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Resumo: O projeto pretende analisar a forma como passado e presente se entrelaçam no

romance O Amor é Fodido, do escritor português Miguel Esteves Cardoso, assim como
estudar de que forma a obra sinaliza um pertencimento ao mundo pós-moderno.

Introdução
Miguel Esteves Cardoso, nascido em Portugal, em 1955, é um jornalista e escritor
bastante atuante no campo cultural português desde a década de 80, cuja obra é composta por
romances, contos e compilações de crônicas que o autor escreve para jornais portugueses, como
Expresso e Público. As crônicas de Esteves Cardoso têm como tema constante a relação do
autor com as mulheres, o que levou Maria Filomena Barradas a chamá-lo de “o cronista
apaixonado” (BARRADAS, 2012). Segundo Barradas, o advento da internet e mais
recentemente o papel circulatório que as mídias socias exercem contribuíram para que as
crônicas de Esteves Cardoso, tanto antigas quanto atuais, chegassem a um público que até então
não o conhecia, tornando-se popular entre os leitores jovens (BARRADAS, 2012).
Refletindo sobre vários tópicos, Miguel Esteves Cardoso ganhou
visibilidade, ainda durante as décadas de 80 e 90 do século
passado, sobretudo graças às crônicas que publicou nos
semanários Expresso e O Independente, do qual foi também
diretor de redação. A rápida reunião em volume desses textos
garantiu que eles não caíssem no olvido (esquecimento),
permitindo ao leitor atual confrontar-se com uma visão acerca
da identidade portuguesa que é, em simultâneo, conservadora,
divertida e disruptiva. (BARRADAS, 2012, p.139)
Embora seja mais reconhecido como crônista, “um dos mais originais pensadores da
portugalidade” (BARRADAS, 2014, p.139), Miguel Esteves Cardoso também se dedica à
ficção. O Amor é Fodido, o objeto de estudo desta pesquisa, é um romance lançado em 1994
que nos apresenta o relato de João, um septuagenário internado em um asilo, a respeito do
grande amor de sua vida, Teresa, e da relação atribulada e intensa que os dois mantiveram por
anos, até a suposta morte da amada.
Utilizamos o termo “suposta” porque o relato, em meio à confusão narrativa de João,
passa por várias reviravoltas, partindo-se em imagens e lembranças fragmentadas, o que remete
a Bauman. “A imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos” (BAUMAN, 1998,
p. 36). O primeiro parágrafo é sobre a tentativa fracassada de suicídio duplo do casal e que foi
mal sucedida porque João desistiu no último instante, resultando apenas na morte de Teresa,
morte esta a qual, na verdade, não ocorreu, já que fora apenas um plano de Teresa para se livrar
da relação conturbada que ela e João mantinham.
Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que ainda
estivesses viva. Só dois ou três minutos: o suficiente para te
matar. Merecias uma morte mais violenta. Se eu soubesse, não
te tinha deixado suicidar com aquelas mariquices todas. Aposto
que não sentiste quase nada. Não está certo. Eu não morri e sofri
mais do que tu. Devias ter sofrido. Porque eras má. Eu pensava
que não. Enganaste-me. Alguma vez pensaste no que isso
representou na minha vida miserável? Agora apetece-me
assassinar-te de verdade. É indecente que já estejas morta.
(CARDOSO, 2009, p. 4)
O que era pra ser a narração de um amor conturbado é, na verdade, uma espécie de
investigação que João, atormentado pelas lembranças traumáticas e confuso devido à demência
progressiva, propõe-se a fazer para tentar lembrar como a história entre ele e Teresa se
desenrolou, ao mesmo tempo em que pequenas reflexões e comentários vagos convivem com
as várias reviravoltas pelas quais a trama passa, fazendo com que o leitor se perca nesse mundo
criado e recriado pela memória.
Em vez de nos virmos, vêm-nos lágrimas aos olhos. O mal de
falar. A dor de não poder segurá-la. A angústia de já não nos
lembrarmos. Depois de tantos anos de lembrança e saudade. O
mal de fingir é que se esquece a verdade. (CARDOSO, 2009,
p.80)
Entre as várias idas e voltam que o narrador-personagem dá, misturando passado,
presente e futuro, entrelaçando experiência vivida e experiência imaginada, abarcando arcos
temporais imprecisos, nós, os leitores, acabamos por nos confundirmos várias vezes acerca do
que está acontecendo na trama, ao mesmo tempo em que o processo de loucura pelo qual João
passa nos parece cada vez mais claro.
Sem dormir há três dias. Saindo só para te ver entrar em casa. A
repetir vários nomes possíveis. Isabel. Mariana. Catarina. E
depois o meu e o teu. Se houvesse um amor abandonado à sorte
dele, só Deus sabe a companhia que me faria, se eu deixasse.
Quantas vezes, ao certo, cheguei eu a perder-te, para as mesmas
vezes, vezes dez, enlouquecer de tanto te chamar? Tu dirás.
(CARDOSO, 2009, p.107)
Miguel Esteves Cardoso, na escritura do romance, utiliza a técnica romanesca de
expressão do tempo interior através não só da transmissão dos acontecimentos vividos no
passado, mas da recuperação das sensações que esses acontecimentos deixaram, vivências de
um passado remoto e de um passado recente remodelados pela ação do tempo, da experiência
subsequente, da imaginação e da reflexão. “O romance é a babel que se manifesta ao redor de
qualquer objeto”, afirma Fiorin, para quem “o romance é o gênero mais aberto à mudança, à
diversidade, deslocando a percepção sobre o mundo e sobre a linguagem” (FIORIN, 2006,
p.119).
Vera Leão Brito, ao analisar a temporalidade no romance Nítido Nulo (2006), do
escritor português Vergílio Ferreira, aponta para o fato de que a mente humana, ao recuperar,
por meio da memória, a experiência vivida em acontecimentos passados, acaba trazendo estas
lembranças para o agora, revivendo estes episódios no presente, mas não da mesma forma que
anteriormente, e sim fazendo uma nova leitura do que houve, dando uma nova roupagem
às recordações, cobrindo-as de elementos e imagens atuais.
“Os acontecimentos que não são exatamente iguais aos vividos
no passado, devido aos diferentes aspectos entre o acontecido e
o recordar atual, se entrelaçam com o presente da enunciação,
fazendo com que vocábulos de diferentes realidades temporais
se confundam e se inter-relacionem de forma aparentemente
caótica e desorganizada (LEÃO BRITO, 2006, p.5).”
Vera, ao examinar a superfície textual em que Vergílio Ferreira arquiteta um presente
baseado em rememorar o ontem e imaginar o amanhã, afirma que “nesse presente que
reinventa o passado e projeta um futuro próximo, surge um tempo existencial no qual a
personagem-narrador exprime suas reflexões sobre a existência humana” (LEÃO BRITO,
2006, p.6), sendo este tempo existencial o mesmo que acreditamos existir em O Amor é Fodido,
um estado de espírito que se utiliza do fluxo de consciência e da constante mudança de eixos
temporais para tentar reproduzir no momento atual da enunciação não apenas imagens que já
aconteceram como ainda estão para acontecer.
O Amor é Fodido se tornou best seller no país de origem e foi traduzido para vários

