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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012.

Pp. 95-122.

Conflitos religiosos e a construção do respeito à diversidade: breve histórico e


iniciativas recentes1
Christina Vital da Cunha2

“Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e


religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a
liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo
culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em
particular”. (Art. 18 – Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Neste capítulo tenho como objetivo analisar o cenário de conflitos no campo


religioso carioca a partir de uma perspectiva histórico-antropológica. Sendo assim,
traçaremos relações entre situações de intolerância religiosa no passado e no presente e
as iniciativas em prol do respeito à diversidade religiosa promovidas seja por entidades
públicas, privadas ou oriundas do movimento social. O material que sustenta estas
análises tem uma base empírica (com a realização de seis entrevistas semi-estruturadas
com atores centrais no debate sobre a intolerância religiosa no Rio de Janeiro3 e
acompanhamento, via web e presencialmente, de discussões de religiosos engajados no
movimento de combate à intolerância religiosa) e outra fundada em análise de
informações documentais e da revisão da bibliografia a respeito do tema proposto.

A presença histórica da intolerância no campo religioso brasileiro


“(...) a noção genérica de ‘religião’ a partir da qual se garantiram legalmente
a liberdade religiosa e a expressão dos cultos teve como matriz o intenso
debate jurídico sobre a melhor maneira de regular os bens, as obras e as
formas de associação da Igreja Católica. Na formulação de Giumbelli, as
disputas em torno da liberdade religiosa que constituíram o espaço civil
republicano nunca versaram sobre ‘qual religião teria liberdade, mas quase
sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religião [católica], uma vez que
não havia então qualquer outro culto estabelecido, nem se concebiam outras
práticas populares como religiosas’”. (Monteiro, 2006, p.5)

1
Neste artigo utilizo parte do material coletado durante a pesquisa realizada para a elaboração de um
Diagnóstico sobre o quadro da Intolerância Religiosa no Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa foi
solicitada pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro e foi
realizada entre os meses de novembro de 2010 e junho de 2011. Para a coleta de dados contei com a
preciosa colaboração de Janayna Lui, doutora em Antropologia pelo PPGSA/UFRJ.
2
Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Integrante do CEVIS e
da Rede de pesquisadores luso brasileiros de arte urbana. Colaboradora do ISER.
3
Foram entrevistados: autoridades do sistema judiciário (promotor e delegado integrantes da Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro); lideranças religiosas que militam pelo respeito à
liberdade religiosa em âmbito local e nacional; estudiosos do tema. Foi convidado a nos conceder
entrevista o presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, mas o convite foi negado.

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O que se convencionou mais recentemente chamar de intolerância religiosa foi


constitutiva do processo de colonização do Brasil, deixando suas marcas no âmbito
cultural e político-estatal até os dias atuais. Assim, observamos a presença constante da
intolerância religiosa em nossa história, com mudanças que dizem respeito aos atores
que a perpetraram/perpetram (ora colonizadores, ora agentes do estado, ora líderes
religiosos) e aos argumentos que baseavam/baseiam suas ações. Deste modo, do ponto
de vista estratégico/argumentativo, os colonizadores empreendiam ações violentas
contra crenças e tradições religiosas diferentes do catolicismo baseados no caráter
civilizador que desempenharia a doutrina e as práticas católicas em oposição às
cosmologias aqui encontradas entre os indígenas (e, posteriormente, entre os escravos
vindos da África). Em meados do século XX os agentes do Estado perseguiram
membros ligados aos cultos afro-brasileiros informados pelos ideais da ordem pública
(os quais seriam violados, na perspectivas destes agentes/Estado, pelo modo de vida e
pelas práticas religiosas dos “marginais” que estariam ligados a estas tradições). Mais
contemporaneamente os discursos em torno da extirpação do Mal fundamentam as
ações violentas na direção das religiões de matriz africana, de seus fieis e de seus
espaços sagrados.
A intensa relação do catolicismo com o Brasil é observada desde o período
colonial. Assim, vimos que o processo de colonização, século XVI, foi realizado numa
parceria entre o governo português e as missões de padres jesuítas (1549), de carmelitas
descalços (1580), de beneditinos (1581), de franciscanos (1584), de capuchinhos
(1642), entre outros. Os missionários foram elementos centrais na tentativa de
implantação de um modelo produtivo e civilizatório que tinha como referência a
metrópole portuguesa. Até meados do século XVIII o Estado controlou a atividade
eclesiástica na colônia por meio do padroado. Arcava com o sustento da Igreja e
impedia a entrada no Brasil de outros cultos, em troca de reconhecimento e obediência.
O Estado, por exemplo, nomeava e remunerava párocos e bispos e concedia licença para
a construção de igrejas. Ainda no período colonial exigia-se que todos os colonos
fossem católicos, a religião oficial no Brasil de então. Ao longo dos séculos que se
seguiram à chegada dos colonizadores, os leigos portugueses desempenharam
importante papel na expansão do catolicismo no Brasil, sobretudo nas regiões
interioranas nas quais a presença de padres e clérigos era rara. Muito embora os leigos
tenham desempenhado este papel fundamental, o catolicismo popular que difundiam foi
alvo de estigmatização por parte do catolicismo oficial como sendo “feitiçaria,
superstição, arte mágica e pacto com o diabo” (Botas, 2009:38)4.
Do ponto de vista legal, era expressamente proibido professar outra religião que
não a Católica Apostólica Romana. Conforme nos lembra Marlise Vinagre Silva
(2009:136-37):
“Primeiramente, o país esteve sob a égide das Ordenações do Reino – Afonsinas (1446-1521),
Manoelinas (1521-1603) e Filipinas (1603-1830), com nítida influência do direito positivo
romano, associado ao direito canônico. Sob esta influência legal, o país criminalizava e punia a
heresia, a negação e a blasfêmia de Deus (leia-se do único deus reconhecido, o Deus cristão),
assim como as reuniões e festas organizadas por escravos e a prática denominada de feitiçaria.
Neste último caso, vale dizer que a feitiçaria era atribuída às diferentes práticas religiosas
desenvolvidas pelos africanos de diferentes etnias trazidos para o Brasil na condição de escravos
e seus descendentes. A punição, nesses casos, era a pena capital (Pierangelli, 1996, p. 134-57
apud Silva Jr., 2008). Como mostram vários estudos, a reunião de negros escravos, ex-escravos,
libertos e livres e de afodescendentes, sob o pretexto de culto aos inquices (tradição banto),

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Para saber mais ver também Miranda, 1999.

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vodus (tradição jêje) e orixás (tradição nagô/ioruba), nos calundus, candomblés, xangôs,
batuques etc., ou de prática social nas rodas de capoeira, samba de roda, jongo e outras
manifestações culturais era abertamente reprimida, posto que oportunizava a reinvenção de suas
tradições culturais, associação e organização política”.

A relação simbiótica entre Estado e Igreja Católica vigorou também durante o


Império. Sendo assim, no código criminal vigente em 1830, em seu artigo 276, observa-
se a punição à celebração, à propaganda ou ao culto de confissão religiosa diferente da
oficial (religião católica).
Somente com a República, ao final do século XIX, vamos observar uma guinada
em direção à separação oficial do Estado da Igreja Católica. A primeira Constituição da
República, que data de 1891, é laica, logo, prevê a separação entre o poder político e as
instituições religiosas, não permitindo a interferência direta de um determinado poder
religioso nas questões do Estado.

“Em decorrência do princípio da Liberdade Religiosa, previsto na Constituição, o Estado deve


garantir ao cidadão a liberdade de escolha de sua religião, com base em sua consciência
individual, com íntima relação com o seu Deus, nada podendo interferir nesta relação metafísica.
O Estado também tem como dever proporcionar a liberdade de culto para todos, independente de
filiação religiosa, sob pena de estar incorrendo em favorecimento de uma instituição religiosa em
detrimento de outra” (Zveiter, 2009:20).

