Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Os textos bíblicos citados neste livro são da versão Almeida Revista e Atualizada, salvo outra
indicação.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio,
sem prévia autorização escrita do autor e da Editora.
14285/28727
Aceitar tudo é um esforço, entender tudo é uma tensão.
G. K. Chesterton 1
*****
Não tenho a pretensão de curar as crises espirituais de quem quer que seja.
Também não creio que as lucubrações e especulações humanas podem
resolver todos os anseios do coração de uma pessoa. Porém, como cristão,
aceito pela fé que Jesus Cristo é o grande Médico, e que, enfermo pelo
pecado, estou em tratamento. Ao recebê-Lo cada dia no coração, creio que a
tal “mágica” apontada por Lewis acontece: Ele estimula a funções da
natureza espiritual que me concedeu e remove aquelas que causam prejuízo.
*****
Convivendo com cristãos, tenho notado que nada é tão prejudicial à vida
religiosa de alguém do que sentir que a religião não faz efeito. Na vida de
muitos, inicia-se o processo espiritual com grandes certezas e expectativas,
mas, à medida que o tempo passa, a dúvida e a frustração inundam a alma
como uma goteira constante. As promessas bíblicas parecem infundadas, e o
silêncio de Deus torna-se desagradavelmente agudo. Nesse ponto, muitos
desistem completamente; outros perguntam o que se pode fazer a respeito.
“No mundo, passais por aflições”, 6 afirmou Jesus. Não creio que Ele estava
falando apenas das perseguições religiosas contra Seus súditos ao longo dos
séculos, ou da luta de muitos para colocar o pão dentro de casa. Certamente
Se referia também às aflições espirituais. O que se passa no coração nos afeta
mais que qualquer coisa. Se, como cristão, eu não me sinto bem
espiritualmente, de alguma maneira isso vai atingir minhas decisões e
escolhas diárias. Também estou convicto de que apenas quando estou seguro
com Deus é que me sentirei bem comigo mesmo. Enquanto escrevo, oro ao
Pai para que, até o fim do livro, Ele nos ajude a encontrar pontos de apoio
que farão alguma diferença nos dias em que o chão parecer não tão firme. Por
hora, lembre-se disto: “Podemos não sentir hoje a paz e o gozo que sentíamos
ontem; mas devemos pela fé agarrar a mão de Cristo e confiar nEle tão
completamente nas trevas como na luz.” 7
1
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 31.
2
James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 17.
3
Thomas Merton, Homem Algum É uma Ilha (Campinas: Verus, 2003), p. 126.
4
Luc Ferry, em entrevista a Gabriela Carelli, “A família virou sagrada”, Veja, 22 de outubro de
2008, p. 17.
5
C. S. Lewis, Milagres (São Paulo: Vida, 2006), p. 212.
6
João 16:33.
7
Ellen G White, Santificação (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1988), p. 100.
Não tenho dúvidas quanto a que a religião cristã é, no final das contas,
algo que nos proporciona uma satisfação indizível. Mas ela não começa
pelo conforto; começa pelo desconforto.
C. S. Lewis 1
Quando alguém decide ser batizado em minha igreja, eu sei que vou ter que
visitá-lo. Primeiro, ofereço os parabéns ao novo crente pela decisão ao lado
de Jesus. Depois, falo do significado do batismo e reforço o que já foi
aprendido. Então, na última parte, eu comento sobre o que esperar da vida
cristã e da comunhão com a igreja. Nesse momento, a maioria das pessoas
costuma ter a mesma reação: acenam positivamente com a cabeça e sorriem.
Algumas até dão pequenas contribuições, falando do assunto como se
realmente o compreendessem. E aí está o problema – elas não têm a mínima
ideia do que lhes espera nessa nova jornada espiritual. Houve uma vez que
um senhor chegou a me fazer um pequeno “sermão” sobre como ele ajudaria
a resolver os problemas da igreja. Alguns meses depois, ele já não estava
junto à congregação. Quando o encontrei, sua frase principal foi: “É mais
complicado do que pensei.”
Eu falo com as pessoas sobre seu futuro espiritual porque creio que, de
alguma maneira, isso vai ajudá-las. Contudo, lá no fundo, sei (pela
experiência ao longo de anos) que minhas palavras farão pouca diferença
quando as primeiras dificuldades aparecerem. Concordo com a afirmação de
G. K. Chesterton: “Portanto, toda convicção completa está envolvida numa
espécie de desamparo.” Não demora muito, e algumas dessas pessoas
2
pensar nos desajustes da vida cristã. Sísifo foi condenado ao inferno eterno
por ter ofendido os deuses. Como castigo, teria de empurrar uma gigantesca
pedra até o cume da montanha. Quando finalmente chegasse ao topo, a pedra
rolava de volta ao ponto de início. Lá se ia o herói descer toda a montanha
para empurrar a pedra de novo. A missão nunca terminava.
Quando a vida espiritual não vai bem, muitas perguntas surgem no
horizonte. Começamos a questionar nossas escolhas e ações. A experiência
da conversão parece uma luz que ficou para trás, não aquecendo mais o
coração. Então, o desânimo pode nos levar a um distanciamento ainda maior,
fazendo-nos ficar tão longe de Deus que, quando nos damos conta, um
pequeno abismo se abriu e parece impossível retornar.
“Meu esplendor já se foi, bem como tudo o que eu esperava do Senhor?”, 4
Quem sou eu? Este ou o outro? Sou as duas ao mesmo tempo, hipócrita
diante das demais. E, diante de mim mesmo, um fracote desprezível e
miserável? Ou existe ainda algo dentro de mim, como um exército
derrotado, fugindo desordenado da vitória já alcançada?
Quem sou eu? Minhas perguntas solitárias zombam de mim. 5
Não resta dúvida de que ninguém é forte o tempo todo. Qual é o problema de
reconhecer que nem sempre as coisas funcionam direito no relacionamento
com Deus? Como todo cristão maduro sabe, há dias em que a crise espiritual
aparece sem pedir licença. Por outro lado, em alguns casos, a fraqueza pode
estimular o cristão a buscar uma fé que não suspeitava possuir. “Quando sou
fraco, então, é que sou forte”, afirmou o apóstolo Paulo.
8
*****
pode perceber, somos filhos queridos do Pai, e nossos tropeços não mudam
essa verdade confortadora.
1
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 18.
2
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 139.
3
R. C. Sproul, Como Viver e Agradar a Deus (São Paulo: Cultura Cristã 1998), p. 16.
4
Lamentações 3:18.
5
Dietrich Bonhoeffer, citado por Calvin Miller, Nas Profundezas de Deus (São Paulo: Vida, 2000),
p. 89.
6
Santo Agostinho, Confissões (São Paulo: Nova Cultural, 2004), p. 207.
7
Hebreus 11:34.
8
2 Coríntios 12:10.
9
Philip Yancey, O Deus (In)visível (São Paulo: Vida, 2001), p. 16.
10
John Donne, Sonetos de Meditação (Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985), p. 71.
11
Mateus 28:20.
12
Salmo 103:13.
13
Ellen G. White, Caminho a Cristo (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1996), p. 21.
O grande paradoxo de nosso tempo é que muitos de nós estamos
ocupados e entediados ao mesmo tempo.
Henry Nouwen 1
conversão, para que eu aceitasse que a vida da fé pode vicejar num dia e
esmorecer no outro. Embora vivesse o problema, na minha mente eu não
podia crer que o cristão enfrentasse o tédio e a frustração. Era como se o
simples pensamento sobre o assunto fosse pecado. Então, de forma insistente,
uma pergunta martelou minha cabeça durante meses: Esses sentimentos são
normais na vida do cristão?
*****
Ninguém é mais feliz do que o cristão, pois a ele está prometido o reino
dos céus; nada é mais desgastante, pois todos os dias ele corre o risco de
perder a vida. Ninguém é mais forte que ele, pois ele triunfa sobre o diabo;
ninguém é mais fraco, pois é derrotado pela carne. [...] O caminho que se
trilha é escorregadio, e a glória do sucesso é menor que a desgraça do
fracasso. 8
Quando visito um cristão que me diz que está pensando em desistir, lembro-
me do relato do apóstolo João, no sexto capítulo de seu evangelho. Ali
encontramos o famoso sermão de Jesus que foi o divisor de águas de Seu
ministério. Antes de pregar aquela mensagem, as pessoas que O seguiam
estavam eufóricas. Jesus tinha realizado muitos milagres, entre eles, a incrível
multiplicação dos pães e peixes, que alimentou uma multidão de mais de 5
mil pessoas. O povo entrou em estado de comoção, crendo que o tão sonhado
dia da libertação havia chegado. Aquele que andou sobre o mar e mandou a
tempestade se acalmar deveria ser coroado o novo rei.
Quando Jesus percebeu que estavam por arrebatá-Lo como novo rei, Ele Se
afastou sem muitas explicações. Foi orar no monte. Estava triste. “Seguia-O
numerosa multidão”, escreveu João no início do capítulo. Por que O
seguiam? “Porque tinham visto os sinais que Ele fazia na cura dos enfermos”
(verso 2). Chega a ser trágico o fato de que os milagres que Jesus realizava,
de alguma maneira, impediam que as pessoas enxergassem Seu caráter e Sua
missão. Eis o motivo que levou Jesus a pregar uma mensagem contundente e
clara, que, infelizmente, doeu aos ouvidos do povo.
Ele disse coisas como “Eu sou o pão da vida”; “Trabalhai, não pela comida
que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna”; “Quem comer a Minha
carne e beber o Meu sangue tem a vida eterna”. Jesus estava deixando claro
que tipo de alimento realmente deixa alguém vivo. Depois que Ele encerrou a
mensagem, o resultado foi relatado com espantosa seriedade por João: “À
vista disso, muitos dos Seus discípulos O abandonaram e já não andavam
com Ele. Então, perguntou Jesus aos doze: Porventura, quereis também vós
outros retirar-vos?”
A resposta de Pedro à pergunta do Mestre foi: “Senhor, para quem
iremos?” Chesterton conseguiu captar a importância do “para quem” sem
9
1
Henry Nouwen, Tudo Se Fez Novo (Brasília: Editora Palavra, 2007), p. 33.
2
Calvin Miller, Nas Profundezas de Deus (São Paulo: Vida, 2000), p. 20.
3
Dietrich Bonhoeffer, Discipulado (São Leopoldo: Sinodal, 2004), p. 119.
4
Brennan Manning, O Evangelho Maltrapilho (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p. 17.
5
Hebreus 12:1.
6
Henry Nouwen, Tudo Se Fez Novo (Brasília: Editora Palavra, 2007), p. 37.
7
C. S. Lewis, Surpreendido Pela Alegria (São Paulo: Mundo Cristão, 1998), p. 25.
8
Jerônimo, citado por Philip Yancey, O Deus (In)visível (São Paulo: Vida, 2001), p. 179.
9
João 6:2, 27, 48, 54, 66-68.
10
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 252.
11
João 6:51.
Jesus nos ama como somos e não como deveríamos ser, já que nenhum
de nós é como deveria ser.
