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IOTICA DA NARRATIVA BIBLICA “A PROVA DE ABRAAO” Karin Adriane Henschel Pobbe RAMOS (FCL — UNESP - Campus de Assis) RESUMO: Neste trabalho fazemos uma andlise semidtica de uma narrativa biblica da prova de Abraio, registrada no livro de Génesis, capitulo 22. Seguimos a teoria proposta por Greimas em sua ciéneia da significagdo, que procura tragar 0 percurso gerativo do sentido a fim de decifrar o cédigo do texto e entender seu significado profundo. A andlise consiste no reconhecimento das isotopias da narrativa, que levam a articulago do quadrado semiético da estrutura profunda, No caso da narrativa da prova de Abraio, destacamos como principal a isotopia religiosa, baseada na oposigio divino versus humano ¢ homologada pelos semas ilimitado versus limitado. ABSTRACT: This study analyses by using the semiotic theory a biblical narrative of the Abraham's proof registered in Genesis, chapter 22. For the analysis we follow the theory purposed by Greimas in his science of signification that aims the generative process of meaning in order to find the text’s code and understand its deep structure. The analysis consists in find the narrative’s isotopies that carry to the deep structures by the semiotic squares articulation, In the Abraham’s proof the main isotopy is the religious based in the opposition between divine versus human, homologated by the opposite semes unlimited versus limited 1. Introdusao Neste trabalho, temos como objetivo analisar a narrativa biblica “A Prova de Abrado”, segundo 0 ponto de vista da teoria semistica. Nosso intuito € pér em pratica a teoria semistica na anélise de uma narrativa biblica a fim de oferecer aqueles que se interessam pelos textos da Biblia mais um modelo de abordagem que acreditamos ser muito eficaz para a elucidagao do seu sentido. Trataese de um trabalho de aplicagdo de modelos semisticos ja elaborados para experimentagdo e verificacdo, Contribui também para a formagao de um leitor mais eritico e perspicaz, capaz de abstrair o significado profundo daquilo que Nesse sentido, concordamos com Greimas (GROUPE D’ENTREVERNES, 1977, P. 227), quando afirma que a Semistica tem se mostrado uma metalinguagem neutra para se analisar narrativas biblicas cocupando-se da significagdo do texto, sem se deixar influenciar por correntes ideolégicas ou manifestagdes puritanas € moralistas, que se utilizam dessas narrativas como um meio de apregoar seus ideais de opressto. Acreditamos, portanto, que a teoria semidtica é capaz de nos fornecer as ferramentas para uma andlise eficaz € coerente dos episédios registrados na Biblia, Nao se trata, no entanto, como adverte de fazer o texto entrar no modelo, mas de aplicar 0 modelo como instrumento de descrigao ao texto em andlise, decompondo-o em niveis até desvendar sua estrutura e articulagao, O objetivo do modelo semistico é, portanto, descrever o sistema a partir do qual os efeitos de sentido reconhecidos na leitura podem ser reencontrados e descritos ‘A narrativa que iremos analisar € mais comumente conhecida no meio cristo como “O Sacrificio de Isaque”. No entanto, preferimos denomind-la de “A Prova de Abrado”, a fim de evitar a ambiguidade do titulo anterior. Trata-se do episédio em que Deus pede a Abrado que va até um dos montes da terra de Morid € ali oferega seu filho Isaque em holocausto. Esta registrada no livro de Génesis, capitulo 22. A nasrativa segmentada para 0 corpus apresenta-se como um segmento auténomo, que se impSe como uma seqiiéneia relativamente fechada em si mesma, como um todo de significagdo, com estruturas reconheciveis, possibilitando manifestagSes figurativas. Logo, trata-se, em primeira instncia, de uma delimitagio na totalidade discursiva ‘A prova de Abrado ¢ uma histéria bastante polémica e pode causar algum constrangimento aqueles que se dispdem a estudé-la ingenuamente. Para Scliar (2001, p. 20), € “um dos episédios mais dramiticos da narrativa biblica”. Como justificar a atitude de um Deus que exige o sacrificio de um filho? 1542 ‘A esse respeito, Champlin comenta: Ficamos desolados diante do vigésimo segundo capitulo de Génesis, Nenhuma explicago pode alivid-lo de uma demonstragao de uma religido primitivista, Mesmo que Abra3o tenha crido sinceramente, que Deus requerera dele um sacrificio humano, ¢ isso de seu proprio filho, € impossivel erer que Deus the tenha dado, realmente tal mensagem, Abraio teria agido em boa fé; mas o Senhor no estaria vinculado questo, sab hipetese alguma. “bvio, pois, que Abraio ainda retinha tragos de selvageria e paganismo em sua fe, apesar de seu grande avango espiritual. Podemos extrair do relato muitas boas ligSes morais, mas € catastrético para a fé religiosa s8, a suposigdo de que Deus, sob qualquer circunstineia ou azo, tenha ordenado que se fizesse sacrificio