encontrassem".
Esses desastres ocorreram no auge de épocas de aquecimento bem-documentadas na
Europa Ocidental, quando navios nórdicos ainda viajavam para a Islândia e Groenlândia
e traziam madeira de Labrador. No mesmo período, os eslavos colonizaram a costa do
Ártico russo, em Novaya Zemlya, antes da chegada da Pequena Idade do Gelo.
Os cronistas de Novgorod dizem que o clima dos séculos de aquecimento da Eurásia
jamais foi estático; graves secas e invernos rigorosos se alternaram com períodos mais
tranqüilos, mais benignos, como os do início do século XlV. Desde a Idade do Gelo, a
Oscilação do Atlântico Norte e sua gangorra de pressão atmosférica entre os Açores e a
Islândia governaram o clima da Europa Ocidental. A alta pressão sobre os Açores e a
baixa pressão sobre a Islândia trazem sempre ventos de Oeste e invernos amenos. Mas
quando a alta pressão se forma sobre a Islândia e Escandinávia, as temperaturas de
inverno despencam tanto no Ocidente quanto nas estepes. A Ásia Central está longe das
influências moderadoras do Atlântico e do Pacífico; os sistemas do clima continental
causam mudanças dramáticas nas chuvas e temperaturas, alterando o ambiente das
planícies em poucos dias. Mesmo uma primavera ligeiramente tardia ou poucas semanas
de seca de verão podem devastar o pasto de um ano. Os registros dos cronistas de
Novgorod não se aplicam, é claro, às estepes, mas podemos ter certeza de que o padrão
de ciclos mais frios e mais úmidos, mais quentes e mais secos, aplicava-se a quase toda
a Eurásia.

A Oscilação do Atlântico Norte

A Oscilação do Atlântico Norte - North Atlantic Oscillation (NAO) é uma gangorra irregular
de mudanças na pressão atmosférica entre a alta contínua sobre as Ilhas dos Açores, no
Atlântico, e uma baixa que permanece sobre a Islândia. As mudanças da NAO fazem
parte da complexa dinâmica entre oceano e atmosfera no Atlântico Norte, que ainda
hoje é pouco compreendida. Mas a NAO tem importância crítica, pois afeta a posição e a
força de tormentas no Atlântico Norte, que levam chuva para a Europa e partes da
Eurásia. Quando a baixa pressão persiste sobre a Islândia e a alta pressão se forma
próximo a Portugal e os Açores, ventos de oeste persistem sobre o Atlântico Norte,
tempestades de inverno são fortes, chuvas na Europa Setentrional são abundantes e
temperaturas de inverno são amenas. Inverta-se o índice de "alto" para "baixo", quando
a pressão é alta no norte e baixa no sul, e a Europa sofre com temperaturas muito mais
frias de inverno enquanto os ventos de oeste ficam mais fracos. Um ar extremamente
frio sopra do sul e do oeste do Pólo Norte e da Sibéria. Ninguém conseguiu ainda prever
as alterações da NAO, que pode permanecer em "alta" ou em "baixa" por sete anos ou
mais, até mesmo por décadas, mas às vezes está sujeita a mudanças rápidas.
Há outro gradiente de pressão que também afeta os invernos da Europa. Durante
"baixas" extremas, formam-se sistemas de alta pressão constante entre a Groenlândia e
a Escandinávia. As temperaturas ficam então acima da média na Groenlândia e muito
mais baixas do que o normal tanto no norte da Europa quanto no leste da América do
Norte. Quando a pressão sobre a Groenlândia é mais baixa do que na Europa, invertem-
se as temperaturas, e os invernos europeus são mais amenos. Essa "baixa na
Groenlândia" deve ter persistido durante os séculos de aquecimento.
O comportamento da NAO depende de muitos fatores complexos, entre eles as
temperaturas da superfície da água no Atlântico, das águas mornas na Corrente do Golfo
e dos poderosos mergulhos perto do sul da Groenlândia, que fazem com que grandes
quantidades de água pesada, salgada, da Corrente do Golfo afundem bem abaixo da
superfície dos oceanos para abastecer a corrente transportadora do oceano que circula
água pelos mares do mundo. Existem ligações claras entre a NAO e as rotações
complexas da oscilação no Pacífico Sul (ver Capítulo 9), que geram os fenômenos El Niño
e La Niña, mas eles ainda não foram muito bem definidos.
As secas na estepe são causadas geralmente por sistemas persistentes de alta pressão
sobre o Ártico. Esses sistemas, que podem permanecer estacionários por longos
períodos, impedem a passagem dos sistemas frontais que normalmente levam as chuvas
e atraem um frio intenso e ar seco dos mares do Norte. O ar fresco do Ártico acentua as
condições de ar seco. Em 1972, por exemplo, um anticiclone centrado sobre Moscou
permaneceu durante todo o verão, bloqueando a passagem das depressões do Atlântico.
Condições extremamente quentes, quase desérticas, em regiões como o Volga e a
Ucrânia, cortaram as chuvas de verão em 20% a 30% em média e resultaram em
umidade relativa muito baixa. As temperaturas ficaram 3ºC a 7°C acima do padrão; o
calor sugou toda a umidade que vinha do solo. Sem dúvida, secas de intensidade
semelhante ocorreram nos séculos anteriores.
Os nômades medievais tinham consciência das variações climáticas de ano para ano.
Invernos longos, com muita neve, despojavam os pastos de sua grama. A preciosa
alimentação de inverno tinha que ser esticada por dois meses ou mais, sendo oferecida
em quantidades cada vez menores. Os bois e o gado subsistiam com as raízes da grama
e perdiam peso. Alguns ficavam tão fracos que precisavam de ajuda para se erguer. As
perdas nos partos aumentavam vertiginosamente. Animais emaciados pereciam com o
frio ou se perdiam na neve alta. Durante os invernos especialmente frios, tanto animais
quanto seres humanos morriam em números elevados.
O verão chegava de repente. A neve derretia rapidamente, transformando as planícies
em charcos, córregos transbordantes, o que atrapalhava os movimentos nas pastagens
de verão. Temperaturas crescentes significavam que havia pouca água penetrando o
solo, o crescimento da grama era fraco, e o pasto de verão era, na melhor das hipóteses,
pobre. A única proteção contra esses desastres era o movimento. Nas regiões centrais
da estepe, os nômades viajavam o máximo que podiam em direção ao sul durante os
meses frios para garantir que os pastos ficassem sem grama pelo menor tempo possível.
No verão, seguiam em direção ao norte, para vales de rios estratégicos, abrigados, áreas
onde as chuvas eram um pouco mais abundantes e a grama, de melhor qualidade.
A água e sua distribuição pela paisagem também eram variáveis críticas. Cada tribo
definia seu território ao redor de sistemas fluviais, principalmente dos vales de rios
incrustados na estepe, que eram a fonte de vida desse território. Os nômades passavam
o inverno em casas construídas em elevações no vale, abaixo do nível da planície; então,
migravam para o norte na primavera, às vezes já em fevereiro ou março nos anos mais
amenos, ou no fim de maio, naqueles mais frios. O movimento sazonal em direção ao
norte parava e continuava, dependendo do pasto que encontravam, e às vezes era
interrompido por rios mais largos. Eventualmente, deixavam os animais se alimentarem
em pastagens ricas, que podiam cobrir até 8.400 quilômetros quadrados. Em anos
amenos, semeavam cereais, negligenciados até quase a mudança para o sul. Nos anos
secos e frios, não conseguiam plantar, pois chegavam muito tarde às pastagens de
verão para semear, tendo pouco tempo até que o tempo frio do inverno destruísse a
plantação.
Cada mudança na temperatura e nas chuvas alterava a relação entre os nômades e o
meio ambiente. Os períodos mais secos, com ameaças à vida, traziam pastos mirrados,
dizimavam os rebanhos, ampliavam a busca por grama e água, e, inevitavelmente,
levavam a violentas invasões dos territórios vizinhos. Nos ciclos com mais água, os
rebanhos aumentavam, a capacidade de pastagem das terras melhorava muito, e os
territórios encolhiam, com uma redução nas guerras. Durante séculos, aqueles que
viviam às margens da estepe viveram com medo dos nômades violentos, que chegariam
sem aviso e causariam destruição em sua busca por melhores pastagens.

Infelizmente, as evidências de variáveis que nos permitiriam identificar as flutuações


climáticas da época de Gêngis Khan são escassas. Os registros que chegam até mil anos
são as pedras de Roseta da paleoclimatologia, crônicas raras tratadas com a reverência
científica que merecem, mesmo que sejam apenas variáveis, sinais indiretos de chuvas e
de temperaturas da Antiguidade. Essas seqüências são tesouros raros para arqueólogos
e historiadores que buscam flutuações climáticas de décadas e séculos atrás, como o
Período de Aquecimento Medieval. Como vimos, os mais corajosos entre os
climatologistas combinaram esses registros com reconstruções de temperatura em larga
escala, de até um milênio atrás. Esses retratos do clima do passado vieram, na maior
parte, de registros de anéis de árvores, documentos históricos e leituras instrumentais
do século passado ou mais. Mas com relação ao clima das estepes eurasianas, na época
em que Gêngis Khan embarcou em suas campanhas assassinas, os registros são quase
nulos, exceto por amplas generalizações e apenas uma ou duas seqüências de anéis de
árvores.
Uma equipe de pesquisas do Tree-Ring Laboratory do Observatório Lamont-Doherty, em
Palisades, Nova York, e da Universidade Nacional da Mongólia reuniram amostras de
pinheiros siberianos com 500 anos de idade, em Solongotyn (também conhecida como
Sol Dav), localizada no alto das Montanhas Tarvagatay, no centro-oeste da Mongólia.
As condições ecológicas nessa região são tais que o crescimento das árvores é
influenciado pelas mudanças na temperatura de um ano para outro. Depois de meses de
pesquisas, a equipe desenvolveu uma curva de temperatura das árvores vivas entre os
anos de 1465 e 1994. Depois eles voltaram para colher amostras adicionais de madeira
morta, mas bem preservada, ligando os anéis das árvores desses fragmentos com os dos
pinheiros vivos. A seqüência climática expandida se estende hoje até o ano 850 e,
menos confiavelmente, até o ano 256, época em que Roma era poderosa e os citas
floresceram nas estepes eurasianas.
Sol Dav não deixa dúvidas quanto à elevação das temperaturas atuais, com taxas mais
altas de crescimento das árvores aparecendo entre 1900 e 1999. Mas existem notáveis
períodos anteriores de aquecimento por volta do ano 800. O ano 816 foi o mais quente
de toda a seqüência, mais quente até do que hoje, embora 1999 tenha sido o ano mais
quente de todo o último milênio. O ciclo de aquecimento do século IX e outro do início da
década de 1400 encerram os séculos do Período de Aquecimento Medieval. Houve um
período de condições mais frias por volta do ano 1100, por isso o aquecimento não foi
monolítico. Posteriormente, veio o resfriamento da Pequena Idade do Gelo, cinco séculos
de resfriamento e aquecimento imprevisíveis que culminaram em condições muito frias
durante o século XIX.
A seqüência de Sol Dav não apenas fornece evidências do aquecimento medieval, como
suas flutuações também coincidem com as mudanças de temperatura ocorridas durante
pelo menos quatro séculos bem documentados pela seqüência de Mann para a Europa
setentrional e ocidental já descrita no Capítulo 1. Os antigos pinheiros preservados da
Mongólia colocam as conquistas de Gêngis Khan em um extenso período de
aquecimento, durante o qual secas freqüentes podem ter levado à destruição das
pastagens das estepes em um mundo onde as pessoas dependiam dos cavalos assim
como de animais de todos os tipos. Se a solitária seqüência dos anéis das árvores
mongóis é um barômetro confiável da temperatura e das chuvas cíclicas da época de
Gêngis Khan - e temos todos os motivos para acreditar que sejam -, então fica claro que
a bomba climática das estepes funcionou como faziam há milhares de anos, colocando
os nômades e seu movimento incansável em ação na estepe, e levando-os a entrar em
conflito com seus vizinhos no sul. A diferença estava em que Gêngis Khan subiu ao poder
numa época em que as condições mais secas encolheram as pastagens da estepe. Isso
não era novidade; mas agora um líder brilhante conseguia forjar grandes exércitos de
conquista a partir de um emaranhado de tribos rivais e chefes com idéias
independentes. O Mangual de Deus sacudiu a Ásia e a Europa em suas bases.

O prolongado período de aquecimento detectado nos anéis das árvores da Mongólia


coincide com as conquistas selvagens de Gêngis Khan: condições mais quentes e mais
secas teriam significado uma onda de guerras numa época de fome potencial e
inquietação crescente. As incursões de Gêngis Khan na China e o impiedoso massacre do
império Khwarizmi dos turcos seljúcidas na Ásia Central, em 1220 e 1221, trouxeram os
mongóis para terras organizadas.
Pouco antes de sua morte, em 1227, Gêngis Khan disse aos seus filhos: "Com a ajuda
das forças divinas eu conquistei para vocês um grande império. Mas a minha vida é
muito breve para conseguir conquistar o mundo. Deixo essa tarefa para vocês". As
conquistas continuaram após a morte de Gêngis Khan. Um de seus filhos, Ogodai Khan,
estendeu o império para o Ocidente, em 1236. Batu, neto de Gêngis Khan, logo
conquistou a Criméia, depois destruiu o que agora é a Bulgária, assim como catorze
cidades russas, transformando seus escombros em estados vassalos. Posteriormente,
voltou sua atenção para a Europa, com o objetivo de alcançar o "derradeiro oceano". Os
mongóis que estavam sob o comando do general Subutai dividiram-se em três grupos,
conquistaram a Polônia e a Hungria, e foram em direção à Áustria, onde pretendiam
fincar uma base no coração da Europa, em 1241. Nesse período, Ogodai Khan morreu.
Batu Khan era candidato potencial para ser o Grande Khan, por isso deslocou suas forças
para as estepes. Ocorre, porém, que ele não foi escolhido e dedicou seus esforços para
consolidar suas conquistas em torno dos Urais. Ele dominou as estepes cumans e vários
reinos russos, e nunca mais voltou para o cenário de suas conquistas anteriores.

