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desenhística

ACIÊNCIA DA ARTE DE PROJETAR DESENHANDO

Llgia Medeiros

st~~s
Uma vez que o fluxo do pensamento não é diretamente observável,
ele pode apenas ser inferido a partir das externalizações propostas
pelos agentes de uma situação. Pensamentos são representações inter-,,
nas de um indivíduo de sua maneira de compreender aspectos do
mundo, porém não são fotografias do mundo, são conjuntos de sím-
bolos correspondentes àqueles aspectos. Isso torna a tarefa de inves-
tigar e compreender o pensamento projetual bastante complicada.
Estímulos, respostas motoras e representações visuais surgem, então,
corno meio de aproximarmo-nos desse pensamento.
A importância do desenvolvimento das habilidades de expressão e
comunicação se manifesta no fato de serem as externalizações e as
descrições dos esquemas de pensamento o que permite a avaliação,
por parte do professor, da evolução do raciocínio do aluno, ou seja,
elas possibilitam a estimativa do aumento na capacidade de mobilização
e administração dos recursos oportunos em situações complexas.
Como não podemos ter acesso direto às experiências e às sensa-
ções das pessoas - muitas vezes nem mesmo elas têm clareza do
'
significado de suas experiências -, resta-nos explorar as manifesta-
ções tangíveis das atividades cognitivas. A análise de registros gráficos
e verbais, desde que associada à reflexão, à discussão e à avaliação
criteriosa, passa a ser, portanto, um interessante recurso para elucidar
os processos de raciocínio e as leis de associação que surgem e se
revelam quando indivíduos geram idéias. ,
a p o tencialidade, exclusivamente humana, de projetar desenhando. O
desenvolvimento da capacidade de antecipar e explorar graficamente,
para "dom esticar o futuro ", deu origem, segundo Boutinet (1992) , à
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As grafias tornaram-se mais especializadas e reconhecidas como


d meios de representação visual da palavra, em detrimento da comuni-
- .\J cação através da representação de imagens. Esta é, muitas vezes, asso-
~ ciada a estágios imaturos do desenvolvimento humano (desenhos in-
~ ~ fantis ou primitivos) e atribuída à inabilidade de dominar o recurso
~ -~ mais sofisticado da linguagem verbal. Todavia, as representações Visu-
\J \j,. ais, de um modo geral, e as gráficas, em particular, têm funções mais
. ~ \'
- ;- amplas: são auxílios ao raciocínio e alças de realimentação para as
~~ ~\~ atividades mentais. Elas destacam pontos de interesse e provocam de-
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~ (- cisões (LASEAU, 1989), ou transmitem informação semântica (VAN


-~ ~ SOMMERS, 1984) através do uso de rapidez, da pressão e do peso por
~ gradações na espessura da linha. Uma grande quantidade de informa-
ções pode estar contida em uns poucos traços, e a ambigüidade de
rabiscos faz parte de um código cognitivo pertinente ao raciocínio
projetual característico das fases iniciais de um projeto. Ao contrário
do que se poderia supor, a informalidade e a fluidez tornam os rascu-
nhos extremamente funcionais e adequados nesse estágio, pois tole- ~
ramo adiamento de decisões até que o indivíduo (ou a equipe) esteja ~
suficientemente seguro para tomá-las, permitindo reinterpretações dos
traçados e prevenindo escolhas prematuras.
Rabiscos e rascunhos servem mais para alguém que desenha se
comunicar consigo mesmo do que com os outros, por isso o processo
de representação do pensamento requer uma conexão permanente e
estável, por meio da qual o autor possa reagir através de mudanças
rápidas e flexíveis. Todo o conjunto de traçados informais é a base da
transação entre visão e mente, entre perguntas e respostas gráficas.
Schõn (1983 , 2000) sugeriu a metáfora da "conversação gráfica"·