Brennan Manning 1
Creio que qualquer pessoa que esteja na estrada cristã há uns bons anos
concordará com Yancey. O problema é que, diante das tempestades, uns
reconhecem suas dificuldades enquanto há aqueles que tentam camuflar o
problema. Eugene H. Peterson foi bastante corajoso quando afirmou:
bom lembrar que Deus não nos culpa por termos nascidos com a natureza
pecaminosa. “O filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai a iniquidade
do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá
sobre ele”, escreveu o profeta Ezequiel. A responsabilidade começa quando
5
Ore em favor das minhas decisões, para que sejam de acordo com a
vontade de nosso Deus. O mundo tem me oferecido muitas propostas
tentadoras, que em muitos momentos me envolvem de tal forma que com
minhas forças não consigo me soltar. Às vezes, não me lembro de que
Deus está ali, do meu lado, apenas esperando que eu peça ajuda. Isso me
faz afundar mais ainda em meus problemas. Ser jovem é tão difícil... pelo
menos para mim. Os conceitos distorcidos deste mundo nos confundem,
criam dúvidas na mente onde antes havia certeza. O pecado nos ilude e
acabamos no caminho do mal. Ore por mim para que Deus me dê forças
para buscá-Lo, para conseguir vencer as tentações que me cercam, para
fortalecer meus princípios e convicções. Que Deus ilumine nossos passos!
Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não
faço o que prefiro, e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero,
consinto com a lei que é boa. Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas
o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha
vida, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não,
porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não
quero, esse faço. Mas se eu faço o que não quero, já não sou em quem o
faz, e sim o pecado que habita em mim.
Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim.
Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas
vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra lei da minha
mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros.
Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? 7
Sempre que me deparo com as confissões aflitas de Paulo, noto nelas a
mesma angústia que eu (ou a moça que me deu a carta) enfrento de tempos
em tempos. Ceder à tentação, depois de saber o quanto o pecado é ofensivo
ao coração de Deus, machuca bastante nossa espiritualidade. Tenho
acompanhado muitas pessoas que, depois de enfrentar diversas crises nessa
questão, abandonam a fé e a igreja. Quando os pecados não vão embora, o
sentimento de fracasso aparece com força duplicada. No caso da moça do
bilhete, soube que se casou e abandonou a igreja.
A Bíblia fala sobre a “nova natureza” dentro de alguém que se entrega a
Deus. Depois de um tempo de vida cristã, muita gente se pergunta se
realmente nasceu de novo, tendo em vista que a natureza pecaminosa
continua lá, nos puxando todo dia para a escuridão. “Ai de ti, torrente de
hábitos humanos!”, escreveu Agostinho. “Quem te resistirá? Até quando hás
de correr, sem te secar?”
8
Até mesmo o melhor cristão do mundo não age com suas próprias
forças; apenas nutre ou protege uma vida que nunca poderia ter adquirido
com seus próprios esforços. E isso tem consequências práticas. Havendo
vida natural no corpo, essa vida tudo fará para repará-lo. Se ferido, até
certo ponto o corpo vivo se recupera, o que não acontece com um corpo
morto. O corpo vivo não é um corpo que nunca adoece, mas um corpo que
pode, até certo limite, recuperar-se a si mesmo. Do mesmo modo, o cristão
não é alguém que nunca peca, mas alguém capaz de arrepender-se e
reabilitar-se, começando de novo depois de cada queda, porque a vida de
Cristo está em seu interior, refazendo-o sempre, habilitando-o sempre,
habilitando-o a repetir (em certo grau) a espécie de morte voluntária que
Cristo suportou [...]. O cristão atribui à vida de Cristo em seu interior toda
a boa obra que faz. Não pensa que Deus nos amará porque somos bons,
mas que nos fará bons porque nos ama; é como o telhado de uma estufa
que não atrai o sol por ser brilhante, mas que é brilhante porque o sol
brilha nela.10
Cada qual tem uma luta intensa para vencer o pecado no próprio
coração. Às vezes essa obra é muito penosa e desanimadora; pois, ao
vermos os nossos defeitos de caráter, passamos a considerá-los, em vez de
olhar para Jesus e revestir-nos das vestes de Sua justiça. Todo aquele que
entrar na cidade de Deus pelas portas de pérola o fará como vencedor, e
sua maior conquista terá sido a do próprio “eu”. 11
Não é incomum encontrar pessoas que, apesar de sua entrega diária a Deus,
acalentam ideias errôneas acerca de como Deus trata o pecador. Quantas
vezes somos levados a pensar que nossas iniquidades fazem Deus franzir a
testa para nós, e a preparar imediatamente um castigo que nos faça contorcer
de dor. Isso acontece porque cremos equivocadamente que a espiritualidade
sadia é aquela que deriva de um bom comportamento. Embora seja verdade
que as boas obras revelam o compromisso da fé, a vida espiritual tem sua
base no relacionamento com Cristo. Não são as coisas erradas que fazemos
que nos separam de Deus, mas é a nossa separação de Deus que nos leva a
ceder às tentações.
O drama para alguém que entende essa questão é conseguir a explicação
para a seguinte pergunta: “De onde derivam os pecados enquanto estou em
relacionamento com Cristo?” Encontrei uma possível resposta para isso em
algumas palavras esclarecedoras do apóstolo João: “Todo aquele que é
nascido de Deus não vive na prática do pecado, pois o que permanece é a
divina semente.” Em outras palavras, eu posso cair de vez em quando, mas
12
não deliberadamente e sem limites. Afinal, seria uma imensa utopia querer
não pecar possuindo uma natureza pecaminosa. Além disso, como afirmou
Lewis: “Ninguém sabe o quanto é mau até ter procurado muito ser bom.” 13
O que nenhum cristão deveria esquecer é que tentar ser bom por esforço
próprio termina sempre num beco sem saída. “Poderíeis fazer o bem, estando
acostumados a fazer o mal”, disse o profeta Jeremias, mas isso seria tão
14
*****
Pode ser que um dia olhemos para trás e descubramos que nossa vida com
Deus percorreu uma trilha que era a única que podia ser percorrida, e que,
mesmo pisando em pedras e espinhos, enfrentando bolhas nos pés, sentindo
cãibras e dores nas articulações, passando frio ou calor, alcançamos o que
buscávamos porque Alguém caminhou conosco. Alguém que provavelmente
nos carregou no colo quando adormecíamos pelo cansaço. Parece que
Malcolm Muggeridge experimentou algo parecido, pois escreveu:
1
Brennan Manning, A Assinatura de Jesus (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p. 145.
2
Philip Yancey, O Deus (In)visível (São Paulo: Vida, 2001), p. 44.
3
Eugene Peterson, Ânimo! (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 46.
4
Salmo 51:5.
5
Ezequiel 18:20.
6
Philip Yancey e Tim Stafford, Desventuras da Vida Cristã (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p.
25.
7
Romanos 7:15-24.
8
Santo Agostinho, Confissões (São Paulo: Nova Cultural, 2004), p. 54.
9
Romanos 5:20.
10
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 35-36.
11
Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2006), v. 9, p.
182, 183.
12
1 João 3:9.
13
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 81.
14
Jeremias 13:23.
15
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 84.
16
Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1985), v. 1, p. 367.
17
Isaías 61:3.
18
Malcolm Muggeridge, citado por Eugene Peterson, Ânimo!, p. 77.
19
Isaías 64:4.
Não consegui chegar a ser coisa alguma, nem sequer mau; nem mau
nem bom, nem canalha nem homem de bem, nem herói nem inseto.
Fiodor Dostoievski 1
Você preferiria deixar de lado o cuidado com o corte. Mas a dor não
permitirá que você o faça.
Sua consciência é feita para responder do mesmo modo ao seu pecado.
Se algo está obviamente errado em sua vida, você tem de lidar com isto.
Sentimentos de culpa o forçam a voltar a atenção para o ponto específico
da ferida, levando-o a largar tudo o mais até que lide com ele.
4
Portanto, quando enfrento uma crise espiritual, seja ela causada pela culpa
ou por qualquer outra coisa, o que tem me mantido nos trilhos é uma espécie
de senso de necessidade, de voltar ao início de tudo. Este retorno ao “marco
zero” da vida cristã significa reencontrar a cruz do Calvário. Então, deparo-
me novamente com o plano da salvação. De joelhos, clamo ao Salvador. Ali
encontro o que tanto necessito: perdão e poder. “Haverá qualquer coisa que
me restitua a esperança, a não ser a vossa conhecida misericórdia, que
principiou a obra da minha conversão?”, perguntou Agostinho.
5
instou o autor da epístola aos Hebreus. Ele estava certo. Pode até ser que em
certas ocasiões minha confiança na direção de Deus esteja falhando, como
um interruptor em curto. Porém, não posso abandonar tudo aquilo que foi
construído ao longo de meses ou anos em meu relacionamento com Deus. Há
uma clara diferença entre o fracasso momentâneo e o fracasso total. Posso
falhar em determinadas situações, mas em algum momento, depois de
exercitar minha confiança em Deus, a recompensa virá.
Pense em Pedro, o discípulo que gostava de falar o que lhe vinha à mente.
Mesmo convivendo com Jesus todos os dias, volta e meia ele deixava escapar
aquele seu lado “Pedro” de ser, demonstrando total fraqueza e inadequação.
Em muitas ocasiões, Jesus teve de chamar sua atenção, mesmo em público,
corrigindo seus erros. No momento mais crítico de seu discipulado, quando
sua fé se deparou com a frustração e a desesperança, Pedro chegou a
confessar publicamente que Jesus lhe era um completo desconhecido. O
canto do galo foi o som mais dolorido que seus ouvidos ouviram na vida.
Entretanto, antes de Pedro ter desistido de tudo e voltado para as redes de
pesca, a graça de Cristo lhe foi manifestada de uma maneira surpreendente.
Seu pecado foi perdoado. Então, a fé em Deus retornou com toda a força.
Algumas semanas depois, as pessoas viram um Pedro mais maduro e
confiante, cujas palavras indicavam ter ele estado com Jesus.
De alguma maneira, a experiência de cada cristão se assemelha com a de
Pedro. Quantas vezes teremos de chorar por nossos erros, por termos negado
a Jesus com palavras e atos? Porém, em nenhum momento a misericórdia de
Deus nos abandonará. Agostinho afirmou:
Deus tem uma obra a ser realizada na vida de cada crente. A justificação
acontece instantaneamente, mas a santificação pode levar uma vida toda.
Tropeços e frustrações fazem parte do processo. Nosso caso seria sem
solução se o perdão e a graça de Cristo não existissem. Tendo o Salvador
como Advogado, a esperança nunca morrerá.
1
Fiodor Dostoievski, Notas do Subterrâneo (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006), p. 11.
2
Brennan Manning, O Evangelho Maltrapilho (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p. 17.
3
Jó 6:11.
4
Philip Yancey e Tim Stafford, Desventuras da Vida Cristã (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p.
53.
5
Santo Agostinho, Confissões (São Paulo: Nova Cultural, 2004), p. 298.
6
Citado por James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo:
Mundo Cristão, 2006), p. 125.
7
Hebreus 10:35.
8
Confissões, p. 166-167.
Duas são as maneiras pelas quais a máquina humana funciona mal.
