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UnB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

MST – MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA

ENFF- ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS

TRAJETÓRIA POLÍTICA E ESTÉTICA DA BRIGADA NACIONAL DE


TEATRO DO MST PATATIVA DO ASSARÉ

LEILA MARIA DE ALMEIDA MARQUES

Orientador

RAFAEL LITVIN VILLAS BÔAS

Janeiro de 2014

2014
1
Leila Maria de Almeida Marques

Trajetória Política e Estética


da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré

Monografia apresentada ao Curso


de especialização lato sensu em
Educação em Linguagens nas
Escolas do Campo do Programa de
Pós-Graduação em Literatura,
Departamento de Teoria Literária e
Literaturas, Universidade de Brasília
– UnB, como requisito parcial para
obtenção do título de Especialista.

Orientador: Prof. Dr. Rafael Litvin Villas Bôas

Guararema – SP
Departamento de Teoria Literária e Literaturas – UnB
2014

2
Trajetória política e estética da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré

Autora: Leila Maria de Almeida Marques

Orientador: Rafael Litvin Villas Bôas

BANCA EXAMINADORA

_________________________________

Prof. Ms. Miguel Enrique Stedile

(na condição de substituto do orientador)

_________________________________

Profa. Ms. Jade Percassi

_________________________________

Prof. Ms Adailton Alves

3
AGRADECIMENTOS

Ao Rafael Litvin Villas Bôas, pela orientação do trabalho pela paciência e tempo
precioso dedicado. A sua atenção e responsabilidade com esse, a seriedade que teve me
fez aprender e avançar, superando os meus limites, de indisciplina com os estudos...

Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que nos possibilita a


continuidade nos estudos.
A possibilidade de fazer parte da Brigada Patativa do Assaré, aos militantes
dessa Organização que não medem esforços para contribuir com o processo de pesquisa
e debate a respeito do que se construiu.
A toda a minha família e a todos/as camaradas que diretamente e indiretamente
contribuíram com a realização desse trabalho.

Resumo:

4
A pesquisa consiste na análise da trajetória política e estética da Brigada Nacional de
Teatro do MST Patativa do Assaré. O processo de construção da Brigada, a partir das
demandas do MST para o campo da cultura e da arte, bem como o vínculo entre o
trabalho da Cultura com a estratégia política da organização são foco do trabalho. Por
meio da análise de uma das peças construídas coletivamente pela Brigada, “A peleja de
boi bumbá contra a águia imperiá” e de duas peças de um dos grupos criados por ela, o
Coletivo Peça pro Povo, do MST/RS é discutido o resultado do trabalho coletivo fruto
da parceria entre MST e Centro do Teatro do Oprimido (CTO) e são apontados os
avanços, em perspectiva comparada com outras experiências de articulação entre cultura
e política, bem como os limites e desafios para a continuidade da experiência.

Palavras chaves: teatro, política, estética, MST.

Abstract

The research is the analysis of political history and aesthetics of National Brigade
Theatre MST Patativa of Assaré. The process of building the brigade, from the demands
of the MST to the field of culture and art , as well as the link between the work of
Culture with the political strategy of the organization are the focus of the work .
Through the analysis of a collectively constructed by Brigade pieces, " The conflit
betwen bumbá caw against Imperial Eagle " and two pieces of one of the groups created
by it , the pro Collective Peça pro Povo (MST / RS) is the result discussed collective
work born of a partnership between MST and Center Theatre of the Oppressed ( CTO )
and are considered advances in comparative perspective with other experiences of
articulation between culture and politics , as well as the limits and challenges to the
continuity of experience.

Key words : theater, politics, aesthetics, MST.

SUMÁRIO

5
INTRODUÇÃO p. 07

CAPITULO 1- Descrição da história p. 12

1.1 O Método do Teatro do Oprimido p. 17

CAPITULO 2- Influências e entendimentos dos gêneros no teatro: épico e dramático, e


estética do teatro de agitprop, à serviço de que? De quem? p. 21

2.1 Relações entre épico e o dramático no teatro p. 27

2.2 Os limites estéticos identificados pela Brigada Nacional na produção de suas peças
p. 32

CAPÍTULO 3 – A contrapelo da história: a linguagem viva do teatro p. 36

3.1 A peleja de boi bumbá contra a águia imperiá p. 38

3.2 A Bundade do Patrão p. 48

3.3 Peça teatral “A mulher da roça” p. 61

Considerações finais p. 65

Referências Bibliográficas p. 72

Anexos

Peça 1: A peleja de boi bumbá contra a águia imperiá p. 76

Peça 2: A bundade do patrão p. 85

Peça 3: Mulher da roça p. 90

Introdução

6
Através da arte, podemos pensar e acompanhar o
desenvolvimento das potencialidades humanas ao longo da vida,
de como determinam e são determinadas socialmente, trazendo
para a educação do campo, uma formação coerente com as
necessidades humanas e o desenvolvimento histórico e
tecnológico da humanidade (Ana Claudia1).

A pesquisa “Trajetória Política e Estética da Brigada Nacional de Teatro do MST


Patativa do Assaré” analisa a trajetória da Brigada, com ênfase na questão do processo
de formação política, e da relação do trabalho com a estratégia política do MST, e na
questão estética, tomando como objeto de análise o processo de construção e
consolidação da Brigada, e por meio da análise de uma das peças construídas pelo
elenco composto pelo grupo de militantes que criou a Brigada Nacional, na segunda
etapa de formação com o CTO, em junho de 2001, e duas peças de um dos grupos
criado como parte da tarefa de multiplicação da ação teatral do MST, o Coletivo Peça
pro Povo, do MST/RS, em janeiro de 2005.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se organiza em torno


de três objetivos principais: Lutar pela terra; Lutar por Reforma Agrária; Lutar por uma
sociedade mais justa e fraterna. Criado em 1984, na região sul do Brasil, atualmente ,um
Movimento com caráter nacional, e completou em 2014, trinta anos de existência.

O teatro no MST tem objetivos construídos coletivamente, e de abrangência


nacional, que são:

- Contribuir para o processo de formação da militância, por meio da


sensibilização para as relações entre estética e política;

- Ampliar a rede de multiplicadores por meio de oficinas, e formar


grupos nos acampamentos e assentamentos, com objetivo de provir a
comunidade de seus próprios meios, diversão conciliada com o elemento de
educação e debate político;

1
Ana Claudia ex- militante da Brigada Nacional Patativa do Assaré do MST - Pernambuco. Texto
produzido por ela: O Papel da Arte na EdoC, mimeo.
7
-Trabalhar em conjunto com outros setores no desenvolvimento de
metodologias de formação;

- Trabalhar com linguagem estratégica para a potencialização do


contato entre o campo e a cidade, por meio de trabalho de base em periferia
urbana, debates em escolas e universidades e apresentações em locais
públicos nas cidades. (Caderno de Artes: 2005 p. 08).

O teatro no MST teve importantíssima tarefa, de traçar debates, suscitar


avaliações em encontros de formação, discutir os rumos da Organização, trazer para o
centro as discussões mais melindrosas, delicadas, como, por exemplo: preconceito
racial, de gênero, machismo, violência doméstica, alcoolismo, entre outras temáticas
que são veladas na sociedade.

Escrever a respeito dessa experiência foi uma vontade desde o inicio dos
encontros com Boal durante o processo de formação da Brigada Nacional Patativa do
Assaré. Realizar o registro dos avanços/aprendizagens, contradições/limites, com receio
pelo fato da proximidade com o tema, por sermos integrantes da Brigada, tornar a
análise muito biográfica, mas, ao mesmo tempo, impulsionada pela certeza da
significação histórica e política que o trabalho teve e tem, para o MST, e para a
sociedade.

Desde o primeiro encontro do grupo, antes dele se denominar Brigada Nacional


de Teatro do MST Patativa do Assaré, indicaram-me para participar desse processo de
formação representando a região Sul do Brasil. Sentimos a responsabilidade e o grande
desafio que tínhamos em relação ao que se propunha para esse grupo de militantes: a
apropriação e multiplicação da técnica do Teatro do Oprimido.

Em um primeiro momento era essa a tarefa, em seguida foram se abrindo muitas


outras possibilidades de fazer teatro, de experiências de outros grupos de teatro, de
outros povos e culturas com quem poderíamos aprender. No decorrer da parceria fomos
abrindo um leque de possibilidades de estudo, aprofundamento, conhecimento de outras
formas teatrais.

