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Filosofia brasileira – uma questão?

Rafael Haddock-Lobo [1]

O que torna um filósofo um “filósofo brasileiro”? Basta que ele tenha nascido no nosso
território ou, para que faça jus ao título, deveria se exigir algo mais? Mas, se for isso, o
que seria esse “algo mais”? Um “jeito brasileiro” de se fazer filosofia? Uma certa
identidade entre aqueles que fazem filosofia em nosso país? Tais questões parecem
pertinentes, na medida em que, de um lado, parece completamente aceitável por grande
parte dos historiadores da filosofia classificações como “filosofia alemã”, “filosofia
francesa” ou “filosofia anglo-saxã”; e, de outro lado, parece também aceitável que, em
termos de literatura, artes plásticas, cinema e música, por exemplo, se aceite o
predicado “brasileiro” para reunir os praticantes dessas áreas em nosso território.
Contudo, parece ainda insuficiente, salvo raros casos, o uso do termo “filosofia
brasileira” para o que se faz hoje aqui. Nesse sentido, gostaria de abordar brevemente
possíveis razões para se tratar a questão da existência ou não de uma “filosofia
brasileira” como um problema fundamental para nossos dias.

Comecemos, portanto, por tentar compreender porque não parece um problema falar
de filosofia alemã, francesa ou anglo-saxã. Seria apenas uma questão territorial ou
linguística que permitiria reunir de Kant a Heidegger e Benjamin, de Descartes e
Rousseau a Derrida e Deleuze, de Hume e Bentham a Russel e Rorty? Seria, caso a
resposta à questão anterior seja negativa, uma questão de método tão-somente? Ou
deveria haver “algo mais” que permitisse a reunião desses autores em um conjunto
maior? Poderíamos pensar nesse “algo mais”, que permeia tanto a questão territorial-
linguística como a metodológica, como certo pertencimento a uma tradição e que teria,
na relação com essa tradição, que envolve método, língua e cultura, a condição de
possibilidade do aparecimento de uma “assinatura”, ou, como prefiro chamar, de
“estilo”.

Pensando dessa maneira, não parece absurdo, em termos artísticos e culturais,


afirmarmos que haveria certo estilo ou assinatura “brasileira” na literatura, no cinema,
na música etc. Caberia, então, pensarmos em que medida haveria, na filosofia, traços
que permitissem a reunião de autores que fazem filosofia no Brasil em torno do nome
“filosofia brasileira”. A questão, então, seria, agora, pensar se as filosofias de Gonçalves
de Magalhães, Tobias Barreto, Farias Brito e mesmo filósofos mais recentes, como
Oswald de Andrade e Bento Prado Júnior, poderiam ser reunidas em torno de um
mesmo adjetivo que, recusando ater-se meramente ao território ou a língua, deveria
dizer respeito a essa assinatura ou a esse estilo “próprio” que os caracterizaria como
“filósofos brasileiros”.

Talvez, a chave para se pensar a dificuldade de se encontrar esse “algo mais” mesmo nos
grandes nomes que fazem e fizeram filosofia em nosso país, como talvez em grande
parte dos países do antes chamado “terceiro mundo”, esteja ligada inseparavelmente à
história colonial, que se reflete diretamente no processo colonial pelo qual também
passou (e ainda passa) nossa academia. Se levarmos isso a sério, podemos assegurar
que, ao longo dos séculos em que se faz filosofia em nosso país, fomos cada vez mais nos
aperfeiçoando, e esse aprimoramento permite que hoje se faça uma filosofia tão
competente como a que se faz em qualquer outro país dito “desenvolvido” no mundo:
tanto na área de história da filosofia como da lógica e da filosofia analítica, participamos
de um amplo debate internacional e podemos afirmar que em nada ficamos atrás deles,
“os desenvolvidos” (com exceção, é claro, de condições de trabalho, financiamentos,
bibliotecas etc.). Entretanto, isso permite afirmar que se faz uma filosofia brasileira de
excelência ou que fazemos uma filosofia que ganha cada vez mais crédito sob o crivo
euro-americano do que se entende por filosofia? Em outros termos: podemos dizer que,
hoje, fazemos efetivamente uma filosofia brasileira ou fazemos uma excelente filosofia
aos moldes europeus?

A resposta me parece óbvia, mas caberia, então, perguntar se seria necessário fazer uma
outra filosofia e se, inclusive, essa “outra filosofia”, caso não possa ser concebida como
“europeia”, teria ainda resguardado a ela o nome “filosofia”, que é certamente um nome
europeu e que diz respeito a certa tradição do ocidente. Ou seja, em que medida o fato
de estarmos, cada vez mais próximo do padrão de excelência pode ainda ser
considerado insuficiente para nossa experiência filosófica e, caso tentemos
experimentar outras formas de se fazer filosofia, será que, com isso, não estaríamos
pondo a perder todos esses séculos de esforço para nos equipararmos aos grandes
comentadores e especialistas estrangeiros?

