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romance O Amor é Fodido, do escritor português Miguel Esteves Cardoso, assim como
estudar de que forma a obra sinaliza um pertencimento ao mundo pós-moderno.
Introdução
Miguel Esteves Cardoso, nascido em Portugal, em 1955, é um jornalista e escritor
bastante atuante no campo cultural português desde a década de 80, cuja obra é composta por
romances, contos e compilações de crônicas que o autor escreve para jornais portugueses, como
Expresso e Público. As crônicas de Esteves Cardoso têm como tema constante a relação do
autor com as mulheres, o que levou Maria Filomena Barradas a chamá-lo de “o cronista
apaixonado” (BARRADAS, 2012). Segundo Barradas, o advento da internet e mais
recentemente o papel circulatório que as mídias socias exercem contribuíram para que as
crônicas de Esteves Cardoso, tanto antigas quanto atuais, chegassem a um público que até então
não o conhecia, tornando-se popular entre os leitores jovens (BARRADAS, 2012).
Refletindo sobre vários tópicos, Miguel Esteves Cardoso ganhou
visibilidade, ainda durante as décadas de 80 e 90 do século
passado, sobretudo graças às crônicas que publicou nos
semanários Expresso e O Independente, do qual foi também
diretor de redação. A rápida reunião em volume desses textos
garantiu que eles não caíssem no olvido (esquecimento),
permitindo ao leitor atual confrontar-se com uma visão acerca
da identidade portuguesa que é, em simultâneo, conservadora,
divertida e disruptiva. (BARRADAS, 2012, p.139)
Embora seja mais reconhecido como crônista, “um dos mais originais pensadores da
portugalidade” (BARRADAS, 2014, p.139), Miguel Esteves Cardoso também se dedica à
ficção. O Amor é Fodido, o objeto de estudo desta pesquisa, é um romance lançado em 1994
que nos apresenta o relato de João, um septuagenário internado em um asilo, a respeito do
grande amor de sua vida, Teresa, e da relação atribulada e intensa que os dois mantiveram por
anos, até a suposta morte da amada.
Utilizamos o termo “suposta” porque o relato, em meio à confusão narrativa de João,
passa por várias reviravoltas, partindo-se em imagens e lembranças fragmentadas, o que remete
a Bauman. “A imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos” (BAUMAN, 1998,
p. 36). O primeiro parágrafo é sobre a tentativa fracassada de suicídio duplo do casal e que foi
mal sucedida porque João desistiu no último instante, resultando apenas na morte de Teresa,
morte esta a qual, na verdade, não ocorreu, já que fora apenas um plano de Teresa para se livrar
da relação conturbada que ela e João mantinham.
Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda
estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te
matar. Merecias uma morte mais violenta. Se eu soubesse, não
te tinha deixado suicidar com aquelas mariquices todas. Aposto
que não sentiste quase nada. Não está certo. Eu não morri e sofri
mais do que tu. Devias ter sofrido. Porque eras má. Eu pensava
que não. Enganaste-me. Alguma vez pensaste no que isso
representou na minha vida miserável? Agora apetece-me
assassinar-te de verdade. É indecente que já estejas morta.
(CARDOSO, 2009, p. 4)
O que era pra ser a narração de um amor conturbado é, na verdade, uma espécie de
investigação que João, atormentado pelas lembranças traumáticas e confuso devido à demência
progressiva, propõe-se a fazer para tentar lembrar como a história entre ele e Teresa se
desenrolou, ao mesmo tempo em que pequenas reflexões e comentários vagos convivem com
as várias reviravoltas pelas quais a trama passa, fazendo com que o leitor se perca nesse mundo
criado e recriado pela memória.
Em vez de nos virmos, vêm-nos lágrimas aos olhos. O mal de
falar. A dor de não poder segurá-la. A angústia de já não nos
lembrarmos. Depois de tantos anos de lembrança e saudade. O
mal de fingir é que se esquece a verdade. (CARDOSO, 2009,
p.80)
Entre as várias idas e voltam que o narrador-personagem dá, misturando passado,
presente e futuro, entrelaçando experiência vivida e experiência imaginada, abarcando arcos
temporais imprecisos, nós, os leitores, acabamos por nos confundirmos várias vezes acerca do
que está acontecendo na trama, ao mesmo tempo em que o processo de loucura pelo qual João
passa nos parece cada vez mais claro.
Sem dormir há três dias. Saindo só para te ver entrar em casa. A
repetir vários nomes possíveis. Isabel. Mariana. Catarina. E
depois o meu e o teu. Se houvesse um amor abandonado à sorte
dele, só Deus sabe a companhia que me faria, se eu deixasse.
Quantas vezes, ao certo, cheguei eu a perder-te, para as mesmas
vezes, vezes dez, enlouquecer de tanto te chamar? Tu dirás.
(CARDOSO, 2009, p.107)
Miguel Esteves Cardoso, na escritura do romance, utiliza a técnica romanesca de
expressão do tempo interior através não só da transmissão dos acontecimentos vividos no
passado, mas da recuperação das sensações que esses acontecimentos deixaram, vivências de
um passado remoto e de um passado recente remodelados pela ação do tempo, da experiência
subsequente, da imaginação e da reflexão. “O romance é a babel que se manifesta ao redor de
qualquer objeto”, afirma Fiorin, para quem “o romance é o gênero mais aberto à mudança, à
diversidade, deslocando a percepção sobre o mundo e sobre a linguagem” (FIORIN, 2006,
p.119).
