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DOMINGOS CALDAS BARBOSA: A MODINHA E 0 “PECADO DAS ORELHAS? aparecimento da modinha em meados do sé ‘com repercussdo ampliada pelo fato de se tornar conhecida a par. tir do sucesso alcangado na corte portuguesa por um poeta cari- oa tocador de “viola de arame”, o mulato Domingos Caldas Barbosa, marcou a criacdo do primeiro género de canto brasilei- ro dirigido especialmente ao gosto da gente das novas camadas ‘médias das cidades. A pequena elite dos princ coltnia — Olinda, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e, com a explosio urbana pro. voeada pela corrida do ouro desde a virada dos sécalos XVII para XVII, asvarias 1 das minas gerais e de Cuia- ba — contou sempre para seu divertimento com a misica dos mestres de capela das igrejas ¢ das charamelas palacianas. Nas igrejas nao era raro ouvir-se cantigas (a ponto de em 1733 0 bis po frei Axtdnio do Desterro criticar em pastoral cs miisicos mi- neiros por achar “nas misicas que se cantavio nas festividades das igrejas muita profanidade e endecencia™!) e, aas festas of fam-se quase sempre serenatas a0 governador (como as realizadas em honra do conde das Galveas em 1733, em Ouro Preto, ou do marqués do Lavradio em Salvador, em 1760). £ bem verdade cue se tratava em ambos 0s casos mais de miisica para ouvir do que para cantar, porque os musicos de igreja — mesmo "1 Lure das Pastorais dos Bispos de Ma dda Caria Arquidiocesana de Mariana, citado por José Fercira Crise dos Cost Gerais do Século XVII, separata da de Letras, a pela Faculdade de Filosofz, Cicias e Le tras de Ass Domingos Caldas Barbosa ‘6s mulatos recrutados nas baixas camadas — no compunham suas “profanidades” em estilo popular, mas eruditamente para varias vozes, eas tais serenatas as autoridades no eram cantorias sob as janelas, mas saraus com “boas misicas, e bem vestidas fi guras”, como em 1733 registraria em Vila Rica o autor do Trivat- fo Eucaristico, Siman Ferreira Machado, “natural de Lisboa, ¢ morador nas Minas”.? E, assim, embora pelo menos por parte dos homens houvesse oportunidade de quando em vez. para al- guma cantoria de serenata amorosa (como a descrita pelo fran- és M, De La Barbinais, que em Salvador de 1718 viu “portugue- ses vestidos de roupées, rosario ao pescogo e espada nua sob as vvestes, a caminhar debaixo das janelas de suas amadas de viola na mao, cantando com vor ridiculamente terna cantigas que fa- ziam lembrar misica chinesa, ou as nossas gigas da Baixa Bre- tanha”),’ a verdade é que até ao aparecimento da modinha nio havia um género de cangao capaz de atender as expectativas de homens e mulheres, dentro da nova tendéncia & maior aproxima- 640 entre os sexos, caracteristica da moderna sociedade definiti- vamente urbanizada, 2 Ao deserever as homenagens a0 Conde das Galveasem sua “Nara siio De Toda A Ordem, E Magntico apparato da Solemne Trasladagio Do Eucharistico Sacramento Da lreia Da Senhora do Rosario Paca Hum Novo ‘Templo De Nossa Senhora Do Pilar Matra ¢ propria morada Do Divino Sacramento Em Villa Rica Corte Da Capitania Das Minas Acs 4 de Mayo de 1733", incluido no seu Triunfo Eucharstico Exemplar Da Christandade Lasitama, de 1734, regstava Siman Ferreira Machado: “Em todas a8 n- tes dene dase coinarto ao meso Senor exces sna bons asics, e bem vestidas figuras nas casas onde estava em Ouro Preto” (ob. cits p.120).0 texto do Triunfo Eucaristico fi publicado em facsimile por ‘Afonso Avila no vo. I de seus Residuos seiscentstas en» Minas: textos do Séeulo de Ouro eas projesies da mundo barroco, Belo Horizonte, Cenc de Estudos Mineiro, 1967, G. De La Barbinais, Nowvean voyage Au four de monde, Tome Troisiéme, A Paris, Chez Briasson, rue Sant Jacques, a la Seienee, MDCCX. XIX, p. 208, Tradugso do autor. Brasil Colina Mais do que alguma particularidade da mdsica propriamer te dita, o que de fato chamou a atengo nas modinhas foi a ou- sada novidade de “versejar para as mulheres” em letras qui tra- duziam “as imprudéncias ¢ iberdades do amor” ¢ levavam a en- cantar “com venenosos filtros a fantasia das mocas e 0 coracio das Damas”, como apomtaria em Portugal um preocupado con- temporaneo do poeta Caldas Barbosa em stias memérias.4 Com as modinhas envoltas em melodias de “lnguidos com- Passos quebrados, como se ante o excessa stv enlevo faleasse o folego, ea alma buscasse em ansias sua alma gémea para respi- tar” — no poético dizer do sensivel Lord Beckford — os mora- listas e conservadores viram recrudescer o velho “pecado das ore- thas”, e desta vez no mais como atentado as doutrinas da Igre- ja, mas como ameaga a boa ordem moral da sociedade, E era 0 que deixava claro o mesmo memorialista, Anténio Ribeiro dos Santos, ao resumir sua impressio final sobre a arte do poeta-com- Positor brasileiro: “Eu admiro a facilidade da sua vein, a riqueca das suas invengdes, a variedade dos motivos que toma para seus Cantos, ¢ 0 pico e graga dos estribilhos e ritornellos com que os Fematas mas detesto os seus assumptos e mais ainda, a mancira com que os trata e com que os canta” S Fsca forma direta de tratar os (eis ammorosos (“Por mais ue me diga/ Que pouco me cré/ Eu digo o que sinto/ Morro pot voc’”), ds vezes sugerindo até mesmo o contato fisico (*Ponha a io sobre o meu peito/ Porque as diividas dissipe, Sentiré meu Soragdo/ Como bate, tipe, tipe”|, € que s6 se tomara possivel pela proximagao em pablico — antes impensével — entre homens & *Trata-se de AntGnio Ribbeito dos Santos (1759-1818), que nos Ma fscritos, ol. 130, da Biblioteea Nacional de Lisboa, assim se referia a0 Aporecimento das modinhas em Portugal: “Esta praga é hoje geal depos que © Caldss comesou de pér em verso os seus rimances,e de verseiar para as Inulbeces, Eu ndo conhego um poeta mais prejudicial & educagio particular @ lilica da que este trovador de Venus e de Cupido” (op. cit ls. 156). * Anonio Ribeiro dos Santos, Manuscrites, cit. fs. 156, ings Caldas Barbosa mulheres (“Estou com ela/ Entre agradinhos/ Como os pombi- thos! A dois e dois”), as vezes em aberto desafio & moral vigente (“Menina, vamos amando, Que nao é culpa o amary © mundo ralha de tudo, £ mundo, deixa falar”),$ constituia, na verdade, {a projecio, no campo da moderna poesia cantada dirigida & mas- sa urbana, das modificages de fundo que se operavam nas so- ciedades modernas contemporineas da Revolugao Industrial. Quanto ao fato de partir de um poeta brasileiro o langamen- to de tas tipos de versos (e qu, se nada tinham de ousado na lin- ‘guagem, sugeriam, pela primeira vez, a existéncia de compor- tamentos sociais ainda nao reconhecidos), explicava-se pela mes- ‘ma razio por que, também na rea do povo mitido, era da col6- nia que chegavam as novidades: ao estruturar-se sem histéria an- terior e, portanto, menos submetida ao peso de regras € conven- Ges, a recente sociedade urbana brasileira mostrava-se muito mais dinamica em seu intercdmbio entre as classes. E era isso cer- tamente que se expressava na riqueza e originalidade das suas criages culturais, surgidas para atender apenas nova realida- de social do tempo. E tanto essas caracteristicas existiam e podiam ser detecta- das pelos contemporaneos mais atentos que, a0 referir-se ainda 8 agio (“prejudicial” de Caldas Barbosa sobre a educagao, 0 me- -morialista Ribeiro dos Santos saberia apontar no apenas nos ver 05, mas na posicao assumida pelo poeta, “a tafularia do amor, a meiguice do Brazil, ¢ em geral a molleza americana”.” Em Portugal, alias, essa originalidade estava destinada a durar pouco porque, ante o sucesso aleangado na corte pelo poe- » Os versos sio das eomposigdes de Domingos Caldas Barbosa int tuladas — pela ordem das citagaes — “Asseveragies baldadas", *Lundum de cantigas vagas”, “Bondades de amor”, “Desprezo da maledicéncia”, to Ulas do volume 2 da Viola de Lereno, publicado em Lisboa em 1826 (0 pr miro volume sara em 1798 também em Lisboa, » Wider Brasil Col6nia ta-compositor brasileiro, as modinhas e