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y AGmero 40-vol. 4 . junho de 1969 publicaglo quadrimestral -ASSOCIAGRO NACIONAL DE-POS-GRADUAGAO *"E PESQUISA EM CIENCIAS SOCIAIS ISSN 0102-6909 as SUMARIO * 3 Kpresentagio » 5 Claus Offe. + “ 21 A Censura Durante o Regime Autoritério Gliucio Ary Dillon Soares 44 4 Direita Mora do Outro Lado da Ci de, Anténio Flavio Pierucci~ . 65 Guitura Juridica e Praticas Policiai a Tradjgao Inquisitorial : : Roberto Kant de Lima . 85 Capoeira? De Arte Negra a Esporte Branco Alejandro Frigerio 99 Resennas res 108 Resumos/Abstracts/Résumés - : REVISTA BRASILEIRA*DE CraNCTAS soctats DA ASSOCIAQAO NACIONAL DE POS.GRADUAQAO E PESQUISA EM CIENCIAS ‘SOCIAIS Diretoria (gestio 88-90) . Presidente: Vilmar Evangelista Faria Diretores: Fernando Antonio Farlas de Azevedo Joseph Pierre Sanchiz Marla Susana Arrosa Soares Consetho Fiscal: Anete Brito Leal Ivo Eva Alterman Blay Joio ‘Gabriel Lima Cruz Teixeira Publicagéio quadrimestral da ANPOCS Vol. 4, no 10 Apoios: ‘CNPq / FINEP:/ FAPERGS Comite Eattoriai: Antonio Flavio Pierucei Antonio Sérgio A. Guimartes Celina, Albano Et Roque Diniz Liicia Lippi de Oliveira Maria Teresa Sadek Maria Victoria Benevides Ruben George Oliven Editora: Vera Maria CAndjdo, Pereira Projeto grafico e diagramagdo: Diana Mindlin Revisor de originais: Patricia Campos de Sousa Impresso no Brasil Junho de 1989 a A apresentagio de colaboragées © os pedidos de assinaturas devem' ser encaminhados 4 ANPOCS, Largo de Sio Francisco, 01 - 4° andar - s/ 408 Centro - Rio de Janeiro/RJ - Cep 20051. Direitos reservados para esta edigio Vértice / ANPOCS — Publicago e comercializagio Bditora Revista dos Tribunais Ltda, (Edigdes Vérttce) Rua Conde do Pinhal, 78 - Tel. (011) 97-2433, 01501 - Sao Paulo - SP eee, Impresso no Brasil junho de 1989 cultura juridica e praticas policiais A TRADICGAO INQUISITORIAL a“ roberto kant de lima Introdugao Este artigo foi produzido do ponto de vista de ‘um antropdlogo social profissional. Os dados aqui discutidos sio fruto da minha pesquisa so- pre o sistema judicial da cidade do Rio de Ja- neiro, iniciada em 1982 e ainda em andamento. utilizou as técnicas gradas pela tradicao antropolégica, com« ‘as informagées assim obti- das juntaram-se aquelas oriundas da identifica- go e interpretagdo das. categorias presentes em textos consagrados pelas culturas juridicas bra- sileira e norte-americana (1). A perspectiva adotada aqui é uma pers- pectiva comparada. A forma da comparagao, en- tretanto, difere daquela dos textos juridicos. Pois a comparagéo que se intenta aqui ¢ aquela por contraste, e ndo por semelhanca. Tal pos- tura foi motivada por minha ezperiéncia na so- Roberto .Kant de Lima — Departamento de Antropolo- gia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e CNPq. 1 —O termo categorias é aqui empregado como o de- fine Marcel Mauss: “habito diretor do pensamento”. Para uma discusséo metodolégica mais aprofundada, ciedade norte-americana, que me proporcionou © estranhamento de minhas categorias juridicas e politicas, quando em confronto com as prati- cas de controle social e de resolugdo de confli- tos presentes naquela sociedade, inclusive na academia (cf. Kant de Lima, 1985), bem como por inspiragio tedrico-metodoldgica j4 consa- grada em minha disciplina (cf. Leach, 1974; Du- mont, 1977, 1980 e 1985; Geertz, 1978; Da Matta, 1979 e 1987). Nao 6 de menor importancia para a com- Novo Mundo. A convivéncia de tradigdes (2) ju: ridicas distintas — constitucionais, penais, pro- cessuais — com tradigdes politicas também dis- tintas 6 quase sempre ocultada pelo emprego de 2— A categoria tradigdo 6 aqui tomada no sentido an- tropolégico, como sistema de significagsio que empresta sentido as priticas e representagdes de um determinado grupo. A tradig&o, assim, é trazida “de mio em mio”, transacionada. RBCS n 10 vol. 4 jun, de 1989 66 CULTURA JURIDICA E PRATICAS POLICIAIS: um vocabuldrio que parece referir-se a catego- rias idénticas (3). Assim, as concepg6es de ordem, lei, obe- diéncia, disciplina, repressao etc. serio aqui tra- tadas enquanto pertencentes a sistemas de clas- sificagao juridicos distintos. Ao contraste entre © sistema da.civil law tradition e 0 da common law tradition (Merryman, 1969) aliar-se-A0 os contrastes entre as concepgées hierdrquicas e igualitérias, individualistas e holistas, presentes em tais sistemas (cf. Kant de Lima, 1986). Os contrastes, entretanto, nfo se esgotam af: é pre- iso também destacar a diferenca etre sistemas processuais com énfase inquisitorial e sistemas processuais com énfase acusatorial, representa- dos pelas diferentes formas que o inquest to- mou na sociedade ocidental: a do inquérito ou a do jury. Esta é certamente uma tarefa com- plexa, que este artigo apenas inicia, enfatizando © cardter inquisitorial das praticas policiais brasileiras e a forma de produgdo, transmissaio © reproducdo’ destas mesmas priticas. Resta juntar a esses breves esclarecimen- tos um outro: este artigo, sem abandonar a ca- racteristica critica da sociologia interpretativa, no se posiciona, a priori, contra ou a favor das praticas policiais e judiciais brasileiras; es- tou fundamentalmente interessado em discuti- las para explicité-las e compreendé-las, perce- bendo nelas caracteristicas de processos cultu- rais mais amplos, nem sempre explicitados pela cultura a que pertencem. Esta postura, entre- tanto, nao implica a busca de um posicionamen- to neutro ou supostamente cientifico — porque. objetivo — diante das conclusées e interpreta- 96es formuladas. Estou convicto de que, como outras lutas, a luta pela cidadania requer prdti- ca, aprendizado que nfo se substitu por qual- quer reflexio puramente tedrica, por mais ve- Tossimil que se apresente. Como Roberto Da Matta tem mostrado, nossas herangas culturais permanecem vivas em nossas tradicées; assim, ao invés de ezcluir comportamentos’ aparente- mente contraditérios, muitas vezes opomos com- plementarmente significados e préticas sociais cotidianas referenciadas ‘a princfpios distintos (ct, Da Matta, 1979, 1982 e 1987; Kant de Lima, 1983, 1985 e 1986). 