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impressão de uma águia, mas o turista do Espaço, para se fazer entendido
pelos companheiros da carne, teria de recorrer às figuras mais atrevidas do
mundo mitológico.
É por isso que apelarei aqui para o véu de Ísis ou para o dorso de Pégaso28,
cuja patada fez brotar a fonte de Hipocrene, no Hélicon das divindades.
Depois de alguns segundos, chegávamos ao termo de nossa viagem
vertiginosa.
Dentro da atmosfera marciana, experimentamos uma extraordinária
sensação de leveza... Ao longe, divisei cidades fantásticas pela sua beleza
inédita, cujos edifícios, de algum modo, me recordavam a Torre Eiffel ou os
mais ousados arranha-céus de Nova Iorque. Máquinas possantes, como se
fossem movidas por novos elementos semelhantes ao hélio, balouçavam-se,
ao pé das nuvens, apresentando um vasto sentido de estabilidade e de
harmonia entre as forças aéreas.
Aos meus olhos, desenhavam-se panoramas que o meu Espírito imaginara
apenas para os mundos ideais da Mitologia grega, com os seus paraísos
cariciosos.
Aturdido, interpelei o chefe da nossa caravana, que se conservava silencioso:
— Se a Terra julga a influência de Marte como profundamente belicosa,
como poderemos conciliar a definição dos astrólogos com os espetáculos que
estamos presenciando?
— E porventura — respondeu-me o excelente mentor espiritual — chegaste
a conhecer no planeta terrestre um homem ou uma ideia que retirasse a
humanidade de sua rotina, sem sofrimento e sem guerra? Para o nosso
mundo, Marte é um irmão mais velho e mais experimentado na vida. Sua
atuação no campo magnético de nossas energias cósmicas visam a auxiliar
os homens terrenos para que possam despir os seus envoltórios de
separatividade e de egoísmo.
Entretanto, nesse instante, havíamos chegado a um belo cômoro atapetado
de verdura florida.
Ante os meus olhos atônitos, rasgavam-se avenidas extensas e amplas, onde
as construções eram fundamente análogas às da Terra.
Tive então ensejo de contemplar os habitantes do nosso vizinho, cuja
organização física difere um tanto do arcabouço típico com que realizamos
as nossas experiências terrestres. Notei, igualmente, que os homens de Marte
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não apresentam as expressões psicológicas de inquietação em que se
mergulham os nossos irmãos das grandes metrópoles terrenas. Uma aura de
profunda tranquilidade os envolve.
É que, esclareceu o mentor que nos acompanhava, os marcianos já
solucionaram os problemas do meio e já passaram pelas experimentações da
vida animal, em suas fases mais grosseiras. Não conhecem os fenômenos da
guerra e qualquer flagelo social seria, entre eles, um acontecimento
inacreditável. Evolveram sem as expiações coletivas, amarguradas e
terríveis, com que são atormentados os povos insubmissos da Terra. As
pátrias, ali, não recebem o tributo do sangue ou da morte de seus filhos, mas
são departamentos econômicos e órgãos educativos, administrados por
instituições justas e sábias.
Era tempo, contudo, de observarmos a cidade com as suas disposições
interessantes.
O leitor não poderá dispensar o nome dessa cidade prodigiosa, e à falta de
termos comparativos, chamemos-lhe Marciópolis.
Orientados pelo amigo que nos dirigia a singular excursão, atingimos extensa
praça, onde se erguia um templo maravilhoso pela sua imponência, tocada
de majestosa simplicidade, e onde, ao que fomos informados, se haviam
reunido todos os credos religiosos.
De uma de suas eminências, vimos o nosso Sol, bastante diferenciado,
entornando na paisagem as tintas do crepúsculo.
A vegetação de Marte, educada em parques gigantescos, sofria grandes
modificações, em comparação com a da Terra. É de um colorido mais
interessante e mais belo, apresentando uma expressão de tonalidade
avermelhada em suas características gerais.
Na atmosfera, ao longe, vagavam nuvens imensas, levemente azuladas, que
nos reclamaram a atenção, explicando-nos o mentor da caravana fraterna que
se tratava de espessas aglomerações de vapor de água, criadas por máquinas
poderosas da ciência marciana, a fim de que sejam supridas as deficiências
do líquido nas regiões mais pobres e mais afastadas do largo sistema de
canais, que ali coloca os grandes oceanos polares em contínua comunicação,
uns com os outros.
