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A palavra exesege vem do grego e significa literalmente ‘tirar fora’ (ex-ago).

Concretamente tem o sentido de extrair o significado, interpretar o texto. Todo leitor da


Bíblia precisa interpretar aquilo que lê e isso exige um conhecimento não insignificante.
A fé, de fato, não exclui a ciência. Ás vezes se sublinha a tensão entre fé e ciência,
quase tentando defender que uma exclui a outra. Isso não é absolutamente verdade. Se
alguém quer ler de forma profunda a Bíblia, deve, inevitavelmente, entrar no mundo das
ciências bíblicas. Em prática, fazer exegese significa usar as ciências bíblicas
(arqueologia, geografia, crítica textual, crítica literária, etc) para entender o texto lido.

O exegeta parte do princípio que os textos bíblicos não foram simplemente enviados do
céu como escrituras sagradas, mas nasceram dentro de um ambiente histórico
determinado, tiveram uma evolução histórica. Por isso, para entender um texto bíblico,
é necessário conhecer a sua pré-história (o ambiente no qual nasce), o seu gênero
literário (se é uma crônica, uma narração didática, uma poesia, um julgamento, etc.) e a
dinâmica da formação do texto, como os autores recolheram ou escreveram as tradições
orais ou escritos precedentes. Tudo isso tem como objetivo a compreensão do
significado que o autor original pretendia comunicar aos seus destinatários.

Esse estudo é importante por que nós, como leitores de hoje, temos a tentação de
colocar o texto que lemos, escrito há mais de 2000 anos, dentro da nossa perspectiva, do
nosso ponto de vista, correndo o risco de fazê-lo dizer aquilo que efetivamente não
pretendia, influenciando a interpretação com a nossa própria subjetividade. É claro que
o leitor tem o seu papel na interpretação do texto e o seu ambiente deve, de qualquer
forma, ser incluído na leitura bíblica, pois a Palavra de Deus é sempre viva. De fato,
com essa explicação, não pretendemos excluir este importante aspecto, apenas
queremos sublinhar o elemento científico da leitura bíblica.

Existem muitos modos de fazer exegese. A exegese moderna usa prevalentemente o


método histórico-crítico, que tenta perscrutar a gênesis do texto em questão, o contexto
em que nasceu, quem era o seu autor e os destinatários. Para encontrar respostas a tais
interrogações se usam todos os instrumentos que a ciência põe a disposição:
arqueologia, história, antropologia, literatura, etc. Tal método entra no conjunto das
metologias chamadas diacrônicas. Algumas vezes similes procedimentos são acusados
de afastarem-se do texto esquecendo a mensagem que ele contém. Por isso muitos
exegetas sublinham a necessidade de deixar o texto falar. Nesse caso usam métodos
chamados sincrônicos. Alguns dessas metodologias são a semiótica e a narratologia. Os
exegetas que se ocupam desse método concentram a atenção sobre o próprio texto: a sua
estrutura, a língua, os vocábulos, o estilo.

Os métodos sincrônicos e diacrônicos, todavia, não se excluem. Uma boa exegese deve
usar todos os instrumentos oferecidos dos diversos métodos e, de cada um, tirar o
máximo proveito.

Falando de maneira concreta, fazer exegese de um texto significa usar o seguinte


procedimento: determinar o texto original (crítica textual), traduzir o texto, análise do
texto (com o método sincrônico: crítica das formas, linguística do texto, estrutura,
semântica, pragmática – com o método diacrónico [histórico-crítico]: crítica literária,
história das tradições, história das redações). Além desse processo di explicação do
texto com instrumentos técnico-científicos, a exegese deve incluir também uma
explicação teológica, que exige a fé como base de interpretação. É necessário partir do
princípio que “Deus na Bíblia falou por meio de homens, de modo humano” (Dei
Verbum 12). Então, com o auxílio do mesmo Espírito, mediante o qual a Bíblia foi
escrita, deve ser interpretada teologicamente. Essa segunda tarefa do exegeta deve ter
presente 2 aspectos importantes: 1) a Bíblia consiste em uma unidade e um texto deve
ser visto no conjunto de toda a Sagrada Escritura; 2) ter presente a tradição teológica, as
interpretações dadas aos textos pelas comunidades no decorrer da história.

