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EDITORIAL

A
APPOA tem proposto como eixo de trabalho do ano o estudo e a
discussão de um dos seminários que Jacques Lacan proferiu ao lon-
go do seu percurso. Retomada para alguns, início no ensino lacaniano
para outros.
Em 2006, centramos nossos estudos no Seminário “Os quatro con-
ceitos fundamentais da psicanálise”, momento de virada em relação aos
conceitos estabelecidos por Freud, com os visíveis avanços propostos por
Lacan. Posteriormente, em 2007 e 2008, nos dedicamos a (re)leitura do
Seminário “Angústia”, temática recorrente da clínica psicanalítica. Nesse
Seminário, encontramos a delimitação do que Lacan diz ser sua maior con-
tribuição à psicanálise: o objeto a.
Esses momentos de trabalho foram dos mais intensos e produtivos
em relação a nossa práxis, e não poderia faltar nessa série a discussão
sempre atual sobre a psicopatologia psicanalítica, resumidamente: neurose
e psicose.
Lacan retoma Freud no ponto em que este privilegia a psicose, a sa-
ber, o “Caso Schreber”. Introduz aí uma nova conceitualização da psicose,
privilegiando a paranóia ao contrário da corrente psiquiátrica de seu tempo,
diferenciado-a, com rigor, das outras duas entidades – neurose e perversão,
borrando também a nitidez das fronteiras traçadas pela psiquiatria entre o
normal e o patológico. Lacan, nesse seminário de 1955-56, ao retomar o
essencial da doutrina freudiana, elabora seus conceitos de forclusão e Nome-
do-pai.
Nesse sentido, tomar o seminário “As psicoses”, ou “As estruturas
freudianas das psicoses” (título dado por Lacan ao Seminário) nos parece
fundamental. Discussão sempre presente na psicanálise, e nunca de fácil
resolução, a delimitação entre uma e outra entidade clínica serve de orientador
naquilo que nos ocupamos: a direção da cura.
Assim, os textos aqui presentes são frutos da discussão que temos
empreendido em nossos encontros, no ‘Cartelão’, onde cada autor trabalha
uma questão referente às aulas que compõem o seminário de Lacan. A ri-
queza dessa experiência pode ser apreciada pelo vivo que a produção

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 1


EDITORIAL NOTÍCIAS

lacaniana comporta: originalmente a fala de Lacan foi transformada em texto JORNADA DO INSTITUTO APPOA 2009
nos seus Seminários, a volta que propomos é transformar nossa(s) fala(s) PSICANÁLISE E INTERVENÇÕES SOCIAIS
em texto. Se não reinventamos a roda (o que não é nosso propósito), conse-
guimos reafirmar a força dos significantes que nos sustentam. 26 E 27 | JUNHO | 2009
RITTER HOTÉIS
LARGO VESPASIANO J. VEPPO, 55 – PORTO ALEGRE/RS

Há pouco mais de um século, a psicanálise surgiu como uma nova


terapia para tratar “transtornos mentais”. Sem dúvida, um método revolucio-
nário que inaugurou um novo paradigma de compreensão dos processos
psíquicos. Entretanto, os desdobramentos da descoberta freudiana fizeram
com que ela se constituísse em mais do que apenas uma das alternativas
constantes no cardápio de terapêuticas disponíveis para lidar com o sofri-
mento.
Da clínica psicanalítica emergiu uma nova concepção de sujeito – não
mais autocentrado e autônomo, mas, sim, produto de um conjunto de rela-
ções, a partir das quais ele se singulariza e inscreve seu desejo –, que
fundamenta uma ética e uma compreensão das diferentes modalidades de
relação que um sujeito pode manter com o Outro. Surge daí, não uma nova
visão de mundo, nem qualquer outra proposta de fechamento de sentido,
mas, pelo contrário, uma forma de lidar com nossas parcialidades e com a
insustentabilidade dos saberes definitivos e totalizantes.
Mais além da clínica de consultório, mas preservando a experiência
da transferência como seu fundamento, a psicanálise apresenta-se como
um discurso que interage e tensiona com os demais discursos presentes
em nossa sociedade, em campos tão variados quanto os da educação, da
assistência social, das artes, do direito, além do da saúde.
A Jornada do Instituto APPOA pretende dar visibilidade e colocar em
discussão diferentes intervenções sociais que assumem a psicanálise como
sua referência, avançando na proposta de articulação entre clínica, interven-
ção e pesquisa, própria à experiência psicanalítica.

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PROGRAMA 27/06 – Sábado / tarde


14h Mesa 4
26/06 – Sexta-feira / noite • Porosidades clínicas: diálogos entre a psicanálise e a saúde coletiva
18h30 Inscrições Emília Estivalet Broide – APPOA, SMS-Guarulhos/SP
19h Mesa de abertura • O espelho é cruel? A experiência num ambulatório Público
Marieta Madeira Rodrigues – Vice-Presidente da APPOA Maria Ângela Bulhões – APPOA, Ambulatório e RIS do HPSP
Ana Maria Medeiros da Costa – APPOA, Diretora do Instituto APPOA/UERJ • Oficinas de literatura infantil: dispositivos de trabalho com crianças em
situação de vulnerabilidade – Sandra Djambolakdjian Torossian – APPOA,
20h Mesa 1 Unisinos
• A psicanálise nas instituições: clínica e política.
Eduardo Mendes Ribeiro – APPOA, Ministério da Saúde 15h45 Mesa 5
• A Clínica, a intervenção e a pesquisa em psicanálise no trabalho • Diálogos – Nilson Sibemberg – APPOA, CAPS CAIS Mental Centro, Centro
com grupos – Jorge Broide – APPOA, Univ. Bandeirante (SP), Fund. ABRINQ Lydia Coriat
• Quadros da clínica – Siloé Rey – APPOA, ULBRA • A psicanálise e o coletivo: operações no campo da saúde mental pública
Luciano Elia – LAEP, UERJ, Ministério da Saúde, SES/RJ
27/06 – Sábado / manhã • A construção metodológica no campo da psicanálise e da saúde coletiva
9h Mesa 2 Marta Conte – Escola de Saúde Publica
• O percurso de uma psicanalista junto ao MST – Maria Rita Kehl – APPOA e Marília Silveira
• Diálogos com o Direito – Márcia Helena de Menezes Ribeiro – APPOA,
Justiça da Infância e Juventude (Santo Ângelo) 17h Conferência
• Psicanálise e intervenções no cuidado à primeira infância – Inajara Erthal • Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano
Amaral e Renata Maria Conte de Almeida – APPOA Ana Cristina Figueiredo – UFRJ, UERJ

10h45 Mesa 3 VALORES DE INSCRIÇÕES


• Cuidando do Cuidador: da demanda de escuta a uma escrita de si
Analice de Lima Palombini – APPOA, UFRGS Antecipadas, até 15/06/09 Após ou no local
• Entre clausuras e passagens: os jovens, as cidades e suas construções
Tatiane Reis Vianna – APPOA, CIAPS/HPSP Associados 50,00 70,00
• Construções e invenções em acolhimento Estudantes/
Marianne Stolzmann Mendes Ribeiro – APPOA, CIAPS/HPSP, Feevale recém formados* 60,00 80,00
Profissionais 70,00 90,00
* Estudantes de graduação e formados até 2 anos, mediante comprovação.

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INSCRIÇÕES E INFORMAÇÕES Em abril faleceu na França Claude Dorgeuille, psicanalista que seguiu
a transmissão de Jacques Lacan tanto nos Seminários, como na Escola
• Na sede da APPOA Freudiana de Paris. Junto com outros psicanalistas de sua geração contri-
• Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: De segunda a quinta- buiu para sustentação da psicanálise na clínica, no estudo e no cuidado com
feira, das 13h30min às 21h30min e as sextas-feiras das 13h30min às 20h. os textos de Lacan. Foi fundador e durante muitos anos trabalhou ativamen-
• Inscrições mediante depósito bancário, para BANCO ITAÚ, agência 0604, te na Associação Lacaniana Internacional – ALI. No Brasil, seu texto mais
conta-corrente: 32910-2 ou BANCO BANRISUL, agência 0032, conta-cor- conhecido é “A segunda morte de Jacques Lacan”, onde documenta os acon-
rente 06.039893.0-4 Neste caso, enviar, por fax, o comprovante de pagamen- tecimentos e os efeitos da dissolução da Escola fundada por Lacan. Além
to devidamente preenchido, para a inscrição ser efetivada. desta, suas contribuições sobre a música, o teclado e a voz também se
• Inscrições pelo site www.appoa.com.br, após efetuar a inscrição pelo site, fizeram ouvir.
enviar por fax ou por e-mail o comprovante de pagamento devidamente preen- O psicanalista Charles Melman escreveu um texto1 de despedida do
chido. amigo e companheiro de jornada que traduzimos e publicamos como uma
• Inscrições para grupos, informe-se na Secretaria da APPOA. pequena homenagem.
• As vagas são limitadas.
CLAUDE DORGEUILLE
(1929 - 2009)
CHARLES MELMAN

Claude Dorgeuille organizou seu fim como se fosse um dia comum,


exceto porque esperava fosse abreviado por causa da dor. Convocação deste
ou daquele para resolver as questões pendentes, ditado do final dos artigos
em preparação às suas filhas Anne e Sylvie, sentadas ao chão do quarto do
hospital, partilha dos livros entre seus filhos, anúncio aos visitantes da data
que tinha escolhido para partir: não há tempo a perder.
Marie-Germaine, em sua cadeira, não o deixou um só instante.
Esta dignidade estóica e a recusa deliberada de todo pathos não alivi-
am, no entanto meu sofrimento, a dilaceração de uma parte das fibras que
permitem ficar firme.
Conheci Claude nos anos 60 em Saint-Anne; a sala de plantão tinha
se tornado o clube esnobe e perverso dos bons iluminados vindos da SPP2 e