3 — Recentemente, a edigfo de um diciondrlo juridico inglés-portugués é exemplo critico dos equfvocos gra- ves aque pode conduzir uma tradug&o Iteral de cate- goriag juridicas’ (jury/jari; verdict/veredito; inquest, inguisition/inquérito ete.). Cf. Mello (1978). No caso em quest&o, minha hipdtese é a de que a tradicional oposigio de modelos de controle social apoiados na repressio ou na dis- ciplina tem de levar em consideragao as nuances dos sistemas juridicos de repressio e dos siste- mas policiais -de prevengao, ora fundados em prineipios acusatérios, ora em prinefpios inqut sitérios. A ambigilidade de nosso sistema pro- cessual, autodenominado de misto, empresta & tradigéo processual penal brasileira cardter es- pecialmente liminar no modelo de resolugéo de conflitos pelo Estado. Tal caracterfstica, como sabem os antropdlogos, marca as instituigdes que a ostentam com um potencial desestrutura- dor da ordem, ordem que, paradoxalmente, esse proceso pretende restaurar ou manter, pela prevenc&io ou adjudicacio ‘dos conflitos (cf. EvansPritchard, 1978; Douglas, 1974; Turner, 1974, por exemplo). Tomo aqui a instituicio policial para exercer minha reflexio sobre a ambigiiidade do sistema. Meu objetivo é demonstrar como as prdticas da policia, percebidas pela cultura ju- Tidica e pela cultura policial como caracteristi- cas da policia, resultantes de sua pratica, sio informadas por representag6es hierarquizadas e holistas da sociedade, presentes na cultura jurf- dica e em nosso pensamento social sob a forma de processos inquisitoriais de produgio e repro- dugio de certezas — e verdades — que lévam & resolugdo de conflitos. Esta ambigitidade em- presta & instituicio policial cardter potencial- mente contaminador e desorganizador da ordem estabelecida, sujeltando-a a acusagdes sistemé- ticas e tendo como conseqiiéncia mais evidente a de tornar clandestina a identidade propria mente policial, o que impede a instituicéo de elaborar critérios explicito$ que propiciem o controle interno efetivo da”corporacéo policial e favorecam um eficaz controle pitblico de seu desempenho. Suas praticas, portanto, propria. mente policiais, séo “levadas de mio em mio”, “transacionadas”, constituindo-se em verdadeira tradigéo inquisitorial. Caracteristicas gerais do processo penal brasileiro No Brasil, 0 processo penal, isto é, a descrigéo dos procedimentos que devem ser seguidos para que se possa condenar ou, absolver alguém pela A. TRADICAO. INQUISITORIAL pratica de-um delito, é regulado pelo Cédigo de Processo Penal. Este O6digo (4) é construido de acordo com a orieftagio da dogmdtica juri- dica, caracteristica de nossa cultura legal, que consiste em uma concepcio normativa, abstrata e formal do Direito. O “mundo” do Direito, assim, néo equivale ao mundo dos fatos sociais. Para “entrar” no mundo do Direito os “fatos” tém de ser submetidos a um tratamento ldgico- formal, caracteristico e proprio da “cultura ju- Yidica” e daqueles que a detém. Tal concepgio € provavelmente responsdvel pela justificativa da estrutura de nossos procedimentos’ penais, concebidos, segundo o Cédigo, em uma suces- sao de “preliminares” a propriamente “judi- ciais”. A ficgéio legal implica dizer Que os pro- cedimentos iniciais de um procedimento judi- cial dele no se constituem, necessariamente, Parte definitiva e substancial, porque néo hi processo (5). Denomina-se essa fase de inquérito policial, e a ela atribuemse caracteristicas inquisitoriais (cf. Noronha, 1979, p. 21). Neste momento, os envolvidos no téin direito & defesa porque, ju- ridicamente, no hd acusacéo. A atuagio dos advogados no inquérito policial é legalmente admitida apenas para verificar a “lisura” dos procedimentos policiais. O Cédigo destina a esses procedimentos um “titulo” e 19 artigos (Titulo II, arts. 4 a 23, CPP). Uma vez concluido © inquérito, que 6 efetuado pela policia, sob a superviso do Judicidrio e do Ministério Ptiblico (juizes © promotores), 0 procedimento passa & sua fase verdadeiramente judicial, com a instau- ragéo de um processo judicial. O Cédigo dedica a sua regulamentagéo trés “livros” e 643 artigos (arts. 24 a 667, CPP). © processo judicial 6 presidido pelo juiz © corita com a participacio obrigatéria do pro- motor, membro do Ministério Publico, érgao do Estado, de quem se diz ser titular da agdo penal publica. 0 promotor que oferece a deniincia contra quem foi indiciado no inquérito poli- [a cial (6). Inicia-se, entdo, a fase de instruct ju- dicial, em que, diante do juiz e na presenga obri- gatoria de um advogado, de defesa, realizam-se os atos processuais, de acordo com o principio do contraditério, num processo dito niio-mais inquisitorial, mas acusatério. Neste processo, todos os procedimentos efetuados na fase do in- quérito policial (testemunhos, depoimentos, in- terrogatérios etc.) séo repetidos diante do juiz € das partes, com a presenca obrigatéria de ym advogado de defesa. A critério do promotor, os autos — conjunto ordenado das peas de um processo ou inquérito — do inquérito policial sfo anexados aos autos do processo judicial, servindo como indicios da culpabilidade do an- tes indiciado, agora acusado ou réu. Note-se que 0 processo pode ser instaurado por inicia- tiva do promotor, sem que tenha havido inqué- rito policial. Uma vez oferecida a denincia, 0 promotor néo pode desistir da acdo penal, que deve necessariamente chegar a seu termo pelo julgamento e pela sentenca. O inquérito policial, no entanto, pode ser arquivado pelo juiz, a pe- dido do Ministério Publico. Outra caracteristica de nossa cultura ju- ridica 6 que, no processo judicial, vale o “bro- cardo” jurfdico: “o que nfo est4 nos autos nio estdé no mundo”. Difetem, ‘no entanto, as formas de producao da prova no proceso civil e no pro- cesso penal: no processo civil, a produggo da prova é de exclusiva responsabilidade das par- tes. Diz a tradic&o que aqui se segue o princfpio da verdade formal: 0 juiz decide de acordo com as provas — e os pedidos — das partes arrola- das nos autos. J4 no processo penal épera o principio da verdade real: o juiz pode mandar incluir nos autos provas que ache necessérias para formar seu livre convencimento. Este livre convencimento significa que o juiz nfio estd’sub- metido a qualquer hierarquia formal que esta- belega. qual prova vale mais do que a outra, ou quais fatos sio verdadeiros ou nfo. A decisio € sua, encontrando limites apenas no que cons- tar dos autos e no fato de que a sentenca tem de ser justificada legal e racionalmente (“Ex- 4— Um cédigo suscita a {déia de um conhecimento privativo, que sé se torna publico quando decifrado. Notese que, embora nossa tradigio juridica seja “co- dificada”, a tradicio angloamericana da common law tradition’ nfo o 6 (cf. Merryman, 1969). 5 — Para a dogmitica juridica, a coexisténcia desses dois. procedimentos nfo € contraditéria, pois um é pro- priamente juridico e 0 outro, nfo. 6 — Nosso Direito Processual segue a tradig&o cand- nica ¢ ibérica da suspeicio progressiva: primeiro o en- volvido 6 indiciado pela polfcia, depois 6 denunciado pelo Ministério Publico. Nos julgamentos pelo ji, ainda existe uma outra etapa, em que, depois da instrugdo judicial, 0 réu tem de'ser pronunciado por um juz para ira julgamento, sendo, finalmente, absolvido ou condenado. 