O resultado do estabelecimento do Estado laico no Brasil foi a formulação de


legislações objetivando regular e garantir a liberdade religiosa. Na Constituição de 1934
a liberdade religiosa é francamente apregoada. No Código Penal brasileiro de 1940
observa-se, entre outros, o impedimento ao constrangimento público de alguém em
razão de sua crença religiosa. Vejamos.
Artigo 208, Titulo V, Capítulo I – Dos crimes contra o sentimento religioso. Ultraje a culto e
impedimento ou perturbação de ato a ele relativo

“Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou
objeto de culto religioso:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da


correspondente à violência”.

Apesar destas legislações serem importantes iniciativas no sentido da promoção


do direito à diversidade de credo e culto, observou-se episódios de violência contra
religiões (sobretudo as de matriz africana como candomblé e umbanda) no período
republicano e perpetradas pelo estado, conforme citado em momento anterior no texto.
Nas palavras de Montero:
“...as particularidades da formação do Estado e da sociedade civil no Brasil construíram o
pluralismo religioso a partir da repressão médico-legal a práticas percebidas como mágicas,

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ameaçadoras da moralidade pública. Dessa forma, o modo como hoje se apresentam as


"alternativas" religiosas resulta em grande parte de um processo de codificação de práticas no
qual médiuns e pais e mães-de-santo levaram em conta os constrangimentos de um quadro
jurídico-legal em transformação, os consensos historicamente construídos sobre o que oferece
perigo e o que pode ser aceito como prática religiosa, os repertórios de práticas pessoais
construídos ao longo de suas trajetórias de vida e as expectativas do público e dos concorrentes.
Configuraram-se assim "estilos" de culto derivados de determinadas combinações dos códigos
culturais disponíveis” (2006, p. 9).

Maggie (1992) sublinha que as tradições de matriz africana eram perseguidas


publicamente, mas eram francamente acionadas, às escondidas, não somente pelos
negros brasileiros ou pelos menos favorecidos economicamente, mas, também, pelas
camadas médias e altas de nossa sociedade. Estas tradições chamadas de magia (em
oposição às religiões que seriam reconhecidas socialmente e identificadas com o Bem)
“se esconde do coletivo e do público, reservando-se a espaços mais individuais e
privados. Crentes da magia e da religião podem compartilhar os mesmos deuses, mas os
cultuam em domínios diferentes” (Op. Cit.: 21). No entanto, continua a autora, a magia
“transborda os limites espaciais da casa onde se realizam os rituais e insiste em aparecer
em locais públicos de forma misteriosa, às escondidas – nos despachos, oferendas, ebós,
feitiço” (ibdem: 21).
Para Maggie (1992; 1975), a magia das religiões afro-brasileiras estava
associada à produção de malefícios. Este entendimento sobre o que faziam as tradições
afro teria sido responsável, segundo a autora, pela maior parte da procura pelos centros,
terreiros, curandeiros e benzedeiras. Mas, o que significava a sua força, isto é, seu poder
mágico de fazer o Mal, teria sido, ainda segundo a autora, responsável pela oposição
que juízes, promotores, advogados e policiais tinham em relação a estas tradições. De
1890 (quando foram criados mecanismos legais de combate aos feiticeiros no Código
Penal) a 1945, um sem número de processos foram instaurados e buscas policiais foram
realizadas. Estas resultaram, por exemplo, na formação de um acervo chamado Coleção
de Magia Negra do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro5. No entanto,
vale ressaltar, a perseguição policial aos representantes das religiões afrobrasileiras não
era indiscriminada. Maggie sustenta, assim como Dantas (1983 apud Maggie, 1992),
que a repressão aos centros era uma perseguição à religiosidade negra e pobre e aos
criminosos de outros tipos legais, pois “enquanto alguns terreiros eram violentamente
reprimidos, outros eram protegidos por intelectuais da elite local. Esses últimos –
geralmente os nagôs puros – foram isentos da acusação de impuros e mágicos e alçados
ao status de religião, fora do alcance da polícia” (Op. Cit. : 24).
Em relatório encaminhado à Organização das Nações Unidas em 2009 pela
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa6 lê-se:

“Mesmo com o fim da escravidão no Brasil, no final do século XIX, os negros e afrodescentes se
mantinham em condições sub-humanas. O fim da escravidão não representou melhoria na
qualidade de vida desta população. Sem trabalho, sem estudo e sem moradia, iniciaram
construções de barracos (de madeira) nas encostas dos morros e na periferia das cidades.

5
Para saber mais acessar www.policiacivil.rj.gov.br/museu/historico.html

6
“Relatório de casos assistidos e monitorados pela comissão de combate à intolerância religiosa no
Estado do Rio de Janeiro e no Brasil” entregue a Martin Uhomoibai, presidente do Conselho de Direitos
Humanos da ONU, em 2009.

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Também não deixaram de ser perseguidos pelo novo governo, quando o assunto era o culto às
suas tradições religiosas. O Estado brasileiro utilizava-se de suas polícias para prender, invadir
casas e quebrar objetos litúrgicos daqueles que “entoavam seus atabaques para agradar os deuses
e rememorar seus ancestrais africanos”. O candomblé e a umbanda, como se denominam as
religiões de origem africana, eram oficialmente proibidos no Brasil, na forma da Lei. Esta
proibição, por parte do Estado brasileiro, durou quase um século no período republicano. No
final da década de 1950, por iniciativa da yalorixá Eugênia Ana dos Santos (filha de africanos
Gruncis e sacerdotisa da tradição yorubá), foi que o governo decretou o fim da proibição das
manifestações religiosas de origem africana no país”.

Passado o período de perseguição e destruição de templos religiosos do


candomblé e umbanda pela polícia, com sustentação legal e visando (ao menos do ponto
de vista legal e discursivo) à ordem, não teve fim a estigmatização e a violência contra
os fieis destas tradições religiosas conforme apontam inúmeros estudos históricos e
etnográficos.

Os neo-pentecostais na corrida contra o “Mal”: novos atores na perseguição contra


as religiões afrobrasileiras.

A centralidade do catolicismo não se desfez com o estabelecimento do Estado


Laico. No entanto, o crescimento de outros grupos cristãos, os evangélicos pentecostais
e neo-pentecostais, viria a mudar o campo religioso em termos das relações de força
internas e externas a ele. Diferentemente das outras tradições religiosas presentes no
Brasil, os evangélicos não se conformaram com um papel submisso em relação à Igreja
Católica e nem são caracterizados como quietistas: são expansionistas, disputam o
espaço público com os símbolos e representantes católicos que ali estavam com lugares
“naturalmente” estabelecidos, ocupam cargos políticos em nível municipal, estadual e
federal, promovem assistência social nas periferias, favelas e no interior do país, estão
na mídia radiofônica, televisiva e virtual.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE -, em
1940 os católicos somavam 95,2% da população nacional, enquanto os evangélicos
(chegados ao Brasil em 1910) representavam 2,6% dos brasileiros. Os censos seguintes
mostraram o crescimento dos que se declaravam evangélicos em detrimento daqueles
que se declaravam católicos. No entanto, é a partir da década de 1980 que o crescimento
evangélico se torna mais expressivo, assim como a queda relativa no número dos que se
declaravam católicos. Dados do Censo IBGE de 1990 podemos observar que 83,8% se
declaravam católicos e 9% dos brasileiros se declaravam evangélicos. Dez anos depois,
o Censo do IBGE apontava para a presença de 73,8% de católicos e 15,5% de
evangélicos. Ainda no Censo do IBGE de 2000, observamos a ínfima parcela de
declarantes kardecistas (1,4%) e do candomblé e umbanda (total de 0,3%). Embora os
dados do Censo do IBGE 2010 ainda não tenham sido divulgados para o quesito
Religião, pesquisas apontam que a tendência de crescimento evangélico e de decréscimo
católico se mantém. Dados do Instituto de Pesquisa DataFolha de 2010 mostram que
25% dos brasileiros se declaram evangélicos (sendo 19% pentecostais e neo-
pentecostais) e 61% católicos.
Sobre as mudanças estatísticas sinalizadas pelas pesquisas acima citadas, vale
destacar o crescimento relativo do segmento pentecostal/neopentecostal. Este é o
segmento que se encontra no centro do debate atual sobre intolerância religiosa. Melhor
ainda, são os representantes destas religiões e os fieis de suas igrejas aqueles que são
citados em documentos e em manifestações como os principais ofensores e violadores
do respeito fundamental à liberdade de expressão, credo e culto religioso no Rio de