O afastamento de Batu Khan coincidiu com a volta de condições mais frias e úmidas, o
que beneficiou as pastagens das estepes. Seu reino floresceu por gerações de boas
pastagens, quando a guerra cessou. Embora Batu mantivesse a ambição de voltar para o
Ocidente, as boas condições de pastagem em casa permitiam que seu povo ocupasse
um grande território desde o Volga-Don até a Bulgária. Não havia incentivos para
conquistas ambiciosas quando existiam pastagens abundantes e florescia o comércio
com terras mais ao sul.
Mas o que teria acontecido se o pêndulo climático não tivesse balançado, e se as secas
tivessem se intensificado na estepe? A julgar pelos séculos anteriores, as guerras e a
movimentação desassossegada teriam continuado e, quase certamente, Batu Khan e
seus generais teriam retornado para o Ocidente. Seus espiões já haviam fornecido um
quadro dos reinos beligerantes e de seus exércitos com guerreiros de armaduras, que já
haviam mostrado que não eram páreo para os cavaleiros e arqueiros mongóis. Eles
teriam seguido seus planos originais, elaborados com o general Subutai: invadir a
Áustria e destruir Viena primeiro; depois, avançar contra os principados germânicos
antes de voltar sua atenção para a Itália. Se tudo corresse bem, eles teriam então
marchado sobre a França e a Espanha. Em poucos anos, talvez já em 1250, a Europa
teria se tornado parte do império mongol ocidental.
Será que isso de fato iria ocorrer? Os mongóis já haviam derrotado formidáveis exércitos
europeus em batalhas decisivas nas planícies húngaras, onde milhares haviam perecido.
As histórias de conquistas implacáveis e carnificina indiscriminada que os precederam
teriam dado a eles uma grande vantagem psicológica em uma Europa dividida em
facções e rivalidades crônicas. Na época em que Batu dominou a Europa, os mongóis
haviam acumulado grande experiência não apenas nas conquistas, mas também na sua
assimilação e adaptação a outras culturas e religiões. Se a história da Ásia Central pode
servir de guia, a civilização européia teria continuado a florescer enquanto novos
conquistadores seriam absorvidos em seu tecido.
Mas existem questões fascinantes. A Europa teria se transformado em continente
muçulmano, ou teriam os mongóis, com sua tolerância religiosa, deixado em paz a igreja
católica? Se tivesse ocorrido a conquista, teriam existido incentivos para que os
exploradores e mercadores europeus encontrassem novos caminhos para alcançar as
riquezas da Ásia, abrindo novas rotas marítimas através do Atlântico e contornando o
Cabo da Boa Esperança até a índia, quando poderiam ter rotas por terra através de um
império unificado? E qual teria sido o impacto dos mongóis sobre a Espanha muçulmana?
Ali, poder-se-ia esperar o mesmo processo ocorrido na Ásia Central: um ambiente em
que floresceria o islamismo, e talvez até se expandisse para o Norte, passando os
Pireneus.
Haveria um ponto em que o ritmo da conquista desaceleraria - talvez quando os
conquistadores alcançassem o Atlântico, ou até antes. Se o pêndulo climático não
tivesse balançado de volta, não teria havido incentivo para voltar para casa, para
encontrar uma terra árida, devastada pela seca. E nem a paz teria descido sobre as
estepes, onde, sob condições benéficas e com amplas pastagens, a cada verão as tribos
deixavam seus acampamentos de inverno no sul, perto do Mar de Azov e de Astracã-
Sarai, e seguiam para as pastagens de verão às margens dos rios Don e Oka. Com todo o
poder de atração da estepe e da vida nômade, o centro de gravidade política e
econômica do império da Horda Dourada teria ido para o Oeste, para terras melhor
irrigadas e mais estáveis. Mas, mesmo assim, tal como acontecera com os domínios de
Gêngis Khan, a mera dimensão do império, a corrupção e a administração ineficiente
poderiam ter provocado a divisão da Europa em uma colcha de retalhos, composta por
estados muito diferentes daqueles que testemunharam a Renascença e a Era dos
Descobrimentos.
O fluxo e refluxo do poder mongol teria dependido em parte da realidade da vida
nômade, como havia acontecido durante milhares de anos. Quando as pastagens eram
boas, havia paz; quando o clima piorava e a seca devastava as estepes, a guerra
irrompia e os povos das terras assentadas tremiam de medo. O ritmo incessante de
quente e frio, de chuvas abundantes e períodos de seca, de grama mais do que
suficiente e nenhuma forragem, era um importante motor da história, a seu modo tão
poderoso quanto as mudanças econômicas, o fluxo e refluxo da intriga política, e as
habilidades de cada governante. Gêngis Khan e seus exércitos, assim como a menor das
tribos das grandes estepes, eram afetados pela mesma realidade. Quando a seca das
planícies coincidia com inquietações sociais e comandantes brilhantes, os alicerces da
história eram sacudidos. E, caso as secas tivessem continuado, a civilização européia
poderia ter atualmente uma fisionomia muito diferente.

CAPÍTULO 4
O Comércio Dourado dos Mouros

Eles começam a partir de uma cidade chamada Sijilmassa (...) e viajam pelo deserto
como se estivessem no mar, tendo guias para orientá-los pelas estrelas e pelas pedras
dos desertos.

- ANÔNIMO, Toffut-al-Alabi (século XII)

Em julho de 1324, o sultão do Egito recebeu um visitante realmente exótico. Mansa


Mussa, governante do reino de Mali, na África Ocidental, ia em peregrinação a Meca.
Centenas de camelos e escravos carregavam bastões de ouro e uma profusão de
presentes pelo deserto. Mansa Mussa estabeleceu sua corte no Cairo por três meses.
Para espanto dos egípcios, seus súditos se prostravam à sua frente e jogavam terra em
suas cabeças. Os malis injetaram tanto ouro na economia egípcia que o valor do mais
precioso dos metais caiu entre 10% e 25% durante alguns anos. Histórias sobre o reino
africano e suas riquezas fabulosas repercutiam nos mundos cristão e muçulmano. No
final do século XlV, dois terços do ouro da Europa eram provenientes do Mali,
transportados por camelos através do Saara. Esse "comércio dourado dos mouros" ligou
dois mundos muito diferentes, o do Mediterrâneo e o do Sudão, na África Ocidental -
Bilad es-Soudan, que os geógrafos islâmicos chamavam de "Terra dos Negros".
Localidades mencionadas neste capítulo e impressão geral das rotas das caravanas do
deserto

Como as estepes eurasianas, o deserto do Saara se expande e se contrai como uma


bomba ecológica natural. Essa margem sul do mundo medieval europeu é um dos
lugares mais quentes da terra. Predominam os ventos secos de nordeste, que elevam as
temperaturas acima de 37°C em um número de dias do ano maior do que em qualquer
outro lugar da Terra. Um ambiente morto, pode-se pensar, mas o Saara respira, não é
estático. Quando aumentam as chuvas, mesmo que por alguns milímetros, as margens
do deserto encolhem, às vezes em muitos quilômetros. Nos períodos mais quentes do
passado remoto, imensas lagoas rasas e prados semi-áridos, irrigados por rios sazonais
de cadeias de montanhas áridas, cobriam milhares de quilômetros quadrados do que
agora é deserto. Resta apenas um lago importante. Cento e vinte mil anos atrás, o Lago
Chade, na fronteira sul do deserto, cobria uma área muito maior do que o Mar Cáspio na
Eurásia. Atualmente, o Chade está secando rapidamente. Em anos com boas chuvas, o
deserto atrai animais e pessoas, em geral bem ao norte do Lago Chade. Quando o Saara
enfrenta anos de seca, as fontes de água e os pastos desaparecem, e as esparsas
populações do deserto saem à procura de áreas melhor irrigadas. A bomba saariana
nunca fica parada; às vezes permanece imóvel por alguns anos, depois gira
freneticamente durante períodos de chuvas altamente variáveis de um ano para outro.
Esta é a história do comércio de ouro de mil anos. atrás entre o mundo islâmico e a
África Ocidental. O comércio prosperou durante os séculos de aquecimento graças ao
camelo e sua grande capacidade de adaptação, e porque aqueles que lidavam com o
ouro na ponta africana organizaram sua sociedade para que se acomodasse aos
extremos climáticos súbitos que marcaram o Período de Aquecimento Medieval.

A história climática do Saara e do Sahel, região dominada por vegetação de savana que
ocupa a margem sul do deserto, é uma crônica implacável das alterações caóticas, bem
documentada tanto do ponto de vista dos registros instrumentais modernos quanto dos
estudos das variáveis de testemunhos do fundo do mar perto da costa da Mauritânia.
Podemos até ligar alguns desses registros a testemunhos de alto-mar da importante
Bacia de Cariaco, na costa da Venezuela, descrita no Capítulo 8.
Os testemunhos do mar da Mauritânia revelam mudanças abruptas, recentes, de até
2,16°C na temperatura da superfície do mar no Atlântico Norte Oriental. Ao mesmo
tempo, mudanças na salinidade do oceano em diferentes níveis podem afetar o
funcionamento da corrente transportadora oceânica, fundamental para o clima mundial,
por transferir o calor dos trópicos para latitudes setentrionais. A temperatura da
superfície do mar no Atlântico Norte Oriental tem grande efeito sobre os ventos secos
que sopram pelo Saara. Se as temperaturas da superfície do mar estiverem mais baixas
no Atlântico Oriental, entre 10° e 25º ao norte, e mais altas no Golfo da Guiné, os ventos
de monção são deslocados para o sul, provocando seca no Sahel e no Saara. Sabemos
disso porque, entre 1300 e 1900, um resfriamento documentado nos núcleos do mar da
Mauritânia provocou condições de estiagem no Sahel, incluindo secas que podem ter
sido piores do que a desastrosa megasseca da década de 1960. Os núcleos nos
permitem fazer uma tentativa de reconstrução das condições climáticas dos últimos dois
mil anos, e durante o Período de Aquecimento Medieval:

. Entre 300 a.C. e próximo ao ano 300, as condições na África Ocidental eram estáveis e
secas - como acontecia tanto no Sudeste Asiático quanto na Bacia Amazônica -, com
chuvas um pouco abaixo dos níveis atuais. As pessoas se deslocaram para regiões com
melhor abastecimento de água, como o Médio Níger, onde surgiram vilarejos.
. Depois do ano 300, os índices pluviométricos devem ter aumentado de 125% a 150%
em relação aos níveis atuais, até o ano 700, época em que o Lago Chade, antes
insignificante, expandiu-se dramaticamente. (Não há evidências de períodos de seca
intercalados, mas pode ser que não tenham sido detectados.) Então, entre os anos 900 e
1100, ocorreu uma transição abrupta para condições muito mais instáveis, refletidas
numa variabilidade crescente das monções na Bacia de Cariaco, no outro lado do
Atlântico. Às vezes, ocorriam precipitações de chuva estáveis, elevadas; em outras
vezes, seca. As margens do Saara estavam mudando constantemente.

Em uma tentativa para entender essas mudanças, a climatologista Sharon Nicholson


analisou registros meteorológicos coloniais de toda a África tropical e identificou seis
padrões diferentes de chuvas, ou modos climáticos, nos quais o clima africano foi se
alternando desde o século XIX. Esses modos se alternam aleatoriamente da aridez
extrema em uma ponta do espectro - característica do Sahel nos anos de 1890 e 1960,
passando por vários estágios intermediários e relacionados - até cenários de umidade
desastrosa, quando os rebanhos se multiplicaram e acabaram com a paisagem verde
que se havia formado às margens do deserto. Hoje, o clima no Sahel salta abruptamente
e sem aviso de um modo para outro, de maneira completamente imprevisível. Trata-se
provavelmente do mesmo tipo de alteração abrupta ocorrida durante o Período de
Aquecimento Medieval, criando desafios extraordinários para as pessoas envolvidas na
criação de gado, agricultura de subsistência e comércio de longa distância.
Olhando para essas mudanças a partir de uma escala mais global, verificamos que um
ano seco no Sahel coincide com alta pressão sobre os Açores e baixa pressão sobre a
Islândia. Os alísios de nordeste aceleram e a Zona de Convergência Intertropical
permanece bem ao sul. Ventos de sudoeste trazem menos umidade para a África
Ocidental. Quando a temperatura da superfície do mar, entre 10° e 25° ao norte, fica
entre 2°C e 4°C mais fria, e as águas do Golfo da Guiné estão extraordinariamente
quentes, o efeito da Zona de Convergência Intertropical enfraquece. Os núcleos do fundo
do mar também mostram que o início de muitas alterações dos modos climáticos é
marcado por transições muito violentas no interior, algumas delas precedidas por picos
extremamente frios. Um desses modos climáticos ocorreu por volta do ano 900, com
outro no início do Século XI. Essas fases instáveis, em geral com secas prolongadas - e
aqui enfatizamos a palavra "prolongadas" - teriam sido períodos de notável dificuldade e
mudança para os sahelianos que os vivenciaram.

Que efeitos, então, tiveram as temperaturas mais quentes e as secas do Período de


Aquecimento Medieval sobre o comércio do ouro do Saara e os povos do Sahel? No que
dizia respeito às caravanas saarianas, os efeitos foram notavelmente reduzidos por
causa dos camelos, ou, mais exatamente, por causa dos selins nos dorsos dos camelos.

A Zona de Convergência Intertropical (ZCIT)

Os ventos alísios de nordeste e sudeste encontram-se perto do Equador, formando uma


área de baixa pressão. Esses ventos convergem e forçam a subida do ar mais úmido.
Quando o ar sobe e esfria, o vapor de água se condensa. Forma-se um agrupamento de
nuvens pesadas, que se move sazonalmente em direção a áreas em que o aquecimento
solar é mais intenso, lugares com temperaturas de superfície mais quentes. De setembro
a fevereiro, a ZCIT se movimenta na direção do hemisfério sul, invertendo depois a
direção para o verão, no norte. Enquanto a ZCIT se movimenta sobre a terra, suas
alterações são menores do que quando está sobre mar aberto, mantendo uma posição
quase estacionária pouco acima do Equador. Ali a chuva se intensifica à medida que
aumenta o aquecimento solar, e diminui quando o sol se afasta. Com a elevação das
temperaturas, aumentam as chuvas, que diminuem quando esfria. Os fenômenos El Niño
(ver informações adicionais no Capítulo 9) têm grande efeito sobre a ZCIT, desviando-a
em direção às temperaturas de superfície do mar extraordinariamente quentes no
Pacífico tropical, e levando menos chuvas para o Atlântico e para as margens do Deserto
do Saara.
A Zona de Convergência Intertropical e seu alcance.