Uma é quando uns se afastam dos outros, ou quando colidem entre si,
prejudicando-se mutuamente, ao brigarem ou enganarem-se. A outra é
quando as coisas não vão bem dentro do próprio indivíduo.
C. S. Lewis 1
A igreja que eu frequentava quando criança era enorme. Pelo menos era
assim que ela me parecia. Com três longas fileiras de bancos, um teto a
muitos metros acima das imensas janelas e uma comprida escada exterior
para chegar ao banheiro, era um mundo à parte para mim. Quando ficava
lotada, eu tentava olhar por cima da multidão. Contemplava tantas cabeças
que me perguntava se uma pequena parte dos habitantes da cidade não estaria
ali.
Os dois andares inferiores da igreja possuíam salas que, durante a semana,
serviam de escola para as primeiras séries do ensino fundamental (naquela
época chamava-se 1º grau). Estudei ali durante oito anos; ou seja, não havia
nenhum dia da semana em que eu não estivesse na igreja. Passava mais
tempo lá do que em minha casa.
Desde cedo me ocorreu que a igreja era um lugar singular para gerar
emoções diversas. Num dia de culto, podia ver alguém chorando perto de
mim, enquanto outra pessoa sorria. Mais adiante, um senhor orava ajoelhado,
balbuciando algo em completa concentração. Logo à frente, o cantor fechava
os olhos e levantava as mãos, aparentando grande alegria. No saguão de
entrada, uma diaconisa se enfurecia com alguns meninos correndo pelos
corredores. Um idoso que sentava sempre no último banco aproveitava para
relaxar, às vezes se assustando com o próprio ronco.
Depois de frequentar a igreja por algum tempo, qualquer um percebe que ali
existe um paradoxo curioso. Algumas pessoas encontram na igreja
companheirismo e amor desinteressado, sendo batizadas e gozando de paz em
sua comunhão; outras se deparam com a crítica e a decepção, sentindo-se
pouco estimuladas a voltar. De alguma maneira, a igreja pode remover ou
aprofundar a crise espiritual de uma pessoa.
Para mim, enquanto garoto, havia momentos em que estar na igreja parecia
um passeio no parque. Em outros, o tédio era tanto que eu sonhava em voltar
para o futebol com os amigos. Curiosamente, nunca percebi que muitas
pessoas iniciavam sua comunhão com a igreja e depois desapareciam. Porém,
quando um amigo chegado não apareceu mais, eu me perguntei por qual
razão aquilo havia acontecido.
Somente após o término da faculdade de teologia, criei coragem para
perguntar para algumas pessoas: “Por que você abandonou a igreja?” Desde
então, ouço toda sorte de histórias. Algumas dessas pessoas, depois de oração
e reflexão, retornam à igreja e tentam conviver em paz com os outros. Mas há
aqueles que nunca voltam.
Uma senhora me disse que, em meio a uma crise espiritual, foi diversas
vezes à igreja para encontrar conforto e ânimo. Mas, cada vez que contava
seus problemas para alguém, ouvia frases do tipo:
“Você precisa ter mais fé!”
“Considere a possibilidade de Deus estar irado por algum pecado que você
cometeu.”
“Talvez você precise ser exorcizada!”
Ela logo notou que todo mundo apresentava uma versão para o problema,
mas ninguém de fato a ajudou, visitando-a e orando com ela. Por fim, a
mulher afastou-se da igreja e nunca mais voltou.
Infelizmente, o drama daquela senhora não é um caso isolado. Já presenciei
muitas histórias semelhantes. Fico entristecido e preocupado. São muitas as
pessoas que sinceramente amam a Deus, mas não vão mais à igreja, pois esta
(segundo elas) deixou de satisfazer suas expectativas. Osmar Ludovico
colocou a questão da seguinte maneira:
Dizem que a igreja é como uma família. E isso é verdade. Quando sinto
uma dor de estômago, não consigo sofrer sozinho; preciso compartilhar com
alguém meu problema. Evidentemente, no meu caso, a primeira pessoa que
procuro é a minha esposa. Mas não conto a ela sobre a dor apenas pela
necessidade emocional. Sei que, por me amar, ela me ajudará a encontrar
uma solução.
Inevitavelmente, quando não nos sentimos bem, buscamos apoio daqueles
com quem convivemos. Ninguém espera ser mal recebido em sua própria
família quando dela mais necessita. A igreja, sendo a família de Deus, acaba
gerando grande expectativa naqueles que nela buscam conforto e cura para
alguma dor.
Como o cristianismo só funciona dentro de uma comunidade, a comunhão
com Deus significa também comunhão com os filhos de Deus. Isso faz com
que a existência da igreja seja uma necessidade real e evidente. Mas, por
outro lado, como toda comunidade significa um agrupamento de pessoas, a
possibilidade de desgaste nos relacionamentos é tão real quanto o
amadurecimento de uma fruta no verão. Se alguém grita por socorro dentro
da igreja e não é ouvido, o problema muitas vezes se encontra na
superficialidade da comunhão entre os cristãos, agravado em certa medida
por um medo de enfrentar desentendimentos (ou porque ele já aconteceu).
De fato, o amadurecimento de uma igreja pode ser visto no bálsamo que ela
oferece às pessoas feridas pelo pecado. Quem vai para a igreja certamente
deseja que sua fé seja fortalecida. Todo cuidado deve ser tomado para que tal
pessoa não vá embora sem receber o devido medicamento espiritual. Mas,
apesar do esforço da igreja em ajudar, ela não pode curar alguém em crise
espiritual. A igreja é composta de seres humanos que possuem falhas e
limitações. Isso significa que todos nós estamos, mais ou menos, na mesma
situação. O bálsamo para nossas feridas é Jesus. Antes de esperar que a igreja
realize algo por mim, tenho de ir a Cristo do jeito que me encontro e
reconhecer diante dEle minha impotência. De forma enfática, Thomas
Merton explica a questão:
Este encontro de Cristo jamais é sincero se não for mais que uma fuga
para fora de nós. Muito ao contrário, ele não pode ser uma evasão. Deve
ser uma consumação. Não posso descobrir Deus em mim nem a mim em
Deus, se não tenho a coragem de enfrentar-me exatamente como sou, com
todas as minhas limitações, e de aceitar os outros como são, com todas as
suas limitações. A solução religiosa não é religiosa se não é plenamente
real.
3
Para quem enfrenta uma crise espiritual, é comum a tentação de fazer uma
avaliação superficial da igreja. Ela possui inúmeras limitações, é verdade.
Mas, na maioria das vezes, esperamos receber da igreja mais do que ela
realmente pode nos oferecer.
A visão que um cristão possui da igreja pode mudar de acordo com sua
condição como membro dessa igreja. Quando sou apenas um espectador
dentro da congregação, posso me acostumar a receber os benefícios de um
belo louvor, de uma pregação inspiradora e da visita do pastor em minha
casa. Com o tempo, há o risco de me tornar tão exigente que passo a crer que
cada departamento da igreja existe para me agradar. Qualquer falha por parte
daqueles que têm a missão de cuidar de mim será considerada como
indiferença ou incompetência.
Em contraponto, quando me torno participante e responsável por aquilo que
a igreja oferece às pessoas, noto o quanto isso custa. O esforço de servir aos
outros exige dedicação, paciência e oração. Percebo como pode ser difícil
agradar os demais. Posso ser o alvo das críticas, mesmo dando o melhor de
mim.
Volta e meia, penso no tempo em que era apenas um espectador na igreja.
Minhas opiniões, reivindicações e críticas acerca da igreja ainda estão frescas
em minha memória. Para mim, tudo tinha de funcionar da maneira que
achava ser a correta, até o dia em que passei a liderar a igreja. Então, tudo
mudou. Como disse alguém, deixei de ser pedra para me tornar vidraça.
Hoje, as reclamações e críticas que ouço me fazem relembrar meu tempo de
espectador. Algumas são pertinentes, principalmente quando partem de
cristãos decepcionados ou em crise. Quando sou confrontado com uma dessas
críticas, procuro imediatamente a fonte de tal descontentamento. Vejo-me
então com o desafio de ajudar a curar uma ferida que, embora a igreja possa
ser culpada de abri-la, não será fechada sem que a própria igreja ministre o
remédio em nome de Jesus.
Mesmo assim, a ajuda que a igreja pode oferecer para alguém em crise
espiritual nem sempre acontece como o esperado. Muitas vezes, quando me
achego ali querendo que alguém me socorra, sou pego pelo braço e colocado
ao lado de uma pessoa que está em pior condição do que eu. Então, alguém
me diz: “Ajude-nos a cuidar dele, e depois veremos o seu caso.” Pode parecer
cruel a princípio. Mas, depois de um tempo dedicando-me a socorrer o outro,
descubro que meu ferimento foi temporariamente curado. “É, pois, de
suprema importância consentirmos em viver não para nós, mas para os
outros”, afirma Merton. “Quando praticamos isso, o primeiro efeito é que
seremos capazes de encarar e aceitar nossas próprias limitações.” 4
Aprendi a encarar a igreja não como um lugar aonde vou simplesmente para
encontrar solução para minhas necessidades. Existe algo mais. Em primeiro
lugar, vou à igreja porque necessito adorar o Criador. Deus é digno de minha
adoração e sinto-me bem em um lugar preparado para isso. Em segundo
lugar, quero me sentir útil, ministrando para que outros também adorem com
verdadeira paixão. No fim das contas, toda crise espiritual tem a ver com
adoração interrompida. A igreja (com suas contundentes limitações) trabalha
para que nos liguemos novamente a Deus.
Enfim, parece-me impossível encarar qualquer crise de fé sem o suporte do
corpo de Cristo. Como parte desse corpo, dependo da atuação da Cabeça e do
restante dos membros. Somente assim terei esperança de alcançar uma
melhora significativa.
Sendo membro do corpo, necessito mais dar do que receber. Trata-se de um
imperativo do cristianismo. E essa verdade nunca mudará.
1
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 39.
2
Osmar Ludovico, Meditatio (São Paulo: Mundo Cristão, 2007), p. 149.
3
Thomas Merton, Homem Algum É uma Ilha (Campinas: Verus, 2003), p. 13.
4
Ibid., p. 17.
O evangelho tem pouco a oferecer às pessoas que não admitem ter
necessidades.
Philip Yancey 1
Quando alguém me diz que sua crise espiritual começou dentro da igreja,
sei que algo grave está acontecendo e que o resultado pode ser desastroso se
nada for feito. Afinal, aonde mais o cristão deve ir quando enfrenta decepções
e amarguras, senão à igreja? Ela não deveria oferecer paz e esperança?
Perguntei a muitas pessoas de que maneira a igreja tem causado ou
aprofundado sua crise espiritual, e a resposta de quase todas envolvia
basicamente a dificuldade de lidar com a monotonia, a formalidade e a falta
de união. John Burke ponderou:
razões para alguém não voltar à igreja. Reconheço seus defeitos. Aliás, esses
defeitos estão mais patentes para mim do que para qualquer outra pessoa.
Afinal, passo mais tempo na igreja do que a maioria, e, além disso, ouço
semanalmente as reclamações dos descontentes. No entanto, nessas horas,
sempre me vem à mente uma pergunta: “Se eu abandonar a igreja, para onde
vou?”
