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A Lei n. 11.

382/2006 e o efeito
suspensivo dos embargos à execução
fiscal: aplicam-se ou não – e, caso
positivo, em que medida –
as novas disposições do CPC
à execução fiscal?

Victor Barbosa Dutra

Servidor do Ministério Público da União (MPU), lotado no


Ministério Público Federal (MPF). Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Resumo: Objetivou-se, com o presente trabalho, examinar a via-


bilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil à
Lei de Execuções Fiscais, especificamente no que toca à questão
do efeito com o qual devem ser recebidos os embargos à execução
(se suspensivos ou não). Tal reflexão mostrou-se necessária porque
se percebeu que a Fazenda tem defendido e a jurisprudência tem
caminhado no sentido de aplicar irrestritamente as normas gerais
ao subsistema especializado da execução fiscal, sem levar em con-
sideração as peculiaridades deste, o que pode conduzir a resultados
incompatíveis com a nova ordem constitucional.

Palavras-Chave: Lei n. 11.382/2006. Reformas processuais.


Celeridade. Efetividade. Garantias. Execução fiscal. Embargos à
execução. Efeito suspensivo.

Abstract: The aim of the present work is to examine the viability


of subsidiary application of the Civil Procedure Code to the Tax
Enforcement Law, specifically regarding the effect which must be
granted to the “stays of execution” (whether suspensory or not).
This reflection seems to be necessary because it was perceived that
the Treasury has argued, and the judges are moving toward the

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unrestricted application of general rules to specialized subsystem
of Tax Enforcement, without considering its peculiarities, which
can lead to incompatible results with the new constitutional order.

Keywords: Law n. 11.382/2006. Procedural reforms. Quickly.


Effectiveness. Warranties. Tax enforcement. Stays of execution.
Suspensive effect.

Sumário: 1 Introdução. 2 Das reformas no Direito Processual


Civil. 2.1 Celeridade e efetividade: um olhar crítico. 2.2 As refor-
mas processuais e a execução fiscal: qual a profundidade dessa rela-
ção? 2.3 Dos embargos à execução. 3 Os diferentes pontos de tensão.
3.1 A interação entre norma geral e especial: a necessidade de inter-
pretação sistemática. 3.2 A posição da Fazenda. 3.3 Peculiaridades a
serem levadas em conta na mitigação do critério da finalidade. 3.3.1
A posição da LEF no ordenamento jurídico. 3.3.2 A ausência do
devedor na formação do título executivo. 3.3.3 A diferença do papel
dos embargos com efeito suspensivo nas execuções comum e fiscal.
3.3.4 A manutenção da exigência de garantia do juízo e o perigo de
ressurreição da cláusula solve et repete. 3.3.5 O resgate da mens legis
de 1980 ante o ordenamento pós-1988 e os objetivos da reforma
processual. 4 Conclusão.

1 Introdução

Não é novidade que o Direito Processual Civil tem passado por


profundas reformas ao longo das últimas duas décadas, as quais têm
sido implantadas de maneira gradual, pontual – contudo, profunda
–, e sempre orientadas pelos princípios da celeridade e da efetividade.

Visam a promover, indubitavelmente, a razoável duração do


processo, concretizando, assim, “a mais clássica das fórmulas tradi-
cionais do conceito de Justiça, qual seja, a do suum cuique ou a cada
um o que é seu” (Furlan, 2008, p. 21).

Muito embora tenham recaído sobre questões e institutos


específicos do Direito Processual Civil, tais reformas espraiaram-se
para outros sub-ramos, como o Processo do Trabalho e o Processo

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Tributário, provocando significativas alterações nas relações jurídi-
cas por eles regidas.

No presente estudo, limitaremo-nos a analisar o impacto da


reforma implantada pela Lei n. 11.382/2006 – que modificou a
execução de títulos executivos extrajudiciais – sobre a execução
fiscal, mais especificamente no que tange à aplicação da nova regra
do efeito suspensivo nos embargos de devedor.

De um lado, tem sido defendida a aplicação subsidiária irres-


trita do Código de Processo Civil (CPC) ao procedimento regido
pela Lei de Execução Fiscal (LEF). De outro, no que toca à especí-
fica questão do efeito suspensivo dos embargos, tem sido combatida
a referida subsidiariedade.

A doutrina tem-se dividido e a jurisprudência, em grande parte,


vem-se convencendo com a fundamentação exposta pela Fazenda –
sobretudo pela Fazenda Nacional, veiculada por meio de parecer
oficial (Parecer PGNF/CRJ n. 1.732/2007). Em razão disso, a neces-
sidade de aprofundamento dessas discussões se revela premente.

2 Das reformas no Direito Processual Civil

2.1 Celeridade e efetividade: um olhar crítico

Nos anos de 2005 e 2006, algo considerado previsível e ine-


vitável para a maioria dos estudiosos do Direito Processual Civil
ocorreu: as ondas reformistas que inundaram o processo ao longo
das últimas décadas chegaram à execução.

Previsível por, ao menos, duas razões: inicialmente, porque “o


mote” da celeridade, da efetividade e da instrumentalidade já tinha
avançado sobre o processo de conhecimento, alterando-o signifi-
cativamente, e, de outro lado, porque esse anseio por mudanças
não era um fenômeno isolado, cuja existência estava circunscrita

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ao Direito pátrio. Pelo contrário, vinha sendo observado “em boa
parte dos Estados tidos como Democráticos de Direito, em que a
sociedade, cada vez mais complexa e plural, clama por maior rapi-
dez e efetividade na prestação jurisdicional” (Azevedo; Mitre,
2009, p. 35).

Inevitável porque, para muitos, o processo de execução sempre


se revelou “lento, com altos custos e ineficaz” (Mollica, 2008, p.
70); o capítulo “mais anacrônico de todo o sistema” (Mendes apud
Theodoro Júnior, 2008, p. 87), “o calcanhar de Aquiles do nosso
ordenamento, pois não se mostrava apto a satisfazer o crédito do
credor de forma célere e efetiva” (Mollica, 2008, p. 69).

Não é por outro motivo que as reformas se concentraram no


processo de execução, conforme leciona Humberto Theodoro
Júnior (2008, p. 79):

Como a efetividade dos direitos subjetivos quase sempre depende


mais de medidas práticas ou concretas do que de meras declara-
ções ou definições, as reformas legislativas concentraram-se, com
predominância, no processo de execução e nas vias de acesso aos
atos executivos [...] É nessa ordem de idéias que o direito processual
somente se moderniza, de fato, quando aprimora o acesso às vias
executivas.

Ocorre que tais reformas se deram de maneira pontual ou setorial


e nem sempre conseguiram resolver eficazmente o problema que se
propuseram a enfrentar. Além disso, não restou evidente uma preo-
cupação dos reformadores no sentido de traçar uma completa linha de
trabalho ou uma diretriz que orientasse as – pulverizadas – reformas.

Por essa razão, tais alterações têm promovido, ainda que invo-
luntariamente, uma descaracterização do Código de Processo
Civil, dificultando a sua interpretação sistemática, o que levou a
doutrina a tecer críticas contundentes sobre o fenômeno1.
1 Confira, a esse respeito, a opinião de Diogo Ciuffo Carneiro (2008, p. 62-63).

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De fato, a mais evidente – e talvez única – linha de trabalho que
se pode identificar no movimento reformista é o anseio por celeri-
dade e efetividade.

Não se ignora, ressalta-se, que tais bandeiras podem e devem


ser perseguidas. Contudo, não deveriam, em nossa perspectiva, ser
tidas como os únicos fundamentos a legitimar a atuação do Direito
Processual, haja vista que o processo que se pretende justo permite
um convívio salutar entre os princípios e as garantias constitucio-
nais referentes ao acesso à justiça e à efetiva prestação desta.