Das linhas acima fica claro que o biblista não é apenas um cientista, mas também um
teólogo. Portanto fazer exegese não é apenas aplicar a ciência, mas uma expressão de fé.

Depois dessa longa introdução, vamos diretamente ao texto que você cita, Gênesis 4,16
(“Caim se retirou da presença de Iahweh e foi morar na terra de Nod, a leste de Éden”).
Temos que partir de uma boa tradução. Depois é necessário sublinhar que Gênesis 4,16
faz parte de uma estrutura que começa no início do capítulo. Portanto precisa ler os
versículos precedentes para entender a mensagem. Depois é necessário também prestar
atenção na forma literária, uma narração no meio de várias genealogias. Além disso,
ajuda muito ber como o nosso texto tem paralelos com o capítulo anterior, Gênesis 3, a
história de Adão e Eva no Paraíso. Nas duas histórias temos um desenvolvimento
idêntico: existe um crime, segue uma investigação e termina com o julgamento. Um
passo sucessivo é conferir os textos das culturas próximas a Israel e ver se existem
contatos. Essa pesquiza já foi feito e há, por exemplo, a história egípcia que conta como
Seth matou o seu irmão Osiris e também no mundo fenício existe aquela de Aeon, que
teve dois filhos. Um deles, Usoos foi morto por Hypauranios. Também na mitologia
africana existem textos que mostram como também em sua compreensão, no início da
história humana, houve uma família marcada por um assassinado entre irmãos.
Feitos esses passos iniciais se analiza o próprio versículo, palavra por palavra. Precisa
definir o que significa “Retirar-se da presença de Iahweh”, “terra de Nod” e “Leste de
Éden”. De modo sintético podemos dizer que retirar-se da presença de Iahweh pode
significar que a partir da experiência de Caim o homem tem necessidade de um
interlocutor e não vê mais Yahweh diretamente; todo diálogo entre Deus e o Homem
acontece por meio de um enviado do Senhor. “Nod” provavelmente não é uma
localidade, mas caracteriza a situação de caim, que depois do assassinato se torna um
errante fugitivo sobre a terra. De fato “Nad” em hebraico significa ‘errante’. “Leste de
Éden” significa simplesmente ‘fora do éden’. Éden não é uma localidade, mas significa
‘jardim’ e em grego (LXX) foi traduzido como Paraíso.
Finalmente é preciso entender o sentido do texto, na sua unidade. Nesta tarefa, pode
servir de ajuda a história da interpretação, o trabalho feito por tantos exegetas e teólogos
antes de nós. Por exemplo há duas tendências: uma diz que a história de Caim e Abel é
uma história de indivíduos, mas outros defendem que é uma história emblemática, que
caracteriza a humanidade. Pessoalmente creio mais fundamentada essa teoria. Caim,
que mata Abel, é protótipo do assassíno e signfica que toda a humanidade é irmã.
Portanto quando alguém derrama o sangue de uma pessoa, derrama o sangue do seu
irmão.
Como perspectiva é interessante o comentário de Westermann, que defende a teoria
segundo a qual a História de Caim e Abel não é apenas o multiplicar-se do pecado. É
invés, defende ele, o complemento da criação: além do homem e da mulher,
representados em Adão e Eva, a humanidade é formada por diferentes modos de vida
(agricultura e pastoreio) e diferentes povos.

Um ulterior aspecto que poderia ser desenvolvido é analizar a leitura que o Novo
Testamento faz dessa história. Mas aqui paro e deixo só a sugestão de ler as seguintes
passagens: Mateus 23,35; 1João 3,12; Hebreus 11,4; 12,24.

Quem não quer possuir as melhores bases para uma construção teológica bem fundamentada? Quem não quer saber

discernir o joio do trigo entre tantas coisas que se dizem sobre a Escritura Sagrada? Para tudo isso, é importante, e
mesmo indispensável, conhecer exegese bíblica.

