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O que torna um filósofo um “filósofo brasileiro”? Basta que ele tenha nascido no nosso
território ou, para que faça jus ao título, deveria se exigir algo mais? Mas, se for isso, o
que seria esse “algo mais”? Um “jeito brasileiro” de se fazer filosofia? Uma certa
identidade entre aqueles que fazem filosofia em nosso país? Tais questões parecem
pertinentes, na medida em que, de um lado, parece completamente aceitável por grande
parte dos historiadores da filosofia classificações como “filosofia alemã”, “filosofia
francesa” ou “filosofia anglo-saxã”; e, de outro lado, parece também aceitável que, em
termos de literatura, artes plásticas, cinema e música, por exemplo, se aceite o
predicado “brasileiro” para reunir os praticantes dessas áreas em nosso território.
Contudo, parece ainda insuficiente, salvo raros casos, o uso do termo “filosofia
brasileira” para o que se faz hoje aqui. Nesse sentido, gostaria de abordar brevemente
possíveis razões para se tratar a questão da existência ou não de uma “filosofia
brasileira” como um problema fundamental para nossos dias.
Comecemos, portanto, por tentar compreender porque não parece um problema falar
de filosofia alemã, francesa ou anglo-saxã. Seria apenas uma questão territorial ou
linguística que permitiria reunir de Kant a Heidegger e Benjamin, de Descartes e
Rousseau a Derrida e Deleuze, de Hume e Bentham a Russel e Rorty? Seria, caso a
resposta à questão anterior seja negativa, uma questão de método tão-somente? Ou
deveria haver “algo mais” que permitisse a reunião desses autores em um conjunto
maior? Poderíamos pensar nesse “algo mais”, que permeia tanto a questão territorial-
linguística como a metodológica, como certo pertencimento a uma tradição e que teria,
na relação com essa tradição, que envolve método, língua e cultura, a condição de
possibilidade do aparecimento de uma “assinatura”, ou, como prefiro chamar, de
“estilo”.
Talvez, a chave para se pensar a dificuldade de se encontrar esse “algo mais” mesmo nos
grandes nomes que fazem e fizeram filosofia em nosso país, como talvez em grande
parte dos países do antes chamado “terceiro mundo”, esteja ligada inseparavelmente à
história colonial, que se reflete diretamente no processo colonial pelo qual também
passou (e ainda passa) nossa academia. Se levarmos isso a sério, podemos assegurar
que, ao longo dos séculos em que se faz filosofia em nosso país, fomos cada vez mais nos
aperfeiçoando, e esse aprimoramento permite que hoje se faça uma filosofia tão
competente como a que se faz em qualquer outro país dito “desenvolvido” no mundo:
tanto na área de história da filosofia como da lógica e da filosofia analítica, participamos
de um amplo debate internacional e podemos afirmar que em nada ficamos atrás deles,
“os desenvolvidos” (com exceção, é claro, de condições de trabalho, financiamentos,
bibliotecas etc.). Entretanto, isso permite afirmar que se faz uma filosofia brasileira de
excelência ou que fazemos uma filosofia que ganha cada vez mais crédito sob o crivo
euro-americano do que se entende por filosofia? Em outros termos: podemos dizer que,
hoje, fazemos efetivamente uma filosofia brasileira ou fazemos uma excelente filosofia
aos moldes europeus?
A resposta me parece óbvia, mas caberia, então, perguntar se seria necessário fazer uma
outra filosofia e se, inclusive, essa “outra filosofia”, caso não possa ser concebida como
“europeia”, teria ainda resguardado a ela o nome “filosofia”, que é certamente um nome
europeu e que diz respeito a certa tradição do ocidente. Ou seja, em que medida o fato
de estarmos, cada vez mais próximo do padrão de excelência pode ainda ser
considerado insuficiente para nossa experiência filosófica e, caso tentemos
experimentar outras formas de se fazer filosofia, será que, com isso, não estaríamos
pondo a perder todos esses séculos de esforço para nos equipararmos aos grandes
comentadores e especialistas estrangeiros?
A resposta a essas questões poderia se focar num primeiro aspecto: porque não há um
grande nome na filosofia brasileira como encontramos na literatura, cinema, artes
plásticas etc? Certamente, foi esse estilo ou assinatura que artistas como Tarsila do
Amaral, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, Egberto Gismonti,
por exemplo, acabaram crivando como “brasilidade”, que os tornou reconhecidos
nacional e internacionalmente. E tal especificidade nossa consiste apenas no fato de que,
não podendo cair num ufanismo, ressalta elementos de nossa língua e nossa cultura,
colocando-os em relação com a tradição europeia, que é também e por certo a nossa.