Tais providências, explica o Espírito superior e benevolente, destinam-se a
proteger a vida dos reinos mais fracos da natureza planetária, porque, em
Marte, o problema da alimentação essencial, por meio das forças
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atmosféricas, já foi resolvido, sendo dispensável aos seus habitantes felizes
a ingestão das vísceras cadavéricas dos seus irmãos inferiores, como
acontece na Terra, superlotada de frigoríficos e de matadouros.
Todavia, ao apagar das luzes diurnas, o grande templo de Marciópolis
enchia-se de povo. Observei que a nossa presença espiritual não era
percebida, daí podermos examinar a multidão, à vontade, em seus mínimos
movimentos.
Todos os grandes centros deste planeta, esclareceu o nosso amigo e mentor
espiritual, sentem-se incomodados pelas influências nocivas da Terra, o
único orbe de aura infeliz, nas suas vizinhanças mais próximas, e, desde
muitos anos, enviam mensagens ao globo terráqueo, por intermédio das
ondas luminosas, as quais se confundem com os raios cósmicos, cuja
presença, no mundo, é registrada pela generalidade dos aparelhos
radiofônicos.
Ainda há pouco tempo, o Instituto de Tecnologia da Califórnia inaugurou
um vasto período de experimentações, para averiguar a procedência dessas
mensagens misteriosas para o homem da Terra, anotadas com mais violência
pelos balões estratosféricos, conforme as demonstrações obtidas pelo Dr.
Robert Millikan, nas suas experiências científicas.
A palestra esclarecedora seguia o seu curso interessante, mas os movimentos
na praça acentuavam-se sobremaneira.
No horizonte, surgia uma grande estrela de luz avermelhada, enquanto os
dois satélites marciáticos resplandeciam.
Todos os olhares fitavam o céu ansiosamente.
Aquela estrela era a Terra.
Uma comissão de cientistas iniciou, da tribuna maior do santuário, uma vasta
série de estudos sobre o nosso mundo distante. Aparelhos luminosos foram
afixados na praça pública, ao passo que presenciávamos a exibição de mapas
quase irrepreensíveis dos nossos continentes e dos nossos mares. Teorias
notáveis com respeito à situação espiritual do planeta terrestre foram
expendidas, entendendo-se perfeitamente as ideias dos estudiosos que as
expunham, por meio da linguagem universal do pensamento.
A Terra enviava-nos a sua claridade, em reflexos trêmulos e tristes.
Observamos, então, que os marcianos haviam colocado em seu templo
poderosos telescópios.
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Enquanto os melhores aparelhos da América possuem um diâmetro de
duzentas polegadas, com a possibilidade de aumentar a imagem de Marte
doze mil vezes, a astronomia marciana pode contemplar e estudar a Terra,
aumentando-lhe a imagem mais de cem mil vezes, chegando ao extremo de
examinar as vibrações de ordem psíquica, na sua atmosfera.
A nossa grande surpresa não parou aí, entre os mais avançados aspectos de
evolução e de cultura.
Enquanto a luz avermelhada da Terra tocava a nossa visão espiritual, víamos
que todas as multidões do templo se haviam aquietado, de leve... A Ciência
unida à fé apresentava um dos espetáculos mais belos para o nosso espírito.
Vimos, então, que ao influxo poderoso daquelas mentes irmanadas no
mesmo nível evolutivo, pela sabedoria e pelo sentimento, formara-se sobre
o santuário uma estrada luminosa, em cujos reflexos descera do Alto um
mensageiro celeste.
Recebido com as intensas vibrações de júbilo divino e silencioso, a figura,
quase angélica, começou a falar, depois de uma prece comovedora:
— Irmãos, ainda é inútil toda tentativa de comunicação com a Terra rebelde
e incompreensível! Debalde os astrônomos terrenos vos procuram ansiosos
nos abismos do Infinito!... Seus telescópios estão frios, suas máquinas,
geladas. Faltam-lhes os ardores divinos da intuição sublime e pura, com as
vibrações da fé que os levariam da ciência transitória à sabedoria imortal.
