Você está na página 1de 3

“Vai passar” e o samba de enredo como narrativa da constituição da sociedade

brasileira – Isadora Nuñez de Mattos (Março de 2016).

Quando tomamos por análise a música “Vai passar” (1984) de Chico Buarque
de Holanda há quem a considere como uma alegoria da situação política de seu
contexto de lançamento. A saber: a música foi lançada em 1984, em plenas vésperas
da campanha das Diretas Já e o posterior fim do regime de Ditadura Civil-Militar que
perdurou por duas décadas no Brasil na segunda metade do século XX. Logo que o
movimento foi lançado, a música teve tal uso social que chegou a ser tomada como
uma espécie de hino. Razões para que essa interpretação do contexto colonial como
alegoria do momento político ocorresse estão presentes tanto na letra da música como
no histórico de produção do próprio cantor.

Como se sabe, Chico Buarque foi grande contestador e denunciador do regime,


o que pode ser percebido em letras como a de “Cálice” (1978). Isso provavelmente
influenciou tanto o uso social da letra na campanha das Diretas Já quanto a
interpretação de que a letra seria uma alegoria do momento de expectativa pela
liberdade que vivia o país.

Quando partimos para o estudo da letra propriamente dita, percebemos em


versos como “Num tempo/Página infeliz da nossa história / Passagem desbotada da
memória / Das nossas novas gerações / Dormia / A nossa pátria mãe tão distraída /
Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações” uma brecha para que se
entenda a “Página infeliz da nossa história” como o período de maior força da
Ditadura do qual as “Nossas novas gerações”, ou seja, as gerações que nasceram após
o período de instauração não teriam o total e vívido conhecimento do que se passava,
das “Tenebrosas transações”. Também os versos “Seus filhos/ Erravam cegos pelo
continente / Levavam pedras feito penitentes/ Erguendo estranhas catedrais” podem
levar a uma interpretação de alegoria da situação do exílio. A liberdade, ainda que
moderada, viria pela imagem do carnaval.

Essa é uma interpretação possível de ser feita, tanto que o foi em determinado
momento. Entretanto, a letra de Chico parece ter mais a ser explorado do que o uso
aparente do contexto colonial como alegoria do contexto político do final da Ditadura.
A chave para outra interpretação possível está na forma e no gênero da música
composta por Chico Buarque. O gênero musical em que a canção se insere é o samba,
um dos gêneros mais populares do país e que figura com recorrência na obra do
artista.

Dentro do samba como gênero, podemos identificar um subgênero, o samba-


enredo ou o samba de enredo, utilizado pelas escolas de samba para apresentar o
enredo que vai estruturar tematicamente o desfile anual em sua evolução. De estrutura
com tons narrativos, essa apresentação do enredo normalmente traz uma
contextualização histórica deste e seus desdobramentos temáticos e ao longo do
tempo.

“Vai Passar” pode ser vista como um samba de enredo, assim como indicam os
seus primeiros versos: “Vai passar / Nessa avenida um samba popular”, mas não só
por isso. Também por sua estrutura, que apresenta o período colonial em diversos
aspectos como: a escravidão, as transações comerciais da colônia de exploração que
favoreciam a metrópole e o colonialismo cultural próprio de uma colônia desse tipo.

A escravidão, encarada na letra como a “Página infeliz da nossa história


/Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações” é posta como
desbotada da memória das novas gerações como se em um futuro hipotético ela fosse
algo totalmente superado, o que de fato não o é. Os escravos, chamados ironicamente
de “filhos da pátria”, “Erravam cegos pelo continente /Levavam pedras feito
penitentes /Erguendo estranhas catedrais”, ou seja, viviam em um lugar que não era o
seu sob a imposição de uma cultura que não era a sua. O carnaval aparecia como a
“alegria fugaz” na qual eles poderiam ter uma suspensão momentânea do estado de
escravidão.

As “Tenebrosas transações” nas quais a “pátria mãe era subtraída” podem ser
encaradas como o sistema de exploração de riquezas próprio do modelo de colônia
que o Brasil abrigou: exploração de recursos naturais para beneficiamento da
metrópole.

O colonialismo cultural pode ser percebido na letra a partir das representações


carnavalescas expressas nos versos “Palmas pra ala dos barões famintos O bloco dos
Napoleões retintos /E os pigmeus do bulevar” na última estrofe. Representações das
quais, nem os escravos escapavam em sua manifestação cultural.

Após apresentar duas interpretações possíveis e já feitas da música, trago outra


possibilidade interpretativa. A de ver o samba de enredo (admitindo que a música
tenha a forma de samba de enredo) como uma possibilidade de narrativa histórica. E
uma narrativa não só como alegoria do contexto político à época do lançamento da
música, nem só do contexto colonial como recorte a ser explorado por si só. Mas
como uma narrativa da constituição do Brasil enquanto sociedade a partir de um
momento específico: o período colonial. Constituição que reverbera através dos
tempos e permite a leitura da música como uma alegoria do contexto político do final
da Ditadura. Constituição que permite ver a sociedade brasileira ao longo do tempo
como o “Estandarte do Sanatório Geral” que passa na avenida da evolução da história.

Você também pode gostar