1
Publicado originalmente no site da ALI www.freud-lacan.com em 02/04/09.
2
N.T. Sociedade Psicanalítica de Paris

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que inquietava muito o ensino dado, não distante dali, no anfiteatro de Delay O lugar que ele assumiu em seguida na nossa Associação é conside-
- por Lacan. rável e conhecido seja no âmbito do ensino, tratamento, apresentação de
Fazendo-se eleger ecônomo, Claude abriu as janelas para arejar e doentes, editor de Seminários e mesmo tesoureiro.
varrer os parasitas que, embora já instalados, na intimidade continuavam É evidente que esta tesouraria foi dura de lhe retirar das mãos quando
tomando a sala de plantão por seu refeitório, se não sua baise-em-ville3 . se descobriu que os pequenos pedaços de papel perdidos nas profundezas
Na época, estar em análise com Lacan fazia de você o judeu da dos bolsos e sobre os quais ele fazia a contabilidade nos tornava vulneráveis
honorável sociedade dos psiquiatras e ainda que seu nascimento não o te- ao controle. Mas é preciso acrescentar que, de seu bolso precisamente, ele
nha de modo algum preparado, Claude suportou admiravelmente isto. saldava sem fanfarra ou anúncio o déficit da conta associativa, quando era
Tive a possibilidade de ser seu vizinho no Seminário porque ele se necessário, como se fosse a sua.
dignava reservar-me um lugar próximo a ele, de onde eu podia admirar as Os talentos de músico são igualmente conhecidos, entretanto menos
notas que tomava, coisa de que eu me achava incapaz; que peixe pescar, talvez seus tratados sobre a flauta ou sobre a arte do teclado, instrumentos
em uma rede de uma torrente que imergia? Lacan, no entanto, não o enten- pelos quais ele sacrificou até o fim a tranquilidade do amanhecer, a fim de
dia desse modo e exigia que tomássemos notas. saudar a chegada do dia.
Claude seguiu Lacan em seus sucessivos êxodos sem a preocupa- Vi sua emoção frente a seu mestre Leroy, já idoso então e precedido
ção de fazer carreira nem clientela, apaixonado por um ensino cuja excepci- por um volumoso tórax em carena, cujas hábeis interpretações em flauta ele
onal amplitude não lhe escapava. Também eu sempre me encontrei perto mais tarde filialmente editou em CD.
dele nos duros golpes que marcaram o percurso, ou mesmo para ajudar Visitar a Borgonha com ele, desde sua casa de Yonne onde com
quando era necessário fazer sair da sala algum agitador demasiado inoportu- Marie-Germaine recebia, era uma festa da erudição e da mesa - sabe-se
no para a audiência. talvez menos sobre a função que ele tinha no Marais, graças a diversas
Sem surpresa nos reencontramos ainda lado a lado quando da dissolu- associações, para assegurar sua preservação.
ção, para fundar nossa Associação da qual ele foi o primeiro presidente, e devo Não evoquei todos os talentos: a arte de ser avô, o acordeão, o bilhar,
confessar que sinto orgulho em ter tido então comigo, Claude, Jean Ribas, a arquitetura, a gastronomia…
Marcel Czermak. O companheirismo deles me honra e me tranqüiliza. E principalmente, levando-se em consideração os numerosos admira-
Também descobrimos juntos que o meio editorial forma uma rede que dores divididos nestas diversas disciplinas, a fidelidade na busca do bem e
não é fácil penetrar, e “A segunda morte de J. Lacan”4, que ele escreveu a fim do belo.
de fixar uma história que de outra forma iria se apagar das memórias, teve de É também por esta razão que ele foi o presidente da Associação dos
ser publicada por conta do autor. Há uma franco-maçonaria, ENS, que absor- Amigos de Jacques Lacan.
ve todas as clivagens (Miller está na época aliado com Juppé, companheiro Nossa dor se junta à de Marie-Germaine e de seus filhos.
de promoção, bela dupla). Meu caro Claude, até logo.

3
N.T. Pequena sacola de viagem utilizada para carregar objetos (nécessaire). A expressão Tradução: Marcia Helena de Menezes Ribeiro
utilizada pelo autor sugere um espaço que pode abrigar coisas indiscriminadas.
4
DORGEUILLE, C.. A Segunda Morte de Jacques Lacan, Porto Alegre: Artes Médicas. 1986.
Revisão: Mônica Vasconcellos Delfino Rodrigues
Ligia Víctora

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NOTÍCIAS JR ROSA, N. C. D. F. DA. De um Deus que não engana...

TEMÁTICAS DO ANO DE UM DEUS QUE NÃO ENGANA,


E DE UM QUE ENGANA1
O Correio é uma publicação mensal aberta aos membros da APPOA,
bem como àqueles que de alguma forma participam de seu quadro de ensino Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
ou de áreas afins. Lembramos, portanto, que a Comissão do Correio segue

U
recebendo textos para compor as seguintes seções de seus próximos nú- ma das coisas que logo despertou o meu interesse quando comecei
meros: a estudar Lacan, é a imensa multiplicidade de referências de auto
Seção Temática – composta de diversos artigos reunidos em torno de res e textos que são, ora citados com certo preciosismo e rigor
um tema. Abaixo elencamos as temáticas previstas para esse ano: conceitual, ora apenas mencionados rapidamente, tanto nos seminários quan-
Julho – Relendo Freud to nos escritos. Isto me faz reconhecer que o trabalho da citação sempre
Agosto – Instituto APPOA despertou minha curiosidade a ponto de percorrer algumas dessas referênci-
Setembro – Psicanálise e Cinema as com o objetivo de melhor compreensão do escrito. Digo-lhes algumas,
Outubro – Jornada Clínica porque logo me dei conta que se levasse isso muito a sério, provavelmente
Novembro – Topologia não conseguiria sair do lugar.
Dezembro – 20 anos APPOA De qualquer forma, feita a devida regulagem nos coeficientes de
Janeiro – Psicanálise e Trabalho obsessividade, achei importante trazer o xerox desta autora – Diana Estrin –
Seção Debates – espaço mensal destinado à publicação de textos que escreveu, ou melhor, compilou este livro: “Lacan dia por dia”. Trata-se de
sobre os temas mais diversos. um trabalho elogiável, sobretudo, pelo cuidado em nos lembrar acerca dos
Seção Ensaio – aperiódica, destinada à literatura ficcional. principais interlocutores de Lacan ao longo de sua trajetória de ensino. Nele,
Resenha – espaço para publicação de comentários de livros e filmes. podemos encontrar os autores e textos citados nos seminários, separados,
Os interessados podem enviar seus textos à secretaria da APPOA, lição por lição2 . Pensei que talvez dar uma olhada nas principais referências
para serem avaliados pela Comissão do Correio. em que Lacan se baseia no transcorrer do seminário com o qual estamos
nos ocupando este ano – “As estruturas freudianas das psicoses” –, poderia
interessar alguns dos nossos colegas. Mas, de qualquer forma, como provo-
cação, vale mais é o título que de alguma maneira nos interroga como cada
um passa o dia a dia com Lacan.
1
O presente artigo foi apresentado no Cartel da APPOA sobre “As estruturas freudianas das
psicoses”, realizado no dia 26/03/09, baseado na lição V, “De um Deus que não engana, e de
um que engana”, do seminário de Jacques Lacan, “As psicoses”, proferida em 14 de
dezembro de 1955.
2
Somente nessa lição que estamos nos ocupando Lacan refere passagens de textos dos
seguintes autores: Schreber, Katan, Freud, Aristóteles, Descartes, Einsten e Spinoza. Além
disso, faz menção ao clássico artigo de sua autoria: “A coisa Freudiana ou sentido do
retorno a Freud em psicanálise”.

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SEÇÃO TEMÁTICA JR ROSA, N. C. D. F. DA. De um Deus que não engana...

Antes de entrar na lição propriamente dita, gostaria de fazer referência A título de ilustração, lembremos do clássico exemplo apresentado
a um texto de Freud, que Lacan nos aponta como sendo de extrema impor- por Freud a partir da escuta de seu paciente: “O senhor vai pensar que esta
tância para que possamos avançar em nossas interrogações sobre as psico- senhora ai no sonho é minha mãe, a mãe não é”. Ou ainda, “O senhor pensa-
ses. Trata-se de “Die Verneinung” (1925), “A denegação”, conforme sugestão rá agora que eu quero dizer algo insultante, mas não tenho realmente essa
de tradução por Jean Hyppolite, no texto “Comentário falado sobre a intenção”. Freud nos fala que nesses enunciados ocorreu uma Aufhebung5
Verneinung de Freud” (Apêndice I dos “Escritos”). Lacan vai mencioná-lo do recalque, o que não implica uma aceitação do recalcado, ou seja, seria
com muita freqüência neste seminário, levando-nos a supor que se nós não apenas uma espécie suspensão parcial do recalcamento. Diante disso, a mãe
estudarmos a lógica da “denegação”, teremos dificuldades para compreen- seria acolhida no discurso do sujeito com a condição de ser denegada. Por-
der os impasses da psicose. Cabe ressaltar que a importância creditada a tanto, o sujeito enuncia e, “paradoxalmente”, destitui o próprio enunciado.
esse texto freudiano já havia sido mencionada com muita ênfase no primeiro Bem, certamente este texto tem muito mais a nos dizer, sobretudo,
seminário, intitulado “Os escritos técnicos de Freud”. Desde então, Lacan já o no que diz respeito à gênese6 da constituição psíquica. Mas, como nesse
havia incluído como um dos textos técnicos fundamentais de Freud, embora momento, esse não é o nosso propósito de discussão, retornemos então ao
não obtivesse esse estatuto de reconhecimento de seus contemporâneos. seminário.
Trata-se de um artigo pequeno, de quatro ou cinco páginas, de extre- 5
Segundo Hyppolite, encontra-se neste exemplo, uma análise de procedimentos concretos,
ma complexidade e valor3 . Segundo Lacan, pode-se dizer que neste texto generalizada a ponto de encontrar seu fundamento num modo de apresentar o que se é à
maneira de não ser. É assim que Freud se introduz na função da denegação, sobretudo,
temos as bases para pensar uma lógica psicanalítica que vai subverter o recorrendo ao termo Aufhebung: “É a palavra dialética de Hegel que ao mesmo tempo quer
modelo de sistema lógico clássico. Como sabemos, na lógica clássica, quando dizer negar, suprimir e conservar, e, no fundo, suspender. Na realidade pode ser a Aufhebung
de uma pedra, ou também a cessação de minha assinatura de um jornal. Freud nos diz nesse
temos uma proposição, ela possui apenas duas possibilidades, ou ela é ponto: ‘A denegação é uma Aufhebung do recalque, mas nem por isso é uma aceitação do
falsa ou é verdadeira, ou seja, ela não pode ser falsa e verdadeira simultane- recalcado” (Idem, p.895).
6
Como aponta Ivan, esse texto de Freud é uma proposição lógica acerca da Gênese do
amente. Isto se dá justamente porque essa lógica não admite a contradição. pensamento humano, na medida em que o fio condutor deste precioso escrito, parece ser a
Ao passo que, se no “inconsciente não há contradição”, se “não existe ne- pergunta acerca de como o pensamento se origina. Freud ao se interrogar sobre a consti-
nhum não advindo do inconsciente”, a psicanálise acolhe, ou melhor, admite, tuição do mundo externo e do mundo interno, mostra-nos que no início da constituição
psíquica tudo era sim, não havia nenhum não, não havia o fora, o mundo externo. Esta seria
a verdade enunciada na aparente contradição4 . a função da Bejahung, a saber, dizer que tudo era sim. Neste tempo só existiria a atribuição,
pois o nosso pensamento surge deste jeito, só atribuição, prerrogativas e qualidades. É um
julgamento atributivo, ou seja, a Bejahung é só sim, ainda não existe o não. Vejamos o
exemplo de Ivan (2003): a criança não quer saber se existe ou não a cuca, o Papai Noel, o
Papa-figo. Ela quer saber somente quais são suas propriedades. “Como é o papai Noel? Tem
3
“O que torna tão densas essas quatro ou cinco páginas é, como vocês estão vendo, que uma barba branca, roupa vermelha? Tem um saco nas costas? Traz presente?” A existência
elas questionam tudo, e que se vai dessas observações concretas, aparentemente tão para a criança, neste momento, não conta, o que conta são apenas os atributos. Entretanto,
insignificantes e tão profundas em sua generalidade, para alguma coisa que traz toda uma como refere o autor, isto ocorre até chegar o momento que a criança se preocupa com a
filosofia, quer dizer, toda uma estrutura do pensamento” (HYPPOLITE, 1998, p.898). existência, passando então a formular suas interrogações: será que existe a cuca? Será
4
A observação de Ivan Corrêa em seu livro “Os nós do inconsciente” nos parece pertinente: que existe o papai Noel? A partir destas indagações a criança se defronta com o pensamen-
“A psicanálise só pode se estabelecer numa lógica que admita a contradição”, na medida em to de existência, na medida em que foi capaz de fazer um julgamento de não existência, ou
que a lógica do sintoma é a própria contradição, o próprio paradoxo – “Como que eu posso seja, fora capaz de dizer não. Portanto, “é quando se pode dizer não que é possível pensar
ter medo de alguma coisa e desejar ao mesmo tempo? Se você vai dizer isto ao fóbico, não na existência. O ser pode existir e não existir, porque a não-existência será a negação do
entra na cabeça dele” (CORRÊA, 2003, p.79). ser”. Diante disso, só se pode pensar na existência a partir da não-existência, ou melhor, a
existência é possível a partir do símbolo da denegação, da inscrição da diferença.