No mesmo sentido parece estar o magistério de Rosemiro Pereira


Leal (apud Azevedo; Mitre, 2009, p. 42) quando afirma que:

A pretexto da celeridade processual ou efetividade do processo, não


se pode, de modo obcecado, suprindo deficiências de um Estado
já anacrônico e jurisdicionalmente inviável, sacrificar o tempo
da ampla defesa que supõe a oportunidade de exaurimento das
articulações de direito e produção de prova [...] A ampla defesa,
em qualquer sistema jurídico do moderno Estado Democrático de
Direito, envolve a cláusula do devido processo legal em sentido
substancial (substantive due process), equivalente ao direito material
de garantias fundamentais do cidadão, como a do devido processo
em sentido processual (procedural due process), traduzindo a garantia
da plenitude da defesa e tempo e modo suficiente para sustentá-la.

Assim, cabe alertar que nem sempre que um novo procedi-


mento propuser a tornar a marcha processual mais célere ou efe-
tiva, estará – por essa única razão – apto a ser adotado indiscrimina-
damente. De fato, se fosse assim, o Direito Processual sequer seria
necessário, uma vez que o processo, ontologicamente considerado,
pressupõe tempo.

Não se ignora, contudo, o fato de que referido tempo pode


e deve ser reduzido ao máximo possível, desde que respeitados os
demais valores incorporados pelo Direito. Certamente, “duração

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razoável do processo não quer dizer celeridade a todo custo, mas,
como chamado no Direito espanhol, derecho a un proceso sin dilacio-
nes indebidas” (Carneiro, 2008, p. 44).

Um olhar mais crítico, por outro lado, não se confunde, em


nosso sentir, com preconceitos, haja vista que

se o contraditório é uma garantia inafastável do processo judicial


democrático – e isto ninguém contesta –, nem por isto se há de
anatematizar todo e qualquer esforço para reduzir a injusta demora
na duração do processo (Theodoro Júnior, 2008, p. 79).

2.2 As reformas processuais e a execução fiscal: qual a


profundidade dessa relação?

À luz dessas considerações, convém destacar que, para alguns,


“o efeito suspensivo tem sido apontado como um dos maiores res-
ponsáveis pela não-efetividade do processo civil, seja no campo
recursal ou na execução” (Mollica, 2008, p. 71).

Nas palavras de Yarshell (2001, p. 383-384), por exemplo:

[...] O que impede a maior rapidez no andamento dos processos e


na execução dos provimentos que a reclamam – entre outros fato-
res – é a circunstância de que tais “recursos” acabam suspendendo
a eficácia das decisões recorridas e, portanto, retardando a satisfa-
ção do direito já reconhecido. Vale dizer: o problema não está na
quantidade dos meios de impugnação colocados pela lei à disposi-
ção das partes (o que, como dito, pode até ser encarado de forma
salutar), mas a questão reside verdadeiramente na aptidão que esses
remédios tenham de sustar a eficácia do comando judicial e, dessa
forma, impedir a atuação do direito reconhecido na sentença ou em
decisão interlocutória.

Tal perspectiva parece ter sido compartilhada pelos ideali-


zadores da Lei n. 11.382/2006, que, ao modificar a redação do

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art. 736 e introduzir o art. 739-A no Código de Processo Civil,
mantiveram a possibilidade praticamente irrestrita de oposição de
embargos à execução sem, contudo, facultar-lhes o efeito suspen-
sivo automático (ex lege).

Percebe-se, desse modo, que a garantia do juízo (por penhora,


depósito ou caução), na execução civil, não é mais um requisito para a opo-
sição dos embargos, mas tão somente para a atribuição de efeito suspensivo.

Entretanto, não é mais ela – a garantia do juízo – o único requisito.

A nova redação do § 1º do art. 736 exige o preenchimento


simultâneo das seguintes condições: a) requerimento do embar-
gante, b) relevância do fundamento invocado, c) manifesta possi-
bilidade de grave dano de difícil ou incerta reparação e c) garantia
do juízo2 .

Em outras palavras, pode-se afirmar que,

de acordo com a atual disciplina do diploma processual, fica o efeito


suspensivo condicionado à demonstração dos requisitos genéricos
das tutelas de urgência – o fumus boni juris e o periculum in mora – e à
garantia do juízo (Parreira; Melo; Amaral, 2007, p. 9).

Conclui-se, pois, que, na execução civil, passamos de um sis-


tema que conferia eficácia suspensiva ope legis aos embargos para
um sistema cuja atribuição se dá ope judicis.
2 “Embora a concessão do efeito suspensivo possa ocorrer já no ato do recebimento
da impugnação, é rigorosamente fora de dúvida que pode também ser requerido
e deferido em momento posterior, diante da superveniente configuração dos
requisitos legais. Sendo assim, embora seja dado ao executado recorrer contra o
ato de indeferimento do efeito suspensivo, não se pode falar mais em preclusão.
É que o requerimento feito em momento posterior encontrará uma nova situa-
ção (novos elementos) e, portanto, a decisão anteriormente proferida só subsiste
para o momento em que foi editada. A marcha do processo por si só, já configura
situação nova a ensejar a renovação do pedido, sem que com isso, entenda-se estar o
executado a formular um mero pedido de reconsideração” (Yarshel; Bonício, 2006,
p. 56-57, apud Mollica, 2008, p. 74).

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Embora muito bem recebida no Direito Processual Civil, a
aplicação desta nova regra à execução fiscal tem sido bastante dis-
cutida, por revelar-se mais delicada, conforme veremos adiante.

Delimitado está, portanto, o problema central deste trabalho:


aplicam-se ou não as referidas disposições do CPC à execução fiscal,
no que tange ao novo regime do efeito suspensivo dos embargos?

A resposta para essa difícil pergunta transita por várias outras


questões. É preciso refletir, por exemplo, sobre o que é necessário
à aplicação subsidiária do CPC à LEF. Basta haver uma lacuna na
lei especial ou também é necessária compatibilidade entre ela e a
lei geral? A LEF é lacunosa acerca do tema do efeito que deve ser
atribuído aos embargos do executado? Os pressupostos (fáticos e
jurídicos) que levaram à construção da referida norma de Direito
Processual comum podem ser aplicados ao subsistema da execução
fiscal, sem prejuízos maiores aos direitos e às garantias previstos na
Constituição e à própria coerência do ordenamento jurídico?

Antes de adentramos, contudo, nos pontos de divergência,


analisemos as características e a importância dos embargos à exe-
cução, bem como suas distinções na execução comum e fiscal.

2.3 Dos embargos à execução

Para compreendermos melhor o eventual impacto das novas


regras processuais sobre a execução fiscal, faremos uma breve
incursão nas características do instrumento de defesa conferido ao
devedor-executado.

Como sabido, o processo de execução tem por objetivo satis-


fazer um direito previamente delimitado e consubstanciado em
título executivo (judicial ou extrajudicial). Desse modo, nele, não
há espaço para discussões profundas a respeito da relação jurídica
invocada. A oposição dos embargos representa, desse modo, uma
exceção à regra.

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Com efeito, levando-se em conta que o título executivo e o
próprio processo não são imunes a vícios, o ordenamento jurídico
conferiu ao executado um mecanismo por meio do qual poderia
alegar toda a matéria útil à sua defesa.

O destaque para a expressão toda a matéria não é aleatório:


denota, isso sim, o caráter nitidamente cognitivo dos embargos,
conforme leciona Alberto Xavier (2005, p. 279-280) e pratica-
mente toda a doutrina processualista e tributarista:

[...] os embargos do devedor revestem a natureza de um processo


de conhecimento, de índole constitutiva, que tem por objeto a des-
truição do título executivo, de modo a privá-lo da sua eficácia, seja
por razões de forma ou de mérito [...] e representam “uma ação de
conhecimento estruturalmente autônoma, embora funcionalmente
subordinada ao processo executivo”.