l ~ºovyrr-,c
1
, ,~Jli"
A ambigüidade dos rascunhos permite múltiplas interpretações e
estimula a produção de alternativas. "Analogias visuais são encontra-
das, exemplos são lembrados, novas formas baseadas em configura-
ções geométricas antes não reconhecidas são identificadas" (DO e
GROSS, L997). Muitas idéias são derivadas da combinação feita de
empréstimos de outros domínios com os elementos do problema que
temos em mãos. Uma das mais reconhecidas fontes de criatividade é a
combinação dessas idéias ou "bissociação" (KOESTLER, 1964).
"Se você sabe exatamente o que vai fazer, para que fazer?" Indaga-
va Picasso. Rabiscos e rascunhos tanto registram imagens que estão na
mente quanto produzem imagens novas e inesperadas, para serem
inseridas na mente. Comumente, se considera tal atividade como não-
A esse repentino "ver alguma coisa como outra", denominE:i
lampejo, termo que poderia ser equiparado a iluminação, ou intuição.
Simon (2000, p.89) explica que a intuição é um fenômeno de reco-
nhecimento, uma sensação genuína de compreensão global do pro-
blema e do caminho a seguir. Essa noção salienta a importãncia da
~. . -
dos ou umtários sao raros. Imagens são transformadas seguindo um
ciclo: rabiscos geram imagens na mente do autor, que se alimenta de
informações. Na procura por maior coerência, rabiscos e rascunhos
são transformados pela adição, subtração ou substituição de partes.
Esses tipos de desenhos, portanto, não emergem em sua totalida-
de, de uma vez. Ao contrário, requerem um processo de transfor!J1a-
ções sucessivas, não necessariamente seqüenciais ou progressivas.
Além disso. nem tudo é registrado graficamente, nem mesmo na cons-
'
"É preciso começar o desenho para saber o que se quer dese-
nhar", dizia Picasso. Quem projeta desenhando provoca as oportuni-
dades de identificar atributos não explícitos e de enxergar perspectivas

completamente novas. Isso freqüentemente conduz à reestruturação
do problema em questão e à formulação de requisitos que não tinham
sido dados na instrução inicial, e que modificarão todas as ações sub-
seqüentes. O surgimento de uma idéia que não tinha sido aventada
antes, leva à desfocalização das maneiras anteriores de perceber algo,
portanto, pode levar à inovação.
turação. Entre os inúmeros pesquisadores que abordam O tema da
linguagem visual, podemos mencionar Arnhein ( 1986) , no âmbito da
psicologia da arte; Read (l 981), que, na busca de um princípio social
e biológico da arte, analisou as origens da forma; Goodnow (1977),
que investigou o desenvolvimento do grafismo infantil; Lowenfeld e
Brittain (1977), que se apoiaram na expressão gráfica para propor
estágios do desenvolvimento da capacidade criadora na criança; Piaget
(1972), que examinou a construção do real, a representação do mun-
do e a formação do símbolo na criança; Vygotsky (1990), com 0
estudo da imaginação e a arte na infância; Kellog (1959), que inve5tí-
gou o que crianças rabiscam e por quê.
Entr P M o ntn.ne l...ae; l ~ ;•M m m N> ,.fp,.f jr ~Ntm ao estudo da habi-
me11lál t; a õl a.u.l,V~, J ..,uu.t • ..t A '-U.IÚ.LhJ'-' uu f-'.1. vp.1...1.u H.U.. \,.,.&.CA, UA /.l. ~PJ. t~t:=llt.aÇâo

gráfica reforçou essa proposição: o primeiro passo para se grafar algo


é decidir em que lugar no plano do papel deve-se começar o traçado.
Esse passo equivale à operação mover. Rotacionar e refletir são as
operações mentais segllntes, embora indiferenciadas na seqüência,
implicam em decidir em que direção deslocar o lápis. A terceira deci-
são é quanto ao comprimento da linha, o que caracteriza mudança de
tamanho. Há inclusões e subtrações de partes; por fim, há sombrea-
mentos. Desse modo, tanto os segmentos que compõem um rascunho,
quanto a seqüência das operações no traçado oferecem pistas ares-
peito das concepções implícitas no desenho de um projeto.
Este capítulo reitera o princípio de que figuras, letras e números
são tecnologias cognitivas por ampliarem a capacidade humana de
utilização de signos: que é o aspecto básico do pensamento. O pensa-
Incerteza e indefinição são inerentes à natureza do processo pro-
jetuaI, sobretudo, da projetação inovativa. Segundo Cross, inclusive, "é
a incerteza que faz da atividade projetual algo desafiador" (2000, p.14).
Já com os problemas projetuais inovativos dá-se o inverso: mesmo
uma precisa definição inicial pode não indicar a solução que deve ser
gerada. Por serem abertos e fracamente estruturados, os problemas
projetuais e o processo de sua compreensão pernútem que as form u-
lações estejam condicionadas às soluções, ou seja, "a maneira como a
solução vai sendo construída influencia a concepção do próprio pro-
blema" (CR0SS, 2000, p.14).
As iconografias são independentes da linguagem oral, pois trans-
mitem "imagens visuais" , diretamente do desenho do emissor ao re-
ceptor que vê. As fonografias dependem da linguagem oral; portanto,
para que a imagem visual seja compreendida, "passamos a formar
imagens mentais sonoras a partir de sinais visuais impressos: o nosso
cérebro ouve e não simplesmente vê cada letra ou palavra do texto que
é observado" (GOMES, 1998, p.44).
A busca de coerência formal se dá por meio de geração-e-teste e
se realiza por intermédio de códigos discursivos: representação e ava- ,
liação de conjunto ou partes. Tal coerência fundamenta-se no uso de
elementos iguais ou similares, geometricamente descritíveis, tanto no
caso de coerência intrafigural (interna) de um objeto, como no de
coerência interfigural (externa) de um grupo de objetos.
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DESENHO-EXPRESSIONAL: RABISCOS, RASCUNHOS EESBOÇOS