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Lacan começa a lição referindo uma apresentação de um doente que car a genitalidade, pois tendia a se confundir no plano imaginativo com uma
ele adjetiva como sendo grave. Fala-nos que era um caso clínico que não atividade regressiva das funções excrementícias. Além disso, nos fala que
havia escolhido, mas que de algum modo fazia o inconsciente funcionar a tudo que era da ordem do que é habitualmente recalcado7 , “todo o conteúdo
descoberto, sobretudo, em sua dificuldade de entrar no discurso analítico. O expresso comumente por intermédio dos conteúdos neuróticos estava ali
“descoberto” segundo Lacan se justificaria porque tudo o que em outro sujei- perfeitamente límpido e eu não tinha dificuldade em fazer com que ele se
to haveria entrado na lógica do recalque, encontrava-se naquele caso, supor- exprimisse” (p.74). Ainda que Lacan justifique que ele se exprimia facilmente
tado por uma outra linguagem de alcance muito reduzido chamada “dialeto”. acerca disso somente por ser suportado pela linguagem dos outros, mostra-
O dialeto em questão era o dialeto “Corso”. O paciente teria vivido toda a sua nos a dificuldade que por vezes nos defrontamos no cotidiano de nossa clíni-
infância em Paris e era filho único de pais extremamente fechados dentro de ca para formular uma hipótese diagnóstica.
suas próprias leis, pois tudo que se passava dentro de casa somente era Pode-se dizer que desde o início da lição Lacan parece preocupado
concebido dentro desse dialeto. Lacan ressalta que para esse sujeito havia em nos apontar a especificidade da posição do sujeito diante do Outro na
dois mundos, o da elite, o do dialeto corso, e depois o que se passava fora. neurose e na psicose. A noção de Outro aqui se apresenta para que possa-
Essa separação “estava ainda mais presente na vida do sujeito e ele nos mos pensar acerca do lugar pelo qual estamos organizados. Portanto, ao
contou a diferença de suas relações com o mundo entre o momento que ele nos interrogar por que o inconsciente permanece excluído para o psicótico,
estava diante de sua mãe e o momento em que ele passeava na rua” (p.74). mostra-nos que isto se dá porque nestes casos, ele esta à flor da pele,
Lacan se pergunta acerca das conseqüências subjetivas dessa fron- descoberto, a mercê do real. Isto por sua vez faria com que a mensagem do
teira tão rigorosamente demarcada, dizendo-nos: “O que resulta disso? Re- sujeito reduzida a sua matriz imaginária se faria ouvir como vindo de fora,
sultam duas coisas: a primeira visível na anamnesse, a saber: a dificuldade como não pertencendo ao próprio eu. O que por sua vez faria com que a
que ele tinha de evocar o que quer que seja no antigo registro – de se expri- posição do sujeito na psicose em relação à cadeia significante situaria a
mir no dialeto de sua infância, o único que ele falava com sua mãe”. Quando disjunção, a ruptura em que ele está situado entre o código e a mensagem (a
Lacan solicita que ele se expresse nesse dialeto, que lhe repetisse as falas mensagem na psicose não viria do Outro de forma invertida, recai no sujeito
que ele tinha podido trocar com seu pai, obtém como resposta: “Eu não de forma direta).
posso colocar isso para fora”. Neste exemplo, conforme Lacan, podemos Interessante que para avançar nessa questão Lacan vai nos interrogar
perceber que a noção de dentro e fora demarcam mundos distintos. O que sobre “qual é o nosso método a respeito do presidente Schreber”. Lembra-
por sua vez situa não só um limite, mas uma impossibilidade do que é pas- nos que foi no discurso comum que Schreber se exprimiu para nos explicar
sível de ser enunciado. Algo semelhante à disjunção entre o código e a men- o que aconteceu com ele. Avançar metodicamente para Lacan implica em
sagem, alicerce da língua fundamental de nosso presidente Schreber. Por
outro lado, apesar de Lacan fazer essas ponderações no que diz respeito à
estrutura psicótica do caso apresentado, fala-nos também que era possível 7
“O que é o recalque para o neurótico? É uma língua, uma outra língua que ele fabrica com
constatar traços de uma estrutura neurótica, ou melhor, traços de um com- seus sintomas, isto é, se é um histérico ou um obsessivo, com a dialética imaginária dele e
portamento regressivo, termo que, diga-se de passagem, ele emprega com do outro. O sintoma neurótico desempenha o papel da língua que permite exprimir o recalque.
È justamente aquilo que nos faz ver que o recalque e o retorno do recalcado são uma só e
certa reserva. Lacan se refere em particular a sua maneira singular de prati- mesma coisa, o direito e o avesso de um só e mesmo processo” (p.75).

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tomar o texto “Memórias de um doente dos nervos” ao pé da letra. Justamen- tância de atentarmos para o primeiro acesso psicótico. Ou ainda, para o
te porque fora a partir do conhecimento que temos da importância da palavra desenrolar desde a fase pré-psicótica até o estabelecimento progressivo da
na estruturação dos sintomas psiconeuróticos, que podemos avançamos no fase psicótica – no auge de estabilização da qual ele escreveu sua obra.
campo das psicoses. Destaca, em especial, a passagem na qual Schreber relata que certo dia,
próximo ao despertar, ainda meio sonolento, teve uma fantasia que seria
“Não dizemos que a psicose tem a mesma etiologia que a neuro- mais ou menos assim: “como seria uma coisa bela ser uma mulher sendo
se, não dizemos nem mesmo que ela é como a neurose um puro copulada”. Ocorre que esse pensamento que ao mesmo tempo o surpreen-
e simples fato de linguagem, longe disso. Observamos simples- de, indigna-o sobremaneira. Isto faz com que Lacan nos aponte: “há aí uma
mente que ela é muito fecunda quanto ao que se pode exprimir no espécie de conflito moral”.
discurso. Temos uma prova disso na obra que nos lega o presi-
Este conflito nuclear na história de Schreber leva Lacan a se pergun-
dente Schreber, que chegou a nossa atenção através de Freud que
tar acerca da relação que há entre a emergência no eu – de uma forma não
através de uma análise interna, mostrou-nos como esse mundo
conflituosa – do pensamento que “seria belo ser uma mulher sendo copula-
era estruturado. É assim que procederemos, a partir do discurso
do sujeito, e é o que nos permitira ficar mais próximo dos mecanis- da”, com a concepção em que o delírio chegado ao seu grau de acabamento
mos constituintes da psicose” (LACAN, p.75). se desenvolverá em toda sua força. O que neste caso implicaria que o ho-
mem deva ser categoricamente “emasculado” até chegar à condição de ser
Chama a atenção o quanto Lacan insiste que precisamos avançar a mulher permanente de Deus? Qual seria a lógica que ordenaria a aparição
metodicamente, passo a passo, não saltar os relevos, sob pretexto de que primeira desse pensamento e o estado terminal do delírio? O que levaria um
uma analogia superficial com o mecanismo da neurose transparece. Alerta- sujeito a se defrontar com um personagem onipotente ao qual ele submete-
nos para não fazer o que se faz com tanta freqüência na literatura. Toma se a relações eróticas permanentes, deixando-o largado diante de um pro-
como referência um sujeito chamado Katan que se interessara muito pelo cesso de feminilização irreversível? Por que “o pensamento do início torna-se
caso Schreber (psiquiatra renomado que publicou vários artigos sobre Schreber a entrevisão do tema final?”
dos anos 30 aos 70). Este considerava como reconhecido sem contestação
que a origem da paranóia de Schreber situava-se na luta contra a masturbação “A questão que se coloca é a de saber se nos encontramos diante
de um mecanismo propriamente psicótico que seria imaginário e
ameaçadora, provocada por seus investimentos eróticos homossexuais so-
que iria da primeira entrevisão de uma identificação e de uma
bre o personagem núcleo de seu sistema persecutório, o professor Flechsig.
captura na imagem feminina, até o desabrochar de um sistema do
Segundo esse autor isso teria conduzido Schreber a chegar até a subverter
mundo em que o sujeito está completamente absorvido em sua
a realidade, isto é, até a reconstruir após um curto período de crepúsculo do imaginação de identificação feminina” (idem).
mundo, um mundo novo, irreal, no qual ele não teria que ceder a esta
masturbação considerada tão ameaçadora. De acordo com Lacan, resolver esta questão implica recorrer ao texto
Lacan vai nos propor outro caminho para refletimos acerca da mani- de Schreber, tendo como foco a estrutura própria do discurso. Na verdade,
festação da paranóia em Schreber. Refere que ele nos narra de forma muito no transcorrer da lição, podemos constatar que ele já possuía a resposta
clara as primeiras fases de sua psicose. Neste sentido, aponta-nos a impor- para esta questão. Entretanto, nesse momento, penso que Lacan estava