I. Antes de mais nada, é preciso saber: o que exegese bíblica é e o que não é?

Exegese não é tradução – A despeito de o hebraico e o grego bíblicos não serem mais línguas faladas em nossos dias,

judeus e gregos, ao menos em tese, quando tratam respectivamente do AT e do NT, não precisam de tradução,

embora precisem de exegese, como todos os estudiosos da Bíblia. Tradução é necessária, como passo prévio à

exegese, para não falantes da língua-fonte e/ou para a comunicação do exegeta com não falantes dessa língua;
tradução não é, em si, exegese.

Exegese é diferente de hermenêutica – Esta trata dos princípios e normas da interpretação, aquela da prática da

interpretação, dos passos concretos dados no trabalho interpretativo. Pode-se dizer que exegese está para

hermenêutica assim como prática está para teoria. Exegese é prática hermenêutica (interpretativa), pela aplicação dos
princípios e normas da ciência hermenêutica (teórica).

Exegese se distingue de teologia – Esta se faz a partir de conceitos, não necessariamente a partir da análise de textos,

embora o devesse fazer, no momento atual do labor teológico. A boa teologia é aquela feita a partir de conceitos

extraídos dos textos bíblicos. E aqui é bom dizer que exegese, embora distinta de teologia, não se dissocia desta; pois

exegese é necessária, mas não suficiente. Em termos ideais, o exegeta deveria ser também teólogo, para que seu
trabalho de interpretação esteja completo.

Entendemos exegese como ciência, que tem objeto e método próprios. Seu objeto são os textos, em nosso caso, os
textos bíblicos. Seu método por excelência é o histórico-crítico, do qual falaremos adiante.

Vale lembrar de passagem que exegese não é ciência apenas bíblica. Pois todo texto precisa de interpretação: o
jurídico, o literário, o filosófico etc.

Exegese é também arte. Aqui entram talentos, sensibilidades, insights pessoais e próprios do exegeta, todos relevantes
no processo interpretativo.
Embora a observação do trabalho de outros seja importante no aprendizado da exegese, esta só se aprende mesmo
fazendo, ou seja, com a experiência, com a colocação em prática da ciência e da arte exegéticas. É como tudo na vida.

Exegese é análise detalhada de um texto sob vários ângulos (o textual, o literário, o dos motivos/temas, o do processo

de composição), a fim de extrair dele sua mensagem. Importante é a distinção entre exegese (condução para fora) e

eisegese (condução para dentro). Exegese é aquilo que, como teólogos e pregadores sérios, devemos praticar,
respeitando o texto, seu autor e sua intenção, seu contexto e sua forma, seu conteúdo e seu sentido.

A propósito, vale ressaltar que cada texto bíblico tem um sentido único (Assim também ensina a Confissão de Fé de

Westminster, cap. I, IX: o sentido de qualquer texto da Escritura não é múltiplo, mas único.) Seu sentido é aquele

intencionado pelo autor, ao qual todos os intérpretes devem procurar chegar. Para isso, é preciso respeitar a voz do

texto: sua perspectiva, sua mensagem, suas demandas. O texto não pode ser manipulado ao nosso bel prazer, para

dizer o que nós queremos que ele diga, mas escutado naquilo que ele tem a nos dizer, mesmo e principalmente contra
nós. É mister deixar que o texto fale, e ouvi-lo (também no sentido bíblico de obediência).

Exegese precisa levar em consideração a enorme distância temporal/histórica (em alguns casos, também

espacial/geográfica) e, sobretudo, cultural que existe entre os textos bíblicos e nós, pessoas de outra época e cultura.

Embora, como cristãos, tenhamos a convicção de que a mensagem da Bíblia se destina a todas as pessoas, de todos os

tempos e lugares e culturas, precisamos ter consciência clara de que não somos seus primeiros destinatários,

lembrando sempre que a Bíblia não foi escrita em nossa língua e em nossa cultura, o que implica grande atenção e
esforço para superar a distância que medeia entre o texto bíblico e nós.