Isso porque, se pensarmos no tripé ao qual Gilberto Freire atribuía a sustentação de
nossa cultura, o branco, o negro e o indígena, o pensamento ocidental consiste apenas
em um aspecto da nossa tradição, sendo nossa experiência muito mais ampla do que
aquilo que a filosofia ocidental pode dar conta.
Talvez, nesse sentido, poderíamos dizer que o Movimento Antropofágico tenha sido a
primeira tentativa de desenhar uma assinatura de pensamento “brasileira”, na qual esse
adjetivo não represente algo de “próprio”, “idêntico”, mas sim uma multiplicidade de
forças que confluem em nossa cultura. Radicalizando o tripé de Freire, podemos,
inclusive perguntar: que branco é esse – entre portugueses, italianos, alemães,
ucranianos etc.; mas também, é claro, que negro e que indígena é esse dentre as tantas
culturas, línguas e experiências religiosas que constituem o que aqui, por falta de
conceito, ou justamente por oposição ao europeu, chamamos de “negro” ou “ameríndio”.
Mas seria “filosofia” o nome desse pensamento que como propriedade teria apenas a
confluência de distintas experiências étnicas, artísticas, culturais e religiosas? Talvez
não, se o nome filosofia for pensado em termos apenas ocidentais, com uma data e um
local de nascimento determinados, mas pesquisas como as que o professor Renato
Noguera desenvolve atualmente na UFRRJ tentam mostrar, em consonância com muitas
pesquisas realizadas tanto em países africanos como nos Estados Unidos, que podemos
ter outros berços para a filosofia, como o Egito, por exemplo. E, sem querer dizer quem
vem antes de quem, ou seja, que é mais original do que quem, tais pesquisas apenas
apontam para o fato de que o mito da origem única é uma grande invenção do ocidente
e que a experiência de pensamento pode apontar para mais de uma perspectiva – e que,
talvez, seja essa uma experiência filosófica única para a qual podemos contribuir com
nossa brasilidade múltipla.
Não obstante, se sempre coube ao filósofo o direito de repensar, redefinir o que era,
para ele, a própria filosofia, podemos, então, lutar, ao lado de iniciativas como as de
Noguera, mas também de Davi Kopenawa, para que o nome “filosofia” não seja a marca
de uma exclusão, colonialista e epistemicida, mas que, pelo contrário, seja a
possibilidade de pensarmos de modo mais amplo e radical a experiência de nossa
cultura, de nossa sociedade, de nosso tempo.
05 de Outubro de 2016.
Comecemos por levantar algumas questões preliminares. Primeiro, não é certo que, por
exemplo, “filosofia inglesa” descreva um conjunto de experiências intelectuais que, à sua
forma, partilhariam algum nível de estilo ou assinatura comum. Talvez não haja
absolutamente nada em comum, no sentido forte do termo, entre Alfred Whitehead e
John Austin, a não ser o fato deles serem cidadãos do mesmo Estado-nação e se
submeterem ao mesmo poder político. Seria possível fazer a mesma consideração para
todas as tradições que conhecemos: Habermas e Nietzsche, Foucault e Gabriel Marcel.
Ou seja, talvez a procura por um estilo que definiria partilha de tradição não seja o
melhor caminho.
Tudo isto nos leva a uma pergunta: para que serve e a quem interessa insistir
atualmente na existência de “filosofias nacionais”? Elas servem para, de fato, descrever
o jogo de forças imanentes a experiências filosóficas singulares, experiências estas que
se fazem, na verdade, através não do respeito, mas da desqualificação de tradições, do
salto improvável em direção ao que não andava junto (como Deleuze e sua “tradição”
composta pelo inglês Hume, pelo francês Bergson, pelo holandês Spinoza e pelo alemão
Nietzsche)? Ou elas servem para reiterar a existência de um espírito que só existe para
dar alguma organicidade à monstruosidade institucional chamada de Estado-nação com
seu símile intangível e “imaterial”, a saber, a “cultura nacional”?
No entanto, creio que a questão levantada por Haddock-Lobo esconde um problema real
que merece nossa reflexão, a saber, por que não conseguimos, dentre aqueles que fazem
filosofia no Brasil, nos organizar como campo? Mas há de se insistir que esta questão
deve, para ser avaliada de forma correta, ser dissociada da existência ou da necessidade
de existência de uma “filosofia brasileira”. Pois talvez esta questão simplesmente seja
desprovida de sentido. Sim, não há sentido em se perguntar sobre a existência ou não
de uma filosofia brasileira em um momento no qual as nacionalidades são apenas
formações reativas, mas devemos nos perguntar sobre as dificuldades de constituir um
campo filosófico no Brasil.