Conheci uma senhora que se decepcionou com sua igreja e decidiu
abandoná-la. “Eu estava convicta de que não precisava mais ir àquele lugar.
Eles me feriram e nada me faria voltar atrás”, ela me disse. No começo,
parecia que a igreja não fazia falta alguma. Mas, depois de um tempo, sentiu
saudades dos hinos de louvor, da pregação e das preces em grupo. O mais
difícil, porém, era não ter a quem contar os problemas e pedir uma oração.
Um dia, passando de carro na frente da igreja, viu as pessoas saindo do culto.
Ela se lembrou dos defeitos da igreja, mas isso parecia não afetar aquelas
pessoas, pois todas estavam sorridentes. A imagem do sorriso delas na porta
da igreja a incomodou a ponto de perder o sono. “Meu Deus, o que estou
fazendo aqui?”, ela ponderou. “A igreja é o lugar onde devo estar!” Desde
então, nunca mais deixou de ir. “Aprendi que os defeitos da igreja são
exatamente os meus defeitos. Deus ama Sua igreja, e isso significa que estou
incluída nesse amor. Devo levar essa mensagem adiante. A igreja precisa de
mim tanto quanto eu dela.”
A experiência daquela senhora e de tantos outros me fez refletir em quão
importante é entender a igreja à luz da Bíblia. Ela é de fato o corpo de Cristo,
e não se encontra segurança e espiritualidade completa estando fora dela. Se,
de vez em quando, seja por negligência ou por um zelo exagerado, eu não me
sentir bem dentro da igreja, é hora de lembrar que ela não é perfeita. E como
poderia ser? A igreja é composta de seres humanos pecadores, que carecem
da glória de Deus. Não esqueçamos que o grande Pastor da igreja é Jesus
Cristo. Ele, sim, é perfeito e pode aperfeiçoar Sua igreja. Ele pode aperfeiçoar
a mim e a você.
“Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns”, conclamou
8
o autor de Hebreus. Para os que creem que a crise que enfrentam é culpa da
igreja, voltar lá pode representar uma atitude inconsciente. Mas não vale a
pena tentar? Que essa tentativa seja feita por amor a Cristo. Afinal, olhando
para o Supremo Pastor, tudo passa a ser mais suportável.
1
Philip Yancey, Igreja: Por que me Importar? (São Paulo: Editora Sepal, 2000), p. 60.
2
Teresa de Ávila, citada por Philip Yancey, Maravilhosa Graça (São Paulo: Vida, 1999), p. 215.
3
Malcolm Smith, Esgotamento Espiritual (São Paulo: Vida, 2006), p. 14.
4
Philip Yancey e Tim Stafford, Desventuras da Vida Cristã (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p.
151.
5
John Burke, Proibida a Entrada de Pessoas Perfeitas (São Paulo: Vida, 2006), p. 339.
6
Atos 20:35.
7
Osmar Ludovico, Meditatio (São Paulo: Mundo Cristão, 2007), p. 150.
8
Hebreus 10:25.
É estranho, mas as coisas boas e os dias agradáveis são narrados
depressa, e não há muito que ouvir sobre eles, enquanto as coisas
desconfortáveis, palpitantes e até mesmo horríveis podem dar uma boa
história e levar um bom tempo para contar.
J. R. R. Tolkien1
Meu pai foi o tipo de pessoa que sempre teve um relacionamento instável e
conflituoso com a igreja. Na infância, viveu numa cidadezinha pequena no
interior do Paraná, frequentando a igreja com a mãe e os irmãos. Na
adolescência, não via na igreja nenhuma atração, a exemplo da maioria de
seus amigos, mas mesmo assim a frequentava. Durante a juventude, já
morando na cidade de São Paulo, ele ia à igreja apenas para paquerar as
garotas, ou, de vez em quando, para acompanhar minha avó. Filho caçula de
seis irmãos, foi o último a sair de casa. Casou-se no início da década de 70,
com trinta e poucos anos, um tanto tarde para os padrões daquela época da
Jovem Guarda e da ditadura militar.
Pouco tempo depois, abandonou a igreja por completo. Minha mãe não o
acompanhou em sua decisão, e ela trabalhou para que nunca o fizéssemos
também. Apesar de sua apostasia, meu pai não criou nenhum tipo de
empecilho à nossa frequência à igreja. Nos dias de culto, seu Volkswagen
Variant 1978 nos levava até o templo.
No entanto, pelo caminho, muitas vezes ele resolvia falar algo da igreja que
frequentávamos. Era como um ritual. Primeiro, reclamava que a igreja era
longe demais de onde morávamos; depois, era a vez de criticar as pessoas que
congregavam conosco. Falava da falsidade do Sr. José, que não o
cumprimentava quando o via no centro da cidade, mas o abraçava
calorosamente quando estava em frente da igreja. Comentava sobre a
demagogia da dona Maria, que gostava de falar de sua própria fé e piedade,
mas vivia devendo dinheiro aos outros. Sobrava até para o pastor, que,
segundo meu pai, não tinha competência suficiente para resolver os
crescentes problemas da igreja (como se ele soubesse quais eram). Por fim,
reclamava dos pregadores, que nunca terminavam o sermão no horário
devido. Até hoje, suspeito de que meu pai foi o típico caso de alguém que
colocava a culpa na igreja para ocultar as próprias frustrações espirituais e
morais.
Então, um dia, para surpresa de toda a família e dos amigos, ele voltou a
frequentar a igreja, afirmando a todos que experimentara uma genuína
conversão. Nessa época, eu já era adolescente, e tive dúvidas quanto à sua
sinceridade. Claro que ficamos felizes a princípio, mas era difícil de acreditar
depois de tantos anos ouvindo-o criticar a igreja. Aqueles que conheciam
meu pai há mais tempo também pareciam um tanto incrédulos. Apesar disso,
algumas mudanças foram visíveis. Parou de beber a caipirinha nos fins de
semana, já não falava tantos palavrões dentro de casa e procurava (quase
nunca conseguindo) não falar mal de alguém da igreja. Sem contar que virou
um estudioso das profecias bíblicas.
Bem, isso durou não mais que um ano e meio. Depois, a coisa foi esfriando.
As críticas à igreja retornaram. A frequência aos cultos diminuiu. Quando nos
demos conta, meu pai estava fora da igreja novamente. Lembrávamos a
contragosto do famoso clichê: “Era bom demais para ser verdade!”
Após alguns meses, quando todos nós achávamos que meu pai nunca mais
seria visto na igreja, ele resolveu voltar. Parecia a mesma experiência
anterior, mas menos intensa. Será que ficaria desta vez?
Na verdade, iniciou-se um ciclo, em que meu pai acabaria saindo e
retornando à igreja umas quatro ou cinco vezes. Bastava sentir-se magoado
com alguém ou fraquejar espiritualmente que ele desaparecia. Depois de
alguns meses, retornava. Nesse meio-tempo, eu tive a minha experiência de
conversão, e foi então que as idas e vindas de meu pai começaram realmente
a me incomodar. Por que ele agia daquele jeito? Estranhamente, passaram-se
anos até que eu conseguisse fazer essa pergunta para ele.
Hoje, quando me lembro da experiência de meu pai, meus sentimentos são
diferentes. Percebo que sua peregrinação espiritual não difere tanto da
peregrinação de milhares de cristãos ao redor do planeta. Para ser sincero,
minha jornada nos últimos anos, em escala menor, lembra-me a dele. Entre
momentos de fé aguçada ou estagnação espiritual, quem pode nos
compreender e nos ajudar?
*****
Por que o cristão deveria estar na igreja? Para começar, ele está lá porque
Jesus a fundou com Seu sangue. A igreja é uma reunião de pecadores
perdoados e purificados do pecado. Cristo colocou sobre o pecador Suas
vestes de justiça e o elevou a uma atmosfera de paz e alegria. O cristão está
na igreja porque deseja que o mundo saiba que sua união a um corpo de fiéis
o leva a seguir e exaltar a Palavra de Deus. O crente quer apresentar ao
mundo a imagem da suficiência de Cristo e a representação do mundo eterno,
onde as leis e as aspirações são mais elevadas que as da Terra. Ele deseja,
com a igreja, levar ao mundo o conhecimento do evangelho da graça, para
que os raios do Sol da Justiça irradiem em todos os corações. Enfim, o cristão
torna-se o sal da Terra e a luz do mundo.
“Bem-aventurados, Senhor, os que habitam em Tua casa”, disse o
4
salmista. Abandonar a igreja, mesmo sendo ela a suposta causa de uma crise
de fé, assemelha-se à atitude de pular de um navio no meio do oceano
simplesmente porque fiquei enjoado da comida, ou porque um tripulante não
me cumprimentou, ou ainda porque o convés está enferrujado. Você pode se
livrar de um pequeno incômodo, mas vai acabar se dando conta de que teria
sido bem melhor ficar na embarcação.
Quando deixo de ir a um culto em minha igreja, sempre me ocorre a
seguinte pergunta: “Quais bênçãos deixei de receber em minha vida espiritual
hoje?” Mesmo que eu tente racionalizar minha ausência, lá no fundo, sinto
que perdi algo que dificilmente será recuperado.
Na maioria das vezes, os principais motivos que levam alguém a entrar em
uma fase de fraqueza no relacionamento com a igreja têm que ver com a
desilusão no convívio com outras pessoas. Quando visito cristãos afastados
da igreja e pergunto o porquê da sua distância, ouço frases do tipo: “fulano
me magoou muito”; “o pastor me tratou com descortesia”; “ninguém me
cumprimenta”; “o diácono chamou a atenção do meu filho”.
Embora eu reconheça que tais reclamações são pertinentes, pergunto-me se
é possível que seja diferente, tendo em vista a natureza dos seres humanos.
Chesterton afirmava que, na medida em que era homem, era a cabeça da
criação. Mas, sendo um homem, ele teve de reconhecer: “Sou o primeiro dos
pecadores”. 5
A igreja foi estabelecida por Deus para ser uma bênção na vida daquele que
crê em Seu poder. Necessitamos desesperadamente dEle, mas também
precisamos uns dos outros. Quando um intérprete da Lei abordou Jesus
perguntando qual era o grande mandamento, o Mestre disse: “Amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o coração, de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento. [...] Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Em que outro
9
1
J. R. R. Tolkien, O Hobbit (São Paulo: Martins Fontes, 2002), p. 50.
2
C. S. Lewis, Surpreendido Pela Alegria (São Paulo: Mundo Cristão, 1998), p. 238.
3
Ed René Kivitz, Outra Espiritualidade (São Paulo: Mundo Cristão, 2006), p. 36.
4
Salmo 84:4.
5
G. K. Chesterton, Os Paradoxos do Cristianismo (São Paulo: Quadrante, 1993), p. 41.
6
Romanos 3:23.
7
Citado por James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo:
Mundo Cristão, 2006), p. 100.
8
Citado por John Piper, Teologia da Alegria (São Paulo: Shedd, 2001), p. 90.
9
Mateus 22:37, 38.
10
Salmo 122:1.
Quão alto sois nas alturas e quão profundo nos profundos abismos!