68 CULTURA JURIDICA E PRATICAS POLICIAIS:. Pposigio de Motivos”, CPP; art. 157, CPP). Nao existe, portanto,. qualquer limitagéo formal, quanto ao procedimento, para que se tragam os “fatos” ao processo, e qualquer elemento que dele conste pode ser usado pelo juiz para formar sua decisio (Barros, 1962). Tal sistema diferencia-se do sistema da prova legal, utilizado pela common law tradition no sistema dos julgamentos pelo jtiri (trial by jury system). Por este sistema, as evidéncias (evidences) que as partes produzam publica- mente no processo — as que o juiz néo exclui do proceso, em observancia as exclusionary ru- les — passam a integré-lo, constituindo-se em provas (proofs), fatos (facts), sobre os quais os jurados pronunciar-se-éo em seu veredito (verdict). Nos Estados Unidos, a posig&o do juiz neste sistema, chamado de duelistico (adversa- rial), 6 de mero expectador, para fazer cumprir as regras do jogo. Para entender a maneira como nosso Di- reito operou transformagées no processo, im- pregnando-o de caracteristicas inquisitoriai atribuidas ao sistema frances, que aqui se diz mesclado ao sistema inglés do Jury, acusatério —,é necessério explicitar como sio percebidas pelos juristas brasileiros as caracteristicas fun- damentais desses dois sistemas. Em geral, o sistema acusatério admite uma acusacéo, a qual é investigada publica- ‘mente, com a participagao da defesa do acusa- do. Afirma-se um fato com o conhecimento, do acusado, e, enquanto nfo se prova o fato, © acusado 6 presumido inocente. O proceso propée-se a fornecer ao juiz dados que o per- mitam convencer-se da culpa do acusado. A preocupagéo 6 sempre com 0 interesse do indi- viduo acusado. Jé no sistema inquisitorial, de tradigao Tomana e candnica, feita uma denuincia, até ané- nima, efetuam-se pesquisas sigilosas antes. de qualquer acusacio, nao s6 para proteger a repu- tagéio de quem é acusado, mas também para proteger aquele que acusa de eventuais represd- lias de um poderoso acusado. A defesa do acusa- dB"este sistema contrapée o interrogatério do ‘suspeito, ao final das investigagées sigilosas e pfeliminares, efetuadas sem 0 seu conhecimen- to; ao confronto publico, os depoimentos secre- tos das testemunhas, preferindo-se’ as ‘fornias escritas as verbais. O sistema inquisitério nfo afirma o fato; supde sua probabilidade, presu- ‘me um culpado e busca provas para condené-lo. sistema procura fornecer ao juiz. indicios para que a presuncdo seja transformada em realida- de. A preocupacéo, aqui, 6 com o interesse pt- blico lesado, protegendo-se aquele que se dispu- ser a colaborar para sua protecao (Junior, 1920, Pp. 240-53). Ora, a cultura jurfdica constitucional bra- sileira, vinculada a principios democraticos, des- de o Império afirma sua adesio aos principios acusatoriais. 0 atual Cédigo de Proceso Penal, entretanto, apesar de afirmar que o processo é acusatorial, conformando-se, portanto, 8S dispo- sigdes constitucionais, diz que tal processo pode ser precedido de um procedimento extrajudi- cial, conduzido pela autoridade policial, sob a fiscalizagho do promotor e do juiz, de cardter inquisitorial. Por outro lado, nossa cultura ju- ridica também mantém no processo, na fase de instrugdo, certos procedimentos de caréter in- quisitorial: 0 interrogatério do acusado ito pelo juiz sem interferéncia (cross-eramination) das partes — o promotor e a defesa podem ape- ‘nas assisti-lo, e aquele normalmente nio o faz —; a possibilidade de o juiz trazer provas aos au tos; e, curiosamente, a interpretagéo do siléncio do réu, que pode vir “em prejuizo de sua pré- pria defesa” (7). Por outro Jado, nos casos de julgamento pelo: tribunal do jtri, ao final dos debates 0 juiz elabora, com a colaborago da defesa e do Ministério Ptiblico, uma lista de que- sitos, de perguntas, que devem ser obrigatoria- mente respondidas pelos jurados, sigilosa e in- dividuaimente, por voto secreto, caracterizando nosso veredito como uma opiniio que ndo é produzida em puiblico, entre os jurados, que per- manecem isolados nao sé do ptiblico em geral, mas também entre si. Neste tipo de julgamento os jurados néo podem, em qualquer momento, comunicar-se uns com os outros (Kant de Li- ma, 1983). Além dessa convivéncia de principios opostos — acusatorial e inquisitorial —, torna- 7 —No Brasil, apenas as testemunhas podem ser pro- cessadas por mentir em jufzo (falso testemunho). Se- guindo a tradigié candnica, os réus 6 devem se “auto- acusar” quando arrependidos, pela confissio. Dai a interpretagdo oposta do “siléncio” do acusado nos dois sistemas: no acusatorial, ele tem o direito de calar-se enquanto se tenta provar algo contra ele; em nosso sistema seu siléncio pode “vir em prejuizo de sua propria defesa” (art. 198, CPP). Seria intefessante ve- rificar como seré aplicado o principio aprovado pela nova Constituicdo, que'garante 0 -direito de 0 acusddo calar-se, em face da tradigao processual. A TRADICAO INQUISITORIAL . 69 da possivel pelos pressupostos formalistas da dogmatica juridica, outra caracteristica de nos- sa cultura juridica ¢ relevante para o entendi- mento de nossas praticas judiciais e policiais. Como foi dito, a cultura juridita brasileira segue a tradig&io da ctvil law tradition, que se ope & common law tradition nos sistemas juridicos ocidentais. Na civil law tradition a divisio de Pode: 3s concebida por Montesquieu e institu- cionalizada a partir da Revolugéo Francesa é le- vada ao pé da letra: o Legislativo faz as leis, 0 Executivo as exeeuta, e 0 Judicidrio as aplica. ‘Teoricamente, aq, Legislativo cabe, com exclusi- vidade, a produgio de leis; ao Judicidrio cabe apenas aplicé-las, constituindo-se a jurisprudén- cia em um conjunto de interpretagdes da lei efetuadas pelos tribunais (case law). Essa re- presentagio da atividade juridica do Estado con- tém o pressuposto de que tal divis&io faz-se ne- cessdria para que o “povo”, representado no Legislativo, controle os magistrados, tradicio- nalmente “amigos do Rei”, impedindo abusos de poder. Para a consecugio deste objetivo é ne- cessdrio que o Legislativo anteveja os “casos” que os juizes vo julgar, para fazer leis que a eles se ajustem e impedir ao maximo o arbitrio das decis6es judiciais, sempre possivel nos ca- ‘sos “no previstos na lei’. Se isso produz uma atividade legiferante, intensa e sempre hipoté- tica, por parte do Legislativo — refletida inclu- sive no estilo das Constituigées dos paises que seguem esta tradicio —, também faz com que o Judicidrio ligue sua identidade ao “estrito cum- primento da lei” ou & sua “aplicagdéo”: o juiz, teoricamente, no pode usar de critérios pes- soais ou extralegais em seu julgamento, que per- segue 0 ideal de uma perfeic&io “racional” e 16- gica, de aplicac&o de premissas maiores a me- nores, para chegar a conclusées. Na pritica, tal tradigio dissocia a idéia de realidade, ou verdade, da idéia de lei. Quer dizer, a lei tem um cardter eminentemente nor- mativo, de dever ser, e sua aplicagio aos casos coneretos depende, portanto, de interpretagdes que déem conta do cardter contingencial da rea- Iidade. # légico que esta postura legislativa pro- picia uma postura interpretativa em relago & lei por parte daqueles encarregados de manté-la ou aplicéla, sejam funciondrios do Executivo ou do Judicidrio. Tal tradigdo juridica opde-se & da common law tradition, na qual o controle do “abuso” do poder 6 exercido nfo s6 pelos representantes do povo eleitos para fazer as leis no Legislativo, mas também pelo banco do uri (jury. bench), onde os cidaddos, inclusive, aprendem os valo- res legais que permitem a convivéncia em so! ciedade (cf. Tocqueville, 1945). Este sistema ope- Ta uma interessante identidade entre