A questão é particularmente interessante por ser inegável que o caso brasileiro tenha
suas peculiaridade. Pois, a princípio, teríamos tudo para constituir um “campo”. Há
instituições, meios de regime de adesão e exclusão, promessas de benefícios simbólicos
e materiais. Arriscaria dizer que durante certo tempo, houve mesmo um debate
propriamente filosófico entre nós, mas ele ganhou força nos anos oitenta e noventa para
terminar em algum momento do começo do século XXI. Este talvez fosse um bom ponto
de partida: por que um
debate que parecia ter força de consolidar a filosofia feita no Brasil como “campo” se
desagregou?
Dentre as inúmeras questões que tal problema poderia suscitar, gostaria de insistir, ao
menos, em duas. Primeiro, há de se reconhecer que uma das especificidades da filosofia
é seu horizonte crítico genérico. Tal genericidade diz respeito a uma certa
especificidade do filósofo como personagem social. Pois a atividade filosófica parece,
entre outras coisas, profundamente associada a capacidade de intervir não apenas em
discussões sobre história da filosofia, mas em discussões sobre estética, política, teoria
social, clínica e ética. Alguns diriam que esta é uma característica, em larga medida,
“continental”. Mas aceitaríamos tal relativização apenas se esquecessemos de uma
miríade de exemplos, como Bertrand Russell, Arthur Danto e sua importância para o
debate sobre crítica das artes pós-Greenberg, Judith Butler e sua presença militante na
cena pública ou mesmo membros do Círculo de Viena, como Otto Neurath e seus
trabalhos sobre política, psicologia e economia. Este figurino, tão próprio a uma certa
geração de filósofos influentes entre nós nos até os anos noventa entrou em colisão com
o modelo de formação que temos e com os processos de avaliação a que a comunidade
acadêmica foi submetida de forma compulsiva a partir de meados dos anos noventa.
Por alguma razão que valeria a pena analisar, as relações acadêmicas de transmissão
são vivenciadas entre nós como relações de filiação. Assim, o sistema de distanciamento,
traição, crítica, distorção, recuperação em outro nível, retorno, um sistema de relações
tão importantes para a constituição de processos de transmissão e debate
intergeracional (pois foi aqui que o problema realmente apareceu), nunca poderá se
constituir entre nós. Pois, no fundo, as relações acadêmicas se constituíram como
processos de filiação. Dentro de relações de filiação, os não pertencentes ao grupo
simplesmente não existem, não são levados em conta, falam línguas estranhas, fazem
“tudo errado” e (este é um clássico) não leem direito. Como tais relações de filiação
ainda interferem de maneira decisiva na definição de postos de trabalho e sobrevivência
material, o problema está completamente armado e a filosofia como campo
necessariamente naufragará. Em um espaço de filiados nunca poderá existir debate.
Poderá existir apenas aplausos e silêncio. No que chegamos a uma conclusão, no
mínimo, sugestiva: para que a filosofia no Brasil possa se afirmar faz-se necessário
pararmos de pensar sobre relações de filiação, em todos os níveis.
19 de Outubro de 2016.
A minha tese central é que a não ocorrência de um filosofar autoral no Brasil vem
produzida pela própria lógica interna da produção filosófica brasileira. O obstáculo não
é externo, mas interno. Creio haver uma profunda contradição endêmica entre a
reclamação por um filosofar próprio que nunca chega, e a adoção de um paradigma de
produção filosófica que, precisamente, bloqueia esse filosofar. A ideia de que um
conhecimento sólido da filosofia europeia é condição necessária (e, para muitos,
suficiente) para um filosofar autoral, ideia que discuto demoradamente em meus textos,
está incutida na mente dos membros da comunidade filosófica brasileira. Eu penso que
uma dessas duas coisas terá que ser abandonada para desmanchar a contradição.
Parece-me que a comunidade mostra uma tendência a abrir mão da autoralidade em
benefício do bom funcionamento do sistema; pelo contrário, eu creio que algo deve
mudar profundamente no próprio sistema para favorecer a autoralidade. (No artigo
“Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional” (2015), chamo de
“Acervo T” o conjunto de convicções inabaláveis da comunidade filosófica brasileira
que, segundo penso, bloqueiam o surgimento de um filosofar autoral).