idiomas. Foi lançado no Brasil e recebeu elogios do escritor Mario Prata1 e do crítico José

Geraldo Couto2, da Folha de S. Paulo. O livro mostra uma Portugal que, segundo Rui Ramos

(2003), conhecia a normalização democrática após anos de ditadura, deixando de ser um país

politicamente fechado, economicamente atrasado e culturalmente ainda muito ligado ao

passado para fazer parte da modernidade que significava a entrada do país na Comunidade

1
Mario Prata, a respeito de Miguel Esteves Cardoso, disse que “Miguel Esteves Cardoso é hoje, na minha opinião,
o melhor escritor de Portugal, anos-luz na frente do segundo colocado. A geração lusitana mais velha talvez prefira
o melancólico e prolixo Saramago. Mas Miguel já conquistou os mais jovens. Seus livros de crônicas atingem 20
edições. E este seu primeiro romance já está na terceira. Miguel tem uma vantagem sobre os demais portugueses.
Filho de mãe inglesa e pai português, estudou em Oxford. Vê, portanto, os seus compatriotas com outros olhos.
Ninguém como ele, consegue tão bem descrever a alma, a angústia e a melancolia dos portugueses. E gozá-los.”
Disponível em: https://marioprata.net/cronicas/o-amor-segundo-miguel-esteves-cardoso

2
Em sua crítica a respeito de O Amor é Fodido, José Geraldo Couto disse que o livro é “divertido, inventivo,
corajoso e surpreendente”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/2/20/ilustrada/21.html
Econômica Europeia (CEE) em 1986. Para Maria Filomensa Barradas, as portas estavam

abertas para mudanças profundas na sociedade portuguesa.