Ademais, interessa destacar que os embargos não são meros


mecanismos de defesa, mas também de ataque, como lembra
Humberto Theodoro Júnior (2007, p. 14):

Os embargos, tal como indica o léxico, são obstáculos ou impedi-


mentos que o devedor procura antepor à execução proposta pelo
credor [...] Sua natureza jurídica é a de uma ação de cognição inciden-
tal de caráter constitutivo, conexa à execução por estabelecer, como
ensina Chiovenda, uma “relação de causalidade entre a solução do
incidente e o êxito na execução” [...] Não são os embargos uma
simples resistência passiva como é a contestação no processo de
conhecimento. Só aparentemente podem ser tidos como resposta
do devedor ao pedido do credor. Na verdade, o embargante toma
uma posição ativa ou de ataque, exercitando contra o credor o direito de
ação à procura de uma sentença que possa extinguir o processo ou
desconstituir a eficácia do título. [g.n.]

Desse modo, percebe-se nitidamente que os embargos con-


cretizam, na execução, a garantia constitucional do contraditório, o

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qual, até então, não se verificara (no caso específico de um título
executivo extrajudicial, frise-se). Confira, a esse respeito, a lição de
Humberto Theodoro Júnior (2007, p. 8):
Não é a execução um processo dialético. Sua índole não se mostra vol-
tada para o contraditório. Quando se cumpre o mandado executivo,
a citação do devedor é para pagar a dívida representada pelo título
do credor, e não para se defender. [...] Esse caráter específico do
processo executivo, todavia, não impede que interesses do devedor
ou de terceiro sejam prejudicados ou lesados pela execução. Daí
a existência de remédios especiais para defesa de tais interesses; e,
através dos quais, pode-se atacar o processo de execução em razão
de nulidades ou de direitos materiais oponíveis ao do credor. [g.n.]

Prossegue o mesmo autor afirmando que:


[...] Por visar à desconstituição da relação jurídica líquida e certa
retratada no título é que se diz que os embargos são uma ação cons-
titutiva, uma nova relação processual, em que o devedor é o autor
e o credor é o réu [...] A previsão desses embargos é que permite a
alguns doutores a classificação do processo executivo como “processo con-
traditório eventual”, porque podem, ou não, esses incidentes ocorrer
no curso da execução forçada, que, na sua falta, chegará a termo
sem qualquer julgamento ou provimento de mérito (Theodoro
Júnior, 2007, p. 14, grifo nosso).

Pois bem, considerando que os embargos são, possivelmente,


a primeira e principal oportunidade de realização do contraditó-
rio no processo de execução, e levando-se em conta que o Poder
Judiciário fundamentaria seus atos expropriatórios subsequentes
num título que ainda não passara pelo seu crivo, o Direito tradicio-
nalmente conferia a esses embargos (caso fosse garantido o juízo) a
suspensão da execução.
Com a reforma empreendida pela Lei n. 11.382/2006, con-
tudo, o que antes era regra e tradição tornou-se algo excepcional.
Com efeito, a regra agora passou a dispor em sentido diametral-
mente oposto, senão vejamos:

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Art. 736. O executado, independentemente de penhora, depósito ou
caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos. [g.n.]

Art. 739-A. Os embargos do executado não terão efeito suspensivo.


[g.n.]
§ 1º O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito
suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamen-
tos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar
ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde
que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução
suficientes.

A novidade foi recebida como salutar no âmbito do processo


civil comum; tida, por exemplo, como mecanismo de satisfação do
crédito exequendo que não anula o direito de defesa do executado.
No seio do Direito Processual Tributário, contudo, veio a agravar
uma verdadeira cisma.

A questão, conforme se demonstrará, é de difícil deslinde e,


em nosso ver, só será definitivamente sanada quando do advento
da nova lei de execuções fiscais, cujo projeto está em discussão.
Tentaremos, ao menos, confrontar os diversos argumentos para
que, no período de espera, não seja o ordenamento jurídico preju-
dicado nem pela morosidade, nem pelo atropelamento de garantias
constitucionais.

3 Os diferentes pontos de tensão

3.1 A interação entre norma geral e especial: a necessidade


de interpretação sistemática

Considerando que a Lei de Execuções Fiscais é um conjunto


normativo sucinto, inevitável concluir que se deve relacionar com
as normas gerais de Direito Processual.

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Com efeito, não há como leis concisas (como a LEF, a Lei da
Ação Civil Pública, a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei da
Ação Popular etc.) regularem detalhadamente as regras aplicáveis
às complexas relações jurídicas sobre as quais pretendem incidir.

Desse modo, o próprio conceito de lei especial traz consigo


a necessidade de aplicação subsidiária da norma geral da qual foi
destacada. A norma contida no art. 1º da LEF, que determina a
aplicação subsidiária do CPC, desse modo – além de se mostrar
redundante –, deve servir apenas de ponto de partida para uma inter-
pretação mais profunda e completa.

Nessa perspectiva, a aplicação subsidiária das normas gerais


às especiais não se pode dar mecânica e automaticamente, como
defendem alguns, mas, ao contrário, necessita ser arejada por crité-
rios claros, conforme será demonstrado. Interessante a esse respeito
é a posição de Azevedo e Mitre (2009, p. 37), quando afirmam que:

[...] sob uma ótica simplista, o intérprete poderia ser induzido a


tomar como premissa inarredável que, na ausência de disciplina
expressa sobre determinada questão na lei específica, sempre deverá
vasculhar a lei geral até encontrar um dispositivo (isolado que seja)
capaz de lhe permitir a esperada “aplicação subsidiária”, solução
imediata para todas as possíveis lacunas. [...] Entretanto, verifica-
-se que o ordenamento jurídico não permite esse empirismo e não
confere ao intérprete tamanho poder, nem mesmo as leis gerais
podem ser consideradas como estoques de dispositivos esparsos,
utilizados pelo operador para alcançar a conotação da lei especial
que lhe for mais aprazível. [...] A verdade é que a chamada aplicação
subsidiária não pode alterar a essência da lei especial ao bel prazer
do intérprete.

Por envolver diversos interesses na aplicação desta ou daquela


norma, e levar a conclusões substancialmente distintas, a tarefa de
delimitação da subsidiariedade revela-se importantíssima e com-
plexa. É preciso investigar, por exemplo, se há, de fato, uma lacuna

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na lei especial e, em outros casos, se há várias normas – geralmente
antagônicas entre si – aplicáveis à questão.

Parcela da doutrina, bem como a Fazenda Nacional, tem defen-


dido que a Lei de Execuções Fiscais seria lacunosa acerca do efeito
suspensivo a ser dado aos embargos à execução. A esse respeito, con-
fira, por exemplo, a posição de Leonardo José Carneiro da Cunha
(2007, apud Monnerat, Verissimo, 2009, p. 280):

A Lei n. 6.830/1980 não trata dos efeitos decorrentes da propositura


dos embargos do executado. Incidem, diante disso, as novas regras
contidas no Código de Processo Civil. Significa, então, que, ajuiza-
dos os embargos à execução fiscal não estará, automaticamente, sus-
pensa. Os embargos não suspendem mais a execução fiscal, cabendo
ao juiz, diante do requerimento do executado e convencendo-se da
relevância do argumento e do risco do dano, atribuir aos embargos
efeito suspensivo3.

Ocorre, contudo, que outros doutrinadores4 têm chamado a


atenção para o fato de que a LEF não teria se omitido a respeito do
tema – bastando que seja feita uma leitura mais atenta.

Invocam, a esse respeito, os arts. 18, 19, 24 e 32 da Lei n.


6.830/1980, os quais transcrevemos a seguir:

Art. 18. Caso não sejam oferecidos os embargos, a Fazenda Pública mani-
festar-se-á sobre a garantia da execução. [g.n.]