A resposta a essas questões poderia se focar num primeiro aspecto: porque não há um
grande nome na filosofia brasileira como encontramos na literatura, cinema, artes
plásticas etc? Certamente, foi esse estilo ou assinatura que artistas como Tarsila do
Amaral, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, Egberto Gismonti,
por exemplo, acabaram crivando como “brasilidade”, que os tornou reconhecidos
nacional e internacionalmente. E tal especificidade nossa consiste apenas no fato de que,
não podendo cair num ufanismo, ressalta elementos de nossa língua e nossa cultura,
colocando-os em relação com a tradição europeia, que é também e por certo a nossa.
Isso porque, se pensarmos no tripé ao qual Gilberto Freire atribuía a sustentação de
nossa cultura, o branco, o negro e o indígena, o pensamento ocidental consiste apenas
em um aspecto da nossa tradição, sendo nossa experiência muito mais ampla do que
aquilo que a filosofia ocidental pode dar conta.

Talvez, nesse sentido, poderíamos dizer que o Movimento Antropofágico tenha sido a
primeira tentativa de desenhar uma assinatura de pensamento “brasileira”, na qual esse
adjetivo não represente algo de “próprio”, “idêntico”, mas sim uma multiplicidade de
forças que confluem em nossa cultura. Radicalizando o tripé de Freire, podemos,
inclusive perguntar: que branco é esse – entre portugueses, italianos, alemães,
ucranianos etc.; mas também, é claro, que negro e que indígena é esse dentre as tantas
culturas, línguas e experiências religiosas que constituem o que aqui, por falta de
conceito, ou justamente por oposição ao europeu, chamamos de “negro” ou “ameríndio”.

Sem um olhar cuidadoso a essas experiências de pensamento, com a mesma dignidade


filosófica que concedemos aos grandes pensadores europeus, nunca conseguiremos dar
prosseguimento a uma necessária desconstrução do colonialismo que impera na
filosofia. Enquanto não tratarmos os sistemas de pensamento iorubá, por exemplo, ou
os ameríndios, como importantes elementos à especulação filosófica, nunca
conseguiremos contribuir para que um dia possa vir a acontecer um pensamento de
assinatura brasileira.

Mas seria “filosofia” o nome desse pensamento que como propriedade teria apenas a
confluência de distintas experiências étnicas, artísticas, culturais e religiosas? Talvez
não, se o nome filosofia for pensado em termos apenas ocidentais, com uma data e um
local de nascimento determinados, mas pesquisas como as que o professor Renato
Noguera desenvolve atualmente na UFRRJ tentam mostrar, em consonância com muitas
pesquisas realizadas tanto em países africanos como nos Estados Unidos, que podemos
ter outros berços para a filosofia, como o Egito, por exemplo. E, sem querer dizer quem
vem antes de quem, ou seja, que é mais original do que quem, tais pesquisas apenas
apontam para o fato de que o mito da origem única é uma grande invenção do ocidente
e que a experiência de pensamento pode apontar para mais de uma perspectiva – e que,
talvez, seja essa uma experiência filosófica única para a qual podemos contribuir com
nossa brasilidade múltipla.

Não obstante, se sempre coube ao filósofo o direito de repensar, redefinir o que era,
para ele, a própria filosofia, podemos, então, lutar, ao lado de iniciativas como as de
Noguera, mas também de Davi Kopenawa, para que o nome “filosofia” não seja a marca
de uma exclusão, colonialista e epistemicida, mas que, pelo contrário, seja a
possibilidade de pensarmos de modo mais amplo e radical a experiência de nossa
cultura, de nossa sociedade, de nosso tempo.

[1] Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em


Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-
UFRJ). outramente@yahoo.com

05 de Outubro de 2016.

Seria necessário algo como uma “filosofia brasileira”?


Vladimir Pinheiro Safatle

Neste espaço, há algumas semanas, Rafael Haddock-Lobo levantou uma pertinente


questão a respeito do sentido em falar de uma “filosofia brasileira”. Já que nos referimos
ainda hoje a certas “nacionalidades” ligadas à filosofia, como a França, a Alemanha, o
Reino Unido e, mais recentemente, os EUA, por que não, pergunta Haddock-Lobo, falar
em filosofia brasileira, procurando um certo “estilo ou assinatura” na filosofia feita no
Brasil, tal como existiria pretensamente wm nossa música, literatura e cinema? Esta
questão expressa um desejo, mas talvez tenhamos o direito de se perguntar que desejo
é este, o que ele, de fato, procura.

Comecemos por levantar algumas questões preliminares. Primeiro, não é certo que, por
exemplo, “filosofia inglesa” descreva um conjunto de experiências intelectuais que, à sua
forma, partilhariam algum nível de estilo ou assinatura comum. Talvez não haja
absolutamente nada em comum, no sentido forte do termo, entre Alfred Whitehead e
John Austin, a não ser o fato deles serem cidadãos do mesmo Estado-nação e se
submeterem ao mesmo poder político. Seria possível fazer a mesma consideração para
todas as tradições que conhecemos: Habermas e Nietzsche, Foucault e Gabriel Marcel.
Ou seja, talvez a procura por um estilo que definiria partilha de tradição não seja o
melhor caminho.