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Janeiro e no Brasil. A organização de maior destaque na articulação para o combate à


intolerância religiosa no estado do Rio de Janeiro é a CEAP – Centro de Articulação de
Populações Marginalizadas – e a CCIR – Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa7. Os militantes do movimento negro e lideranças de diferentes religiões que se
reúnem nestas organizações produziram documentos8 que apontam os neopentecostais,
notadamente a IURD – Igreja Universal do Reino de Deus – como o inimigo número
um da liberdade religiosa. A IURD é responsabilizada diretamente pela produção e
veiculação de conteúdos (em programas televisivos, em livros, jornais, etc.) que
discriminam as religiões de matriz africana e acusam suas lideranças de charlatanismo,
entre outros. É esta igreja responsável pelo caso de discriminação religiosa contra uma
mãe de santo na Bahia que resultou numa mobilização pelo estabelecimento do dia 21
de janeiro (foi neste dia, em 1999, que a mãe de santo faleceu em decorrência das
difamações a ela proferidas na Folha Universal9) como o dia nacional de combate à
intolerância religiosa. O dia nacional de combate à intolerância religiosa foi decretado
pelo Congresso Nacional e sancionado pelo então presidente Luiz Ignácio Lula da Silva
na forma da lei 11.635 de 27 de dezembro de 2007.
Não só pelos conteúdos veiculados a IURD está no centro deste debate, mas por
ter inaugurado, com o seu surgimento em 1977, uma “Batalha Espiritual” (Mariz, 1999;
Mariano, 1999) contra o “Mal’ que estaria personificado nas entidades da umbanda e
nos orixás do candomblé. A produção deste discurso direcionado ao combate destas
religiões vem resultando em ofensas e ataques violentos contra lugares e objetos
sagrados, assim como às lideranças e fiéis das religiões em questão.
Mais grave que os ataques diretos promovidos pelos neo-pentecostais da IURD e
de outras centenas de denominações que professam a “Batalha Espiritual”, é a leniência
em relação à discriminação pública e difusa – e, em tantos casos, violenta – das
religiões de matriz africana que graça em nossa história e que se acentuou com a difusão
da idéia de que as religiões afrobrasileiras e seus seguidores são o “Mal” ou o cultuam.
Nas favelas, é possível observar a desfiliação de muitos traficantes de drogas dos
centros de candomblé e umbanda presentes nestas localidades e a seguinte adesão a
igrejas pentecostais e neopentecostais comprometidas com a “Batalha Espiritual”. A
conseqüência disto vem sendo o estabelecimento de rearranjos no campo religioso das
favelas, com um novo reequilíbrio das forças políticas em jogo que se define pelo
fortalecimento dos evangélicos em detrimento das religiões de matriz africana (de suas
lideranças e seguidores)10. Em muitos casos, como anunciaram a mídia e os grupos
envolvidos no combate à intolerância religiosa, ao enfraquecimento político, social e
cultural do candomblé e umbanda nestas localidades, somou-se graves episódios de
violência.
Os casos de intolerância religiosa registrados no Rio de Janeiro e no Brasil não
aparecem em números muito expressivos se comparados com outros países, mas se
avolumam a partir da década de 2000. Vale lembrar ainda, como veremos mais a frente
neste artigo, que o não registro dos casos de violência não significa a baixa ocorrência
dos mesmos em nossa sociedade.

7
Ambos os grupos têm origem no Rio de Janeiro, embora desenvolvam ações nacionais. Para saber mais
ver, respectivamente, www.portalceap.org.br e www.eutenhofe.org.br
8
Dentre eles destaco o documento enviado a ONU e o Relatório anual da CCIR divulgados ambos no site
www.eutenhofe.org.br
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Mais detalhes do caso seguem à frente no texto.
10
Para saber mais ver Vital da Cunha, 2008 e 2010.

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O cenário da intolerância religiosa no Brasil e no exterior: argumentos e pesquisas

O respeito à liberdade religiosa tornou-se uma bandeira defendida nos mais variados
fóruns, congressos e seminários nacionais e internacionais. A conexão direta entre
direitos humanos e respeito à liberdade religiosa é produzida como meio de fazer valer o
que poderia parecer um direito privado e menor: o direito de professar uma religião e de
integrar seus cultos e rituais. Na VI Sessão do Conselho dos Direitos Humanos da
ONU, ocorrida em Genebra/2007, a Santa Sé tomou a palavra em defesa da liberdade
religiosa através de seu Observador Permanente, Arcebispo Silvano Tomasi. Ele
ressaltou uma característica singular do direito à liberdade religiosa e de culto. Em
pronunciamento disse: “O desenvolvimento da proteção e da promoção de todos os
direitos humanos fundamentais mostra que a liberdade religiosa pode servir como
elemento de síntese, como ponte entre as diversas categorias de direitos humanos". 11
No Rio de Janeiro e no Brasil, os principais argumentos acionados pelos grupos que
compõem o campo de militância contra a intolerância religiosa12 são:
1) a intolerância religiosa derivaria de ou escamotearia uma intolerância racial13.
Sendo assim, a intolerância religiosa seria fruto de ações pela evitação dos negros (de
suas expressões artísticas, culturais e, logo, religiosa);
2) a prática desta intolerância seria um atentado aos direitos humanos. Assim,
buscam promover uma adesão pública ao tema a partir do amalgama da democracia e
direitos humanos com o problema racial;
3) neste sentido, visam a associar como num formato de slogan a intolerância à
ignorância onde uma seria igual a outra;
4) a existência de um inimigo comum a todas as religiões: o neopentecostalismo
cujo representante máximo seria a IURD.
Neste cenário, estão unidos contra a intolerância religiosa as vítimas (atuais e do
passado) e seus antigos algozes. A Igreja Católica, como vimos, religião oficial de
Estado até a outorga da primeira Constituição da República em 1891 e religião
predominante em nossa cultura até o presente, é um dos principais aliados do
movimento pela defesa da liberdade religiosa no Rio de Janeiro e no Brasil. A mesma
11
Acesso: 01/01/2011. Fonte: http://storico.radiovaticana.org/por/storico/2007-
09/156151_aumenta_a_intolerancia_religiosa_no_mundo_a_santa_se_pede_defesa_da_liberdade_religios
a.html
12
Mas a frente no texto há uma identificação de alguns grupos de grande destaque na atuação nesta
temática.
13
A Agência France Presse em Londres divulgou, em 01 de julho de 2010, dados do RELATORIO –
ESTADO DAS MINORIAS E POVOS INDÍGENAS NO MUNDO 2010 da ONG MINORITY RIGHT
GROUPS INTERNATIONAL no qual a intolerância religiosa no Brasil e em outros países poderia ser
categorizada como o “novo racismo”.