lundus, valorizados pelo fascinio de sua “molleza americana”, passaram a ser cultivados or compositores de escola e no momento mesmo em que impe- ava, avassaladora, a influéncia do bel’canto instituido pela épe- ra italiana. E, assim, quando a partir de 1792 comega a ser edita- do por A. Marchal Milcent em Lisboa o Jornal de Modinhas (que continuaria até 1795), a tafularia brasileita dos sincopados das ‘modinhas e lundus cantados por Domingos Caldas Barbosa havia desapareciclo nas composigdes escritas, em que o editor era fran- CBs, 08 autores portugueses e a misica quase sempicitaliaa,® No Brasil, a consequéncia dessa eruditizagao da modinha e do préprio lundu (que em certas pecas compostas ou harmoni- zadas por mestres contrapontistas quase niio mais permitia dife- Fengar um género de outro) irialevar, a partir do século XIX, a uma curiosa evolugio: a modinha e 0 lundu das partituras es tas por miisicos de escola tornar-se-iam pegas de canto para sa- las burguesas (onde em meados de Oitocentos o piano romanti- co desbancaria 0 cravo classico),? e as das violas populares —e "Esta “itafianizagio" da modinba posta em destaque por Mozart de Araijo ao eserever is pp. 47-8 de seu livro A modinha e o endie no século XVIIT (Sin Pano, Ricordi Braslcieay 1963}. A seyunnda merade do secule XVII 0 periodo que mas sensivel se torna en Portugel da iniluéncia da ‘pers italiana. Para a Iesliaeram enviados 0s melhores misicos e composi. {ores portugueses, E em Portugal, jd na inicio do século, depois de deixar o fargo de Mestre da Capela dle Séo Pedro de Roma para desempenhar a fun ‘40 na Capela Real de Lisboa, fora mestre da Infanta D. Maria Barbara, 0 préprio Domenico Scarlatti * 0 ctavo sera um dos instruments encontads pelo peronagem Perino dob de Nuno Marques Peri, mss strana ecole ce ic de Sadr do primed devia do culo XVI mmc da tas um organo, um era, xin monaco" (Compendia Neato Pe trrino da mies cit, oll. 39) Eps fin do aslo em 1992, re do ons Sir George Staunton visto o Ri de Janet sootou ques son caro anand mic pao a ol Domingos Caldas Barbosa logo dos violdes de rua — transformar-se-iam, respectivamente, ‘em cangdes de seresta (a modinha) e em cangoneta brejeira do teatro musicado e do repert6rio dos palhacos de cireo (o lundu), E a falta cle compreensito desse processo de diferenciagia sociocultural, alias, que levaria até hoje historiadores e musicolo 08 a permanecerem rodando a volta de uma divida manifesta da em 1930 por Mario de Andrade, quando, apés longas consi deragdes sobre as caracteristicas das modinhas escritas, resumia “Me perdi e esqneci o problema: A provenicncia erudita europeia das Modinhas é incontestavel. Por outro lado, os escribas antigos, referindo-se a formas populares, citamo lundum, o samba, o catereté, 0 chi- ba, a fofa, ete. por Brasil e Portugal, mas @ Modinha de que falam 6 sempre a de salao, de forma e fundo eruditos, vivendo nas cortes e na burguesia. Que eu saiba s6 no século XIX a Modinha é referida na boca do povo do Brasil. Ora, dar-se-é o caso absolutamen- te rarissimo duma forma erndita haver passado a po- ular? © contréicio 60 que sempre se da. Formas e pro- ©ess0s populares de todas as épocas foram aproveita- das pelos artistaseruditos e transformadas de arte que se aprecnde em awe que se aprende”. E logo apés voltava a diivida por ele levantada, para con- lui: “Pois com a Miodinha parece que o fenémeno se deu”."