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SEÇÃO TEMÁTICA JR ROSA, N. C. D. F. DA. De um Deus que não engana...

mais decidido em convidar, provocar e, até mesmo, convocar a platéia à Como esse Outro se manifesta em Schreber? Os colegas Nilson
leitura do texto de Schreber, do que propriamente implicado em sustentar as Sibemberg, Otávio Nunes e Adão da Costa nos falaram acerca disso na
suas teses e construções. De qualquer forma, pode-se dizer que ele nos faz importante discussão que realizamos na semana passada. Lembraram-nos
pensar por que esta simples fantasia toma proporções que denunciam a que em Schreber ela aparece pela produção da frase interrompida, pela
fragilidade do sistema simbólico do sujeito. disjunção entre o código e a mensagem, algo típico da lógica psicótica. A
Então, retomamos a questão: “O que levaria a primeira captura na constatação dessa disjunção levou Lacan a nos colocar o desafio de recons-
“imagem feminina” até o desabrochar de um sistema do mundo no qual o truir a outra parte da frase. Justamente porque, na frase interrompida, o sujei-
sujeito está completamente absorvido em sua imaginação de identificação to é produto de um enunciado no qual a mensagem fica interrompida, sim-
feminina?” Lacan nos propõe como resposta: “a falta de uma simbolização plesmente, por não encontrar acolhimento no código do semelhante que lhe
primitiva” – “Bejahung”. Neste sentido, onde de modo algum o sujeito pôde permita conectá-la. Então, essa ruptura, essa disjunção entre o código e a
ter acesso ao não simbolizado, conseqüentemente, não pode assumi-lo, ou mensagem, joga o sujeito no discurso psicótico numa situação muito parti-
seja, a função feminina no presidente Schreber ficou fora de simbolização. cular. Creio que, na sua apresentação, a colega Maria Ângela Bulhões, vai
Se a função feminina não está minimamente simbolizada, o sujeito se en- trabalhar sobre as conseqüências disso, sobretudo, no que diz respeito ao
contrará largado diante do enunciado: “como seria belo ser mulher...”. Isto o fato de que não é da realidade que se trata na psicose, mas, de certeza.
deixaria a mercê enquanto objeto do gozo do Outro. Como nos lembra Lacan: “Ainda que ele reconhece que o que ele sente não
A leitura de Schreber nos mostra muito claramente as conseqüências é da ordem da realidade, isso não toca a sua certeza – essa é sua crença
subjetivas quando o sujeito sofre a injunção de estar largado a mercê desse delirante”.
saber sem furo que advém do Outro. Ficar a mercê dos intermitentes e categó- Voltemos ao título da lição: “De um deus que não engana, e de um
ricos comandos das vozes pode ser um exemplo disso. Isto nos aponta mais que engana”, pois é justamente essa certeza delirante que vai fazer com que
um dos impasses da clínica na psicose, qual seja: a dificuldade de situar um o Deus de Schreber, não engane. Vamos devagar. Para melhor explicitar
limite neste saber absoluto do Outro que recai e, por vezes, engolfa o sujeito. esta questão, Lacan refere as três esferas no processo da fala, integrando-
Na psicose, o Outro como absoluto está imaginarizado, senão, encar- as em três planos: primeiro, o do simbólico, (representado pelo significante),
nado. O que resulta disso é que o sujeito psicótico se vê como não sendo o segundo, o do imaginário (representado pela significação), seguido do real
autor dos seus jogos de palavras. Isso seria “estar jogado”, como relata (tomado, nesse momento, como o discurso de fato efetuado em sua dimen-
Schreber. Jogado nessa posição de ser só o objeto do gozo do Outro, ou são diacrônica). A partir desses elementos irá nos apontar que “o sujeito
ainda, “vítima” impotente das mais diversas manipulações e recriminações: dispõe de todo um material significante que é sua língua, materna ou não, e
“Eis um presidente da corte de apelação que se deixa foder”, “miss Schreber”, dela se serve para fazer passar no real, significações” (p.78).
“puta” (SCHREBER, p.120). Portanto, se a Verwerfung deixou o significante Lacan terá o cuidado em dizer que não é a mesma coisa ser mais ou
primordial nas trevas, Schreber encontrará como resposta a Verwerfung de menos cativado, capturado numa significação, e exprimir essa significação
sua feminilidade a “emasculação” e a conseqüente fecundação pelos raios em um discurso destinado a comunicá-la, a conciliá-la com outras significa-
divinos, com a finalidade de criar novos homens – procriar com Deus – e ções diversamente acolhidas. Ressalta ainda, que é justamente nesse ter-
gerar uma nova humanidade. mo, “acolhido”, onde estará o móbil que faz com que um discurso seja

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SEÇÃO TEMÁTICA JR ROSA, N. C. D. F. DA. De um Deus que não engana...

comumente admitido. Inclusive salienta que essa noção de discurso é funda- Neste sentido, o engano só pode ser reconhecido a partir da suposi-
mental, mesmo no terreno da objetividade, em especial, no campo da ciên- ção que há algo que não engana. Ocorre que o método cartesiano está
cia. Ou seja, para que um discurso seja acolhido, inscrito no código vigente calcado num modelo rigoroso no qual o Deus de Descartes não pode nos
das comunicações científicas, ele precisa minimamente ser comunicável enganar. Diante disso, a noção de um Deus não-enganador está fundada
perante a lógica que ordena esse discurso: “Teriam vocês conseguido fazer a tanto nos resultados obtidos pela ciência, assim como, na estrutura do dis-
experiência mais sensacional, se um outro não pode refazê-la8 após a co- curso delirante. Como refere Lacan: “A noção de que o real, por mais delica-
municação que vocês fizeram, ela não serve para nada. É segundo esse do que seja de penetrar, não pode fazer velhacarias conosco, não nos passa-
critério que se constata que uma coisa não é recebida cientificamente” (p.78). rá para trás de propósito, é, ainda que ninguém absolutamente se detenha
Logo após essa observação, ele retoma o esquema L com o propósito de nisso, essencial a constituição do mundo da ciência”. Estas observações,
localizar as diferentes relações nas quais podemos analisar o discurso deli- de alguma forma, evidenciam uma estranha familiaridade entre discurso ci-
rante. Apesar de fazer a ressalva de que esse esquema não é o esquema do entífico e a psicose.
mundo, não se abstém de falar que o mesmo é condição fundamental de Portanto, certezas inquebrantáveis muitas vezes servem como adubo
qualquer relação. Vejamos: para alienações improdutivas. Isto nos leva a resgatar novamente o valor da
Verneinung para que possamos relançar novas interrogações diante de nos-
“No sentido vertical, há o registro do sujeito, da fala e da ordem da sa ignorância quando nos dispomos a trabalhar com a psicose. Mesmo por-
alteridade como tal, do Outro. O ponto pivô da função da fala é a que, felizmente, não dispomos de nenhum saber que dê conta do impossível
subjetividade do Outro, isto é, o fato de que o Outro é essencial- do sexual, pois nosso saber sobre o gozo é sempre insuficiente. O cotidiano
mente aquele que é capaz, como o sujeito, de convencer ou de da clínica nos mostra que o ato analítico pode se produzir justamente quan-
mentir [...] Para que possa se relacionar o que quer que seja, em
do o saber suposto no lugar do analista, enquanto detentor, possa cair. Isso
relação ao sujeito e ao Outro, a algum fundamento no real, é preci-
o torna agente de sua própria queda, enquanto tal.
so que haja em algum lugar algo que não engane. O correlato
dialético da estrutura fundamental que faz da palavra de sujeito a
sujeito uma palavra que pode enganar, é que haja também alguma “Todos aqueles que seguem a via em que conduzo vocês pouco a
coisa que não engana” (Idem). pouco, atraindo a atenção de vocês para um mecanismo que é distinto da
Verneinung – e que se vê a todo momento emergir no discurso de Freud,
encontrarão ai, mais uma vez a necessidade de distinguir entre alguma coi-
sa que foi simbolizada e alguma coisa que não foi” (Idem, p.77).

8
Achamos pertinente um breve parêntese, pois uma das grandes contribuições da psicaná- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
lise a cultura foi justamente questionar este modelo de ciência, justamente porque, a pesqui- ESTRIN, D. Lacan día por día: los nobres propios en los seminarios de Jacques
sa psicanalítica se dá a partir da singularidade de cada sujeito. Neste sentido, podemos dizer
que a lei da aplicabilidade – pilar do modelo clássico científico – onde a tese deve ser Lacan. Buenos Aires, Editorial pieatierra, 2002.
comprovada todas as vezes que for colocada em prática, justamente por se constituir HYPPOLITE, J. Comentário falado sobre a Veneinung de Freud. In: LACAN, J.
enquanto critério indispensável para que algo possa ser recebido cientificamente – faz-se Escritos, 1988, p. 893-902.
reducionista para abarcar o conceito de verdade cientifica.

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SEÇÃO TEMÁTICA BULHÕES, M. Â. O fenômeno psicótico...