Poderíamos levar este jogo de dissociação ao paroxismo e transforma-lo em um jogo de


inversões. Por exemplo, não é completamente disparatado afirmar que, do ponto de
vista do desdobramento de tradições, Heidegger é um filósofo muito mais “francês” que
“alemão”, já que sua influência em solo gaulês é muito mais forte, rica e decisiva do que
em solo propriamente teutônico. A história do heideggerianismo, se levarmos em conta
principalmente os processos de recepção, está talvez mais vinculada à França. Da
mesma forma, o “pós-estruturalismo francês” é uma invenção tipicamente norte-
americana criada para acomodar em seu solo experiências de pensamento que não se
viam contempladas pelo figurino reduzido da filosofia analítica. Do ponto de vista de
seus desdobramentos, também não seria um disparate dizer que Derrida é um filósofo
norte-americano.

Este jogo de embaralhamento territorial não é apenas expressão de um espírito gratuito


de contenda. Ele é apenas uma maneira de lembrar que boa parte do que chamamos de
estilos nacionais talvez não se sustentem mais por serem, na verdade, construções
culturais heteróclitas de burguesias locais que procuravam, a partir do século XIX,
justificar seu controle e suas fronteiras econômicas produzindo tradições, criando a
ilusão de uma organicidade de ideias e formas que expressariam de maneira
privilegiada o “espírito” de um povo. Espírito este que deveria encontrar seu lugar
natural nos Estados-nação em vias de consolidação identitária. A filosofia não ficou
imune a tal dinâmica de criação de tradições. Assim, o país de Siemens, metalurgia, do
Ruhr, precisava também de um “made in Germany” composto pelo Grund, pela ilusão
de continuidade entre Mestre Eckhart e Hegel, por uma filosofia moral, como a kantiana,
que (ao menos segundo Marx) era o esforço desesperado de

transformar a impotência política e econômica de sua burguesia em culto à “boa


vontade”, assim como precisava de uma música na qual a “profundidade” se expressasse
no jogo sinfônico de contrastes de caracteres.

Tudo isto nos leva a uma pergunta: para que serve e a quem interessa insistir
atualmente na existência de “filosofias nacionais”? Elas servem para, de fato, descrever
o jogo de forças imanentes a experiências filosóficas singulares, experiências estas que
se fazem, na verdade, através não do respeito, mas da desqualificação de tradições, do
salto improvável em direção ao que não andava junto (como Deleuze e sua “tradição”
composta pelo inglês Hume, pelo francês Bergson, pelo holandês Spinoza e pelo alemão
Nietzsche)? Ou elas servem para reiterar a existência de um espírito que só existe para
dar alguma organicidade à monstruosidade institucional chamada de Estado-nação com
seu símile intangível e “imaterial”, a saber, a “cultura nacional”?

É sempre possível recusar esta maneira um pouco selvagem de eliminar o problema


apelando à irredutibilidade de um fato empírico sabido de todos. Pois queiramos ou não
há filosofia francesa, alemã e anglo-saxã. Há livros sobre isto, há centros de pesquisa
com tais nomes, há pessoas que reivindicam para si certo pertencimento, há disputas
pela influência. É verdade, há tudo isto, mas é sempre possível se perguntar: que tipo de
realidade é esta? Pois é fato que há bem uma realidade sociológica, mas talvez ela
interesse mais à sociologia das ideias do que à filosofia propriamente dita. Pois ela
talvez não descreva um “estilo” ou o espaço de produção de singularidades de
pensamento. Talvez ela descreva simplesmente um “campo”, ou seja, um conjunto de
instituições, de meios de difusão, de regimes de adesão e exclusão, de promessas de
benefícios simbólicos e materiais, de debates que levam os mais novos a repetirem
práticas dos mais antigos caso respeitem a normatividade que até agora se consolidou.
Assim, se alguém como Manfred Frank pode ir recentemente aos jornais e, em um artigo
com o sugestivo título de “Hegel não mora mais aqui”, deplorar que a própria ideia de
“filosofia alemã” esteja em risco já que alguém que procurasse estudar “filosofia
continental” deveria ir hoje não à Alemanha, mas à China ou ao Brasil é porque o campo
da “filosofia alemã” perdeu a força de se organizar e de implicar novas gerações em um
sistema de partilha. Apenas isto.

No entanto, creio que a questão levantada por Haddock-Lobo esconde um problema real
que merece nossa reflexão, a saber, por que não conseguimos, dentre aqueles que fazem
filosofia no Brasil, nos organizar como campo? Mas há de se insistir que esta questão
deve, para ser avaliada de forma correta, ser dissociada da existência ou da necessidade
de existência de uma “filosofia brasileira”. Pois talvez esta questão simplesmente seja
desprovida de sentido. Sim, não há sentido em se perguntar sobre a existência ou não
de uma filosofia brasileira em um momento no qual as nacionalidades são apenas
formações reativas, mas devemos nos perguntar sobre as dificuldades de constituir um
campo filosófico no Brasil.

A questão é particularmente interessante por ser inegável que o caso brasileiro tenha
suas peculiaridade. Pois, a princípio, teríamos tudo para constituir um “campo”. Há
instituições, meios de regime de adesão e exclusão, promessas de benefícios simbólicos
e materiais. Arriscaria dizer que durante certo tempo, houve mesmo um debate
propriamente filosófico entre nós, mas ele ganhou força nos anos oitenta e noventa para
terminar em algum momento do começo do século XXI. Este talvez fosse um bom ponto
de partida: por que um

debate que parecia ter força de consolidar a filosofia feita no Brasil como “campo” se
desagregou?