No decorrer desse percurso, desde 1999, quando escutamos falar dessa parceria,
soube que tinha a possibilidade de participar, ser indicada pela região Sul, a curiosidade
de entender e escrever sobre essa experiência brotava e crescia junto. Nesse período, de

8
1999 até 2002, estava fazendo magistério 2 e me recordo bem, quando a coordenação do
setor de educação, algumas pessoas, defenderam-nos no intuito de que fizéssemos parte
desse processo de formação. Liberaram-me para sair ao final da etapa do curso de
magistério, para ir participar no RJ na sede do Centro do Teatro do Oprimido da
formação.

Para mim foi uma emulação inexplicável, pois a responsabilidade de representar,


e principalmente, fazer no MST como tarefa o que me identificava, o trabalho com
teatro. Um “à parte” rápido: imaginem só, uma camponesa, jovenzinha que no máximo
tinha viajado até Porto Alegre (em excursão), de repente ir até o Rio de Janeiero
sozinha, de ônibus, somente com o endereço do local, sem conhecer ninguém dos
camaradas do MST que estariam lá.

Muitos acontecimentos importantes, que não posso narrá-los todos, pois não é o
objetivo, ao chegar lá em um domingo à tarde, um calor de 40º C, não encontrava o
lugar, a descrição das ruas que tinha era diferente do que via na prática, sufoco, ao longe
vi uma camiseta do MST, UFA! Que alívio, parecia que havia encontrado alguém da
‘família’, e era da “família MST”. Éramos como irmãos, conhecidos de um bom tempo,
apesar de nunca tê-lo visto antes: Lupercio, do MST de Sergipe.

Muitas outras histórias bonitas de aprendizagens aconteceram nesse processo de


formação, tanto pessoal como militante. Conhecer o cinema, um grande teatro, peças,
cenas, montagens de esquetes, a convivência com militantes do MST de vários Estados,
cada um com uma cultura, jeito de ser. A socialização de uma parte da vida pessoal e do
Movimento aconteceu nesse período.

Momentos de discursos, de estudo que temos e tivemos, nos diferentes espaços


da nossa Organização, vivenciamos na prática com o grupo de militantes na Brigada
Nacional de Teatro Patativa do Assaré, desde dormir e acordar, debatendo as nossas
tensões e descontentamentos dos diferentes âmbitos, dogmas, ritos, a vida condensada
pedagogicamente. Além da experiência política, a experiência de vida que é ímpar.
Pessoas com diferentes culturas, costumes...

A identificação com essa linguagem vem de muito tempo. Minha mãe fazia
teatro com mulheres, na igreja, e eu estava em contato e a ajudava nessa tarefa sempre,
2
Magistério VII, Turma Herdeiros de Zumbi, acontecia o curso de 1999 à 2002 em Veranópolis – RS, no
Instituto Técnico de Educação e pesquisa da Reforma Agrária Josué de Castro – ITERRA.
9
despertando o gosto por teatro. Desde então tinha essa vontade de fazer dessa linguagem
uma forma de comunicação política, que tivesse um sentido social e não mero
entretenimento.

Com o passar dos anos, e o fazer teatral, fomos entendendo no MST a


importância dessa arte política. O teatro comunica, apresenta à realidade concreta de
uma forma outra, reinventada, que encanta, indigna, desacomoda, coloca em movimento
as contradições e tensões do nosso mundo.

Consciente da importância dessa arte e da abrangência dos diferentes públicos


para debater a partir dela foi que o MST investiu a partir de longos debates, na
necessidade de fazer teatro.

Uma linguagem própria e apropriada de diferentes fontes signifacativas para a


nossa prática interna e de relação com a sociedade, com isso romperam-se fronteiras:
das diferentes formas teatrais, para melhor apresentar temas e temáticas necessárias para
a nossa luta.

O trabalho se organiza com três capítulos. O capítulo 1 abordará com um texto


descritivo o processo de construção da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do
Assaré, apontando os desafios e limites que foram postos no decorrer desse processo.
Ainda nesse primeiro capítulo é analisada a experiência do trabalho com Augusto Boal.

No segundo capítulo é realizada a revisão bibliográfica sobre os gêneros e


formas teatrais: os gêneros épico e dramático, e as formas do teatro de agitação e
propaganda, com o apoio da teoria acumulada e sistematizada por alguns autores
principais, e releituras feitas por outros, com base marxista, com referência em: Bertold
Brecht (1898-1956), Theodor W. Adorno (1903-1969), Anatol Rosenfeld (1912-1973),
Péter Szondi (1929-1971) e a professora Iná Camargo Costa intelectual ativa em
produções críticas de teatro na atualidade, e assessora da Brigada Patativa do Assaré e
do Coletivo Nacional de Cultura do MST.

No terceiro capítulo é realizada análise de três peças que a Brigada Nacional e


um dos grupos, o Coletivo Peça pro Povo, ligado a ela produziu. Temos como objetivo a
análise das mesmas, e por meio delas apresentar as formas dramatúrgicas utilizadas e os
efeitos resultantes, não com o fim em si mesmo, mas como processo de aprendizagem.

10
A busca de compreensão do momento histórico que o MST estava vivenciando
colado com a conjuntura nacional, motiva também a produção interna de materiais do
próprio MST, com uma linguagem que não o discurso político unicamente, mas sim por
meio da linguagem teatral, condição que nos exigiu estudo, pesquisa, dedicação e um
olhar atento sobre a produção, ao conhecer o acúmulo de teatro no Brasil, sobretudo
com um marco a partir da experiência com Augusto Boal, e a sequencia dos trabalhos
posteriores ao início desta parceria.

Boal tinha convicção da importância da apropriação da técnica teatral pelos


trabalhadores, deixava explícito em suas colocações, conforme afirma: “Penso que
todos os grupos teatrais verdadeiramente revolucionários devem transferir ao povo os
meios de produção teatral, para que o próprio povo os utilize, à sua maneira e para os
seus fins”. (1991, pag.139).

A ideia de socialização das técnicas aos trabalhadores do teatro e ao povo era


algo inerente ao seu pensamento, com essa compreensão é que Augusto Boal propõe ao
MST essa parceria de formação e multiplicação da técnica teatral.
Escrever e interpretar a nossa própria história do ponto de vista dos Sem Terra,
foi um dos ganhos internamente, com o processo de formação e consolidação da
Brigada Nacional, pois possibilitou a apropriação da técnica teatral para a partir dela, e
da vivência social, protagonizar por meio da arte a problematização das contradições do
presente a a construção de uma imagem de real, para o futuro.

Nesse trabalho, a proposta é de ponderar a trajetória política e estética da


Brigada Nacional e alguns limites das peças teatrais elaboradas por esse coletivo, a fim
de entender quais foram os feitos significativos, os impasses, e apontar alguns desafios.

Capítulo 1 – Descrição da História

“Arte mal feita não é arte”.

Trotski.
11
A história de formação e consolidação da Brigada Nacional de Teatro do MST
“Patativa do Assaré” nasceu de um intenso processo de debates, regados de conflitos e
tensões. Trata-se da formação de um coletivo de militantes de diferentes Estados do
Brasil, com culturas distintas, formas de organização que se somam nacionalmente para
o acúmulo de produções teatrais no MST.
Foi no bojo de muitos acontecimentos nacionais no MST, um ano após o seu IV
Congresso Nacional3, após elencar as grandes linhas de atuação para os próximos cinco
anos, que se decidiu ocupar o latifúndio da arte, da cultura, e do teatro.

No ano de 2001 ocorreu o primeiro encontro, de caráter nacional, com o objetivo


de organizar um grupo de militantes que fossem multiplicar a técnica do Teatro do
Oprimido. Desde então é desencadeado intenso processo de formação, que teve como
objetivo a apropriação dos meios de produção da linguagem teatral e a multiplicação
nos espaços internos do movimento, visando a formação de grupos, a qualificação dos
militantes dos setores da organização, a articulação com os movimentos urbanos e do
campo, o trabalho de base para massificação, etc.

A Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré foi forjada em meio a um


momento histórico que levou a intensificar os trabalhos de formação e estudo com a
juventude, e qualificar o trabalho com o teatro, a fim de fazer o debate externo com a
sociedade. Envolver os jovens nessa tarefa de politização e acúmulo da técnica teatral a
favor da Organização.

A experiência com o teatro na Brigada Nacional Patativa do Assaré se deu em


diferentes âmbitos, devido ao conhecimento individual de cada pessoa com o assunto, e
dos diferentes espaços de formações que cada um estava inserido.