verdade (truth), fatos (facts) e lei (aw) (8): os jura- dos, ao final do julgamento, proferem um ve- redito, isto 6, dizem a verdade. Este veredito, de fato, consiste numa atividade de fazer: lei, pois cria precedente que pode ser invocado em outros casos considerados anélogos (jurispru- dence). Essa tradigo esté tio arraigada na cul- tura anglo-americana que torna impossivel a tra- dugio da expressio “a verdade dos fatos”: ou uma coisa 6 considerada verdadeira e, logo, é um fato (fact), ou néo 6 um fato, porque nfo 6 possivel toméla como verdade (truth). Isto implica contraste agudo com a tradigao da civil law tradition, em que as atividades processuais, inquisitoriais, visam apurar “a verdade dos fatos”. A diferenga entre as tradigdes nao é des: pida de conseqiiéncias préticas. O processo an- glo-americano, e em especial o americano, é mui- to cioso do que pode ou nio entrar nos autos para ser considerado pelos jurados ou pelo juiz na apreciagio de um caso, tornando-se uma evi- déncia (evidence), eventualmente fato e prova (facts, proofs). Tais fatos, ao final do julgamen- to, sfio explicados pelo juiz aos jurados, que iréo entdo dizer a sua verdade sobre eles, num vere- dito (verdict, vere dictum). Essa opiniéo é pro- duzida publicamente entre os jurados, embora secretamente em relagio aos demais membros da sodiedade, e a decisio, obtida em ptiblico, faz lei, como precedente. J no processo brasi- leiro, tudo pode entrar nos autos, inclusive para nfo cercear o direito constitucional -do réu & ampla defesa. Em compensag&o, 0 juiz aprecia livremente as provas dos autos e forma seu li- re convencimento orientado pelo principio da verdade real, expresso em sua sentenga. Nos ca- sos de juiri, os jurados respondem, individual- mente e por voto secreto, diante do juiz e dos representantes das partes, aos quesitos e nio 8 — Em ing'és, law quer dizer tanto direito como Lei, acentuando o cardter explicito do direito. Sobre essa questo, assim como sobre: a identidade ‘entre fato & Tel, velase Geortz (1983). precisam justificar sua deciséo, nem mesmo en- tre eles. Quanto aos fatos produzidos sigilosamen- te, inquisitorialmente, no inquérito policial, es- tes entram no processo, podendo produzir con- seaiiéncias legais. As consegiiéncias das ativi- dades investigatrias da policia ‘sho, pois, dis- tintas. No sistema anglo-americano, informag6es obtidas sigilosamente servem apenas para uso privado, nfo podendo ser utilizadas para pro- duzir lei: esta é sempre o resultado de um pro- cedimento acusatorial e ptiblico; no sistema bra- sileiro, as informagées constantes do inquérito Policial so disponfveis para o juiz e para as partes e podem influenciar o livre convencimen- to daquele, Por exemplo, informagées obtidas sob tortura podem levar & descoberta da res fur- tiva que, apreendida, convence o juiz da culpa- bilidade do acusado. Para tornar 0 quadro mais coraplexo, nos- Sa tradigdo juridica atribui, de maneira caracte: ristica, fungdes tanto administrativas quanto judiciérias & policia (ef. Noronha, 1979; Costa, 1979). Teoricamente, cabe & policia exercer a vigilancia da populagéo, encarregando-se da ma- nuteng&o da “ordem publica”. Nestas ativida- des, onde se exerce 0 poder de policia do Esta- do (9), quem o exerce tem discricionaridade, ou discrigdo (10). Isso quer dizer que, num con- tinuum onde num pélo esté a arbitrariedade ou © abuso de poder e, no outro, a aco conforma- da: @ letra da lei, a autoridade toma atitudes Para garantir a seguranca da populagdo que séo Giscriciondrias. Tais atitudes so de cardter pre- ventivo, isto é, exercidas antes de se consumar © fato delituoso ou prejudicial. Ocorre que a essa mesma policia, no Bra- sil, também se atribuem fung6es judicidrias; isto 6 espetase que ela realize agdes para reprimir ds delitos como tal definidos previamente em ei, Aqui a policia atua apés 0 fato consumado, realizando investigac6es e cumprindo mandados (ordens) do Judiciério, sempre fiscalizada por este e pelo Ministério Publico. a ‘claro que nfo 6 s6 a policia que detém o poder de policia, atributo dos érgios do Estado que visam & manutengdo da ordem e seguranga da populacio, como no caso das inspegées da Satide Publica, Corpo de Bom- beiros ete, 10 — Note-se que a categoria dicionarizada 6 discricio- naridade. Discric@io deve ser tradugio — incorreta — de discretion, impossivel de traduzirse em nossa tra- digéo juridiea de forma lteral. 70 CULTURA JURIDICA E PRATICAS POLICIAIS: ‘Essa ambigiiidade nao existe, no entanto, do ponto de vista da teoria juridica (dogmética Juridica), pois nfo € a policia judicidria. que exerce a vigilancia da populagio, mas sim a po- licia administrativa. Tal abstragdo permite a for- magdo de oposigdes complementares entre pe- as aparentemente contraditérias do sistema, como no caso relatado anteriormente:.o inqué- Tito policial ainda nfo “entrou” no mundo do Direito, pois 6 0 processo judicial que, iniciado pela deniincia, caracteriza a entrada do “fato” no mundo do Direito. E assim que o inguérito policial 6 uma ati- vidade administrativa, na qual a policia tem dis. cricionaridade para apurar a “verdade dos fa- tos”. Na investigacdo, a instituigio funciona com Poderes “de polfcia” e nfo esté, teoricamente, submetida & letra da lei. Portanto, a nossa po- Ycia tem de fazer uma disting&o entre discri- cionaridade preventiva e discricionaridade re- pressiva, ambas regidas por formas de proce- dimento orientadas inquisitorialmente, baseadas na suspeigao sistematica e no sigilo. Tais formas de procedimento, é bom lembrar, ndo séo aque- Jas explicitadas pela Constituicéo ou. pelos pro- cedimentos judiciais, orientadas pelo principio do contraditério, ou acusatério (adversarial). A categoria discretion pertence a outro sistema juridico-politico: aquele fundado nos principios duelfsticos (adversarial) do processo americano (Berman, 1963), consoante com os principios igualitdrios e individualistas daquele modelo po- litico constitucional de democracia, todo basea- do no modelo acusatorial, pelo qual sé produz efeitos aquilo que 6 publicamente produzido. Sociologicamente, entretanto, a definicéio amb{gua de atribuig6es contraditérias & mesma instituigio marca sua existéncia com um “per- manente” estado de “liminaridade” (11). Esta situagdo caracteriza permanente estado de p0- tencial ameaga as estruturas de controle social oficialmente estabelecidas, tanto no Executivo como no Judicidrio, o que dé margem a perma- nentes acusag6es. O estudo das praticas policiais © de sou sistema de significagées, isto é, da cul- tuta policial, constitui-se, a meu ver, em locus privilegiado para entender nossa cultura. juri- —— 11— No sentido que the deu Victor Turner, isto 6, detwit and between (nem 16, nem cé), momento de transigéo, de communitas, entre duas estruturas (Tur- ner, 1974), ou como dois aspectos de um modo de’ vida, “duas faces de uma mesma moeda” (Rocha, 1972). A TRADICAO: INQUISITORIAL dico-politica, impregnada de oposigées com- plementares, aqui representadas pelas