Dentre as inúmeras questões que tal problema poderia suscitar, gostaria de insistir, ao
menos, em duas. Primeiro, há de se reconhecer que uma das especificidades da filosofia
é seu horizonte crítico genérico. Tal genericidade diz respeito a uma certa
especificidade do filósofo como personagem social. Pois a atividade filosófica parece,
entre outras coisas, profundamente associada a capacidade de intervir não apenas em
discussões sobre história da filosofia, mas em discussões sobre estética, política, teoria
social, clínica e ética. Alguns diriam que esta é uma característica, em larga medida,
“continental”. Mas aceitaríamos tal relativização apenas se esquecessemos de uma
miríade de exemplos, como Bertrand Russell, Arthur Danto e sua importância para o
debate sobre crítica das artes pós-Greenberg, Judith Butler e sua presença militante na
cena pública ou mesmo membros do Círculo de Viena, como Otto Neurath e seus
trabalhos sobre política, psicologia e economia. Este figurino, tão próprio a uma certa
geração de filósofos influentes entre nós nos até os anos noventa entrou em colisão com
o modelo de formação que temos e com os processos de avaliação a que a comunidade
acadêmica foi submetida de forma compulsiva a partir de meados dos anos noventa.

No entanto, este é um processo de retração de horizontes não apenas brasileiro, mas


mundial. Ele responde a interesses de isolamento da comunidade intelectual no interior
da vida dos campi e toca, de forma privilegiada, a atividade filosófica, forçando a
desagregação de seus campos. Alguns países resistiram de forma mais forte a tal
tendência. Neste sentido, a França talvez seja um bom exemplo. Já no caso brasileiro, tal
retração foi mais brutal porque ela se aliou a um outro problema, este sim algo que seria
uma “característica nacional”. Trata-se da confusão constitutiva entre filiação e
transmissão.

Por alguma razão que valeria a pena analisar, as relações acadêmicas de transmissão
são vivenciadas entre nós como relações de filiação. Assim, o sistema de distanciamento,
traição, crítica, distorção, recuperação em outro nível, retorno, um sistema de relações
tão importantes para a constituição de processos de transmissão e debate
intergeracional (pois foi aqui que o problema realmente apareceu), nunca poderá se
constituir entre nós. Pois, no fundo, as relações acadêmicas se constituíram como
processos de filiação. Dentro de relações de filiação, os não pertencentes ao grupo
simplesmente não existem, não são levados em conta, falam línguas estranhas, fazem
“tudo errado” e (este é um clássico) não leem direito. Como tais relações de filiação
ainda interferem de maneira decisiva na definição de postos de trabalho e sobrevivência
material, o problema está completamente armado e a filosofia como campo
necessariamente naufragará. Em um espaço de filiados nunca poderá existir debate.
Poderá existir apenas aplausos e silêncio. No que chegamos a uma conclusão, no
mínimo, sugestiva: para que a filosofia no Brasil possa se afirmar faz-se necessário
pararmos de pensar sobre relações de filiação, em todos os níveis.

19 de Outubro de 2016.

FILOSOFAR DESDE BRASIL: ALÉM DE UMA MERA


QUESTÃO “NACIONAL” (ACERCA DE UM TEXTO DE
HADDOCK-LOBO E UMA RÉPLICA DE VLADIMIR
SAFATLE)
Julio Cabrera (UnB – Brasília)

Vi com agrado que o professor Haddock-Lobo coloca a questão da “filosofia no Brasil”


(algo diferente de “filosofia brasileira”, termo muito mais comprometedor). Com base
em seu texto, imagino que ele desconhece a discussão em curso, já há algum tempo,
sobre esse tema. Dou no final deste artigo algumas referências de textos meus e de
outros autores que poderiam alimentar a discussão sobre a questão da situação da
filosofia no Brasil, sem ter de começá-la novamente de zero.

A minha tese central é que a não ocorrência de um filosofar autoral no Brasil vem
produzida pela própria lógica interna da produção filosófica brasileira. O obstáculo não
é externo, mas interno. Creio haver uma profunda contradição endêmica entre a
reclamação por um filosofar próprio que nunca chega, e a adoção de um paradigma de
produção filosófica que, precisamente, bloqueia esse filosofar. A ideia de que um
conhecimento sólido da filosofia europeia é condição necessária (e, para muitos,
suficiente) para um filosofar autoral, ideia que discuto demoradamente em meus textos,
está incutida na mente dos membros da comunidade filosófica brasileira. Eu penso que
uma dessas duas coisas terá que ser abandonada para desmanchar a contradição.
Parece-me que a comunidade mostra uma tendência a abrir mão da autoralidade em
benefício do bom funcionamento do sistema; pelo contrário, eu creio que algo deve
mudar profundamente no próprio sistema para favorecer a autoralidade. (No artigo
“Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional” (2015), chamo de
“Acervo T” o conjunto de convicções inabaláveis da comunidade filosófica brasileira
que, segundo penso, bloqueiam o surgimento de um filosofar autoral).
Quem der uma olhada no Índice da segunda edição do meu “Diário de um filósofo no
Brasil” (2014), já encontrará uma discussão sobre o termo “Filosofia” que me parece
crucial para evitar pensar que haverá filosofia no Brasil quando encontrarmos um Kant
no sertão ou um Heidegger na Patagônia. Esta pergunta tem que ser formulada de
maneira apropriada para evitar falsas expectativas. A questão de “haver” ou “não haver”
filosofia no Brasil não é uma questão ontológica objetiva, mas – para usar um termo de
Safatle – uma “construção cultural”. Tento também combater a visão “futurista” da
filosofia desde América Latina, como algo que ainda deveria surgir, tentando mostrar
que essa filosofia já existe, mas para ser visualizada devem ser removidos os obstáculos
que impedem vê-la. Também apresento nesse livro uma longa análise do rico passado
filosófico brasileiro, totalmente apagado à luz da noção atualmente vigente do que seja
“filosofia”. Na última parte, trato, entre outras coisas, da possível contribuição de
Oswald de Andrade para um filosofar desde Brasil, um dos temas bem lembrados por
Haddock-Lobo.