Essa construção se dá em meio a um momento histórico político que se


caracteriza como um divisor de águas, conforme estudos da militante da cultura Juliana
Bonassa:

3
“Reforma Agrária. Por um Brasil sem Latifúndio” (2000). Esta palavra de ordem estava

materializada no outro Brasil que queremos construir no cotidiano. O Congresso Nacional do MST
acontece de cinco em cinco anos com a finalidade de traçar as linhas gerais de atuação para o período.
12
Los años 2000 se caracterizan por ser un parte aguas en la praxis cultural del
MST. En los inicios de esa década dos aspectos fundamentales se evidencian.
El primero marcado por las consecuencias de más de una década de gobierno
de Fernando Henrique Cardoso (FHC) y el segundo las expectativas creadas
por la posibilidad de victoria electoral de Luis Inácio Lula da Silva (Lula). El
escenario político marcará las actividades y concepciones organizativas del
conjunto del MST y del Colectivo Nacional de Cultura, estas estarán
altamente conectadas a una serie de condiciones internas y externas al
Movimiento. (2012, pág. 64)

A conjuntura política do país em efervescencia, muitas contradições aflorando:


Sem Terras sendo assassinados muitos acontecimentos que apresentam a necessidade da
organização cada vez maior dos membros deste Movimento. A trajetória de construção e
consolidação do teatro no MST, não é unicamente a partir da Brigada Nacional Patativa
do Assaré. O teatro está presente desde sua gênese.

En el caso del MST el teatro ocupó desde el comienzo un importante papel


dentro del campo cultural y artístico de la organización. Desde las primeras
ocupaciones de tierra, se puede detectar la presencia de grupos teatrales que
surgían: de manera espontánea; a partir de la colaboración de grupos
profesionales simpatizantes de la causa de reforma agraria; o con un carácter
puntual, con el mero objetivo de entretener a la comunidad en momentos
festivos.

Al inicio el quehacer teatral tenía un demarcado carácter espontáneo y


ayudaba en el agrupamiento de los miembros de las comunidades. Que
muchas veces tenían como objetivo utilizar las obras para contar y
comprender los hechos de la lucha y el contexto en que éstos se
desarrollaban, además de recordar aspectos de la lucha pasada, tal como
podemos observar en una de las funciones de la mística. Hay un elemento
importante en ese punto, ya que muchas comunidades tenían una fuerte
relación con el ala progresista de la Iglesia Católica, donde es conocida la
utilización del teatro como instrumento pedagógico de carácter narrativo; y
por lo tanto, esa práctica se evidenciaba constantemente tanto en las
comunidades Sin Tierra como en las estructuras católicas.

13
Con el pasar del tiempo los grupos de teatro fueron percibiendo la necesidad
de profundizar en el conocimiento y en la práctica de dicha manifestación
artística. En ese periodo, a mediados de la década de 1990, muchos fueron los
grupos de teatro amigos del MST que impartieron talleres de teatro, que
buscaban, sobretodo, compartir el quehacer teatral con los trabajadores y
trabajadoras rurales. Entre ellos se encuentra Augusto Boal y el Centro del
Teatro del Oprimido, principalmente en la provincia de Rio de Janeiro.
(BONASSA: 2012, pág. 65)

Juliana traça uma linha histórica da importância da cultura e do teatro para o


MST, desde seu inicio e seus principais parceiros. A cultura na Organização sempre teve
uma importância com as místicas que regam a nossa luta, os valores cultivados pelos
camponeses, enfim, a continuidade da produção cultural do MST.

Dando continuidade a ideia de que a cultura no MST tem um lugar, e na prática é


destinado tempo de aprimoramento por meio de estudos e disposição de militantes para
isso, a militante Juliana Bonassa, estudante do Departamento de História da Arte – em
Cuba, se debruçou em estudar e trazer elementos para sistematizar a trajetória política e
histórica.

La Brigada Patativa que nace a partir de un intento de diversificar en


los métodos formativos se transforma en un colectivo de militantes que
agudizaron algunas cuestiones polémicas en el Colectivo Nacional de Cultura
y también en prácticas generales del MST. Vale resaltar que la Brigada
“Patativa” pasó por diversos cambios en lo que se refiere a la estructuración,
composición y concepciones durante el período que investigamos. (2012,
pág. 68).

Para a formação nacional foram enviadas pessoas de mais ou menos dezoito


Estados em que o MST está organizado. Diferentes saberes, pessoas que já trabalhavam
com o teatro, ou música e que se identificam com a área das artes e a linguagem do
teatro.

14
Foi um choque cultural de inicio, na primeira oficina, em janeiro de 2001, no
Rio de Janeiro, com Augusto Boal e sua equipe de curingas, pois no primeiro encontro,
não nos conhecíamos, era um de cada canto do Brasil a única identidade comum ser
Sem Terra.

O grupo, sem denominação ainda estava um pouco perdido, do ponto de vista da


organicidade interna que não se tinha estabelecido. A organização era mais referente à
organização proposta pelo CTO4, pois ministravam as oficinas de formação de
multiplicadores da técnica do Teatro do Oprimido, e se ficava com as orientações do
CTO, as programações referentes às atividades eram propostas pela equipe do mesmo.

Enquanto grupo não havia muitos outros laços como afirmamos acima, não se
tinha uma identificação de Brigada, não se conhecia uns aos outros, nem da história de
onde cada um procedia, esse desconhecimento por momentos provocou certo
acomodamento, não tinha uma pessoa responsável, ou alguém que coordenasse.

Majoritariamente, o grupo era composto por pessoas que tinham nessa, sua
primeira atividade de confiança postada, considerando a importância da tarefa,
representar as regiões do país pelo MST, em um trabalho com profissionais tão
competentes quanto Augusto Boal5.

O fato de ter um processo de formação com Augusto Boal nos deu muitas
possibilidades de aprendizagens coletivas de interação de grupo, de conhecimentos
diversos da apropriação da técnica teatral. Junto a isso tudo, traçamos a partir das
demandas do conjunto do MST uma organização interna desse Coletivo, e nos
autodenominamos Brigada Nacional Patativa do Assaré. Determinamos um casal (um
homem, uma mulher por questão de gênero) de responsáveis para coordenar a Brigada,
bem como, uma mística de Coletivo.

A organização das oficinas do CTO aconteciam com uma programação


específica preparada e proposta pelo CTO, coordenado por Augusto Boal e seus
curingas6.

4
O Centro de Teatro do Oprimido - CTO-Rio – é uma associação sociocultural sem fins lucrativos, que
visa à democratização da cultura e ao fortalecimento da cidadania. RJ, fundador Augusto Boal.
5
Escritor, dramaturgo e teatrólogo, desenvolve o método do Teatro do Oprimido desde 1971, sendo
diretor artístico e fundador do CTO-Rio.

6
Curinga: atores que compõe um grupo de mediação para a técnica do teatro do oprimido.
15
Para cada etapa de formação com o CTO havia uma programação específica para
o período7, iniciava a formação com acolhida feita por Augusto Boal, com conversa
informal, mas com muitas informações e uma formação de viajar. Boal trazia em suas
colocações a vida latente da classe trabalhadora, sua fala sempre com muito ânimo.

A formação inicial, que sempre se iniciava com uma conversa, dúvidas que
pudesse ter ficado do dia anterior, em seguida jogos e exercícios de todas as categorias,
conforme íamos nos apropriando desses nós conduzíamos os mesmos. Os encontros
eram regados por apresentações de outros grupos de teatro que o CTO trabalhava
apresentações, intervenções externas, fora do espaço do CTO.

A produção de peças de teatro que propúnhamos as temáticas eram realizadas


coletivamente, com os militantes do MST, com conflitos às vezes de diferenças entre o
que ficaria melhor esteticamente e a realidade que queríamos apresentar, alguns
impasses na forma e conteúdo ao construir as peças.

O trabalho coletivo marcou essas etapas de formação, desde figurino, cenário,


confecção de todo o material necessário para a realização da apresentação, dramaturgia,
laboratório dos personagens. E isso era até engraçado, pois, ficávamos conforme o texto
até altas horas passando texto ensaiando como fazer melhor, testando voz... O nosso
tempo de trabalho nessas formações não necessariamente o da programação formal,
sempre ia para além do previamente estabelecido.

A primeira etapa foi mais entendimentos de como fazer, o que seria mesmo a
parceria, nossas tarefas de multiplicadores, aprendizagens das técnicas, jogos, exercícios
o arsenal do teatro do oprimido, que foi muita informação ao mesmo tempo. Mas
encantou pela forma com que nos recebeu o Augusto Boal e o CTO.

A opção de Augusto Boal estar presente em todas as etapas, conjuntamente com


seus curingas, enriqueceu o trabalho com a experiência que tinha, bem como, o acúmulo
histórico que tinha e a clareza política de Boal.