Nunca Vos apartai de nós, e, contudo, com que dificuldade nos
voltamos para Vós!
Agostinho 1
1
Santo Agostinho, Confissões (São Paulo: Nova Cultural, 2004), p. 207.
2
Efésios 6:12.
3
Romanos 8:37.
4
Dietrich Bonhoeffer, Discipulado (São Leopoldo: Sinodal, 2004), p. 47.
5
Ibid., p. 77.
6
Conheço muitas pessoas que sabem dos sacrifícios exigidos pela espiritualidade, mas tais
exigências não são maiores que o prazer real que advém do relacionamento com Cristo.
7
Jeremias 29:13, 14.
8
Ed René Kivitz, Vivendo com Propósitos (São Paulo: Mundo Cristão, 2003), p. 19.
9
João 15:4.
10
Henry Nouwen, Transforma Meu Pranto em Dança (Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2007), p.
24.
11
Lucas 19:10.
Ninguém pode esvaziar-se do próprio “eu”. Somente Cristo pode
realizar essa obra.
Morris Venden 1
Paulo aos romanos. Ao me entregar a Cristo a cada dia, percebo o que Ele
quis dizer com Suas contundentes palavras: “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres.”
8
Ao contrário do que alguém possa acreditar, Deus não quer ser um mero
espectador de minha batalha na fé. Aliás, nem espectador nem mesmo
coadjuvante. Segundo a Bíblia, Ele anseia conduzir cada aspecto da minha
existência.
O processo de fé e submissão levou-me a ter a convicção de que Deus não
quer tornar as pessoas “boas”, mas sim “novas criaturas”. É isso o que faz o
cristianismo ser único. Muitas das grandes religiões do mundo desejam levar
o ser humano a uma espécie de processo de melhora, de aperfeiçoamento.
“Você pode ser bom”, dizem elas. Para ajudar, pode-se escolher a meditação,
a sublimação ou até a autoflagelação. Contudo, Cristo não quer que eu seja
um homem melhorado, mas um novo homem.
Hoje entendo melhor por que “os dominadores deste mundo tenebroso”
trabalham incansavelmente para me manter afastado de Jesus. Afinal, quando
vou a Ele, os dons de Sua graça são derramados sobre mim abundantemente.
Passo a experimentar o sorriso que só a verdadeira liberdade torna possível.
Na verdade, conforme eu já disse, ir a Jesus em submissão é a parte que me
cabe. Não há nada, além disso, que eu possa realizar pela minha salvação e
saúde espiritual. O supremo convite de Jesus continua sendo: “Vinde a
Mim”. Basta aceitar o convite uma única vez? Não. A necessidade de
10
John Donne, mesmo entre suas famosas crises de fé, sabia que a entrega de
si mesmo a Cristo era o único caminho optável. Ele escreveu em um de seus
famosos sonetos:
1
Morris L. Venden, Como Conhecer a Deus (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1990), p. 48.
2
Brennan Manning, A Assinatura de Jesus (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p.
3
1 João 5:4.
4
Efésios 6:12.
5
2 Coríntios 10:4.
6
Filipenses 2:13.
7
Romanos 6:20.
8
João 8:36.
9
Brennan Manning, O Evangelho Maltrapilho (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p. 17.
10
Mateus 11:28.
11
1 Timóteo 6:12.
12
John Donne, Sonetos de Meditação (Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985), p. 61.
A fé é a mãe de todas as energias mundiais e os seus inimigos são os
pais de toda a confusão mundial.
G. K. Chesterton1
Não há outro caminho que nos conduza à felicidade para a qual fomos
feitos. Tanto coisas boas como más, você sabe, são contagiantes. Quem
quer se aquecer, que fique perto do fogo; quem quer se molhar, que entre
na água. Se você quer alegria, poder, paz, vida eterna, aproxime-se ou
mesmo seja absorvido pelo que as contêm. Tais coisas não são assim
como prêmios que Deus pudesse dar, se quisesse, a qualquer pessoa. São
uma grande fonte de energia e beleza que jorra no verdadeiro centro da
realidade. Se você estiver perto dessa fonte, a névoa úmida vai atingi-lo e
o molhará; senão você permanecerá bem seco. Uma vez que alguém se
una a Deus, como deixará de viver para sempre? Uma vez que alguém se
separe de Deus, que pode acontecer senão secar e morrer? [...]
O Filho veio a este mundo e tornou-Se homem a fim de dar aos outros
homens o tipo de vida que Ele mesmo possui, mediante o que chamo de “o
bom contágio”. 3
Qual tentação pode ser mais perigosa do que aquela que procura nos
impedir de aceitar diariamente o convite do Mestre, ou seja, ir a Ele como me
encontro? Se as maneiras mais primárias pelas quais o cristão se aproxima de
Deus – oração, estudo da Bíblia, frequência à igreja, testemunho – forem
anuladas, o contágio da graça não fará efeito. De fato, eis a luta maior na vida
espiritual: ir ou não em busca de Jesus. É difícil porque, muitas vezes, parece
mais fácil fazer qualquer outra coisa do que investir nesse relacionamento.
*****
Todos nós enfrentamos uma batalha diária para realizar aquilo que sabemos
ser prioridade na vida. Veja um exemplo: tenho duas filhas que clamam por
atenção constantemente. Atividades como o meu trabalho com as igrejas, as
visitas para fazer, livros para ler e textos para escrever consomem muito o
meu tempo; quando vejo, acabou o dia e, esgotado, reservo apenas um beijo
desejando boa noite para elas. No fundo, sei que as horas do dia não seriam
suficientes para “esgotá-las” com suas brincadeiras. Será que um dia vou
deixar de estar em dívida com minhas meninas? Pergunto-me
semelhantemente quando penso no tempo que dedico na busca por Deus.
Estou falhando? Quanto? Deus está franzindo a testa por causa de minha
negligência?
Estou certo de que cristão algum está satisfeito com o tempo que reserva
para Deus. E, por mais estranho que pareça, já conheci pessoas que O
abandonaram por isso. Pessoas que se sentem culpadas por não conseguir
recompensar a Deus com seu tempo e esforços. Mas, será que realmente
Deus nos cobra com tanto afinco? Será que Ele deseja que carreguemos mais
essa frustração? Não creio nisso. Ele sabe muito bem o quanto somos
limitados e sujeitos a vacilar.
Na Bíblia, encontramos muitos exemplos de pessoas que desejavam não
falhar com Deus, mas falharam. Pense em Moisés, o homem mais manso da
Terra. Ele aceitou o chamado de Deus para enfrentar o monarca mais
poderoso de seu tempo, o Faraó. Com fé e coragem, libertou uma multidão de
escravos. No deserto, falava com Deus face a face e chegou a impedir (pela
fé) que Deus destruísse o povo rebelde, mesmo depois de quase ser
apedrejado por eles. Contudo, foi o povo que ele defendeu que o irritou a
ponto de fazê-lo perder a paciência, junto à fonte na rocha. Tal atitude
impossibilitou sua entrada na Terra da promessa.
Pense em Davi, o homem segundo o coração de Deus. Em sua fé de menino
(sendo apenas um pastor de ovelhas), avançou diante do gigante (quatro
vezes maior do que ele) tendo somente uma funda com algumas pedrinhas.
Com o poder da oração, venceu Golias e fez história. Foi coroado rei com a
promessa divina de longevidade e glória. No entanto, julgou-se tão poderoso
que considerou tomar a mulher de um de seus soldados algo insignificante.
Uma escolha que resultou em sofrimento e vergonha pública.
Pense em Pedro, um discípulo a quem Jesus chamou de “rocha”. Na
presença do Mestre galileu, não pensou duas vezes; deixou as redes e o
comércio de peixes. Escolhido como um dos três mais íntimos de Jesus,
Pedro testemunhou incríveis milagres (a cura de sua sogra foi um deles) e
participou ativamente de outros. Na transfiguração de Cristo, ele não se
aguentava de tanta emoção. Foi fortalecido em público por Jesus em várias
ocasiões, o que não o impediu de dormir no momento de crise. O sono
precedeu sua inesperada negação dAquele por quem jurou morrer.
Deus abandonou Pedro por causa de sua instabilidade espiritual?
Abandonou Abraão, Moisés ou Davi? Abandonou Adão, Jacó, Elias, Marta
ou Paulo? Não! Penso constantemente que, apesar de Deus pedir que eu
exercite minha fé nEle, Ele tem a noção exata de minhas fragilidades e sabe
quando vou vacilar. Foi a Paulo que Deus fez uma afirmação que deve estar
gravada no coração de todo cristão: “A Minha graça te basta, porque o poder
se aperfeiçoa na fraqueza.”
4
Parece incrível, mas tenho notado que muitos cristãos sentem o desejo de se
aproximar de Deus, de se relacionar com Ele, mas, no fundo, não sabem
muito bem o que isso significa. Quando utilizo o púlpito para desafiar os
membros a um relacionamento mais substancial com Jesus, não raro encontro
pessoas que me confessam o quanto têm se esforçado para guardar Seus
mandamentos e orientações, pois creem que assim fazendo estão mais
próximas de Deus.
Submeter-me a Deus exige esforço? Claro que sim! E esse esforço deve se
concentrar em buscar uma comunhão maior com Ele. Dessa comunhão virá o
poder para obedecer aos mandamentos ou qualquer outra coisa que nos for
requerida. Não existe mágica ou atalhos para uma vida espiritual saudável.
“Permanecei em Mim”, disse Jesus, a Videira verdadeira. “Como o ramo não
pode produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem
vós o podeis dar, se não permanecerdes em Mim.” Depois do esforço vem o
8
real prazer.
“Muito bem”, você poderá dizer, “permanecer em Deus significa se
relacionar com Ele. Mas é muito difícil se relacionar com alguém que não
pode sentar no meu sofá, olhar em meus olhos e rir ou chorar com meus
dramas pessoais.” Concordo plenamente e creio que essa é uma das razões
mais agudas para muitas das crises espirituais que os cristãos enfrentam. No
entanto, que outra opção nós temos senão exercer a fé e continuarmos a
jornada? Vale a pena desistir? Claro que não!
Por vezes, o esforço para andar com Deus encontra um paralelo com a
própria luta pela sobrevivência. Quantas vezes o relógio nos desperta para
mais um dia de trabalho, e nosso desejo é apenas permanecer com o corpo
estirado na cama? O que de fato nos faz levantar e enfrentar a labuta do dia?
Bem, nós temos necessidades a serem supridas, não é mesmo? Precisamos de
alimento, de roupas, de combustível para o carro, de pagar as contas, de
cuidar dos filhos. São essas necessidades que nos fazem acordar cedo, mesmo
que a contragosto. Não temos a opção de despertar e dizer: “Chega, não
quero mais trabalhar. Estou cheio disso tudo!” A não ser que tenhamos uma
conta recheada no banco.
Quando permitimos que nosso relacionamento com Deus seja interrompido,
podemos não sentir muita diferença há curto prazo. No entanto, chega o dia
em que o coração clama por aquilo para o qual foi originalmente criado – ser
a morada do Espírito Santo. Então, a famosa frase de Agostinho vai se
cumprir: “Porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto,
enquanto não repousa em Vós.” 9
O esforço de ir a Jesus realmente vale a pena? Que privilégio maior pode
ser dado ao pecador do que ser recebido pelo Rei do Universo? Quanto mais
tempo dedicarmos a conhecê-Lo, mais confiança teremos em Sua graça e
misericórdia. Assim, poderemos responder positivamente ao apelo do autor
de Hebreus:
1
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 182.