Tanto no texto do professor quanto na réplica de Safatle, a discussão ameaça em todo


momento cair nas armadilhas da questão do “nacional”, identificando a pergunta por
um filosofar historicamente circunstanciado com uma indagação sobre
“nacionalidades”. Em minha reflexão sobre o assunto, tenho tentado substituir a
questão do “nacional” pelo que chamo “procedência reflexiva”, uma categoria mais
histórico-existencial do que geográfica. Como o professor Haddock o coloca, a questão
da colonização cultural de América Latina é fundamental nessa reflexão, e, em meus
próprios termos, ela constitui o primeiro passo para formular um “filosofar-desde”
historicamente circunstanciado, que pouco ou nada tem a ver com “nacionalidades”.
Esta perspectiva deveria recuperar reflexivamente o nosso passado de invasão,
conquista e colonização cultural, em lugar de continuar pensando a partir de
circunstâncias alheias, tentando oferecer alguma “contribuição” significativa para a
cultura do dominador, contribuição que ninguém espera. Em meus escritos já respondo
as réplicas sempre monotonamente repetidas, de que não podemos pensar sem Europa,
de que já somos europeus, etc. (Veja-se “Europeu não significa universal...”, p. 18-21).

Creio que a saída para o impasse deveria começar por um alargamento da matriz
histórica da filosofia, abrangendo pensamentos de muitas outras partes do planeta e
não apenas de cinco ou seis países hegemônicos. Pelo lado latino-americano, clássicos
como José Martí, José Enrique Rodó, Domingo Sarmiento, Juan B. Alberdi, Andrés Bello,
Juan Carlos Mariátegui, Tobias Barreto, Carlos Vaz Ferreira, José Vasconcelos, Salazar
Bondy e Leopoldo Zea deveriam ser conhecidos pelo estudante brasileiro de filosofia, e
obras como “Facundo”, de Sarmiento, “Visión de los vencidos”, de León Portilla, “Sobre
o homem, o mundo e a história”, de Vicente Ferreira Da Silva, “Existe uma filosofia de
nuestra América?”, de Salazar Bondy, “La filosofia latino-americana como filosofia sin
más”, de Leopoldo Zea, “Los condenados de la tierra”, de Frantz Fanon e “1492. El
encubrimiento del outro”, de Enrique Dussel, entre muitas outras fontes fundamentais.
Encontrei algumas destas ideias, sobre as que venho debatendo há algum tempo, no
estimulante texto do professor Haddock-Lobo, por exemplo quando ele afirma: “O
pensamento ocidental consiste apenas em um aspecto da nossa tradição, sendo nossa
experiência muito mais ampla do que aquilo que a filosofia ocidental pode dar conta”. E
também: “O mito da origem única é uma grande invenção do ocidente e que a
experiência de pensamento pode apontar para mais de uma perspectiva (...)”. Só posso
assinar embaixo destes textos vigorosos. Resta apenas cuidar de não migrar de uma
exegética eurocêntrica para outra latino-americana.
II

A réplica de Vladimir Safatle ao texto de Haddock-Lobo desmonta de maneira aguda a


questão do “nacional”, no contexto da pergunta pela filosofia no Brasil. Já seu título,
“Seria necessário algo como uma ‘filosofia brasileira’?” coloca em dúvida a legitimidade
da questão quando formulada em termos nacionais. Aqui seria bastante oportuno ler as
páginas do meu “Diário de um filósofo no Brasil”, onde faço distinções cruciais entre os
termos “filosofia brasileira” (a visão nacionalista), “filosofia no Brasil” (a visão empírica
ou fatual) e “filosofia desde o Brasil” (a visão histórico-existencial), que aponta para um
filosofar circunstanciado. Eu defendo este último enfoque, e partilho o ceticismo de
Safatle a respeito da primeira expressão, carregada de problemas. O resultado da
reflexão de Safatle é, afinal de contas, negativo, ao sugerir que a questão sobre uma
“filosofia brasileira” talvez não faça sentido; mas a sua argumentação não nos deveria
levar a pensar que a questão de um filosofar “desde o Brasil” careça igualmente de
sentido. A questão de um filosofar circunstanciado, não apegado ao “universalismo”
abstrato hoje vigente – curioso universalismo europeu – tem pleno sentido uma vez que
nos livrarmos das redes enganosas de um “filosofar nacional”, que tem todos os
problemas que Safatle aponta.