Nas estepes eurasianas, a vida dependia do gado e dos cavalos, das boas pastagens.
Quando as temperaturas subiam e a seca se abatia sobre os pastos, os nômades saíam
em busca de água e novas pastagens. As planícies e planaltos desolados do Saara não
eram um lugar em que gado e cavalos poderiam prosperar mil anos atrás, mesmo que
houvesse um ligeiro aumento nas chuvas. Na era clássica, o deserto era um ermo
assustador. Heródoto afirmou que a Líbia, na costa mediterrânea, "estava infestada de
animais selvagens. Mais para o interior, longe da área cheia de animais, a Líbia é um
deserto arenoso, totalmente sem água, e completamente desabitada por alguém ou
alguma coisa". Somente alguns pastores nômades dispersos sobreviviam perto dos
oásis, e para eles a distância entre sobrevivência e inanição era tão fina quanto uma
lâmina. Quem quer que vivesse ali era forte, engenhoso, e estava sempre se deslocando.
Os romanos transformaram a África do Norte em um próspero celeiro, mas jamais
cruzaram o deserto em direção às terras tropicais do sul. Não tinham animais de carga
para poder viajar durante dias numa época sem água. Cruzar regularmente o Saara com
animais carregados significava combinar um comportamento altamente adaptável com
um animal capaz de ficar até dez dias sem água. Esse animal era o camelo. E seu pêlo
era extraordinariamente imune à seca.
O comércio do ouro jamais teria prosperado sem o camelo, mas foi o desenvolvimento
de uma sela capaz de transportar carga que o transformou em "barco do deserto". O
camelo armazena gordura na corcunda; o pescoço longo possibilita que se alimente de
árvores e arbustos; e a pata acolchoada permite que caminhe na areia macia. Os
camelos conservam a água através de um eficiente sistema renal e absorvem o calor
permitindo que a temperatura corporal suba significativamente sem transpirar. Os
romanos sabiam tudo sobre camelos. Usavam-nos na África do Norte para puxar
carroças, e até como barreiras defensivas para proteger os soldados. Eles sabiam que
esses animais irritadiços adaptavam-se muito bem nas condições do deserto. Mas suas
vantagens tinham valor limitado sem uma sela eficiente para transportar carga, que os
romanos desconheciam.
A sela do camelo saariano começou a ser usada no início da Era Cristã, provavelmente
em torno do Vale do Nilo, no que agora é conhecido como o moderno Sudão, não para
luta, mas para carga. A sela fica sobre os ombros do animal, à frente da corcunda, e
posicionada de forma a maximizar sua capacidade de carga, sua resistência e controle.
O responsável pela condução do camelo saariano dirigia o animal usando uma vara ou
os dedos dos pés. Pela primeira vez, caravanas de camelos podiam carregar água e
provisões suficientes (para os seres humanos do grupo) na travessia de longas distâncias
entre os oásis da África do Norte até o Sudão Ocidental.
Ninguém sabe quando foi que as primeiras caravanas de camelos atravessaram o Saara
Ocidental, mas isso ocorreu bem antes da conquista da África do Norte pelos exércitos
islâmicos no século VII. Eles seguiam por trilhas vagas que logo se transformaram em
rotas de comércio controladas pelos comerciantes muçulmanos que vinham de uma
cultura com visão muito mais ampla do mundo do que seus predecessores da África do
Norte.
As caravanas saarianas seguiam uma rotina bem definida. Camelos abarrotados de
carga arrastavam-se penosamente para o sul a partir de Sijilmassa, até Taghaza, onde
pegavam sal nas minas vizinhas. Na África, o sal é um bem precioso até hoje, pois faltam
fornecedores locais. De Taghaza eles seguiam até Walata, Gana e Jenne, no meio do Rio
Níger. A jornada era perigosa mesmo sob circunstâncias favoráveis. O deserto era
sempre hostil, mesmo em épocas de precipitações pluviométricas um pouco mais
elevadas. O calor e a desidratação eram lima ameaça constante. Assim como os
nômades do deserto, vestidos com albornozes azuis, armados com escudos bordados e
lanças, que atacavam impiedosamente sem qualquer aviso. A maioria dos organizadores
de caravanas negociava acordos com os chefes nômades para garantir uma passagem
segura pelos oásis que eles controlavam. Os nômades também forneciam guias, que
usavam formações rochosas e estrelas para se orientar. Forneciam camelos para os
mercadores, que os vendiam de volta no fim da jornada.
As caravanas eram comboios bem organizados. Os camelos carregados com mercadorias
eram acompanhados por muitos outros carregando água e provisões, ou servindo de
montaria. A segurança estava nos números - segurança em relação aos ataques de
nômades, com grande número de animais carregando água e alimento, e capacidade
para transportar grandes cargas e lucrar bastante. No século XII, algumas caravanas
chegaram a ter de mil e duzentos a dois mil animais.
A jornada em si durava entre seis semanas e dois meses, com a partida no outono. O
contemporâneo geógrafo muçulmano al-Idrisi escreve: "Os camelos são carregados
muito cedo e viaja-se até o sol aparecer no horizonte e o calor produzido na terra ficar
insuportável". As caravanas descansavam até o fim da tarde, depois prosseguiam
silenciosamente durante a noite, guiadas pelas estrelas, como acontece até hoje.
As caravanas de camelos empreenderam a longa jornada através do Saara mesmo nos
anos mais quentes do Período de Aquecimento Medieval. Aqueles que cruzavam o
deserto passavam boa parte do tempo adquirindo conhecimento a respeito do
suprimento de água, pois os poços e os oásis eram vitais para uma jornada segura. As
condições nunca eram as mesmas de um ano para outro. Os ciclos de seca e umidade
afetavam os padrões do comércio. Quando as condições eram de maior umidade,
perfurava-se um grande número de poços no cascalho aquoso do Saara Central, em
torno do Maciço de Hoggar e Adrar des Iforas. Muitas caravanas seguiam então rotas
diretas pelas dunas do Saara Central até Taghaza e a cidade de Awdaghust (na atual
Mauritânia), na fronteira do deserto, um importante centro do comércio de sal. Durante
os ciclos de seca, as caravanas seguiam por rotas mais sinuosas até o oeste, ou,
passando a leste ou ao norte de Bilad es-Soudan, viajavam até Adrar des Iforas, depois
para oeste, terminando em Sijilmassa. A versatilidade do camelo garantia flexibilidade
suficiente para seguir a rotação da bomba do deserto. O número de animais mortos ou
exaustos podia ser enorme; as perdas freqüentemente rondavam a casa das centenas,
somente em uma caravana. Os esqueletos gastos de camelos e de seus condutores
ficavam espalhados pelas rotas, mas o comércio do ouro nunca foi interrompido. O
camelo e sua sela de carga revelaram-se uma arma eficiente contra o calor e a seca
mesmo nos piores anos, quando a aridez extrema afetou o gado e as pessoas que viviam
ao sul do deserto.

Sabemos o suficiente a respeito da mudança climática durante os séculos de


aquecimento para ter certeza de que ocorreram mudanças súbitas e abruptas nas
chuvas. A bomba saariana teria entrado em atividade frenética enquanto as margens do
deserto às vezes avançavam e recuavam até anualmente. A descoberta islâmica do
comércio de ouro da África Ocidental parece ter coincidido com o fim de um período de
condições relativamente estáveis, com pelo menos um pouco mais de chuvas do que
atualmente. Teria havido mais poços de água, e as viagens pelo deserto com camelos,
apesar de perigosas, podiam ser organizadas em uma escala relativamente grande.
Felizmente, para o mundo exterior, a adaptabilidade do camelo e a habilidade daqueles
que viviam no deserto e em suas margens deram ao comércio de ouro do Saara um
considerável grau de imunidade em relação às alterações climáticas.
A ponte humana foi tão importante quanto o camelo. Boa parte do comércio dependia
dos berberes nômades, antigos habitantes do deserto, que criavam camelos e também
acompanhavam muitas caravanas. Eles viviam nas duas pontas das rotas de comércio e
serviam como ligação humana entre o norte e o sul. A outra conexão era feita pelo
islamismo, que acabou se tornando a religião comum dos mercadores da África do Norte,
dos nômades saarianos e de muitos governantes africanos e mercadores ao sul do
deserto.
O ouro era muito importante no mundo muçulmano, e um grande incentivo para que o
comércio superasse os riscos das viagens pelo deserto. Os dinares de ouro cunhados
pelo califa de Bagdá, e só por ele, circulavam por todo o Magrebe (noroeste da África) e
Espanha. No começo, o ouro vinha das pilhagens realizadas na Síria e no Egito, e
também de tesouros cristãos e do Alto Egito, e até mais distante do Nilo. Contudo, por
volta do século VIII, o ouro da África Ocidental já era muito conhecido. O metal em si
chegou como pó, comercializado por mineiros da região de Bambuk, às margens do Rio
Senegal, a vinte dias de viagem para o sul do reinado de Gana, no Sahel, então um dos
postos mais importantes de comércio do ouro. Mercadores corajosos tentaram, em vão,
obter o controle das fontes do ouro. Os mineiros mantiveram firmemente a sua
independência e pouco se sabe a respeito de suas operações. Eles extraíam o minério do
meio do cascalho de rios auríferos cavando inúmeros poços pequenos. O resultado desse
trabalho simples era enorme. Al-Fazari, astrônomo de Bagdá, escrevendo no final do
Século VIII, chamou Gana de "terra do ouro".
No ano 804, os governantes do Magrebe começaram a usar o ouro sudanês para cunhar
seus próprios dinares. O ouro sudanês financiou guerras de conquista e trouxe imensa
riqueza para o Islã. Até o século XII, a maior parte do ouro da África Ocidental
permaneceu no mundo muçulmano. A Europa Ocidental já não mais usava o ouro como
moeda corrente, em parte porque a balança comercial desfavorável com o leste havia
acabado com seus recursos, com poucas perspectivas de recuperação. Porém, com a
recuperação das economias européias e com as cidades italianas construindo frotas
poderosas para combater a pirataria árabe, um volume crescente de comércio de
vestuário e outros bens atraiu quantidades cada vez maiores de ouro. No final do Século
XIII, as casas da moeda européias estavam cunhando moedas de ouro. País após país,
foram todos retomando o padrão-ouro. A demanda pelo metal aumentou; os preços
subiram, depois se estabilizaram. A maior parte do ouro da Europa do final do século XIV
veio do Sudão Ocidental. A relativa imunidade do camelo à devastação causada pela
bomba do deserto garantiu que o comércio continuasse a contribuir para mudar a
história.
Ninguém sabe exatamente quanto ouro passou para o comércio transaariano a partir da
África Ocidental. Registros de taxas cobradas de caravanas em Sijilmassa durante o
século X, citados pelo autor- Ibn Haukal, mencionam importações de aproximadamente
9,4 toneladas de ouro anualmente, provavelmente a metade do total anual de cerca de
16,5 a 18,7 toneladas transportadas para o norte a partir da África Ocidental. Em 951,
Ibn Haukal viu uma nota promissória de 42 mil dinares emitida por um mercador no
norte, medida de riqueza espantosa no comércio da época.
De onde, então, vinha o ouro? Antes de viajar para o sul, as caravanas paravam em
Awdaghust, na margem do deserto, uma cidade berbere grande e populosa, com casas
de pedra e tijolos de barro com telhados retos, contemplada por um grande afloramento.
No mercado sempre lotado de Awdaghust, podia-se comprar sal, ovelhas, mel do Sahel e
alimentos de todos os tipos - desde que se pagasse em ouro. A próspera cidade-oásis
tinha água boa e abrigava mercadores com o monopólio do comércio transaariano. Eles
organizavam suas caravanas sob os auspícios dos nômades sanhajas do deserto. O
geógrafo muçulmano al-Bakri afirma que o domínio sanhaja sobre a cidade estendia-se
por uma distância percorrida em dois meses de viagem. Dizia-se que poderiam reunir
cem mil camelos. Ouro e sal fluíam pela cidade, cujos líderes tinham o cuidado de
manter um bom relacionamento com os poderosos chefes do sul, especialmente os que
governavam o reino rico em ouro chamado Gana.

O rei se enfeita tal qual uma mulher, usando colares em torno do pescoço e braceletes
nos antebraços; na cabeça, usa uma touca alta decorada com ouro e envolta por um
turbante de algodão fino. Ele mantém uma audiência em um pavilhão abobadado em
torno do qual ficam dez cavalos cobertos com materiais bordados a ouro; e à sua direita
estão os filhos dos reis-vassalos de seu país, usando vestimentas esplêndidas e com os
cabelos salpicados de ouro.
À porta do pavilhão estão cães de excelente linhagem. Em torno do pescoço eles usam
colares de ouro e prata, enfeitados com várias contas feitas com os mesmos metais.

A descrição que al-Bakhri faz de Gana é composta por material extraído de lendas. Ele
nunca visitou o Sahel, mas construiu seus relatos a partir de fontes dos arquivos de
Córdoba. Sua Gana era uma corte de estilo Mediterrâneo enterrada na África, uma
capital com duas cidades; uma com doze mesquitas, freqüentadas por mercadores
muçulmanos, e a outra, uma mistura de bosques sagrados e tumbas reais, a pratica-
mente dez quilômetros de distância. O tesouro real incluía um lingote de ouro que diziam
pesar cerca de 13,6 quilos, tão grande que ficou famoso tanto no mundo cristão quanto
no muçulmano.

