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AS MUITAS FACES DO PODER

O pensador dessa aula, embora não fosse um sociólogo, marcou o campo das
Ciências Sociais com reflexões sobre a relação entre verdade e poder. Seu nome é Michel
Foucault.
Para entender a complicada relação entre verdade e poder, Foucault realizou
pesquisas sobre temas variados. Um dos pontos em que mais se deteve foi a questão da
disciplina. Como homens e mulheres aprendem a se comportar? O que acontece quando
não se comportam de acordo com o previsto? Em que tipo de justificativas baseiam-se as
regras de comportamento? Em que lugares os ensinamentos sobre o que é socialmente
aceitável e não aceitável são transmitidos? Por que e por quem eles são cobrados? Para
responder a questões como essas, Foucault ​investigou a origem e o desenvolvimento de
várias instituições de controle social. Seguiremos, portanto, com Michel Foucault, numa
visita por algumas instituições de controle e poder.

 
sobretudo, pela desilusão com o
comunismo e pelo Movimento de Maio de
1968 na França. Sua experiência pessoal
com tratamento psiquiátrico motivou-o a
estudar a loucura. Interessava-se pela
relação entre poder, conhecimento
científico e discurso, e pelas práticas a
eles associadas na definição da loucura e
no tratamento destinado àqueles
classificados como “loucos”.
Suas ideias inspiraram tanto
críticas quanto apoios fervorosos e
influenciaram diversas áreas, como Arte,
● MICHEL FOUCAULT  Filosofia, História, Sociologia,
  Antropologia e muitas outras. Entre suas
Historiador, crítico e ativista obras destacam-se História da loucura na
político francês que desenvolveu uma Idade Clássica (1961), As palavras e as
teoria e um método de pesquisa próprios, coisas (1966), Arqueologia do saber
caracterizados por aproximar a História da (1969), Vigiar e punir (1975), Microfísica
Filosofia. Seus trabalhos abordam temas do poder (1979) e ainda o projeto
diversos, como poder, conhecimento, inacabado História da sexualidade,
discurso, sexualidade, loucura. composto de A vontade de saber (1976),
Foucault foi influenciado pela O uso dos prazeres (1984) e O cuidado
Filosofia da Ciência francesa, pela de si (1984).
Psicologia e pelo Estruturalismo. Já sua
atuação política foi determinada,
 
● CURAR E ADESTRAR, VIGIAR E PUNIR 

Michel Foucault se voltou para esse momento de profunda transformação, em que


as instituições sociais do Antigo Regime cederam o lugar a sistemas de organização
inéditos. Seu interesse se voltou, sobretudo, para as condições de surgimento de novos
saberes - ciências como a biologia, a economia política, a psiquiatria e a própria sociologia -
e novos dispositivos disciplinares. A influência progressiva desses novos saberes e a
multiplicação desses dispositivos por toda a sociedade levaram, segundo ele, à
consolidação de um modelo peculiar de organização social: as "sociedades disciplinares"
dos séculos XIX e XX.
A emergência desse novo formato de arranjo social, com suas lógicas de controle e
penalização, constitui o tema central de uma das obras mais conhecidas de Foucault, que
tem o sugestivo título Vigiar e punir , nascimento da prisão. Nesse livro, ele nos mostra
como, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve o que chama de um "desbloqueio tecnológico
da produtividade do poder". Esse desbloqueio teria permitido o estabelecimento de
procedimentos de controle ao mesmo tempo muito mais eficazes e menos dispendiosos. E
isso ocorreu não apenas nas prisões, mas também em várias outras instituições, onde a
vigilância dos indivíduos é constante e necessária. Obviamente, mecanismos de disciplina e
controle já existiam muito antes do surgimento de saberes como a economia ou a
sociologia.
Durante o Antigo Regime, nos lembra Foucault, havia critérios que permitiam
identificar os indivíduos que eram capazes de se submeter às normas - os "normais" - e os
que, incapazes de respeitá-las, deveriam
receber como castigo a exclusão da vida em sociedade. Nesse grupo dos que eram
afastados do convívio com os outros encontravam-se aqueles considerados "loucos",
"maus", "doentes" ou "monstros" - qualquer um, portanto, que apresentasse "desvios de
conduta", quer por conta de sua demência, de sua índole, de sua moléstia ou de sua
aparência. Ao longo da Idade Média, todos os que fossem tidos como "dementes" eram
confinados na chamada "nau dos insensatos"; todos os criminosos eram condenados à
pena de morte; quaisquer tipos de "deformados" eram recolhidos aos mosteiros; e os que
sofriam de males físicos eram levados a hospitais que na verdade eram "depósitos de
doentes".