2
Mateus 11:27, 28.
3
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 100.
4
2 Coríntios 12:9.
5
Colossenses 2:6.
6
Citado por James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo:
Mundo Cristão, 2006), p. 76.
7
João 15:16.
8
João 15:4.
9
Santo Agostinho, Confissões (São Paulo: Nova Cultural, 2004), p. 37.
10
Hebreus 10:35-39.
Para mim não é tão impressionante que Deus Se recuse a atender a
alguns de nossos pedidos. O impressionante é que sejamos ouvidos.
Philip Yancey 1
Muitos daqueles que me contam sobre sua crise espiritual acabam revelando
também como a oração extinguiu-se em sua vida. Não conseguem mais orar,
mesmo sabendo que deveriam fazê-lo. Sinto uma rápida empatia por essas
pessoas. Apesar do prazer que encontro na oração, sei que a vigilância tem de
ser constante. Mas o que dizer então quando minha espiritualidade anda mal
das pernas? Afinal, não é a oração que mantém o cristão nos trilhos da
vitória?
Como eu cresci num ambiente religioso, sempre acreditei naquilo que
outros cristãos falavam sobre oração. Salvo raras exceções, o discurso era
muito parecido: se o crente orar constantemente, será vitorioso em todos os
aspectos; se não orar, nunca terá nada além de uma fé inócua. Livros e
seminários me ensinavam que, se eu seguisse as regras corretas da vida
devocional, tudo funcionaria muito bem. Passado o tempo, essas afirmações,
tal qual comida enlatada vencida, causaram-me enjoo. Concordo com as
palavras de Philip Yancey:
Por um bom tempo, a oração significou para mim mais decepção do que
realização. Um dia, descobri onde eu estava errando. Toda vez que orava, eu
queria que as coisas funcionassem do meu jeito. No fundo, a oração não
passava de um mecanismo de pedidos e respostas. Quando os resultados não
eram como eu havia planejado, ficava desanimado.
Todo crente que lida com a oração como eu fazia acabará igualmente
decepcionado. Orar a Deus não é como ligar para o SAC (Serviço de
Atendimento ao Consumidor); nem como acionar uma máquina de lavar
roupas, onde aperto um botão de lavagem programada e depois de algum
tempo tudo sairá limpo e cheiroso. A oração tem de ir além.
Minhas dificuldades com a oração ainda não foram resolvidas de todo.
Mesmo assim, alguma coisa me faz sentir a necessidade de orar. Em alguns
momentos, olho para o céu estrelado (sentindo-me pequeno e impotente) e
sussurro algo como: “Senhor, estou aqui!” Noutro dia, ao acordar para uma
linda manhã de sol, oro: “Deus, que dia fantástico! Eu me entrego a Ti.” O
que me motivou a dizer coisas assim? Surge na mente uma única resposta: no
meu íntimo, desejo que Deus faça parte da minha vida.
Mas não seria Deus o maior interessado? Quero dizer, não estaria Deus
constantemente me lembrando de Sua presença e atuação em meu dia a dia?
Não é o trabalho incansável do Espírito Santo que me direciona a um
relacionamento com a Divindade? Creio que a resposta é afirmativa em todos
os casos. Chego à conclusão de que a oração, acima de tudo, revela minha
incompetência em levar as coisas do meu jeito. George MacDonald colocou a
questão da seguinte maneira:
conhecido, significa então que Ele vai estar próximo de nós. “Perto está o
Senhor de todos os que O invocam.” Na verdade, no cerne da oração está o
9
desejo de intimidade, tanto de nossa parte como da parte de Deus. Cada vez
que elevo meus pensamentos numa prece, posso ter a certeza de que Deus vai
estar a meu lado. E mais: naquele momento, estou me relacionando com Ele
num nível bastante substancial.
Era pela oração que Jesus mantinha contato com o Pai. A Bíblia nos diz que
em várias ocasiões Ele permaneceu orando e jejuando. Muitas de Suas
madrugadas foram reservadas para longas vigílias de oração, mesmo
extremamente cansado após um dia de atividades. Particularmente, visualizo
nesses relatos da vida de oração de Jesus uma certeza que me inspira, mas
que ao mesmo tempo me desafia. Jesus encontrava na oração a energia
espiritual que necessitava para cumprir Sua missão, algo que, segundo leio
nos evangelhos, parecia mais importante do que o alimento físico. Penso, às
vezes, que Jesus orava com a certeza de que, se não o fizesse, nunca
alcançaria o propósito de Sua vinda a este planeta. Bem, essa é a parte que
me inspira. O desafio está relacionado com a minha incapacidade de seguir
Seu exemplo. Para ser sincero, em algumas ocasiões (mas não em todas), não
encontro aquele prazer na oração como imagino que Jesus encontrava.
Quanto a natureza pecaminosa interfere na comunhão com Deus? Jesus
entende nossas limitações? Eis a resposta do apóstolo Paulo: “Não sabemos
orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós.” Outro fator a
10
A oração é um canal aberto por Deus para nossa comunicação com Ele. O
Senhor criou esse processo por amor a nós. Podemos ir à Sua presença, com
fé, em qualquer dia, a qualquer hora. Ele prometeu que vai nos ouvir, e de
alguma maneira vai Se comunicar conosco. A convicção do amor de Deus
por nós pode conduzir-nos à certeza de que, por uma forma sobrenatural e
maravilhosa, sou tratado por Ele com exclusividade. C. S. Lewis afirmou
categoricamente:
Deus tem uma atenção infinita para dispensar a cada um de nós. Não tem
de lidar conosco em conjunto. Você está tão a sós com Deus como se
fosse o único ser que Ele criou. Quando morreu, morreu por nós,
individualmente, como se cada um de nós fosse a única pessoa neste
mundo. 13
Ao longo dos últimos anos, constatei que, acima de tudo, a oração sempre
me traz paz. Exercito a fé no amor de Deus, e sou fortalecido pela certeza de
sua graça abundante. Orar me faz bem quando não me sinto muito bem. A
oração me tranquiliza, dando-me confiança. Já que o principal interessado em
que eu me mantenha longe da oração é Satanás, meu empenho no
relacionamento com Deus deve ser o principal esforço de minha vida cristã.
Mesmo quando parece mais fácil ou prazeroso gastar tempo com qualquer
outra coisa, a escolha de ir a Jesus deve ser feita com coragem e ânimo, pois
o resultado sempre será benéfico.
Por vezes, o cristão pede a Deus que sua fé seja aumentada. Sem perceber, a
própria atitude de orar – seja pedindo mais fé ou outra coisa – oferece uma
oportunidade diária de ver a fé crescer; afinal, todo aquele que se aproxima
de Deus deve crer que Ele existe “e que se torna galardoador dos que O
buscam”. 14
1 Philip Tim
Yancey e Stafford, Desventuras da Vida Cristã (São Paulo: Mundo Cristão, 2005), p.
136.
2
Philip Yancey, Oração: Ela Faz Alguma Diferença? (São Paulo: Vida, 2007), p. 198.
3
Mateus 6:5.
4
Mateus 6:7.
5
Yancey, Oração, p. 15.
6
Ibid., p. 141.
7
James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 114.
8
João 17:3.
9
Salmo 145:18.
10
Romanos 8:26.
11
Lucas 11:9.
12
1 Coríntios 13:12.
13
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 96.
14
Hebreus 11:6.
O bom é que Deus sempre está mais disposto a revelar do que nós
estamos interessados em conhecer.
Marcos De Benedicto 1
Algumas páginas atrás, afirmei que manter comunhão com Deus exige
empenho pessoal. O mesmo esforço precisa ser empregado quando nos
relacionamos com as pessoas. Afinal, a maneira como me relaciono com meu
próximo revela muito sobre meu relacionamento com Deus.
Isso me faz lembrar do dia em que conheci minha esposa. Ambos tínhamos
acabado de sair da faculdade e vínhamos de relacionamentos fracassados.
Apesar de nossa cautela inicial, um mês e meio depois de nos conhecermos,
iniciamos o namoro. No começo, tudo parecia emoção e felicidade. É incrível
como nessa fase nós fazemos de tudo para agradar. Mas, à medida que o
tempo foi passando, as virtudes de ambos, até ali tão patentes, já não
escondiam os defeitos, que se manifestavam sorrateiramente.
Enquanto esses defeitos vinham à tona, o amor de um para com o outro já
havia se solidificado, fazendo-nos pensar em casamento. Resolvemos então
marcar a data do noivado. A partir dali, o esforço requerido pelo
relacionamento se tornou mais nítido tanto para mim quanto para ela.
Como morávamos em cidades diferentes, os encontros aconteciam nos fins
de semana. A viagem de ônibus durava três horas. Depois de um tempo, essas
viagens começaram a me incomodar. Quando estava chegando perto do
casamento, entrar no ônibus virou um suplício. Mas, mesmo assim, eu fazia a
viagem. Por quê? Meu relacionamento com a Lauren revelou duas certezas
incontestáveis – primeiro, eu devia me esforçar para estar a seu lado;
segundo, eu me esforçava por amor.
Depois do casamento, o empenho realizado por ambos cresceu
sensivelmente. Hoje, as virtudes de cada um ainda estão lá, bem como os
defeitos. Em meio a cada crise relacional, deparamo-nos com aquela
encruzilhada enfrentada por todo casal: por um lado, o desejo de desistir; do
outro, a vontade de abraçar e perdoar. Com diligência e confiança em Deus, o
amor tem vencido até aqui.
Minha relação conjugal me mantém alerta para o devido esforço que devo
realizar para ser feliz. Na vida cristã, não é diferente. Mesmo com a natureza
espiritual que nos é concedida por Cristo, mediante a conversão, ainda
vivemos num mundo de pecado, em que tudo que é bom e amável custa o
preço da escolha. Obter uma espiritualidade sadia e vibrante exigirá uma boa
dose de esforço. A verdade é que, ao nos entregarmos a Cristo, Ele nos
coloca numa jornada de busca incessante, como bem explicou R. C. Sproul:
Jesus disse que devemos buscar. Buscar algo requer esforço. Envolve
uma busca diligente. É como a mulher que perdeu uma moeda e varreu
cada canto e fenda da casa para encontrá-la. A busca não é realizada
tirando uma soneca. Ela requer trabalho. Trabalho persistente. Não
podemos nos sentar e esperar que Deus a lance em nosso colo. 2
Isso vai contra o que muitos cristãos creem sobre a vida espiritual. Afinal,
as coisas não deveriam ser mais fáceis quando estamos com Jesus? Não
devemos confundir facilidade com inércia. Não podemos ficar esperando que
Deus resolva tudo para nós. Definitivamente, Ele não é um velhinho de barba
branca e roupa vermelha. Como afirmou Sproul, há um trabalho a realizar. E
não podemos esquecer um detalhe: Deus já fez o mais difícil, enviando Seu
Filho para morrer em nosso lugar. Portanto, se a vida parece difícil com
Deus, como seria sem Ele? O cristão em batalha espiritual encontrará
respostas e conforto na Palavra de Deus. As promessas divinas são
abundantes para aquele que tem se mantido ao lado de Cristo, a despeito dos
espinhos à beira do caminho. “Porque, quanto ao Senhor, Seus olhos passam
por toda a Terra, para mostrar-se forte para com aqueles cujo coração é
totalmente dEle”, afirma a Bíblia.