Quem der uma olhada no Índice da segunda edição do meu “Diário de um filósofo no
Brasil” (2014), já encontrará uma discussão sobre o termo “Filosofia” que me parece
crucial para evitar pensar que haverá filosofia no Brasil quando encontrarmos um Kant
no sertão ou um Heidegger na Patagônia. Esta pergunta tem que ser formulada de
maneira apropriada para evitar falsas expectativas. A questão de “haver” ou “não haver”
filosofia no Brasil não é uma questão ontológica objetiva, mas – para usar um termo de
Safatle – uma “construção cultural”. Tento também combater a visão “futurista” da
filosofia desde América Latina, como algo que ainda deveria surgir, tentando mostrar
que essa filosofia já existe, mas para ser visualizada devem ser removidos os obstáculos
que impedem vê-la. Também apresento nesse livro uma longa análise do rico passado
filosófico brasileiro, totalmente apagado à luz da noção atualmente vigente do que seja
“filosofia”. Na última parte, trato, entre outras coisas, da possível contribuição de
Oswald de Andrade para um filosofar desde Brasil, um dos temas bem lembrados por
Haddock-Lobo.
Creio que a saída para o impasse deveria começar por um alargamento da matriz
histórica da filosofia, abrangendo pensamentos de muitas outras partes do planeta e
não apenas de cinco ou seis países hegemônicos. Pelo lado latino-americano, clássicos
como José Martí, José Enrique Rodó, Domingo Sarmiento, Juan B. Alberdi, Andrés Bello,
Juan Carlos Mariátegui, Tobias Barreto, Carlos Vaz Ferreira, José Vasconcelos, Salazar
Bondy e Leopoldo Zea deveriam ser conhecidos pelo estudante brasileiro de filosofia, e
obras como “Facundo”, de Sarmiento, “Visión de los vencidos”, de León Portilla, “Sobre
o homem, o mundo e a história”, de Vicente Ferreira Da Silva, “Existe uma filosofia de
nuestra América?”, de Salazar Bondy, “La filosofia latino-americana como filosofia sin
más”, de Leopoldo Zea, “Los condenados de la tierra”, de Frantz Fanon e “1492. El
encubrimiento del outro”, de Enrique Dussel, entre muitas outras fontes fundamentais.
Encontrei algumas destas ideias, sobre as que venho debatendo há algum tempo, no
estimulante texto do professor Haddock-Lobo, por exemplo quando ele afirma: “O
pensamento ocidental consiste apenas em um aspecto da nossa tradição, sendo nossa
experiência muito mais ampla do que aquilo que a filosofia ocidental pode dar conta”. E
também: “O mito da origem única é uma grande invenção do ocidente e que a
experiência de pensamento pode apontar para mais de uma perspectiva (...)”. Só posso
assinar embaixo destes textos vigorosos. Resta apenas cuidar de não migrar de uma
exegética eurocêntrica para outra latino-americana.
II
Por isso é que não deveríamos falar em “filosofia brasileira” (nem tampouco em
“filosofia francesa”, é claro), mas de um filosofar desde o Brasil (ou desde a França),
perspectiva que pode abranger muitas nacionalidades e territórios, mas que ainda
assim será peculiar. Safatle tenta isso quando escreve, se referindo à realidade das
filosofias francesa, alemão, anglo-saxã (com seus enganosos rótulos nacionais): “Pois
ela tal vez não descreva um ‘estilo’ ou o espaço de produção de singularidades de
pensamento. Talvez ela descreva simplesmente um ‘campo’”. E no seguinte parágrafo,
ele tenta conferir nova legitimidade à questão de um filosofar desde Brasil, perguntando
“(...) por que não conseguimos dentre aqueles que fazem filosofia no Brasil, nos
organizar como campo?”. Este tipo de encaminhamento mostra aos indiferentes ou
mesmo hostis a este tipo de pergunta pela filosofia no Brasil, que a questão pode
preservar plenamente seu sentido mesmo quando a questão do “nacional” tenha sido
rebatida e deixada de lado.