O crescimento económico verificado nesse período permitiu a


Portugal aproximar-se do resto da Europa e gerou um sentimento
de bem-estar nos portugueses. Não só os salários tinham
aumentado e o emprego crescido, como havia sinais claros de
que Portugal mudara: a rede viária expandia-se; o consumo
crescia; mais gente chegava à universidade; novos espaços de
diversão e de convivialidade nasciam; os hábitos e as
mentalidades modificavam-se. (BARRADAS, 2012, p.2)
Acreditamos ser pertinente realizar, no ambiente acadêmico brasileiro, um estudo sobre
Miguel Esteves Cardoso, um escritor que, apesar de ter um nome reconhecido como crônista,
ensaísta e romancista na língua portuguesa, criador e diretor de redação do jornal O
Independente, ainda é praticamente desconhecido no Brasil, como uma rápida pesquisa nos
mostra, indicando que não há no país nenhuma tese ou dissertação escrita sobre Miguel Esteves
Cardoso.
Objetivos
Os objetivos estão interligados e devem ser articulados conjuntamente para a
construção de uma chave interpretativa de O Amor é Fodido: discutir como esta obra ficcional
sinaliza um pertencimento ao mundo pós-moderno, verificando quais elementos indicam tal
relação; investigar como são articulados os conceitos de tempo, memória e identidade em O
Amor é Fodido, a fim de compreender as estratégias narrativas e discursivas do autor; examinar
a estrutura narrativa da obra, verificando de que maneira o narrador-personagem se relaciona
com os outros personagens expostos nos romance, procurando entender se existe no romance
uma distinção entre o que é real e o que é imaginado.
Hipótese
Acreditamos que o romance flutue entre o tempo histórico e o tempo ficcional, entre
acontecimentos que de fato ocorreram e acontecimentos imaginados, existentes apenas na
mente e no pensamento do narrador-personagem, ficando esta distinção entre o que é real e o
que é imaginário a cargo do leitor, uma caracterísitca dos chamados romances pós-modernos,
uma vez que, segundo Linda Hutcheon, “considera-se que a historiografia e a ficção dividem
o mesmo ato de refiguração ou remodelamento de nossa experiência por meio de configuração
da trama” (HUTCHEON, 1991, p.135).
A leitura que fazemos de O Amor é Fodido é que o autor, a partir de um fato concreto
– o relacionamento entre o narrador-personagem, João, e Teresa –, revive a história do casal
por meio de lembranças fragmentadas, ao mesmo tempo em que por meio da imaginação ele
traz Teresa para o tempo presente, o que pode confundir o leitor, porque nunca temos certeza
se a personagem está morta ou se ela está viva, interagindo com João.
Fundamentação Teórica
Reconhecer o tempo como uma das principais categorias da produção literária
constitui procedimento necessário em qualquer análise de uma obra. No desenvolvimento
da história do romance, os diferentes usos desta categoria - destacadamente se articulados a
outra categoria fundamental, a imaginação - marcam o ritmo de transformações estéticas e
estruturais que estão em íntima relação com a forma como o tempo é entendido e vivenciado
nos diferentes contextos históricos e sociais.
Com a afirmação acima em mente, pretendemos analisar o tempo em que a estrutura
narrativa se situa em O Amor é Fodido, tendo como base fundamental os escritos de Paul
Ricoeur em torno da relação que se estabelece entre tempo e narrativa, o que nos auxiliará em
nossa tentativa de tentar organizar e compreender o quebra-cabeças narrativo que Miguel
Esteves Cardoso constrói na obra, assim como estudar de que maneira a memória e a
imaginação são elementos que se alimentam mutuamente na escritura do romance de
Esteves Cardoso.
Em sua obra A memória, a história e o esquecimento (2007), Ricoeur reflete a respeito
da superfície em que se estabelece, no texto, a convivência entre o relato autobiográfico e o
relato ficcional, buscando entender as valências que tanto a imaginação quanto a memória
trazem para a narração:
é sob o signo da associação de ideias que está situada esta
espécie de curto-circuito entre memória e imaginação: se
essas duas afecções estão ligadas por contiguidade, evocar
uma – portanto imaginar – é evocar a outra, portanto,
lembrar-se dela. [...] É na contracorrente dessa tradição da
desvalorização da memória, às margens de uma crítica da
imaginação, que se deve proceder a uma dissociação da
imaginação e da memória, levando esta operação tão longe
quanto possível. Sua ideia diretriz é a diferença, que podemos
chamar de eidética, entre dois objetivos, duas intencionalidades:
uma, a da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o
irreal, o possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para
a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca
temporal por excelência da ‘coisa lembrada’, do ‘lembrado’
como tal.” (RICOEUR, 2007: p. 25-26).