Art. 19. Não sendo embargada a execução ou sendo rejeitados os embar-


gos, no caso de garantia prestada por terceiro, será este intimado, sob
pena de contra ele prosseguir a execução nos próprios autos, para,
no prazo de 15 (quinze) dias: [g.n.]
3 A mesma visão é compartilhada por Martins (2008, p. 316).
4 Demonstram a tendência de preservar a execução fiscal com seus efeitos tradicio-
nais: Carneiro (2009); Azevedo e Mitre (2009); Parreira, Melo e Amaral (2007);
Segundo e Machado (2008); Machado (2008); Santiago e Breyner (2007); Folloni
(2010), entre outros.

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I – remir o bem, se a garantia for real; ou
II – pagar o valor da dívida, juros e multa de mora e demais encar-
gos, indicados na Certidão de Dívida Ativa pelos quais se obrigou
se a garantia for fidejussória.

Art. 24. A Fazenda Pública poderá adjudicar os bens penhorados:


I – antes do leilão, pelo preço da avaliação, se a execução não for
embargada ou se rejeitados os embargos; [g.n.]

Art. 32, § 2º – Após o trânsito em julgado da decisão, o depósito,


monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à
Fazenda Pública, mediante ordem do Juízo competente. [g.n.]

Argumentam tais expoentes que, em vista desses artigos, a


LEF dispôs, não apenas implícita, mas explicitamente acerca do
efeito suspensivo dos embargos. De fato, se o legislador conferiu
determinado resultado à não oposição de embargos ou à rejeição destes e
sorte diversa à oposição dos embargos ou ao acolhimento destes, há algum
resultado prático e eficaz nessa diferenciação (verba cum effectu sunt
accipienda, ou seja, não se presumem, na lei, palavras inúteis).

Indagam Segundo e Machado (2008, p. 63) a respeito do art.


19 da LEF:
Por que esperar pela sua não-interposição (com o transcurso in albis
do prazo correspondente), ou pela rejeição, para que só então se
possa intimar o terceiro responsável por garantia real para remir
o bem, ou o fiador, para que pague a dívida por ele afiançada, sob
pena de contra ele prosseguir a execução? Se é necessário que os
embargos não sejam opostos, ou que, caso o sejam, venham a ser
rejeitados, para que só então a execução siga o seu curso, é claro
que os embargos, regularmente opostos e ainda não julgados, sus-
pendem a execução.

Acerca do art. 24, inciso I, da Lei n. 6.830/80 questionam


os autores:

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Diante do texto legal transcrito, é o caso de se indagar: por que é
necessário que a execução não tenha sido embargada, ou que os
embargos tenham sido rejeitados, para que possa a Fazenda adju-
dicar os bens penhorados? Será por que os embargos suspendem a
execução, impedindo-a de adjudicar antes que sejam julgados? Não
parece possível outra resposta que não a positiva: sim, os embar-
gos suspendem a execução, nos termos da Lei de Execuções Fiscais
(Segundo; Machado, 2008, p. 64).

E reconhecem:

é verdade que não está escrito, textualmente, na Lei de Execuções,


algo como o que constava do art. 739 do CPC. Mas o que consta
dos arts. 18, 19, 24 e 32 é um texto que, embora formado por
expressões diferentes, têm o mesmo sentido (Segundo; Machado,
2008, p. 64).

Em posição intermediária – entre a concessão de efeito sus-


pensivo automático pela mera oposição dos embargos e a supres-
são por completo desse efeito na execução f iscal – parece estar
a posição externada por Didier Jr., Cunha, Braga e Oliveira
(2009, p. 748-749):

Significa que, na execução fiscal, os embargos, em princípio, não


têm efeito suspensivo, a não ser que o juiz conceda à vista do
preenchimento dos requisitos previstos no § 1º do art. 739-A do
CPC. Há, contudo, uma hipótese em que o efeito suspensivo será
automático: quando se chega à fase satisfativa da execução. Nesse
momento, os embargos à execução fiscal têm efeito suspensivo
automático, pois a adjudicação depende do trânsito em julgado da
sentença dos embargos. De igual modo, o levantamento da quantia
depositada em dinheiro depende do trânsito em julgado da sen-
tença dos embargos. [...]
Na verdade, há uma peculiaridade na relação entre o particular
e a Fazenda Pública que impõe tal regime: convertido em renda
para a Fazenda Pública, o particular somente poderia reavê-lo por

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 193


demanda própria, submetida à sistemática do precatório. Tal situa-
ção revela-se bastante prejudicial ao particular. Então, até para pro-
tegê-lo, instituiu-se esse regime de a conversão em renda somente
ser feita após o trânsito em julgado. […]

Em suma, os embargos à execução fiscal não têm efeito suspensivo,


mas não pode haver adjudicação, nem levantamento do depósito
(ou conversão em renda) pela Fazenda Pública, diante das peculia-
ridades de regras contidas na Lei n. 6.830/1980, que decorrem de
uma sistemática particular: a eventual reversão em favor do contri-
buinte é bastante custosa, mercê da sistemática do precatório e das
garantias do Poder Público.

A despeito desta discussão, entendemos que, ainda que hou-


vesse lacuna na LEF, a aplicação subsidiária da norma geral ao sub-
sistema da norma especial deveria obrigatoriamente considerar as
peculiaridades deste, sob pena de produzir um resultado que sub-
verta o ordenamento jurídico, aplicando uma regra travestida de
subsidiariedade que, na verdade, contrarie a essência do subsistema
especializado. Com efeito, “só se cogita de aplicação subsidiária
como forma de complementar eventuais omissões da lei a ser ‘sub-
sidiada’, e não de sorte a contrariar o que nela se acha disposto”
(Segundo; Machado, 2008, p. 65).

Convém ressaltar que o Direito tem como objetivo, entre


outros, conferir segurança às relações sociais que regula, e, para
que isso se concretize, as regras vigentes devem ser modificadas
pelos meios que o próprio ordenamento confere e não pelo mero
fetiche de modificar.

Não é por outro motivo que a Ciência do Direito, ao longo


do tempo, desenvolveu os critérios hierárquico, cronológico e da
especialidade para orientar a solução de problemas como esses.
Também não é por acaso que há no ordenamento uma lei que se
encarregue de promover tais critérios, como a, equivocadamente
denominada, Lei de Introdução ao Código Civil.

194 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012


Os critérios supramencionados quase sempre conseguem resol-
ver o problema das antinomias. Vez por outra, contudo, surgem as
chamadas antinomias de antinomias (ou antinomias de segundo
grau), isto é, conflitos entre os próprios critérios.

É o que se verifica, por exemplo, no caso em comento: a LEF é


lei especial, porém, anterior; a Lei n. 11.382/2006 contém normas
gerais, contudo, é mais recente. Nesse caso, qual critério deve pre-
valecer, o da especialidade ou o cronológico?5

A esse respeito alertam Silva, Bego e Oliveira (2008, p. 163):

Nesses casos de antinomia entre o critério da especialidade e o cro-


nológico, proliferam tanto as divergências acerca de qual o critério
deve se sobrepor a ponto de se afirmar comumente que, em tal hipó-
tese, não deve haver regra definida, pois, conforme o caso, haverá
supremacia ora do critério cronológico (lex posterior derogat legi priori)
– norma posterior revoga anterior), ora do critério da especialidade
(lex specialis derogat legi generali – norma especial revoga a geral.

Eis, portanto, mais um ingrediente para tumultuar as conclu-


sões e exigir cautela.

Nesse contexto, entendemos pertinente a lição de Norberto


Bobbio (apud Folloni, 2010, p. 16-17) acerca da matéria:

A lei especial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai
de uma norma parte da sua matéria para submetê-la a uma regu-
lamentação diferente (contrária ou contraditória). A passagem de
uma regra mais extensa (que abrange um certo genus) para uma
regra derrogatória menos extensa (que abrange uma species do genus)
5 Para Ives Gandra Martins (2008, p. 36, apud Monnerat; Verissimo, 2009, p. 278),
por exemplo, “Lei especial não pode ser revogada por lei geral, a menos que esta
expressamente o determine. A Lei n. 11.382/2006, que é lei geral, nada mencionou
acerca da execução da dívida ativa das pessoas políticas, de forma que não tem o
condão de alterar a Lei especial n. 6.830/1980. Desta forma, os embargos à execução
continuam a manter o efeito suspensivo que lhe outorgava a Lei n. 6.830/1980”.