humano, (CHAMPLIN, 2001, p. 5204) Kierkegaard, polémico pensador do século 19, encara seu drama pessoal como semelhante a0 de Abraao conduzindo Isaque ao lugar do sacrificio, ressaltando o paradoxo dessa atitude: Ele [Abrado] s6 sacrifica Isaque no momento em que o seu ato esti em absoluta contradigo com o sentimento, todavia, com a realidade de sua agao, ele pertence ao Universal e, nessa esfera, ele € © permanece sendo um assassino, (KIERKEGAARD, apud_ VITIELLO, 2000, p. 153) Muitos assumem uma posigdo de ceticismo e preferem acreditar que a narrativa relata um fato nao historico, uma lenda, Outros atribuem-no ao cariter mitico do heréi Abrado Vitiello, numa atitude mais extremista, chega a afirmar: © Deus judaico & um Deus ciumento, que ndo quer dividir sua gente com nada nem ninguém. Por isso, separa a sua nagdo — a que sera a sua nagdo — até da terra dos ancestrais, dos afetos, dos hibitos, dos costumes da familia ¢, portanto, das divindades que habitam aguela terta.[...] Deus ciumento que distancia. Nao somente da terra dos ancestrais, mas também dos dons que Ele proprio prové. Concedeu a Abrado e Sara, ja velhos, que tivessem 0 filho prometido, Mas, para que o amor do filho ndo diminua a dedicasdo a Ele, ordena o extremo sacrificio. (VITIELLO, 2000, p. 152) Para Auerbach, 0 texto do sacrificio de Isaque pode se visto como um épico que influenciou a representagdo européia da realidade ¢ cujo estilo pode ser sintetizado como: [..] realgamento de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexdo, efeito sugestivo do tacito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretagao, pretensio universalidade histérica, desenvolvimento da apresentago do historicamente devinte e aprofundamento do problematico, (AUERBACH, 1971, p. 20) ‘Tendo em vista as reagdes polémicas e a especial atengtio que o texto tem despertado até os dias de hoje, € que nos propomos analisar a narrativa & luz da teoria semiética, no intuito de tentar explicar, por meio do percurso gerativo do sentido as aparentes contradigdes que 0 fato narrado inspira e assim, responder a questo que se impde: Quem quer ter um pai como Abrado? Quais os limites entre a f€ e a razao que levam um pai ater a coragem de imolar 0 proprio filho? Utilizaremos para o presente estudo a versio de A Biblia Sagrada, traduzida em portugués por Joo Ferreira de Almeida, em sua edigdo revista e atualizada, 2. Abordagem metodolégica da teoria semistica Antes de procedermos a analise julgamos necessario esclarecer 0 que vem a ser a Semiética, quais os principios basicos que a fundamentam e quais sdo os caminhos que nos levam a tragar o percurso gerativo do sentido de uma narrativa recimentos so necessarios na medida em que contribuem para a divulgagao da teoria semidtica, uma vez que 0 nosso trabalho tem também um carter multidisciplinar, ainda que esse ndo seja 0 nosso objetivo principal 1543 Partindo do principio de Saussure de que “na lingua s6 existem diferengas” (SAUSSURE, 1970, p. 139) e da classificagao que Hjelmslev (1975) faz da linguagem, segmentando-a em substéncia e forma da expresso, e substincia e forma do conteiido, a teoria semistica € um instrumental metodolégico que serve para explorar o sentido e descrever a significagdo de um texto, situado no campo da forma do contetido, sem, no entanto, desprezar o plano da expresso, que ¢ condigdo para a manifestagao do conteudo. Um texto, para os semioticistas, ¢ tudo aquilo que tem uma significagdo passivel de descrigio & anélise, seja ele verbal ou ndo-verbal. A Semidtica, portanto, oferece um instrumental tedrico para a andlise tanto de narrativas, literdrias ou ndo, quanto de pinturas, musicas, esculturas, filmes et. Quanto a sua metodologia, a Semidtica é uma ciéncia derivada da Linguistica, mais especificamente da Linguistica desenvolvida na Europa, sobretudo na Franga, onde a linguagem ¢ considerada como um fato social € 0 material concreto de que se utiliza so as linguas naturais. Tem como objetivo estabelecer uma articulagao de significado comum a qualquer tipo de manifestagdo lingtifstica ‘A semistica é, portanto, uma metalinguagem que vai além da simples pardfrase, mas transpde um nivel de linguagem em outro, baseada no principio da pertinéncia definido pelos tragos distintivos comuns aos objetos estudados. Uma andlise semiética baseia-se, pois, na busca das estruturas que compdem o chamado percurso gerativo do sentido. Conforme Santana (in AZEREDO, 2001, p. 136), a teoria semidtica consiste em “projetar uma estrutura subjacente a postular uma sequéncia de patamares de explicitagdes aleangando, a0 Jongo de um percurso gerativo, a superficie de formas” De acordo com Greimas e Courtés (1979, p. 209), 0 percurso gerativo do sentido € composto por duas macroestruturas: estruturas discursivas e estruturas semionarrativas, sendo