Ricoeur, ao refletir sobre os conceitos de reflexividade e mundanidade e a relação que
se estabelece entre estes, ora de aproximação, ora de conflito, durante a narração, enxerga no
primeiro um processo interior, baseado na experiência que não foi apenas vivida como também
sentida, enquanto o segundo se baseia em uma visão objetiva na qual o íntimo e o particular
são substituídos pelo racional e pelo plausível.
Ricoeur também trabalha com a idéia do fenômeno do rastro, uma espécie de
mecanismo pelo qual se detecta a passagem de coisas que não se pode ver, mas que certamente
existem em uma dada categoria de tempo/ espaço. A esse rastro, o autor atribui valor de efeito-
signo, o que equivale dizer que “a coisa presente (...) vale por uma coisa passada” (RICOEUR,
2007, p.320), assim, o rastro é também um operador intelectual do tempo, que busca completar,
pelo viés do imaginário, as lacunas do conhecimento.
[...] a reflexividade é um rastro irrecusável da memória em sua
fase declarativa: alguém diz “em seu coração” que viu,
experimentou, aprendeu anteriormente; sob este aspecto, nada
deve ser negado sobre o pertencimento da memória à esfera da
interioridade [...]. Nada, salvo a sobrecarga interpretativa do
idealismo subjetivista que impede esse momento de
reflexividade de entrar em relação dialética com o polo da
mundanidade. (RICOEUR, 2007, p. 54).
Para Ricoeur, tão importante quanto a memória é o esquecimento. O teórico examina
de que forma a construção imagética se baseia no binômio lembrança/esquecimento, uma vez
que o presente, ao rememorar o passado, estará lidando com três cenários que estão
interrelacionados: o acontecimento originário; a retenção; reviver este acontecimento no
tempo presente ao rememorar. Em síntese, a questão que Ricoeur coloca é:“como falar do
esquecimento senão sob o signo da lembrança do esquecimento, tal como o autorizam e
caucionam o retorno e o reconhecimento da ‘coisa’ esquecida?” (RICOEUR, 2007, p. 48).
Ainda no campo da memória, também utilizaremos o estudo de Henri Bergson acerca
do tema, tônica de sua obra Matéria e Memória (1999), em que o filósofo francês reflete sobre
as noções de matéria e espírito, e como a relação entre esses dois vetores atuam, tanto se
articulando quando se debatendo, sobre um terceiro vetor, a memória.
Ao longo dos quatro capítulos da obra, Bergson busca entender como funciona as
imagens com as quais a nossa mente trabalha, seja por meio da lembrança, seja por meio da
imaginação, analisando a forma como estas imagens são selecionadas, o que leva uma
visão a ser recordada e outra esquecida, como estas imagens sobrevivem, como são
reconstruídas a cada vez que são trazidas à tona pela mente. Para Bergson, o homem é
capaz de viver e reviver o passado que está desenhado em sua memória, separando-o do tempo
presente.
Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder
abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é
preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um
esforço desse tipo. Também o passado que remontamos deste
modo é escorregadio, sempre a ponto de nos escapar, como se
essa memória regressiva fosse contrariada pela outra memória,
mais natural, cujo movimento para diante nos leva a agir e a
viver. (BERGSON, 1999, p. 90)
Segundo a leitura de Bergson, não há percepção que não esteja impregnada de
lembranças (2008). Para o filósofo francês, a experiência cotidiana e imediata que vivemos
no presente está impregnada de fatos e detalhes que vivemos em experiências passadas, o
que faz com que sempre exista uma espécie de emparelhamento entre o que já foi vivido e o
que está sendo vivido, um processo que depende de como estas lembranças virão à tona e por
quanto tempo este esforço por parte da memória irá perdurar. “Estas lembranças deslocam
nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples
"signos" destinados a nos trazerem à memória antigas imagens” (BERGSON, 1999, p.34).
Um dos desafios desta pesquisa é definir o que é o contemporâneo, movimento
reflexivo e de interação com as pluralidades de estar no mundo. Para Giorgio Agamben, a
compreensão do contemporâneo exige desconexão e dissociação do tempo presente, isto é, uma
adesão ao presente que se dá pelo deslocamento e pelo anacronismo. O filósofo italiano entende
que contemporâneo “é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não
as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p.62). Essa visada deve “ser capaz não apenas de
manter fixo o olhar no escuro da época, mas também perceber nesse escuro uma luz que,
dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso
ao qual se pode apenas faltar” (AGAMBEM, 2009, p.65). Esse paradoxo de deslocamento é
trabalhado também no sentido de anacronismo: estar na moda é estar já fora da moda