3
Quem de nós não se lembra de pelo menos uma situação em que Deus Se
mostrou “forte”, que realizou algo marcante em nossa vida? Não é por acaso
que o testemunho pessoal é tão indispensável para o cristão. Contar acerca
das bênçãos de Deus reforçará ainda mais o desejo de seguir adiante na
comunhão com Ele. Tal qual meu relacionamento com minha esposa, os bons
momentos de minha relação com Deus merecem ser mencionados, e são eles
que, de fato, fazem tudo valer a pena. Acredito sinceramente nas
contundentes palavras de Chesterton:
Sem dúvida, todas as questões existenciais que nos afetam ao longo da vida
envolvem a presença ou a ausência de Deus. O cristão sincero sabe de sua
necessidade da graça divina. Deseja aproximar-se do Senhor, mas nem
sempre encontra motivação para levar adiante o hábito de conhecê-Lo mais.
Eu digo hábito, pois o relacionamento com Deus, como já enfatizei, exige
disciplina. Não se trata de disciplina para fazer o que Deus já fez por nós,
mas sim para escolher ser dEle. Se a motivação para isso não se mostrar tão
forte, buscarei a presença divina mesmo assim, na certeza que o tempo
investido na comunhão com o Pai sempre resultará em ricas bênçãos.
Lembro-me de uma visita que fiz a um jovem membro de minha igreja, cuja
espiritualidade encontrava-se enfraquecida. Mesmo tendo certa intimidade
com ele, minha presença parecia incomodá-lo. Quando perguntei como
estavam as coisas, ele disse:
– Não vão muito bem, não. Não tenho ido à igreja.
– É, eu sei. Por isso, estou aqui. Para orar por você – afirmei.
– Eu preciso mesmo de oração – ele disse, olhando para o chão. – Estou
desanimado, sem vontade nem de orar.
Durante os minutos seguintes, ele falou sobre como seu relacionamento
com Deus esfriara, a ponto de pensar que a sua fé não passava de uma grande
bobagem. Antes de orar com ele, pedi que fizesse a experiência de, mesmo
sem vontade, ler pelo menos um verso da Bíblia nos próximos dias, fazer
uma oração simples, e ir à igreja nos próximos cultos. Passado um mês,
encontrei-o na igreja, e ele me disse depois que minha “estratégia” tinha dado
certo. Ele estava animado novamente.
Fiquei feliz por aquele jovem. Todavia, nem todos os crentes em crise
espiritual que aconselho apresentam o mesmo resultado. Há crises que duram
anos. Por experiência própria, sei que os altos e baixos são uma realidade
inegável quando travamos um relacionamento com Deus. Por outro lado, sei
também que, no fim das contas, estamos em meio a um processo chamado
santificação. Para esses, Andrew Murray, um ministro sul-africano falecido
em 1917, escreveu:
1
Marcos De Benedicto, O Brilho da Vida (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 21.
2
R. C. Sproul, Como Viver e Agradar a Deus (São Paulo: Cultura Cristã 1998), p. 25.
3
2 Crônicas 16:9.
4
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 261.
5
James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 227.
6
1 João 1:9.
7
Eclesiastes 3:11.
8
Filipenses 3:8, 9.
9
Marcos 4:26-28.
10
James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 194.
11
Ellen G. White, Caminho a Cristo (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1996), p. 70.
12
Atos 17:28.
A simplicidade da fé que subsiste em Cristo toma a promessa pura e
simples de Deus, a palavra nua, e nela descansa.
Richard Hooker 1
Foi logo após a minha conversão, aos 18 anos, que iniciei um estudo
particular sobre um tema que me parecia muito importante: a justificação pela
fé. Orbitando ainda na esfera do primeiro amor, peguei minha Bíblia e anotei
todos os textos que pude encontrar sobre o tema da salvação.
A cada verso que lia, eu montava uma espécie de quebra-cabeça teológico.
As peças tinham a ver com a natureza criadora e santa de Deus; a natureza
pecaminosa da humanidade pós-Adão; o sacrifício de Cristo na cruz em
nosso lugar; a confissão e entrega do pecador; a justiça imputada; a graça
antes das obras e o início da santificação. À medida que me aprofundava no
estudo, pude perceber que vivenciava exatamente o que a Bíblia procurava
ensinar. Foram momentos de enlevo espiritual. Então, depois de um tempo,
enfrentei minha primeira crise espiritual. Não tinha tanto que ver com a
Teologia, mas sim com o que eu estava experimentando em minha recém-
adquirida espiritualidade. Mesmo depois da conversão, eu cria que a vitória
na vida cristã seria uma realidade diária. Mas não aconteceu. Não como eu
esperava.
Novamente, abri a Bíblia à procura de respostas. Desta vez, decidi ouvir
também o que autores cristãos tinham a dizer sobre o assunto. Tudo isso
durou uns dois ou três anos. Quando já estava na faculdade de Teologia
(ainda tentando entender o assunto), deparei-me com o capítulo 15 do
Evangelho de João. Ali, Jesus faz uso de uma parábola para tocar o coração
de seus discípulos:
Já havia passado por essa passagem antes, mas nunca algo em especial tinha
me chamado a atenção. Daquela vez, uma palavra saltou do texto:
permanência.
Curiosamente, nessa época, eu estava trabalhando durante meio período em
uma plantação de uvas pertencente à faculdade. O funcionário responsável
nos entregava uma espécie de tesoura para podarmos os ramos que estavam
crescendo irregularmente. Na verdade, os ramos cortados eram aqueles que
não estavam produzindo fruto.
Depois da poda dos ramos irregulares, eu olhava para os ramos saudáveis,
muitos deles com os devidos frutos em desenvolvimento, e pensava nas
palavras de Jesus. Se nós somos como ramos na Videira verdadeira que é
Cristo, temos apenas que crescer e produzir os frutos. Era exatamente aí que
minha dúvida estacionava. Se eu tinha me submetido a Jesus, por que muitas
vezes não crescia e produzia frutos como o esperado? Foi a palavra
“permanência” que acabou por me mostrar que existia algo mais. Eu
realmente permanecia nEle?
Pude perceber que permanecer na Videira não significava permanecer na
igreja, frequentando-a regularmente, muito menos permanecer em outros
ramos, dependendo da companhia e das orações de outros crentes mais
maduros que eu. Permanecer na Videira não tem que ver com o desejo de ser
melhor. Não se trata de uma mera profissão de fé religiosa. A real
permanência acontece quando existe um relacionamento pessoal.
Então investi mais tempo em meu relacionamento com Cristo. A vida
espiritual tornou-se mais vigorosa. Mas ainda tinha algo errado. Não me
sentia vitorioso. Li novamente a parábola da videira. Então encontrei a peça
que faltava no quebra-cabeça. Apenas uma pequena frase elucidou tudo:
“Sem Mim”, disse Jesus, “nada podeis fazer”.
Naquele dia, eu compreendi que não bastava me relacionar com Deus. Há
inúmeras pessoas que se relacionam umas com as outras e não raro se
separam. Eu necessitava de um relacionamento baseado na dependência. O
que quero dizer com isso? Era mais ou menos assim: eu queria viver com
Deus e me entregar a Ele. Queria que Ele realizasse uma obra em minha vida.
Então ansiava por contemplar os frutos de meu relacionamento com Ele.
Quando os frutos aparecessem, eu queria mostrar os frutos para todo mundo e
dizer: “Não são bonitos?” Em outras palavras, eu desejava que a obra de
Deus em minha vida fosse vista por todos como resultado do meu empenho
ao Seu lado. Estava tentando produzir fruto à parte da Videira. Eu não
percebia o quanto minha dependência era apenas de mim mesmo.
Obviamente, nunca deu certo. Na vida cristã, ou dependemos totalmente de
Jesus ou não. Eu não tenho que me sentir realizado porque meu esforço em
fazer as coisas certas foi recompensado. A realização baseia-se em aceitar
que Cristo faz aquilo que nunca conseguirei por minha conta, ou seja, ter uma
vida santificada.
Hoje, não tenho dúvida de que, enquanto eu me entregar a Cristo,
procurando um relacionamento de dependência com Ele, estarei crescendo
como ramo saudável e produzindo fruto. Provavelmente, nem sempre notarei
esse crescimento, pois os pecados me trazem de volta à realidade da minha
incapacidade. Mas, enquanto o coração se entregar a Ele, a obra divina não
cessará.
Meu estudo sobre a justificação pela fé já perdura por anos, e acho que
ainda não terminou. O que me faz ser grato a Deus todo dia é o fato de a
doutrina da salvação não ser apenas conceitual, mas vivencial. O que a Bíblia
ensina na teoria tem-se cumprido na prática na vida de muitos cristãos ao
longo do tempo. A salvação em Cristo é dinâmica, e, enquanto a vida
permitir, a experiência do cristão atingirá novos horizontes. “Aquele que
aguarda o melhor, envelhece na decepção, e o que espera sempre o pior, mais
depressa se gasta, porém aquele que crê mantém eterna mocidade”, afirmou
3
Sorën Kierkegaard.
Isso não significa que não exista o perigo de tudo o que Deus realizou em
nossa vida se desfazer em fumaça. Os perigos estão por aí, e os inimigos não
são poucos. A nova natureza em Cristo não extinguiu a velha. A natureza
pecaminosa pode ser subjugada, mas sempre estará disposta a retornar
quando uma oportunidade lhe for apresentada. R. C. Sproul comentou o
seguinte sobre isso:
vista, pode parecer que João está falando da vida sem nenhum pecado, desde
que se permaneça em Jesus. Mas a questão, em minha opinião, envolve
aquele que peca deliberadamente. Quem permanece nEle não vive na prática
constante do pecado, apesar de cair vez ou outra.
Pedro nos oferece um bom exemplo do que representa pecar mesmo
estando com Cristo. Ele, como os demais discípulos, participou do milagre de
alimentar mais de cinco mil pessoas. De noite, já dentro do barco e indo em
direção ao outro lado do lago, ele comemorou sua união com o Mestre.
Subitamente, irrompeu a tempestade, tão forte que ele e os outros não
conseguiram manter a embarcação a salvo. Jesus, depois de uma vigília de
oração em terra, apareceu andando sobre a água. Pedro, atônito, fez um
pedido: “Senhor, manda-me ir ter contigo, por sobre as águas. E Ele disse:
Vem!” 6
fosse para nós hoje tão marcante quanto o foi para os discípulos naquela
época. É o trabalho incansável do Espírito Santo que apazigua a alma em
momentos de forte pressão, dando-nos energia espiritual para prosseguir.
Sem a Sua incrível atuação, sucumbiríamos antes mesmo de começar.