Todos se envolviam com todo o processo de produção, desde o debate dos


textos, até o último detalhe do figurino e com muita atenção e preocupação com a
responsabilidade que tínhamos de fazer bem feito o que nos propomos. De acordo com
as habilidades, dividíamos as tarefas de cada etapa do processo de maneira que
7
Colocaremos em anexo uma das programações das oficinas, a primeira, 2001.
16
garantíssemos a socialização do todo. Testávamos as nossas peças entre nós mesmos
para fazer fórum, às vezes dava certo, às vezes não, precisávamos rever.

Com isso, adquirimos mais experiência e por consequência autonomia no


decorrer das etapas, de modo que na quarta e na quinta etapa nós começamos a planejar
previamente com Boal o que queríamos aprender, como o Teatro Procissão, o Teatro
Invisível, etc.

1.1 O Método do Teatro do Oprimido

A cultura para nós deve ser um processo de autoliberação do ser


humano que vai além da própria experiência, se transforma em utopia e busca
coletivamente a construção de um novo projeto de sociedade.

... A arte para nós deve servir como instrumento de conscientização.


(Caderno O MST e a Cultura 2003. Pág. 09).

Conforme a epígrafe que selecionamos para iniciar esse subcapítulo, representa


uma das partes do pensamento do conjunto do MST em relação à arte e a produção da
cultura, como parte de um processo de ‘libertação’ e conscientização do ser humano, em
suas diferentes dimensões da vida.
Teatro do Oprimido (TO)8 para o MST se apresentou como uma possibilidade de
debater os problemas da esfera privada, diversos temas, como por exemplo: racismo,
machismo, violência contra mulher, violência infantil, entre outros assuntos. Por meio
dessa metodologia conseguimos debater discutir temáticas que por muitas vezes era um
problema coletivo, mas que e como se manifesta como algo pessoal, apesar de ser
coletivo, nem sempre havia ‘espaço’ para discutir.
E através do teatro podíamos discutir o assunto como algo “alheio” as pessoas
que tivessem o problema. Era algo até engraçado, muitas vezes até sabíamos que o

8
Segundo definição dada em documento da 1ª oficina de teatro, em 2001, parceria Boal X MST – Teatro
do oprimido é uma metodologia teatral que engloba exercícios, jogos e técnicas teatrais com o objetivo de
transformar o espectador passivo em sujeito da ação dramática. Através de improvisações e encenações
teatrais estimula a discussão, de forma lúdica, atraente e eficaz, dos mais diversos temas. No TO o
espectador, através de sua participação ativa, ensaia o presente para inventar o futuro.
17
problema era das pessoas, mas denominavam como se fosse problemas de terceiros,
para colocá-lo na roda de debate.
Como a dinâmica era sempre uma pergunta, um problema, com muitas
possibilidades de solução as pessoas ficavam por horas discutindo e experimentando
possibilidades de solução e o argumento sempre atravessava a ideia: “... é eu conheço
alguém que tem esse problema, minha vizinha/o, já vi um caso assim...”.
As infinidades de possibilidades eram discutidas e em alguns casos até
encaminhado para órgãos competentes, como por exemplo, o caso, da violência contra a
mulher, que após vários fóruns de uma determinada peça, que abordava a temática, a
mulher se encorajou e teve suporte para denunciar e se ver livre dessa opressão.
Para Boal a importância das pessoas poderem discutir, debater sobre os
problemas de uma forma não rígida, marcada, cerrada, fechada, mas sim apontar
possibilidades através de vivências concretas. Como algo não com um fim em si
mesmo, mas como um elemento mediador, conforme Villas Boas, em MST Conta Boal:

O Teatro do Oprimido pode ser compreendido como a tentativa de


retomada dos elos com a classe trabalhadora, após a derrota operada pelos
militares e a elite empresarial brasileira. Não é entendido como um fim, mas
como um elemento mediador, que permite a retomada da socialização dos
meios de produção da linguagem teatral, agora visando a autonomia de
produção e organização da classe trabalhadora. Na medida em que situamos o
Teatro do Oprimido como elo em um processo organizativo em reconstrução
deixamos de ter como fim a crítica de seus resultados formais, das peças
construídas com seus potenciais e limites. O centro não é mais a obra
fechada, produto resultante do trabalho do teatro profissional. Para o primeiro
plano ascende a experiência das pessoas, mediadas e transformadas em cena
pelas técnicas teatrais. Trata-se de articulação singular entre teatro político e
educação popular, em resposta ao silenciamento e à cultura da inação imposta
pela ditadura militar. (2006 pág.09).

A metodologia do teatro Fórum coloca os espectadores em uma condição de


protagonistas da história apresentada, essa forma teatral não existe sem público,
necessariamente o público é parte da apresentação, e do fazer teatro. Esse protagonismo
e liberdade de discutir os rumos possíveis a serem tomados ‘utopicamente’, e para além
da utopia, eram colocados em cena a fim de que examinássemos e debatêssemos
profundamente cada temática.

Em alguns casos, o Teatro Fórum funcionava como uma alavanca que


desencadeava em ações concretas. Como é o caso, de um acontecimento que a partir de

18
diferentes opiniões, através do fórum de uma peça, de violência contra mulher, à
oprimida em questão se encorajou em denunciar a situação de violência em que vivia.
Mesmo que ela não tenha sido exposta na situação, escutou as diferentes
opiniões que surgiram a partir do Fórum, bem como a opinião do opressor, possibilitou-
a a distanciar-se do problema e tomar uma posição perante a ele, denunciou nos órgãos
competentes. Como ela mesma afirmou: “... não podemos permitir que ninguém bata
em ninguém”.
Essa possibilidade se deu através da parceria CTO X MST, que aconteceu em
um período histórico de muitas aprendizagens e crescimento para o conjunto do MST,
com a apropriação das técnicas teatrais que aconteceram no RJ, de acordo com Villas
Boas em “MST Conta Boal”.

Trabalhamos de forma sistemática com o CTO e Boal durante cinco etapas de


formação, duas em 2001, uma em 2002, uma em 2004 e a última em 2005.
Desde o início nos foi ensinado o vocabulário dos jogos e exercícios, e a
dinâmica do Teatro Fórum. As três primeiras etapas foram de consolidação de
nossa experiência como multiplicadores. Nos intervalos entre as etapas
tínhamos que formar grupos teatrais nos estados, e ao nos reencontramos,
avaliávamos os limites das experiências e as formas de complexificá-las.
Nesse período, a Brigada Nacional produziu cinco peças de Teatro Fórum
com o CTO, tendo Boal se dedicado muito ao acabamento dramatúrgico das
peças, e à apresentação formal dos trabalhos, com ênfase na interpretação, na
construção de adereços e cenografia, e de figurinos. (2012, pág. 13).

Os nossos encontros com Augusto Boal e sua equipe aconteceram regados por
muita dedicação e empenho, Boal fazia questão de estar presente na maioria dos
momentos de formação, com humildade imensa nos proporcionou a apropriação da
metodologia do Teatro do Oprimido. E o MST soube como trabalhar com ele de
maneira a somar para a classe trabalhadora com esse conhecimento.

19
CAPITULO 2 - Influências e entendimentos dos gêneros no teatro: épico,
dramático e estética do teatro de agitprop, a serviço de que? De quem?

Nosso contato e estudo com mais dedicação a respeito dos gêneros teatrais
acontece com a parceria CTO, a partir das nossas produções coletivas de peças de
teatro, dos experimentos e contato com intelectuais orgânicos, bem como, com grupos
de teatro que tem seu trabalho voltado para os interesses de classe. Mas, a consciência
para a dimensão política e estética da questão ocorre de forma coletiva à Brigada no
momento em que ela estabelece contato com a professora e militante Iná Camargo
Costa, em fevereiro de 2004, por conta do argumento da pesquisadora a respeito do
teatro político, presente em seus livros A hora do Teatro épico no Brasil (1996) e Sinta o
drama (1998).

20
O aprendizado das formas teatrais se dá aos poucos, de acordo com a discussão
sobre os avanços e limites de nossas produções. Um processo não retilíneo, com muitas
idas e vindas, pois o fazer teatral nos leva a pensar, repensar e propor um novo jeito de
ver a vida, problematizando-a, interpretando-a em suas contradições e tensões
cotidianas, e de época histórica.

Para tanto, buscamos inspirações na história da luta de classes, em que os


trabalhadores foram os protagonistas dessa história, na Alemanha em seu período de
guerras, revoluções (séc. XX), a partir de 1918, muitos foram os acontecimentos
políticos, sociais, econômicos que deram uma guinada significativa para a produção da
arte, do teatro, que foram contribuições históricas para o fazer teatral futuro.