Acredita-se que a capital de aparência imponente, Kumbi Saleh, ficasse a cerca de 480
quilômetros a sudoeste de Timbuktu e da curva do Rio Níger. Há realmente muitas ruínas
de pedra nessa área, e também inscrições em árabe, mas não há vestígios de qualquer
construção real ou dos túmulos descritos por mercadores muçulmanos. As ruínas ficam
nos limites mais setentrionais do Sahel, onde a agricultura teria sido praticamente
impossível mesmo em períodos de muita chuva. É bem provável que Kumbi não tenha
sido a capital de Gana, mas uma pequena comunidade comercial, parte de um reino
inteiramente diferente, mais descentralizado. Até o momento, o reino de Gana per-
manece indefinível, sua capital itinerante. Nossa única certeza é de que não era um
sistema islâmico, mas um império nativo africano, muito diferente daquilo descrito por
al-Bakri, com raízes profundas na África Ocidental, de onde vinha o ouro.
Durante muito tempo, as fontes do ouro permaneceram um mistério. Escrevendo no ano
872, o historiador al-Yaqubi repetiu uma história bastante difundida sobre o ouro
brotando da terra como se fosse cenoura. Como sempre acontece quando o assunto é
ouro, as histórias foram aumentando até produzirem uma "Ilha do Ouro", em que o metal
precioso seria de quem o encontrasse. Os mineiros tinham consciência do valor do ouro
e mantinham os locais de seus depósitos do minério em segredo para impedir que
forasteiros tentassem controlar o suprimento. Por esse motivo, recusavam-se a fazer
negócio cara a cara: os mercadores empilhavam as mercadorias às margens do rio, de
pedras de sal em sua maior parte, e passavam sem ser vistos enquanto a população
local amontoava o ouro junto de cada pilha. Se os visitantes estivessem satisfeitos,
levariam o ouro e partiriam batendo em tambores para sinalizar o fim da transação. Em
certa ocasião, eles capturaram um mineiro para tentar descobrir a fonte do ouro. Ele de-
finhou até morrer sem revelar qualquer coisa. O comércio cessou por três anos até ser
retomado.
Os mineiros de Bambuk e Buré, outra área a leste, eram tímidos, pessoas retiradas que
protegiam zelosamente suas atividades de mineração de ouro, motivo pelo qual se
organizaram no comércio silencioso. Nenhum mercador berbere do Saara jamais visitou
os campos de ouro, por isso, a Ilha de Ouro permaneceu um mistério. Continua a ser um
enigma geográfico até hoje. No século XII, al-Idrisi descreveu a ilha como uma área de
aproximadamente 500 quilômetros de comprimento por 300 de largura, que todos os
anos alagava, onde a população local "juntava ouro". A posição da ilha em seu mapa
coincide com a que era sazonalmente alagada no delta do Médio Niger, habitada por
pescadores e lavradores que falavam mande.

O Níger é um dos grandes rios da África, subindo pelas montanhas da Guiné, perto da
fronteira de Serra Leoa, e depois seguindo para o nordeste, desaguando em um grande
delta interior, uma colcha de retalhos composta por afluentes, canais, pântanos e lagos.
Essa planície interior é o que o arqueólogo Roderick McIntosh chama de "um vasto
jardim aluvial adjacente ao desolado Saara". Ali, as redes de caravanas do deserto
entraram em contato com rotas de comércio fluvial muito mais antigas. A várzea do
Médio Níger era rica em cereais e outras mercadorias básicas, incluindo argila para
cerâmica, mas, assim como a Mesopotâmia, carecia de pedra, minério e sal. Durante
muitos séculos, agricultores e pescadores mandes da região desenvolveram uma rede
de contatos com outros povos próximos e distantes para suprirem suas necessidades.
Eles também eram participantes ativos do comércio de ouro saariano.
Os povos mandes (o termo se refere à língua comum de muitos grupos) descendem de
povos saarianos, e se estabeleceram no Sahel durante uma série de secas que afetaram
a região, cerca de dois mil anos atrás. Atualmente, os que falam a língua mande ocupam
uma grande área da África Ocidental, que vai da Gâmbia à Costa do Marfim. Eram
lavradores de painço e pastoreavam gado, além de mercadores, que trocavam cobre, sal
e pedras semipreciosas com seus contatos no deserto. Em seu movimento para o sul,
muitos deles colonizaram as bacias férteis do Rio Níger.
Atualmente, as cheias anuais inundam cerca de 55 mil quilômetros quadrados de
charcos e lagos, mas cobriram uma área muito maior em épocas mais úmidas no
passado. O ambiente da várzea é diverso, imprevisível, e constituído por solos e
acidentes geográficos radicalmente diferentes. Ali vivem os bozos, que são pescadores,
e os markas, que cultivam muitas variedades de arroz africano (Oryza glaberrima). Os
bozos estão sempre se mudando, suas vidas são ditadas pelos ciclos de reprodução dos
peixes pequenos e da enorme perda do Nilo. Em algumas ocasiões, até 150 canoas se
reúnem em torno de barragens artificiais, para grandes pescarias. Os markas ajudam
com os peixes grandes. Em troca, os bozos ajudam os markas com a colheita do arroz
durante grandes enchentes, quando a pesca é ruim.
Os markas, agricultores, comerciantes, artistas e músicos trabalham em um ambiente
absolutamente estressante. Diante de uma enchente repentina e de chuvas torrenciais,
o trabalho duro de um ano inteiro pode ser destruído em uma semana. Enchentes tardias
ou prematuras podem deixar os vilarejos arrasados. As chuvas irregulares do início da
temporada de chuva, ou anos de aridez, acabam com os campos que acabaram de ser
preparados, sem contar a depredação causada por roedores e pássaros. Os markas
combatem essas incertezas cultivando inúmeras variedades de arroz. Porém, acima de
tudo, seu sucesso depende de uma reserva de conhecimento sobre previsão do tempo
adquirida através de muitas gerações. Enquanto as qualidades únicas do camelo
forneceram aos líderes das caravanas a possibilidade de driblar os golpes climáticos, os
povos da Bacia do Níger adaptaram sua sociedade ao ambiente hostil e imprevisível com
uma brilhante combinação de engenharia social e observação ritual.
As sociedades que floresceram no Médio Níger milhares de anos atrás prosperaram com
a mudança constante em um lugar onde culturas diferentes viviam em um ambiente
excepcionalmente heterogêneo. Elas prosperaram não apenas cultivando uma grande
variedade de plantações, mas também fazendo uso extensivo da memória social.
Roderick McIntosh chama a Bacia do Médio Níger de "reservatório simbólico", um lugar
em que um corpo compartilhado de valores sociais que se originaram num tempo
remoto sobreviveu por milhares de anos para definir a história e a sociedade. Esse não
era um mundo de reinos altamente centralizados e autoritários, com todo o poder fluindo
para o centro, como foi o caso da antiga Mesopotâmia com sua suas cidades-estado
concorrentes. Não havia hierarquia de poder, como entre os antigos maias ou na Europa
medieval. Poderosos grupos aparentados e povos engajados em atividades de todos os
tipos, vivendo juntos sob um sistema com separação de poderes, que dava a todos uma
autonomia considerável, apoio mútuo e mais chances de sobrevivência no clima
imprevisível das margens do deserto.

Um dos sítios arqueológicos africanos habitados há mais tempo fornece um retrato


revelador do mundo mande. O antigo monte conhecido como Jenne-Jeno se estende por
três quilômetros ao sul da moderna cidade de Jenne, no delta do Rio Níger. A localização
é estratégica, próxima a Bacias onde podia ser cultivado o climaticamente tolerante
Oryza glaberrima, perto de pastagens e planícies abertas, com acesso por barco para o
Niger. Jenne-Jeno provavelmente surgiu quando a secura do Saara expulsou os povos
para suas margens depois do ano 300 a.C. Eles continuaram a viver ali por cerca de mil
e seiscentos anos, em um lugar que permaneceu seco mesmo nos períodos das grandes
enchentes. Poucos lugares no mundo, para não falar da África Ocidental, têm história tão
longa. O assentamento expandiu-se vertical e horizontalmente, passando de cerca de 20
hectares no ano 300 para quase o dobro desse tamanho, três séculos depois. Os povos
de Jenne-Jeno viviam da agricultura, da caça, da coleta de plantas e da pesca; essa
economia de subsistência generalizada mudou pouco ao longo dos séculos apesar do
grande crescimento populacional e da rápida mudança das condições climáticas. Através
da longa história da cidade, seus habitantes mantiveram resolutamente uma economia
altamente diversificada, explorando numerosos microambientes em vez de procurar
aumentar o abastecimento de alimentos com trabalhos de irrigação ou campos
elevados, como foi o caso dos maias, por exemplo.
Em um momento da história posterior de Jenne-Jeno, havia nada menos do que 69
assentamentos na área de quatro quilômetros ocupada pelo assentamento principal. Mas
por que os povos dali e de outros lugares escolheram viver em um amontoado de
vilarejos, em vez de viver em cidades densamente povoadas como as do mundo
islâmico? A razão era o clima. Os mandes conviviam com um cenário de mudanças
climáticas súbitas, potencialmente desastrosas, e construíram sua sociedade em torno
dessa realidade.
Durante séculos, assim revelam as escavações, os povos de Jenne-Jeno mantiveram um
estilo de vida que envolvia agricultura, pesca, horticultura, e se movimentavam nesse
ambiente local quando necessário. Mas estavam longe de ser peões imóveis afetados
por ciclos climáticos de curto prazo. McIntosh acredita que os mandes eram muito mais
proativos, combatendo a imprevisibilidade com a articulação de agricultores e artesãos
especializados como ferreiros em uma economia generalizada. Eles viviam em locais
separados, amontoados, unidos por ligações de parentesco e também por lendas e mitos
poderosos, que forneciam a racionalização para a tomada de decisões. Não havia líderes
carismáticos, elites poderosas ou cidades, não havia exércitos para reforçar a lei e a
ordem e manter esse sistema unido. Em vez disso, uma "máquina do tempo" feita de
crenças e rituais compunha a estrutura que previa chuvas e secas. A memória social,
cuidadosamente preservada por pessoas selecionadas, é o núcleo da máquina do tempo
mande.

Como podemos saber de que maneira as comunidades antigas respondiam à mudança


climática, às mudanças perceptíveis em seu meio ambiente? Nós não podemos
reconstruir a mente dos povos antigos. Mas podemos examinar a memória social mande,
que liga sua existência ao mundo real por meio de mecanismos complexos. As pessoas
certamente tinham uma memória social das mudanças do clima, das secas catastróficas
e enchentes, talvez, como hoje, associadas em suas mentes aos nomes de indivíduos
vitimizados pelo desastre, e até batizados em homenagem a eles, ou a um grupo de
pessoas, como os ferreiros, a quem se atribuíam poderes ocultos. Elas preservam
gerações de conhecimento a respeito de alterações climáticas e condições ambientais,
prevendo geralmente mudanças iminentes e oferecendo estratégias para combatê-las.
Está em causa aqui a questão da autoridade para tomar decisões em relação ao futuro,
onde perigos climáticos e de outros tipos estão à espreita. Quem pode lidar com essas
questões? Em quem acreditar que não irá abusar do perigoso conhecimento a respeito
das mudanças climáticas e das respostas sociais apropriadas para obter ganho pessoal?
Na sociedade mande, o prognóstico climático não é a previsão científica, desinteressada,
de um climatologista. Quem faz as previsões também tem responsabilidades no domínio
da ação social, por isso, suas previsões são uma ligação crítica entre as mudanças do
clima no mundo objetivo e no mundo perceptível onde as pessoas irão agir.
A dinâmica por trás da máquina do tempo mande baseia-se em um conjunto de valores
culturais familiares reverenciados em muitas reproduções de lendas e símbolos.
Inúmeros grupos de interesse compõem a sociedade mande, todos constantemente
negociando a terra e os acontecimentos da história uns com os outros, como fizeram
durante séculos. O resultado é um panorama poderoso do que poderíamos chamar de
memória social, definida tanto pelas tradições orais quanto pelas lembranças de eventos
climáticos e outros. A adaptabilidade fluida de sua sociedade sempre dependeu desse
aspecto social familiar e em constante mudança. Os mandes tinham que ficar atentos e
ser flexíveis em suas respostas ao clima muito complexo, variável e imprevisível do
Sahel. Mudanças violentas, de chuvas abundantes para secas, faziam parte das crises
ecológicas e sociais que moldavam valores fundamentais e transformavam a autoridade.
É por isso que os povos de Jenne-Jeno e outras cidades mandes viviam em
aglomerações, em uma organização flexível que criava paisagens sociais cambiantes,
com maior capacidade para responder às mudanças climáticas do que sociedades
contemporâneas altamente centralizadas como as dos antigos maias ou dos chimus, na
costa norte do Peru.
Os homens e mulheres que tinham maior influência na sociedade mande eram membros
de sociedades secretas. O komo continua a ser uma forma de sociedade secreta,
liderada pelo komotigi, em geral um ferreiro. As sociedades secretas originais eram
formadas por caçadores, muito antes da chegada da metalurgia ao delta do Níger. Um
komotigi tinha a capacidade de ver o futuro; era curandeiro e protetor contra os feitiços
malignos. Astrólogo, podia prever o tempo, e estudava os céus a maior parte dos corpos
celestiais visíveis. Um komotigi entendia o comportamento dos animais e plantas, que
usava para prever se a chuva iria na época necessária para o plantio. O komo continua,
assim como s sociedades altamente secretas de caçadores. Atualmente, existem pelo
menos sete importantes sociedades secretas no Médio Níger.
Os primeiros especialistas da nação mande eram caçadores com aderes ocultos e
autoridade social. Desde épocas muito antigas, esses indivíduos viajavam para lugares
especiais onde eram imbuídos pelos espíritos, e por isso eram poderosos e perigosos. Ali
eles colhiam poder, capacidade de controlar o clima e outros aspectos da vida. Mais de
dois mil anos atrás, com a chegada da agricultura e do trabalho com ferro, os ferreiros se
tornaram importantes portadores de nyama. (Nyama pode ser traduzido livremente por
"força da terra".) Membros das primeiras sociedades secretas, os ferreiros foram atores
centrais durante séculos de resistência mande à hierarquia e à centralização, armados
com um repertório mítico e simbólico que enfrentou pressões sociais e ambientais.
Durante séculos, as sociedades secretas mandes espalharam conhecimento sobre a
paisagem.
Os grandes heróis do folclore mande colhiam o poder da nyama para navegar em
segurança por um mundo perigoso. O ferreiro-curandeiro Fakoli, por exemplo,
empreendeu jornadas para adquirir itens medicinais, como as cabeças de cobras e
pássaros pendurados em seu chapéu de feiticeiro. A busca de Fakoli também foi uma
jornada de conhecimento, que o levou em uma expedição por uma paisagem espiritual e
simbólica. Fanta Maa, herói mítico da cultura bozo, tornou-se um exímio caçador ainda
na infância. Ameaçados de extinção, os animais se reuniram e escolheram uma gazela
para assumir a forma de uma jovem e seduzir Fanta Maa, depois enganá-lo e levá-lo para
morrer no deserto. Mas Fanta Maa usou sua parafernália de caçador para escapar.
Nyama é a energia maligna, se controlada, que flui através de todos os seres animados e
inanimados. Aos olhos dos mandes, as mudanças climáticas ocorriam devido a
perturbações da nyama na paisagem. Gerações de compreensão sobre como a nyama
afetava o ambiente permitiram aos heróis e ao komotigi mandes prever as mudanças do
clima. O mais poderoso entre eles tinha a autoridade espiritual para manipular as forças
que trazem as chuvas ou as secas - ou para matar alguém a distância somente com a
força do pensamento. Assim, indivíduos carismáticos se movimentavam através de uma
paisagem simbólica em que colhiam poder, autoridade e conhecimento. Os caçadores
iam para o deserto em viagens para locais espiritualmente poderosos. Ali eles matavam
animais espirituais. A matança liberava grandes quantidades de nyama, que somente os
melhores caçadores poderiam controlar, e garantiam terras bem regadas para as
comunidades estressadas.
Choupanas usadas nas caçadas ainda são locais onde se venera a sabedoria climática
acumulada por gerações a respeito de recursos em determinadas áreas. Até mesmo
caçadores famosos ainda vão até essas choupanas para adquirir mais conhecimento.
Cursos de água subterrâneos também podem marcar antigas rotas da migração norte-
sul em épocas de mais chuva. Para os agricultores mandes, a paisagem era, e ainda é,
um catálogo de nomes e lugares, prenúncio das mudanças climáticas e das ocupações
humanas, que foram muito bem-sucedidas no combate à seca e às enchentes durante
muitos séculos.
A máquina do tempo mande funcionou bem. Entre os anos 800 e 900, Jenne-Jeno tinha
um quilômetro de comprimento, segundo uma estimativa conservadora, cerca de 27 mil
pessoas morando na cidade e nas 69 comunidades-satélite num raio de quatro
quilômetros. Entre 300 e 700, as precipitações pluviométricas foram cerca de 20% mais
elevadas do que entre 1930 e 1960. Depois do ano 1000, o clima se tornou muito mais
volátil e a cidade sofreu um declínio. As pessoas abandonaram antigas regiões de cultivo
de arroz, depois terrenos mais elevados, e mudaram do arroz para o painço, resistente à
seca; esses deslocamentos foram causados em parte pelas mudanças no regime das
cheias, em época de maior seca. Na vizinha Mema, grandes aglomerados próximos a
canais e depressões cheias de água deram lugar a assentamentos mais isolados,
menores, geralmente em dunas de areia. Por toda a parte do Médio Níger, comunidades
grandes e pequenas se adaptaram às novas circunstâncias, não necessariamente sem
sofrimento, mas tal qual seus antecessores.
Esse, então, foi o ambiente cultural do qual emergiu Gana em torno do ano 700, no fim
de um período de relativa estabilidade climática. As tradições orais mandes falam de um
grande herói, Dinga, avô dos chefes ganianos, brilhante caçador, extrator do nyama.
Histórias antigas descrevem seus movimentos pela paisagem, pelos lugares onde ele
triunfou sobre animais de guarda e conhecimento. Dinga estabeleceu-se em Jenne-Jeno
durante 27 anos, tomou uma esposa, mas não teve filhos. Talvez esse fosse o momento
de forjar sólidas alianças com Jenne, que não estava sob domínio ganiano, mas sempre
foi amigável com sua vizinha. Dinga estabeleceu-se no noroeste, subjugou um espírito
protetor feminino em Dalangoumbé e formou o reino de Gana, provavelmente através de
um longo processo de construção de alianças, de aglomerações de grupos sociais. O
mesmo aconteceu no Sahel, com a criação de grupos consolidados sem rigidez, que
pagariam tributos ao núcleo. Foi assim que o chefe de Gana conseguiu taxar o comércio
de ouro e de outras mercadorias do sul. Ao mesmo tempo, ele manteve uma cavalaria
sempre alerta para lidar com chefes que não queriam cooperar e com nômades hostis e
seus camelos.
Um caçador mande com seu avatar em forma de cobra.