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Igreja Católica que se calou diante dos vários episódios de intolerância praticados pelo
Estado quando este era autor de invasões a terreiros e centros de umbanda e candomblé
no Rio de Janeiro durante os anos 1930 até os anos 1970 hoje participa dos eventos,
encontros e seminários em prol da garantia da liberdade religiosa.
O argumento que conecta a intolerância religiosa à intolerância étnica/racial é
contestado por teses como as de Flávio Pierucci (USP) e Ricardo Mariano (PUC-RS).
Para Pierucci, tal argumento teria como pano de fundo a afirmação de uma religião que
seria negra, uma religião original, substancial e ideologicamente/idealmente de negros.
O mesmo autor revela a fragilidade deste pensamento já que, além de ser autoritário e
politicamente orientado, o cristianismo evangélico é predominantemente negro e que as
religiões como candomblé e umbanda são cada vez mais freqüentadas e exercidas pelos
brancos brasileiros. Para Mariano, no entanto, o argumento que conecta intolerância
religiosa à intolerância étnica no caso brasileiro, considerando os principais atores em
campo, não faz sentido já que a IURD e as demais igrejas neopentecostais derivadas de
sua ideologia, estão centradas na questão espiritual, na “batalha espiritual” e não numa
“batalha étnica/racial”.
Muito embora esta seja uma importante discussão no campo da antropologia e da
sociologia da religião, não será aqui desdobrada. Contudo vale salientar que a menção e
discussão dos argumentos acionados pelos atores envolvidos na militância contra a
intolerância religiosa é importante porque é a partir deles que são moldadas as
demandas por políticas públicas em âmbito local e supralocal.
O que as pesquisas revelam

Embora leis internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos


(ONU, 1948)14, a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e
discriminação baseadas em religião ou crença (25 de novembro de 1981, resolução nº
36/55)15, a Lei da Liberdade Religiosa Internacional (1998)16, a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (no sistema jurídico
americano está no Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992)17; a Resolução de
Combate à Difamação Religiosa (2007)18 venham buscar o estabelecimento de garantias

14
“Art. 18. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em
particular”.
15
“Art. 2º. Ninguém será sujeito à coerção por parte de qualquer Estado, instituição, grupo de pessoas ou
pessoas que debilitem sua liberdade de religião ou crença de sua livre escolha”.
16
O Congresso aprovou essa lei para promover a liberdade religiosa como objetivo da política externa
dos Estados Unidos e combater a perseguição religiosa em todo o mundo. A lei identifica ampla série de
ferramentas diplomáticas e econômicas que podem ser utilizadas para encorajar a liberdade de religião e a
consciência em todo o mundo como direito humano fundamental. As mais importantes dessas ferramentas
são o Relatório Anual sobre Liberdade Religiosa Internacional e a atuação direta norte-americana (através
do Escritório de Liberdade Religiosa Internacional) junto a governos estrangeiros. A lei também busca
promover a assistência norte-americana às democracias recém-formadas na implementação da liberdade
de religião e consciência.
17
“Art. 12. Liberdade de Consciência e de Religião [...] 2. Ninguém pode ser objeto de medidas
restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças ou de mudar de
religião ou de crenças”.
18
Esta legislação, que vem sendo alvo de controvérsias, pois favoreceria a perseguição a minorias
religiosas, foi aprovada em março de 2007 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.

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19
para o livre exercício de culto e de expressão religiosa, estudos internacionais
mostram um quadro alarmante:
1) A intolerância religiosa está presente em quase todos os países do mundo,
embora em diferentes gradações;
2) É mais grave em países comunistas (como Coréia do Norte, China e Laos) e
em países islâmicos (como Irã e Arábia Saudita);
3) Vem recrudescendo desde o início dos anos 2000;
4) É mais incidente contra os cristãos, pois estes estariam identificados com o
“dominador” ocidental;
5) A América Latina é considerada, relativamente, tolerante;
6) Estas pesquisas mostram oposições importantes que vêm se consolidando no
mundo e atravessam questões sociais, políticas e culturais, dentre elas a
questão da intolerância religiosa. Neste sentido, observa-se que o conflito
religioso é marcado pela oposição que vem se acentuando entre ocidente x
oriente e entre democracia x regimes ditatoriais e totalitários.
7) É importante ressaltar, ainda, a partir da análise destas pesquisas e de outras
fontes bibliográficas, que muitas das migrações e diásporas no mundo
resultam de perseguições religiosas, da intolerância religiosa praticada por
governos e sociedades contra minorias étnicas e religiosas.

Vamos às pesquisas. A classificação dos países de mais intolerantes a menos


intolerantes tem relação com a existência de leis que garantam a liberdade religiosa ou
que, por outro lado, estabelecem a religião oficial de Estado e as punições para aqueles
que não a professarem ou contra ela se rebelarem. No entanto, existem países nos quais
há leis que versam sobre o respeito à diversidade religiosa, mas que, na prática social, o
desrespeito à lei é flagrante e há grande ineficiência na garantia da punição aos autores
dos atos de discriminação e/ou violência contra as minorias religiosas.
Entretanto, nos países classificados como intolerantes, não só as minorias étnicas
e religiosas sofrem ataques do estado e/ou de segmentos sociais. Nestes também os
ateus os sofrem. Na Indonésia, por exemplo, é ilegal ser ateu. Na Arábia Saudita, país
no qual todos devem ser, por lei, muçulmanos, referir-se a si mesmo como ateu ou ex-
mulçulmano seguidor de outra religião implica em risco de ser executado por apostasia.
Somente será poupado aquele que se arrepender publicamente.
Na Coréia do Norte, país classificado como o que mais atenta contra a liberdade
religiosa20, cristãos são condenados à morte, outros são condenados a executarem

19
Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional, do Escritório de Liberdade Religiosa Internacional
do Departamento de Estado dos EUA, é publicado todo ano a partir de 1999. O Centro Internacional de
Pesquisa em Liberdade Religiosa, do Hudson Institute (www.hudson.org) Center International Religious
Freedom Survey) é responsável pela pesquisa; Classificação de países por perseguição (WWL, sigla em
inglês) é uma lista de 50 países onde a perseguição de cristãos por motivos religiosos é pior. Este relatório
é publicado a partir de 2002;

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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012.
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trabalhos forçados em campos de concentração estatais por se reunirem em “igrejas


domésticas”. No Irã, segundo país neste ranking, a polícia secreta investiga e persegue
cristãos e seguidores de outras religiões que não o islamismo. O islamismo é a religião
oficial de Estado e toda a vida social, política e econômica deve seguir conforme a
interpretação da Lei Sharia. Segundo a interpretação da Sharia no Irã, qualquer
mulçumano que abjurar deve ser morto. Nas Ilhas Maldivas, sexto país no ranking, é
proibida qualquer prática religiosa não islâmica. Estrangeiros que professam outra
religião são sistematicamente detidos e deportados para seus países de origem. No
Iêmen, só são considerados cidadãos os iemenitas que professam o islamismo. É
proibido o proselitismo religioso com vistas à conversão de muçulmanos a outras
religiões. No norte do país é proibida qualquer edificação religiosa não islâmica. O
Iraque, país que no ano de 2010 atingiu a oitava colocação no ranking dos países mais
intolerantes do mundo, há intensa migração da população oriunda do recrudescimento
dos ataques, desde 2003, aos cristãos. Dois casos ficaram muito conhecidos: 1) o
atentado à bomba contra um ônibus de estudantes que resultou na morte de três jovens
deixando mais 180 feridos; 2) o ataque à Igreja Católica Síria em Bagdá que terminou
com a morte de 58 cristãos, tendo deixado feridos mais 60 cristãos ali presentes. No
Uzbequistão, os não muçulmanos são multados e mais recentemente o estado passou a
efetuar prisões de curto prazo de fiéis de outras religiões, notadamente, católicos e
protestantes. O Estado vem também, nos últimos anos, diminuindo o número de
licenças para a construção de templos religiosos não islâmicos. Para os cristãos a
discriminação na sociedade implica em enorme dificuldade na obtenção de empregos
pelos que professam esta fé. No Laos, segundo país comunista da lista dos dez países
mais intolerantes contra os cristãos e décimo no ranking geral, há restrições legais aos
cristãos porque são considerados, no mais das vezes, como agentes americanos
infiltrados no país. Cristãos são detidos e torturados a fim de renunciarem a sua fé.
Apenas no ano de 2010, vinte e cinco cristãos foram mortos por motivos religiosos e
pelo menos mais vinte foram presos, enquanto inúmeros templos cristãos foram
atacados e destruídos.
O “Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional 2010”, do Hudson Institut,
é publicado anualmente desde 1999. Em sua metodologia avalia os casos de intolerância
religiosa ocorridos em cada país comparando, para efeitos de análise, o respeito à
liberdade religiosa com o respeito a outros direitos como políticos e civis. Os resultados
historicamente mostram que onde há mais respeito aos diretos civis há mais respeito à
liberdade religiosa. Outros resultados apresentados no relatório de 2010 (e que se
repetem com poucas variações nos relatórios de anos anteriores) alertam para o fato de
que a intolerância religiosa no mundo ocorre não somente de estados em relação a
algumas minorias religiosas, não só de umas religiões contra outras, mas também entre
seguidores de correntes distintas de uma mesma religião como no caso da discriminação
sofrida por cristãos não ortodoxos na Russia, Grécia e Armênia pelos cristãos
ortodoxos destes países; ou no caso dos muçulmanos shiites do Paquistão e da Arábia
Saudita que sofrem perseguição por parte dos Sunitas. No entanto, ainda assim, os casos
mais incidentes e mais violentos são de religiões majoritárias e de Estados contra
integrantes de minorias religiosas. Segundo o Relatório revela, desde a sua primeira
edição, estes casos ocorrem, principalmente, em países comunistas e islâmicos. Dos 20
países que menos respeitam a liberdade religiosa, 12 são de maioria islâmica. E mesmo
20
Classificação de países por perseguição de 2011. Por ordem os dez mais intolerantes, segundo este
relatório, são: Coreia do Norte, Irã, Afeganistão, Arabia Saudita, Somália, Maldivas, Iêmen, Iraque,
Uzbequistão, Laos. Para saber mais ver: www.portasabertas.org.br