O gênero épico exprime majoritariamente a ideia de coletivo, histórias


imaginárias ou não, que tem o envolvimento de um grupo de pessoas, de coletivos. O
pronome principal a ser utilizado nesse gênero é “nós”, e não o “eu” existem artifícios
ao se utilizar dessa forma e não de outra, ao narrar uma história reflete sua marca para
histórias coletivas, como por exemplo, o narrador que é quem dá a voz aos personagens,
esse ‘representa’- dá a voz a um grupo social.

Conforme Costa, no artigo “Contra Drama”:

A esfera política propriamente dita, que os alemães chamam de


esfera do épico, está excluída do drama. Este era um outro obstáculo.
Excluída a esfera pública, a esfera política, do horizonte dramático, um
dramaturgo que quisesse tratar, por exemplo, de uma rebelião de
trabalhadores, não iria conseguir fazer isso no drama e, se ele insistisse, ia dar
errado como de fato deu. (2005, pág. 04).

Essa é uma possibilidade de técnica teatral oferecida, que permite desenvolver


fatos históricos com maior calma e fulgor. Nesse caso, está sendo referendada uma peça
de rebelião de tecelões da época - Alemanha e que não deu certo por que foi proibida
pela polícia...

Enfim, essa forma apresenta alguns elementos fundamentais: o narrador e o


mundo narrado, com isso têm duas perspectivas: os personagens em menor escala e o
narrador em um plano maior que tem uma visão do todo o que compõe a história. O
narrador demonstra conhecer a dimensão pessoal de cada personagem, apesar disso,
21
mantem distância em face à eles. Ele se mantem na postura de narrar à história, de
ilustrar como os personagens se comportam, uma relação distanciada do personagem.

Uma boa forma de acompanhar esse movimento em cena é a peça, construída


coletivamente pela Brigada Patativa do Assaré: “A peleja do boi bumba contra a águia
imperiá”. No caso, o narrador existe o tempo todo na peça, e essa narração se dá de
forma coletiva também, pois as brincadeiras do boi perpassam a historia, é a partir do
boi que acontece a peça, a forma de brincar de apresentar a história que se propõe contar
já é o próprio conteúdo da peça, atravessada pelas contradições do mundo externo, das
injustiças das vendas dos patrimônios nacionais. A apresentação do problema social
vivenciado se dá com uma estrutura épica, com narrador, voz coletiva, participação do
“nós”.

As formulações a cerca do teatro épico são muitas, desde os gregos já se falava


no épico. Brecht também contribuiu como um grande formulador, a respeito do assunto:

Numa fórmula extremamente sumária, podemos dizer que o teatro épico, do


qual Brecht é o mais importante emblema, foi uma importante arma forjada
entre o final do século passado e as três primeiras décadas deste por artistas
adeptos da causa da revolução proletária, no âmbito da luta cultural.
(COSTA:1998, p. 75).

O teatro épico nos possibilita debater a respeito de diferentes temáticas, sem que
o foco esteja na vida privada, são assuntos mais épicos, de caráter coletivo, como por
exemplo:

 Reforma Agrária X Agronegócio;

 Globalização;

 Transgênicos;

 Agricultura familiar.

Em uma obra com predominância no gênero dramático as principais características


que identificamos, segundo Rosenfeld (2004), são:
22
O simples fato de que o “autor” (narrador ou Eu lírico) parece estar ausente
da obra – ou confundir-se com todos os personagens de modo a não
distinguir-se como entidade específica dentro da obra – implica uma série de
consequências que definem o gênero dramático,... Estando o “autor” ausente,
exige-se no drama o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, sem
intervenção de qualquer mediador, já que o “autor” confiou o desenrolar da
ação a personagens colocados em determinada situação. (2000, pág. 30).

A compreensão da história e dos fatos apresentados nela se dá através do


personagem como foco principal, ele (personagem) é o foco principal que irá apresentar
a história. Como afirma Rosenfeld, o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, o
centro das ações, é o personagem. Em uma obra dramática o futuro é desconhecido, o
suspense é um dos agentes principais, o diálogo é um dos pilares dessa forma, somente
é possível voltar ao passado através do diálogo dos personagens. Os acontecimentos são
do agora, do momento, do ato, mesmo que se trate de um drama histórico, sempre tem
sua origem no agora.

Concordando com essa organização do gênero dramático, falta-lhe uma narrativa


que situe os personagens em tempo e espaço, que descreva o seu comportamento físico,
mental, essa falta é compensada pelo palco, pelo diálogo, pelo cenário, já na forma
épica essas são funções do narrador. Tudo levado a prática em cena no palco, força
tarefa para apresentar a história sem mediador, sem apoio que daria o narrador. A força
se concentra no personagem, no indivíduo que apresenta o enredo e na parafernália
necessária: palco, figurinos, cenários, altos investimentos para tecer laços com a
realidade maior, a aproximação com o real, com o agora.

Uma forma didática, mas não fechada para melhor compreender a forma épica e
a dramática é a tabela elaborada por Peter Szondi9:

Forma Dramática de Teatro Forma Épica de Teatro

9
SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac&Naify, 2001, pp. 135-135.
BRECHET: ESCRITOS SOBRE O TEATRO, In: BORIE, Monique et. al. Estética Teatral. Textos de
Platão a Brechet. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 470.
23
O teatro incorpora um processo (é ação) Ele narra um processo (é narração)

Envolve o espectador em uma ação Faz dele um observador

Consome sua atividade (esgota sua Desperta sua atividade (acorda sua
atividade intelectual) atividade intelectual)

Possibilita-lhe sentimentos Força-o a tomar decisões

Transmite-lhe vivências Transmiti-lhe conhecimentos


(argumentação; visão de mundo)

O espectador é deslocado para dentro da Ele é contraposto à ação


ação

Trabalha-se com sugestão Trabalha-se com argumentos

As sensações são conservadas São estimuladas para chegar às


descobertas

O homem/a mulher é pressuposto como O homem/a mulher é objeto de


conhecido investigação

O homem/a mulher é imutável O homem/a mulher é mutável e


modificador

Expectativa sobre o desfecho Expectativa sobre o andamento

Uma cena em favor da outra Cada cena para si

Os acontecimentos têm curso linear Os acontecimentos têm curso em curvas


(crescimento orgânico; evolução (montagem; saltos)
contínua)

O mundo tal como ele é (fixo) O mundo como vem a ser (processo)

O que o homem/a mulher deve ser O que o homem/a mulher tem que ser

Seus impulsos Seus motivos

Sentimento Razão

O pensamento determina o ser O ser social determina o pensamento

No conjunto do MST precisamos realizar meios em que debatemos a cerca de


diferentes assuntos com cunho político, sem essa parafernália que o teatro convencional
exige, mas mais ainda, devemos apresentar as temáticas com fluência, para que apareça
24
os envolvidos na história, os protagonistas coletivos da história como sujeitos do
processo e não como submissos desse, para tanto, se faz necessário despersonalizar, o
foco não é em um sujeito único.

Na Brigada Patativa do Assaré, por várias questões referentes aos objetivos do


MST com o teatro, foi-se desenvolvendo um tipo próprio de fazer teatro, que se faz uma
mistura, com teatro épico, agitação e propaganda, as formas populares de teatro
brasileiro, mas, principalmente, na atualidade, por uma necessidade.

Com as místicas temos também uma apropriação artística valorosa, que nos tem
ensinado outros caminhos possíveis de disseminar informações e formação da
consciência por meio de momentos artísticos proporcionados, de acordo com as
temáticas em questão. Iná diz que a mística é o teatro épico do MST, e que seu teórico é
Ademar Bogo, por conta de suas elaborações, sobretudo, em “O vigor da mística”.

Para tanto, foi necessário compreender e estudar a respeito dos pensadores, ou


daqueles que sistematizaram esse conhecimento acumulado na classe trabalhadora, em
prol dela.

De acordo com Rosenfeld (2004), percebemos que a história dos gêneros teve
muitos momentos e enfoques de acordo com cada tempo, e características dos povos e o
modo como se utilizaram desses gêneros. É o caso do drama na época pós-renascentista,
dos europeus.

Tende a ser apresentado como se não se dirigisse a público nenhum. A plateia


inexistente para as personagens e não há narrador que se dirija ao público. O
ator, evidentemente, sabe da presença do público; é para ele que desempenha
o seu papel, mas esta metamorfoseando em personagem. (2004, pág. 35-36).

