Gil Vicente surge no começo da história moderna, a meio do reinado de D. Afonso V; atravessa os de D.João
II e D. Manuel I e chega quase a meio do de D. João III. A coroa portuguesa adquire neste período uma nova
dimensão. Portugal torna-se numa das maiores potências navais e comerciais da Europa. Multiplicavam-se os
cargos e ofícios na corte e o rei torna-se um senhor absoluto.
Ganha-se um novo gosto pelo luxo e ostentação e vive-se um período de renovação cultural.
Os reis abandonam os seus antigos paços afortelezados para construírem diversos palácios de luxo pelo país.
A corte torna.se o principal centro de produção cultural e literária. Durante cerca de 35 anos, Gil Vicente foi
nas cortes de D. Manuel I e de D. João III, uma espécie de organizador dos espectáculos palacianos com o
encargo de festejar nascimentos e casamentos, chegadas e partidas, de reis e príncipes e os dias solenes na
corte, como o Natal e a Páscoa. Os seus autos nasceram das festividades palacianas, comemorando o
primeiro deles, o Monólogo da Visitação, o nascimento do futuro rei D. João III, em 1502. (...) Alcançou nas
cortes de D. Manuel e de D. João uma situação de prestigio que soube aproveitar para fazer uma crítica
atrevidíssima de diversos vícios sociais, especialmente relativos à nobreza e ao clero. Mas fazia-o de acordo
com o rei , a quem interessava castigar certos abusos.
Integrado no início da Era Moderna, o teatro vicentino ainda reflecte o pensamento medieval pela sua moral religiosa e a
sua concepção teocêntrica do mundo.
.Teatro popular
Apesar dos elementos ideológicos inovadores que as suas sátiras sociais contêm, Gil Vicente não se deixou influenciar pelas
novidades estéticas introduzidas pelo Renascimento. A sua obra é a síntese das tradições medievais e populares.
Teatro alegórico: representação de ideias abstractas através de personagens, situações e coisas concretas. O Auto da
Barca do Inferno, por exemplo, é uma peça alegórica. O cais e as barcas são a alegoria da morte; a barca do inferno é alegoria da
condenação da alma; a barca do céu, a da salvação.
Teatro de tipos: as personagens de Gil Vicente são sempre típos, isto é, não são indivíduos singulares nem possuem traços
psicológicos complexos; pelo contrário, apenas reúnem os caracteres mais marcantes de sua classe social, de sua profissão, do seu
sexo e idade. Para que o espectador o pudesse identificar apresentava-se no estrado com elementos distintivos.
Teatro de quadros: em geral, as peças de Gil Vicente desenvolvem-se por uma sucessão de cenas relativamente
independentes, sem formar propriamente um enredo, uma história que, depois de apresentada, se complica até um ponto
culminante e um desfecho.
No Auto da Barca do Inferno temos uma introdução em que aparecem o diabo e seu companheiro preparando a barca e
anunciando a viagem; com a chegada do fidalgo, inicia-se o primeiro quadro, e os outros se sucedem sempre com a mesma
estrutura: chegada da personagem, diálogo com o diabo, tentativa de embarque para o céu e, se a personagem é recusada pelo
anjo, retorno à busca do inferno.
Rupturas da linearidade do tempo e despreocupação com a verossimilhança: mesmo nas peças que possuem um
enredo, a sucessão cronológica dos acontecimentos é frequentemente inverosímil ou mesmo absurda.
Sátira Social- No seu conjunto , o teatro de Gil Vicente dá-nos um espelho satírico da sociedade portuguesa. Ridiculariza
comportamentos e mentalidades das diferentes classes sociais da época. O cómico é um dos meios para atingir o seu objectivo. Gil
Vicente aplica a fórmula de que a rir se corrigem os costumes. A través do cómico e do riso ridiculariza e critica os males da sua
época . Por isso os seus autos têm uma função lúdica (entretenimento sobretudo da corte) e moralizante.
Fidalgo
Acusações:
Diabo: Acusa-o de uma vida imoral e de prazer- “ E tu viveste a teu prazer cuidando cá guarnecer”
Anjo- Acusa-o de tirania, vaidade e presunção. Acusa-o de ter explorado e desprezado os mais pobres e
pequenos porque se achava muito soberbo.
“ Não embarca tirania neste batel divinal”… “ “ Vós ireis mais espaçoso com fumosa senhoria, cuidando na
tirania do pobre povo queixoso e porque de generoso desprezaste os pequenos”.