Fatigados na impenitência que lhes caracteriza as atividades inquietas e
angustiosas, os homens terrestres precisam de iluminação pelo amor, a fim
de que se afastem do círculo vicioso da destruição, na tecnocracia da guerra.
Lá, os irmãos se devoram uns aos outros, com indiferença monstruosa! Os
povos não se afirmam pelo trabalho ou pela cultura, mas pelas mais
poderosas máquinas de morticínio e de arrasamento. Todos os progressos
científicos são patrimônio do egoísmo utilitário ou elementos sinistros da
ruína e da morte!... Enquanto as árvores de Deus frondejam no caminho da
vida e do tempo, cheias de frutos cariciosos, as criaturas terrenas
consideram-se famintas de violência e de sangue. A ciência de seres como
esses não poderia entender as vibrações mais elevadas do espírito! Os vícios
de uma falsa cultura casam-se aos vícios das religiões convencionalistas, que
estacionam em exterioridades nocivas ou se detêm nos fenômenos, sem
cogitar das causas profundas, esquecendo-se o homem do templo divino do
seu coração, no qual as bênçãos de Deus desejam florir e semear a vida
eterna!... Tão singulares desequilíbrios provocaram na personalidade
terrestre um sentido bestial que lhe corrompe os mais preciosos centros de
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força e, somente agora, cogitam as instituições divinas da transição
necessária, a fim de que a vida na Terra se efetive, com o sentido da
verdadeira humanidade, ali conhecido tão somente na exposição teórica de
alguns Espíritos isolados!... Irmãos, contemplemos a Terra e peçamos ao
Senhor do universo que as modificações, precisas ao seu aperfeiçoamento,
sejam menos dolorosas ao coração de suas coletividades! Oremos pelos
nossos companheiros, iludidos nas expressões animais de uma vida inferior,
de modo que a luz se faça em seus corações e em suas consciências,
possibilitando as vibrações recíprocas de simpatia e comunicação, entre os
dois mundos!...
A multidão ouvia-lhe a palavra, atenta e comovida, e nós lhe escutávamos a
exortação profunda, como se fôramos convocados, de longe, pela harmonia
mágica da lira de Orfeu29, quando o nosso mentor espiritual nos acorda do
êxtase, a nos bater levemente nos ombros, chamando-nos ao regresso.
Em todos os lugares, há os que mandam e vivem os que obedecem. Na
categoria dos últimos, voltamos às esferas espirituais da Terra, como o
homem ignorante que fizesse um voo, sem escalas, pelo mundo, confundido
e deslumbrado, embora não lhe seja possível definir o mais leve traço de seu
espantoso caminho.
(Recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em 25 de julho de 1939.)
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N.E.: Protagonista de As viagens de Gulliver, romance satírico e fantástico de Jonathan
Swift (1726).
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N.E.: Um dos quatro rios do inferno, por onde as almas passavam sem esperança de
regressar, e de curso tão impetuoso que arrastava, qual se fossem grãos de areia, grandes
blocos de rochedos.
27
N.E.: Filho de Oileu, rei dos lócrios (Grécia). Era um príncipe intrépido, mas brutal e
cruel. Equipou 40 navios para a guerra de Troia. Tomada esta, ele ultrajou uma profetisa
de classe, que se refugiara no templo, motivo por que os deuses fizeram submergir sua
esquadra. Salvo do naufrágio, agarrou-se a um rochedo dizendo, com arrogância:
“Escapei, apesar da cólera dos deuses!”. Irritados com seu desmesurado orgulho, os
deuses o aniquilaram, ali mesmo.
28
N.E.: Cavalo alado. Nele iam os poetas em visita ao Monte da Inspiração. Ainda hoje,
em tropo literário se diz que, em busca de inspiração, os poetas cavalgam o Pégaso. Nesse
monte, chamado Hélicon, Pégaso, com uma patada, fez surgir a fonte da água inspiradora,
denominada Hipocrene, isto é — fonte do cavalo.
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N.E.: Filho de Apolo e da musa Calíope, recebeu de seu pai, como presente, uma lira e
aprendeu a tocar com tal perfeição que nada podia resistir ao encanto de sua música.