(AGAMBEN, 2009, p.66). Agamben argumenta que ser contemporâneo é perceber o
arcaico no presente, identificar a origem, retornar a um presente que não vivemos. Essa
fratura no tempo é o lugar do compromisso e do encontro entre o tempo e as gerações. O
passado é visto como resposta às “trevas do agora”.
A relação de distância e proximidade, tal como proposta por Agamben, nos interessa
aqui, no esforço de criação de uma chave interpretativa de O Amor é Fodido, tanto no sentido
de fazer uma análise textual da obra, investigando os caminhos narrativos e os percursos
estéticos presentes no romance, verificando de que forma a linearidade é desconstruída pelo
narrador, quanto no ojetivo de se fazer um recorte do contexto em que a obra está inserida,
averiguando de que modo o texto pertence ao conceito de pós-modernismo.
Para trabalharmos com a noção de pós-modernismo e o seu encaixe com a literatura,
nos utilizaremos do livro Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (1997), de
Fredric Jameson, assim como de outros estudos do teórico norte-americano. Na obra destacada,
Jameson propõe a teoria de que o pós-modernismo seja percebido como dominante cultural no
capitalismo tardio (entendido aqui como a terceira era do capitalismo, em que predominam as
multinacionais e a globalização). A lógica econômica interfere na produção cultural neste
novo ambiente, em que tudo pode ser reificado:
a própria ‘cultura’ se tornou um produto, o mercado tornou-se
seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer
um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que
minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e
um esforço de forçá-la a se autotranscender. (JAMESON, 1997,
p.14).
Dessa forma, a cultura se torna uma segunda natureza. Assim, o pós-modernismo é
definido por Jameson como “o consumo da própria produção de mercadorias como
processo” (1997, p.14). O modernismo é visto como um período em que os artistas tentavam
salvaguardar a arte da indústria cultural e da cultura de massa. Já no pós-modernismo o que
ocorre é uma interpenetração dessas esferas, o que dificulta o entendimento da arte produzida
nesse período.
Para Jameson, não se trata de celebrar nem de repudiar o pós-modernismo: “parece
mais apropriado avaliar a nova produção cultural a partir da hipótese de uma modificação geral
da própria cultura, no bojo de uma reestruturação do capitalismo tardio como sistema” (1997,
p.87). O reconhecimento de que pertencemos a essa nova configuração implica o esforço de
“recolocar essas contradições internas”, “reapresentar esses dilemas e essas inconsistências de
representação” (1997, p.25).
Como a pesquisa se propõe a examinar a questão de como o tempo pode ser trabalhado
na ficção, entendemos que a obra O Tempo na Narrativa (1988), de Benedito Nunes, poderia
contribuir com o nosso projeto. Segundo Nunes, “direta ou indiretamente, a experiência
individual, externa e interna, bem como a experiência social ou cultural, interferem na
concepção do tempo” (NUNES, 1988, p, 18). O autor aponta para a existência de duas noções
de tempo coexistindo no estado interno humano: o tempo físico e o tempo psicológico.
O tempo físico segue uma ordem cronológica, inalterável, em que um acontecimento
sempre precede o outro, logo podemos afirmar que o passado antecede o presente que antecede
o futuro, sendo esta relação linear e precisa, não podendo ser alterada ou embaralhada. Para
Nunes:
O tempo físico se traduz com mensurações precisas, que se
baseiam em estalões unitários constantes, para o cômputo da
duração, (...) o tempo físico possui uma ordem objetiva que se
apoia no princípio de causalidade, isto é, na conexão entre causa
e efeito, como forma de sucessão regular dos eventos naturais.
Assim, dizer que um evento antecede outro é afirmar que, sem o
primeiro (causa), o segundo (efeito) não existiria, a ordem
temporal acompanhando a conexão que os une e que não pode
ser invertida (o efeito não pode vir antes da causa), a menor que
a Natureza desandasse. Daí a irreversibilidade do tempo físico,
que tem uma direção. (NUNES, 1988, p. 20)
Já o tempo psicológico, por sua vez, teria como traço primordial a sua descontinuidade
em relação ao tempo objetivo, sendo um fenômeno individual e subjetivo. Uma tarde poderia
durar muitas horas ou apenas alguns segundos para aquele que a vive com tédio e cansaço ou
com intensidade e prazer, sendo uma noção variável de indivíduo para indivíduo. Outro ponto
importante do tempo psicológico é a impossibilidade de apontar o exato instante em que
ele ocorre, assim como torna-lo permanente e imutável, uma vez que este estado
psicológico, além de se situar tanto no passado quanto no presente, toda vez que é revivido se
modifica, nunca é vivido da mesma forma estratificada e exata.
O tempo psicológico, subjetivo e qualitativo, por oposição ao