Defesas : Argumentos sociais: Era um nobre de linhagem importante. “ Sou fidalgo de Solar..”
Argumentos Religiosos: Acha-se merecedor de entrar na barca do anjo pois tinha deixado em terra quem
rezasse pela sua alma, purificando-o por isso dos seus pecados.
“ Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi”.
Intenção Critica:
--No episódio do Fidalgo Gil Vicente pretende critica e satirizar a nobreza de seu tempo, devido à ostentação
de grandeza feita à custa dos servidores, cujo o trabalho desfruta sem pagar. Gil Vicente não se conforma em
ver a presunção e a luxúria em que viviam estes fidalgos que estavam em decadência económica mas que
viviam rodeados de riqueza.
--Critica também as mulheres da sua época . Seriam falsas, interesseiras, materialistas e adúlteras.
-- Faz ainda uma critica à forma como era entendida a religião. Critica aqueles que rezavam mecanicamente,
os que invocando Deus solicitavam favores pessoais e que assistiam à missa por obrigação social.
Linguagem - linguagem corrente: Esta barca onde vai ora assi está apercebida?
Cuidada: Vós irês mais espaçoso com fumosa senhoria
Popular: Par Deos, aviado estou! Cant’a isto é já pior… Que jiricocins, salvanor!...
Exemplos de Cómico:
Cómico de situação: “ Dá-me licença, te peço que vá ver a minha mulher”
Cómico de Linguagem: Que jiricocins, salvanor! Cuidam que sou eu grou?”
Cómico de Carácter: “Parece-me isso cortiço…” ; Terra é bem sabor”
Símbolos Caracterizadores
O Fidalgo transporta consigo :
-O pajem- Simboliza a tirania e exploração sobre os mais fracos.
- Uma cadeira- simboliza o conforto, luxo e mordomia.
- Um manto- simboliza a luxúria e presunção.
Caracterização da Personagem
É um nobre de linhagem, vaidoso, presunçoso, tirano e arrogante. Sempre viveu uma vida de luxúria, imoral
(cometia adultério) e de prazer (nunca de sacrifícios). Levava uma vida ociosa, explorando os mais pobres à
custa de quem vivia.
Mostra arrependimento: “ inferno há pêra mi? Ò triste ! Enquanto vivi não cuidei que i havia Tive que era
fantesia folgava ser adorado; confiei em meu estado:”
Onzeneiro
Acusações
O anjo argumenta que a ganância , a avareza e o apego ao dinheiro que o onzeneiro tinha, continuavam no
seu coração. Condena fortemente a usura do onzeneiro.
“ Porque esse bolsão tomará todo o navio.” “ Não já no teu coração.” ; “ Ò onzena filha de maldição!”
O diabo- Acusa-o de avareza e mesquinhez.
“ Ora mui m’espanto nom vos livrar o dinheiro !”
Defesas:
Defende-se dizendo que o bolsão que trazia estava sem dinheiro e que portanto não iria ocupar espaço.
Intenção crítica O onzeneiro é considerado uma personagem tipo psicológico pois representa um conjunto
de pessoas que apresentam a mesma tendência psíquica. Representa todos aqueles que exploram de forma
interesseira os necessitados. Os seus aspectos sociais não são relevantes, pretende-se criticar a avareza.
Exemplos de Cómico:
- Cómico de situação “ Santa Joana de Valdês ! Cá é vossa senhoria!”
- Cómico de linguagem – “Oh! Que má hora venhais onzeneiro meu paraente!”
- Cómico de carácter- “ Aquele outro marinheiro por que me vê vir sem nada dá-me tanta borregada…”
Símbolos Caracterizadores- O Onzeneiro transporta consigo um saco que enchia com dinheiro que
arrancava dos mais necessitados, com enormes juros. O saco representa então, a usura e a avareza.
Caracterização da personagem- O onzeneiro é ganancioso, avaro, e revela um grande apego ao dinheiro.
Cobrou sempre juros altíssimos àqueles que mais necessitavam.
Esses seus defeitos são evidentes quando julga o anjo à sua semelhança e considera que foi devido ao facto
de ele não ter dinheiro que o anjo recusou a sua entrada no paraíso.
Parvo
Ao dizer que não era “ninguém” o parvo mostra a sua humildade, simplicidade e inocência .
Intenção Crítica
Com a presença desta personagem Gil Vicente tem uma intenção Lúdica e uma intenção critica.
Lúdica – O parvo tem uma função cómica , provoca o riso pelos disparates que profere, entretém o público.