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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012.
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em países nos quais há relativa proteção legal para o exercício da liberdade religiosa,
esta encontra dificuldade em ser exercida pela violência praticada na sociedade e pela
morosidade dos órgãos punitivos e repressivos do Estado. É o caso, segundo este
relatório, da Indonésia e de Bangladesh (países que figuram no 5º e 6º lugares,
respectivamente, entre os 20 mais intolerantes).
Embora o Relatório apresente os comunistas, nacionalistas e islâmicos como os
países mais intolerantes do globo, salienta que não há nenhum continente que seja
tolerante e outro intolerante. Neste sentido, apresenta que países como Japão, Brasil,
Chile, Equador, Guatemala, Botswana, Mali, Nambia, Senegal e África do Sul estão
melhor colocados na pesquisa em termos do respeito à liberdade religiosa que países
como Bélgica, França, Alemanha e Grécia.
Ainda segundo o “Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional 2010” a
Estônia e a Hungria são considerados os países nos quais mais há respeito à liberdade
religiosa. Os países que têm sua formação cultural-histórica ligada ao cristianismo e ao
budismo (Japão e Mongólia, por exemplo) são os países nos quais mais se respeita a
liberdade religiosa. A exceção, no caso dos países de tradição budista são os comunistas
que professam o materialismo como China21, Tibet, Laos e Coréia do Norte.
No cenário mundial, os países latino-americanos aparecem, em sua maioria,
como relativamente respeitadores da liberdade religiosa. O Brasil, seguindo o padrão do
que ocorre na maior parte dos países da América Latina, é avaliado como relativamente
tolerante. O Relatório de 2010, por exemplo, destaca a proteção legal para o exercício e
expressão de crenças religiosas distintas e salienta o caráter laico do Estado brasileiro.
No entanto, apresenta o número crescente de casos violentos de intolerância, sobretudo
contra seguidores de religiões de matriz africana sugerindo que somente a presença de
leis não é suficiente para se garantir o pleno exercício da liberdade religiosa. Se há
intolerância religiosa em âmbito social o Estado deve desenvolver mecanismos de modo
a garantir o exercício dos direitos pelos cidadãos afetados pela situação. Alguns casos
registrados na imprensa (como na matéria citada em seguida) são reveladores desta
situação no Rio de Janeiro e no Brasil.

Ex-ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do


Governo Federal, o advogado Luiz Fernando Martins da Silva conta que recebeu diversas
denúncias de praticantes da umbanda e do condomblé expulsos de comunidades dominadas por
traficantes, em 2006, quando ocupava o cargo. Na ocasião, Luiz Fernando instaurou um processo
administrativo e encaminhou para a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de
Janeiro. Segundo o advogado, o processo não foi para frente porque não houve interesse da
governadora Rosinha Garotinho em apurar os casos. A liberdade religiosa no Brasil é um mito.
Não existe - diz Luiz Fernando. (Fonte: Jornal Extra de 18 de março de 2008).

21
Em matéria veiculada na Folha de São Paulo de 24/04/2011, é apresentado o caso das “igrejas
subterrâneas” na China. Durante o domingo de Páscoa do corrente ano, policiais chineses detiveram mais
de 20 pessoas numa operação contra cristãos protestantes que realizavam serviços religiosos em público
em Pequim. Tratava-se de fiéis da Shouwang, uma das maiores “igrejas subterrâneas” chinesas. Estas são
igrejas que se recusam a deixar o Partido Comunista controlar seus rituais e doutrinas, ficando, assim,
ilegais perante o governo. “Os líderes da Shouwang estão em prisão domiciliar. O governo chinês alega
que o seu povo possui liberdade de religião, garantida pela Constituição. No entanto, a lei só permite o
credo em igrejas registradas oficialmente. As igrejas oficiais do país têm cerca de 20 milhões de fieis (...)
Estima-se que 50 milhões de cristãos chineses façam parte das "igrejas subterrâneas". De acordo com
Grammaticas (correspondente da BBC na China), ativistas cristãos chineses dizem estar sendo alvo de
perseguição em todo o território do país”. Ver www.folha.uol.com.br. Acesso em 24 de abril de 2011.

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Casos de intolerância religiosa no Rio de Janeiro e no Brasil


Segundo dados disponíveis em relatórios22da Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro e das pesquisas internacionais supracitadas, os
registros de práticas de intolerância religiosa são baixos em relação ao que ocorre em
outros países23. Seriam em torno de 40 casos registrados na Polícia Civil do Rio de
Janeiro. Vale lembrar que somente a partir de 2008 o sistema informatizado da Polícia
Civil do Rio de Janeiro começou a registrar as ocorrências conforme tipificado na Lei
Caó. Embora tardiamente em relação à demanda dos movimentos sociais, esta iniciativa
da polícia é pioneira em relação a outros estados da Federação (com exceção de São
Paulo que conta com delegacias especializadas para os crimes de discriminação racial e
intolerância religiosa desde 2006). Muitos problemas são mencionados nas entrevistas
que realizamos, assim como em artigos e relatórios das mais variadas fontes quanto à
subnotificação dos casos de intolerância religiosa. A subnotificação estaria
principalmente ligada a uma percepção do policial civil na delegacia de que o crime de
intolerância religiosa é de “menor potencial ofensivo”. Sendo assim, não acreditam que
a notificação “vai pra frente”, isto é, chegará a se constituir em processo, e
desencorajam os denunciantes durante os atendimentos feitos às vítimas nas delegacias.
Neste sentido, uma importante liderança que compunha a CCIR, em entrevista para a
elaboração deste diagnóstico, revelou sua descrença quanto à ação policial. Tendo sido
procurada para orientar um pai de santo que teria sido agredido e tido sua casa invadida
a liderança entrevistada disse: “Eu até recomendei que fizesse a denúncia pelo estatuto
do idoso porque intolerância religiosa vai muito a critério de quem vai receber a
denúncia. Agora, pelo estatuto do idoso o senhor, com certeza, vai ter mais êxito. Não
perca tempo discutindo intolerância. Faça jus aos seus direitos por aquilo que a lei já
assegura”. No entanto, a nova chefia da PCERJ parece estar sensível à questão
levantada pelas lideranças religiosas e pelo movimento social organizado. Sendo assim,
em discurso durante o evento comemorativo de três anos de criação da CCIR, a chefe da
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, delegada Marta Rocha, prometeu mais
empenho da polícia na promoção de estatísticas que subsidiem tanto o movimento
social, quanto o Estado para a implementação de políticas públicas, assim como firmou
compromisso com a sensibilização/instrução de policiais na ACADEPOL – academia
de formação de policiais civis24.
Com toda a debilidade estatística e com o problema da subnotificação ratificada
tanto pela atual chefe da polícia civil quanto pelo ex-coordenador da Coordenadoria de
Informação e Inteligência da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro (CINPOL),
delegado Henrique Pêssoa25, observa-se o crescimento do número de registros de casos