™ Segundo Mario de Andrade, pois, a modinha teria nascide como ‘Rénero de cangao erudita em meados do século XVIII em Portu- gal, como variante das modas portuguesas que se integravam A categoria geral das “cantigas” e, apés sua banalizagio durante 0 Império por “miisicos de fora, professores, virtuoses, comercian- "© Mario de Andracte, Modiabas imperiais, io Paulo, Martins, 1964, Brasil Colina ® biscatistas, principalmente vindos na esteira das companhias leas”, acabaria por vir a confundir-se, “as vezes integralmen- com a meldidica geral da popular”, !! Tivesse o grande poligrafo paulista lido atentamente a His- ria da Literatura Brasileira de Silvio Romero, porém, ¢ pode- a verficar que as modinhas populares urbanas do século XVI, ‘o género das divulgadas por Domingos Caldas Barbosa, jamais eixaram de ser cantadas no Brasil. Conforme revelava este his- Toriador da literatura, ao realizar durante a década de 1870 a Pesquisa de campo que Ihe permitiria publicar em 1880 seu le- Yantamento dos Cantos Populares do Brasil, pode comprovar “ane quase todas as cantigas de Lereno correm na boca do povo, ts classes plebeias, truncadas ou ampliadas”, Informagao que Aarrematava com a conclusio pessoal: tuando em algumas provincias do norte coligi grande cépia de cangdes populares, repetidas veres, colhi cantigas de Caldas Barbosa, como andnimas, re- petidas por analfabetos. Foi depois preciso compulsar as obras do poeta para expurgar da coleco andnima ‘0s versos que Ihe pertenciam, E.0 maior clogio que, sob © ponto de vista etnogrifico, oe the pode fazer.?1? O que se deve deduzir, assim, & que os dois géneros de can- tigas populares derivados dos estribilhos cantados da dana sat da dos batuques — caso do lund —, ou do amolecimento den- B0so da velha moda portuguesa a solo — caso da modinha —, coexistiram por todo o pais até ao século XIX, cultivados em eamadas sociais diferentes. As de ritmo mais vivo e melodia mais simples no canto a solo dos seresteiros, pelas ruas, as mais ela- " Dbidem, p. 9 "Silvio Romero, Histiria da Literatura Brasileira, Rio de Jancico, L Gamer, 1888 p. 305. Domingos Caldas Barbosa boradas ¢ harmonizadas no estilo do bel'canto, nos saldes.'5 [su até que a ampliagio da faixa da classe média urbana, tornando, ‘menos chocantes as diferengas sociais durante o II Império, view se permitir uma espécie de Fuso entre as duas formas, sob o nov estilo das modinhas romantico-sentimentais e do lundu humo tico (e as vezes obsceno] dos palhagos de circo e dos palquinhos Populares. E quem daria vor a essa sentimentalidade rom: Popularizando definitivamente a nova forma com o pernosticis: ‘mo mestico, seria a nova espécie urbana dos boéios cantores de modinhas, especialistas em serenatas. Apesar de Domingos Caldas Barbosa, pela circunstancia his ‘Orica da sua ida para Portugal, figurar sempre como 0 maior intérprete da vertente mais tipica desse primeico género de ca ‘edo popular do Brasil, pode afirmar-se que nao foi a tinico, ¢ cer tamente sua “tafularia” tinha escola, De fato, desde os tempos Greg6rio de Matos c seus companheiros de boémia dos fins de Seiscentos, os tocadores de viola cantores eram tantos que, a Jembrar a existéncia de leis proibindo “darem-se misicas de noi te pelas ruas das Vilas ¢ Cidades”, o moralista Nuno Marques Feira, apés afirmar ser no Brasil que estas deviam ser “mais hem cviradas ¢ castigadas” (“pelo profano das modas e mal soante dos conceitos”), eitava nfo apenas a voz que ouvira 4 noite cantar 0 estribilho “oh diabot”, mas enumerava outros casos. E entre ¢s tes estava o de certo soldado dda Bahia setecentista que, “a sua "3 Essa projegio da realidad da sociedade de classes nas formes de lazer urbano foi evidenciada por Afonso Rui em seu pexueno ensaio Botiivs « seresteiros do passado (Salvador, Livearia Progresso Faltora, 1954) quan do, 20 focalizar a ago dos seresteras baianos de meados do séeulo XIX, ex «creveus “Os trovadores baianos, nesse tempo, compunham dis prupamentos lstintos, inconfundiveis, aparcados pelas convengoes sociaise pelo exigen {¢ formalismoda época: cancioneiros a quem se abgiam os sales em brian "es saraus, e eresteros a que, ostensivamence, se fechavam as portas. Uns, tinham as palnas de uma assistncia de escol, outos, a repressi0 da poll. ia" (op. cit. WD, 28 Brasil Colénia a cantando ao som de uma viola”, depois que punha fim 20 teto, dizia por apoio da cantiga: Nao hi um raio para um trisce Que parta a um desdichado?!