Foucault lembra também que foi a partir do século XVIII que se iniciou um processo
de organização e classificação científica dos indivíduos, que veio garantir uma nova forma
de disciplinar e controlar a sociedade. Cada "anormalidade" passou então a ser identificada
em seus mínimos detalhes por um saber específico e a ser encaixada em um complexo
quadro de "patologias sociais". Estamos tão acostumados a depender desses saberes
especializados e a conviver com os espaços que lhes são próprios que muitas vezes nos
esquecemos de que nem sempre eles existiram. O nascimento da medicina clínica e a
criação do hospital tal como o conhecemos, por exemplo, são fenômenos historicamente
recentes. Foucault toma como exemplo o projeto de criação de hospitais surgido na França
em fins do século XVIII, em que pela primeira vez foram expostas regras minuciosas de
separação dos vários tipos de doentes. O médico - e não mais qualquer "curandeiro" -
passou a ser o responsável por essa nova "máquina de curar", que lembrava muito pouco
aquele "depósito de doentes" medieval. Se a medicina clássica trabalhava com o conceito
vago de "saúde" e procurava "eliminar a doença", a medicina clínica passou a ter como foco
o corpo do doente e com o objetivo trazer esse corpo "de volta ao normal". Surgiram então
expressões como "temperatura normal", "pulsação normal", "altura e pesos normais".
Esse padrão de normalidade passou a ser um parâmetro para toda a sociedade - é
claro que há componentes culturais que determinam variações nesse padrão -, e a medicina
ganhou uma dimensão política de controle. Hoje, mais que nunca, vivemos em função de
ter o corpo "normal", de acordo com todos os padrões, índices e prescrições que a medicina
estabelece. Muitas vezes estamos nos sentindo bem e vamos ao médico para um simples
exame de rotina. O médico nos examina e diz que há algo errado, algo "que não está
normal". Saímos da consulta com uma lista de remédios que supostamente irão trazer
nosso corpo de volta à normalidade. Também nos é apresentada uma longa lista de coisas
que podemos ou não podemos fazer e de alimentos que podemos ou não podemos ingerir.
É certo que nem sempre obedecemos a tudo que nos diz o médico. Porém, ao fim e ao
cabo, acreditamos que a medicina, como ciência, tem o poder de curar porque tem o poder
de saber mais sobre o nosso corpo do que nós mesmos.
A ideia de uma educação que não está a cargo dos pais, e sim do Estado, que é
oferecida a todos os cidadãos, que tem um conteúdo comum e necessita do espaço da
escola também é fruto dessas transformações de que fala Foucault. Não por coincidência, a
escola organizada de acordo com parâmetros pedagógicos é uma invenção do fim do
século XVIII e início do XIX. Acreditamos que a escola tem o poder de ensinar porque tem o
poder de saber quais são os comportamentos desejáveis, quais são os conteúdos
imprescindíveis e qual é a didática adequada.

O mesmo se dá com o conjunto das instituições de justiça e punição, que encontra


nas prisões seu espaço de realização. O grupo dos "maus" desdobra-se em uma série de
subgrupos de "personalidades criminosas", que passa a ser objeto de um saber específico:
a criminologia. A reclusão por tempo determinado no presídio substituiu, na maior parte dos
países do Ocidente, a morte punitiva. Foucault nos lembra que, até o século XVIII, a pena
de morte era precedida por um detalhado suplício do corpo - torturas, esquartejamentos,
queimaduras, enforcamentos - realizado em praça pública para a glória do soberano. Hoje,
mesmo em um estado como o Texas, nos Estados Unidos, onde vigora a pena de morte,
vigora também uma série de princípios que buscam garantir uma "morte humanizada" para
o condenado, sem torturas ou humilhações. Acreditamos que o sistema judiciário tem o
poder de vigiar e punir (com a morte, se necessário) porque tem o poder de saber distinguir
entre os inocentes e os criminosos.
Foucault fez uma "arqueologia" - uma investigação minuciosa da origem e do
desenvolvimento histórico - de todos esses saberes: da medicina clínica, da psiquiatria, da
criminologia etc. E não apenas isso como também se encarregou de formular uma crítica
incisiva das práticas disciplinadoras - de controle e adestramento - de cada uma das
instituições onde esses saberes são praticados e reproduzidos.

● Os corpos dóceis e o saber interessado  


As formas de curar, educar e punir não foram as únicas a ter seus princípios
alterados na modernidade. Foucault nos mostra como as maneiras de produzir e os lugares
da produção também passaram por um sério processo de especialização e controle. As
fábricas, por exemplo, reproduzem a estrutura da prisão, no sentido de que colocam os
indivíduos, separados segundo suas diferentes funções, sob um rígido sistema de
vigilância. Lembremo-nos da fábrica de Carlitos: disciplinados e sob o olhar vigilante do
capitalista, os operários produzem mais. A indisciplina e o descontrole de Carlitos
atrapalham a produção. Ele é levado ao manicômio para aprender a se comportar como os
demais e novamente se tornar apto a produzir.
Podemos observar que, ao se voltar para a produção, Foucault não reduz a questão
ao aspecto puramente econômico. Mesmo nesse contexto, diferentemente de Marx, ele
está interessado não tanto na dominação económica, mas nas relações de poder que
perpassam toda a sociedade.

O que Foucault está nos dizendo exatamente?

