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MATERIALISMO E MORAL

Tomando a moral como uma construção social recente, Horkheimer analisa a


avaliação das ações executadas pelos sujeitos como uma questão que dependente do
momento histórico e da posição social de quem a realiza. A partir de um esquema
motivacional constituído em determinado grupo social, o indivíduo submete as suas
reações instintivas que já foram transformadas em hábito, revendo essa possibilidade de
ação. Sendo assim, a moral da qual Horkheimer fala é uma construção da burguesia que
decorre de uma maior diferenciação da sociedade, embora em geral esta seja
considerada uma característica da natureza humana:
O processo de vida social da era mais recente favoreceu tanto as forças
humanas que, pelo menos nos países mais desenvolvidos, os membros de
algumas camadas, num âmbito relativamente amplo de sua existência não
apenas obedecem ao instinto ou ao hábito, mas são capazes de escolher com
autonomia entre as diversas finalidades propostas (p. 60)

Historicamente, a necessidade de uma avaliação moral decorreu do abalo o


princípio de autoridade. Nesse cenário, a norma religiosa surgiu como “uma moral
racionalmente fundamentada […] necessária para dominar as massas no Estado” (p. 60)
para ocupar o lugar deixado pela autoridade. Da dúvida na fé surge o conflito moral.
Essa moral racional surgiu nas premissas do idealismo no formato de axiomas que
independem do momento histórico no qual estão sendo utilizados, satisfazendo a
necessidade de verdades absolutas pelas classes mais altas. Kant e o imperativo
categórico representaram essa perspectiva. A concepção de moral kantiana se
fundamenta em uma contraposição entre a ação com interesse e a ação por dever. A
moral, nesse sentido, é uma libertação do interesse na ação, perspectiva refutada
reiteradamente na filosofia dada a impossibilidade de se ignorar as premissas que
motivam uma ação. Kant, no entanto, acerta em cheio em um ponto de vista: aos
indivíduos é vedado o conhecimento da motivação da sua ação.
A esta motivação, Horkheimer atribui o instinto de propriedade inerente aos
sujeitos, pois “o aparelho psíquico de cada um é cunhado pelo fato de que, nesta ordem,
a produção de toda existência social coincide com a busca da propriedade pelos
indivíduos” (p. 63). A lei natural que rege a vida dos indivíduos é, portanto, uma lei
econômica. Imerso numa ordem econômica que o conduz à ação cegamente motivada, o
indivíduo não se vê integrado na mesma, revelando o caráter fragmentário desse
contexto:
A vida das pessoas resulta cega, acidental e péssima pela atividade caótica
dos indivíduos, das indústrias e dos Estados. Esta irracionalidade se exprime
no sofrimento da maioria dos homens. O indivíduo totalmente absorvido pela
preocupação consigo mesmo e com o que é ‘seu’ não só impulsiona a vida do
todo sem consciência clara, mas causa, com o seu trabalho, tanto a felicidade
como a miséria dos outros; nunca se poderá esclarecer totalmente até que
ponto e para quais indivíduos seu trabalho significa uma coisa ou outra. (p.
63)

A integração não consciente dos sujeitos na produção é expressa no sofrimento que


decorre de tal irracionalidade. Abstraída a mediação social dessa condição, uma
consciência errônea é constituída nos sujeitos que tomam como lei natural a evolução de
uma sociedade na qual são partícipes: “pela falta de organização racional do todo social,
ao qual seu trabalho é dedicado, ele não é capaz de se reconhecer na sua verdadeira
relação com ele e conhece a si mesmo apenas como indivíduo” (p. 64). Aqui, fica clara
a influência de um todo reificado na constituição moral dos sujeitos. Daí a tentativa de
Horkheimer de demonstrar as condições concretas que originam a questão moral,
destacando que esta não é mera representação da ideologia no materialismo, embora
apresente distorções em sua expressão filosófica e não possa ser dominada durante a era
burguesa.
A noção de que as condições materiais determinam a formação psíquica dos
sujeitos e, portanto, a vida individual é regida pela lei econômica. Nesse sentido, a
moral é apenas uma condição transitória que permanecerá enquanto vigente o
capitalismo. A moral (e, portanto, a atual configuração econômica) devem ser
superadas. Alcançada essa condição, o imperativo categórico kantiano pode, então, ter o
seu caráter idealista superado: “se os homens querem agir de forma que sua máxima
sirva de base para lei universal devem produzir um mundo onde esta ponderação não
permaneça tão questionável” (p. 68). Já em Kant podemos encontrar a noção de
transitoriedade da moral. O que lhe falta, entretanto, é uma fundamentação materialista:
É que os diversos interesses dos indivíduos não são fatos derradeiros, têm sua
base não numa constituição psicológica independente, mas nas condições
materiais e na real situação global do grupo social a que pertence o indivíduo.
A diversidade simplesmente inigualável dos interesses tem sua origem na
diversidade das condições de propriedade; os homens se confrontam hoje
como funções de diversas potências econômicas, cada uma das quais
evidencia tendências evolutivas opostas às das outras. (p. 70)