22
Ver relatório anual da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa de 2009 e Relatório apresentado à
ONU em 2010 pela CCIR em www.eutenhofe.org.br
23
Dados obtidos no primeiro semestre de 2011.
24
Ver reportagem na íntegra em www.eutenhofe.org.br
25
“A simples mudança no sistema de dados significou um avanço importante, mas não o suficiente.
Deve-se preparar os policiais para lidar com esse tipo de caso, quebrando dogmas em relação à religião”,
diz Carlos Nicodemus, coordenador jurídico da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. “O
importante é que o fato seja registrado. Muitas vezes, uma investigação é demorada. Parece que não está
sendo dada a devida atenção. A polícia às vezes investiga sem condições, por conta do efetivo reduzido”,
diz o delegado Henrique Pessoa. “A Polícia Civil tem todo o interesse de que tudo que chega até nós seja

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de intolerância religiosa desde 2008. Este crescimento pode ser motivado


principalmente por:
1) Divulgação da Lei Caó e respectivo crescimento da percepção da intolerância
religiosa como crime;
2) Aumento da violência associada à intolerância religiosa.
Alguns casos de intolerância religiosa estão em destaque tanto na literatura que
trata do tema (Santos e Esteves Filho, 2009; Giumbelli, 2003; Birman, 2003; entre
outros), quanto nos relatórios da CCIR. São eles:
1) Até a vinda da família Real para o Brasil, os católicos não conviviam com
nenhuma outra religião, ou melhor, nem sequer reconheciam como religião o
que vinha dos indígenas e africanos e seus descendentes. Com a chegada da
família Real e com a vinda de Luteranos e Anglicanos a questão da
intolerância emerge no país. Em 1865, os presbiterianos ordenaram o
primeiro pastor protestante do Brasil. Quando do seu falecimento em 1873,
foi enterrado num cemitério administrado pela Igreja Católica. O Bispo da
cidade mandou desenterrar o corpo do pastor José Manoel da Conceição (um
ex-padre) sob a alegação de que este era um herege, um inimigo da igreja e
ali não deveria estar (Santos e Esteves Filho, 2009);
2) Um bispo da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus – que em um
programa levado ao ar no dia 12 de outubro de 1995, diante das câmeras de
TV chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Ele
foi condenado a dois anos e dois meses de prisão por crimes de
discriminação religiosa e vilipêndio de imagem (Giumbelli, 2003; Birman,
2003).
3) STF negou o pedido de Habeas Corpus 82424/RS a editor que veiculava
idéias odiosas de segregação racial e religiosa (contra judeus) em livros
distribuídos pela internet (Zveiter, 2009). Complementando: “Caso
Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a discriminação
religiosa constitui uma espécie de crime de racismo, o que a torna um delito
imprescritível e inafiançável. Ao manter a condenação de um editor de livros
que atentava contra a dignidade da comunidade judaica, o Supremo afirmou
aquilo que todos temos a obrigação de saber: a liberdade de expressão e a
proibição de censura, previstas na Constituição, não configuram um direito
absoluto, situado acima e ao largo do sistema jurídico. Não existem direitos
absolutos, nem direitos desvinculados de deveres. Isto significa que, á
medida que a liberdade de expressão passa a ser utilizada para pregar o
preconceito e a discriminação, tem-se um quadro de abuso e não de uso do
direito” (Hélio Silva Jr., 2009:205-06)
4) “Em 2001 um casal de fiéis do candomblé queria registrar a filha com nome
africano, mas teve resposta negativa do oficial de registro. No TJSP foi dado
ganho de causa para os pais. Em 2002, pela primeira vez, foi que o Poder

investigado”. Ver www.g1.com.br. Matéria veiculada em 26 de janeiro de 2009. Acesso em fevereiro de


2011.

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Judiciário Brasileiro reconheceu a validade de um casamento feito na


Religião Afro-Brasileira”. (Hélio Silva Jr., 2009:205-06)
5) Em junho de 2009, no Rio de Janeiro, o pastor Tupirani da Hora, da Igreja
Geração de Jesus Cristo, e seu seguidor Afonso Henrique Lobato tiveram
prisão temporária decretada por "intolerância" contra religiões afro-
brasileiras. Eles foram presos por postar textos e vídeos na internet que
fomentavam o preconceito e a violência contra a umbanda e o candomblé.
Foram soltos um mês depois, após prestar compromisso de comparecer em
juízo. E continuavam aguardando julgamento no fim do período de
elaboração deste relatório. (Henrique Pessoa, 2009: 235).
6) Em 2008, em Salvador, o Tribunal de Justiça da Bahia ordenou que a Igreja
Universal do Reino de Deus indenizasse por danos morais os familiares da
mãe de santo de candomblé Gildásia dos Santos por sua morte em 2000. A
igreja recorreu da decisão da Justiça da Bahia ao Superior Tribunal de
Justiça, mas em 2009 o STJ manteve a decisão, ordenando a igreja a
indenizar a família.
7) A Prefeitura do Rio de Janeiro derrubou um templo afrobrasileiro (barracão e
casa de Exu) no Grajaú, Zona Norte do Rio. A Operação Choque de Ordem
alegou que o templo estava em área de risco. O sacerdote Marcelo de Paula –
que estava com yawo (religioso em processo iniciático) e com dois ogans e
ekedjis (sacerdotes) recolhidos para obrigação – teve que suspender os
rituais. O templo Ilé Axé Kafun Legi Omin D´Umzambe (de tradição bantu)
funcionava no local há mais de 20 anos. Fonte:
http://blogdocappacete.blogspot.com/2010/03/intolerancia-religiosa-no-rio-
de.html

O que chama atenção nestes como em vários outros casos de intolerância


religiosa registrados é a) A incidência majoritária em relação às tradições de matriz
africana e; b) A ocorrência em instituições públicas por atores isolados ou através de
ações da própria Administração. Para denunciar publicamente o que diuturnamente
acontecia em relação a minorias religiosas e étnicas, para acompanhar os casos
registrados e para refletir sobre o que a violência direcionada a segmentos significava
em nossa sociedade, muitos grupos se formaram e inúmeras iniciativas foram
realizadas. Os objetivos destes grupos e iniciativas seriam promover o respeito à
liberdade religiosa, denunciar os intolerantes provocando um clima de constrangimento
público em relação a eles e suas atitudes e divulgar a intolerância religiosa como crime
a ser judicialmente coibido e seus autores punidos.