LACAN, J. O Seminário – Livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro, Jorge O FENÔMENO PSICÓTICO E O SEU MECANISMO1
Zahar, 1992.
_________. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Maria Ângela Bulhões
Freud. In: Escritos, 1988, p. 383– 401.
SCHREBER, D. Memórias de um doente dos nervos. Rio de janeiro: Paz e Terra,

A
leitura do capítulo VI do livro “O Seminário 3 As psicoses” levou-me
1995.
ao escrito do que considerei serem as idéias principais que ali foram
desenvolvidas.
Lacan inicia esse capítulo lembrando-nos, a nós psicanalistas, que
não basta o conhecimento de um certo número de chaves conceituais para
compreender as construções que se produzem num sujeito, já que o movi-
mento natural dos humanos é usá-las para continuar deixando tudo no mes-
mo lugar. É necessário levarmos a sério nossa experiência, nosso ofício,
tirando dele conseqüências autênticas.
É mesmo a seriedade que está no cerne da questão. Ele nos diz: “O
que caracteriza o sujeito normal é precisamente não levar jamais a sério um
certo número de realidades cujas existências ele reconhece”. Sabemos todo
tempo sobre os riscos que nosso planeta sofre devido as ações humanas
sobre ele, sabemos das gripes, catástrofes naturais etc.., mas não vamos
nos preocupar com isso mais do que o necessário. Trata-se, no fundo, da
feliz incerteza que torna possível uma existência mais tranqüila. Certamente
a certeza é a coisa mais rara para o sujeito normal, e ele a percebe concernida
à ação em que esteja empenhado. Assim, Lacan vai considerar que o que
está em causa na psicose não é tanto a realidade mas da certeza em ques-
tão. “Contrariamente ao sujeito normal, para quem a realidade lhe chega de
bandeja, ele (o psicótico) tem uma certeza, que é a de que aquilo de que se
trata da alucinação à interpretação – isso lhe concerne”. O psicótico pode
considerar que sua realidade é diferente da dos demais, entretanto isso não
abala sua certeza. A ambigüidade e a contradição possível em suas crenças

1
O presente texto foi apresentado no Cartel sobre “As estruturas freudianas das psico-
ses”, realizado no dia 26/03/09, baseado na lição VI: “O fenômeno psicótico e seu mecanis-
mo” do seminário de Jacques Lacan: “As psicoses”-, proferida em 11 de janeiro de 1956.

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não servem de motivo para abalá-las. No delírio de ciúmes, por exemplo, realidade. Nesse momento Lacan está fazendo uma indicação clínica clara e
enquanto o sujeito normal não cessa de buscar indícios para confirmar sua precisa.
crença de traição, o delirante não precisa de comprovação pois ele “sabe”. Quanto à condição de simbolização, ele vai nos dizer que existe uma
O livro “Memórias” de Schreber nos dá testemunho dessa certeza. etapa primeira, uma anterioridade que não é cronológica, mas lógica. Essa
No relato de sua relação com Deus, tal como ele nos comunica, rico e etapa precede toda dialética neurótica, ligada ao fato de que a neurose é
complexo, nos surpreende o fato de não apresentar nada que nos indique a uma palavra que se articula na medida em que o recalcado e o retorno do
menor presença, a menor efusão, a menor comunicação real, o que poderia recalcado são uma só e mesma coisa. Assim, pode acontecer que alguma
nos dar a idéia que há ali verdadeiramente relação entre dois seres. Em coisa de primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização, e
conseqüência, tudo em sua história é compreensível, tudo é arranjado, e seja, não recalcado, mas rejeitado. Não encontra inscrição. Daí a frase de
acaba não nos dando o sentimento de uma experiência original na qual o Freud, o que foi rejeitado do interior reaparece no real. Por isso significante e
próprio sujeito está incluído – é um testemunho, pode-se dizê-lo, verdadei- significado podem não estar ali articulados.
ramente objetivado. Lacan considera essencial introduzir a categoria do real e lhe dá esse
Schreber se apresenta primeiramente como objeto de tortura de um nome enquanto define um campo diferente do simbólico. É somente a partir
Deus sem limites, para ao longo de sua narrativa tornar-se objeto de uma daí, segundo ele, que é possível aclarar o fenômeno psicótico e sua evolução.
experiência que o tornará a mulher de Deus, que gerará uma nova humanida- O que teria sido submetido à Bejahung, à simbolização primitiva, terá
de. Mas ali ele não é quase nada de tudo aquilo que o cerca, de certa manei- diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung (rejeição) primitiva
ra, ele não é. Tudo que ele faz existir nessas significações é vazio dele terá outro.
mesmo. Para fazer o contraponto, Lacan nos diz: ¨Há poesia toda vez que No interior da Bejahung acontecem todas as espécies de acidentes. A
um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e , ao nos dar a verdade é que é com o que resta que o sujeito compõe o mundo e, sobretu-
presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se do, que ele se situa dentro, isto é, que ele se arranja para ser aproximada-
torne também nossa¨. Schreber não era poeta. mente o que ele admitiu que ele fosse, um homem quando se vê sendo do
Continuando nas idéias desse capítulo, Lacan faz a crítica do uso da sexo masculino, ou uma mulher em caso contrário. A descoberta freudiana
categoria de defesa para compreender o fenômeno psicótico, pois ele insiste nos ensina que as adequações naturais são, no homem, profundamente
no caráter incompleto dessa referência, que pode se prestar a intervenções desconcertantes. Se Freud insistiu no complexo de Édipo é porque para ele
precipitadas e nocivas. Devemos segundo ele sempre distinguir a ordem em a Lei está ali desde a origem, desde sempre, e a sexualidade humana deve-
que se manifesta a defesa. Quando essa defesa for manifestamente de or- se realizar por meio e através dela. Essa lei fundamental é simplesmente
dem simbólica, isto é, que, no sujeito esteja intervindo significante e signifi- uma Lei de simbolização. É o que o Édipo quer dizer.
cado, é possível intervir nele mostrando a conjunção existente. Entretanto, Lacan nos diz que no interior disso, do que ocorre a partir da
se não temos os dois, se temos o sentimento de que o sujeito se defende simbolização primitiva, vai se produzir tudo o que podemos imaginar sob os
contra alguma coisa que estamos vendo bem e que ele não vê, isto é, que três registros da Verdichtung, da Verdrängung e da Verneinung.
estamos vendo de forma clara que o sujeito se engana quanto a realidade, a A Verdichtung é simplesmente a lei do mal entendido, graças a qual
noção de defesa é insuficiente para nos permitir colocar o sujeito em face da nós sobrevivemos, ou ainda, graças a qual fazemos várias coisas ao mesmo

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tempo. É possível satisfazer tendências opostas ao ser homem e ocupar participar, e de satisfazer com isso, no interior de um mundo em que toda a
numa relação simbólica uma posição feminina sem por isso perder sua virili- comunicação não foi rompida.”
dade no plano imaginário e real. Lacan ao longo de seu Seminário vai delineando sobre a clínica da
A Verdrängung, o recalque, quer dizer que a cadeia simbólica a que neurose e da psicose passo a passo, demarca de forma clara e consistente
estamos submetidos exige uma coerência interna. Todavia, por vezes a posi- o caminho que percorre, insistindo nos detalhes para tornar compreensível
ção em que nos encontramos pode exigir um sacrifício reconhecido como as bases de suas construções conceituais. Isso por si só já torna “O Semi-
impossível no plano das significações, mas a cadeia nem por isso deixa de nário 3” uma leitura indispensável.
correr por debaixo, a exprimir suas exigências, de fazer valer sua dívida, e
isso por meio do sintoma neurótico. É nisso que o recalque é do âmbito da
neurose.
A Verneinung é da ordem do discurso, e concerne ao que somos
capazes de fazer vir à tona por uma via articulada. O dito princípio da realida-
de de Freud intervém dessa forma. O sujeito não tem de reencontrar o objeto
de seu desejo, ele jamais reencontra, nos diz Freud, senão um outro objeto,
que corresponderá de maneira mais ou menos satisfatória às necessidades
de que se trata.
Lacan nos apresentou mecanismos que funcionam para o sujeito se
articular ao mundo de representações no caso da simbolização primitiva.
Mas vai se perguntar: O que é o fenômeno psicótico? É a emergência
na realidade de uma significação enorme que não se parece com nada – e
isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada, já que ela jamais entrou
no sistema da simbolização – mas que pode, em certas condições, amea-
çar todo o edifício.
O que acontece a partir da Verwerfung?
No caso do Presidente Schreber, essa significação rejeitada tem a
mais estreita relação com a bissexualidade primitiva. O que se produz então
tem o caráter de ser absolutamente excluído do compromisso simbolizante
da neurose, e se traduz em outro registro, por uma verdadeira reação em
cadeia ao nível imaginário. Para Lacan, a língua fundamental de Schreber é o
signo de que subsiste no interior desse mundo imaginário a exigência do
significante. E termina seu capítulo afirmando, “um delírio não é forçosamen-
te sem relação com um discurso normal, e o sujeito é bem capaz de nos

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A DISSOLUÇÃO IMAGINÁRIA1 A hipótese freudiana da retirada da libido para longe do objeto exterior
é endossada por Lacan, que, no entanto, insiste que restam por situar as
Lucy L. da Fontoura especificidades dessa retirada na psicose.