Se for verdade que filosofias como a francesa, a alemã, a norte-americana, etc, são
“construções culturais” de países hegemônicos e não coisas objetivas, o nosso natural
movimento insurgente não deveria tentar encontrar “características nacionais” para
nossos pensamentos, mas tentar erguer construções culturais alternativas e
insurgentes desde América Latina. Ainda será legítimo lutar pelas nossas próprias
construções culturais desde as nossas próprias perspectivas pensantes. Sendo que
essas construções culturais hegemônicas (a “ilusão de continuidade entre Mestre
Eckhart e Hegel”) apontam para centros de poder económico, cultural e filosófico, uma
tarefa de nós, pensadores periféricos, seria tentar descentralizar essa criação
assimétrica e autoritária de “tradições”. A “desqualificação de tradições” que podemos
fazer desde América Latina constitui um movimento político pleno de sentido, em lugar
de dedicar todos nossos esforços em apenas servir de maneira devota “tradições”
impostas e naturalizadas. Algumas referências para o debate:
Cabrera Julio. “Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional (Acerca
da expressão ‘filosofar-desde’)” Revista Nabuco, Ano I, número 2, janeiro de 2015.
Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/18028).
De Souza José Crisóstomo (Org). A filosofia entre nós. Editora Unijuí, 2005.
Margutti Paulo. História da Filosofia no Brasil. O período colonial. Edições Loyola, São
Paulo, 2013.
20 de Dezembro de 2016.
No seu texto, Rafael propõe pensar uma “‘filosofia’ não seja a marca de uma exclusão,
colonialista e epistemicida, mas que, pelo contrário, seja a possibilidade de pensarmos
de modo mais amplo e radical a experiência de nossa cultura, de nossa sociedade, de
nosso tempo.” Nesse sentido, posso dizer que Julio concorda com ele quando defende a
inclusão de clássicos latino-americanos entre aqueles que as bancas universitárias
consideram filósofos dignos desse nome. A lista de Julio elenca os seguintes autores,
todos homens: José Martí, José Enrique Rodó, Domingo Sarmiento, Juan B. Alberdi,
Andrés Bello, Juan Carlos Mariátegui, Tobias Barreto, Carlos Vaz Ferreira, José
Vasconcelos, Salazar Bondy, Leopoldo Zea, León Portilla, Vicente Ferreira Da Silva,
Leopoldo Zea, Frantz Fanon e Enrique Dussel.
Quando se refere a “grupos que simplesmente não existem”, Vladimir não apenas dá
importante contribuição ao tema, como me abre espaço para argumentar que até aqui,
tudo se passou como se nós, mulheres filósofas brasileiras, não existíssemos. Fomos
identificadas como minoria na pesquisa da professora Carolina Araújo, cujos resultados
impressionantes foram divulgados pela ANPOF (das 4.437 pessoas, entre docentes e
discentes, que compõem a comunidade filosófica, 27% são mulheres e 73% são
homens). http://anpof.org/portal/images/Documentos/ARAUJOCarolina_Artigo_2016
.pdf
Não apenas nós não existimos, mas também não existem as autoras que, quando lemos,
precisamos primeiro afirmá-las como parte da história “universal” da filosofia, e não
meras pensadoras de “problemas de gênero”.
Assim, ignora-se que é possível fazer a crítica à violência de Estado lendo a filósofa
norte-americana Judith Butler; discutir a sobreposição entre colonialismo e gênero
debatendo com a indiana Gaiatri Spivak; rever os pressupostos da dialética do senhor e
do escravo a partir das críticas de Simone de Beauvoir; pensar os modos de governo
totalitários com Hannah Arendt; avaliar as formas democráticas como Chantal Mouffe e
sua proposição de democracia agonística; ou voltar à Inglaterra do século XVIII e, com
Mary Woolstonecraft, discutir a tensão aparentemente insolúvel – e performativamente
presente na discussão sobre filosofia no Brasil – entre incluir as mulheres na categoria
universal, subsumir suas especificidades e com isso mantê-las invisíveis; ou reconhecer
as mulheres por suas singularidades e diferenças, o que lhes marca como secundárias
em relação aos homens.
Nesse sentido, acredito poder me valer do significante filiação, trazido ao debate por
Vladimir como fator que empobrece o modo de fazer filosofia no Brasil. Na cultura, a
filiação só se dá pelo patronímico. É aqui que posso também fazer uma dobra no seu
argumento e afirmar que a filiação empobrece duplamente a forma de fazer filosofia no
Brasil, o que se deixa perceber pela lista exclusivamente masculina elaborada por Julio.
Filiação é um dos modos de interditar entrada de mulheres na filosofia por mal
conseguir esconder o quanto está marcada pela velha distinção natureza/cultura,
segundo a qual mulheres teriam apenas a função natural de parir crianças, que só se
tornam filhos quando homens atribuem seus patronímicos a essas crianças. Uma
filosofia que não é feita só por homens é uma filosofia que pode abrir mão da relação
entre patronímico e falo-logocentrismo.
23 de Dezembro de 2016.