catego- ris acusatério/inquisitorial, repressao/vigilén- cia, passado/futuro, real/potencial, administra- tiva/judiciéria. - . - ¥ claro que este estado de liminaridade faz com que a policia, nio-oficialmente, adjudi- que e puna criminosos — tarefas atribufdas com exclusividade ao Poder Judiciério — utilizando outros procedimentos e subordinando suas ati- vidades a principios “puramente” inquisitoriais, diferentes daqueles do Judicidrio. Essas préticas tradicionais no B cializ eertos crimes de competéncia da policia — os crimes de embora os Cédigos mais recentes, do periodo republicano, néo atribuam esse poder 8 policia, esta, no obstante, continua a exercer essas atividades processuais informalmente. Sio asos de policia, atualmente, as “agressdes”, ‘brigas de famflia”, “brigas de vizinhos” etc, gados em audiéncias” pelos delegados ou comissérios. S80 punigdes da policia o fichamento na instituigo (12), a prisio e a tortura. As puni- Ges mais graves sao. empregadas quando cri- mes julgados mais graves sio identificados. Nes- tes casos, a policia pune “assaltantes”, “estupra- dores” e “traficantes” com a morte. S&o métodos de investigagao da policia © sigilo de suas investigagdes, 0 interrogatério © a coagdo para a obtengio da informagéo que elucidaré o caso; seu procedimento sé se satis- faz com a confissdo (cf. Thompson, 1983; Ba- randier, 1985; Kant de Lima, 1986; Paixdo, 1988). A ambigitidade vivida pela policia brasi- leira, portanto, é de miltipla origem, se compa- ——— 12 — Essa prética fol eliminada oficiaimente pela nova Constituicso. Entretanto, as delegacias, e até mesmo alguns policiais, tem seus arquivos préprios. Cf. Kant de Lima (1986), 71 rada, por exemplo, com a posigéo da policia: no Proceso angloamericano. Neste, a policia’ ou 6 preventiva e atua sobre comportamentos fu- turos, vigiando a populagio e objetivando, me diante. métodos disciplinares, a sua norniitiza- go (Foucault, 1977), pelo exercicio da discre- tion, ou 6 repressiva, empregando técnicas in- vestigatérias também orientadas por principios acusat6rios, os mesmos vigentes no sistema cons- titucional e judicial repressivo; aqui, a policia, teoricamente, deve néo 86 exercer a vigiléncia da populagSo, empregando métodos disciplina- Tes e poderes de policia, discricionérios, mas também exercer a repressdo, sé que com base em prinofpios e métodos inquisitoriais, Em uma cidade como 0 Rio de Janeiro, onde a Policia Civil investiga e faz ronda, abre inquéritos policiais e tem Delegacias de Vigi- lancia, a contaminacdo desses diversos e apa- rentemente contraditérios principios é inevitd- vel: previne-se com métodos inguisitoriais e prende-se com critérios de vigiléncia. Primeiro encontra-se 0 ladrao, depois obtém-se sua con- fissio, e entéo realiza-se a investigagio formal. Usos e significados das préticas adjudicativas e punitivas da polfcia no Rio de Janeiro Em conseqiiéncia de diferentes posigdes em re- ‘Tagdo aos fatos da ocorréncia criminal, a pers- Pectiva da policia é oficialmente definida como diferente da perspectiva judicial (13). Entretan- to, quando no exercicio de suas fungées judiciais, a policia é solicitada a traduzir seu conhecimen- to concreto dos fatos em uma linguagem que seja considerada aceitdvel pelo sistema judicial formal: a linguagem dos indicios. Essa operagdio néo é meramente lingiifs- tica, 2 uma operagéo que envolve uma dupla oposicao entre sistemas de classificaco: a pri- meira, entre o sistema de vigilancia e o sistema Judicial cldssico, consagrado em nosso Cédigo Penal, do “nulla poena sine lege” (art. 12, Lei 7,209/84); a segunda, entre os critérios inquisi- toriais do inquérito policial e os critérios acusa- —— 13 — Como me disse um polictal, certa vez: “(...) ocor- réncia 6 aquilo que a policia julga que é uma ocorrén- efa polictal”. 72 CULTURA JURIDICA E PRATICAS: POLICIAIS: toriais do processo judicial e da Constituicéo. A tradugio também tem de levar em conta o fato de que se opera entre duas segdes do sis- tema judicial desigualmente situadas. Os crité- rios de-vigiléncia ¢ inquisitoriais so oficialmen- te definidos como ezctusivos da policia enquan- to brago do Executivo e do Judicidrio, e é este fato — o de que a policia esté “contaminada” Por critérios nfio-judiciais — que é responsavel pelo lugar inferior da policia na hierarquia do sistema judicial. Tal desigualdade é até mesmo reconheci da pela teoria do proceso penal. Por exemplo, diciario em sua mais distante — e, “objetiva” — apreciagao dos fatos (“Exposigéo de Motivos”, CPP, IV). Ou, como um delegado me disse: “A policia precisa agir enquanto os fatos esto ainda vivos, quentes. Se a policia nao agir, 0 fato se perde. O juiz, ao contrdrio, estd distante dos fatos. Ele atua nos autos do processo, em procedimentos escritos, depois dos fatos. Se ele falha, o tribunal pode corrigir seu erro. Se a policia falha, o fato estd perdido, nao sobra nada para o juiz decidir depois.” E o mesmo informante acrescentou, meio sé- rio, meio brincalhdo: “O juiz, voc8 sabe, o, juiz est4 acima de tudo, estd pairando 14 no céu. A policia 6 diferente, a polfcia tem os pés no cho”. A efetivagéio dessa traducio implica, pois, alguns problemas préticos para a policia, A pré- tica da vigilancia toilet car poputackor para manter a ender relag&o de peeer ae com a populacdo vigiada, No desempenho de suas atividades inves- tigatrias, a policia muitas vezes transforma tes- temunhas em suspeitos. Audiéncias de testemu- nhas transformam-se freqtientemente em inter- rogatérios de suspeitos. Nas atividades de ron- da (14), a policia tira (15) suspeitos, utilizando para isso seus critérios preventivos, transfor- mados em técnicas investigatérias: em suma, co- mo jé disse, prendese o “suspeito” e depois des- cobre-se 0 que ele andou fazendo. Temerosa de envolvimento mais profundo, a populagéo em geral no se sente disposta a cooperar volunta- riamente com os procedimentos inquisitoriais da policia. Em conseqiiéncia, esta tem dificulda- des para produzir indicios vélidos para o uso dos tribunais. Tal circunstancia, aliada a algu- mas préticas processualistas de cardter inquisi- torial em nossos procedimentos penais, parti- cularmente na fase do inquérito policial, faz com que a policia seja motivada a confiar em con- fissdes para desempenhar seu papel judicial, es- pecializando-se na técnica de obtélas com ou sem coagéo. Entretanto, quando os procedimen- tos policiais so trazidos diante do juiz, os indi- cios obtidos no inquérito policial, incluindo as confiss6es, sio geralmente contestados pelo réu, pelo advogado de defesa e muitas vezes pela propria promotoria, que acusam a policia de télos obtido pelo uso de métodos ilegais, prin- cipalmente da tortura fisica. Dada_essa discrepfncia entre o que a po- licia sabe e 0 que ela pode provar judicialmen. te, individuos notoriamente culpados sio muitas vezes absolvidos pelo sistema judicial. Como a policia estd oficialmente encarregada de exercer 14 — Enquanto, na Policia Militar, hé normas explfct tas que regem ‘as atividades