Os “embaralhamentos territoriais” apontados por Safatle sugerem, precisamente, que


os filosofares têm surgimentos múltiplos e diferenciados em experiências filosóficas
diversas, que não podem ser amarradas ao “nacional” (oportuna alusão à “tradição” de
Deleuze, “composta pelo inglês Hume, pelo francês Bergson, pelo holandês Spinoza e
pelo alemão Nietzsche”). Ele aponta que estas aglutinações são muito mais “construções
culturais heteróclitas de burguesias locais (...) produzindo tradições...”, constituindo,
por exemplo, já no campo da filosofia, uma “ilusão de continuidade entre Mestre Eckhart
e Hegel”. Mas quando ele finaliza essa parte da sua reflexão dizendo: “Tudo isto nos leva
a uma pergunta: para que serve e a quem interessa insistir atualmente na existência de
“filosofias nacionais”?”, isto carrega o enorme risco de o leitor desatento pensar que
porque a questão nacional não faz sentido, então toda a problemática sobre pensar
desde uma circunstância pensante específica, a partir de uma experiência histórico-
existencial - e não de um mero local geográfico - também não faz sentido.

Safatle é consciente disso quando reconhece haver na questão de Haddock-Lobo uma


questão real que merece escrutínio e atento estudo, e não apenas deboche ou
indiferença. Os polos do perigo parecem ser o universalismo abstrato, que pensa que a
filosofia surge diretamente das raízes mesmas da razão (creio que é esta a visão vigente
hoje no Brasil) e um nacionalismo ultra-concreto que pensa que a filosofia surge de
territórios assinalados. Mas trata-se de circunstâncias reflexivas, não de nacionalidades.
É, pois, perfeitamente legítimo colocar a questão de Haddok-Lobo e a minha (e de uma
boa parte de pensadores hispano-americanos quase desconhecidos no Brasil, como
Martí, Rodó, ou Salazar Bondy) de um “filosofar desde o Brasil” (e desde América Latina)
a partir desses embaralhamentos territoriais, onde a noção de nacionalidade se dilui em
benefício de uma perspectiva pensante construída histórico-existencialmente, e não
territorialmente.

Por isso é que não deveríamos falar em “filosofia brasileira” (nem tampouco em
“filosofia francesa”, é claro), mas de um filosofar desde o Brasil (ou desde a França),
perspectiva que pode abranger muitas nacionalidades e territórios, mas que ainda
assim será peculiar. Safatle tenta isso quando escreve, se referindo à realidade das
filosofias francesa, alemão, anglo-saxã (com seus enganosos rótulos nacionais): “Pois
ela tal vez não descreva um ‘estilo’ ou o espaço de produção de singularidades de
pensamento. Talvez ela descreva simplesmente um ‘campo’”. E no seguinte parágrafo,
ele tenta conferir nova legitimidade à questão de um filosofar desde Brasil, perguntando
“(...) por que não conseguimos dentre aqueles que fazem filosofia no Brasil, nos
organizar como campo?”. Este tipo de encaminhamento mostra aos indiferentes ou
mesmo hostis a este tipo de pergunta pela filosofia no Brasil, que a questão pode
preservar plenamente seu sentido mesmo quando a questão do “nacional” tenha sido
rebatida e deixada de lado.

Meus desacordos com Safatle são mais de atitudes ou de expectativas do que de


substância. Eles aparecem quando ele concebe estes “campos” de pensamento em
termos de “...um conjunto de instituições, de meios de difusão, de regimes de adesão e
exclusão, de promessas de benefícios simbólicos e materiais, de debates que levam aos
mais novos a repetirem práticas dos mais antigos...”. Aqui eu mantenho meu ceticismo
a respeito do papel das instituições na produção de um filosofar autoral. O que tem sido
visto, e a isso também Safatle se refere no final de seu texto, é precisamente o contrário:
em lugar da criação de genuínos campos reflexivos, abrem-se instituições, meios de
difusão, regimes de adesão e exclusão, promessas de benefícios (e de
punições!), visando manter a filosofia dentro dos regimes domesticados da exegese, o
comentário e a interpretação de autores consagrados. Haveria que tornar mais flexíveis
essas instituições de maneira que diminua o ceticismo, tão bem representado, por
exemplo, por Vilém Flusser quando, em sua “Fenomenologia do brasileiro”, escreve:
“...quando surgir uma verdadeira filosofia no Brasil, esta será profissionalmente
combatida, como cumpre a toda academia no mundo inteiro”. Já Safatle aponta que a
capacidade de um filósofo transitar por espaços não acadêmicos falando sobre questões
que ultrapassam a mera história da filosofia “...entrou em colisão com o modelo de
formação que temos e com os processos de avaliação a que a comunidade acadêmica foi
submetida de forma compulsiva a partir de meados dos anos noventa". Muito bem
apontada, igualmente, a tendência das comunidades a tecer “filiações”
sistematicamente intolerantes diante de outras.