que as estruturas discursivas sao consideradas as menos profundas ou mais superficiais, ¢ as estruturas semionarrativas, por sua vez, dividem- se em dois patamares, um nivel narrativo ou superficial € outro profundo. Cada um desses patamares (0 narrativo profundo, o narrativo superficial e 0 discursivo) que constituem © percurso gerativo do sentido esta dividido em uma sintaxe e uma semantica 'Nés, porém, basearemos nossa anélise nos niveis propostos pelo GROUPE D"ENTREVERNES (1980, p. 9), que sto: nivel superficial, que engloba uma componente narrativa e uma componente discursiva, ¢ nivel profundo, que se baseia em uma rede de relagdes seménticas e um sistema de operagdes logicas. Seguindo a proposta de andlise semidtica do GROUPE D’ENTREVERNES (1980), temos a estrutura profunda, que engloba o estudo dos semas, das isotopias ¢ a estruturaedo e aplicagdo do quadrado semidtico ‘A estrutura profunda comanda, articula e ordena as estruturas superficiais (narrativa e discursiva), ‘A anilise sémica ou estudo dos semas reproduz as significagdes percebidas através do chamado efeito de sentido. Os semas podem ser nucleares ou contextuais (classemas). Os semas nucleares so tragos que definem uma figura, com um niicleo sémico estavel. Os classemas so tragos sémicos que aparecem nas figuras contextualizadas, Essa andlise sémica permite identificar as isotopias da narrativa, que formam um plano comum, tornando possivel a coeréncia do texto, por meio da permanéncia dos tragos minimos, Finalmente, a estruturagao e articulagao do quadrado semiético, que possibilita, por meio de um modelo légico, representar a rede de relagdes do texto e visualizar sua significagdo, através de um jogo de diferengas e oposigoes. 3. Anilise sémica ‘A aniilise sémica nos permite identificar a organizagdo da forma do conteiido, através da identificagao dos lexemas (palavras isoladas) recorrentes, que realizados no discurso transformam-se em sememias e so formados por um nicleo sémico (invariavel) e um sema contextual (varidvel). Entre os sememas recorrentes no texto, temos figura do holocausto como uma das que mais apare superficie do discurso, Podemos conti-la seis vezes em toda a natrativa Holocausto é uma palavra de origem grega e quer dizer “holos”, inteiro, e “kaustos”, queimar, ou seja de acordo com o dicionario Houaiss, um sacrificio em que a vitima ¢ queimada inteiramente. E 0 equivalente do termo hebraico “olah”, que, segundo Champlin (2001, p. 4433), significa “trazido a Deus”. O holocausto era um ritual dos povos semitas, incluindo os hebreus, em que os animais, depois de imolados e terem seu sangue derramado, cram consumidos em sua totalidade pelo fogo até tudo virar cinzas. Aqueles que realizavam essa pratica acreditavam que 0 sangue é a vida da came e assim procediam para expiagao pelos 1544 seus pecados, pois, de acordo com a Biblia, 0 pecado deve ser pago com a morte, Como esti escrito em Romanos 6:23: “O salario do pecado é a morte” holocausto €, portanto, um ritual de morte para a vida e o sangue constitui o objeto modal para se alcangar o objeto valor, que & a expiagdo. Trata-se de um ato viedrio, substitutivo, em que uma vida & sacrificada para isentar outras do sacrificio. Quanto a temporalizagao, & um processo terminativo de morte para o sacrificado ¢ incoativo de vida para os que se beneficiam do sacrificio. Portanto, o holocausto aparece com duas fungdes diferentes: ¢ ao mesmo tempo, morte para o sacrificado © vida para 0 que sacrifica Examinando a figuratividade no texto, percebemos que 0 holocausto exerce uma dupla atividade: aproxima Abrado de Deus, por meio da demonstragao de obediéncia e temor, e faz com que sua familia nao acabe, mas tenha a sua descendéncia garantida e multiplicada De acordo com Greimas (1993, p. 33), “em um espago mortal, assimilado a um estado duravel permanente, a vida, qualquer que seja a sua forma, ndo é sendo 0 inicio da morte”. No caso do holocausto, a morte é 0 inicio da vida. Podemos dizer que o semema holocausto tem como sema nuclear, ou seja, como niicleo sémico estivel, o derramamento de sangue para a expiagdo e como sema contextual, ou seja, como trago sémico que aparece no contexto, a substituigdo ou escape. O que justamente diferencia 0 holocausto da narrativa da prova de Abrado dos demais holocaustos ¢ o fato de a oferta ter sido substituida antes da sua imolagio. Nao podemos também afirmar que tenha sido facil para Abraao, pois, apesar de estar certo de que Deus agiria, cla no sabia exatamente como ele agiria, A performance de Abrado se desenrola na ténue linha entre f€ e ra filho aparece como outro semema recorrente no texto, Podemos conté-lo doze vezes na narrativa Segundo 0 dicionério Houaiss, filho € o descendente do sexo masculino em relagao aos genitores de que se origina. E essa figura que garante a isotopia