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 195


corresponde a uma exigência fundamental de justiça, compreendida
pelo tratamento igual das pessoas que pertencem à mesma cate-
goria. A passagem da regra geral à regra especial corresponde a
um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta
gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou
descoberta a diferenciação, a persistência da regra geral importaria tratamento
igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa
injustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado atra-
vés de leis especiais, encontramos uma das regras fundamentais da
justiça, que é a do suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu).
Entende-se, portanto, por que a lei especial deve prevalecer sobre
a lei geral: ela representa um momento ineliminável do desenvol-
vimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral
significaria paralisar esse desenvolvimento. [g.n.]

3.2 A posição da Fazenda

No caso em apreço, verifica-se que a LEF representa (ou ao


menos representou em um dado instante histórico) um desses
momentos de ineliminável desenvolvimento de um ordenamento.
Hodiernamente, contudo, ante a nova execução civil, parece estar
ultrapassada.
Diante dessa situação, a Fazenda defende que, se a Lei de
Execuções Fiscais foi criada com a finalidade de dar agilidade à
cobrança do crédito público, em razão da supremacia do interesse
público, as normas gerais de Direito Processual comum que tor-
narem o procedimento geral mais célere e eficaz do que o pro-
cedimento específico devem ser aplicadas, resgatando-se assim a
finalidade visada pelo legislador de 1980. Pedimos licença para
transcrever os principais argumentos:

Constitui idéia assente na comunidade jurídica nacional que as leis


devem ser sempre interpretadas em consonância com a finalidade a que
se propuseram. Assim, se uma norma é criada com o objetivo de
conferir tratamento mais benéfico aos consumidores, idosos, ali-
mentandos etc., o trabalho do exegeta deve ser desenvolvido a pro-

196 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012


porcionar a eficácia prática de tais escopos, sob pena da legislação
ficar distanciada daquilo a que se propôs. [...] Desta forma, existindo
uma legislação especial que foi editada com a finalidade maior de conferir um
tratamento mais benéfico para certas categorias, não é razoável que uma alte-
ração na lei geral, aplicável a todas as demais pessoas, que venha a conferir
um tratamento ainda mais benéfico do que aquele previsto na lei especial,
não derrogue os ditames dessa 6. [g.n.]

[...] Com que objetivo o legislador criou uma lei especial para
regulamentar a execução do crédito da Fazenda Pública? [...] Essa
resposta pode ser facilmente encontrada na exposição de motivos da
LEF. Nos itens 2 e 4, verificamos que o objetivo de se especializar
a legislação ocorreu para conferir celeridade à cobrança do crédito fazendário,
diante do interesse público que tal satisfação visa proteger. Mais
adiante, podemos perceber no item 24, a seguinte exposição de
motivo para a LEF: “As inovações propostas como normas peculiares
a cobrança da Dívida Pública, tem por objetivo os privilégios
inerentes ao crédito fiscal e a preferência por normas processuais
preexistentes, ajustadas ao escopo de abreviar a satisfação do direito
da Fazenda Pública. [...] Pensamos que a melhor interpretação a
ser feita do ordenamento é a sistemático-teleológica, no intuito de
transportar as idéias perfilhadas na “Teoria do Diálogo das Fontes”
para a execução fiscal, possibilitando que as normas previstas no
CPC, que confiram maior celeridade e efetividade à execução em
relação à LEF, mesmo que contrária aos ditames desta, há de ser
aplicada no executivo fiscal7 8.

Não se ignora que toda lei deve ser interpretada de acordo


com a finalidade para a qual foi criada. Reconhece-se que, com o
passar do tempo, a LEF, “embora tenha sido de início mais favorável
aos interesses fazendários, com as referidas inovações do Estatuto

6 Itens 92 e 94 do Parecer PGNF n. 1.732/2007.


7 Itens 98, 99 e 101 do Parecer PGNF n. 1.732/2007.
8 O STJ, por seu turno, parece trilhar o mesmo rumo cf. REsp n. 1.024.128/PR, rel.
min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. em 13.5.2008, DJe de 19 dez. 2008, refe-
renciado no Ag.n. 1.276.326, rel. min. Hamilton Carvalhido, publ. em 5 abr. 2010.

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 197


Processual, terminou por se tornar mais protetora dos direitos dos
cidadãos” (Machado, 2008, p. 50).
O critério da finalidade, todavia, não deve ser tido como absoluto:
pode e deve ser temperado com argumentos que se mostram de igual
ou superior importância.
Nesse sentido, parcela da doutrina tem destacado que a inter-
pretação teleológica deve ser empreendida de maneira mais com-
pleta, considerando-se, por exemplo, a posição da LEF entre os
diversos ramos do Direito; a ausência de participação do devedor
na formação do título executivo; os novos valores albergados pela
Constituição de 1988; e os objetivos e características das reformas
processuais.

3.3 Peculiaridades a serem levadas em conta na mitigação do


critério da finalidade

3.3.1 A posição da LEF no ordenamento jurídico


É cediço em Direito Processual que o processo e o procedi-
mento devem se adequar – ou servir – à relação jurídica material
que pretendem regular, mormente quando se partilha do entendi-
mento de que o processo não é um fim em si mesmo.

Nessa perspectiva, revela-se evidente que a Lei de Execuções


Fiscais não se encontra apenas no terreno do Direito Processual,
mas sim na zona de interseção entre ele e o Direito Tributário.

O Direito Tributário, por seu turno, desde o seu surgimento


e ao longo da sua sistematização, sempre foi concebido como um
conjunto de normas protetoras do cidadão-contribuinte contra a
força do Estado-arrecadador, senão vejamos:
[O Direito Tributário] consiste em uma regulamentação rigorosa e
detalhada das possibilidades e dos limites da participação estatal nas
atividades e nos ganhos econômicos privados, tendo como diretriz

198 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012


subjacente a proteção do cidadão contra os excessos estatais e como
pano de fundo político a proteção à liberdade de iniciativa pri-
vada e à propriedade privada dos bens econômicos. [...] Não hou-
vesse necessidade de limites destinados à proteção do cidadão em
face do estado, desnecessário seria o Direito Tributário na forma
como é posto: bastaria que o Estado exercesse o seu poder político,
mediante o uso da força material que lhe é concedida em caráter
de exclusividade. Mas o Estado não pode exercer poder e força
senão dentro dos limites estabelecidos pelo Direito Tributário, que
é, assim, um direito de proteção do cidadão, a parte fraca e vulne-
rável na relação tributária (Folloni, 2010, p. 23)9.

É em função disso que se costuma dizer que a relação tributá-


ria (se verdadeiramente regida pelo Direito Tributário) é uma relação
jurídica e não uma relação de poder. Desse modo, a aplicação sub-
sidiária do Direito Processual comum à relação jurídico-tributária
regida pela Lei de Execução Fiscal, longe de ser feita indiscrimina-
damente, deve levar em conta as peculiaridades desta.
Em outras palavras, uma novidade criada para o Direito
Processual comum, pode, certamente, vir a ser usada no Direito
Processual Tributário, desde que respeite as particularidades de
cada subsistema jurídico e amolde-se a ele, obtendo, dessa maneira,
o imprescindível respaldo do ordenamento.

3.3.2 A ausência do devedor na formação do título executivo


Uma das mais relevantes peculiaridades a ser levada em conta
na aplicação do Direito Processual comum ao Direito Processual
9 Na visão deste autor, por exemplo: “Uma das premissas falsas de que parte o pare-
cer, lamentavelmente aceita também pela jurisprudência, é a de que a legislação
especial em matéria tributária tem como função privilegiar e proteger o Estado
[...] O Direito Tributário, que sempre foi e continua sendo um Direito de proteção
do cidadão contra a volúpia estatal, contra a expressão da ‘vontade de poder’ do
Estado, vontade essa diante da qual o cidadão é absolutamente impotente – é ‘vul-
nerável’, diria James Marins –, de repente torna-se um Direito que visa à tutela do
próprio Estado! Um Direito ditado pelo Estado com vistas à proteção de si próprio”
(Folloni, 2010, p. 27).