N
a abertura da lição, Lacan reconhece o valor extraordinário do texto 1
de Freud sobre Schreber, mas aponta os elementos de enigma que Toma o caso Dora:
ali se entreabrem, a começar pela explicação freudiana do delírio
pela via da noção, então não elucidada, de narcisismo. “... o caso quase inaugural da experiência propriamente psicanalí-
Na noção corrente, o narcisismo é definido como a etapa em que, tica elaborada por Freud (...) Dora é uma histérica e como tal ela
antes de se voltar para os objetos exteriores, o sujeito toma seu próprio tem relações singulares com o objeto: (...) a ambigüidade que
permanece sobre a questão de saber qual é verdadeiramente seu
corpo como objeto. No, entanto, diz Lacan, esse não é o único sentido em
objeto de amor” (p. 108).
que o termo narcisismo é empregado:
“A autobiografia do Presidente Schreber, tal como Freud a faz vir em
Há um quarteto: Dora, seu pai, o Senhor K. e a Senhora K. O Senhor
apoio dessa noção, nos mostra, contudo, que o que repugnava ao narcisismo
K. serve de eu para Dora, na medida em que é por seu intermédio que ela
do dito presidente era a adoção de uma posição feminina para com seu pai,
pode efetivamente sustentar sua ligação com a Sra. K.
que implicava a castração. Aí está alguém que acha melhor se satisfazer
A razão pela qual um quarto mediador é necessário para Dora poder
numa relação fundada no delírio de grandeza, a saber, que a castração não
sustentar uma relação suportável vem do fato de que suas relações com o
lhe faz mais nada a partir do momento em que seu parceiro é Deus” (p.107).
pai revestem-se de identificação e rivalidade, acentuadas pelo apagamento
A seguir, questiona as fórmulas que Freud propõe da paranóia, as
da personagem materna no casal. Daí a relação triangular lhe ser especial-
quais, embora esclarecedoras, apresentam problemas. Por exemplo, na dupla
mente insustentável.
inversão “eu não o amo, eu o odeio, ele me odeia”, que fornece a chave do
Quando o Sr. K. lhe diz: “Minha mulher não é nada para mim”, rompe-
mecanismo da perseguição, o problema é o “ele”, o qual é reduzido, neutra-
se o quarteto. Lacan aponta aí o surgimento de uma “pequena síndrome de
lizado, esvaziado de sua subjetividade. O fenômeno persecutório toma o
perseguição” de Dora em relação a seu pai. Ela afirma que o pai a quer
caráter de signos indefinidamente repetidos e o perseguidor, na medida em
prostituir e entregá-la ao senhor K. em troca da manutenção de suas rela-
que ele é o seu suporte, não é mais que um objeto perseguidor.
ções ambíguas com a mulher dele.
Em terceiro lugar, questiona de que Deus se trata no delírio de Schreber
Mas Dora não é uma paranóica. Para um diagnóstico de psicose,
– uma vez que a experiência de Schreber é inteiramente distante da experi-
não basta uma reivindicação contra personagens agindo contra o sujeito;
ência mística, e qual a natureza desse Deus.
isso pode ser uma reivindicação injustificada, que participa de um delírio de
presunção, mas nem por isso é uma psicose. Para que se dê o diagnóstico
1
Texto apresentado no CARTELÃO: “Seminário As Psicoses”, baseado no capítulo VII: “A de psicose é preciso que haja a presença de distúrbios na ordem da lingua-
dissolução imaginária”, proferido por Jacques Lacan em 18 de janeiro de 1956. Rio de gem.
Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 106-120.

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“Dora experimenta em relação ao pai um fenômeno significativo, pre no interior e no exterior, é por isso que todo equilíbrio puramen-
interpretativo, até alucinatório, mas que não chega a produzir um te imaginário para com o outro está sempre condenado por uma
delírio. É contudo um fenômeno que está na via inefável, intuitiva de instabilidade fundamental” (p.111).
imputar ao outro hostilidade e má intenção, e isso, a respeito de
uma situação da qual o sujeito realmente participou, da maneira Lacan sublinha a aproximação entre eros e agressividade e a impor-
eletiva mais profunda” (p.110). tância para o homem de sua imagem especular.

2 “Essa imagem é funcionalmente essencial no homem, na medida


A questão da definição da psicose pela existência de distúrbios na em que lhe dá o complemento ortopédico dessa insuficiência na-
linguagem nos leva ao cerne do problema do narcisismo. tiva, desse desconcerto, ou desacordo constitutivo, ligado à sua
(Nós, analistas, a partir do nosso trabalho) “Consideramos a relação do prematuração no nascimento. Sua unificação não será jamais com-
narcisismo como a relação imaginária central para a relação inter-humana. pleta porque é feita precisamente por uma via alienante, sob a
(...) É, com efeito, uma relação erótica – toda identificação erótica, toda apre- forma de uma imagem estranha, que constitui uma função psíqui-
ensão do outro pela imagem numa relação de cativação erótica, se faz pela via ca original. A tensão agressiva desse ‘eu ou o outro’ está absoluta-
mente integrada a toda espécie de funcionamento imaginário no
da relação narcísica – e é também a base da tensão agressiva”. (p.110)
homem” (p.113).
A noção de estádio do espelho “põe em evidência a natureza dessa
relação agressiva e o que ela significa. Se a relação agressiva intervém nesta
Lacan passa a especular o que seria do universo humano se ele esti-
formação chamada o eu, é que ela a constitui, é que o eu é desde já por si
vesse regulado apenas pela função imaginária. Nesse quadro hipotético de
mesmo um outro, que ele se instaura numa dualidade interna ao sujeito. O
ambigüidade e vazio, só poderia se produzir aglomeração, superposição. É
eu é esse mestre que o sujeito encontra num outro, e que se instaura em
necessário algo que mantenha relação, função e distância: o complexo de
sua função de domínio no cerne de si mesmo. Se em toda relação, mesmo
Édipo encontra aí seu sentido.
erótica, com o outro há algum eco dessa relação de exclusão, ‘é ele ou eu’,
é que, no plano imaginário, o sujeito humano é assim constituído de forma
“Para que o ser humano possa estabelecer a relação mais natural
que o outro está sempre prestes a retomar seu lugar de domínio em relação
aquela do macho com a fêmea, é preciso que intervenha um tercei-
a ele, que nele há um eu que sempre é em parte estranho a ele, senhor ro (...) é preciso aí uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a
implantado nele acima do conjunto de suas tendências, de seus comporta- intervenção da ordem da palavra, isto é, do pai. Não o pai natural,
mentos, de seus instintos, de suas pulsões” (p. 110-111). mas do que se chama o pai. A ordem que impede a colisão e o
rebentar da situação no conjunto está fundada na existência desse
“Há conflitos entre as pulsões e o eu, é preciso fazer uma escolha. nome do pai”. (p. 114, grifo nosso)
Há as que o eu adota, há as que ele não adota. É o que se chama,
inadequadamente, de função de síntese do eu (pois essa síntese Para captar o que nos apresentam Freud e o Presidente Schreber é
não se realiza jamais); melhor seria dizer função de mestria. E necessário reconhecer que a “ordem simbólica subsiste como tal fora do
esse senhor, onde está ele? No interior, no exterior? Ele está sem-
sujeito, distinta de sua existência e o determinando” (p 115).

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SEÇÃO TEMÁTICA FONTOURA, L. L. DA. A dissolução imaginária.

3 enrolar-se a um só tempo e desapareça num preto hiante” (p. 117).


Lacan observa que, uma vez situada a ‘função da articulação simbóli- A partir daqui, Lacan aborda os fenômenos de linguagem que a narra-
ca’, é possível perceber a invasão imaginária da subjetividade em Schreber: tiva de Schreber nos descortina e que nos abrem, ele diz, uma dimensão
há uma dominância da relação em espelho, uma dissolução do outro en- nova na fenomenologia das psicoses.
quanto identidade. Há “fenômenos de audição extraordinariamente matizados, desde o
“O próprio sujeito é apenas um exemplo segundo de sua própria iden- cochicho imperceptível até a voz das águas, (...) um deus que não lhe diz a
tidade (uma vez que teve a revelação de que, no ano precedente, sua morte palavra significativa, aquela que põe as coisas em seus lugares”, mas lança-
se deu e foi anunciada nos jornais). Desse antigo colega, Schreber se lem- lhe uma injúria. A injúria, diz Lacan, “é a outra face, a contraparte do mundo
bra como de alguém que era mais dotado do que ele. Ele é um outro. Mas é imaginário. A injúria aniquiladora é um ponto culminante, é um dos cumes do
ainda assim o mesmo, que se lembra do outro. Essa fragmentação da iden- ato de fala” (p. 118).
tidade marca com seu próprio selo toda relação de Schreber com os seus Há “decomposições da função da linguagem magistralmente descri-
semelhantes no plano imaginário” (p. 115-116). tas no que Schreber experimenta” (p.118).
Através de exemplos na narrativa de Schreber, Lacan mostra a con- E há, “na relação do sujeito com a linguagem, como no mundo ima-
vergência deste discurso delirante com a “noção de que a identidade imagi- ginário, um perigo de que toda essa fantasmagoria se reduza a uma unida-
nária do outro está profundamente em relação com a possibilidade de uma de que aniquila a existência de Deus, que é essencialmente linguagem”
fragmentação, de um espedaçamento” (p. 116). (p.119).
Lacan interpreta a diversidade de imagens do outro entre si como, de Nessa perspectiva, Lacan situa a fala como produção do sujeito vincu-
um lado, ‘as identidades múltiplas de uma mesma personagem’, e, de outro, lado ao outro, não enquanto objeto ou imagem, mas ao outro enquanto ter-
‘as pequenas identidades enigmáticas’, como, por exemplo, as que ele cha- ceiro (ele). “O que caracteriza o mundo de Schreber é que esse ele está
ma, ‘os homenzinhos’. perdido, e que só o tu subsiste” (p. 119).

“Essas identidades penetram Schreber, habitam-no, dividem-no “O drama da relação com o ele subtende toda a dissolução do
ele próprio (...)mas não se mantém em sua autonomia, isto é, não mundo de Schreber, em que vemos o ele se reduzir a um só parcei-
podem continuar a prejudicá-lo senão realizando a operação que ro, esse Deus assexuado e polissexuado ao mesmo tempo, en-
ele chama a afeição pelas terras, cuja noção ele não teria sem a globando tudo o que existe ainda no mundo com o qual Schreber
língua fundamental” (p. 116). está se defrontando. Seguramente, graças a esse Deus subsiste
alguém que pode dizer uma palavra verdadeira, mas essa palavra
Através do recurso às ‘terras’ – não somente ao chão, diz Lacan, mas tem por propriedade sempre ser enigmática. É a característica de
às terras planetárias, às terras astrais, que aparece em toda cultura huma- todas as palavras da língua fundamental. Por outro lado, esse
na; através da referência a uma fraternidade, uma confederação de estudan- Deus parece ser, ele também, a sombra de Schreber. Ele é atingi-
tes do tempo em que Schreber estudava, Lacan situa a necessidade de uma do por uma degradação imaginária da alteridade, que faz com que
ele seja como Schreber surpreendido por uma espécie de
“rede de natureza simbólica que conserve certa estabilidade da imagem nas
feminização” (p.119).
relações inter-humanas, para que toda tela da relação imaginária não torne a

32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 33
SEÇÃO DEBATES BARATTO, G. O desejo do outro...