Crítica - Nos seus disparates põem a ridículo personagens e factos conhecidos da época. Para além disso
vai servir como figura de apoio, pois comenta as pretensões de alguns pecadores orgulhosos.
Símbolos Caracterizadores
Não apresenta elementos cénicos pois não representa nenhuma classe social ou defeito. Era um inocente.
Caracterização da personagem
Era um louco, inocente, pobre de espírito e ingénuo. A sua pobreza de espírito revela-se também na
agressividade instintiva e injuriosa contra o Diabo.
Exemplos de Cómico:
Cómico de situação: “ De pulo ou de voo?” “ Há-a-a…”
Cómico de linguagem: “ De cagamerdeira má ravugem que te dê!
Cómico de Carácter: “ Eu sô”
Toda a fala de Joane em relação ao Diabo realiza o cómico de linguagem. A diversão é conseguida pelo uso
de uma linguagem insultuosa, disparatada.
Linguagem- O parvo utiliza uma liguagem popular nomeadamente o calão- uma linguagem baixa , grosseira
e injuriosa que o caracteriza como um homem do povo , de nível cultural e social muito baixo.
Sapateiro
Acusações
Diabo: O Diabo acusa-o de ter falseado a confissão porque não contara os dois mil enganos que fizera e os
30 anos de roubo ao povo na sua profissão.
“ E tu morreste escomungado nom o quiseste dizer”; “ Calaste dous mil enganos tu roubaste bem trinta anos
o povo com o teu mister”
- Uma vez que o sapateiro alega que estava absolvido dos seus pecados pelos nobres actos religiosos que
tinha praticado , o Diabo pergunta-lhe então como é que indemnizou o povo que explorou.
“ E os dinheiros mal levados que foi da satisfação?”
Anjo : O anjo diz que a carga ( os pecados) que ele trazia estorvava no barco e que a barca do Diabo era
mais adequada para quem tinha roubado descaradamente o povo. Se ele tivesse vivido honestamente não
necessitava de trazer as formas. Formas que representam os pecados do sapateiro.
“ A carrega t’embaraça”; “essa barca que lá está leva quem rouba de praça as almas embaraçadas”; “ Se tu
viveras dereito elas foram cá escusadas”.
Defesa:
O sapateiro defende-se dizendo que as missas que assistiu lhe dão o perdão; que o dinheiro dado à igreja e as
orações que fez pelos defuntos chegam para obter salvação. Para além disso confessou-se e comungou e que
por isso tem direito a entrar na barca do paraíso.
Quando o anjo lhe diz que a carga o estorvava ele defende-se dizendo que a sua carga cabia em qualquer
parte e que o anjo podia fazer essa concessão.
“ Como poderá isso ser confessado e comungado?” ; “ Quantas missas eu ouvi não me hão elas de prestar?” ;
“ E as ofertas que darão E as horas dos finados?”; Nom há mercê que me Deos faça? Isto uxiquer irá”.
Intenção Crítica
Gil Vicente pretende através da personagem do sapateiro criticar os mestres de oficio que como sapateiro
roubam o povo nos preços que praticam.
Tal como na cena do Fidalgo está implícita uma crítica à forma de encarar a religião, pois supunha o
sapateiro que lhe bastava ter-se confessado e comungado para merecer o paraíso.. Gil Vicente critica então
todos aqueles que invocam Deus para obter favores pessoais e que assistiam à missa por obrigação social.
Exemplos de Cómico
Cómico de Situação: “ ah! Nom praza ò cordovão nem a puta da badan se é esta boa traquitana em que se vè
Joanantão!”
Cómico de linguagem: “ Arrenegaria eu da festa e da puta da barcagem”
Cómico de carácter: “ E as ofertas que darão? E as horas de finados?”
Linguagem : Utiliza uma linguagem popular , o calão. Linguagem grosseira e ordinária que mostra o seu
baixo nível social e cultural e seu carácter ordinário.
Símbolos Caracterizadores: As formas simbolizam os pecados, os roubos que cometeu sobre o povo. O
avental simboliza a sua profissão através da qual ele roubou nos preços que cobrava.
Caracterização da personagem: O sapateiro era ganancioso, usurário e ladrão. Interesseiro e falso utiliza
os argumentos religiosos praticados com hipocrisia para entrar no paraíso.
O sapateiro desiste de argumentar, acata a decisão do anjo e sem qualquer arrependimento entra com
prepotência na barca do diabo.