As descrições de Gana feitas pelo geógrafo al-Bakri surgem durante os poucos séculos
de clima estável e relativamente favorável. A Gana que ele descreveu era um reino
fluido, marcado por sua organização heterogênea e flexível, forjada em parte pela
conquista, mas, o mais importante, por seus poderes independentes que sempre fizeram
parte da existência mande. Gana realmente possuía grande riqueza, porém seu maior
tesouro não vinha do ouro ou de coisas materiais, mas das ricas práticas e tradições de
sua cultura nativa, que permitia a seus membros prosperarem em um clima de extremos
impiedosos e violentos.
Diz a tradição que, no fim da vida, Dinga passou seu nyama acumulado para o filho, a
cobra-d'água Bida, gêmea do chefe fundador de Gana, Diabé Sissé. Bida concordou em
fornecer chuva e ouro suficientes de Bambuk, que ficava a vários dias de distância para
sudoeste, se lhe fosse entregue todos os anos a mais bela virgem do reino. Mas houve
um ano em que o pretendente da virgem matou a cobra. A cabeça decepada pulou sete
vezes e foi parar no rico Buré, muito mais perto de Mali. A produção de ouro transferiu-se
de Bambuk para Mali. Sete anos de fome e seca devastaram Gana. O reino desmoronou.
Quando o animal-espírito morreu, o nyama maligno interveio. O fato de Gana ter tido
problemas com seus vizinhos do deserto, assim que terminou o período de relativa
estabilidade climática, não foi uma coincidência.
As tradições orais são a história filtrada pela caprichosa memória humana. Talvez a
história do trágico fim de Bida e as secas que vieram em seguida constituam uma vaga
recordação das violentas oscilações climáticas; quem sabe uma seca memorável tenha
provocado o desaparecimento de um reino sempre flexível. Numa época de crescimento
das conquistas e da influência muçulmana, Gana permaneceu pagã até 1076, quando o
líder almorávida Abu Bakr capturou Koumbi e impôs o islamismo aos seus habitantes.
Um século e meio depois, no leste, o reino de Mali adquiriu proeminência, com o império
do ouro conquistando fama mundial através da peregrinação de Mansa Mussa, em 1324.

CAPÍTULO 5
Inuítes e Qadlunaat

Eles aprontaram o navio e o colocaram no mar. O primeiro lugar a aportar foi o país que
Bjarni vira por último. Eles se aproximaram da praia e lançaram âncora, depois
abaixaram um barco e desembarcaram. Não havia grama à vista, e o interior era coberto
por grandes geleiras, e, entre as geleiras e a praia, a terra era como uma grande laje de
pedra. Pareceu-lhes que aquele era um país imprestável.

- Saga Groenlandesa (século XII)

Ano 1000. O nevoeiro paira sobre as ondas do Estreito de Davis, a oeste da Groenlândia,
compondo um delicado traçado em meio às sombras circundantes. O barbudo capitão
nórdico observa atentamente a escuridão, indiferente ao frio penetrante. A tripulação se
encolhe nos capotes pesados, exceto pelo timoneiro, que comanda o leme de esparrela
na popa. Dois jovens preenchem o tempo afiando suas espadas de ferro, passando
gordura pela superfície brilhante para evitar que enferrujem. A vela quadrada range e
geme com o movimento do barco, subindo e descendo com a ondulação do mar, o casco
flexível contorcendo-se sem esforço com as ondas. O navio navega lentamente, uma
pequena ilha na imensidão indistinta de trevas e ondas capazes de virar um barco. Um
vento frio do norte sopra através da escuridão, permitindo o mínimo de velocidade
náutica, nada mais. Os jovens tripulantes já passaram por situações incertas – esperas
intermináveis no meio de um temporal, dias e dias indo à deriva numa calmaria distante
da terra.
As horas passam lentamente enquanto a neblina adensa, diminui momentaneamente e
depois volta. Por fim, o vento se desloca para leste e fica mais forte. O vento leve se
transforma em boa brisa para velejar. A névoa se dissipa, revelando um horizonte claro e
um profundo mar azul. O timoneiro grita e aponta para a frente. Montanhas irregulares,
cobertas de neve, postam-se corajosamente contra o céu agora brilhante, destacadas
pelo sol de fim de tarde. Um suspiro de alívio coletivo cruza o barco. Se o vento de popa
se mantiver, eles chegarão no dia seguinte a um ancoradouro protegido entre as ilhas a
oeste.
Quando alcançarem a terra, os nórdicos sabem que encontrarão caçadores inuítes, cuja
subsistência é garantida, como sempre foi, pela pesca e por mamíferos marinhos. Eles
vieram à procura do marfim das morsas, mas têm apenas uma coisa em comum com os
habitantes nativos - o ferro.
A Eurásia e o Saara podem ter sofrido com a seca, mas os séculos de aquecimento foram
benéficos para aqueles que viviam no Ártico. No extremo norte, as condições de gelo
foram menos severas, e houve uma onda de navegações nórdicas em direção ao
Ocidente, para a Islândia e mais além. Esta é a história de como as condições favoráveis
no Atlântico Norte e no Ártico Canadense colocaram em contato transitório, durante os
séculos de aquecimento, dois mundos completamente diferentes - o dos nórdicos e o dos
povos inuítes, cuja ascendência chegava até o Estreito de Bering.

Como na Europa, o Período de Aquecimento Medieval trouxe invernos mais amenos e


uma temporada de plantio mais longa em grande parte da Escandinávia. Aumentou a
densidade populacional, gerando escassez de terras e limitando as oportunidades para
os homens jovens. Eles viviam em uma sociedade volátil, dividida por disputas,
partidarismo e violência. A cada verão, "remadores" jovens partiam em grandes barcos
em busca de saques, comércio e aventura. Com a melhora das condições de gelo no
norte e o recuo do gelo do Ártico, os capitães noruegueses, navegadores com longa
experiência na costa, se aventuraram em mar aberto pelo Atlântico Norte.

Localidades mencionadas neste capítulo.

Ao contrário da crença popular, os nórdicos nunca navegaram para longe em seus navios
de guerra. Em vez disso, confiavam no knarr, um navio mercante robusto, capaz de
atravessar o oceano. Os knarrs eram leves, mas fortes, fáceis de consertar no mar ou em
praias remotas. As tripulações se mantinham com o peixe salgado, o bacalhau seco cura-
do nos ventos frios da primavera do Ártico, nas Ilhas Lofoten, junto à costa norte da
Noruega. Quando começou o aquecimento, capitães experientes navegaram para o
oeste por águas desconhecidas, exceto para um grupo de monges irlandeses que
haviam viajado até a Islândia em grandes umiaques algumas gerações antes. Poucas
tripulações aventureiras escreveram a respeito de suas experiências, que passaram para
as lendas celebradas pelas sagas nórdicas. Muitos navios jamais retornaram,
naufragando nas costas depois de ficarem retidos por causa das tempestades, ou
afundando sem deixar rastro devido a temporais em mar aberto. No entanto, colonos
nórdicos se estabeleceram nas Ilhas Orkney e Shetland, na costa norte da Escócia, no
início do ano 800, e nas Ilhas Faroe: pouco depois. No ano 874, o norueguês Ingólf
aportou na Islândia. No ano 900, os colonos tinham se estabelecido na ilha, levando sua
economia de laticínios. Nessa época, os invernos foram mais amenos do que haviam sido
durante séculos. Atualmente, os limites ao sul da massa de gelo do norte ficam a cerca
de 100 quilômetros da costa norte da Islândia; quando os primeiros colonos nórdicos
chegaram, o gelo tinha pelo menos o dobro dessa distância. Mesmo sob condições mais
amenas, a vida na Islândia era dura, especialmente depois de um inverno frio. Os
colonos combinaram os laticínios com a caça às focas e a pesca costeira do bacalhau. Os
verões mais amenos permitiram que cultivassem feno como forragem de inverno e
plantassem cevada até o século XII, quando condições mais frias tornaram novamente
impossível o cultivo de cereais até o início dos anos de 1900.
Por volta do ano 985, Erik, "o Vermelho", banido da Islândia por causa de brigas
familiares que resultaram em assassinato, navegou em direção ao Ocidente e aportou no
sul da Groenlândia. Ali ele encontrou pastagens melhores do que havia em casa. Em
pouco tempo, floresceram duas colônias, uma nas águas protegidas da costa sudoeste e
outra mais ao norte, no atual distrito de Godthab, na parte superior do Ameralik Fjord.
Os colonos viram-se em uma costa sem gelo durante quase todo o verão, naquela
época, aquecida pela corrente quente da Groenlândia que vinha do norte para abraçar a
praia. Essa corrente favorável levava os barcos de pesca dos colonos até os fiordes e
ilhas ao redor de Disko Bay, para um lugar em que abundava o bacalhau, as focas, as
narvais e as morsas. Ali, no que chamavam de Nordrsetur, juntaram marfim suficiente
para pagar, durante muitos anos, os dízimos às autoridades diocesanas na distante
Noruega.
A corrente da Groenlândia Ocidental caminha em direção ao centro do Nordrsetur e
Baffin Bay, onde dá lugar às correntes mais frias, que vêm do sul. Um simples passeio
pela costa teria mostrado aos nórdicos as montanhas cobertas de neve da Ilha de Baffin,
do outro lado do Estreito de Davis, que tem pouco mais de 325 quilômetros em seu
ponto mais estreito. As águas mais frias no lado oeste do estreito, ao longo da Ilha de
Baffin, Labrador e Terra Nova, são submetidas a uma estação fria mais longa, que forma
uma cobertura de gelo capaz de durar até o verão. Porém, durante os séculos mais
amenos do Período de Aquecimento Medieval, quando a camada de gelo se dispersava
relativamente cedo, a movimentação pelas margens orientais pode ter sido
consideravelmente mais fácil e menos perigosa.
Não sabemos quando os primeiros navios nórdicos chegaram à Ilha de Baffin, mas pode
ter sido antes da primeira vista documentada de Labrador, feita por Bjarni Herjólfsson
por volta do ano 985. Perdido no nevoeiro em meio aos ventos leves do norte, numa
passagem da Islândia para a Groenlândia, ele acabou avistando uma costa baixa coberta
por floresta muito diferente das montanhas geladas de seu destino pretendido. Voltou
sem ter desembarcado e foi criticado por isso. Posteriormente, seguiu-se a famosa
viagem de Leif Erikson, filho de Erik, "o Vermelho", que ancorou junto a uma costa
rochosa coberta de gelo; seguiu depois para o sul, com ventos de nordeste em
"Markland", na costa sul de Labrador, até chegar à boca do Rio St. Lawrence; depois,
mais para o sul em uma área ao sul do grande estuário, que ele chamou de Vinland, por
conta das uvas selvagens que encontrou ali. Fundou um pequeno assentamento em L'
Anse aux Meadows, na península setentrional do que hoje é a Terra Nova. O
assentamento continuou sendo utilizado durante anos.
Expedições posteriores, em busca da madeira de Labrador, entraram em contato com
numerosos nativos, o povo beothuk, que os combateram com tamanha ferocidade que
os nórdicos nunca se estabeleceram permanentemente na costa ocidental. "Quando eles
se aproximaram houve uma batalha feroz e uma chuva de projéteis veio voando", dizem
as Vinland Sagas. Durante dois séculos, navios da Groenlândia navegaram na direção
norte e oeste, utilizando posteriormente as correntes favoráveis para costear em direção
ao sul. Assim que construíam os barcos, ou simplesmente adquiriam a madeira, iam
direto para casa nas asas dos ventos de sudoeste. Os nativos e recém-chegados parece
que se evitavam.
Viajar pelas costas orientais do Estreito de Davis e pelo Labrador era perigoso, mesmo
nos séculos mais quentes. As tripulações enfrentavam nativos americanos hostis, ursos
polares, icebergs e tempestades repentinas junto à costa em águas reconhecidamente
castigadas pelo vento. A navegação nas águas geladas e próximas à costa era muito
mais perigosa para os nórdicos em seus barcos de madeira do que para os inuítes, com
seus umiaques e caiaques leves, que podiam ser retirados da água facilmente, eram
relativamente imunes a furos e fáceis de consertar. O gelo formado pela queda brusca
da temperatura poderia destruir um knarr em minutos, mesmo no verão. Tanto quanto
possível, os nórdicos mantinham-se longe das margens de gelo, que se desfazia durante
o verão. Contudo, apesar de todos os perigos, o bacalhau em abundância e as condições
mais amenas permitiam que os groenlandeses viajassem livremente pelo Estreito de
Davis e através dos canais estreitos do arquipélago canadense. Ali eles encontraram os
caçadores inuítes, que lhes deram as boas-vindas porque desejavam o que para eles era
uma substância exótica: o ferro. Ao contrário dos beothuks de Labrador, os inuítes
faziam parte de um mundo ártico muito maior, ligado por redes de comércio informal a
outros grupos de caçadores com ancestrais comuns que se estendiam até o Estreito de
Bering.
Podemos então examinar esse comércio voltado para o Ocidente e fazer uma conexão
com os séculos de aquecimento?