À crítica de Horkheimer também se submete a noção moral de Nietzsche, apesar


da possibilidade de uma ideia universal da humanidade. É em Bergson que uma moral
como progresso é encontrada. Para o autor francês, a moral apresenta dois lados, um
natural e outro na verdade humana: a moral natural se origina na assimilação das
condições de vida da sociedade enquanto a verdade humana se encontra no impulso de
amor, voltado para a humanidade. Bergson, no entanto, recai na teoria dos heróis,
ratificando a desvalorização dos sujeitos “comuns” e a importância pequenas lutas
morais, tão caras à sociopsicologia honnethiana. A saída encontrada por Horkheimer se
encontra, portanto, no materialismo, que “vê na moral uma manifestação de vida de
determinados homens e tenta compreendê-la a partir das condições de sua gênese e
ocaso, não por causa da verdade em si, mas em conexão com determinados impulsos
históricos.” (p. 74). Aqui, a ação social finalmente é concebida enquanto ação histórica.
Os esforços teóricos do materialismo se encontram voltados para uma tentativa de
erradicação da miséria existente a partir da consideração da moral em sua
fundamentação histórica. Por isso, a administração racional da propriedade produtiva
para os interesses gerais possibilitará a harmonia entre os interesses individuais. Nesse
caso, os indivíduos tornam-se elos da comunidade.
Em decorrência dessa determinação histórica, a moral é um campo de
transformação: “necessidades e desejos, interesses e paixões dos homens mudam de
acordo com o processo social. A psicologia e outras ciências auxiliares da história
devem unir-se para explicar os valores sempre reconhecidos e suas mudanças.” (p. 75).
Não há valores eternos. A ciência deve, então, voltar-se para a compreensão das
condições que conduzem à mudança dos valores. Por isso,
ela [a moral] não é passível de motivação, nem através da intuição nem de
argumentos. Representa, antes, um estado psíquico. Descrever este, torna-lo
compreensível em suas condições pessoais e mecanismos de propagação de
uma geração à outra é tarefa da psicologia. (p. 76)

O sentimento moral se aproxima da noção de felicidade. Afastando-se das


concepções que tomam o amor como campo de propriedade, este sentimento se
apresentaria como o campo de possibilidade da transformação social. “O sentimento
moral tem a ver com o amor”, na medida em que busca a orientação para uma vida feliz
para todos os sujeitos. A expressão moral do amor se encontraria em duas formas: na
compaixão e na política. A compaixão é uma resposta do sentimento moral ao fato de
que “percebemos os homens não como sujeitos de seu destino, mas como objetos de um
acidente cego da natureza” (p. 78). A compaixão existe enquanto substrato necessário à
manutenção da moral nesse contexto social:
Enquanto o indivíduo e o todo não se fundirem realmente, enquanto a morte
fácil do indivíduo liberto da angústia não lhe parecer algo extrínseco, porque
ele sabe, com certeza, que seus objetivos essenciais estão resguardados com a
comunidade, enquanto, portanto, a moral ainda tiver uma razão para existir,
mora nela a compaixão. (p. 78)

A política, por outro lado, funciona como possibilidade de unificação entre o interesse
geral e o particular. É através dela que Horkheimer retoma a importância da tríade
liberdade, igualdade e justiça. O lema da revolução burguesa só se faz possível por meio
de uma realização política. Amalgamadas em uma realização política, liberdade,
igualdade e justiça apresentam-se como possibilidade de superação da desigualdade
fundante do sistema de classes. Por isso, a manifestação de sentimentos de injustiça se
apresenta como expressão da necessidade de superação desta ordem desigual.

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