Exegese precisa contar com o auxílio de várias ciências humanas (história, geografia, arqueologia, paleografia,

história das religiões comparadas, entre outras). Isto é assim porque a distância que há entre a Bíblia e nós não pode

ser devidamente transposta pelo mero recurso a uma investigação restrita ao âmbito literário interno à Bíblia. Não

basta ler e buscar interpretar a Bíblia em si mesma, isolada do contexto histórico e cultural em que foi produzida. Não

se deve fazer exegese sem se entrar em diálogo com outras ciências humanas, que nos ajudam a conhecer e
compreender o mundo da Bíblia.

Exegese busca interpretação objetiva dos textos, a mais objetiva possível. O exegeta sabe que a objetividade absoluta

é impossível, constituindo-se uma ilusão. Há condicionamentos que limitam a prática exegética, como de resto

qualquer outra tarefa investigativa humana. Há pré-compreensões que inevitavelmente são trazidas para a atividade

de interpretação de qualquer texto; no caso da interpretação de textos bíblicos, estas pré-compreensões incluem

também aquelas que fazem parte do cabedal doutrinário e teológico da comunidade de fé a que pertence o exegeta.

Mas isso não significa que a objetividade não possa ou não deva ser buscada. Ela permanece como ideal a guiar o

trabalho do exegeta, que deve realizar seu mister com plena consciência de seus condicionamentos e de suas pré-
compreensões, para que eles o influenciem o mínimo possível.

A exegese bíblica possui uma longa e complexa história, da qual já o AT dá testemunho. Como exemplos, podem-se

citar a Obra Cronista de História, que é uma releitura da Obra Deuteronomista de História; e a reinterpretação dada
por Daniel aos setenta anos de cativeiro do anúncio de Jeremias, transformando-os em setenta semanas de anos (cp. Jr

25.11s; 29.10 a Dn 9.2 e 24). Ela é vista também no NT, em Paulo, por exemplo, que reinterpreta elementos e figuras

da história antiga de Israel (cf. 1 Co 10.1-4; Gl 4.21-31), além de ser também observada no conjunto dos autores do
NT, que, grosso modo, releem o todo do AT à luz do evento-Cristo.

Hoje, à luz das exigências do tempo e das conquistas da ciência bíblica, já não é mais possível fazer exegese como a

faziam os antigos. Mas, como os antigos, continuamos precisando interpretar os textos bíblicos. Na realização dessa

tarefa, não devemos pensar que a exegese científica tenha passado a ser o único nível de leitura admissível de um

texto, superando e pondo de lado todos os demais. Há outras leituras, cada uma delas com seu valor: por exemplo, as

devocionais e as tradicionais. Longe de nós desprezar as leituras dos crentes, alimento indispensável para a fé e a

comunhão com Deus, ou as dos pais e dos reformadores, plenas de intuições espirituais profundas, embora seus

métodos não sejam os mesmos que os nossos, e, alguns casos, nem aceitáveis nos tempos atuais. Mas, quando

fazemos exegese hoje, devemos ter consciência de nos inserir numa longa corrente de interpretação bíblica, à qual
somos devedores e da qual muito podemos aprender.

Importa, antes e acima de tudo, ter em vista que exegese está a serviço da fé, tanto no nível da espiritualidade (fé

vivida) quanto no da teologia (fé pensada). Não é um fim em si mesmo, mas uma tarefa auxiliar, subsidiária ao labor
teológico da comunidade e à melhor compreensão e colocação em prática das exigências da vida religiosa.

II. Com que meios se faz exegese científica? Primordialmente, com uso do assim chamado método histórico-crítico.

(Que, na realidade, não é um método, mas um conjunto de métodos, do qual fazem parte, por exemplo, a crítica
textual, a análise literária, a crítica das fontes, a crítica das formas, a crítica da tradição, a crítica da redação.)