tempo físico da Natureza, e no qual a percepção do presente se
faz ora em função do passado ora em função de projetos futuros,
é a mais imediata e mais óbvia expressão temporal humana. (...)
o psicológico se compõe de momentos imprecisos, o passado
indistinto do presente, abrangendo, ao sabor de sentimentos e
lembranças, intervalos heterogêneos incomparáveis (NUNES,
1988, p.21)
Para nos ajudar a compreender as múltiplas possibilidades de leitura que O Amor é
Fodido oferece ao leitor, utilizaremos os estudos do teórico José Luiz Fiorin acerca do
dialogismo e das estratégias discursivas do romance. Ao analisar a forma como o romance é
produtor de sentido, Fiorin enxerga neste gênero um estatuto singular, um estilo que está
sempre em contato com textos de natureza distintas, numa constante relação de troca e
absorção. Na visão de Fiorin, o que distingue o romance de outros gêneros é a capacidade que
ele tem de:
incorporar todos os outros gêneros, mesclando-os; alternar todos
os estilos, entrelaçando-os. Um romance apresenta diálogos de
todos os tipos (a conversação mundana, o bate-papo de amigos,
os colóquios dos amantes...), monólogos interiores, ensaios,
narrativas, cartas, fragmentos de diários, poemas líricos,
proclamações oficiais, memorandos etc. (FIORIN, 2006, p.120)
Fiorin, na medida em que o romance absorve qualquer gênero, observa o romance como
“um gênero em processo, entre gêneros que, embora possam mudar, são acabados ou estão
mortos” (FIORIN, 2006, p.120). Para o linguista, a profusão de vozes que constitui o romance
representa as inúmeras possibilidades que a existência humana oferece, retratando “não
somente os vários discursos presentes em uma formação social, mas também representando-os
em seu interior com todas as suas especificidades linguísticas” (FIORIN, 2006, p.121),
expressando a multiplicidade de visões e de atores presentes na vida social.
O que é radicalmente novo no romance é que o discurso não só
representa a realidade, mas - o que é mais importante - ele é
representado. Talvez se pudesse dizer que a real matéria do
romance é a pluralidade de vozes, de línguas, de discursos, de
variantes, de dialetos, de jargões, de estilos de uma dada
formação social. (...) é importante ter em mente que o romance
não só tematiza os vários discursos presentes numa formação
social, mas representa-os em seu interior com todas as suas
especificidades linguísticas, exprime a multiformidade social
plurilíngue dos nomes, das definições, das avaliações. O
romance é a representação literária da heterogeneidade
linguística. (FIORIN, 2006, p. 121)
Fiorin acredita que o romance, tanto na figura de quem escreve quanto de quem lê, é
um universo organizado através da leitura e da interpretação que se faz das imagens do
mundo, criadas a partir das categorias de tempo e espaço, as quais, segundo o linguista,
são conceitos inseparáveis, embora haja diferentes formas de enxerga-los. “Para uns, por
exemplo, o tempo era cíclico; para outros, o tempo era linear e irreversível” (FIORIN,
2006, p.122).
Metodologia
Aqui deve-se inicialmente partir da premissa de que um projeto representa uma visão
antecipada, uma construção lógica e racional dos passos que se pretende desenvolver com a
pesquisa. É preciso se considerar que a elaboração do projeto não deve ser intimidante a ponto
de neutralizar a criatividade e a autonomia do pesquisador para se adaptar a eventuais mudanças
que possam surgir, e quase sempre surgem, no decorrer da execução da pesquisa. Dessa forma,
compreende-se que algumas questões ausentes neste planejamento podem, no decorrer da
pesquisa, ganhar destaque e serem inseridas.
Esta pesquisa possui um caráter teórico-analítico-interpretativo, e será conduzida
principalmente a partir de releituras e da análise de O Amor é Fodido, livro de Miguel Esteves
Cardoso. A bibliografia inicial deverá ser ampliada em suas lacunas metodológicas e lapidada
a partir dos conceitos e perspectivas apreendidos por meio da decorrência do curso.
Este estudo possui vinte e quatro meses para ser produzido, e neste prazo serão buscados
outros teóricos cujas ideias se adequem à nossa proposta. A participação em congressos,
eventos acadêmicos e sala de aula serão vitais para este processo.
Procura-se também, como forma de disseminar e reafirmar as possibilidades teórico-
comunicacionais presentes na obra escolhida e na literatura portuguesa em geral, a articulação
de discussões e debates para o oferecimento de uma disciplina que aborde estes pontos para a
graduação.
Com todas as adições referenciais ao arcabouço teórico inicial, será feita uma análise
de O Amor é Fodido sob a luz dos conceitos apreendidos; o resultado será compilado em uma
dissertação, repleta de trechos do objeto de estudo, que serão ilustrativos aos debates e
discussões propostos.