DE DIAGRAMAS, ESQUEMAS EILUSTRAÇÕES

REPRESENTAÇÕES FERRAMENTAS COGNITIVAS COMPATÍVEIS, EM TERMOS DE


PROPRIEDADE, À MANIFESTAÇÃO DE PENSAMENTOS, IDÉIAS ETC.

GRÁFICO-VISUAIS TRAÇOS ELINHAS QUE MODELAM, BIDIMENSIONALMENTE,


PALAVRAS, IMAGENS, RELAÇÕES EQUANTIDADES

INFORMAIS FEITAS À MÃO LIVRE, PROVISÓRIAS, RICAS EM SIGNIFICADO


EXPRESSAS POR VAAIAÇÃO, PRESSÃO E REPETIÇÃO DO TRAÇO

CUJA FUNÇÃO É PAPEL INSTRUMENTAL NA CONVERSAÇÃO GRAFICA DO INDIVÍDUO


COM SUAS IDÉIAS EPENSAMENTOS E DESTE, COM A EQUIPE

REFLETIR ESPELHAR OQUE OCORRE NO ESPAÇO MENTAL OU IMAGINAÇÃO


PARA "VER DE FORA", TESTAR, SELECIONAR, DECIDIR

REGISTRAR CAPTURAR, CONTER, DOCUMENTAR, FIXAR DADOS OBTIDOS,


CONHECIDOS E RECORDADOS SOBRE REQUISITOS E RESTRIÇÕES

ASSISTIR ESTENDER LIMITES DA MEMÓRIA, EXPANDIR PENSAMENTOS,


RECUPERAA LEMBRANÇAS POR MEIO DE ELABORAÇÕES GRÁFICAS

DESDOBRAR LER MAIS NA FIGURA DO QUE FOI INVESTIDO NO TRAÇADO, POR


MEIO DE ANALOGIAS, COMBINAÇÕES E TRANSFORMAÇÕES

ORDENAR AGRUPAR, HIERARQUIZAR, EMPAAELHAR, MOVER, ROTACIONAR,


ESPELHAR, DILATAR, ADICIONAR, SUBTRAIR, SOMBREAR, NOMEAR

SINTETIZAR OBTER COERÊNCIA E HARMONIA ENTRE FORMA E FUNÇÃO PELA


COMPATIBILIDADE DAS INFORMAÇÕES TRAÇADAS, RISCADAS

COM FLEXIBILIDADE, RAPIDEZ DISPONIBILIDADE E ACESSIBILIDADE COM REDUZIDA CAAGA


COGNITIVA - OGRAFISMO COMO "FERRAMENTA NÃO-EGOÍSTA"