Grupos e iniciativas em prol do respeito à liberdade religiosa


Dentre as iniciativas/ações que têm repercussão nacional destacamos, pela sua
força e capilaridade, a CCIR, CEAP, ABLIRC e a Caminhada Contra a Intolerância
Religiosa (sociedade civil), o Grupo de Trabalho Permanente de Enfrentamento à
Intolerância Religiosa e para a promoção dos Direitos Humanos - Secretaria de
Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro,
Comitê de Diversidade Religiosa - Secretaria Nacional de Direitos Humanos (iniciativas
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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012.
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da gestão pública) e o programa Sagrado – Canal Futura (iniciativa privada). Sobre estas
iniciativas podemos dizer:
A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR): a comissão é
formada por diversas organizações religiosas, instituições estatais e vítimas de
intolerância religiosa. Foi fundada em março de 2008 a partir da mobilização de
religiosos em resposta a alguns acontecimentos sérios que ocorreram na cidade do Rio
de Janeiro. Paralelamente às manifestações (cuja de maior destaque até então são as
Caminhadas Contra a Intolerância Religiosa ocorridas desde 2009 na praia de
Copacabana, RJ), a CCIR começou a entrar com representações na justiça para garantir
o direito das vítimas. A ONG Projeto Legal atende, gratuitamente, as vítimas de
intolerância religiosa. O jurista Luiz Fernando Martins atua com ações coletivas,
representando a Comissão em vários órgãos do país. A Comissão se destaca, ainda, por
ter elaborado as bases do Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e
entregou as propostas ao presidente da República, em 20/11/08, no Rio de Janeiro.
(texto inspirado no original “Quem somos” disponível em www.eutenhofe.org.br).
O Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP): “é uma
organização não-governamental, sem fins lucrativos, vinculação partidária ou religiosa.
Foi fundada no Rio de Janeiro, em 1989, por ex-internos da extinta Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor (Funabem) com a ajuda de representantes da comunidade negra
e do movimento de mulheres. A recorrente violação dos direitos fundamentais das
classes menos favorecidas foi na realidade a grande inspiração para a criação do
CEAP”. (disponível em www.portalceap.org.br). O pedagogo Ivanir dos Santos,
membro fundador do CEAP, é coordenador da CCIR.

A Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania (ABLIRC): foi


constituída no dia 09 de novembro de 2004, em assembléia realizada no Salão Nobre da
Câmara de São Paulo. A Associação nasceu da necessidade de organizar a sociedade
civil para a defesa do direito fundamental de Liberdade Religiosa. Como estratégia de
mobilização para destacar a importância deste tema, a ABLIRC desenvolve eventos
com a participação de autoridades civis, militares, religiosas, acadêmicas e
representantes da sociedade civil. Foram eles: 1º Fórum Brasileiro de Liberdade
Religiosa e Cidadania, no Memorial da América Latina, em 2006; 7 Fóruns Paulistas de
Liberdade Religiosa e Cidadania, percorrendo várias cidades do estado; 1º Fórum
Estadual na Assembléia Legislativa do Espírito Santo e 1º Fórum Estadual na Câmara
Municipal de Salvador, Bahia; além de vários Simpósios Regionais em diferentes partes
do país. Samuel Luz é presidente da ABLIRC. (disponível em
HTTP://ablirc.wordpress.com).

O Comitê de Diversidade Religiosa foi instalado pela Ministra Maria do Rosário,


da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Governo Federal, em 30 de novembro
de 2011. O Comitê conta com 30 membros de diversas tradições religiosas presentes no
Brasil como Islamismo, Judaísmo, Budismo, Protestantismo, Religiões de Matriz
Africana. Além de religiosos o comitê conta com a presença de representante dos Ateus
no Brasil, de pesquisadores de diferentes Universidades brasileiras e de membros de
organizações não governamentais com reconhecida trajetória no estudo das religiões e
atuação em defesa dos diretos humanos de grupos marginalizados. O objetivo maior
deste comitê é monitorar as políticas públicas em âmbito federal que venham a
assegurar a liberdade de expressão religiosa e a laicidade do estado.

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O Grupo de Trabalho Permanente de Enfrentamento à Intolerância Religiosa e


para a promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de Assistência Social e Direitos
Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro foi instalado formalmente em 02 de
fevereiro de 2012, mas já atua no âmbito da secretaria, tendo promovido uma série de
atividades das quais se destaca o Iº Seminário Estadual Sobre Intolerância Religiosa
e Direitos Humanos: Construindo Políticas Públicas (2009). Este grupo conta com
representantes de diferentes tradições religiosas, assim como com representante da
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, da Ordem dos Advogados do
Brasil/RJ, com representantes de Organizações de defesa de Direitos Humanos sediadas
no RJ, do Conselho Regional de Serviço Social, do Conselho Regional de Psicologia, e
com pesquisadores da temática da intolerância religiosa e direitos humanos. Seu
principal objetivo é acompanhar e propor a implementação de políticas públicas que
venham a garantir o livre exercício da diversidade religiosa.
Em âmbito privado destaca-se a Série Sagrado, um programa produzido desde
2009 pelo Canal Futura em parceria com a Rede Globo. Na série, que se renova a cada
ano, são abordados temas tais como papel o das religiões no mundo contemporâneo,
política, sexualidade, infância e religião, violência urbana, lugar da mulher no mundo
contemporâneo, Estado Laico, vida após a morte, rituais, meio ambiente, eutanásia,
corrupção, planejamento familiar, etc. Os mesmos temas são lançados para lideranças
de tradições como Indígenas, Judaísmo, Islamismo, Catolicismo, Protestantismo,
Espiritismo, Budismo, Pentecostalismo, Umbanda e Candomblé. Com isto, têm-se a
oportunidade de saber o que as diferentes religiões professam sobre um mesmo tema
ligado ao próprio campo religioso ou que esteja na agenda pública nacional.
Todas estas iniciativas, com destaque para esta última, atuam diretamente na
promoção de informações sobre variados credos a fim de romper com o circuito de
ignorância quanto ao que cada tradição professa. A importância disto, segundo
militantes e estudiosos do tema entrevistados nesta pesquisa, seria que a redução da
ignorância e o (possível) aumento da empatia entre os fieis das várias tradições
religiosas a partir da redução desta ignorância poderia interferir positivamente no
cenário conflitivo de hoje reduzindo e, até, extinguindo os casos de violência física e de
assédio moral causados contra religiões (e seus fiéis) diferentes da corrente majoritária
hoje no Brasil, a saber, o cristianismo. Vale dizer, ainda, que todas estas iniciativas
(assim como outras tantas existentes no Rio de Janeiro e no Brasil que não puderem ser
mencionadas nos limites deste artigo) atuam na chave de defesa de uma cultura de paz,
de respeito aos direitos fundamentais do homem (dentre eles a de expressão de fé e de
pensamentos) e de uma educação mais plural.

Sugestões de militantes e estudiosos para a formulação de Políticas Públicas de


garantia do respeito à liberdade religiosa no Estado do Rio de Janeiro
Como podemos observar pelas iniciativas destacadas acima (e por outras tantas que
vêm tomando o espaço público mais recentemente), muito se caminhou na direção da
garantia do respeito à liberdade religiosa, mas há ainda muito a ser feito em termos de
políticas públicas. Neste sentido, foi com base nas discussões das organizações
competentes, nas entrevistas realizadas para a pesquisa citada, nas leituras da
bibliografia de referência e inspiradas pelas iniciativas de outros Estados da Federação
que sistematizo aqui algumas propostas que poderiam vir a nortear políticas públicas

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exitosas no combate à intolerância religiosa e pela garantia do respeito à liberdade de