Essa representação acontece em um determinado período e com determinado


interesse social de representação, pois se refere a um “tipo ideal” chamado por
Rosenfeld de dramática pura. Tendo a compreensão que mesmo que se faça um esforço
para que haja um determinado gênero, que expresse um determinado pensamento social,
ele está contaminado por outros gêneros, conforme entendimento que nenhum gênero é

25
puro. Existem dramas que se constituem com enlaces de outros gêneros, que dão um
acabamento a obra.

2.1 Relações entre o épico e o dramático no Teatro

A receita sagrada do drama pode ser resumida em três tópicos. A própria


definição de “drama” já os contém e vou enunciar: para o time da carpintaria,
drama é uma ação que acontece como conseqüência da iniciativa de
indivíduos livres e essa ação só reconhece como legítimo o diálogo: ação,
indivíduo e diálogo são os ingredientes básicos. (COSTA: 2005, p. 03).

Vamos tecer uma compreensão através de teóricos sobre a importância dos


gêneros teatrais: épico e dramático, com o apoio da teoria acumulada conforme os
autores que estamos trabalhando, autores principais e releituras feitas por outros, com
base marxista, como: Bertold Brecht (1967), Iná Camargo Costa (1998), Peter Szondi
(2001), Roberto Schwarz (2001) e Anatol Rosenfeld (2004).

O assunto em questão, não está datado, nesse ou aquele período, pois faz parte
da construção da história da humanidade. Os gêneros: dramático e épico, que são os que
focaremos no debate estão presentes em obras históricas em diferentes datas desde a
Epopeia (Homero), textos bíblicos, formas primeiras de comunicação entre os povos, no
teatro produzido pelo período de Brecht, desprovido de uma data única que aponte sua
marca.

Estudos nos apontam a organização da definição e ou reconhecimento do


conceito dessas terminologias no decorrer desse processo, em dados momentos da
história, como, por exemplo, da participação dos Russos na rua em revolução (1917),
onde os “soviets”10 tiveram um papel importante no processo de revolução, onde com o
teatro faziam apresentações do que estava acontecendo no país, para os camponeses,
10
Soviets -. Os Conselhos Operários ou Sovietes (do russo: совеет) são colegiados, ou corpos
deliberativos, constituídos de operários ou membros da classe trabalhadora que regulam e organizam a
produção material de um determinado território, ou mesmo indústria. Este termo é comumente usado para
descrever trabalhadores governando a si mesmos, sem patrões, em regime de autogestão.
26
como forma de agitação e propaganda. Ali, estavam com gérmens, elementos do teatro
épico, que foram em seguida sistematizados como conjunto estético com sua
especificidade pelos alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht. Muitas pessoas na rua em
coro, trazendo notícias para um conjunto de trabalhadores, que muitos nem ler sabiam,
por todo o processo que estavam passando naquele período.

Nesse forjar das lutas dos trabalhadores, com a contribuição de algumas figuras
que nos fizeram pensar sobre esse processo conforme seus tempos de luta e embate de
classe é que os conceitos também foram se tramando.

Na construção das peças teatrais da Brigada Patativa do Assaré é acentuada a


diversidade de traços estilísticos. A representação nas peças está ligada a forma que as
pessoas se expressam, do contato com o meio social em que vivem e pelo modo como
estão inseridas nos problemas da estrutura da sociedade. O diferencial é que, com o
passar dos anos, a partir de 2004, a Brigada teve o contato com pensadores a respeito do
assunto em questão, principalmente, com Iná Camargo Costa. O conjunto dos
integrantes da Brigada passou à dimensão consciente das relações entre forma e
conteúdo. Sabendo da importância que tem a forma de como o conteúdo é apresentado,
para que o material tenha eficácia estética sobre o público. De acordo com a
sistematização realizada no Caderno das Artes, elaborado pela Brigada Patativa do
Assaré:

As tradições críticas da produção cultural e artística, principalmente as de


orientação materialista e dialética que configuram o marxismo, estabelecem
as relações entre a forma e o conteúdo como históricas. Contraditoriamente,
em cada período histórico, os projetos de classe em disputa constituíram um
modo específico de representação artística e da forma de ver o mundo. Os
jeitos de contar uma história, de imaginar o novo, de representar e selecionar
os valores, os assuntos, todos os aspectos da produção estética, influenciam
na forma final da intervenção que será socializada. A concepção mais radical
destas interpretações formula que o conteúdo mesmo, o conteúdo social de
uma obra, encontra-se na sua forma.11

Com essa compreensão de que o conteúdo social de uma obra encontra-se na


sua forma vamos adiante a nossas formulações a respeito do tema. Se o conteúdo já está

11
O livro “Teatro e Transformação Social – Vol.1 – Teatro Fórum e Agitprop” é uma publicação do centro
de Formação e Pesquisa Contestado, por meio do convênio: CEPATEC/FNC/MINC/00463/2003. 2007.
SP. Pag. 18.
27
expresso na forma apresentada, precisamos nos preocupar em qual é a forma que
apresentamos os nossos conteúdos.

A preocupação interna na Brigada de Teatro do MST, de entender quais


significados têm o épico e o dramático, levam a busca de compreender que a corrente
subterrânea dessa história tem terreno, anterior. A partir dessa perspectiva, de
preocupação em entender, passamos a questionar que influências esses gêneros têm nas
elaborações a serem analisadas.

Ao buscar em alguns pensadores, nos damos conta que o épico e o dramático


têm seu lugar na história de muitas lutas travadas, bem antes de nós. De acordo com a
afirmação:

A luta de Brecht contra o teatro convencional não se limitou ao


desenvolvimento de outra dramaturgia, outra forma de dirigir, de interpretar,
e de uma teoria que expõe os conceitos de teatro épico, didático, dialético.
Brecht entendia que o teatro convencional (comercial, burguês) é um
complexo aparato, com exércitos gigantescos de comparsas e efeitos extra-
refinados de palco, usado contra os produtores. Durante os anos 20, entre
outras manobras ideológicas, os proprietários deste teatro tentavam induzir os
produtores a uma concorrência inútil com o cinema e o rádio...12

Como afirmamos anteriormente, não o gênero puro, mas a construção das


representações de cada um, pois a convencionalidade de uma obra teatral, está ligada a
intenção, a serviço de quem ela está da burguesia ou da classe trabalhadora. Pois a
intencionalidade da obra é algo importante a se considerar, toda produção artística tem
uma intencionalidade ao ser produzida, para que público, com que finalidade, para quê,
para quem, em que momento histórico – contexto. Pois o que nos interessa entender é
que cada proposição depende do momento que a história está vivenciando, de acordo
com a proposição social/político, econômico de determinados grupos sociais.

Com essa compreensão precisamos entender como é estruturada a peça que


estamos presenciando, para tanto a professora Iná em: “Contra Drama”, nos traz
elementos interessantes:

12
Costa, Iná. Diálogos com Brecht. Transcrição da Palestra Brecht e o Teatro Épico.
03/05/2005.
28
Diálogo não é qualquer conversa. No diálogo são enunciados os
objetivos, as finalidades, as intenções. Isto vai junto com os atos. O que se
diz pode ser contrariado, pode ser auxiliado. Podem aparecer personagens
que vão ajudar o “herói” a fazer o que ele quer, mas sempre precisa ter
alguém que representa o obstáculo para a realização da vontade dele e o
diálogo, e exclusivamente o diálogo, é o responsável pela transmissão dessas
informações ao público.
O drama não permite, por exemplo, uma intervenção de alguém (um
narrador) que vem explicar: “Olha, agora não deu para fazer isto e tal, então
ele foi para tal lugar, assim, assado...”, e aí corta e passa para a cena seguinte.
Isto no drama é impensável. (2000, pág. 03).

Também apresenta características de como se estrutura um e outro gênero. A


partir de esclarecimentos teóricos como esses se torna mais críticas as nossas produções
enquanto Brigada.

No decorrer da caminhada da Brigada Patativa do Assaré, quando nos dedicamos


ao estudo do teatro, o que se refere à dimensão teórica, e tivemos o contato com o que
foi o teatro de agitação e propaganda dos russos, nos demos conta da importância dessa
colaboração para nós, enquanto MST. Identificamo-nos com o teatro de agitação e
propaganda, por ser uma forma de trabalhar com eficácia conteúdos sociais.

Segue uma definição coletiva dada à agitação e propaganda (não apenas ao


teatro) pelos Coletivos de Comunicação, Cultura e Juventude da Via Campesina:

... É um conjunto de métodos e formas que podem ser utilizados como tática
de agitação, denúncia e fomento à indignação das classes populares e
politização de massas em processos de transformação social... a expressão foi
criada pelos revolucionários russos, para designar as diversas formas de fazer
agitação e propaganda de massas e ao mesmo tempo divulgar os projetos
políticos da revolução. (2007, pág. 10, Cartilha Agitação e Propaganda no
Processo de Transformação Social).