Se for verdade que filosofias como a francesa, a alemã, a norte-americana, etc, são
“construções culturais” de países hegemônicos e não coisas objetivas, o nosso natural
movimento insurgente não deveria tentar encontrar “características nacionais” para
nossos pensamentos, mas tentar erguer construções culturais alternativas e
insurgentes desde América Latina. Ainda será legítimo lutar pelas nossas próprias
construções culturais desde as nossas próprias perspectivas pensantes. Sendo que
essas construções culturais hegemônicas (a “ilusão de continuidade entre Mestre
Eckhart e Hegel”) apontam para centros de poder económico, cultural e filosófico, uma
tarefa de nós, pensadores periféricos, seria tentar descentralizar essa criação
assimétrica e autoritária de “tradições”. A “desqualificação de tradições” que podemos
fazer desde América Latina constitui um movimento político pleno de sentido, em lugar
de dedicar todos nossos esforços em apenas servir de maneira devota “tradições”
impostas e naturalizadas. Algumas referências para o debate:

Beorlegui Carlos. História del pensamento filosófico latino-americano. Universidad del


Deusto, Bilbao, 2006.

Bohórquez Carmen, Dussel Enrique, Mendieta Eduardo. El pensamiento filosófico


latino-americano, del Caribe y “latino” 1300-2000. Siglo XXI, México, 2011.
Cabrera Julio. Diário de um filósofo no Brasil. Editora Unijuí, 2010 (2ª edição, 2013).

Cabrera Julio. “Europeu não significa universal, brasileiro não significa nacional (Acerca
da expressão ‘filosofar-desde’)” Revista Nabuco, Ano I, número 2, janeiro de 2015.
Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/18028).

Cabrera Julio. “Pensar insurgente: acerca da inconstância de um filosofar selvagem


(Filosofia no Brasil numa perspectiva latino-americana)”. Revista Problemata, Paraíba
Número especial dedicado a Filosofia desde América Latina, 2015.
( http://periodicos.ufpb.br/index.php/problemata).

Cabrera Julio. “Comment peut-on être um philosophe français au Brésil”. Cahiers


critiques de Philosophie, número 16, Paris, 2016.

De Souza José Crisóstomo (Org). A filosofia entre nós. Editora Unijuí, 2005.

Flusser Vilém. Fenomenologia do brasileiro. Eduerj, RJ, 1998.

Margutti Paulo. História da Filosofia no Brasil. O período colonial. Edições Loyola, São
Paulo, 2013.

Margutti Paulo. “A filosofia no Brasil hoje”. Revista ConTextura. Novembro 2007.

20 de Dezembro de 2016.

A filosofia (brasileira) não é feita só por homens


Carla Rodrigues (PPGF/IFCS/UFRJ)

Nos últimos meses, três professores – respectivamente, Rafael Haddock-Lobo


(http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/848-filosofia-
brasileira-uma-questao), Vladimir Safatle (http://anpof.org/portal/index.php/pt-
BR/comunidade/coluna-anpof/921-seria-necessario-algo-como-uma-filosofia-
brasileira) e Julio Cabrera (http://anpof.org/portal/index.php/pt-
BR/comunidade/coluna-anpof/1032-filosofar-desde-brasil-alem-de-uma-mera-
questao-nacional-acerca-de-um-texto-de-haddock-lobo-e-uma-replica-de-vladimir-
safatle) – se valeram desse espaço da ANPOF para discutir aspectos cruciais do que seria
uma filosofia no Brasil, do Brasil, brasileira. Recupero brevemente os argumentos em
jogo antes de levar o debate adiante. Não sem primeiro expor uma decisão
metodológica: vou me referir aos três autores pelo prenome, repetindo com eles uma
forma de discriminação de gênero muito comum em relação às mulheres, em geral
denominadas apenas pelo prenome, já que, como bem lembra a filósofa Gaiatry Spivak,
o patronímico é histórico privilégio masculino. A recusa ao sobrenome será parte do
meu argumento.

No seu texto, Rafael propõe pensar uma “‘filosofia’ não seja a marca de uma exclusão,
colonialista e epistemicida, mas que, pelo contrário, seja a possibilidade de pensarmos
de modo mais amplo e radical a experiência de nossa cultura, de nossa sociedade, de
nosso tempo.” Nesse sentido, posso dizer que Julio concorda com ele quando defende a
inclusão de clássicos latino-americanos entre aqueles que as bancas universitárias
consideram filósofos dignos desse nome. A lista de Julio elenca os seguintes autores,
todos homens: José Martí, José Enrique Rodó, Domingo Sarmiento, Juan B. Alberdi,
Andrés Bello, Juan Carlos Mariátegui, Tobias Barreto, Carlos Vaz Ferreira, José
Vasconcelos, Salazar Bondy, Leopoldo Zea, León Portilla, Vicente Ferreira Da Silva,
Leopoldo Zea, Frantz Fanon e Enrique Dussel.

Vladimir chama a atenção para o problema da exigência da filiação acadêmica,


impeditiva de um exercício de pensamento que se abra a distanciamentos, críticas,
retornos, para usar alguns dos seus termos. Diz ele: “Dentro de relações de filiação, os
não pertencentes ao grupo simplesmente não existem, não são levados em conta, falam
línguas estranhas, fazem “tudo errado” e (este é um clássico) não leem direito.”