da perpetuidade, o que caracteriza uma espécie de vida eterna, uma vez que 0 cédigo genético de um individuo € transmitido aos seus descendentes. A figura do pai também esté embutida nesse universo figurativo, Ele é aquele que gerou e, por isso, tem a autoridade para decidir sobre o futuro do filho. Ao mesmo tempo, vé na obediéncia a Deus 0 futuro de sua descendéncia comprometido. ‘0 semema filho tem como sema nuclear descendente do sexo masculino, € como semas contextuais 0 bem mais precioso e a promessa de uma grande descendéncia. Isaque nao era um filho qualquer, mas era 0 filho através do qual Deus havia prometido a Abrado uma grande descendéncia, Podemos entender o estado de espirito de Abraio ao ter de renunciar a Isaque para obedecer a Deus. Trata-se, conforme Greimas (1993, p. 213), de um “estado de consciéncia doloroso, causado pela perda de um bem”, situado na dimensdo cognitiva e nao é causado exatamente pela perda do bem, mas pelo /saber/ sobre a perda que vita ‘A provisdo do cameiro introduz um novo programa narrativo, com um novo percurso figurative, de cardter euforico de escape para Isaque. Esse pivé transformacional permite a instalagdo da figura do camneito, baseado nos semas animal € comum, comparado a Isaque, humano € Unico, O cordeito, objeto ambiguo na fala de Abrado, surge como um catneiro, representago figurativa da expiagao, 4. Isotopias As isotopias de um texto relacionamse com as categorias sémicas dos valores axiolégicos. Segundo Bertrand (2003, p. 185), as isotopias esto relacionadas com o desdobramento das categorias semanticas ao longo do discurso, Apdiam-se na recorréncia dos elementos de signifieagdo e permitem interpreti-los, designando a repetigao dos semas ¢ provendo a sua progressio ao longo da narrativa, assegurando, assim, a coeréncia do texto. Uma andlise textual, do ponto de vista da teoria semidtica, consiste, portanto, em identificar a isotopia ou as varias isotopias que determinam a significagéo global de um texto, hierarquizando-as, quando for necessério, De acordo com Bertrand (2003, p. 188), as isotopias podem ser figurativas, relativas aos atores, tempo e espago; ou temiticas, relativas aos valores axiolégicos. As isotopias figurativas sobre as quais recai o nivel discursive ¢ que so responsdveis pelos percursos figuratives, so: a jomada ¢ o monte, por meio do deslocamento, relacionados ao espago, a perpetuidade, ligada ao tempo, e a familia, em relagdo aos atores. A isotopia figurativa do monte, discursivizada pelo Monte Jeové-liré, na narrativa da prova de Abrado 1m lugar de morte vicaria para a vida. E 0 espago da provisé de Deus, por meio da substituigdo, em que 0 1545 carneiro assume o lugar de Isaque, softe e morre em seu lugar. O monte ¢ o lugar em que o altar é erigido. E também o espago que permite a aproximagéio entre Deus e Abrado. © percurso figurativo do deslocamento revela uma isotopia figurativa espacial de movimento e mudanga de lugar, de cardter ascendente de subida a um monte. Quanto isotopia temitica, esse deslocamento tem um valor de mudanga, transformacao. E a partir do deslocamento que Abraio inicia sua demonstragdo de obediéncia que o fara pai de uma grande nagdo, sonsiderarmos o percurso figurativo do holocausto, podemos identificar uma isotopia figurativa de morte pela recorréncia dos semas nucleares de sacrificio, imolag3o e consumagdo da matéria. Quanto a isotopia tematica, podemos concluir que se trata de uma isotopia religiosa, calcada no classema de oferecimento do bem mais precioso a uma entidade divina, em um ritual de ligagdo entre Abrado e Deus. No entanto, para entendermos essa isotopia religiosa, devemos tomar como base o sentido etimolégico da palavra religido. Derrida (DERRIDA; VATTIMO, 2000, p. 50) admite duas fontes etimoldgicas possiveis para religio. A primeira, de tradigdo ciceroniana, & relegere de legere, que quer dizer colher, juntar, 0 que results em recolher ou rejuntar. A segunda ¢ religare de ligare, que significa ligar, resultando em religar. Para Bueno (1967, p. 3452), 0 termo vem do Latim “religio, religionis, do tema de religare, ligar outra vez, ou melhor ligar fortemente onde 0 pref. re ¢ intensivo”. Benveniste (apud DERRIDA; VATTIMO, 2000, p. 54) propde para 0 termo religiio a tradugdo de “recoletar, retomar por meio de uma nova escolha, reexaminar um procedimento anterior”, relacionando-o a re-spondeo, ou seja, resposta. Trata-se de focos distintos, mas que, a0 mesmo tempo, se completam, uma vez que ndo ha religagdo sem o vineulo proporcionado por uma escolha, efetivada através de uma resposta: “Eis-me aqui”. No entanto, para estabelecer essa ligagao novamente, Abrado precisava provar a sua obediéneia a Deus ‘A partir dai temese a figura do holocausto como o ritual que proporciona essa religago através do derramamento de sangue para