O MHC é o método científico por excelência. Por quê? O MHC apresenta diversas vantagens, a despeito de seus

limites e riscos. Entre os limites e riscos do MHC, podemos enumerar várias coisas: o academicismo, a arrogância

diante de outras leituras, o reducionismo historicista, a excessiva decomposição do texto bíblico em fragmentos cada

vez menores (dificultando cada vez mais a percepção de sua unidade), a despreocupação para com a aplicabilidade

prática das pesquisas (descurando do momento de síntese, indispensável após o de análise), a ilusão de que tudo seja
racional ou racionalizável, a absolutização de seus resultados.

Não obstante todos esses limites e riscos, o MHC ainda vale a pena. Ele permanece sendo um referencial

metodológico útil e mesmo indispensável, ao qual muito se deve na história da exegese e do qual ainda muito se pode
receber.

Graças a MHC, sabemos bem melhor hoje do que no passado a importância e o valor da identificação dos gêneros

literários dos textos bíblicos, que não podem ser todos lidos com os mesmos óculos, pois são distintos em sua
natureza. A variedade de gêneros literários empregados na Bíblia é enorme, e precisa ser levada em conta na análise

de cada texto em particular. Não se pode ler, da mesma maneira, um texto legal, uma narrativa, um oráculo profético,
uma oração, um texto apocalíptico. Cada uma dessas formas literárias tem características próprias, que devem ser

distinguidas e consideradas. Assim também é importante discernir as fontes dos textos bíblicos, as tradições que a

eles subjazem, o longo e complexo processo de formação e composição das unidades textuais, dos livros, dos corpora
literários e da Bíblia como um todo.

O MHC nos ajuda a colocar em perspectiva as interpretações, nossas e de outros.

O MHC não nos permite instrumentalizar o texto a nosso gosto e de acordo com nossos interesses, lendo-o de

maneira seletiva e arbitrária, sem consideração para com seu contexto (literário, histórico, social, religioso etc.) e
propósito originais.

O MHC nos possibilita ver melhor a diversidade de teologias que há na Bíblia, sem que isso necessariamente

implique prejuízo para sua unidade. No entanto, ele nos alerta para o fato de que não se deve buscar uma

harmonização a qualquer custo dessas diferenças pela eliminação de toda tensão e conflito entre as variadas
perspectivas teológicas recolhidas nas Escrituras Sagradas.

O MHC leva a sério a humanidade dos autores bíblicos em sua condição de testemunhas da revelação divina, e o fato

de que essa revelação foi percebida e refletida dentro de situações históricas bem concretas e definidas. Afinal, o

texto bíblico é Palavra de Deus em palavra humana, escrito e reescrito em meio às vicissitudes da história. A Bíblia é

mais que um mero documento histórico (reconhecida que é como Palavra de Deus pelos que creem no Deus da

Bíblia, além de como patrimônio cultural da humanidade e como pilar da civilização ocidental); mas é também um

documento histórico. De fato, a Bíblia é uma obra literária de grande envergadura; um verdadeiro clássico da

literatura universal. O texto bíblico não caiu do céu. Não nasceu pronto. Tem atrás de si uma longa e complexa

história de formação e composição. Por isso, há coisas na Bíblia que só se explicam diacronicamente, como, por

exemplo, as diferenças entre as duas narrativas da criação (Gn 1-2) e entre versões das mesmas leis no Pentateuco

(Decálogo, lei do altar, lei do escravo etc.), provenientes que são de épocas e concepções distintas. Portanto, a análise

diacrônica feita pelo MHC é importante e necessária, sem que isso implique qualquer desprezo pela análise
sincrônica, que considera o texto em sua forma final, canônica, autoritativa para a vida da Igreja.

De mais a mais, além de uma longa e complexa história de formação e composição, o texto bíblico tem também uma

longa e complexa história de transmissão: cópias, versões, citações, edições, que envolvem inúmeros problemas

(mudanças intencionais e não-intencionais, adaptações culturais e releituras, imprecisões, decisões editoriais). Daí
também a importância e a necessidade da atitude crítica diante do texto.