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 199


Tributário é o procedimento de formação do título executivo de
que dispõe a Fazenda.

Com efeito, a Administração detém a prerrogativa de uni-


lateralmente apurar o seu crédito, delimitá-lo e constituí-lo em um
título executivo: a Certidão de Dívida Ativa, a qual, segundo o
magistério de Alberto Xavier (2005, p. 261), “representa um con-
trole suplementar da legalidade do lançamento, efetuado pela própria
Administração, que pode ter por efeito impedir a instauração de
processos de execução infundados”.

Situação diversa, porém, ocorre na formação dos títulos exe-


cutivos não tributários. A esse respeito, valiosa é a lição de Santiago
e Breyner (2007, p. 58):

Havendo prévio consenso entre as partes quanto ao conteúdo do


dever e às conseqüências de sua inobservância, não é difícil com-
preender ou aceitar a disposição do art. 739-A do CPC. Se o deve-
dor constituiu livremente a dívida (em ato unilateral ou bilateral de
que participe junto com o credor) e aceitou submeter-se sem mais
à coerção estatal em caso de inadimplemento, deve haver relevante
fundamento a opor-se aos plenos e imediatos efeitos do ato de exe-
cução. Donde a razoabilidade da regra que suprime o efeito sus-
pensivo dos embargos à execução fundada em título extrajudicial,
eficácia que fica a depender do reconhecimento de fumus boni iuris
e periculum in mora e que só pode ser deferido após total garantia do
débito (CPC, art. 739-A, parágrafo 1º). Porém, o título extrajudi-
cial da dívida tributária (CDA) não conta com o consentimento do
devedor, sendo constituído de forma unilateral pelo credor, razão
pela qual não pode sujeitar-se à inovação legislativa.

No mesmo sentido é o magistério de Hugo de Brito Machado


Segundo e Raquel Machado (2008, p. 64-65):

[...] A execução de uma sentença envolve a satisfação de um direito


reconhecido por uma decisão judicial. Vale dizer, trata-se da delibe-

200 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012


ração de um terceiro, em tese imparcial, em relação à qual as partes
implicadas puderam interferir, produzir provas, argumentar, recor-
rer etc. Em suma: uma decisão que se legitima pelo procedimento
que a antecede, o qual é construído de forma a reduzir, na máxima
medida possível, a possibilidade de erros ou excessos. As coisas não
acontecem do mesmo modo na formação dos títulos executivos
extrajudiciais, razão pela qual a execução destes últimos deve con-
siderar de forma mais intensa a possibilidade de ser indevido o valor
cuja satisfação se requer. Não é por outra razão, aliás, que são muito
mais amplas, nesses casos, as possibilidades de oposição por parte
daquele apontado como devedor. A propósito, quando se analisam
os títulos executivos extrajudiciais, verifica-se que, em regra, são
eles formados pela vontade do devedor. Afinal é dele a assinatura
no cheque, na nota promissória ou no contrato. Foi sua manifes-
tação de vontade que fez nascer a relação jurídica obrigacional, e
o título no qual está representada com força executiva. No caso da
execução fiscal, não. O título é originado no âmbito da chamada
autotutela vinculada de que a Administração Pública é dotada10.

Exatamente por ser constituído por vontade unilateral do


credor, costuma-se dizer que a abstração daquilo que se encontra
constituído no título (i.e. verdade formal) deve ceder lugar à ver-
dade material da relação subjacente a ele. É nesse sentido a lição de
Alberto Xavier (2005, p. 281):

Entre nós, tornou-se necessário atenuar a eficácia abstrata do título


executivo, em ordem a uma mais perfeita defesa da propriedade
individual. Com efeito, a força executória do título cede o passo
10 Poder-se-ia alegar, todavia, que o contribuinte detém a possibilidade de discutir
administrativamente o crédito tributário. A esse respeito, destaca-se que: “A existên-
cia da possibilidade de prévia discussão administrativa do crédito tributário, apesar
de ser fundamental ferramenta para o controle da legalidade dos atos da Adminis-
tração Tributária, não tem o condão de se equiparar à manifestação da vontade
ocorrida no caso da formação de um título executivo extrajudicial relativo ao crédito
de matéria exclusivamente privada [...] Ademais, é uníssono na jurisprudência admi-
nistrativa o entendimento de que as discussões envolvendo a inconstitucionalidade
de leis não podem ser analisadas nessa esfera, o que, na prática, restringe as questões
alegáveis na defesa realizada pelo contribuinte” (Azevedo; Mitre, 2009, p. 40).

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 201


à necessária prevalência da relação subjacente sobre a abstração, da
verdade material sobre a verdade formal constante do título; e por
isso nele se reconhece a relação de prejudicialidade da cognição sobre a
execução, mas somente desde que o executado garanta a execução por
meio de depósito, fiança bancária ou nomeação de bens à penhora
(art. 9º da Lei n. 6.830).

3.3.3 A diferença do papel dos embargos com efeito


suspensivo nas execuções comum e fiscal

Seguindo esse raciocínio, importa destacar que o mecanismo


que o ordenamento disponibiliza ao devedor para se opor à exe-
cução é, exatamente, os embargos de devedor, que, conforme já
vimos, representam uma ação de conhecimento dentro do pro-
cesso de execução, prestigiando-se assim a garantia constitucional
do contraditório.

Nesse sentido, lecionam Parreira, Melo e Amaral (2007, p. 8) que,

sendo a execução embasada em um título executivo extrajudicial


(Certidão da Dívida Ativa), os embargos serão sempre de cogni-
ção plena, porquanto ausente o exercício do contraditório em juízo
antes da formação do título objeto da execução fiscal.

Importa destacar que, em virtude da reforma implementada


pela Lei n. 11.382/2006, os embargos, na execução civil, a despeito
de continuarem oponíveis, serão, por via de regra, destituídos de
efeito suspensivo, salvo se preencherem os critérios estabelecidos
pelo § 1º do art. 739-A do CPC.

No âmbito do Direito comum, essa nova regra parece encon-


trar o necessário respaldo, conforme já destacado por Santiago e
Breyner (2007) em posição retromencionada. Já no processo tribu-
tário verifica-se que há significativa e incontornável necessidade de
diferenciação.

202 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012


De fato, o efeito suspensivo dos embargos não possui a
mesma importância no processo comum e no processo tributário.
Enquanto naquele pode-se tê-lo como mero ato procrastinatório,
ou mero capricho do devedor, na execução fiscal é a principal (e,
talvez, única) forma de se defender de uma eventual ingerência
indevida em seu patrimônio.

Nesse sentido, argumenta Alberto Xavier (2005, p. 265):

A relevância conferida pelo Direito Tributário à verdade material


levou a que o legislador tivesse modelado o processo de execução –
que atinge direta e imediatamente a propriedade dos cidadãos – em
termos de evitar, na máxima extensão possível, uma execução coer-
citiva injusta, ou seja, não correspondente à relação jurídica material
subjacente. E fê-lo essencialmente por duas formas: pela via de embargos à
execução e pelo regime de suspensão dessa mesma execução. [g.n.]

Soma-se a isso o fato – não menos importante – de que, não


restando suspensa a execução, caso os atos expropriatórios venham a
ser consumados, o devedor executado por equívoco (ou executado
a maior) só poderá reaver o valor indevidamente arrancado do seu
patrimônio se se submeter à via crucis do regime de precatórios. Tal
situação, por si só, já demonstraria, mais uma vez, a abissal diferença
experimentada por um executado comum e por um executado fiscal.