crença e culto no Estado do Rio de Janeiro.
A partir da análise do material citado, foi possível registrar alguns consensos em
torno de caminhos a seguir no combate à intolerância religiosa. Dentre eles, o que
esteve presente na avaliação geral, destaca-se a importância atribuída à introdução do
tema do respeito à diferença, de modo geral, e do respeito à liberdade religiosa, em
particular, transversalmente nas escolas. Este seria o espaço, por excelência, na
percepção destes atores, para a difusão de valores capazes de formar uma geração mais
conectada à percepção e ao respeito aos direitos fundamentais do ser humano. Sobre a
importância da educação escolar Dom Antônio Augusto Dias Duarte, bispo auxiliar da
Arquidiocese do Rio de Janeiro por nós entrevistado, disse: “Primeira diretriz para o
respeito aos direitos fundamentais é a educação. Educar não é apenas formar. Educar é
dar as pessoas conhecimento e a possibilidade de viver os profundos e inalienáveis
valores humanos. Valor da vida, da religião, da liberdade, da família, o valor da
solidariedade social, o valor de trabalhar pelo bem comum, bem social”. Evidentemente
que esta percepção da educação escolar não é unanime entre os entrevistados. Há um
amplo debate social e acadêmico sobre o papel da educação e da religião no espaço
escolar (Giumbelli,2010; Cunha, 2009; Lui, 2009). No entanto, esta colocação traduz
não somente o que a Igreja Católica entende por educação, mas a importância do espaço
escolar na difusão dos valores ligados aos direitos humanos.
A inserção do tema na grade curricular é sugerida não só para o Ensino Básico, mas
também nas Academias de formação policial como modo de formar e transformar
concepções a respeito do outro, do respeito às suas concepções e diferenças sejam elas
raciais, religiosas ou étnicas.
Na sequencia, apresentamos algumas ideias que podem vir a balizar políticas
públicas que atuem efetivamente no sentido de garantir o respeito à liberdade religiosa
no Estado do Rio de Janeiro. Por políticas públicas entendemos uma postura do poder
público diante de problemas identificados em âmbito social seja a partir de diagnósticos
técnicos, seja a partir de pressão e demandas sociais. Sendo as políticas públicas um
reflexo de situações sociais, elas devem ser alteradas conforme se alterem os cenários
que as originaram. A percepção do caráter dinâmico das políticas públicas é
fundamental para que estas tenham êxito no contexto social ao qual devem estar
relacionadas e no qual serão aplicadas. Pretendemos aqui, tão somente e de modo
qualificado, lançar as bases para uma ação do poder público que pode ter nesta
iniciativa uma inspiração e, ao mesmo tempo, um incentivo ao trabalho coletivo e a ser
executado com a máxima brevidade.
As propostas serão apresentadas em blocos. Trata-se de uma separação meramente
didática com fins a tornar mais claras as fundamentações ideológicas e as competências
para a sua implementação. Destaco, novamente, que não se trata de “inventar a roda”,
mas de uma compilação de idéias qualificadamente analisadas para a promoção de
ações públicas no sentido de garantir o respeito à liberdade religiosa.

Propostas:
1) Bloco Informação e Diálogo:
 Criação, em âmbito do estado, de um canal de diálogo permanente entre
lideranças religiosas, militantes e estudiosos com o poder público.

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 Construção de uma agenda para a escuta e encampação de novas demandas dos


atores sociais.
 Criação de campanhas públicas nas mídias (televisiva e radiofônica) com o
objetivo de informar a população sobre os diferentes cultos, crenças, escrituras e
símbolos sagrados afirmando que o respeito a esta diversidade é igual ao
respeito à democracia e aos direitos universais do homem;
 Elaboração e distribuição de cartilhas e vídeos sobre a importância do respeito à
liberdade religiosa e do caráter criminosa das ações de intolerância religiosa;
 Desenvolvimento de estudos em parceria com organizações da sociedade civil
e/ou com universidades para produção de dados que subsidiem ações efetivas na
direção das comunidades que sofrem com práticas violentas fomentadas pela
intolerância religiosa;
 Monitoramento e avaliação das políticas de combate à intolerância religiosa
produzindo indicadores que possam sinalizar o sucesso ou a necessidade de
mudanças nas ações adotadas.

Estas propostas são orientadas pela concepção de que o problema da intolerância


religiosa está fundamentado, principalmente, a) na ignorância quanto a direitos e
deveres; b) na falta de informação qualificada sobre as religiões e suas cosmologias; c) e
na falta de espaços de escuta e reconhecimento do outro como igual.

2) Bloco divulgação de valores a partir de ações integradas entre Secretarias


de Estado.
 Colocação transversal do tema da intolerância religiosa em diferentes secretarias
de estado para que sejam sensíveis, na elaboração de ações e políticas, à esta
questão;
 Criação de um calendário de campanhas nas escolas estaduais com vistas a
divulgar diferentes cultos, crenças, escrituras e símbolos sagrados afirmando que
o respeito a esta diversidade é igual ao respeito à democracia e aos direitos
universais do homem. Com estas campanhas escolares tentar-se-ia formar as
bases de uma sociedade na qual grande constrangimento público se associaria a
práticas de intolerância religiosa. Seria uma tentativa de reduzir o espaço como
ambiente social para a difusão de idéias e atitudes intolerantes. Seria, ainda, uma
tentativa de promover o clima no qual ser intolerante corresponderia a ser anti-
democrático, retrogrado e démodé. Respeitar as diferenças estaria
imageticamente e ideologicamente ligado, assim, ao pleno exercício da
cidadania. A realização destas campanhas seria uma parceria da Secretaria
Estadual de Direitos Humanos e Assistência Social com a Secretaria Estadual de
Educação.
 Promoção de eventos pela SDHSS em parceria com outras secretarias de estado
tais como a secretaria de educação, meio ambiente, entre outras, tal como foi
feito em âmbito federal para a comemoração do primeiro dia de combate à
intolerância religiosa, em 2008. Na ocasião, foi promovido um evento pela
Secretaria Especial dos Direitos Humanos em parceria com a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Ministério da Cultura, com o
apoio dos Ministérios do Meio Ambiente, Educação, Justiça e Relações
Exteriores. O objetivo central foi refletir sobre mecanismos de enfrentamento do
preconceito e para a criação de formas de estimular a sociedade para a

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valorização da diversidade religiosa. Participaram representantes de mais de 70


instituições e segmentos religiosos.

Estas propostas são orientadas pela concepção, já apresentada em momento anterior


deste texto, de que o combate à intolerância religiosa passa por uma reformulação
ideológica para a qual o espaço escolar se mostraria dos mais profícuos. Nesta chave de
análise, isto é, de que é necessária a formação de novas mentalidades, o espaço escolar
parece privilegiado, assim como ações integradas de secretarias que passariam a adotar
a temática como de interesse comum se co-responsabilizando por sua implementação.
Com esta reunião de atores públicos, seria possível disseminar uma cultura de paz e de
respeito à alteridade. Na escola seria possível estimular o diálogo entre os diferentes
através da “curiosidade epistemológica”, nos termos de Paulo Freire. Assim, os
diferentes, ao invés de se ignorarem, passariam a dialogar e a se conhecerem, seus
sistemas de crenças e valores.

3) Bloco da criação de órgãos públicas


 Criar uma secretaria estadual de combate à intolerância religiosa.
 Criação de promotorias e juizados especializados no combate à intolerância
religiosa. Segundo os atores entrevistados, talvez o volume de casos não
justifique a criação de promotorias e juizados, mas a temática poderia ser
acolhida por alguns já existentes.
Estas propostas são orientadas pela idéia de que a criação destes órgãos dão
projeção ao tema, tendo um efeito social e político importante no sentido de afirmar o
caráter criminoso da intolerância religiosa, assim como a importância de combatê-lo.

4) Bloco Sociedade Civil com Estado


 Valorização pública, a partir de apoio político, de grupos e iniciativas sociais já
existentes na direção do combate à intolerância e respeito à diversidade religiosa
no Rio de Janeiro – apoio e participação em passeatas, fóruns e seminários
debatam o tema;
 Criação de Conselhos para a diversidade religiosa e espaços de debate e
convivência ecumênica para fomentar o diálogo entre estudiosos e praticantes de
diferentes religiões.

Esta proposta é orientada pela idéia de que já existem muitas e competentes


iniciativas sendo desenvolvidas em âmbito social e que devem ser apoiadas e somadas
aos esforços do Estado no sentido de promover o combate à intolerância religiosa.
Assim, ao invés de dividir grupos e ações, estariam todos atuando em prol do objetivo
maior a ser alcançado.
Para finalizar, gostaria de afirmar a importância das ações públicas em prol da
redução dos conflitos religiosos identificados hoje e que se espraiam para os campos
político e cultural, mas, sobretudo, gostaria de destacar o caráter fundamental de
iniciativas e ações ligadas ao movimento social/organizações da sociedade civil e
ligadas ao setor privado, com destaque para a Série Sagrado, pois estas vêem
contribuindo de modo decisivo para o tratamento qualificado deste tema na agenda

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pública em âmbito nacional. Assim, sustento que estas iniciativas devem ser
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