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Mas vamos à letra Roda-viva: ela tem um chão histórico específico, ou seja, os obscuros anos da ditadura. É
desse tempo que ela data e é o que esse tempo representou para a experiência brasileira que ela aborda e
cifra. Eu falei em "cifra"? Sim, a palavra cifra tem, além da acepção comercial que conhecemos, o sentido de
explicação de escrita hermética, enigmática, e, por extensão, passa a significar essa própria escrita. Decifrar é
justamente tirar a cifra, tornar o texto claro, interpretá-lo. Como dissemos, a composição de Chico se originou
em meio ao turbilhão da instauração da ditadura militar no Brasil. Ditadura que representava, para a cultura,
simplesmente o fim da liberdade de expressão. Um meio muito utilizado na época (e, de um modo geral, em
períodos não democráticos, no Brasil e em outros países) para driblar a censura foi a metáfora, o
despistamento, a linguagem figurada, a cifra. Alguns escritores e jornalistas falavam aparentemente de flores
e rouxinóis, quando estavam se referindo à situação político-social brasileira.
O que é roda-viva? Roda-viva é, conforme os dicionários, movimento incessante, corrupio, cortado; é ainda
confusão, barulho. O texto menciona ações frustradas pela roda-viva.
Na letra a roda-viva está associada à morte, ao contrário do que indica a palavra. A roda ceifa, arranca
aquilo que ainda está em desenvolvimento: a gente estancou de repente. A gente parou (de crescer) de
repente. Note-se como é expressivo o uso de estancar, que nos faz lembrar imediatamente de sangue.
Somos abortados na capacidade de decidir o próprio destino, de adquirir autonomia como um rio é barrado,
como um fluxo de sangue é estagnado.
Essa espécie de vendaval arrebata a voz, o destino das pessoas e a capacidade de exprimir artisticamente seu
sofrimento:arrebata-lhes ainda a viola . A roda-viva arrebata da gente a roseira há tanto cultivada e que
não teve tempo de exibir tudo o que prometia.
A composição é cortada por dois movimentos: um expressa a ação empenhada, o trabalho sistemático, o
desejo de ser o sujeito da própria história. A esse movimento pertence o querer ter voz ativa, o ir contra a
corrente (da roda-viva), o cultivo ininterrupto da rosa, o tocar viola na rua e a saudade de tudo isso (na
medida em que a saudade pode ajudar a reorganizar o pensamento e a luta). O outro movimento expressa a
ação abortiva exercida pela roda-viva. Esse movimento vem expresso numa frase reiterada: "Mas eis que
chega a roda-viva e carrega (o que quer que seja) pra lá". A conjunção "mas" sinaliza justamente essa
mudança de direção, sinaliza ação adversa. A frase "eis que chega..." vem sempre ligada na letra a um tipo
de estribilho, a uma fórmula aparentemente ingênua, que lembra as cantigas de roda: "roda mundo, roda
gigante/ roda-moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração". Essa fórmula,
inocente na aparência, dado seu teor caótico e quase surrealista (típico de enigmas, cantigas de ninar etc.) e a
referência a brinquedos infantis (roda-gigante, pião), tem o efeito de exprimir um desnorteio, uma situação
absurda, fora do esquadro. De fato, não é possível conceber a ditadura como algo natural. Ela não pertence à
ordem da razão.
Esses movimentos descritos na letra são, portanto, de trabalho em curso e de sucessiva frustração. Isso
descreve muito a experiência brasileira, tanto do ponto de vista social e político como do ponto de vista
cultural. Quando estávamos começando a engatinhar na democracia, é instalado o regime totalitário, para o
qual não existem indivíduos. Sufoca-se até a saudade (já cativa) de outros tempos.
Mas esse ambiente de tanto mal-estar foi filtrado por Chico Buarque com muita cautela:
era preciso despistar a censura, daí a profusão de rodas e de versos encantatórios; era
preciso dizer a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração advinda da mesma
profusão de rodas, que diríamos serem antes de trator.
Chico Buarque
Francisco Buarque de Hollanda nasce em 19 de junho de 1944, na cidade do Rio de Janeiro. Quando está com dois
anos, sua família se transfere para São Paulo. Tanto seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, como sua
mãe, Maria Amélia, gostavam de tocar piano e cantar com os amigos, entre eles Vinícius de Morais. Estuda violão com sua irmã Miúcha e,
influenciado por João Gilberto, começa a fazer suas primeiras composições. Cursa até o terceiro ano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
USP. Seu primeiro compacto é lançado em 1965. Participa de alguns festivais de música popular brasileira e, em 1966, no II FMPB da TV Record,
quando "A banda", música de sua autoria, divide o primeiro lugar com "Disparada". Escreve peças, compõe para cinema e teatro e lança vários
álbuns, entre os quais: Construção (1971), Sinal Fechado (1974), Almanaque (1981) e Paratodos (1993). Chico publicou Fazenda Modelo
(1974), Chapeuzinho amarelo, livro-poema para crianças (1979), A bordo do Rui Barbosa (publicado em 1981) , Estorvo (1991) e, em 1994,
Benjamin, ambos pela Companhia das Letras.