No MST, temos essa prática da Agitação e Propaganda, por acreditar que os


russos, em seu processo revolucionário, de por volta de 1917 a experiência das brigadas
ou coletivos soviéticos se efetiva após a revolução de 1917, mas desde o final do século
XIX os russos debatem o assunto, vide o texto “Que fazer?”, de Lenin, de 1902, tiveram
significativos resultados com a utilização do Agitprop, mas vale ressaltar que não é
apenas por acreditar no que deu certo no passado, pois na atualidade o contexto é outro,

29
fazemos isso por constatarmos a demanda no tempo presente e a potência
contemporânea do método.

Naquele período a importância de disseminação das informações, de despertar a


indignação, de denúncia, de propagandear os ideais revolucionários, se dava através do
teatro de agitação e propaganda, dentre outras experiências, relatadas na cartilha citada,
acima.

No início do século XX, na Rússia, era incomum existir leitores, pois boa
parcela da população era analfabeta, então para organizar os camponeses, soldados e
urbanos, o partido Bolchevique organizava duplas e brigadas de agitadores e
propagandistas para realizar o trabalho de agitação e propaganda. Vide o que escrevi
acima

No MST, percebemos que tanto internamente quanto externamente, tínhamos e


continuamos tendo a necessidade de: informar, propagandear, denunciar as injustiças, os
acontecimentos do País e do mundo, divulgar os projetos políticos da revolução, enfim
de aproveitar os feitos que deram certo historicamente, com o cuidado de não
simplesmente transpor para a realidade, mas, sim, do que deu certo, reelaborar de
acordo com a realidade concreta em que estamos inseridos.

No Brasil, e em boa parte do mundo, em especial os pobres têm carências de


leituras, e continuidade nos estudos. Esses fatores dificultam o acesso às informações do
mundo da escrita, a interpretação de alguns letramentos do registro escrito e em muitos
casos; a compreensão da estrutura hierárquica, o que constitui o modelo de produção
vigente no país, - local X mundial, e vice – versa.

O teatro tem, e não tem como negar, outra forma de dizer, de mostrar, de
apresentar o mundo e as questões dele, questões políticas ideológicas de cunho social.
Através da linguagem do teatro podemos abordar assuntos distintos, de diferentes
temas: desde política, injustiças, economia, cultura, sociedades, preconceitos, enfim,
como funciona a sociedade nos seus mais diversos campos, historicamente constituídos.

No MST, o conhecimento, das técnicas teatrais, as formações políticas


ideológicas nos despertavam para o “cuidado” 13 com o público que não tem acesso as

13
A palavra: “Cuidado” aqui tem haver com atenção, com disseminação de informação, e
trabalho de formação da consciência.
30
informações que a militância que está ativamente participando tem elaborado,
internamente no MST, e para o conjunto da sociedade.

Com essa responsabilidade política do conhecimento que com o passar do tempo


e das informações que fomos tendo buscamos através do teatro “apresentar”, trazer para
a cena os problemas sociais, a fim de trazer pontos críticos para o debate na sociedade.

2.2 Os limites estéticos identificados pela Brigada Nacional na produção de


suas peças

As peças construídas pelos militantes do MST que compõem a Brigada Nacional


de Teatro Patativa do Assaré, a partir do ano de 2001, tem um diferencial em termos de
conteúdo e forma, ou seja, as peças construídas pela Brigada extrapolaram o teatro
fórum e passaram a utilização de outras técnicas. Entretanto, em algumas dessas peças o
conteúdo épico e os procedimentos narrativos utilizados foram além dos limites
dramáticos contidos na proposta estética do Teatro Fórum.

A forma do Teatro Fórum contém em sua estrutura elementos do gênero épico e


do gênero dramático. A proposta é que a peça não tenha um fim em si , para que possa
apresentar possibilidades de discussão e debates acerca de diferentes assuntos, conforme
Villas Bôas, no artigo “MST Conta Boal”:

Boal retoma os vínculos com as classes populares por meio do Teatro do


Oprimido, já não mais tendo à disposição o aparelho teatral e o elenco
profissional como meio, e a peça como fim. Parte da experiência de opressão
dos explorados e elabora o material cenicamente de modo que a população
possa participar e intervir no debate, discutindo táticas de intervenção na cena
e na realidade, que em geral, dependem da organização coletiva e do
fortalecimento do poder popular, focos de acumulação que as ditaduras
latinoamericanas se encarregaram de destruir. (2013, mimeo).

A força que tem uma peça de teatro fórum para debater diferentes problemáticas
nos impressiona, faz pensar – repensar a prática dos exploradores e a forma como
pensam e agem em relação aos explorados.

31
Conforme nossos acúmulos e pressupostos daquele período (2001 – 2006, mais
ou menos) elaboraram-se documentos que refletiam os limites do drama, segundo
consta na produção coletiva da Brigada, “Teatro e Transformação Social”:

Nos defrontamos com a dificuldade de tratar temas históricos e de dimensões


sociais amplas com formas inadequadas. A tradição formal que se estabeleceu
nos meios de comunicação de massa, que configurou um padrão hegemônico
de representação, é a chamada forma dramática, que se estrutura pelo conflito
de vontades individuais, que se realiza no presente absoluto pelo chamado
diálogo dramático. Esta forma, de larga influência nas maneiras de
representar, coloca sérios problemas para o tratamento de temas como
Reforma Agrária, imperialismo, luta de classes, temas que não têm na figura
individual de uma personalidade, no conflito dramático de um único sujeito
sua mais objetiva forma de representação. Isto porque estes processos se
referem a interesses de classe, a estruturas socioeconômicas em constante e
contraditória inter-relação (2007, p. 17).

Essa forma de representação de peças teatrais proporciona em sua própria forma


o seu conteúdo, pois na própria forma se apresenta o conteúdo em questão. Dessa
maneira com a prática da construção de novas peças se apresenta a necessidade de
discutir temas que queríamos colocar em debate na sociedade. No entanto, era um
problema fazer isso a partir unicamente da técnica do Teatro Fórum, pelo fato de que a
estrutura estética utilizada possui limite, a saber: no Teatro Fórum a porta voz principal
da apresentação se dá no campo do drama, do indivíduo, do problema, que pode ser de
uma pessoa e ao ser apresentado pode ser identificado por um grupo de pessoas, mas
não deixa de ser índividual. Conforme elaborado em material interno, Teatro e
Transformação Social:

As tradições críticas da produção cultural e artística, principalmente as de


orientação materialista e dialética que configuram o marxismo, estabelecem
as relações entre a forma e o conteúdo como históricas. Contraditoriamente,
em cada período histórico, os projetos de classe em disputa constituíram um
modo específico de representação artística e da forma de ver o mundo. Os
jeitos de contar uma história, de imaginar o novo, de representar e selecionar
os valores, os assuntos, todos os aspectos da produção estética, influenciam
na forma final da intervenção que será socializada. A concepção mais radical
destas interpretações formula que o conteúdo mesmo, o conteúdo social de
uma obra, encontra-se na sua forma. (2007, pág.17).

32
Conforme a afirmação acima, podemos observar a constatação que uma obra,
tem apresentada em sua forma o seu conteúdo. Históricamente, contraditoriamente, as
formas estão presentes nas construções das obras, seja para o domínio hegemônico de
representação da realidade de uma determinada época, seja para as representações
coletivas de problemas sociais, políticos, estruturais de uma sociedade em uma
determinada época.

Perseguindo essa prerrogativa é que nos propomos a analisar uma das peças: “A
peleja do boi bumba contra a águia imperiá” (2001), construção da Brigada Nacional
Patativa do Assaré, apresenta uma estrutura épica, em que os problemas apresentados
são de natureza coletiva, é apresentada a grande disputa econômica e dependência
internacional do Brasil, como nação em relação aos E.U.A.

A forma dramática não dá conta de abordar esse conteúdo, de características


épicas. A parodia de manifestações tradicionais da cultura popular, como o repente e o
boi bumbá foi à solução cênica encontrada para organizar o confronto entre a
perspectiva popular, na figura do capitão do Boi, e a perspectiva imperialista, na pessoa
do Mr. Alca, e sua “águia imperiá”.

Com isso, as peças teatrais que a Brigada Nacional Patativa do Assaré se


propõem a elaborar perseguem o desenvolvimento de uma estética “própria”, buscam
em diferentes materiais de estudos, em diversas experiências de grupos teatrais, e de
outras técnicas para além da técnica do teatro fórum, em seminários de estudo acerca do
que estava sendo proposto realizar, o trabalho político e ideológico de conscientização
das massas.