* © préprio Nuno Marques, alidés — apesar de todo 0 seu rismo —, tocava ele préprio viola e cantava (*E levantando- xe sem mais cetiménias, peguei em uma viola, ¢ depois dea tem- rar, cantei esta letra: Nesta palestra de solfa/ Que é do mundo ldria e pasmo/ Quero cantar seus louvores! E dizcr seus predi- idos"),15 além do pardo Joao Furtado, “famoso ¢ grande to- ‘eador de viola” amigo de Gregério de Matos, lembrava ainda 0 aso de um boricério de Salvador, que “por ser misico, costuma- Ya sair fora da cidade a cantar em algumas festas”, deixando ne- igentemente um escravo em seu lugar na botica. 4 Era gente como essa, pois, que a partir da metade do século XVIII — e nao jé apenas na Bahia, mas agora também na segun- da cidade socialmente mais diversificada e moderna do vice-rei nado, o Rio de Janeiro, desde 1763 elevado a capital da colénia = itia continuar a tradigao tanto das cantigas amorosas chama- dlas de modinhas, quant dus lunudus saciticos e algo pasquineitos. Lundus por sinal as vezes tdo irreverentes e atrevidos, que nessa segunda metade de Setecentos chegaram a ser proibidos pelo bis po frei Anténio do Desterro, provocando desde logo a resposta dos cariocas — tal como seria de esperar — sob a forma de um lundu, © epissdio é assim lembrado por Joaquim Manuel de Ma- edo em sew romance histérico As Mulheres de Mantilha: Nuno Marques Perera, Compenatio Narrative dea Peregrino da Amté- rea cit, vol, p. 46. ' tbidem, pp. 46-7. " Ibidem, p. 89, Domingos Caldas Barbosa boradas ¢ harmonizadas no estilo do bel’eanto, nos saloes."9 Isso até que a ampliag3o da faixa da classe média urbana, tornando ‘menos chocantes as diferengas sociais durante o II Império, vies- se permitir uma espécie de fusio entre as duas formas, sob © novo estilo das modinhas romAntico-sentimentais e do lundu humoris- tico (e As vezes obsceno} dos palhagos de circo e dos palquinhos populares. E quem daria voz a essa sentimentalidade romantica popalarizando definitivamente a nova forma com 0 pernosticis- mo mestigo, seria a nova espécie urbana dos boémios cantores de modinhas, especialistas em serenatas, Apesar de Domingos Caldas Barbosa, pela circunstancia his t6rica da sua ida para Portugal, figurar sempre como 0 maior intérprete da vertente mais tipica desse primeiro género de can- a0 popular do Brasil, pode afirmar-se que no foi o tinico, ¢ cer- tamente sua “tafularia” tinha escola. De fato, desde os tempos de Gregério de Matos e seus companheiros de boémia dos fins de Seiscentos, os tocadores de viola cantores eram tantos que, a0 Jembrar a existéncia de leis proibindo “darem-se miisicas de noi- te pelas ruas das Vilas ¢ Cidades”, o moralista Nuno Marques Pe- reira, apés afirmar ser no Brasil que estas deviam ser “mais bem evitadas e castigadas” (“pelo profano das modas ¢ mal soante dos conceitos"}, citava no apenas @ vor que ouvira 8 noite cantar 0 estribilho “oh diabo!”, mas enumerava outros casos. E entre es tes estava o de certo soldado da Bahia setecentista que, “ sua 5 Esa projegio da realidade da sociedade de classes nas formas de lazer urbane foi evidenciada por Afonso Ruiem seu pequeno ensaio Boéorios ce seresteiros do passado (Salvador, Livratia Progresso Edivora, 1954) quan do, 20 focalizar a ago dos serestoiros baianos de meados do século XIX, e creveu: “Os ravadores baianos, nesse tempo, compunham dois grupamenios istintos, inconfundives, apartados pelas convenes socais © pelo exigen| «e formalism da Gpoca: cancioneiresa quem se abriam os sales em brill tes saraus,e seresteios a que, ostensivamente, se fechavam as portas. Uns, tinham as palmas de uma assisténcia de escol, outros, a repressio da pol cla” (op. et pA}, Brasil Coli porta cantando ao som de uma viola”, depois que punka fim a0 quarteto, dizia por apoio da cantiga: ‘Nao ha um raio para um criste Que parta a um desdichado?! © proprio Nuno Marques, aliés — apesar de todo o seu tigorismo —, tocava ele préprio viola e cantava (“E levamtando- “me sem mais ceriménias, peguei em nma viola, e depois dea tem perar, cantei esta letra: Nesta palestra de