Desse modo, a fragilidade do contribuinte devedor na exe-


cução fiscal está evidenciada, conforme lecionam Parreira, Melo e
Amaral (2007, p. 11):

[...] as “vantagens” conferidas à Fazenda Pública não podem ser


ignoradas. Conforme visto, a legislação processual civil confere à
Fazenda Pública algumas prerrogativas que são justificadas através
do art. 5º da Constituição. Essas prerrogativas concedidas ao credor
não aparecem em nenhuma outra execução, na medida em que
somente à Fazenda Pública é garantido tratamento diverso do exe-
cutado que se submete às regras gerais do CPC, sob pena de grande

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 203


desequilíbrio da relação processual. Cabe também destacar que na exe-
cução por título extrajudicial do CPC há certa “igualdade” entre as partes,
no sentido de que, se ao final o embargante se sair vencedor, poderá recuperar
o valor executado. Já no caso das execuções fiscais esta possibilidade é algo
menos do que mera teoria. A execução contra a Fazenda Pública é regida
pelo art. 730 do CPC e raros são os casos em que, ao final, o precatório é
pago. [g.n.]

Assim, importa ressaltar que “na execução fiscal, o intuito do


efeito suspensivo dos embargos é equilibrar a relação entre o deve-
dor e a Fazenda, a qual dispõe de inúmeras vantagens que lhe garan-
tem tratamento diverso” (Parreira; Melo; Amaral, 2007, p. 12).

Ademais, conforme já demonstrado alhures, não pode ser


ignorado o fato de que os pressupostos fáticos que dão sustentação
à norma de processo comum são diversos daqueles verificados na
relação jurídico-tributária submetida a uma execução fiscal. Em
razão disso, a finalidade de agilizar a cobrança do crédito tributá-
rio, por não ser um valor absoluto, deve ceder espaço às peculiari-
dades da relação tributária.

3.3.4 A manutenção da exigência de garantia do juízo e o


perigo de ressurreição da cláusula solve et repete

Não bastasse a peculiar situação do executado fiscal, conforme


já exposto, a Fazenda Nacional defende, ainda, a manutenção – ao
lado da aplicação da nova regra que suprime o efeito suspensivo
– a obrigatoriedade de exigir-se a garantia de uma execução que
sequer será suspensa, in verbis:

Apesar de possuir tratamento específico sobre a necessidade de


penhora para a apresentação dos embargos à execução, [a LEF] nada
disciplina a respeito do efeito suspensivo de tais embargos [...] Diante
de tal cenário normativo, podemos concluir que, em face da disci-
plina expressa da LEF, ainda persiste na execução fiscal a necessidade de
garantia do juízo para apresentação dos embargos à execução, contudo, uma

204 Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012


vez ajuizados, não possuem o condão de suspender os atos executivos imedia-
tamente, dependendo para tal de decisão expressa do juiz a respeito,
nos termos do CPC. [...] A conseqüência imediata dessa interpretação
é a exigência de constrição patrimonial para que o devedor possa se defender
através dos embargos, ao passo em que os atos de expropriação serão efetivados
independentemente do respectivo julgamento de tal “defesa”, salvo se atri-
buído efeito suspensivo pelo magistrado, nos termos do art. 739-A,
§ 1º, do CPC. Aqui se afigura um dos mais importantes escopos do
legislador: uma execução de resultados11 12. [g.n.]

Contra isso, reagiram alguns autores, a exemplo de Folloni


(2010, p. 24 e 26):

Depositando e discutindo, o cidadão contribuinte está regular sob


o ponto de vista tributário. Não comete nenhuma ilicitude: está
absolutamente regular a sua conduta. Não pode, evidentemente,
ser privado nem de sua liberdade nem de sua propriedade nessa
situação. Não pode ser sancionado como se fosse, em definitivo,
devedor inadimplente.

[...]

É inadmissível que, diante da penhora, cogite-se levar adiante a


expropriação de bens daquele que está juridicamente regular!
Quem o impõe é o regime jurídico tributário brasileiro, não uma
pretensa “teoria geral das execuções” e muito menos uma também
não exposta, comprovada ou testada “teoria do diálogo das fontes”.

Também opinaram Didier Jr., Cunha, Braga e Oliveira (2009,


p. 748-749):

A exigência de prévia garantia do juízo para oposição dos embar-


gos à execução – feita no § 1º do art. 16 da Lei n. 6.830/1980
– não decorre, contudo, de detalhes, vicissitudes ou particularida-
11 Itens 14, 15 e 16 do Parecer PGNF n. 1.732/2007.
12 No mesmo sentido é a opinião de Furlan (2008, p. 32-33).

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 205


des na relação entre o contribuinte e a Fazenda Pública. Quando
da edição da Lei n. 6.830/1980, essa era um regra geral, aplicá-
vel a qualquer execução. Em qualquer execução – ressalvada,
obviamente, a execução contra a Fazenda Pública, em que não há
penhora, nem expropriação de bens –, a apresentação de embargos
dependia, sempre, da prévia garantia do juízo. A Lei n. 6.830/1980
cuidou, nesse ponto, de copiar, reproduzir, seguir a regra geral; a
segurança prévia do juízo como exigência para o ajuizamento dos
embargos era uma regra geral, e não uma regra que decorresse da
peculiar relação havida entre o particular e a Fazenda Pública. [...]
Atualmente, revogada essa exigência geral, não há mais garantia do juízo
para a oposição dos embargos, devendo deixar de ser feita tal existência [sic:
exigência] também na execução fiscal. Aqui, não se trata de norma geral
atingindo norma especial, mas de norma geral atingindo norma
geral. A norma não é geral por estar inserida num diploma legis-
lativo extravagante ou específico, mas por retratar uma situação
peculiar ou por estar inserida num regime jurídico próprio. [g.n.]

Desse modo, há quem veja nessa possibilidade de convivência


das regras mais convenientes para a Administração uma possível
ressurreição da cláusula solve et repete13 14.

13 Azevedo; Mitre, 2009, p. 41. No mesmo sentido é a posição de Segundo;


Machado, 2008, p. 61.
14 Ensina Cleide Previtalli Cais (2007, p. 444) que, “Em épocas pretéritas, por força
da regra solve et repete, o contribuinte somente podia contestar a legitimidade de
um tributo após efetuar seu pagamento. Em 1961, a regra solve et repete foi tida
por inconstitucional pela Corte Constitucional italiana, ao entendimento de que
introduzia forte desigualdade de fato entre os contribuintes, além de constituir um
particular privilégio substancial da Administração, que limitava o direito de defesa
garantido pela Constituição italiana. Presentemente, essa cláusula vem merecendo
o repúdio dos estudiosos, por violentar o princípio constitucional da igualdade, que
deve ser aplicado nas discussões entre a Administração e o contribuinte. Ambas as
partes da ação tributária devem estar em posição paritária, não sendo de admitir-se
a prevalência da Administração em relação ao contribuinte, como ocorria quando
aplicável a regra solve et repete. Não fosse esse aspecto, a aplicação da cláusula acar-
retaria o cerceamento ao livre acesso ao Poder Judiciário, porque muito diferente
seria a situação do contribuinte que dispõe e do que não dispõe de meios para pagar
o tributo que pretende discutir, sendo fácil concluir que somente o mais aquinho-
ado economicamente poderia buscar o Poder Judiciário”.

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Diante disso, revela-se oportuno invocar o ensino de Xavier
(2005, p. 178):

O sistema adotado pelo Direito brasileiro situa-se, assim, no pólo


oposto aos que consagram a regra, prevalecente no “ancien regime”,
do solve et repete, consistente em condicionar a impugnação admi-
nistrativa ou jurisdicional de um determinado ato ao pagamento
prévio da quantia por ele exigida (ou garantia de instância), regra
essa reputada inconstitucional pela generalidade dos sistemas jurí-
dicos modernos, por o cerceamento do direito de defesa que ine-
gavelmente comporta ser incompatível com o direito de “ampla
defesa” previsto na Constituição, e que é da essência do Estado de
Direito.

