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CHANTECLER

Discretamente admirei minha esposa por dias, como se pudesse gravar seus gestos e levá-los
comigo no período em que estarei ausente. Não teria palavras que pudessem traduzir meu
sentimento e assim amei mais e melhor no silêncio.

Tomo a estrada e vou a São Paulo numa quinta, trabalho na manhã de sexta e à noite embarco
para Seul, com troca de aeronave em Dallas, para chegar no domingo ...Enquanto sobrevoamos
Barrow, quase deixando o Alasca para trás, reflito sobre os coreanos, que predominam
largamente entre os passageiros. Sua culinária agressiva, que aprecio, já deu sinal de vida no
almoço servido a bordo. Na primeira vez fui por Dubai, agora sigo a rota que incluirá Vladivostok
para finalmente aterrissarmos na península coreana.

Longas horas, preenchidas com vinho tinto, filmes e leituras de bordo, como uma matéria na
revista Nexos sobre a porto-riquenha Rita Moreno. Ganhadora do Oscar em 1962 por seu papel
em West Side Story, não faria cinema por sete anos porque o que lhe ofereciam era sempre a
mesma coisa, a mulher latina e sexy: “Era muito deprimente, muito degradante e me deixou
muito triste”.

Assisti “Aftermarh”, sobre a Alemanha no pós-guerra, com excelente desempenho de Keira


Kgnightley e sobretudo de Jason Clarke e “All is true”, sobre o final da vida de Shakespeare,
começando pelo incêndio supostamente criminoso do “Globe Theatre”, quando era encenada a
peça “Henrique VIII”. O dramaturgo havia sido admoestado a mudar o nome da peça,
implicitamente danoso à imagem do baixote que em prol de seus deleites criou uma igreja e
matou Ana Bolena e Thomas More.

O incêndio do teatro lembra o que governos tirânicos faziam com a imprensa escrita quando esta
os incomodava. No tempo em que os periódicos eram compostos tipo a tipo a barbárie lançava
ao chão as gavetas das bancadas. O ato bárbaro tomava o nome de empastelamento.
Reorganizar a redação era muito penoso ou mesmo impossível. Quase nada mudou. Um veículo
que não bajula, não tece loas a administrações medíocres ou mesmo criminosas não contará
com verbas publicitárias. É a forma de domesticar a imprensa, privilegiando versões e não a
realidade.

Depois do incêndio de seu teatro Shakespeare não mais escreveu. Diante de sua monumental
obra talvez não devamos lastimar a perda do que não houve. O filme revela a dor do bardo pela
perda de seu filho Hamnet, um nome curiosamente próximo de Hamlet, seu personagem mais
famoso.

Ainda em Dallas conversei com minha esposa e filha mais nova. Nos valemos das maravilhas
tecnológicas e falamos com imagem. Algo extraordinário para os filhos de uma geração recém
saída do lombo de burro. Conversar com imagem era algo da ficção, presente apenas no
cinema. Assim acontece que a cada lustro a ficção vira realidade. O que não muda é o amor,
representado de forma sublime na família. A levo no peito, a dez mil metros de altura sobre a
Rússia. Dizem que ninguém é insubstituível e que, ironicamente, os cemitérios estão repletos de
imprescindíveis. Isto pode ser verdade para posições de trabalho, dirigentes, funcionários, mas
sequer arranha a verdade quando se trata do amor.

Edmund Rostand teve um achado genial com seu galo Chantecler. Cantava a plenos pulmões
antes da aurora e acreditava que era responsável pelo nascimento do sol. Certo dia dormiu
demais e descobriu que era mais que insubstituível. No que dizia respeito ao sol, era
desnecessário.

No silêncio dos dias que antecedem uma viagem longa, cheia de desafios profissionais e mesmo
geográficos, com longos deslocamentos terrestres nos Estados Unidos, meu peito, com seus
mais de sessenta anos, pode gritar que minha esposa é insubstituível. Que venha a Coréia, com
sua culinária picante e tecnologia de ponta, num mundo competitivo como nunca, em que a
descendência de Chantecler já se foi.

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