EFICÁCIA NA RELAÇÃO CUSTO/BENEFICIO, PELA PRONTIDÃO E


E ESTABILIDADE
PERMANÊNCIA DO QUE SE PENSOU, SE IDEALIZOU, SE PROJETOU

PROCESSAMENTO ABERTO DAS INFORMAÇÕES, JÁ QUE A CADA


O PENSAMENTO FLUIDO
MOMENTO QUE SE OBSERVA OGRAFISMO NOVAS IDÉIAS SURGEM

DEFINIÇÃO E DELIMITAÇÃO DE OPORTUNIDADES ONDE CONCEITOS


NA ETAPA CONCEITUAL
SÃO EXPLORADOS ENOVOS REQUISITOS LANÇADOS

BUSCA OBSTINADA, PORÉM CONSCIENTE, PELA TRANSFORMAÇÃO


DA PROJETAÇÃO INOVATIVA
INCREMENTAL OU RADICAL DE PRODUTOS INDUSTRIAIS

BENS GERADORES DE RIQUEZA CAPITAL PAAA UMA NAÇÃO E SEUS


DE PRODUTOS IND USTRIAI S
CIDADÃOS, SATISFAÇÃO EBEM-ESTAA NO uso/CONSUMO
A articulação entre recursos ~ut: iu.1v1.u1a\-"'v ~ uc txpressáo) e
operações cognitivas foi estimada a partir da facilidade e prontidão
com que um observador pode identificar a ocorrência e a seqüência
das operações cognitivas por intermédio de externalizações dos Parti-
cipantes do experimento.
Minha análise confirmou que o desempenho no desenho-proje-
tual é facilitado quando se conjugam os fatores fluência no desenho-
.
\

expressional com o conhecimento sobre como controlar os proces-


sos mentais. A fluência sozinha pode até atrapalhar, pois quem só
ilustra, com ou sem aUX11io do computador, acaba gerando imagens
aparentemente completas, muito elaboradas e limpas já de início. Isso
pode levar o desenhador a antecipar etapas e ir direto para o que
parece ser o fim do trabalho, sem se dar a chance da experimentação
antes de definir soluções. Já o conhecimento das operações cognitivas
sem alguma fluência gráfica pode conduzir à formulação de projetos
exclusivan1entc rnPntais, r~1n1cfPriz~Hlo~ pelo 11~0 díf 1nodclag<~m cog~
nitiv3, sr1n apoio na n1odt•lí1gp111 produl iv,1.
Ideal é que o desenhador possa halauc(~ar as duí,fs varíáw~j~· flu,~n-
cia e conhccin1cnto. Para o dcscnv0Jvilne11to <la pri1neira, rcc<JH)(~fJd<J
os exercícios de rotinização e treina1nento psjcomotor corn 0 ~, rnai<,
distintos grafismos. Para o desenvoJvimento da segunda, sugiro O tstu-
do das recentes pesquisas cognitivas, das metodoJogias projetuais t
tan1bém a reflexão sobre a própria prática, para que sua lógica venha
a ser conhecida, co1npreendida e utilizada em favor do processo pro-
jetual. Por exemplo: numa seqüência de ilustrações sem exploração
prévia em diagramas e esquemas, ou um esboço que não tenha passa-
do por rabiscos e rascunhos, podem indicar que muitas, e potencial-
mente proveitosas, etapas foram suprimidas. Por outro lado, parar nos
rascunhos sem chegar aos esboços pode sugerir que o desenhador
encontra-se em dificuldade de ir adiante no projeto.
Se for verdade que as representações gráficas, quando emprega-
das como ferramentas cognitivas, oferecem indícios do estágio do ra-
ciocínio, então os grafismos produzidos em uma sessão de desenho-
projetual, poderão auxiliar seus autores em decodificar, entender e
interpretar tais indícios. Isso confere ao professor, ao aluno e ao pro-
fissional a oportunidade de investir esforços no problema projetual
em si e também nas questões particulares que porventura estejam
interferindo no avanço satisfatório do projeto.
1 ,,
postas e de qualidade da representação. Sachs (1999) verificou que a
dificuldade em avançar satisfatoriamente é acompanhada de oraliza-
ções como: "não sei como começar" ou "não sei como proceder''.
A sensação de bloqueio, ou de movimentação inútil sem progres-
so, às vezes é reflexo de um estágio natural e inerente ao processo
criativo: a incubação. A angústia decorrente desse estágio, no entanto,
pode se encurtada e otimizada com as atividades do rascunhar, como
propôs Verstijnen (1998), alcançando-se o benefício adicional de trei-
namento da fluência gráfica e da capacidade de visualização espacial,
como recomenda Sorby (2001).
continuado e veloz da tecno10g1a e CUlll a >up,;rn~uv ~- ~- 0 --- -• 0 •

técnicos e econômicos. Este trabalho focaliza a dimensão humana (na


relação professor/aluno, ou profissional/cliente, ou profissional/pro•
fissional) , pois privilegia a ação individual e objetiva de grafar idéias e
imagens mentais que deverão ser compreendidas e compartilhadas.

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