O método da exegese bíblica é histórico (e deve sê-lo) porque lida com documentos históricos milenares; porque

reconhece que esses documentos se formaram ao longo de séculos, conhecendo diversos estágios em seu processo

composicional até chegar ao estado em que hoje os encontramos; e porque se interessa pelas condições históricas que
geraram esses textos.
O método é também crítico (e deve sê-lo) no sentido de que reconhece a necessidade de se fazer juízos sobre o

material estudado, sobre suas interpretações ao longo da história (estudadas pela chamada história dos efeitos ou da

recepção do texto), e sobre suas próprias conclusões, sempre provisórias e relativas, ainda que com graus de

probabilidade distintos, possibilitando maior ou menor certeza com relação ao sentido dos textos analisados. Vale

lembrar que um método não pode ter a pretensão de ser histórico sem ser crítico, pois não se faz trabalho histórico
sem atitude e espírito críticos.

A exegese histórico-crítica, em uma palavra, respeita o texto e seu autor, entendendo que o sentido original e literal é

o sentido do texto, e busca descobri-lo com o melhor instrumental científico disponível. O MHC não é o único

método que há, mas é, no mínimo, um ponto de partida e uma base que não devem ser rejeitados a priori, e, no
máximo, o melhor método científico que já foi criado para a interpretação de textos.

A propósito, duas observações laterais:

Primeira: Ciência se faz com hipóteses e argumentos, não com apelo a instâncias de autoridade, quaisquer que elas

sejam. Uma coisa deve ser considerada verdadeira ou válida em termos científicos não simplesmente porque alguém

disse que seja assim, mas porque esse alguém fundamentou adequada e convincentemente suas afirmações. O

cientista busca a verdade e luta por ela com a força de argumentos, não invocando a palavra de autoridades, muito

menos servindo-se da força bruta e da violência – coisa dos autoritários e dos totalitários, que não têm lugar legítimo
no mundo da ciência e do amor e da busca pela verdade. (Quisera Deus não tivessem lugar em mundo nenhum!)

Segunda: Leitura literal distingue-se de leitura literalista. A leitura literal reconhece, respeita e valoriza os diversos

gêneros literários dos textos bíblicos. A leitura literalista toma ingenuamente tudo ao pé da letra, pelo seu valor de

face. Uma interpretação bíblica que se possa verdadeiramente chamar de literal muitas vezes será figurada ou

simbólica. Pois a Bíblia é um texto religioso. E a linguagem religiosa é figurada ou simbólica por excelência, visto
tratar do inefável. Só se pode falar de Deus e das coisas de Deus de maneira aproximativa.

III. De que modo se faz exegese? Como se busca a verdade do texto? Ou, em outras palavras, qual a atitude

fundamental do exegeta? Esta não pode ser outra senão a de buscar a verdade do texto incansavelmente, e com
humildade, para poder praticá-la e transmiti-la a outros.

A busca da verdade é incansável – pois a verdade nunca é totalmente alcançada por ninguém, e dela sempre se pode

conhecer algo mais. De fato, o exegeta é movido por um desejo constante de ir além do já alcançado, de chegar até

onde lhe seja possível. Como homem ou mulher de ciência, sabe que a busca da verdade é processo contínuo, que
nunca se encerra. E que há sempre algo a aprender, por mais que se saiba.

A busca da verdade do texto é empreendida com humildade. A humildade do intérprete está, entre outras coisas, em

que ele reconhece continuamente que pode não estar lendo com exatidão ou estar errado mesmo em sua leitura, e,
portanto, está pronto a ser esclarecido ou corrigido. Sabe também que a nossa visão humana, do que quer que seja,
inclusive da verdade, é limitada, parcial, é sempre vista de um ponto. Precisamos da ajuda de outros, e estar dispostos
e sempre abertos a mudar nossa compreensão.

A busca da verdade é voltada para a prática na vida pessoal do intérprete e a comunicação e a partilha do encontrado
com outros no serviço da comunidade de fé. Do contrário, não tem sentido.

Mas não só isso caracteriza a atitude do exegeta.