de vigildmola, nada hé de explicito que regule tais atividades (fazer campana, subir morro etc.) na Policia Civil. Constituemse, assim, em préticas que se reproduzem de forma tradicional, nqescrita, passadas. “de mo em mio” 15 — Tirar, no jargio polictal, significa apreender as caracteristicas ocupacionais e de status do uma pessoa pelos seus “modos”, “‘trejeltos”, tipos de linguagem, qualidade da roupa, caracterfsticas do corpo (unhas compridas, calos nas mios etc.). Daf a categoria tira para caracterizar aquéle que, inclusive, tira as “mds” pessoas do convivio ptiblico. A Policia Civil e a Polfoia Militar, no Rio de Janeiro, disputam a melhor técnica de tirar @ fazer ronda. Cf.'Kant de Lima (1986). A TRADICAO INQUISITORIAL 73 as fung6es de Vigilancia da populagéo, para man- ter a ordem publica, inevitavélmente ela confron- tase novamente com “esses “conhecidos margi- nais”. Ocorre, entéo, muitas vezes, que a policia torna a prendé-los, vindo .eventualmiente a>tor: turélos e matélos. Fazendo isso, ela atua con- tra a lei, e os policiais sio eventualmente julga- dos e condenados pelo seu comportamento ilegal. A polfcia justitica 0 seu comportamento “fora-dalei” alegando ter certeza de que posstti © conhecimento testemunhal, “verdadetro” dos fatos: ela estava ld. Alega, também, que em cer- tas ocasides 6 necessdrio “tomar a justica em suas proprias mos”. No contexto de meu tra- balho de campo isto muitas -vezes. significava que, em certos casos, a policia aplivatia a sua ética para adjudicar e punir, ao invés de deixar essa tarefa aos procedimentos judiciais e seus prinefpios, como “manda a lei”, A policia muitas vezes justifica seu julga- mento, que afirma ser superior ao julgamento Judicial, pela sua ,proximidade ao “mundo do crime”, pela sua “éxperiéncia” da “realidade dos fatos”. Portanto, d’que faz o julgamento policial suspeito do ponto de vista do Judiciario é exata- mente o que o torna superior aos olhos da polf- . A policia identifica seu conhecimento espe- cifico com sua identidade frente ao sistema ju- dicial, e por esse conhecimento também 6 iden- tificada pelo sistema. Por exemplo, quando um delegado recu- sou-se a aceitar a “contribuig&io” que os bichei- ros davam regularmente & delegacia para que néo reprimisse os contraventores, ele foi suces- sivamente transferido de delegacia a delegacia, até finalmente concordar em aceitar uma con- tribuic&o que, embora minima, simbolizava sua ades&o aos principios e praticas da ética policial. Em outro caso, presenciei um didlogo re- presentativo do estilo prdprio do linguajar dos delegados — entre um delegado titular e seu co- missério. O delegado titular reclamava que o comissario’ (também chamado de delegado no Rio de Janeiro) nfo deixava que batessem nos presos durante o seu plantio, pritica consid rada pela policia como essencial ao desenvol mento das investigagdes policiais e criteriosa “apuragio dos fatos”. Ou seja, a “confissio dos culpados”: “— Olhe, Fulano, voce estd me criando problemas. O pessoal me disse que quando vocé estd de servigo eles néo podem dar um.‘bolinho’ [bater na palma da mao e nas solas dos pés de uma pessoa com uma palmatéria — uma puni- ¢do tradicional de escravos no Brasil] nos caras, que eles nao podem fazer nada, vocé sabe... — Doutor, isso é verdade, mas também é certo que no meu plantéo o senhor néo vé ne- nhuma sacanagem, nenhum interesse excuso acontecendo na delegacia, .. — , isso é verdade. Mas veja vocé, quan- do eu durmo de um lado do meu travesseiro, eu acho isso timo. Eu estou em casa sem-me preo- cupar com o que possa estar acontecendo aqui, eu sei que néo tem nenhuma sacanagem rolando. Mas vocé veja bem, quando eu durmo do outro lado do meu travesseiro, eu fico pensando: ‘voce tem certeza de que tudo estd legal?’ Porque nin- guém estd descobrindo nada, porque ele ndo dei- a botar ninguém na cadeia, ele nao deiza nin- guém, ele néo deiza nada...’ Entéo, quando eu durmo de um lado do meu travesseiro, tudo vai bem, mas quando eu durmo do outro lado, tudo ‘vai mal... % importante notar os efeitos dessas- técnicas investigatérias para o processo judicial. As ve- zes, constatada a tortura, o promotor “pede jus- tiga”, 0 que implica néo acusar o réu, Tal pré- tica esta relacionada a lei que profbe (art. 42, CPP) o promotor de: desistir da ago penal pu- blica apés a efetivacsio da denuncia pelo Minis- tério Puiblico, que é 0 titular, “dono” da agéo penal. Nestes casos, 0 réu, absolvido, passa a funcionar como mais um exemplo, para a cul- tura policial, de que a justica tem de ser feita “pelas prdprias maos”, uma vez que o Judicidrio € incompetente para fazéla. O caso é diferente no sistema americano, porque ld as evidéncias nao “entraram” no processo, néo foram consi- deradas validas. Aqui, os fatos entraram no pro- cesso e a policia descobriu a verdade; foi eficaz — dentro dos prinefpios inquisitoriais que re- gem sua atuagéio — e nfo obteve a condenagio. Esses procedimentos inquisitoriais podem produzir, também, um efeito perverso: a com fisso sob coagdo pode levar a policia a0 bom ir 74 CULTURA JURIDICA E PRATICAS POLICIAIS: term das investigagées, sendo trazidos aos au- tos, além da confissio, outros indicios de culpa- bilidade do réu. Nesses casos, mesmo com as recentes disposigses da nova Constituigiio, de que “sdo inadmissivels, no proceso, as provas obtidas por meios ilfcitos (art. 5, LVI), 0 juiz pode condenar o réu baseando-se em outros in- dicios, produzidos pelo inquérito policial (e néo no processo), que 0 convenceram da culpabili- dade do acusado..# claro que pode, concomitan- temente, uma vez constatada a coagio, mandar tirar cépias dos autos e envid-las ao Ministério Publico, para que processe os responsdveis. Isto, no entanto, nfo anula os efeitos da condenacaio do, réu, ¥ assim que as préticas inquisitoriais e, muitas vezes, ilegais da policia entram nfoofi- cialmente no processo judicial e produzem efei- tos legais. Por outro lado, quando o inquérito poli- cial é “perfeito”, juridicamente falando — por exemplo, quando acompanhado desde 0 inicio por um promotor —, muitas vezes a policia nada apura. Este procedimento de designar um pro- motor para acompanhar o inquérito, alids, foi citado por um especialista como um artificio a ser empregado quando nada se quer apurar.... (Thompson, 1983). Tais consideragdes demons- tram que a ética policial nfo é necessariamente dependente de disposicées legais, sendo sua de- finigdo e aplicagéo de exclusiva responsabilida- de da instituicao. Por isso os prineipios formais que regem a adjudicago e punicio policiais podem ser di- ferentes dos prinefpios que regem a adjudica- $Go ¢ a punicéo judiciais. Por exemplo, a adju- dicagéo policial é basicamente estruturada em um sistema de negociacdo preliminar, em certos casos, enquanto 0 processo penal brasileiro n&io admité a negociagio, em especial em crimes de ago piblica. Em termos de punigéo, as puni- 6es policiais — exposigio ao ridiculo, tortura e.morte, por exemplo — so penas tradicionais (ct. Foucault, 1974), mas hoje expressamente abolidas de nosso Cédigo, consideradas “barba- ras'Le indignas de nosso “estado de civilizacdo”. A- utilizagéo de técnicas inquisitoriais — que nao fazem parte da “linguagem” do siste- ma judicial —pelos policiais 6 atribufda ao seu contato Wireto e conhecimento prtico dos cédi- gos culturais que emprestam significados aos fatos considerados criminosos. Nas palavras de um delegado: “No morro, 0 camarada mata por causa de uma discussdo a respeito de um porco. Mas 0 porco ndio € 0 motivo da briga. O caso.