O DESEJO DO OUTRO E O ISSO Fazendo-se leitor de Freud, Lacan interpretará os representantes psí-
NA TEORIA FREUDIANA quicos inconscientes à luz da teoria do significante. O recalcamento originá-
rio corresponde à inscrição de um primeiro significante (S1), instituído como
Geselda Baratto primeiro representante do desejo do Outro, denominado significante mestre.
Sozinho, isto é, fora da articulação à cadeia significante, ele é destituído de

E
mbora haja uma distância temporal de mais de três décadas entre o sentido. Sua significação é produzida a posteriori, a partir de sua articulação
surgimento do conceito de Isso na obra de Freud e o conceito de com outros significantes, ou seja, de sua amarração numa cadeia. Ele, por
desejo do Outro na obra de Lacan, é possível estabelecer entre am- um lado, engendra a cadeia significante e, por outro, comanda-a. A conseqü-
bos alguns pontos de semelhança conceituais. Certamente não se pode, ência imediata da inscrição do S1 é a de revelar a falta-a-ser do sujeito na
pura e simplesmente, homologá-los; pode-se, contudo, destacar alguns pontos estrutura da linguagem, introduzindo um vazio cuja função é a de ser causa
em comum. O conceito de desejo do Outro é fundamental na teoria de Lacan do desejo. No centro da estrutura inconsciente, operando como “núcleo trau-
e guarda uma relação de proximidade conceitual com a instância do Isso na mático causal”, encontra-se um representante que celebra, por sua presen-
teoria de Freud, tal como formulado na segunda tópica. Um e outro remetem, ça, uma perda originária fundamental e que se situa na origem dos proces-
ao seu modo, à noção de falta e de indeterminação. sos inconscientes.
Ao elaborar a segunda tópica, Freud introduz modificações de suma O recalcamento primário instaura o objeto absoluto do desejo como
importância sobre o aparelho psíquico. À vigorosa divisão em três sistemas para sempre perdido, inscrevendo um primeiro símbolo encarregado de re-
– consciente, pré-consciente e inconsciente – é acrescida uma nova con- presentar essa perda e introduzindo a dimensão de um imperativo de gozo
cepção. Na segunda tópica Freud formula a concepção estrutural do apare- cuja característica é a de ser aberta, infinita. No momento em que a pulsão
lho psíquico, introduzindo as instâncias tópicas do Isso, Eu e Supereu. Es- se faz representar no inconsciente, o Isso emerge como uma instância de
sas novas instâncias pertencem e integram o sistema inconsciente, tal como desejo alheia ao sujeito, impondo de forma determinante sua dose de traba-
definido na primeira tópica. lho ao aparelho psíquico. Concebido como núcleo originário do inconsciente,
A descoberta de que o inconsciente não é um atributo exclusivo do o Isso determina o sujeito como referido a um desejo imperativo, causa de
polo pulsional da estrutura psíquica vem a se constituir, ao lado da introdu- uma tensão constante rumo à busca de uma satisfação impossível. Freud é
ção do conceito de pulsão de morte, no grande salto da segunda tópica, específico quanto ao fato de a pulsão não ingressar no psíquico senão por
conduzindo Freud a designar o lugar que abriga os representantes da pulsão delegação, permitindo-nos depreender que ele introduz uma distinção entre
com o nome de isso. Correlacionando-se a primeira tópica com a segunda, a pulsão e sua representação. O primeiro representante da pulsão traça um
depreende-se que o recalcamento primário dá origem à instância do Isso. As limite, uma borda entre o que é capturado pela representação e o que se
instâncias do Eu e do Supereu dependem da entrada em cena do recalcamento furta de ser apreendido por ela. Numa linguagem lacaniana, determina a
propriamente dito. Antes do processo de recalcamento, temos apenas uma duplicidade dos registros do real e do simbólico, dando origem ao inconsci-
massa biológica indiferenciada, submetida à pura necessidade biológica, ente, definido como trama de representações.
ou, como se expressa Lacan, o vivente. Em suma, o real do corpo orgânico, O que a segunda tópica permite depreender é que a própria dinâmica
não marcado pelo desejo do Outro. inconsciente se sustenta de um resto que escapa ao registro da representa-

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SEÇÃO DEBATES BARATTO, G. O desejo do outro...

ção e de sua trama em cadeia e que o Isso é o reduto da pulsão, definida dizer o que quer. O Isso representa uma instância de “impulsos plenos de
aqui como limite do que as palavras podem nomear. Em outros termos, há desejo” (Freud, 1980/1933a, p. 95) e só pode ser abordado por analogias tais
na pulsão um real impossível de ser simbolizado. como caldeirão fervilhante, desejos caóticos, força desconhecida. Ele o de-
O Isso freudiano remete à noção de uma instância impessoal, cuja fine como caracterizado pelos seguintes atributos: fonte de desejos
característica essencial é justamente a ausência de determinação. Pura ins- indestrutíveis e indomináveis; desconhece o fator tempo; não possui organi-
tância de desejo que não pode ser enunciado na primeira pessoa, ele se zação própria; desconhece qualquer forma de valor e não pode, portanto, ser
caracteriza de forma fundamental pela indeterminação. Lacan (1992) assim qualificado nem de moral nem de imoral; desconhece o bem, o mal, o certo,
o define: “o Es [...] é o que no sujeito é suscetível de tornar-se Eu (je), pois o errado. Por constituir-se numa magnitude libidinal dispersa e numa exigên-
esta é ainda a melhor definição que podemos ter do Es” (p.23). cia de satisfação que não tem fim, a força de sua pressão é constante
De fato, o primeiro tempo de estruturação do desejo concerne à sua (konstante Kraft), não deixando nenhuma paz e nenhum repouso àquele que
indeterminação, ou seja, puro efeito da estrutura da linguagem, ele se apre- a ele se vê atrelado e submetido. Freud destaca o Drang como o fator de
senta inicialmente em estado bruto, no que “a função do desejo é resíduo pressão e de força ininterrupta da pulsão, sendo “[...] dessa pressão que se
último do efeito do significante no sujeito” (Lacan, 1998, p. 147). O primeiro deriva o seu nome Trieb” (Freud, 1980/1933b, p. 121).
tempo lógico de origem do sujeito consiste no fato de ele estar referido a um O Isso representa uma exigência de gozo impossível de ser satisfeita,
desejo que opera de modo acéfalo, isto é, sem que a ele seja atribuído um acarretando um trabalho psíquico que é, de fato, infindável. A exigência de
sujeito determinado. trabalho que a pulsão impõe consiste no esforço, tão incessante quanto vão,
O Outro do desejo ao qual o sujeito está referido é o lugar da palavra realizado pelo aparelho psíquico de ligá-la a um objeto determinado, mas
como tal, constituindo-se numa pura instância discursiva impessoal, caracteri- este, por sua vez, é o que há de mais variável, e não está originariamente
zada pela alteridade absoluta, o que torna impossível a especularização de seu ligado a ela (Freud, 1980/1915a, p.143). No que concerne a sua satisfação,
desejo. Diante da indeterminação do desejo do Outro, a posição do sujeito só a pressão constante da pulsão por um lado, e a ausência de objeto especí-
pode ser igualmente indeterminada. A fórmula do fantasma fundamental – $<>a fico, por outro, denota que há na pulsão algo da ordem de um real impossível.
– assinala o lugar do sujeito como um objeto para o desejo do Outro, mas um A sua satisfação é, como afirma Lacan (1998), paradoxal, “quando olhamos
objeto originariamente desprovido de imagem. A incógnita em que se constitui o de perto para ela, apercebemo-nos de que entra em jogo algo de novo – a
desejo do Outro coloca o sujeito diante da tarefa de tentar apreendê-lo, procu- categoria do impossível” (p.158).
rando assim responder ao que ele é. É deste modo que o sujeito se origina no Ao longo de toda a sua obra, Freud sempre insistiu sobre o fato de
lugar do Outro, concebido como detentor de um possível saber sobre si. Por que há algo na própria natureza da pulsão que impede a sua plena satisfa-
estar irremediavelmente separado de seu ser, o sujeito é levado a supor que ção. Ela é sempre parcial e incompleta. Com efeito, o objeto visado pela
haja em algum lugar um saber sobre o que ele é. Sustentado por esta crença, pulsão, e com o qual ela satisfar-se-ia, é o objeto absoluto, denominado por
será conduzido a produzir uma série de alienações identificatórias com todo ele de das Ding. Esse objeto imaginariamente total, pleno, apresenta-se no
aquele que, imaginariamente, for instaurado neste lugar do Outro do desejo. psíquico como ausente. Sua ausência configura-se como um buraco, um
Na teoria de Freud, o Isso se constitui numa instância de desejo im- vazio. Seu estatuto de real, isto é, de impossível, determina o trajeto de
pessoal que exige ser satisfeita, não havendo, entretanto, meios de fazê-lo “vaivém” ininterrupto da pulsão em direção ao Outro (p. 184). O movimento

36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 37
SEÇÃO DEBATES BARATTO, G. O desejo do outro...