Vera Leão Brito, ao analisar a temporalidade no romance Nítido Nulo (2006), do
escritor português Vergílio Ferreira, aponta para o fato de que a mente humana, ao recuperar,
por meio da memória, a experiência vivida em acontecimentos passados, acaba trazendo estas
lembranças para o agora, revivendo estes episódios no presente, mas não da mesma forma que
anteriormente, e sim fazendo uma nova leitura do que houve, dando uma nova roupagem
às recordações, cobrindo-as de elementos e imagens atuais.
“Os acontecimentos que não são exatamente iguais aos vividos
no passado, devido aos diferentes aspectos entre o acontecido e
o recordar atual, se entrelaçam com o presente da enunciação,
fazendo com que vocábulos de diferentes realidades temporais
se confundam e se inter-relacionem de forma aparentemente
caótica e desorganizada (LEÃO BRITO, 2006, p.5).”
Vera, ao examinar a superfície textual em que Vergílio Ferreira arquiteta um presente
baseado em rememorar o ontem e imaginar o amanhã, afirma que “nesse presente que
reinventa o passado e projeta um futuro próximo, surge um tempo existencial no qual a
personagem-narrador exprime suas reflexões sobre a existência humana” (LEÃO BRITO,
2006, p.6), sendo este tempo existencial o mesmo que acreditamos existir em O Amor é Fodido,
um estado de espírito que se utiliza do fluxo de consciência e da constante mudança de eixos
temporais para tentar reproduzir no momento atual da enunciação não apenas imagens que já
aconteceram como ainda estão para acontecer.
O Amor é Fodido se tornou best seller no país de origem e foi traduzido para vários
idiomas. Foi lançado no Brasil e recebeu elogios do escritor Mario Prata1 e do crítico José
Geraldo Couto2, da Folha de S. Paulo. O livro mostra uma Portugal que, segundo Rui Ramos
(2003), conhecia a normalização democrática após anos de ditadura, deixando de ser um país
passado para fazer parte da modernidade que significava a entrada do país na Comunidade
1
Mario Prata, a respeito de Miguel Esteves Cardoso, disse que “Miguel Esteves Cardoso é hoje, na minha opinião,
o melhor escritor de Portugal, anos-luz na frente do segundo colocado. A geração lusitana mais velha talvez prefira
o melancólico e prolixo Saramago. Mas Miguel já conquistou os mais jovens. Seus livros de crônicas atingem 20
edições. E este seu primeiro romance já está na terceira. Miguel tem uma vantagem sobre os demais portugueses.
Filho de mãe inglesa e pai português, estudou em Oxford. Vê, portanto, os seus compatriotas com outros olhos.
Ninguém como ele, consegue tão bem descrever a alma, a angústia e a melancolia dos portugueses. E gozá-los.”
Disponível em: https://marioprata.net/cronicas/o-amor-segundo-miguel-esteves-cardoso
2
Em sua crítica a respeito de O Amor é Fodido, José Geraldo Couto disse que o livro é “divertido, inventivo,
corajoso e surpreendente”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/2/20/ilustrada/21.html
Econômica Europeia (CEE) em 1986. Para Maria Filomensa Barradas, as portas estavam
Cronograma
De modo a contemplar a complexidade da pesquisa que se pretende desenvolver, o
cronograma dos próximos 2 (dois) anos conta com:
Cursar disciplinas X X
Ajustes no projeto
X
inicial
Levantamento
bibliográfico e X X
revisão de literatura
Sistematização e
descrição do corpus X X
da pesquisa
Apresentação de
trabalho em evento X
científico
Análise e
interpretação dos X
resultados
Exame de
X
Qualificação
Elaboração de artigo
para publicação em X
periódico científico
Revisão da versão
final para o Exame X X
de Defesa
Defesa da
X
dissertação
Cronograma detalhado
1º SEMESTRE (2019.2)
Levantamento bibliográfico, análise textual, documental, fichamento dos textos, coleta
de dados secundários.
Presença nas aulas e matérias obrigatórias do programa. Não está descartada a presença
em disciplinas de outros programas.
Bibliografia
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1999.
BARRADAS, Maria Filomena. Miguel Esteves Cardoso - O Cronista Apaixonado.
_________________________ Uma Nação a Falar Consigo Mesma – O Independente
(1988-1995). Tese de Doutoramento apresentada à Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Memória e vida; textos escolhidos por Gilles Deleuze. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
BRITO, Vera Maria Miranda Leão. A Personagem e o Tempo. Tese de Mestrado apresentada
à Universidade de São Paulo (USP). 2006
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FIORIN, José Luiz de. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo, Ática, 2006.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo - história, teoria, ficção. Rio de Janeiro,
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JAMESON, F. A virada cultural: reflexões sobre o pós-modernismo. Rio de Janeiro:
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___________. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática,
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LEITE, Ligia Chiapinni Moraes. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 1993.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. São Paulo: José Olympio, 2002.
NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo: Ática, 1992.
_______________. Passagem para o Poético. São Paulo: Ática, 1992.
PEIRUQUE. Elisabete. Lembrar é preciso: um diálogo com o esquecimento e a invenção do
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Unicamp, 2007.
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