o perddo, que remete ao tema do sacrificio, que, por sua vez, revela a isotopia da obediéncia, estabelecendo uma relagao hipotaxica entre os programas narrativos, Temos, entaio, que o contetido axiolégico da obediéncia, inicialmente virtual, é atualizado por meio do estabelecimento do holocausto, criando uma conotagao disférica, reiterada pelos signos de denegagao: lena, fogo ¢ cutelo. O didlogo entre Isaque ¢ Abraio intensifica a disforia. O /queret-poder-saber/ de Isaque sobre onde estava 0 animal para ser oferecido em sacrificio cria uma atmosfera de morte iminente, A disforia & entre o /ser/ e 0 /parecer/ A obediéncia de Abrado € motivada pela fé, que caracteriza sua fidelidade. Fidelidade deve ser entendida como uma postura de ndo deixar de cumprir um compromisso firmado, mesmo diante de fortes argumentos contrarios e situagdes adversas. Somente assumindo essa postura Abrado seria capaz de entregar © seu préprio filho como sacrificio a Deus ‘Através de sua fidelidade, Abrado consegue a aprovagdo diante de Deus, confirmando sua obediéncia e recebendo assim a béngdo de Deus, ndo s6 para ele, mas para os seus descendentes e, por conseguinte, para todas as nagdes da terra ‘A obediéncia, por sua vez, desencadeia a isotopia da substituigdo ou escape, resultado da provisdo de Deus. O carneiro homologa a passagem da isotopia da obediéncia para a isotopia da substituigdo. Todo 0 cariter disférico de morte iminente da narrativa é transformado em euffrico a partir do momento da substituigo. Essa performance garantiu a Abraio a promessa perpetuidade através da multiplicagao de sua descendéncia, o que nos remete 3 isotopia maior de eternidade ‘A substituigdo também remete a uma isotopia de liberdade, figurativizada, primeiramente por “amarrou Isaque seu filho, e depois pelo careiro que aparece “preso pelo chifie entre os arbustos”. A. provisdo do carneiro possibilita a soltura de Isaque. A isotopia figurativa de familia esté representada pela relagdo pai ¢ filho ¢ reforgada pela énfase dada ja. O percurso figurative da familia tem uma isotopia figurativa social de multiplica outra isotopia figurativa temporal de descendéncia, uma vez que as geragdes ocorrem na linha do tempo € marcam sua passagem. A isotopia tematica é, entdio, como ja salientamos anteriormente, a perpetuidade © a expansio, pois através de seus descendentes Abrado teria uma numerosa familia, prolongada através de suas Estamos, portanto, diante de uma narrativa plurisotépica, ou seja, um todo significative que se organiza em tomo de uma rede de isotopias hierarquizadas, que nos permite depreender 0 significado do texto 1546 Quanto as isotopias de tempo e de espago, figurativizadas na narrativa pelas metéforas de estrela e areia, podemos identificar como semas contextuais incontavel, incalculavel e imensuravel. Nao ha quem possa definir, calcular ou medir a quantidade de estrelas do céu bem como a quantidade de grdos de areia na praia. Essa profecia, diacronicamente, estende-se para a descendéncia de Abrado, que seré perpétua, mas ‘também, numa dimensdo sincrdnica, age como um intensificador da béngdo. ‘A obediéncia ¢, portanto, um formante embreador que desencadeia a agdo ilimitada de Deus sobre 0 ser humano, que € limitado, Abrado foi obediente e no impés limites para demonstrar sua obediéneia; logo, Deus empenhou sua palavra para abengoé-lo ilimitadamente. E bom salientar, que essas isotopias esto entrecruzadas e podem ocorrer dentre de um mesmo percurso figurativo. Tais diferentes redes de significagdo permitem reconhecer articulagdes semelhantes, pois uma mesma oposigdo seméntica pode ser colocada sobre planos semiolégicos diferentes, chamados de homdlogos. 0 trabalho da andlise semidtica consiste em descobrir as articulagdes homélogas que permitem construir valores semanticos elementares que organizam a significagdo do texto, Assim, temos os valores temiéticos de espiritualidade, obediéncia e perpetuidade, homologados pela oposigdo entre ilimitado e limitado. 5. Quadrados semidticos ‘A partir da andlise sémica, podemos proceder & construgdo da estrutura elementar de signifi quadrado semistico, 0 qual esta fundamentado na relagdo canénica, instituida por Aristételes, de contradigao e de contrariedade, através das operagdes de negagao ¢ afirmagao, estabelecendo 0 que € euférico € 0 que é disforico, ¢ representando, assim, o nivel profundo da significagdo do texto em andlise © nivel profundo “procura dar conta do modo de existéncia e do modo de funcionamento da significagdo” (GREIMAS; COURTES, 1989, p. 433) mediante a articulagdo dos quadrados semisticos, os quais estao baseados, como ja dissemos, nas operagdes de negacdo e de assergdo, Através de uma rede de interdefinigdes, os valores seménticos e os termos que os designam sao entrelagados. E a forma primeira das estruturas do