Cronograma
De modo a contemplar a complexidade da pesquisa que se pretende desenvolver, o
cronograma dos próximos 2 (dois) anos conta com:

ATIVIDADES 2019.2 2020.1 2020.2 2021.1 2021.2 2022.1

Cursar disciplinas X X

Ajustes no projeto
X
inicial

Levantamento
bibliográfico e X X
revisão de literatura

Sistematização e
descrição do corpus X X
da pesquisa

Apresentação de
trabalho em evento X
científico

Análise e
interpretação dos X
resultados

Exame de
X
Qualificação

Elaboração de artigo
para publicação em X
periódico científico

Revisão da versão
final para o Exame X X
de Defesa

Defesa da
X
dissertação

Cronograma detalhado
1º SEMESTRE (2019.2)
Levantamento bibliográfico, análise textual, documental, fichamento dos textos, coleta
de dados secundários.
Presença nas aulas e matérias obrigatórias do programa. Não está descartada a presença
em disciplinas de outros programas.

Durante o período de pesquisa bibliográfica, estão previstas reuniões periódicas com o


orientador da pesquisa para discussão dos textos selecionados.
2º SEMESTRE (2020.1)
Definição das estratégias para a observação participante.
Aprofundamento da leitura proposta na bibliografia comentada, questionamento e
busca de outros autores e teorias pertinentes ao tema.
Comparecimento nas aulas e matérias obrigatórias do programa, assim como em
disciplinas optativas.
Para iniciar o acompanhamento do projeto com o orientador, serão realizados relatórios
mensais frutos de fichamentos dos artigos, livros ou de outras atividades acadêmicas.
3º SEMESTRE (2020.2)
Além do prosseguimento com a revisão bibliográfica dos dois primeiros semestres,
haverá a definição do recorte do material a ser utilizado na pesquisa, assim como uma revisão
da metodologia perante estudos com os novos conhecimentos adquiridos no curso, visando à
incorporação dos aspectos debatidos na pesquisa, interrelacionando-os ao corpus do projeto.
Início da escritura da dissertação.
4º SEMESTRE (2021.1)
Término da versão preliminar da dissertação do mestrado.
Revisão técnica e finalização.
Preparativos para a defesa com base no conhecimento explorado nos semestres
anteriores e pressupostos pesquisados quanto a possíveis abordagens futuras.

Bibliografia
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1999.
BARRADAS, Maria Filomena. Miguel Esteves Cardoso - O Cronista Apaixonado.
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