Em primeiro lugar, que não podemos entender as relações de poder reduzindo-as à


sua dimensão económica ou à esfera do Estado. Para ele, as estruturas de poder
extrapolam o Estado e permeiam, ainda que de forma difusa e pouco evidente, as diversas
práticas sociais cotidianas. Ouvimos dizer que os governantes detêm o poder. Sim, mas
apenas até certo ponto. Governantes não têm o poder, por exemplo, de determinar qual
será a nova moda que mobilizará os jovens e fará circular uma quantidade incalculável de
dinheiro no próximo inverno. Será, então, que são os ricos que detêm o poder? Os ricos
certamente têm muito poder, mas não todo o poder. Nem eles, nem ninguém. Ninguém é
titular do poder, porque ele se espalha em várias direções, em diferentes instituições, na rua
e na casa, no mundo público e nas relações afetivas.
Em segundo lugar, Foucault está insistindo em sua resposta numa ideia que
atravessa toda a sua obra e que vimos destacando até aqui: existe uma forte correlação
entre saber e poder. Instituições como a escola, o hospital, a prisão, o abrigo para menores
etc. nem são politicamente neutras, nem estão simplesmente a serviço do bem geral da
sociedade. Nós é que acreditamos que elas são neutras, legítimas e eficazes porque
acreditamos na neutralidade, na legitimidade e na eficácia dos saberes científicos - como a
pedagogia, a medicina, o direito, o serviço social - que lhes dão sustentação. Foucault nos
ajuda a perceber, portanto, que há relações de poder onde elas não eram normalmente
percebidas.
O conhecimento não é uma entidade neutra e abstrata; ele expressa uma vontade
de poder. Se a ciência moderna se apresenta como um discurso objetivo, acima das
crenças particulares e das preferências políticas, alheio aos preconceitos, na prática, ela
ajuda a tomar os "corpos dóceis", para usar outra de suas expressões. "Se o poder fosse
somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não", provoca Foucault,
"você acredita que seria obedecido?". Por meio de perguntas como esta, ele nos leva a
refletir sobre os mecanismos de manutenção, aceitação e reprodução do poder.
O poder, tal como Foucault o concebe, não equivale à dominação, à soberania ou à
lei. É um poder que se faz aceito porque está associado ao conceito de verdade: "Somos
submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a
produção da verdade", afirma ele. Nós estamos acostumados a pensar a verdade como
independente do poder porque acreditamos que ela de nada depende, é única e absoluta.
Assim sendo, temos dificuldade em aceitar a ideia de que o "verdadeiro" é "apenas" aquilo
que os próprios seres humanos definem como tal. Para Foucault, é a crença nessa verdade
que independe das decisões humanas que nos autoriza a julgar, condenar, classificar,
reprimir e coagir uns aos outros.

● Indivíduos e populações  

Em seus últimos escritos, Foucault dedicou-se a examinar como o poder baseado no


conceito de disciplina, surgido no século XVIII, foi se sofisticando e adquirindo contornos
ainda mais complexos ao longo do século XX. Ao poder disciplinar veio somar-se o que ele
chamou de "biopoder". Enquanto o primeiro tem como alvo o corpo de cada indivíduo, o
biopoder dirige-se à massa, ao conjunto da população e ao seu habitat - a metrópole,
sobretudo. Isso ocorre porque o processo de especialização, deflagrado com a divisão do
trabalho, exige cada vez mais que a população como um todo seja racionalmente
classificada, educada e controlada para ser, por fim, transformada em força produtiva.
O objeto do biopoder são fenômenos coletivos, como os processos de natalidade,
longevidade e mortalidade, que são medidos e controlados por meio de novos dispositivos,
como os censos e as estatísticas. O biopoder mede, calcula, prevê e por fim estabelece, por
exemplo, que é preciso diminuir a taxa de natalidade de determinado país. Como alcançar
tal objetivo? Controlando o número de nascimentos, ou seja, intervindo diretamente na vida
do conjunto da população. Isso não precisa ser feito por meio de uma lei específica e
punitiva, como na China.
O processo de controle não depende necessariamente da repressão direta do
Estado. Muitas outras instâncias de poder podem ser mobilizadas, como, as instituições de
educação e de saúde ou os meios de comunicação de massa. Essas instâncias passam a
produzir discursos sobre as desvantagens da maternidade precoce ou as dificuldades
enfrentadas por famílias muito numerosas, e o fato é que nós, como população, somos
afetados por essas ideias. Introjetamos esses discursos como verdades absolutas e não
como convenções históricas e socialmente estabelecidas. Mas não custa lembrar, por
exemplo, que para muitas pessoas que vivem em contextos rurais ter uma família numerosa
é desejável, porque a mão de obra mobilizada na produção é de base familiar. Ou que nem
sempre ter filhos aos 15 anos foi algo visto com maus olhos.
Durante o longo período em que a expectativa de vida não chegava a ultrapassar os
50 anos, era desejável que as jovens começassem a procriar tão logo ocorresse sua
primeira menstruação. Além das políticas de controle da natalidade, políticas de habitação
social ou de higiene pública são exemplos do biopoder, que é acionado para garantir a
resolução e o controle dos problemas da coletividade. Nem sempre, porém, tais políticas
surtem o efeito desejado.

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