solfa/ Que & do mundo sloria ¢ pasmo/ Quero cantar seus louvores/ E dizer seus predi- cados”),!5 além do pardo Joao Furtado, “famoso & grande to- cador de viola” amigo de Gregorio de Matos, lembrava ainda 0 aso de um boticério de Salvador, que “por ser miisico, costuma- va sair fora da cidade a cantar em algumas festas”, deixando ne- sligentemente um escravo em seu lugar na botica,!6 Era gente como essa, pois, que a partir da metade do século XVIII— e nao jé apenas na Bahia, mas agora também na segun- da cidade socialmente mais diversificada e moderna do vice-tei- nado, 0 Rio de Janeiro, desde 1763 elevado a capital da col6nia — iria continuar a teadigio tanto das cantigas amorosas chama- das de modinhas, quanto dos luulus satiricos e algo pasquineitos. Lundus por sinal as vezes tao irreverentes ¢ atrevidos, que nessa segunda metade de Setecentos chegaram a ser proibidos pelo bis- Po frei Antonio do Desterro, provocando desde logo a resposta dos cariocas — ral como seria de esperar — sob a forma de um lundu, O episédio é assim lembrado por Joaquim Manuel de Ma- cedo em seu romance histérico As Mulheres de Mantitha: ino Mrgu eC Nar dP de ica, cit., vol. Il, p. 46. . = * Ibidem, pp. 46-7 6 Ioudem, p. 89. Jomingos Caldas Barbosa “O bispo D. Fr. Anténio do Desterro nao podia escapar aos golpes do epigrama ¢ do ridiculo que cram as armas de oposicio dos desgostosos. Esse sibio e honestissimo prelado, zeloso da mo- ralidade do sew rebanho, fulminara um dia com os raios da sua reprovagio as cantigas demasiadamente livres que eram cantadas em companhias pouco dis- cretas, ¢ até recebidas e ouvidas com repreenstvel to- Terancia em sociedades estimaveis. Com efeito, o lundu, a cantiga folgasona, sarcés- fica, erdtica e muito popular exagerava os seus direi- 105, € ia is veres até a licenga, ofendendo, arranhando (08 ouvidos da decéncia, e contribuindo insensivelmente para a corrupgio dos costumes. Obispo D. Fr, Anténio do Desterro fulminou 0 Jundu demasiadamente obsceno. A oposigao popular reagiu, considerando conde- nado em absoluto todo e qualquer lundu, ¢ desrespei- tosa atacou 0 bispo com a arma do lundu. Em toda a parte cantou-se com aplauso 0 seguin- te lundu que se compunha de muitas coplas, cada qual ‘mais extravagante e zombercia: J nao se canta o lund Que no quer o senhor bispo. ‘Mas eu ja pedi licenga Da Bahia ao arcebis Ehei de cantar, E hei de dancar, Saracotear Com as mogas brincar. E impunemente, Cantando 0 lundu, Brasil Colénia Ao bispo furente Direi uh! uht uh! Fr. Anténio do Desterro, Quer desterrar a alegria; Mas eu sou patusco velho, E teimarei na folia # hei de cantar, E hei de dangar, Saracotear Com as mogas brinear. E impunemente, Cantando o lundu, Ao bispo furente Direi uh! uht uht™t7 Ora, se desde inicios do século XVII nio faltavam vozes Populares nas cidades para a interpretacdo a viola de modinhas ¢ lundus como esse, certamente subordinados & evolugao ritmi. co-mel6dica popular espontinea, mao haveria por que estranhiar ‘vexplosdo romantica das eangoes seresteiras na segunda metade do século seguinte. Em vez de imaginar 0 caso singular ¢ dnico ta sibita adoxao, pelas eamadas populares, da “hanalizagto” do ..) Joaawin Manuel de Macedo, As Mulberes de Mantilba, romance Histirico, Rio de Janeiro, Oicinas Grificas do Jornal do Brasil 1981, vol Ih P. 9. O romancisa revela, na introdugdo a esse seu romance de 1870; noe Hentado no Rio de faneiro do tempo da administragio do conde da Canhy 765-1767), ter tido como informance para conhecimento dessa ¢ outras lnges do tempo “um velho octogenitio, fel herdeiro de recor aga . leiro de recordagses, que foram lepadas”. Essa circunstincia confere i citagao o valor de um des mento, ¢ que serve als & confirmagio de que tanto o lund quanto a inks tiveram suas vers0es populares exercitadas sem inven Peo a Indo formas eruditas culkivadas nos saldes das classes mais aleas, ingos Caldas Bacbosa nd 09 vs

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