Ano 1000. O Estreito de Bering é uma vastidão sombria de ondas cobertas de gelo. O
vento está tranqüilo, a temperatura congelante e a superfície da água levemente
agitada. Acima pairam nuvens baixas. O caçador está sentado, absolutamente imóvel,
em seu caiaque de pele, os olhos examinando silenciosamente o oceano escuro. O
equipamento de caça está à mão, o remo mal toca a água. A vida na água é sua
segunda natureza, muitas vezes mais confortável do que na terra.
Uma cabeça preta aparece momentaneamente na superfície. Uma foca olha ao redor
inquisitivamente. O caçador espera. Sua presa desaparece sob a água, restando apenas
uma leve agitação. Começa a familiar vigília, o bote parado na água. Enquanto espera, o
caçador checa seu arpão e a bobina de linha ligada ao cabeçote afiado. A espera se
estende desde a manhã até a noite, Ele vê a foca novamente a alguma distância; ela
desaparece de novo. Ele rema suavemente até o centro da ondulação e volta a esperar.
De repente, a presa ressurge dentro dos limites do arpão. O esquimó atira. A ponta de
ferro penetra na foca, que afunda imediatamente. A linha flutua enquanto o eixo se
separa do cabeçote. Por algumas horas, o caçador segue o ondear agitado enquanto a
presa vai enfraquecendo até morrer. Quando a carcaça vem à tona, ele a puxa para seu
caiaque e vai para casa.
O Estreito de Bering é um lugar inóspito, implacável, onde os invernos podem durar nove
meses no ano, Uma neblina densa cobre o oceano de cor cinza durante dias a fio,
reduzindo a visibilidade para alguns poucos metros, Ventos uivantes sopram através da
neblina. A não ser pelo breve verão, massas de gelo partidas entopem os estreitos,
lançando-se ocasionalmente para a praia em tempestades violentas. A costa da Sibéria é
o lado mais acidentado, com escarpas íngremes e pontos de referência bastante nítidos.
Planícies costeiras baixas, inúmeros lagos e planícies baixas marcam o lado do Alasca. A
melhor caça a mamíferos marinhos está nas praias ocidentais, protegida por
promontórios estratégicos, Mil e duzentos anos atrás, quando os knarrs nórdicos
estavam cruzando o Atlântico Norte pela primeira vez, sociedades sofisticadas, baseadas
na caça de renas e de animais marinhos, prosperaram tanto na costa asiática quanto na
americana desse mundo duro e exigente.

Temos poucas informações a respeito das flutuações climáticas no Estreito de Bering


durante o Período de Aquecimento Medieval. Ventos de sul prevaleceram muitas vezes
por várias décadas, e até séculos, durante períodos de clima mais quente. No entanto,
invernos mais frios trouxeram ventos mais fortes do norte e tempestades violentas. Por
isso o padrão dos assentamentos mudava, favorecendo costas voltadas para leste ou
oeste de acordo com as mudanças nas condições climáticas. Com condições mais
quentes, entre o ano 1000 e 1200, a temporada de mar aberto foi maior, com mais
canais estreitos - "passagens" - através da massa de gelo onde os caçadores podiam
preparar emboscadas para os animais marinhos. O clima ainda era selvagem, mais frio
em alguns lugares, mais quente em outros, com mais tempestades em uma costa,
condições mais tranqüilas em outra. Uma temporada de gelo mais longa e de mais mar
aberto permitia que as pessoas se movimentassem livremente, caçassem animais
marinhos por extensões mais amplas e comercializassem com mais tranqüilidade. Ao
contrário da Europa medieval, não houve benefícios universais com as condições mais
quentes. Cada ano foi diferente, alguns com muito gelo, outros com mar aberto durante
meses. Para sobreviver nesse ambiente desafiador, era necessário um nível de
adaptabilidade e oportunismo quase incomparável no mundo antigo.
Em muitos aspectos, um grau ou dois de aquecimento climático era irrelevante para as
pessoas que viviam em um mundo onde o frio era a norma, onde o gelo e o inverno
incansável faziam parte da existência diária. Ao contrário dos nórdicos, os povos nativos
do Ártico haviam herdado a adaptação ao frio extremo de seus ancestrais remotos da
Idade da Pedra e passaram essas habilidades de uma geração a outra. Eles eram
adaptáveis o suficiente para serem imunes até mesmo às maiores flutuações climáticas.
Ao contrário dos inuítes, os nórdicos nada sabiam a respeito da vida no Ártico e estavam
à mercê do gelo no Atlântico Norte. Em suas viagens para o Ocidente, talvez nunca
tivessem chegado até a Groenlândia e o arquipélago do Canadá se não fosse pelos
séculos de aquecimento.
Os grupos de caça de Bering desenvolveram uma notável habilidade com os caiaques de
pele e os umiaques. Os esquimós, como os aleútes mais ao sul, começavam a remar
praticamente na infância. Eles se protegiam do frio usando seus caiaques como se
fossem roupas de pele, mas a eficiência desse artefato de guerra dependia do
desenvolvimento de armas de caça muito mais eficientes do que os simples arpões. Em
algum momento, durante o primeiro milênio a.C., os caçadores do Estreito de Bering
desenvolveram uma tecnologia revolucionária para a caça de animais marinhos baseada
nos arpões articulados. Assim como o arado de ferro revolucionou a agricultura na
Europa, o arpão articulado também mudou a vida no Ártico antigo. (As cabeças eram
originalmente feitas de marfim, é claro, e não de ferro.) No arpão convencional, a cabeça
se soltava do eixo quando atingia a presa. Mas freqüentemente saía da ferida quando a
caça mergulhava e lutava. Em contrapartida, o arpão articulado, que também se soltava
quando atingia sua presa, tinha uma ponta giratória que se fixava sob a pele e a camada
de gordura de forma que não podia ser solta com movimentos violentos ou no contato
com o gelo. Os novos arpões eram especialmente eficientes contra as baleias e os
grandes mamíferos aquáticos quando utilizados a partir dos umiaques e caiaques, barcos
de pele grandes e leves.
Com o passar dos anos, os arpões com ponta de marfim tornaram-se cada vez mais
elaborados, às vezes com rica decoração. O mesmo material era usado para fazer
boquilhas e plugues utilizados para retirar os animais mortos da água. O marfim era um
bom material para a cabeça do arpão, mas não se comparava ao ferro, exótico e caro,
que chegou da Ásia pela primeira vez à região do Estreito de Bering cerca de dois mil
anos atrás (a data precisa é incerta).
No ano 900, a caça às baleias se transformara em arte, executada por equipes de
barqueiros e caçadores especializados em umiaques. Eles perseguiam as baleias
migratórias por corredores estreitos de gelo na primavera e em mar aberto no outono.
Nos verões mais quentes, como os que se tornaram mais comuns perto do fim do
milênio, as condições em mar aberto eram tais que os capitães podiam acompanhar as
migrações das baleias por longas distâncias através do estreito e ao longo da costa do
Oceano Ártico para o leste. O contato entre o leste e o oeste parece ter se tornado mais
regular nos séculos de aquecimento, quando os nórdicos aportaram na Ilha de Baffin.
Erkven Village, East Cape, Sibéria, ano 1100. O fogo que arde enche a casa de fumaça
que paira sobre a barbatana de baleia acima dos dois capitães de baleeiros. Eles
conversam em voz baixa, um deles é local e o outro veio do outro lado do estreito, de
um vilarejo chamado de Ipiutak, perto do que é hoje o Point Hope, um lugar com
poderosas associações sobrenaturais. O visitante, tendo aproveitado o bom tempo do
final do verão para atravessar a água, chegou há algumas horas. Ele programou muito
bem sua visita, pois um forte vento de sul agora castiga o estreito. Terá que esperar
alguns dias antes de poder seguir para seu próximo destino no sul.

Um arpão articulado penetra na presa, soltando-se do eixo da ponta (uma ligação


intermediária com o eixo principal do arpão), e gira para o lado, provocando
sangramento interno e fazendo com que seja praticamente impossível para o animal
libertar-se do arpão. A cabeça fica ligada a uma linha e a uma bóia, de forma que o
caçador consegue localizar o animal ferido.

Os dois homens são parentes, ambos habilidosos caçadores de baleias, e o visitante é


também um venerado xamã, muito conhecido por seus poderes espirituais. Seus
homens descarregaram uma carga de peles de rena, agora empilhadas perto do fogo. O
anfitrião revira um saco de peles de foca e retira uma bela ponta de lança feita de ferro,
que brilha com a luz do fogo. O visitante a examina atentamente, passando o dedo pela
ponta afiada. Balança a cabeça e começa a barganha. No final, uma faca, algumas
outras pontas, e um monte de minério escuro estão no chão entre os dois capitães. Os
dois lados barganharam bastante, mas ambos estão satisfeitos, pois as peles de rena, e
especialmente o ferro, estão em falta.
O que resta de Erkven está na costa de Chukotka, no Estreito de Bering, ao sul do Cabo
Dezhnev (East Cape) no extremo leste da Sibéria, ponto mais próximo do Alasca,
prontamente avistado da praia em dia claro. Há um cemitério no alto de uma colina,
algumas centenas de metros atrás do assentamento. Os restos de mais de trezentas
pessoas foram trazidos do local do sepultamento. O conteúdo dos túmulos revela a
existência de diferenças sociais agudas em Erkven. Três tumbas continham dois terços
dos arpões dos cemitérios. Um dos esqueletos jazia com notável estoque de
equipamento de caça de focas e pássaros, incluindo dez arpões, pontas de lança,
quebradores de gelo e acessórios de chapéu de madeira. Também havia enterros
múltiplos, provavelmente de servos ou escravos, alguns deles talvez vítimas de
sacrifícios.
O arqueólogo Mikhail Bronshtein estudou os instrumentos de osso e marfim ricamente
decorados encontrados no cemitério e acredita que os motivos de animais fantásticos e
outros artifícios são sinais que distinguem diferentes comunidades e grupos familiares de
toda a região do Estreito de Bering. Alguns túmulos eram de moradores do vilarejo.
Talvez os outros fossem de visitantes, como mercadores, ou de esposas trazidas de
outras comunidades. Uma elaborada rede de interconexões políticas e sociais parece ter
ligado as comunidades do Mar de Bering à longa distância, todas vivendo dos recursos
marinhos dos oceanos do Ártico. Podemos imaginar as divisões e a violência esporádica
que marcaram essas sociedades, as lutas e disputas que assumiam proporções
ameaçadoras durante os longos meses de total escuridão do inverno. Elas competiam e
lutavam por rotas de comércio e territórios de caça, por causa de insultos que
envenenavam o espírito por muitas gerações.
Quando Bronshtein examinou os objetos, descobriu que as linhas e traçados feitos nos
ossos e no marfim eram tão finos e intrincados que só poderiam ter sido elaborados com
instrumentos de corte e entalhe com pontas de ferro. Ele acredita que a maioria dos
artefatos feitos de marfim, chifres e madeira das antigas culturas do Mar de Bering foi
criada com instrumentos de ferro, de forma que esse foi um material vital para os
artesãos de dois mil anos atrás e para os que vieram depois.
No início, o ferro do Estreito de Bering talvez viesse das feiras do interior, bem como das
rotas comerciais ao longo da costa. Vilarejos estrategicamente situados, como Erkven,
estavam em boa posição para controlar todos os tipos de comércio, especialmente
aqueles de mercadorias valiosas como o ferro. Não sabemos quanto ferro passou de mão
em mão pelo estreito, mas é bem provável que tenham sido grandes quantidades. Isso
poderia explicar a rapidez com que os grupos esquimós aceitaram a tecnologia do ferro
e os artefatos após o contato tardio com os europeus. O ferro já era um artigo conhecido,
extremamente útil e valorizado, muito antes de o explorador russo Vitus Bering ter
navegado pelo estreito que leva seu nome, em 1728.
Na época em que houve um ligeiro aquecimento no Ártico, as sociedades altamente
competitivas do Estreito de Bering haviam desenvolvido uma fome insaciável pelo ferro.
Quase tudo era proveniente de fontes asiáticas. Então, gradualmente, alguns objetos de
ferro podem ter vindo da direção oposta, de terras esparsamente habitadas a milhares
de quilômetros de distância, no arquipélago do Canadá e na Groenlândia.