Há quem defenda, inclusive, que a suspensão da execução


fiscal decorra de princípios implícitos no ordenamento constitu-
cional, senão vejamos:

Ainda que o regramento da questão pela lei de execuções fiscais


permitisse o avanço da Fazenda exeqüente no patrimônio do exe-
cutado, para que esta obtivesse a satisfação da quantia por ela pró-
pria apurada e tida como devida, isso não poderia ocorrer, sob pena
de violação ao substantive due process of law (CF/1988, art. 5º, LIV),
e aos princípios da ampla defesa e do amplo acesso ao Judiciário
(CF/1988, art. 5º, XXXV e LV). De fato, permitir-se-ia, com tal
sistemática, que um credor obtivesse a quantia considerada devida,
diretamente de quem apontasse como seu devedor, sem qualquer
possibilidade de um controle jurisdicional prévio, o que implicaria
o retorno, na prática, da odiosa regra do solve et repete (Segundo;
Machado, 2008, p. 63-64).

No mesmo sentido é a opinião de Santiago e Breyner (2007,


p. 56), para quem

o nosso ordenamento jurídico alberga princípios constitucionais


que imporiam a eficácia suspensiva dos embargos à execução fiscal

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 207


mesmo em face de lei específica em sentido contrário, cuja invali-
dade seria necessário declarar.

Na perspectiva de Hugo de Brito Machado (2008, p. 55),


outrossim,

negar o efeito suspensivo na execução fiscal é negar o direito à juris-


dição efetiva, expressamente assegurada pela Constituição Federal,
em seu art. 5º, inciso XXXV, ao estabelecer que a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

3.3.5 O resgate da mens legis de 1980 ante o ordenamento


pós-1988 e os objetivos da reforma processual

Outro ponto que não pode ser relegado a segundo plano


quando se procede a uma interpretação teleológica (tentando-se
compatibilizar o entendimento do legislador15 de 1980 com o legis-
lador reformista da presente década) é que as reformas têm sido
verificadas em questões pontuais ou setoriais e têm causado con-
flito de interpretação dentro do próprio Código de Processo Civil.

Desse modo, revelando-se difícil proceder a uma interpre-


tação sistemático-teleológica com as normas insertas no próprio
CPC, imagine pretender transpor tais normas para os subsistemas
que com ele se relacionam. Pode não ser tarefa impossível, claro,
mas que se revela muito mais árdua não há dúvida. Desse modo,
afirmamos com convicção que meras aplicações automáticas não
encontrarão a verdadeira vontade da lei.

Nesse sentido, defendem Parreira, Amaral e Melo (2007,


p. 12) que, “à falta de uma modificação geral, torna-se descabido,
na medida em que não explicitado, permitir que alterações pontu-
ais sejam estendidas a outras áreas do Direito que requerem trata-
mento especial”.

15 Não se ignora, ressalta-se, a substancial diferença entre mens legis e mens legislatoris.

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Não é por outro motivo que o próprio movimento refor-
mista – ciente da árdua tarefa que terá de enfrentar – destacou na
Exposição de Motivos da Lei n. 11.382/2006:

13. Este segundo projeto, que buscou inspiração em críticas cons-


trutivas formuladas em sede doutrinária e também nas experiên-
cias reveladas em sede jurisprudencial, parte das seguintes posições
fundamentais: [...] m) quanto à execução contra a Fazenda Pública,
as propostas serão objeto, posteriormente, de outro projeto de lei,
e assim também será objeto de projeto em separado a execução fiscal, que
igualmente merece atualização16. [g.n.]

Essa posição também encontra respaldo no magistério de


Athos Gusmão Carneiro (2007, p. 82), para quem “as novas regras
do processo de execução não se aplicam, em princípio, à execução
fiscal. Está em discussão projeto para uma nova lei sobre a matéria”.

Noutro giro, não se pode ignorar o fato de que a Lei n.


6.830/1980, cuja gestação e nascimento se deram no período do
regime militar, elevou sobremaneira o interesse público sobre o
privado, transplantando para a execução fiscal as vantagens e os
privilégios do Estado sobre o indivíduo.

A Constituição Republicana de 1988, por seu turno, preo-


cupou-se sobremaneira com a conflituosidade inerente às relações
tributárias (Machado, 2008, p. 49), dedicando, em razão disso,
no capítulo do Sistema Tributário Nacional uma seção especifica-
mente denominada Das Limitações do Poder de Tributar.

Em razão disso, entendemos que se revela perigoso pretender


resgatar uma suposta17 vontade legislativa – anterior à Constituição
16 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/
MJ/2004/120.htm>. Acesso em: 23 set. 2010.
17 Diz-se suposta porque não se pode afirmar, com absoluta convicção, que a vontade
que o intérprete dê atualmente ao conjunto normativo é exatamente aquela que
seria manifestada pelo legislador, dada a alteração nas circunstâncias fáticas, políti-
cas e jurídicas.

Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 39, p. 179-213 – jul./dez. 2012 209


vigente – sem ao menos não se atentar para os detalhes inerentes a
cada subsistema e aos novos valores constitucionais (dos quais, res-
salte-se, a razoável duração do processo é apenas um e não o único).

Ademais, também se revela temerário, em nossa perspectiva,


facultar ao juiz-intérprete a atividade de legislador positivo (pinçando
as normas mais convenientes de um e de outro conjunto de normas
de sorte a prestigiar, com isso, um suposto interesse público18),
mormente, quando o próprio legislador reformista fez questão de
deixar para instante oportuno a reforma da execução fiscal.

Trilhar esse caminho, para nós, é fragilizar os postulados da


segurança jurídica e da própria justiça, bem como a coerência do
ordenamento jurídico.

É em razão disso que defendemos a necessidade de proceder a


uma interpretação teleológica arejada por outros critérios caros ao
ordenamento, possibilitando-se, assim, de maneira mais legítima,
encontrar uma solução que sirva de “ponto de equilíbrio na ‘tensão
dialética’ entre o privilégio da executividade, como garantia do inte-
resse público e a figura da suspensão, como garantia dos interesses par-
ticulares” (Arias Velasco, 1994, p. 30, apud Xavier, 2005, p. 178).

4 Conclusão

Conforme demonstrado, partilhamos do entendimento de


que a execução fiscal precisa urgentemente de reformas, mormente
quando se estão em jogo os créditos com os quais o Estado realiza
as finalidades públicas legitimadoras de sua existência.

A complexidade dessa reforma, contudo, não pode ser igno-


rada. Não é por acaso que o atual movimento reformista, con-
forme revelado na Exposição de Motivos da Lei n. 11.382/2006,

18 Como se não houvesse nenhum interesse público na segurança jurídica e na manu-


tenção da coerência do ordenamento.

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reservou para um momento específico e oportuno a mudança nas
regras da execução fiscal.

Não se pode negar, por outro lado, o caráter dinâmico e dia-


lético da construção do Direito, no qual o intérprete e o juiz têm
papel de grande destaque. Ressaltamos, todavia, que aqueles que
pretendem se aventurar na aplicação subsidiária das novas regras
processuais ao subsistema da execução fiscal não podem fazê-lo
mecânica e automaticamente, sob pena de gerarem regras casuístas,
violadoras de direitos e garantias constitucionais dos contribuintes,
e fragilizadoras da segurança jurídica.

Não ignoramos, igualmente, que os lemas da celeridade, efe-


tividade e da duração razoável do processo são de grande impor-
tância para o Direito contemporâneo, inserido inevitavelmente
em uma sociedade de massas e que ainda está aprendendo a lidar
com os problemas decorrentes dessa condição. Nesse caminho de
amadurecimento e de tensão entre os diversos valores jurídicos,
todavia, não deve o intérprete, no afã de prestar a rápida jurisdição
demandada pela sociedade de massas, se esquecer dos direitos e das
garantias conquistados ao longo da História.

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