repetitivo da pulsão, no que ela visa capturar o desejo do Outro, é uma de desejável, ele transforma o desejo do Isso em desejo próprio, convertendo-
suas características fundamentais. Esse projeto, entretanto, falha, e é nisto se num vassalo assujeitado às suas vontades e caprichos. O Eu vivencia as
que a pulsão só pode repetir-se enquanto busca que reitera sempre o mes- exigências do Isso como um desejo ao qual ele deve se submeter. Para
mo fracasso. agradá-lo, ele está disposto a fazer muitas coisas, inclusive fazer-se “um
No texto cânone sobre a relação da pulsão com a repetição – “Além escravo submisso que corteja o amor de seu senhor” (p. 73 ).
do princípio do prazer” (1980/1920) – a estrutura da repetição é apresentada Ao formular a segunda tópica, Freud esclarece como o inconsciente,
tomando como modelo a primeira experiência de satisfação. Freud retoma a além de ser uma instância de pensamento, é também algo mais. Ele é, ao
idéia desenvolvida no “Projeto para uma psicologia científica” (1980/1895), no lado de um contínuo pensar, a tópica por excelência de um desejo inercial,
qual elabora a estrutura do desejo como originada numa “experiência de repetitivo e insistente. A essa forma paradoxal de desejo inconsciente ele
satisfação” que, ao deixar atrás de si um traço de memória, converte-se no denominou de Isso. Pronome impessoal escolhido por ele para designar na
modelo de toda busca ulterior efetuada pelo sujeito. Não resulta difícil segunda tópica o lugar que, ao dar morada aos representantes psíquicos da
depreender que o sujeito busca por um impossível, pois esta primeira expe- pulsão, constitui-se num território estrangeiro e inacessível ao Eu. O Isso
riência de satisfação não tem outro modo de existência senão no seu imagi- freudiano é o Outro do desejo impessoal, trans-individual, diante do qual o
nário. Ela corresponde ao mito de que teria havido um momento de plenitu- sujeito está exposto sem defesas, num estado de completo desamparo
de, de satisfação plena do desejo, passível de ser revivida. A pulsão nunca (Hilflosigkeit), e que desperta nele angústia.
deixa de se esforçar na busca da satisfação completa. Ela é eminentemente No nível da estrutura do Isso, estamos diante da presença de um
conservadora. Seu objetivo é o de restabelecer um estado anterior, cujo mo- desejo que, por ser indeterminado, só pode deixar o sujeito diante da mais
delo é a experiência primária de satisfação. A diferença entre a satisfação completa indeterminação. No tempo lógico de instauração do Isso, a instân-
exigida e o que é de fato alcançado é causa de tensão persistente, determi- cia narcísica do Eu ainda não foi constituída, de modo que só podemos falar
nando a sua repetição e não permitindo qualquer ponto de parada (Freud, em sujeito por vir. O estabelecimento do sujeito do inconsciente requer, ne-
1980/1920). cessariamente, o entrelaçamento entre o recalcamento originário e o recalque
No texto o “Ego e o Id” (1980/1923) Freud analisa as relações de propriamente dito, ou seja, o ordenamento do sujeito em torno de uma ca-
dependência, submissão e desamparo do Eu diante das exigências provin- deia significante constitutiva de um desejo singularizado na estrutura do fan-
das do Isso, esclarecendo que o Eu surge como uma parte que gradativamente tasma.
vai se destacando e se diferenciando do Isso. Se o Eu não é senão uma O fantasma representa o esforço do sujeito em responder ao que o
instância constituída por diferenciação do Isso, as fronteiras entre ambos Isso quer, constituindo-se num aparelho para dominar a sua demanda de
não são nítidas, tão pouco estabelecidas de modo definitivo. No mesmo gozo sem limites. A sua resistência em dizer o que quer obriga o sujeito a se
texto ele apresenta o Eu como um objeto libidinal capturado e investido pelo fazer um intérprete de seu desejo. O fantasma constitui-se num código de
desejo, definindo o narcisismo como o movimento pelo qual o Eu se identifi- deciframento construído pelo sujeito para saber o que o Outro do desejo quer
ca com o desejo do Isso, ao assumir as características do objeto perdido. dele. Ele o interpreta e lhe dá uma determinação, estabelecendo assim o
No esforço em se fazer amável, o Eu se propõe a ocupar o lugar deixado seu próprio desejo que passa a ter o estatuto de um desejo formulado no
vago pelo objeto, oferecendo-se como objeto de amor. No afã em se fazer singular. A determinação do desejo, na estrutura do fantasma, é o resultado

38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 39
SEÇÃO DEBATES RESENHA

de uma resposta produzida pelo sujeito à incógnita do desejo do Outro, em MÃE ARANHA
cuja esteira se edifica o Eu narcísico como objeto imaginário. É no fantasma

C
que o sujeito se sustenta como desejante, e é em torno dele também que se ostumo dizer a meus pacientes: – mãe
edificam os objetos privilegiados ofertados ao gozo exigido pelo Isso. só tem uma, graças a deus... As mães
A pulsão só pode se satisfazer com objetos fantasmáticos e parciais, são, somos, muito chatas, muito mes-
que ocupam, sem preencher, o vazio do objeto causa do desejo. O desejo de mo, grudamos nos filhos com uma solicitude vis-
um sujeito se edifica sob o fundamento de um vazio que é interior à estrutura cosa. Quando presentes, somos ostensivas,
psíquica, melhor dizendo, que faz parte integrante dessa mesma estrutura. grandiloqüentes, mas, apesar disso, todo filho
se queixa de algum tipo de descuido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Coraline é personagem de um filme de
animação (“Coraline”, direção Henry Selick, his-
Freud, S. Projeto para uma psicologia científica. In: Obras Completas. Rio de tória de Neil Gaiman). Ela só tinha uma mãe,
Janeiro: Imago, 1980/1895, Vol.I. aliás, bem parecida comigo: do tipo que dividia
________. Artigos sobre a metapsicologia. Os instintos e suas vicissitudes. In: os olhos entre a filha e o teclado do computador
Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980/1915a, Vol. XIV. e a deixava livre para brincar, mas de tal maneira que a menina sentia-se
________. Além do princípio do prazer. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: abandonada. Os pais dela escreviam sobre plantas, mas não cuidavam do
Imago, 1980/1920, Vol. XVIII.
próprio jardim. Sua casa era árida, a comida ruim, feita pelo pai. Também me
_________. O ego e o id. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980/
identifiquei com eles, por tantas vezes ter ficado escrevendo sobre crianças
1923, Vol. XIX.
em vez de me dedicar à verdadeira infância das minhas filhas em tempo
_________. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise. Conferência
XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas. Rio de integral. Sempre resta uma culpa.
Janeiro: Imago, 1980/1933a, Vol. XXII. Coraline sonhava com outra família: uma casa cálida, cheirando a
_________. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise. Conferência comida fresca e gostosa feita por uma mãe prendada. Quanto aos pais, não
XXXII. Ansiedade e vida instintual. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, deviam ter vontade de fazer mais nada além de brincar com ela. Já o jardim
1980/1933b, Vol. XXII. de seus anseios era uma floresta viva de espécimes mágicos e impressio-
Lacan, J. O Seminário. Livro 4. A relação de objeto e as estruturas freudianas. nantes. Ela encontra tudo isso num mundo paralelo, ao qual tem acesso
Porto Alegre: Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, 1992. através de um buraco na parede, com um único agravante sinistro: nele seus
_________. O Seminário. Livro 6. O desejo e sua interpretação. Texto inédito. “outros pais” são iguais aos dela, mas eles têm botões no lugar dos olhos...
(Publicação não comercial de circulação interna da Associação Psicanalítica Esse mundo paralelo existe para todos nós, Freud o chamava de ‘Ro-
de Porto Alegre – APPOA.), 2002.Lacan, J. O Seminário. Livro 11. Os quatro
mance familiar do neurótico’, no qual imaginamos que até poderíamos ser
conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
adotivos, filhos de uma família mais nobre. Curiosamente, essa fantasia clás-
1998.
sica encontrou uma nova fórmula, sobre a qual tenho escutado em meu
consultório, a da filha que sonha com uma mãe ao modo antigo, do tipo que

40 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 41
RESENHA AGENDA

alimenta, agasalha e não tem vida própria. JUNHO – 2009


Porém, Coraline caiu numa armadilha: aquela mãe tão atenciosa era
na verdade uma bruxa de aparência aracnídea; o ninho agradável não passa- Dia Hora Local Atividade
04, 18 19h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Eventos
va de uma ilusão, uma teia destinada a prender a menina para roubar-lhe os e 25
olhos. A bruxa nutria-se de olhos infantis, com os quais aumentava seu po- 04 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva
der maligno. 05 e 19 8h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Aperiódicos
05, 19 14h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista
Essa “outra mãe” em cujo mundo Coraline ingressa por um túnel, e 26
numa espécie de parto ao contrário, ainda vive oculta dentro das mães ocu- 08 e 22 20h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão do Correio
padas, trabalhadoras, como eu. É aquela que possui um calor que atrai, mas 18 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva aberta aos
é como uma cobra que hipnotiza para melhor devorar sua cria. Se essa Membros da APPOA
personagem materna assusta tanto, é por que a desejamos em fantasia
como a que este filme capta: essa é a mãe da primeira infância.
Mamãe pode até ser a presidente da república, médica, motorista,
mas para nós será sempre uma dragoa de quem queremos ser o maior
tesouro, sobre o qual ela passe a vida sentada em cima defendendo-nos.
Hoje, a vida real de mães e filhos passa longe da caverna da dragoa, mas no
ofício da maternidade sempre oscilaremos entre dois opostos que se
complementam: a mãe boa, que nutre e aquece, e a mãe-aranha que aprisi-
ona na sua teia para melhor devorar. A vida pode ser arrojada, mas as fanta-
sias são conservadoras.

PRÓXIMO NÚMERO

RELENDO FREUD

42 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 43
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

GESTÃO 2009/2010
Presidência: Lúcia Alves Mees
1a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg
2a Vice-Presidência: Marieta Luce Madeira Rodrigues
1a Secretária: Maria Elisabeth Tubino
2° Secretários: Otávio Augusto Winck Nunes e Ieda Prates da Silva
1a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz
2a Tesoureira: Liz Nunes Ramos

MESA DIRETIVA
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Costa, Ana Laura Giongo, Beatriz Kauri dos Reis,
Carmen Backes, Emília Estivalet Broide, Inajara Erthal Amaral, Lucia Serrano Pereira,
Márcia da Rocha Lacerda Zechin, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Ângela Bulhões,
Maria Elisabeth Tubino, Nilson Sibemberg, Norton Cezar dal Follo da Rosa Júnior,
Regina de Souza Silva, Robson de Freitas Pereira, Sandra Djambolakdjian Torosian,
Siloé Rey, Simone Goulart Kasper, Tatiane Reis Vianna.

EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS
Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922
e-mail: appoa@appoa.com.br - home-page: www.appoa.com.br
Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do Correio
Coordenação: Fernanda Breda e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior
Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt, Gerson Smiech Pinho,
Márcia Lacerda Zechin, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,
Marta Pedó, Mercês Gazzi e Robson de Freitas Pereira
S U M Á R I O
EDITORIAL 1 N° 180 – ANO XVI JUNHO – 2009 ISSN 1983-5337
NOTÍCIAS 3
SEÇÃO TEMÁTICA 11
DE UM DEUS QUE NÃO ENGANA,
E DE UM QUE ENGANA
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr 11
O FENÔMENO PSICÓTICO LEITURAS SOBRE O
E O SEU MECANISMO
Maria Ângela Bulhões 23 SEMINÁRIO “AS PSICOSES”
A DISSOLUÇÃO IMAGINÁRIA
Lucy L. da Fontoura 28

SEÇÃO DEBATES 34
O DESEJO DO OUTRO E O ISSO
NA TEORIA FREUDIANA
Geselda Baratto 34

RESENHA 41
MÃE ARANHA 41

AGENDA 43
SEÇÃO TEMÁTICA

48 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 180, jun. 2009. 49

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