Leste do Yukon, uma vasta área de terras baixas, território ondulante que se estende
para leste em direção ao distante Oceano Atlântico. Uma grossa camada de gelo cobria
essa terra rochosa, envolta por geleiras, há apenas quinze mil anos. A Baía de Hudson é
o marco dominante, pouco mais do que uma bacia rasa. Esse terreno improdutivo do
arquipélago canadense, obstruído pelo gelo, fica ao norte da região principal, separado
por uma pequena distância da Groenlândia, com sua vasta cobertura de gelo. Em todo
esse mundo impiedosamente frio, raramente há mais de três meses sem gelo por ano.
Mesmo nos séculos de aquecimento, o subsolo teria permanecido congelado, coberto por
pântanos e brejos nos meses de verão, de forma que a viagem por terra teria sido difícil
na melhor das hipóteses. Essas dificuldades teriam sido agravadas por enxames de
mosquitos. A cobertura vegetal é esparsa, mas era possível caçar renas e bois
almiscarados, assim como pequenos animais e pássaros. Porém, os ricos recursos do
Oceano Ártico garantiam uma fartura de alimentos para as pequenas populações tuniits
que foram para leste a partir do Alasca ao longo da costa e para o arquipélago há cerca
de cinco mil anos.
Os tuniits eram fortes, seres habilidosos que sobreviveram em alguns dos ambientes
mais hostis da terra com a mais simples das tecnologias. O arqueólogo canadense
Moreau Maxwell descreveu certa vez o que deveria ter sido a vida em suas pequenas
tendas de couro de boi almiscarado, equipados com pequenas fornalhas nas profundezas
do inverno, por volta de 1700 a.C. O cheiro forte das lamparinas de óleo de foca dentro
das tendas impregnava tudo. "Os duros meses de inverno deveriam ser passados em um
estado de semissonolência, com as pessoas deitadas debaixo de peles quentes e grossas
de boi, os corpos bem juntos uns dos outros, e com a comida e o combustível à mão."
Todos limitavam as saídas ao mínimo possível e basicamente hibernavam.
A cultura tuniit desenvolveu-se lentamente durante muitos séculos. Essa cultura Dorset,
como é chamada pelos arqueólogos, estava sempre se movimentando, indo para o norte
nos séculos mais quentes, recolhendo-se diante de condições mais frias. Acima de tudo,
eram caçadores de focas, que também pegavam renas. Durante os séculos de clima
mais frio, desenvolveram nova caça no gelo e métodos de pesca que lhes permitiram
adquirir alimentos no meio do inverno, em vez da semi-hibernação de seus
predecessores. Eles tinham apenas a lança mais básica, e nenhum arco-e-flecha, assim
como não tinham barcos sofisticados ou arpões articulados dos povos do Mar de Bering.
Sua caça dependia da vigília atenta e da infinita paciência que lhes permitia aproximar-
se da presa e matá-la com um simples arremesso da lança. Essas armas eram valiosas
para a caça através de furos na camada de gelo, especialmente depois do ano 1000 e
durante os séculos de aquecimento, quando os caçadores começaram a usar armas com
pontas feitas com o ferro forjado, puro, e extremamente raro da região do Cabo York,
obtido devido a uma chuva de meteoros que caiu sobre a Terra há pelo dez mil anos.
Outros grupos exploraram o cobre nativo proveniente da região do Rio Coppermine no
Ártico Central.
Tanto o ferro do meteorito quanto o nativo tinham grandes vantagens sobre o osso e o
marfim - as armas com ponta de metal eram mais fortes e letais - e por isso esse metal
era tão precioso. A julgar pelas medições das ranhuras em instrumentos de osso
abandonados, o precioso ferro era reciclado muitas vezes. Pelo menos um pouco desse
ferro estava nas mãos de capitães de pequenos barcos baleeiros. Mais de 46% dos ossos
encontrados em uma residência com instrumentos de caça à baleia, em um
assentamento dos thules em Qariaraqyuk, na Ilha de Somerset, haviam sido equipados
com lâminas de metal. Em uma casa menor das proximidades, 9,6% dos instrumentos
haviam tido lâminas de metal; todos esses artefatos eram usados para a caça em terra
firme. Pequenas quantidades de ferro foram passando lentamente de mão em mão por
distâncias enormes, chegando em alguns casos a 600 quilômetros de distância da sua
origem. Com o tempo, um pouco do minério, ou artefatos feitos com ele, pode ter
viajado para oeste e alcançado grupos famintos pelo metal no Estreito de Bering.
É provável que sempre tenha existido algum tipo de contato entre o Estreito de Bering e
pontos a leste, mas foi durante o Período de Aquecimento Medieval que essas ligações
aumentaram significativamente.

Como os nórdicos, capitães empreendedores que comandavam suas canoas pelo Estreito
de Bering eram dotados de curiosidade insaciável e estavam famintos por novas
oportunidades comerciais. O aquecimento posterior ao ano 1000 teria trazido mais
semanas livres de gelo, assim como corredores mais largos entre o gelo, ao longo dos
quais os barcos de pele poderiam passar em segurança em busca dos mamíferos mari-
nhos e baleias migratórias. Com maior abundância no suprimento de alimentos, as
populações locais devem ter aumentado, o que por sua vez deve ter levado os capitães
baleeiros a procurar novos locais para a caça. E com as condições mais favoráveis, os
umiaques podiam seguir as baleias da Groenlândia por mar aberto e por amplas
passagens sem gelo quando migravam para leste pelas costas do Ártico canadense e
para o arquipélago. As baleias da Groenlândia, Balaena mysticetus, são baleias-francas
do Ártico com cabeça em forma de arco que chega a 40% do comprimento do corpo.
Elas vivem perto da superfície e se movimentam em pequenos grupos, durante a
primavera e o verão, e em grandes grupos durante o outono.
Em 1921-24, Knud Rasmussen, um estudioso groenlandês, liderou uma expedição feita
com trenós puxados por cachorros, da Groenlândia até o Alasca, estudando grupos
inuítes e fazendo escavações em sítios arqueológicos ao longo do caminho. Para sua
surpresa, os arqueólogos, comandados por Therkel Mathiassen, desenterraram uma
cultura muito diferente daquela dos inuítes vivos. Eles identificaram uma sociedade até
então desconhecida, de mil anos atrás, em casas abandonadas perto de Thule, no
noroeste da Groenlândia. Logo depois, encontraram sítios semelhantes em uma enorme
faixa do Ártico que vai do Estreito de Davis até o norte do Alasca. Esses povos thules
foram os caçadores de baleias e mamíferos marinhos que atravessaram o Alto Ártico
durante o Período de Aquecimento Medieval; caçadores tão bem-sucedidos que
estabeleceram comunidades permanentes de inverno, com casas de pedra e turfa com
vigas de ossos de baleia no teto.
A migração thule do ano 1000 passou para a literatura acadêmica como um movimento
de caçadores de baleias que se deslocaram rapidamente para leste, ao longo da costa
do Ártico a partir do Estreito de Bering, perseguindo as baleias da Groenlândia que
prosperaram nas águas mais abertas durante os séculos mais quentes do Período de
Aquecimento Medieval. Na verdade, os eventos por trás da migração podem ter sido
muito mais complexos, envolvendo não apenas a caça às baleias, mas também a
procura do ferro.
Em que medida o aquecimento desempenhou um papel importante no movimento do
povo thule para leste, a partir do Alasca, é algo que não sabemos. Existem algumas
indicações de que os dois séculos mais quentes também trouxeram fortes ventos do
Norte e muitas tempestades. Porém, quaisquer que fossem as condições, os thules e
seus ancestrais do Estreito de Bering foram mais do que capazes de sobreviver
confortavelmente, de se adaptarem sem muito esforço ao frio e ao calor maior. Não
podemos ter certeza se foi o ferro ou as baleias o que motivou pequenos grupos desses
povos a navegar por milhares de quilômetros. As baleias com certeza foram um
elemento crítico, e continuaram assim. Mas o verdadeiro chamariz pode ter sido o ferro
do meteorito de Cape York, e também forasteiros do outro lado do oceano, que
aparentemente possuíam o precioso metal em abundância. No mundo ártico, onde as
pessoas cobriam longas distâncias e onde o conhecimento a respeito das condições do
gelo, da migração das baleias c das colônias de animais marinhos era extremamente
importante, podemos ter certeza de que os thules, como os tuniits, tinham ouvido
histórias a respeito dos misteriosos qadlunaats, estranhos de olhos azuis que vinham do
outro lado do mar, que usavam armas de ferro e tinham boa quantidade desse metal, e
às vezes se dispunham a fazer negócios com ele.
O enredo fica mais complicado quando percebemos que os primeiros sítios thules
encontram-se no extremo Alto Ártico e costas adjacentes presas pelo gelo aos depósitos
de ferro do meteorito de Cape York. Nesses primeiros assentamentos foram descobertos
não só o ferro do meteorito, mas também fragmentos de ferro e outros artefatos
nórdicos que só podem ter vindo da Groenlândia. Além disso, os artefatos desses
assentamentos thules são idênticos aos instrumentos utilizados pelas comunidades ao
redor do Estreito de Bering. O arqueólogo canadense Robert McGhee e outros acreditam
que isso pode ser um sinal de que os povos da região do Estreito de Bering seguiram
rapidamente pelo norte até a região de Cape York, num esforço para assumir o controle
sobre as fontes do ferro, em uma época de clima mais quente e condições de gelo talvez
mais favoráveis. A datação por radiocarbono dos primeiros sítios thules no leste indica
que os assentamentos começaram em algum momento entre o século XII ou XIII, numa
época em que os assentamentos nórdicos na Groenlândia gozavam de prosperidade
considerável, quando a fronteira do verão ia até o extremo norte da Islândia, e as
condições para viajar no Atlântico Norte eram relativamente tranqüilas durante o verão.
Uma vez estabelecidos no leste, os grupos thules espalharam-se gradualmente por todo
o leste do Ártico. Suas tradições orais falam sobre como eles mataram ou expulsaram os
tuniist quando assumiram o controle das fontes de ferro. Nos séculos XIII e XIV, os
últimos assentamentos tuniits foram abandonados. Também houve um momento em que
bandos de thules seguiram para o sul a partir do noroeste, entraram em contato com
comunidades nórdicas e coexistiram com elas. Nenhum dos lados se esforçou para
expulsar o outro, pois podiam oferecer um ao outro mercadorias que não poderiam ser
obtidas de outra maneira.

Podemos imaginar a cautela da tripulação ao aportar, alinhando o knarr na baía sem