nivel profundo, que esto transformadas em arquitetura narrativa no nivel superficial ‘A andlise da estrutura profunda da narrativa do sacrificio de Isaque revela-nos o valor da obediéncia, ou seja, erer que Deus ¢ superior 20 homem, pois é o provedor e que para ele ndo ha limites. Na verdade, a obedigneia ¢ um sentimento virtual capaz de, uma vez atualizada, mudar o curso das realizagdes. Portanto, temos: (2) QUADRADO SEMIOTICO DO DESLOCAMENTO Estatico —a— Monte Berseba Alto Baixo subida descida Ve Dinamico Em (1), Monte/Alto ¢ Berseba/Baixo mantém uma relagdio de pressuposi¢ao reciproca, posto que o Monte é 0 destino do deslocamento e Berseba ¢ 0 ponto de pattida e o ponto de chegada apés 0 retorno; Monte ¢ descida esto em relagdo de contraditoriedade, uma vez que um é a negagdo do outro, Berseba € subida também estio em relagdo de contraditoriedade, Monte ¢ subida configuram a elevaedo, num movimento de causa e efeito, Berseba e descida configuram a planicie 1547 (2) obediéneia holocausto vida de Isaque morte de Isaque no-morte de Isaque ndo-vida de Isaque substituigdo nao-obedigneia Nao-sacrificio de Abrado Em (2), obediéncia/vida de Isaque © holocausto/morte de Isaque mantém uma relagdo de pressuposigdo reciproca, uma vez que, € em obediéncia a Deus que Abrado esté disposto a realizar 0 holocausto de Isaque; obediéncia/vida de Isaque e ndo-obediéncia/ndo-vida de Isaque esto em relagdo de contraditoriedade, uma vez que um & a negagio do outro, holocausto/morte de Isaque € substituigdo/niio- morte de Isaque também estio em relagdo de contraditoriedade no sentido de que a provisdo do cameiro isenta Isaque do holocausto, Obediéncia/vida de Isaque e holocausto/morte de Isaque configuram o sacrificio de Abrado, em uma relagao causa e efeito. Substituigdo/ndo-morte de Isaque € nio-obediéncia/ndo-vida de Isaque configuram o ndo-sacrificio de Abrado. (3) QUADRADO SEMIOTICO DA DESCENDENCIA, (Visio aspectual) Durativo: Isaque holocausto/Isaque continuidade descontinuidade ndo-descontinuidade nao-continuidade substituigdoeameiro ofertallsaque Nao-dirativo Em (3), Isaque/continuidade € holocausto de Isaque/descontinuidade mantém uma relagdo de pressuposigo reciproca, posto que, com Isaque sacrificado, @ continuiagdo da descendéncia de Abrato estaria comprometida; Isaque/continuidade e oferta de Isaque/ndo-continuidade estio em relagiio de contraditoriedade, uma vez que um é a negagdo do outro: holocausto de Isaque/descontinuidade € substituigdo/ndo-descontinuidade também esto em relagdo de contraditoriedade, a proviso do careiro possibilita 0 comego de uma descendéneia multiplicada para Abrado. Isaque/continuidade ¢ holocausto de Isaque/descontinuidade configuram 0 aspecto durative de continuo ou descontinuo para a descendéncia de Abrado, em uma relago altematividade, Substituigdo/ndo-descontinuidade e oferta de Isaque/no- continuidade configuram 0 aspecto ndo-durativo da ndo-descendéncia de Abraao. 1548 (4) QUADRADO SEMIOTICO AGAOISANCAO Holocausto/Deslocamento obedi niio-béngdo ndo-obeditncia jane ‘Nao-holocausto/Nao-deslocamento Em (4), obediéncia e bén¢o mantém uma relagdo de pressuposigtio reciproca, posto que, sem a demonstragdo da obedigncia ndo se alcanga a béngdo de Deus, obeditneia e ndo-obeditneia esto em relagdo de contraditoriedade, uma vez que um é a negago do outro; béngdo e no-béngdo também esto em relagdo de contraditoriedade. Obediéncia e béngdo configuram o deslocamento eo ritual do holocausto, numa relagdo de causa ¢ efeito, e ndo-obediéncia e ndo-béngao, o ndo-deslocamento e 0 ndo-holocausto. (5) QUADRADO SEMIOTICO AGAO/SANCAO, Familia _—_— filho descendéncia ndo-descendéncia ndo-filho Naocfamilia Em (5), filho e descendéncia estaio em uma relagaio de pressuposicdo reciproca, uma vez que 0 filho é condigdo necessaria para a descendéncia; filho e ndo-filho esto em uma relagdo de contraditoriedade, ja que um & a negagdo do outro; sendo assim, descendéncia e ndo-descendéncia também estabelecem uma relaggo de contraditoriedade. Filho ¢ descendéncia estdo na dimensio da familia e ndo-filho € ndo-descendéncia esto na dimensto da ndo-familia, ‘A figura do filho tem um carater polissémico, pois se encaixa em varias isotopias, enriquecendo-se cada vez mais com efeitos de sentido diferentes. Assim, dentro do texto, as “estrelas do céu” e a “areia na praia do mar” sdo figuras que remetem & multiplicagao dos filhos. Ndo mais a limitagdo do filho nico sacrificado, mas um niimero ilimitado de descendentes. 