é que no morro © cara ndo pode apanhar na cara em piiblico; ele néo pode simplesmente voltar pra casa de- pois da briga. O ambiente erige dele uma certa atitude. # como se tivesse um-alto-falante anun- ciando 0 comportamento das pessoas. Se bate- rem em mim perto do lugar onde eu moro, nin- guém vai ficar sabendo. Mas se eu vivesse no ‘morro e apanhasse na tendinha, todo mundo ia saber. Acontece muito com os comerciantes. Eles contratam algum matador profissional, que nao tem nada a perder, para matar o agressor. Mas veja, eles tém que fazer isso, se eles quiserem continuar vivendo ali.” Esses c6digos séo considerados pelos policiais como partilhados pelas parcelas da populagéo @ quem se aplicam as praticas adjudicatérias © punitivas da polfcia. “A cadeia é boa demais pra esse pessoal. Eles gostam da cadeia. Lé eles tém comida, cama e roupa lavada de graga. Eles no tém isso em casa. A cadeia é boa demais pra eles” — afirmou um deles. A policia estrutura e justifica suas repre- sentagdes dessas diferencas culturais classifican- do os diferentes cédigos dentro de uma hierar- quia, Sua concepgdo da diversidade cultural afi- na-se com um esquema unilinear, “natural”, de “evolugao cultural”, do simples ao completo, do rural a0 urbano, do primitivo ao civilizado, do inferior ao superior: “(...) @ evolugdo da lei caminka com a evolu- gG0 da humanjdade. Mas esse processo néo é parelho nem homogéneo. No interior, por exem- plo, pode haver menos crimes, mas eles sao fre- gilentemente bdrbaros. O uso tradicional de ar- ‘mas brancas comprova o estado menos civiliza- do desse pessoal. Essas pessoas, quando migram para a cidade, trazem com elas as suas tradi- g6es atrasadas e as suas armas.” Também, segundo esse delegado, a passagem do-tempo trouxe uma -evolugio, uma “civiliza- 40” da criminalidade. De acordo com ele, ‘os criminosos aritigamente eram menos civilizados. Por exemplo, eles usavam nayalhas para come- ter seus crimes ¢ para lutar entre si. Na concep- 0 do delegado a navalha é um instrumento mais “bérbaro”; porque nfo somente mata co- mo também produz horriveis marcas no corpo, A’ TRADICAO. INQUISITORIAL cicatrizes desfigurantes. O revélver 6 muito mais “civilizado”. Em sua opiniio, um individuo que defxa sua casa com uma navalha no bolso esté pretendendo cometer um crime, ferir alguém gravemente.em algum momento, Quando ep.the disse que achava que um revolver era um ins- trumento muito mais eficiente do que a nava- Tha para matar alguém, ele concordou comigo. Entretanto, reafirmou seu julgamento sobre a “qualidade” barbara, pouco civilizada da nava- tha, Para ele qualquer uso de arma-branca esté ligado a primitivos estagios de civilizagio e 6, portanto, “bérbaro” (16). © processo de decisio da policia quando lida com as préticas consideradas criminosas depende desse esquema evolutivo, Essa ideolo- gia é responsével pela classificago dos fatos e atos de seus agentes de acordo com a classifi- cagdo atribuida pela policia ao cddigo cultural dos participantes em qualquer ocorréncia poli- cial. Esta é a razéo pela qual uma luta no morro € classificada ‘como “agressio”, sujeita & adju- dicag&o e punig&o“pelo “‘cédigo” policial, e uma Juta entre a classe média ou rica pode tornar-se uma “lesdo corporal”, crime a ser julgado pelo juiz através do sistema judicial, que emprega padres culturais semelhantes aqueles das clas- ses média e alta da sociedade brasileira, Apesar de a “experiéncia” da policia ser rotulada pelo sistema judicial como precéria e néo-definitiva, ela constitui a base da identidade da instituigo. A policia considera que suas re- ‘presentagdes do significado das diferencas cul- turais no seio da populagiio so a cohseqiiéncia da experiéncia particular, especifica, da pratica policial. Por isso, vé as representagdes da socie- dade como “suas” e julgase responsdvel por elas. Quando se vé impossibilitada de “traduzir” essa experiéncia eficazmente, em linguagem e procedimentos juridicamente eficazes, ela rea- ge, passando @ usar seus préprios julgamentos para lidar com essa heterogeneidade cultural. Ou seja, os mesmos fatos so diferentemente i terpretadas de acordo com os distintos meios culturais dos agentes envolvidos. A identidade da policia, portanto, confirma as concepgées hie- rérquicas da sociedade presentes no sistema ju- dicial republican, tornando-a diferente e, por- 16 — Veja-se Foucault (1987) e Paixio (1987), para ima discusséo mais aprofundada sobre tradigies e justifi- cativas da punigdo. 15 tanto, complementar e néio-competitiva em rela- ho ao Judiciério. A ideologia policial, entretanto, néo’ é um fendmeno isolado na sociedade brasileira. Ao contrario, est4 fortemente ligada a: representa- ges bastante semelhantes refererites & “diversi- dade cultural do Pais, encontradas em oufros lugares de nossa sociedade. Na verdade, repre- sentagées elitistas e evolucionistas da cultura e Sociedade sao tradicionais em nossa cultura ju- ridica e permeiam o pensamento social no Bra- sil, bem como justificam prdticas sociais discri- minatérias em nossa sociedade (17). Por exemplo, o-principal argumento para a reforma processual que substituiu o sistema acusatério baseado no jtiri no século XIX fo- rami as caracteristicas “‘incivilizadas” e “atrasa- das” da “maioria da populacdo brasileira”. As elites politicas e juridicas atribufram unanime- mente o fracasso do sistema do jtiri no Brasil no aos aspectos formais da instituicéo legal, mas ao “atraso cultural” da nossa sociedade. O sistema do jtiri foi considerado “avancado de- mais” para a maioria da sociedade brasileira (Flory, 1982; Kant de Lima, 1983). # claro que © sistema no era considerado demasiado avan- cado para as elites, que se auto-atribuiam, des- sa forma, um lugar “mais adiantado” cultural- mente do que aquele da maioria da populagéo. Outro exemplo é uma famosa reforma cri- minal de fins do século passado, que propés di- ferentes graus de responsabilidade criminal para diferentes setores “raciais” da populacéo. Basi- camente, esse ‘projeto estabelecia que diferentés cédigos ‘criminais deveriam ser aplicados de acordo com as diversas origens “raciais” dos criminosos (Rodrigues, 1957). As pessoas de pele negra eram comparadas a criancas em termos de desenvolvimento intelectual e psicoldgico. Assim, segundo seu autor, nio era justo subme- ter pessoas de diferentes origens “raciais” — de- terminadas pela cor de sua pele — a idénticos critérios de responsabilidade criminal (18). ra_ (1986) sobre a juridica 18 — Note-se que, mesmo para -aqueles que ainda .jub gam de utilidade 0 conceito de “raga”, néo se'trata mais de, uma nogio tipolégica baseada em fendtipos, mas de uma nogSo estatistica referida 8 maior incidéncia de certos gens em uma dada populagdo. Cf., por exemplo, Dunn ¢ Dobzhansky (1951) e Comag et lif (1960). =." 