gelo. Eles mantêm os arcos perto das mãos diante da aproximação de três caiaques. Os
remadores gesticulam na direção das águas mais rasas perto da costa, onde os nórdicos
podem ancorar com segurança. Assim que baixam a âncora, os três inuítes seguram na
beiradas e pulam a bordo. Eles não têm medo, pois já fizeram negócios com este barco
antes. Eles trocam presentes - alguns pedaços de lã muito colorida e um belo dente de
morsa. O mais novo dos inuítes aponta para os pregos de ferro que prendem a madeira e
admira as espadas de ferro nas bainhas. Ele nunca tinha visto tanta coisa com o precioso
metal.
O intercâmbio prossegue lentamente quando o capitão e alguns remadores atentos
chegam à praia em seus pequenos barcos. Os inuítes exibem os dentes de morsa diante
de suas casas de inverno. De sua parte, os nórdicos desamarram trouxas de lã e peças
de ferro. Não lanças ou armas novas, mas rebites de velhos barcos, fragmentos de
correntes, punhados de pregos, e fragmentos de tiras de metal usadas em barris,
material descartado em casa ou substituído durante a construção dos navios no último
verão no Labrador, mas de imenso valor nesse lado do Estreito de Davis. Após a partida
dos nórdicos, eles transformarão uma parte do ferro em lanças e pontas de arpão, mas a
maior parte é simplesmente guardada como material valioso e exótico.
Depois de vários dias, os nórdicos partem com uma carga de marfim, deixando para trás
alguns objetos de ferro, um velho capacete de aço e boa lã tecida durante o inverno na
Groenlândia. Pelo que todos lembram, os qadlunaats chegavam no verão, não todos os
anos, mas quando as condições do gelo permitiam, e sem aviso. Por muitas gerações, os
inuítes passaram a depender desse comércio para obter a mais preciosa de todas as
mercadorias: o ferro. É de se presumir que tenham estocado pilhas de dentes de marfim
de morsa enquanto aguardavam as raras visitas.
Alguns poucos artefatos nórdicos foram encontrados em assentamentos nativos na Ilha
de Ellesmere no Alto Ártico. Os artefatos de Ellesmere incluem cobre e ferro não nativos,
fragmentos de correntes e ferramentas de carpinteiros, além de pedaços de pregos
usados nos barcos, fragmentos de tecidos de lã, e algumas peças entalhadas com
imagens de nórdicos. Há até alguns pedaços de fundos de barris de madeira
reaproveitados.
As escavações em assentamentos inuítes em Nunguvik na Ilha de Baffin contam mais
coisas. Incluem fios de lã idênticos a alguns fragmentos de lã encontrados no
Assentamento Ocidental, a comunidade nórdica mais setentrional da Groenlândia. Há
fragmentos de pinho do final do século XIII ou início do XIV. Ali, o pinho não aparece na
praia como madeira flutuante. Dois pedaços têm furos com o que parecem ser marcas
de ferrugem de pregos de ferro. As descobertas feitas neste sítio são consideradas
evidências do contato direto entre os nórdicos e os povos nativos, em vez de objetos
passados de mão em mão por meio de longas distâncias. Cerca de mil quilômetros para
o sul, em dois sítios na Ilha de Baffin foram encontrados cordame nórdico e pedaços
pequenos de fios de lã.
A dispersão de artefatos por uma vasta área do esparsamente habitado Ártico
canadense comprova contatos mesmo que esporádicos entre os nórdicos e os inuítes. As
referências mais antigas a esses contatos aparecem em um texto do século XII, a
Historia Norgeviae: "Além da Groenlândia, ainda mais para o norte, os caçadores
encontraram pessoas de pequena estatura chamadas skraelings... Eles não sabem usar
o ferro, mas empregam dentes de morsa como mísseis e pedras pontudas no lugar de
facas" Não se sabe até onde eventualmente chegaram esses artefatos. Mas não há
motivo para que um punhado deles não tivesse chegado ao Estreito de Bering durante
os séculos de aquecimento.
Naquela época, os inuítes, que eram exímios caçadores de morsas, ocupavam as costas
e ilhas do Ártico canadense, até o canto noroeste da Groenlândia, ao norte da Baía de
Melville, Nessa região, chamada de Helluland por ninguém menos que Leif Erikson,
abundavam as morsas, cujo marfim era uma mercadoria preciosa para os colonos. A
Groenlândia era muito fria, mesmo nos séculos de aquecimento, para o cultivo de
cereais. Por isso, os colonos dependiam de uma economia baseada em laticínios, da
plantação de feno para forração no inverno, e também da pesca e caça aos mamíferos
marinhos, especialmente quando temperaturas mais frias desceram sobre o norte
durante o século XIII. Em 1262, a Groenlândia, como a Islândia, passou a pagar tributos
para a Noruega, mas o verdadeiro elo entre os groenlandeses e seu país de origem era a
Igreja. O primeiro bispo a viver na Groenlândia chegou por volta de 1210 e fixou
residência em Gondar, no sul. Durante gerações, os groenlandeses pagaram dízimos
para a Igreja norueguesa em mercadorias valiosas - panos tecidos com lã de ovelhas,
peles do Ártico, falcões vivos para os reis europeus e islâmicos praticarem seu esporte,
cordas para os barcos e acima de tudo marfim de morsa e narval. Só em 1327,
funcionários da Igreja relataram um imposto especial para as Cruzadas de
aproximadamente 650 quilos de marfim, que teriam exigido a morte de cerca de 200
morsas.
As obrigações para com o dízimo exigido pela Igreja fizeram com que os nórdicos
avançassem para o norte e entrassem em contato com os povos nativos do Ártico
canadense. Por muitas gerações, desenvolveram-se complexas relações comerciais entre
os nórdicos e seus vizinhos nativos, alimentadas por duas mercadorias - o marfim de
morsa e o ferro. Com um dízimo que exigia mais de quatrocentos dentes de marfim por
ano, os nórdicos precisavam de muito mais marfim do que podiam obter no entorno dos
assentamentos. Seus contatos com inuítes eram na melhor das hipóteses esporádicos,
mas eram vantajosos para ambas as partes, Os caçadores eram povos da costa, muito
mais interessados no comércio do que em expulsar os colonos. Somente depois de uma
série de invernos muito intensos e verões atipicarnente frios entre 1340 e 1360, bem
documentados em núcleos de gelo na Groenlândia, é que os colonos de assentamentos
do extremo norte abandonaram suas propriedades e se mudaram para o sul para se
juntarem a parentes no ambiente mais hospitaleiro do Assentamento Oriental. Com o
abandono dos assentamentos do norte devido ao frio crescente, o comércio de marfim
acabou. Como o marfim era a principal fonte de riqueza dos groenlandeses, eles devem
ter achado cada vez mais difícil manter qualquer relacionamento econômico com a Euro-
pa. Os pagamentos dos dízimos para a Igreja foram encerrados com a piora das
condições de gelo e rompidos os vínculos com a Noruega. Em 1370, terminou a prática
do envio anual de um barco da Noruega para a Groenlândia. O último bispo morreu em
Gondar, naquele mesmo ano, e não foi substituído.
Os inuítes também haviam se tornado cada vez mais dependentes do comércio de ferro
com seus vizinhos. À medida que a Groenlândia foi ficando mais isolada da Europa, a
demanda por marfim cessou completamente, forçando os inuítes a serem mais
agressivos em suas negociações com os nórdicos. Eles se mudaram para o sul, pilhando
os assentamentos abandonados à procura de metal. Além da relutância dos nórdicos em
adotar a tecnologia ou a prática de caça dos nativos, a presença de caçadores indígenas
impedia o acesso dos colonos aos locais críticos para a pesca e a caça das focas numa
época em que esses recursos eram cada vez mais importantes para a sua sobrevivência.
Em 1450, as colônias nórdicas na Groenlândia foram abandonadas e os contatos
fugazes, impulsionados pelas temperaturas mais quentes, entre dois mundos muito
diferentes deixaram de existir. Somente os épicos nórdicos e as tradições orais
preservaram as lembranças de uma era em que os nativos americanos e os europeus se
encontraram pela primeira vez.
Os nórdicos e os inuítes, como os habitantes da Europa setentrional, tiveram a vida
facilitada (embora nunca tenha sido fácil) pelo aquecimento do clima. A comida era mais
abundante, e novas tecnologias tornaram mais produtivo o trabalho dos lavradores e dos
caçadores. Do Ártico até a África do Norte, com a maior facilidade de transporte, os
contatos entre culturas permitiram que algumas dessas tecnologias fossem
compartilhadas por distâncias muito grandes. Em outras regiões do planeta, no entanto,
o aumento das temperaturas não foi benigno. O grande aquecimento trouxe fartura para
algumas áreas, porém, para outras, secas prolongadas sacudiram as bases de socieda-
des estabelecidas.

CAPÍTULO 6
A Época da Megasseca

No início não havia sol, não havia lua, nem estrelas. Tudo era escuro, e por toda a parte
só havia água.
- Lenda da Criação Maidu, Califórnia

Você transpira mesmo sentado sob a sombra profunda de um abrigo de pedra. Um vasto
panorama de paisagem desértica se estende à sua frente - picos áridos de montanhas,
um céu azul empoeirado, pálido. O calor cintila sobre o solo desértico, dunas e leitos de
rios, sobre a vegetação esparsa e rasteira. O sol está indo para oeste, mas o ar está
parado, o silêncio é total. Não há qualquer sinal de vento que levante algum grão de
areia pelas planícies escaldantes. Dia após dia, as pessoas se levantam com o nascer do
sol e buscam refúgio do calor implacável bem antes do meio-dia. E só estamos no início
de junho, com semanas ainda muito mais quentes pela frente.
Como acontece com freqüência, a mente volta para o passado distante, nesse caso para
gerações de forrageadores que visitaram esse lugar e encontraram a mesma vista árida.
Chegavam apenas alguns visitantes de cada vez, talvez uma dúzia de homens, mulheres
e crianças; os adultos muito magros, ágeis e enrugados, como que tostados pelo sol do
deserto. As mulheres acendiam o fogo quando o sol se aproximava do horizonte, no
oeste, enquanto os homens iam atrás dos coelhos selvagens que se alimentavam às
margens do aluvião nas proximidades. De volta ao abrigo, as mulheres iriam moer
alguns pinhões de um suprimento precioso trazido na pele de um cervo. O barulho suave
das pedras de moer compunham um som familiar, parte da busca interminável por
comida que mantinha o grupo em movimento durante quase todo o ano. A refeição é na
melhor das hipóteses frugal. Ninguém está com fome, mas não há muitas plantas
comestíveis. Mesmo os coelhos são difíceis de encontrar depois de um ano muito árido.
O oeste americano é a paisagem em grande escala, matéria de lendas, de John Wayne e
dos faroestes clássicos. De uma altura de 12 mil metros, você observa o terreno seco
hora após hora, em um mundo semi-árido maior do que a vida. Esse país brutal e
despovoado produz lendas e estereótipos de homens obstinados e mulheres
desembaraçadas, personagens amadas por Hollywood. A realidade, entretanto, era
muito mais complexa, porém só o tamanho da paisagem do oeste faz encolher a
humanidade e nos encher de espanto diante dos caçadores e horticultores que
conseguiram sobreviver nesse mundo inóspito, milhares de anos antes que o primeiro
cowboy resolvesse criar gado nessas paragens. A Europa pode ter se regalado com
fartas colheitas e os nórdicos podem ter viajado com mais liberdade pelo Atlântico Norte,
mas, como a Eurásia e o Sahel na África Ocidental, o oeste americano sofreu com
megassecas.

A luz acinzentada do céu claro que antecede a alvorada se espalha pelo leito de um lago
seco. Os homens se agacham entre os arbustos no chão seco de um lago enorme, que
está encolhendo rapidamente, no que hoje é a Califórnia. Esse é o ano mais seco de que
conseguem se lembrar. O lago foi secando diante de seus olhos durante meses de muito
calor, deixando camadas de areia em seu lugar. Eles e seus vizinhos tinham acampado
onde havia água. Os homens se posicionaram muito antes do nascer do sol, usando os
penhascos e leitos dos rios para ficar fora de vista. Cada caçador carrega um arco em
uma aljava com flechas, os olhos perscrutando à esquerda e à direita por um veado que
estivesse se alimentando no frescor da manhã. O mais provável é que os animais se
aproximem de um pequeno buraco de água próximo da beirada do lago. Dois homens
jovens trocam olhares ao verem um macho comendo.
Localidades mencionadas nos capítulos 6 e 7. Alguns locais menores foram omitidos para
maior clareza.

Eles se movimentam lentamente, cercando a presa, alertas ao mais leve som da brisa
matutina que possa carregar seu cheiro. Com cuidado infinito, eles se aproximam ainda
mais do veado. Depois de meia hora ele está ao seu alcance. De repente, a presa ergue
os olhos, farejando o ar. Talvez tenha sentido o cheiro humano. Os homens se
imobilizam, as armas paradas. Passam alguns minutos enquanto o macho olha ao redor.
Finalmente, recupera a confiança e volta a comer. Os homens erguem os arcos,
lentamente colocam as flechas com pontas de pedra no lugar. Eles se agacham para
atirar melhor, mas o pé de alguém bate em uma pedra do chão. O veado assustado sai
correndo. Duas flechas são disparadas, mas erram o alvo, deslizando inofensivamente
pelo leito do rio. Agora o sol já está alto, por isso a caça terá que esperar pelo entardecer
ou por um novo dia.
O Lago Owens, no flanco oriental das montanhas de Sierra Nevada, no leste da
Califórnia, fornece evidências das secas memoráveis que se abateram sobre o oeste
entre os anos 900 e 1250. O lago chegou a cobrir mais de 300 quilômetros quadrados na
foz do Rio Owens e durante pelo menos 800 mil anos foi coberto por água. (O Lago
Owens tinha mais de 75 metros de profundidade até o Departamento de Águas e Energia
Elétrica de Los Angeles ter desviado os afluentes que o alimentavam, em 1913, e ele se
transformou em um grande depósito de sal.) As águas que escoavam da montanha
sofreram variações dramáticas de ano para ano ao longo de séculos, de décadas, e até
mesmo de ciclos anuais, oscilando entre muita chuva e grandes secas. Nos períodos de
maior seca, choupos-do-canadá e pinheiros cresciam nos solos úmidos do leito vazante
do lago. Quando os anos de maior precipitação elevavam os níveis da água, as árvores
eram encobertas. Em muitos anos, os troncos e galhos mortos ficaram acima da água,
mas acabavam por se desintegrar, ficando apenas as cepas enraizadas no leito do rio
coberto pela água.
O geógrafo Scott Stine dedicou boa parte de sua carreira ao estudo desses tocos de
árvore, expostos quando os níveis da água baixavam nos anos de seca. Com a datação
radiocarbônica das camadas mais exteriores das árvores, e a contagem dos anéis das
árvores nos tocos, ele reconstruiu uma cronologia precisa dos períodos de secas e cheias
durante o Período de Aquecimento Medieval, que são espantosamente consistentes em
uma grande área do oeste americano.
A pesquisa de Stine começou durante uma grande seca na década de 1980, quando a
seca e uma grande demanda por água em Los Angeles provocaram uma queda de mais
de 15 metros na barragem do Lago Mono, que fica no extremo norte da Califórnia. Ele
recolheu amostras de inúmeros tocos, fez a datação radiocarbônica e descobriu que
havia duas gerações de árvores e arbustos que cresceram no lago durante o Período de
Aquecimento Medieval. A primeira geração desapareceu quando o lago subiu cerca de
19 metros, por volta do ano 1100. Essa elevação ocorreu durante um breve ciclo de
grandes precipitações pluviométricas, quando as chuvas foram mais fortes do que em
qualquer outro ano da era moderna, ficando em quarto lugar nos últimos quatro mil
anos. Mas a abundância de chuvas deu lugar a uma fase de seca intensa por volta de
1250, que durou mais de um século. O nível do lago caiu acentuadamente e uma
segunda geração de árvores cresceu no leito do rio.
Os tocos de árvore do Lago Mono registram um Período de Aquecimento Medieval
marcado por alterações extremas nas precipitações pluviométricas em períodos de um
século ou até menos. Intrigado, Stine voltou então sua atenção para o Lago Walker, no
nordeste, um corpo de água alimentado por dois rios da Sierra Nevada. O mais ocidental
dos dois rios corre através de um cânion estreito coberto por grandes tocos de pinho
submersos. Como o cânion é muito estreito e o movimento lateral do rio é restrito,
parece certo que essas árvores floresceram em uma época onde o fluxo da água foi
bastante reduzido, pois as raízes dos pinheiros não conseguem suportar mais do que
breves períodos de inundação. Os tocos de árvores serviram como documentação de um
nível muito baixo, por volta do ano 1025, quando as águas estavam mais de 40 metros
abaixo do nível atual; a isso seguiu-se um breve ciclo de maior umidade, posteriormente
outra seca, sendo a cronologia idêntica à do Lago Mono.
O Lago Owens também forneceu evidências de secas medievais severas na mesma
época. Caçadores que vagaram pelo leito do lago seco entre 650 e 1350 deixaram para
trás pontas de projéteis numa época em que o lago ficou muito seco. A datação
radiocarbônica das raízes de um arbusto das proximidades, que deve ter florescido nessa
época, limitou a ocupação à época da primeira grande seca registrada no Lago Walker.
Os lagos Mono, Walker e Owens registram os mesmos ciclos de seca da era medieval. O
primeiro começou antes do ano 910 e durou até aproximadamente 1100. O segundo
começou antes de 1210 e terminou por volta de 1350. Qual a intensidade dessas secas?
Stine utilizou uma linha de verificação moderna, a da seca de seis anos na Califórnia,
que começou em 1987, quando o escoamento proveniente de Sierra Nevada ficou em
apenas 65% do normal. Apesar da seca prolongada, o nível dos lagos nunca ficou tão
baixo quanto em épocas anteriores. Para explicar o ressecamento do Lago Owens, por
exemplo, o fluxo de água