É preciso reconhecer também a importância do acesso ao trabalho de outros. O exegeta não está sozinho em sua

busca da verdade. Além do mais, não se cria do nada, nem é preciso redescobrir a pólvora ou reinventar a roda,

perdendo tempo em busca do que já foi encontrado. Daí o valor das traduções antigas e modernas, do aparato crítico

das edições científicas do texto bíblico, das concordâncias, dos dicionários, dos comentários, das obras de história e
de teologia bíblica.

Importa igualmente assumir sempre uma postura crítica: diante do texto em si; diante de nossa própria tradição

interpretativa; e, sobretudo, diante de nós mesmos (que trazemos sempre para nossas leituras nossas pré-concepções e

pré-compreensões). Nada deve ficar sem questionamento. Nenhuma dúvida deve deixar de ser expressa, nenhuma

pergunta deve deixar de ser feita, nenhum problema deve deixar de ser levantado – desde que pertinentes ao texto em

exame. Não há o que temer com relação ao texto ou à verdade de que é portador – pois o texto e sua verdade são
capazes de suportar qualquer escrutínio sério ao qual sejam submetidos.

E ainda: Que se cultive o segredo do exegeta: a prontidão para ouvir (não para falar, como em geral preferimos). Ele
implica:

Abertura ao texto – Ir a ele desarmado, e sem levar ideias prévias a ele. Dizer a si mesmo: “Eu não sei, preciso e
quero aprender” é a melhor atitude inicial.

Atenção – Ir ao texto com foco e concentração, sem distrações. Pontos interessantes que surjam, mas que não tenham
a ver com a análise específica que se está empreendendo, devem ser anotados e guardados para outro momento.

Paciência – O trabalho exegético é longo, complexo, e lento. Não adianta querer chegar logo a resultados concretos e
definitivos; não adianta forçar as conclusões a vir.

Calma – O exegeta tem que saber esperar. É preciso meditação no que se lê, investir tempo na reflexão. Deixar as

ideias repousarem, fermentarem, como massa de pão e de bolo, até que se façam claras. Imprescindível ter cuidado

com a pressa, compreensível mas injustificável, em aplicar e fazer falar o texto às urgentes demandas do hoje.
Primeiro, é mister procurar ouvir o texto em seu lá e então, com toda a calma; depois, em nosso aqui e agora.

Perseverança – Muitas vezes o entendimento de um texto é mais difícil do que à primeira vista parecer ser; o texto
não se entrega com facilidade. Cabe então não desistir, nem desanimar. A tarefa não é simples, mas é altamente
recompensadora.
Conclusão

Exegese é interpretação, busca de sentido de um texto. O sentido é único, e é alcançado pela leitura literal do texto.
Outras leituras, para que tenham validade, não podem contradizer o sentido literal do texto.

Exegese demanda conhecer a intenção do autor, os gêneros literários empregados por ele, o contexto histórico no qual

e para o qual escreveu, e todas as etapas do desenvolvimento do texto que se possam discernir, se queremos descobrir

a verdade do texto. Esta é estabelecida pelo texto, não pelo leitor. É preciso deixar que o texto fale, mesmo contra o
leitor. Cabe ao leitor buscar ouvir o que o texto tem a dizer, não o que ele leitor quer ouvir.

Exegese tem como finalidade colaborar na busca da inteligência da fé. Fides quaerens intellectum, a fé está em busca

da compreensão, segundo o moto de Santo Anselmo. E nada pode nos auxiliar mais nessa empresa do que uma
exegese bem realizada.

Exegese não é fim em mesmo, mas meio, instrumento a serviço da construção teológica. De fato, exegese é a base da
teologia.

Exegese, como toda e qualquer ciência, se faz com método científico, o que significa dizer, histórico-crítico. O

método científico tem limites. O próprio saber científico não é o único legítimo. Contudo, embora não suficiente, a

exegese científica é necessária e mesmo imprescindível para que possamos conhecer e viver a nossa fé, e dar razão da

nossa esperança no séc. XXI da melhor maneira que pudermos, como buscaram também fazer, em seu tempo e com
os melhores instrumentos de que dispunham, aqueles que vieram antes de nós, e em cujos passos seguimos.

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