76 CULTURA JURIDICA E PRATICAS POLICIAIS: Algumas dessas idéias, oriundas da “an- tropologia fisica” ¢ da “medicina legal” brasi- leiras do século passado, ainda estio em vigén- cia entre nossos “juristas”, legitimadas especial- mente pelo saber médico-legal. Embora as ori. gens raciais das diferencas culturais nfo sejam, hoje, argumento téo fortemente majoritario co- mo eram no século passado, elas nid estéo com- pletamente erradicadas de nosso pensamento social, corno 0 demonstra a relativamente re- cente reedigo do livro de Nina Rodrigues men- cionado acima. No prefécio a esta edigdio, da- tada de 1957, 0 catedratico de Medicina Legal da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Direi- to da Universidade da Bahia e também diretor do Instituto Nina Rodrigues, o instituto crimi- nalistico do Estado da Bahia, reafirma as teses de Nina Rodrigues: “Veja-se a claridade e firmeza desta concluséo das primeiras paginas, assim valiosa hoje, quan- to ontem: ‘/...) @ cada fase da evolugao social de um povo, e ainda melhor, a cada fase da evo- lugdo da humanidade, se se comparam racas an- tropologicamente distintas, corresponde uma cri- minalidade propria, em harmonia e de acordo com o grau do seu desenvolvimento intelectual e moral.’” (Rodrigues, 1957, pp. 6-7, grifo meu). Nao seria demais enfatizar que o autor do pre: facio, além de catedrético de Medicina Legal — cadeira obrigatéria para os estudantes de Di reito & Medicina no Brasil —, é também, e’pri cipalmente, diretor do instituto de criminalistica do estado e, como tal, autoridade legitimada pelo sistema judicial para emitir laudos e pareceres técnicos sobre as circunstancias e agentes de cri- mes perpetrados. Embora explicagées racistas da heteroge- neidade cultural brasileira nfo tenham mais una- nimidade em nogso pensamento Social, é do co- nhecimento de todos 0 preconceito, ainda dito “racial”, que discrimina as pessoas de pele ne- gra-no Brasil. Estas pessoas sio ainda conside- radas comio culturalmente inferiores por amplos setores da populacio, o que inclui delegados (que séo obrigatoriamente formados em Direi- to) e policiais. Pude também observar, durante a pesqui- sa, como tanto a defesa como o Ministérig Pu- blico estabelecem correlages entre 0 status so- Gial econémico do réu e seu estigio de “evo. lugAd cultural”. Intimeras vézes ouvi advogados dejenderem seus clientes claésificando-os de “ civilizados”, como se pertencessem a0 dominio da “natureza”. O argumentd da defesa, nesses casos, é 0 de que 0 cliente no sabia o que es- tava fazendo porque é um “animal”, desprovido de cultura e, portanto, incapaz de compreender © comportamento civilizado e as leis. Desta for- ma, niio pode ser considerado “responsdvel” por seus atos. Como se vé, uma variante do argu. mento de Nina Rodrigues ainda esta em vigén- cia na cultura juridica posta em pritica nos tri- bunais do Rio de Janeiro. ‘Mas nfo 6 s6 a “responsabilidade” que é diferenciada segundo o status social e cultural do acusado.'O préprio uso da forea e, conse- qtientemente, a criminalidade dita “violenta” também sio considerados como “privativos” das classes baixas. Haja visto 0 esc&ndalo puiblico © os debates suscitados no caso do médico Hos- many, acusado de “assaltos” e homicidios. Tais discussées, que ganharam amplo espaco nas te- levisdes e jornais, tinham todas a motivagso de “explicar” por que um cirurgifio plastico bem- sucedido havia se deixado setluzir pela carreira criminosa. Afinal, como era‘comum se afirmar na época, “ele tinha tudo....”. A propria lei nio “prediz” e, conseqtien- temente, néo tem instrumentos para lidar com a violéncia fisica em “brigas de familia”, por exemplo. Esses casos sfio, em regra, adjudica- dos pela policia com a cumplicidade das partes. (Entretanto, se as partes solicitam a intervengao “0 Judicidrio, essas questées podem tornar-se “problemas” de dificil solucdo. Tal foi o caso que registrei, de um ma- Tido de classe média, ex-oficial das forgas arma- das, separado da esposa e que, mesmo assim, néio permitia que ela se encontrasse com outros homens, ameacando e, eventualnente, agredin- do fisicamente seus pretendentes. A ex-esposa “entrou na justiga” mas, como o exmarido era inifitar e tinha privilégios pela lei éii termos de prisGo especial, apesar de condenado, continuou a importuné-la, reconhgvendo o juiz, na ocasiao, que’ a “lei” nfio dispunha de instrumentos para Tesolver 0 caso, pois 0 exmarido deveria, pri- meiro, ser preso e acusado formalmente pelos agredidos para que se verificasse sua punigéo. Como ele ou nao infringia a “lei” ou nao cau- A TRADICAO INQUISITORIAL sava “les6es corporais graves” aos seus adver- sérios, pouco a justica podia fazer (19). ‘Ao contrério, qdando os litigantes sio de status social baixo, a violéncia fisica é assumi- da pela policia como parte integrante do .coti- diano dessas pessoas. Para adequar-se a esses padrées, a policia aplica um cédigo que julga essas “agressdes” de forma distinta, legitiman- do, a0 mesmo tempo, o uso que ela mesma faz, eventualmente, da violéncia contra esses seg- mentos da populagéo: “Essa é a tinica lingua- gem que esse pessoal entende”. Outra conseaiiéncia dessa correlagio en- tre violéncia fisica e status social § que apenas recentemente a tortura policial, empregada tra- dicionalmente pela policia como forma de inves- tigag&o e punic&o, tornou-se um tema em nossa sociedade. Uma hipétese sobre a azo dessa st- ‘bita visibilidade foi seu emprego com prisionei- ros politicos, na maioria oriundos das classes média e alta (Pinheiro, 1981). Fica claro, assim, que as concepgées ju- ridicas elitistas ofdenam as diferencas culturais individuais e de segmentos ou grupos da socie- dade num continuum cujos pdlos sio, de um lado, um estégio cultural incivilizado, primitivo, “natural” e inferior e, de outro, um “superior” estdgio de cultura e civilizagéo. Tais concepgoes so no sé extra-oficiais, como chegam mesmo a se institucionalizar. Ko caso da prisdo espe- cial, que no Cédigo de Processo Penal (art. 295) aparece como uma excepcionalidade a ser apli- cada a um mimero cada vez maior de catego- rias sociais e profissionais. O Cédigo, legalmen- te, atribui tratamento diferenciado para pessoas que tenham cometido 0 mesmo crime em fun- 40, por exemplo, de terem curso superior, ou terem sido agraciadas com alguma Ordem -do ‘Mérito etc. Isto, num pais em que 2 Constitui- go estabelece que “todos so iguais perante a lei” (Emenda Constitucional ne 1, art. 153, pa- régrafo 19). Os: critérios que orientam as praticas po- liciais, portanto, contrariamente ao que pensa a polfcia, néo derivam de. sua “experiéncia” espe- 19 —

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