1549 (6) QUADRADO SEMIOTICO AGAOISANCAO Obediéneia —_— ofertcer receber iio-receber niio-oferecer a, ‘Nao-obediéneia Em (6), oferecer e receber também mantém uma relagio de pressuposigdo reciproca, confirmando 0 Principio biblico “dai © dar-se-vos-d” (Lucas 638), oferecer ¢ ndo-oferecer estio em relagdo de contraditoriedade assim como receber e ndo-receber. Foi assim que Abrado, ao oferecer seu filho Isaque em holocausto a Deus, provou que sua obediéncia nao fazia restrigSes e nao impunha limites, abrindo caminho para que 0 proprio Deus o abengoasse com béngdos ilimitadas. A resposta de Abrado a Isaque corresponde a uma espécie de profecia. Deus proveu para si o cordeiro para o holocausto, ndo apenas o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos, substituto de Isaque; mas Jesus Cristo, 0 cordeiro de Deus que tira 0 pecado do mundo. Como esta escrito em Jodo 3:16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que dew o seu tinico Fitho, para que todo aquele que nele cré niio perega, mas tenha a vida etema”. No entanto, essa comparag’o entre Isaque ea figura de Jesus Cristo reservamos para um estudo posterior. Em (7), Onipresente/Onipotente/Onisciente e divino mantém uma relagdo de pressuposi¢ao reciproca, uma vez que, essas categorias existenciais so atributos de um ser divino. Deus é superior porque existe 0 humano que the € inferior. Onipresente/Onipotente/Onisciente € ndo-onipresente/ndo-onipotente/niio- onisciente esto em relago de contraditoriedade, uma vez. que um é a negagao do outro; divino e humano também estdo em relagdo de contraditoriedade. Onipresente/Onipotente/Onisciente e divino configuram Deus, numa relagdo de ser (imanéncia) e parecer (manifestagao); e humano e ndo-onipresente/ndo- onipotente/ndo-onisciente, configuram o homem. (7) QUADRADO SEMIOTICO DIVINO/HUMANO Deus Offipresente/Onipotente/Onisciente Uivino humano ‘ndo-onipotente/ndo-onipresente/ndo-onisciente a ne e—OO Homem Em (8), ilimitado ¢ limitado mantém uma relagao de pressuposigao reciproca, uma vez que, essas categorias de quantificagdo ¢ qualificagao se completam. E a auséncia de limites que caracteriza o tlimitado. imitado © nao-ilimitado estio em relagdo de contraditoriedade, uma vez que um ¢ a negaydo do outro; limitado ¢ ndo-limitado também esto em relagdo de contraditoriedade. ‘Assim, entre ilimitado imitado, numa relagdo de contraditoriedade, temos a negagdo do ilimitado, por meio do anti-programa narrativo da desobediéncia, da inércia e da divida, Entre nai € limitado temos a selegdo de limitado por meio do holocausto do nico filho, Entre limitado e ndo-limitado, também numa relagdo de contraditoriedade, temos a negacdo de limitado pela substituigdo de Isaque pelo cameiro. Entre no-limitado e ilimitado temos a selecdo de ilimitado que se da por meio da obediéncia e da #6 que desencadeiam a proviso divina, multiplicando a descendéncia de Abrado ¢ estendendo a béngao de Deus sobre todas as nagGes da terra (8) QUADRADO SEMIOTICO ILIMITADO/LIMITADO _ ilimitado limitado ndo-limitado nio-ilimitado SS Essa representagdo permite visualizar a organizagao do sentido e a estrutura elementar da significagao dentro do texto de dois modos: o paradigmatico, com a classificayao dos valores semanticos que produzem 0 efeito de sentido, e 0 sintagmatico, com a descrigao das operagdes realizadas entre esses valores semanticos ¢ a forma seméntica dos programas narratives que fazem a narratividade do texto. Desse modo, podemos desvendar o cédigo do texto, racionalizando todos os seus elementos significantes que produzem o sentido. © quadrado semidtico, em uma dimenséo paradigmatica, pode estabelecer, de maneira estatica, a organizagdo do universo figurativo, mas também, em uma dimensdo sintagmatica revela o desenrolar da narrativa, A situagdo inicial da narrativa instala um pai (Abradio), que € desafiado por seu Deus a Ihe entregar © seu tinico filho (Isaque). Os valores em jogo nessa sequéncia sao: fidelidade versus infidelidade; f8 versus davida; obediéncia versus desobediéncia. As agdes ou performance de Abraio revelam seu temor © sua obedigneia a Deus, O desenvolvimento narrativo consiste em instalar um conflito no paradigma, ou seja, narrativizar a relagdo de contrariedade, invertendo o modo de existéncia dos dois termos virtualizando 0 primeiro, uma ver que 0 sacrificio de Isaque nao se concretiza, e atualizando o segundo, através do provimento do carneito (substituto) para 0 sacrificio. No final da narrativa, temos a coexisténcia dos objetos de valor: Abrado ndo perde o filho e ainda recebe a aprovacdo (béngdo) de Deus. Esse desenrolar evidencia a estrutura elementar, ou seja, a substituicdo, Portanto, podemos visualizar 0 quadrado em sua dimensdo sintagmatica, no desenrolar cronolégico da narrativa, da seguinte maneira 1551 ESTADO INICIAL ~ CONTRATO DEUS/ABRAA vida morte Disforico ndo-vida ESTADO FINAL—SANGAO vida morte Euforico ndo-morte A estruturagdo do quadrado acima nos mostra a transigdo de um estado inicial, em que Abrado tinha 0 filho, mas ndo tinha demonstrado a sua obediéneia incondicional a Deus, para um estado em que Abra consegue mostrar uma obediéncia ilimitada, mediante 0 