Quando se refere a “grupos que simplesmente não existem”, Vladimir não apenas dá
importante contribuição ao tema, como me abre espaço para argumentar que até aqui,
tudo se passou como se nós, mulheres filósofas brasileiras, não existíssemos. Fomos
identificadas como minoria na pesquisa da professora Carolina Araújo, cujos resultados
impressionantes foram divulgados pela ANPOF (das 4.437 pessoas, entre docentes e
discentes, que compõem a comunidade filosófica, 27% são mulheres e 73% são
homens). http://anpof.org/portal/images/Documentos/ARAUJOCarolina_Artigo_2016
.pdf

Não apenas nós não existimos, mas também não existem as autoras que, quando lemos,
precisamos primeiro afirmá-las como parte da história “universal” da filosofia, e não
meras pensadoras de “problemas de gênero”.

Assim, ignora-se que é possível fazer a crítica à violência de Estado lendo a filósofa
norte-americana Judith Butler; discutir a sobreposição entre colonialismo e gênero
debatendo com a indiana Gaiatri Spivak; rever os pressupostos da dialética do senhor e
do escravo a partir das críticas de Simone de Beauvoir; pensar os modos de governo
totalitários com Hannah Arendt; avaliar as formas democráticas como Chantal Mouffe e
sua proposição de democracia agonística; ou voltar à Inglaterra do século XVIII e, com
Mary Woolstonecraft, discutir a tensão aparentemente insolúvel – e performativamente
presente na discussão sobre filosofia no Brasil – entre incluir as mulheres na categoria
universal, subsumir suas especificidades e com isso mantê-las invisíveis; ou reconhecer
as mulheres por suas singularidades e diferenças, o que lhes marca como secundárias
em relação aos homens.

Antes de ser acusada de colonialista, passo ao campo brasileiro e latino-americano,


onde podemos ler os textos de Heleieth Saffioti e Lélia Gonzalez e suas críticas à teoria
marxista nos anos 1970; recuperar o trabalho pioneiro de Bertha Lutz não apenas no
que diz respeito ao sufragismo, mas em toda a amplitude de sua obra; voltar ao século
XIX para ler Nísia da Floresta e, com ela, pensar sobre a influência do positivismo no
campo de pensamento brasileiro. Para não me incluir como referência de leitura, cito
mestras cujo trabalho admiro, como Marilena Chauí, Olgária Mattos, Jeanne Marie
Gagnebin, Maria Cristina Ferraz, Heloísa Buarque de Hollanda; e colegas como Magda
Guadalupe dos Santos, Geórgia Amitrano, Marília Pisano, Carla Damião, Maria de
Lourdes Borges e Susana de Castro Amaral Vieira, responsável pela bem-sucedida
criação do GT Filosofia e Gênero na ANPOF. No âmbito do continente latino-americano,
cito apenas algumas referências, as que considero obrigatórias em qualquer lista de
filosofia digna desse nome: Gloria Anzaldua, Maria Luiza Femenías e Monica Cragnolini.
Fazendo uma dobra sobre o argumento de Rafael, penso que fazer filosofia pode ser “um
modo mais amplo e radical da experiência de nossa cultura, de nossa sociedade, de
nosso tempo”, o que significa dizer que nós, mulheres de hoje e de ontem, temos que
estar presentes em qualquer elenco de autores; presentes como autoras de uma filosofia
que se abre e não mais estabelece como premissa quem está dentro ou quem está fora
do campo.

Nesse sentido, acredito poder me valer do significante filiação, trazido ao debate por
Vladimir como fator que empobrece o modo de fazer filosofia no Brasil. Na cultura, a
filiação só se dá pelo patronímico. É aqui que posso também fazer uma dobra no seu
argumento e afirmar que a filiação empobrece duplamente a forma de fazer filosofia no
Brasil, o que se deixa perceber pela lista exclusivamente masculina elaborada por Julio.
Filiação é um dos modos de interditar entrada de mulheres na filosofia por mal
conseguir esconder o quanto está marcada pela velha distinção natureza/cultura,
segundo a qual mulheres teriam apenas a função natural de parir crianças, que só se
tornam filhos quando homens atribuem seus patronímicos a essas crianças. Uma
filosofia que não é feita só por homens é uma filosofia que pode abrir mão da relação
entre patronímico e falo-logocentrismo.

Por fim, me parece significativo dizer que o Programa de Pós-Graduação de Filosofia da


UFRJ acaba de tomar duas providências fundamentais no desdobramento do debate
sobre uma filosofia do Brasil, no Brasil, brasileira. Sob coordenação de Rafael, criamos
uma nova linha de pesquisa, “Gêneros, raças e culturas”, na qual pretendemos acolher
outros temas, autores e autoras e, sobretudo, outros modos de fazer filosofia, numa
compreensão de que o pensamento não se dá separado da forma de pensar. Ao mesmo
tempo, também aprovamos uma resolução que prevê proporcionalidade de ingresso
entre homens e mulheres e cotas para negros/as, indígenas e pessoas trans. Outro modo
de contribuir para desmontar o método em vigor, qual seja, o de afirmar quem pode
fazer filosofia pela implícita negação dos “não pertencentes ao grupo”.

23 de Dezembro de 2016.

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