A essa altura, você já notou que eu não acredito em um “segredo mágico”
para o sucesso espiritual. Não basta saber que temos de permanecer em
Cristo. Se algo pode fazer alguma diferença, motivando-nos a não desistir, é a
certeza do amor de Deus. A convicção de que somos amados e aceitos, a
despeito de nossos erros, faz-nos fortes para superar as limitações. Não
podemos esquecer que, antes de falar da permanência na Videira, Jesus fez
um convite de amor. Não um convite para os sãos, mas para os doentes. Ele
anseia receber o errante e oferecer Sua graça abundantemente. De fato, o
amor de Cristo nos constrange.
“Confiar que o amor de Deus tem a resposta para o pecado não é uma
espécie de passaporte para a permissividade?”, perguntou-me alguém certa
vez. Sinceramente, não creio nisso. E me amparo na seguinte declaração de
Jesus: “Se guardardes os Meus mandamentos, permanecereis no meu amor.” 8
Deus não pede nada ao pecador que não seja em resposta ao Seu amor. Ou
seja, somente um relacionamento baseado inteiramente no amor levará à
fidelidade.
A certeza do amor de Deus tem posto um fim em minha irritante mania de
querer exercitar os músculos da minha fé diante dos outros. Não tenho mais a
ilusão de achar que o pecado desaparecerá só porque faço isso ou aquilo.
Procuro hoje concentrar minha atenção em conhecer mais profundamente o
caráter amável de Deus. Quanto mais O contemplo, mais patente se torna
minha pecaminosidade. Então corro imediatamente em busca da Sua infinita
graça. Enquanto esse ciclo se repetir, o propósito de Deus se concretizará em
mim.
“Deus é a minha fortaleza e a minha força e Ele perfeitamente desembaraça
o meu caminho”, afirmou Davi. Sentir-se vitorioso na vida espiritual é ter
9
plena convicção de que Jesus vai à nossa frente, abrindo caminho para que os
tropeços sejam cada vez mais raros. Enquanto o olhar estiver voltado para
Ele, buscando não perdê-Lo de vista, alcançaremos novas e ilimitadas
experiências espirituais.
1
James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 155.
2
João 15:1-11.
3
Sorën Kierkegaard, Temor e Tremor (Rio de Janeiro: Ediouro, s/d), p. 38.
4
R. C. Sproul, Como Viver e Agradar a Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 1998), p. 142.
5
1 João 3:6.
6
Mateus 14:28, 29.
7
1 João 3:24.
8
João 15:10.
9
2 Samuel 22:33.
A santidade não consiste apenas em fazer a vontade de Deus. Ela está
em querer a vontade de Deus.
Thomas Merton 1
É interessante notar que a bênção maior que Deus nos deixou – a Sua
infinita graça – não seria uma realidade para nós se não fôssemos pecadores.
Quem poderia pensar que aquilo que mais nos afasta de Deus (o pecado)
acabou por causar a maior demonstração de amor do Universo? O sacrifício
de Jesus no Calvário revelou até onde Deus foi capaz de ir para nos redimir.
“Como antes, o cristianismo entrou em cena”, escreveu Chesterton. “Entrou
de maneira alarmante com uma espada e separou uma coisa da outra. Separou
crime do criminoso.” O fato de ter Deus feito o que fez em prol de cada um
2
de nós, parece grande demais para ser verdade. Lembro-me de que minha
dentista me contou sobre o desejo de ver o esposo aceitando Jesus e sendo
batizado.
– Ele crê que Deus existe e que a Bíblia é a Palavra de Deus? – perguntei.
– Sim, ele não tem dúvidas quanto a isso – ela afirmou.
– Então, o que ele alega para adiar sua decisão?
– Ele diz que não entende toda aquela história de Cristo ter morrido na cruz.
Como alguém se dispõe a morrer em lugar do outro sem pedir nada em troca?
Com certeza Deus vai cobrar pelo que fez. Meu marido não sabe se está
preparado para o que Deus vai pedir em troca de tão grande favor.
Infelizmente, ideias como essa não são incomuns. Por que é tão difícil
aceitar a graça divina? Por que achamos que precisamos fazer algum tipo de
“favor” a Deus pelo que recebemos dEle? Por que parece mais fácil crer que
o pecado será purgado só depois que experimentamos algum tipo de esforço
pessoal para pagar pelo erro que cometemos?
A graça de Deus não cobra preço do pecador (ao contrário do pecado) e, por
isso, ela é maravilhosamente perfeita para nós. Todavia, existe uma verdade
bíblica acerca da graça divina que nenhum cristão deveria esquecer: a graça
por si só não é suficiente para levar alguém à salvação. Na verdade, a graça
divina é o maior dom que alguém poderia receber, mas não tem efeito algum
sem a operação da fé. “Pela graça sois salvos, mediante a fé”, afirmou Paulo
3
aos Efésios. É a fé que me faz aceitar que meu pecado foi perdoado, depois
que busquei a Jesus em arrependimento. Afinal, a graça divina não fará efeito
algum sem que a pessoa a aceite. E ninguém aceitará a graça sem ter fé
nAquele que a oferece.
Tenho pensado muito sobre a graça de Deus. Cheguei à conclusão de que
não é fácil lidar com ela. Obviamente, o problema não está na graça, mas,
sim, em mim. É muito fácil ir para uma das extremidades. De um lado, posso
querer sacrificar a mim mesmo, cumprir algum favor em troca da aceitação e
perdão de Deus. Do outro, posso afundar no pecado, cometendo os mesmos
erros sem preocupação, crendo que, no fim, Deus dará um jeito de me salvar.
Em ambos os casos, e graça é miseravelmente deixada de lado.
A graça de Deus deve levar o cristão a duas realidades: primeira, não temos
pelas próprias forças como atingir o ideal de Deus, pois necessitamos de Sua
ajuda constante; segunda, devo batalhar com todas as forças para estar unido
a Ele. Uma situação paradoxal? Somente à primeira vista. O que estou
tentando afirmar é que a minha salvação depende totalmente de Deus me
aceitar como sou. Mas a salvação não acontecerá se eu não aceitá-la.
Portanto, a salvação acontece da união da graça de Deus com o exercício da
fé do pecador. Uma via de mão dupla. Lembrando que tanto a graça como a
fé são dons de Deus. Quando penso nisso tudo, vem-me à mente a seguinte
pergunta: Que mais Deus poderia fazer para nos salvar?
Em seu famoso livro Discipulado, Dietrich Bonhoefer apresenta sua visão
sobre o que a graça deve representar para o cristão. “A graça preciosa é o
evangelho que se deve procurar sempre de novo”, ele afirmou, “o dom pelo
qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater.” O empenho de
4
procurar, orar ou bater à porta é nada mais do que o exercício da fé. Quanto
mais se busca a Jesus com fé, mais a graça manifestará sua beleza ao pecador.
Bonhoefer enfatizou aquilo que ele cria ser o resultado de aceitar a graça pela
fé:
Felizes aqueles que, no singelo discipulado de Jesus, encontram-se
possuídos por essa graça, podendo, humildes em espírito, louvar a graça
de Cristo que tudo opera! Felizes aqueles que, no conhecimento desta
graça, podem viver no mundo sem para ele se perderem, e para os quais,
no discipulado de Cristo, a pátria celestial é uma certeza tal que estão
verdadeiramente livres para a vida neste mundo! Felizes aqueles para os
quais o discipulado de Jesus Cristo nada mais é senão o discipulado!
Felizes aqueles que, neste sentido, se tornaram cristãos para os quais a
mensagem da graça foi misericórdia. 5
cansados de correr “a carreira que nos está proposta”; mas, por outro lado,
com a imensa ajuda que Cristo nos oferece, deixar de avançar seria uma
escolha temerária e imprudente. Como escreveu John Donne:
1
Thomas Merton, Homem Algum É uma Ilha (Campinas: Verus, 2003) p. 61.
2
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 159.
3
Efésios 2:8.
4
Dietrich Bonhoeffer, Discipulado (São Leopoldo: Sinodal, 2004), p. 10.
5
Ibid., p. 19.
6
Ibid., p. 10.
7
João 6:37.
8
Morris Venden, 95 Teses Sobre Justificação Pela Fé (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1992),
p. 18.
9
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 122.
10
John Donne, Sonetos de Meditação (Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985), p. 35.
11
Salmo 23:2.
A escolha que se nos apresenta hoje é simplesmente a mesma de
sempre: saber se devemos ser deste ou de outro mundo; se devemos
viver num egoísmo sem amor ou viver para amar a Deus.
Joy Davidman 1
Num passado recente, cada vez que eu lia sobre a galeria bíblica de heróis
de fé, no capítulo 11 da carta aos Hebreus, eu tinha a sensação de estar diante
de pessoas que tiveram uma experiência espiritual que eu nunca poderia
atingir. Afinal, tratava-se de indivíduos que, por meio da fé, “subjugaram
reinos, praticaram a justiça, obtiveram promessas, fecharam a boca dos leões,
extinguiram a violência do fogo”, entre outras coisas. Hoje, sinceramente,
não penso mais assim. Creio que eles eram pecadores como nós, pois
enfrentavam crises espirituais como qualquer cristão. Contudo, um detalhe
sobressaía na vida deles, o qual foi percebido pelo autor de Hebreus: eles
aspiravam a “uma pátria superior, isto é, celestial”. Não permitiram que sua
visão da promessa de um mundo melhor fosse obliterada em momento
algum.
O cristão em amadurecimento sabe que Deus nunca começa alguma coisa e
a deixa por terminar. O apóstolo Paulo afirmou que “Aquele que começou
boa obra em vós há de completá-la até o Dia de Cristo Jesus”. Às vezes,
6
Um dia desses, eu estava lendo uma porção da Bíblia para minha filha mais
velha, exatamente onde fala do início do pecado.
– Por que Adão e Eva foram expulsos do jardim, papai?
– O mal nos separa das coisas mais importantes da vida, filha – eu disse,
filosofando em hora inadequada.
– Eles nunca voltaram para casa?
– Não!
– Quando eles vão voltar? – ela perguntou com um olhar de expectativa.
– Em breve... em breve – foi o que pude dizer.
O mundo é o espaço onde nossa peregrinação acontece. Como em toda
jornada, existem momentos de alegria e outros de tristeza. Por vezes, o sol
ilumina o caminho; em outras ocasiões, a escuridão baixa, provocando temor.
De qualquer maneira, não devemos abandonar a caminhada. Assim como os
dias avançam inexoravelmente, a vida segue adiante. Chegar ao verdadeiro e
glorioso lar deve ser o que nos mantém avançando.
Suspeito que, quando atravessarmos os portões do lar eterno, ele se revelará
mais colorido e maravilhoso do que imaginávamos.
1
James Stuart Bell e Anthony Palmer Dawson, A Biblioteca de C. S. Lewis (São Paulo: Mundo
Cristão, 2006), p. 21.
2
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 225.
3
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 90.
4
1 Pedro 4:12, 13; 2 Pedro 3:9.
5
C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: ABU, 1997), p. 76.
6
Filipenses 1:6.
7
G. K. Chesterton, Ortodoxia (São Paulo: Mundo Cristão, 2008), p. 133.