oferecimento do seu filho e, a0 mesmo tempo, através da substituigao, ndo perde o filho. O conflito se estabelece no momento em que Abrado ergue 0 cutelo para imolar Isaque ‘A combinagdo final transforma a aparente contradigdo entre os elementos contradidérios (cumprimento da prova sem o sacrificio de Isaque) em uma relagao de coexisténcia dos objetos de valor (Isaque e aprovago). Essa combinagdo s6 & possivel pela figura do carneiro que aparece atras de Abra, embaracado pelos chifres no mato. ‘A unidade espacial do monte expande-se ao espago do céu, de onde o anjo do Senhor brada a Abrado e ‘© monte tomna-se o espago de mediagdo entre Deus ¢ o homem, 6, Aplicagio dos quadrados semidticos Os percursos figurativos do holocausto, da familia © do deslocamento que estdo selecionados & sustentados pelos programas narrativos remetem as isotopias religiosa, de ligagdo entre uma entidade humana (Abrado) € uma entidade divina (Deus); social, de expansdo da familia para a formagdo de uma ago; espacial, por meio de um deslocamento para elevago, e temporal, de terminatividade de auséncia de descendentes para a perpetuidade de uma descendéncia multiplicada Essas isotopias, por sua vez, se encaixam dentro dos classemas de humano e divino, singularidade ¢ multiplicidade. ‘A negagdo do humano afirma o divino. Abrado, ao renunciar o filho Isaque, afirma, por meio da obediéncia, a superioridade de Deus, a quem ele & submisso, Devemos considerar também que ndo se trata de uma obediéncia cega, irracional, que ndo mede as consequiéncias de seus atos. Se assim fosse, seria muito ficil. Abraio sabia 0 que estava fazendo e tinha consciéncia da seriedade de sua atitude, Trata-se de uma obediéncia que pondera sobre os valores em questio e, diante da necessidade de uma escolha, opta pelo que julga ser mais valioso. ‘A negacdo da singularidade (filho tinico) afirma a multiplicidade (descendéncia multiplicada). O paradoxo do holocausto de Isaque transforma-se no modo pelo qual Abrado péde ter uma grande 1552 Finalmente, depois de exaustiva analise das componentes narrativa e discursiva, podemos afirmar que © cédigo do texto da prova de Abraio esti alicergado sobre o eixo significative do limite, por meio da oposigdo entre limitado versus ilimitado. Limite € uma nogao que pode ser aplicada as ages, ao espago e ao tempo. Tem relagdo ndo apenas com a idéia de fim, mas também com a nogdo de auséncia de imposigdes. Temos, dessa forma, de um lado, 0 limitado humano mortal, suscetivel a fraqueza ¢ A vulnerabilidade que enquadram toda a experiéncia humana; 0 espago demarcado e que nao pode ser ultrapassado, e o tempo previsto ¢ efémero. De outro lado, 6 ilimitado divino onipotente, onisciente e onipresente; 0 espago infinito, que ultrapassa fronteiras; e o tempo eterno, que se perpetua através das geragdes. Todas as figuras da narrativa esto vinculadas a esse cédigo que da sentido a todos os elementos sighificantes do texto, As metiforas formadas pelo conjunto das estrelas do céu e pela areia da praia do mar também estdo articuladas nesse eixo de limitado versus ilimitado, Numa isotopia cosmolégica, ¢ impossivel estipular um limite ou prever um fim para esses elementos, Constantemente ouvimos falar da descoberta de uma estrela nova, elas nunca se esgotam e ninguém sabe até onde vao, Da mesma forma, a areia da praia do mar jamais acaba, Assim ¢ a descendéncia de Abrado de acordo com a promessa feita por Deus a ele na sangao. Podemos dizer que esse ¢ 0 sentido do texto: Deus esti disposto a realizar béngdos ilimitadas na vida daqueles que, como Abraio, reconhecendo a sua limitagao obedecem-Ihe sem impor limites 7. Conclusio A teoria semidtica tem se mostrado uma metalinguagem bastante coerente ¢ eficaz na andlise dos mais variados tipos de textos, inclusive narrativas biblicas. E 0 que esperamos ter demonstrado com o presente estudo, no qual nos propusemos a expor uma visio geral da teoria semidtica e aplicar seus conceitos ao texto biblico que denominamos de “A prova de Abrado”. ‘A andlise permitiu-nos, conforme os objetivos de nosso trabalho, demonstrat a aplicabilidade dessa teoria a essa categoria especifica de narrativa; contribuir para a divulgagdo da proposta greimassiana de sistematizagdo da forma do contetdo; ¢ esclarecer, por meio do percurso gerativo do sentido, algumas aparentes contradigdes do texto 8, Referéncias bibliogréficas ABIBLIA ANOTADA, Com introdugdo, esboso, referéncias laterais e notas por Charles Caldwell Ryrie. Sao Paulo: Mundo Cristo, 1991 ALTER, R., KERMODE, F. (Orgs.). Guia literdvio da Biblia. Tradugao Raul Fiker. $40 Paulo: UNESP, 1997 AUERBACH, E. Mimesis: a representacdo da realidade na literatura ocidental. Sperber. Sdo Paulo: Perspectiva, 1971 radugdo George Bernard AZEREDO, J. C. de (Org.). 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