Os caminhos traçados a partir de 2001 foram de muitas aprendizagens e limites,


que se deu em um crescente e significativo acúmulo de técnicas, gêneros, aprendizagens
valorozas que foram se construindo enquanto coletivo, aprofundando a partir das
oficinas de formação com Augusto Boal, das articulações nacionais, da continuidade de
formação de grupos de teatro e dos processos de formação política e de construção de
novas intervenções teatrais nos Estados.

Os limites foram valorosos no processo de aprendizagem e consolidação da


Brigada, nos fizeram crescer e fortalecermos perante os mesmos. Como, por exemplo,
quando os fóruns que propunhamos não aconteciam, a peça ficava interessante, tinha

33
conteúdo que nos interessava dialogar com o público, cenário, figurino, os atores e
atrizes encenavam, dramatizavam bem, tinha um esforço, no entanto, a profunda
decepção, quando apresentava e ninguém queria participar do fórum.

Essa foi a história da peça “Nem tudo que se planta colhe”, elaborada pela
Brigada Nacional na quarta etapa de formação com o CTO, que tratava do assunto dos:
transgênicos, o quanto era desconhecido para ‘nós’ e o conjunto da população naquele
período (2003). Apresentávamos os riscos para a saúde, o quanto era problemático para
o desequilíbrio do meio ambiente e outras implicações na mutação dos genes de seres
vivos, podendo transformar uma batatata-doce em forma de laranja com sabor de
abacaxi.

Esse era o assunto, o problema apontava para uma forma dramaturgica que
exigia: o coro, falas coletivas, não o drama, tínhamos que expor muitos dados,
informações, discussões a cerca do tema, pois o opressor existia, mas não era um
personagem explícito, que pudesse ser visualisado, personalizado em um personagem, o
que dificultava o Fórum, que necessitava do drama e da definição clara do conflito entre
opressor e oprimidos, bem demarcados .

A partir desse fato, de que não conseguíamos fazer o Fórum foi que, mais tarde,
a partir de 2004, começamos a nos dar conta através de estudos e aprofundamentos
teóricos a cerca do fazer teatral, e das formas dramatúrgicas a estudar e nos dedicar ao
trabalho com o teatro épico e ao teatro de agitação e propaganda.

Enquanto isso, as demandas nacionais abordam o debate da cultura e do Teatro


no MST, tomaram outras características nesse período, com mais rigor nos estudos, e
nas produções, bem como, com um maior reconhecimento por parte do conjunto do
Movimento e externamente na sociedade, se travou parcerias com grupos de teatro
importantes no país, conforme articulações estaduais, por grandes regiões do país, bem
como, estudo da teoria acerca do tema. Essa organicidade permitiu reconhecer e tomar
contato com o acúmulo histórico (teórico/prático) que há no teatro para qualificar as
nossas intervenções na realidade em que atuamos.

34
Capítulo 3 - A contrapelo da história: a linguagem viva do teatro

O teatro..., só faz sentido quando nos faz ver o que está para além do mundo
do capital, na contramão dos padrões convencionais da circulação. (Sergio de
Carvalho)14

Teatro e história não se separam. Um anda na marca do outro, colado, pois o


teatro faz parte da história, ele representa a própria história da humanidade com
precisão. A partir dela podemos perceber como a sociedade se organiza em um
determinado tempo histórico.

O teatro é o grande palco da vida, inerente ao ser humano, onde todos fazem teatro
até mesmo os próprios atores fazem teatro, como afirma Boal. Augusto Boal, como
parte do processo de formação da Brigada de teatro do MST, teve uma importante
contribuição para a formação e consolidação da mesma, não medindo esforços para
conduzir os ensaios, disseminação da técnica, e de seus conhecimentos acumulados.

À Boal, devemos um à parte, reconhecimento de seu esforço individual, pois a


cada formação de multiplicação da Brigada, Boal fazia questão de acompanhar as
formações técnicas e ensaios de peças construídas e formadas a partir dos encontros,
com temáticas diversas que tivessem necessidades políticas de debates no conjunto do
MST, e para além dele.

Lembro-me que na penúltima etapa, 2005, Boal estava com problemas de saúde,
se recuperando de uma infecção que teve a partir do problema em um joelho que teve a
rótula esfacelada em sessões de tortura na época da ditadura, apoiado em uma bengala,
mesmo assim participou de todo o ensaio, inclusive realizando as atividades: jogos e
exercícios, junto com os militantes da Brigada, com um brilho no olhar inexplicável,
naquele momento viajava na possibilidade, segundo ele, de fazer algo novo, diferente e
que valia a pena, emocianodo a cada encontro com o MST e sempre empolgadíssimo
com nossas produções.

Sempre externava a felicidade que tinha em compartilhar com o MST as técnicas


do teatro, comentava a respeito da importância de um grupo de camponeses se

14
Texto: Na contramão da forma – mercadoria. Depoimento para a tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui
Traveiz, durante o Seminário “Teatro de Grupo: Reinventando a Utopia”, novembro de 2005.
35
apropriarem das técnicas do teatro. Essa importância de fazer o teatro, com apropriação
de todo o processo da elaboração a apresentação, sem que tenha alguém representando
distante da realidade e do que se quer apresentar, correndo-se o risco de esteriotipar, no
caso: o camponês.

Pode ser uma possibilidade com risco de falha, mas como camponês se
autorepresentando é mais fácil a verossimelhança e não o estereótipo do mesmo. O fato
de ser camponeses representando suas próprias histórias diferência por ter consciência
do que se quer com cada assunto, e sabem os assuntos do que se trata por estarem
apropriados de sua realidade concreta.

Boal, no que se refere à Brigada Patativa do Assaré, tem grande referência, pois
foi a partir da parceria do CTO com o MST que se estabeleceu a consolidação da
Brigada de teatro no MST logo, também foi o orientador da construção das peças de
teatro que a Brigada construiu no decorrer do processo de consolidação da mesma, entre
2001 e 2005.

Com Augusto Boal, suas referências teatrais, dramatúrgicas e legado, fomos


perseguindo formas dramatúrgicas condizentes com nossas compreensões de mundo,
como o teatro dialético, político, comunicativo e ativo, em movimento. Não se trata de
uma questão de estilo, mas de preocupação com a formulação das contradições. Brecht
dizia que o tratamento do teatro dialético como uma questão de estilo é uma derrota da
dialética. E repare que naquela época sequer falávamos de teatro dialético, depois é que
fomos amadurecendo isso.

O teatro político faz parte nessa perspectiva do nosso fazer teatral, pensando em
referências desse teatro, buscamos apoio através de pesquisa teórica para melhor
compreendê-lo, com parceiros de grupos de teatro, e intelectuais orgânicos da classe
trabalhadora, engajados nas lutas sociais.

3.1 A peleja de Boi Bumbá contra a Águia Imperiá

36
Vejamos as peças: “Bumba meu Queixada”, de Cesar Vieira e “A peleja do Boi
Bumba contra a águia imperiá”, peça construída pela Brigada Nacional de Teatro
Patativa do Assaré – MST, em parceria com o Augusto Boal.

Antes de entrar propriamente dito nas obras, vamos estabelecer uma


compreensão: sempre e em qualquer tempo histórico a escrita e produção das peças são
feitas com determinada intenção, de comunicar algo para alguém e, em alguns casos,
tomar decisão a respeito de assuntos pertinentes a sociedade, naquele momento
histórico.

Precisamos entender, em que condições essas peças são construídas e nos fazer
algumas questões pertinentes para compreendê-las, como:

- feita por quem? Por quê?

- para quem?

- Com que objetivos?

- para qual público alvo?

- em qual período histórico? (acontecimentos políticos, sociais, econômicos,


culturais, daquela realidade);

O Boi Bumbá contra águia imperiá, da Brigada Patativa do Assaré tinha uma
finalidade e um público específico a ser atendido, assim como a peça de Cesar Vieira:
“Bumba meu queixada”, em outro período histórico estava se comunicando com outro
grupo, com outros interesses.

Tanto uma como a outra peça de teatro, tem algo em comum que é o teatro de
agitação e propaganda, e o fato das duas peças realizarem sua apresentação do problema
por meio do folclore popular: o boi. As cenas curtas e potentes de argumento poderíam
ser apresentadas separadamente sem haver prejuízo de compreensão por parte do
público.

Esse teatro não apresenta um fim em si mesmo, pois consegue a partir dele
extrapolar a forma teatral, para gerar debates, diálogos que obrigam a tomar novas

37
posturas diante dele, pode ser adaptado e readaptado. Não necessariamente através de
textos longuíssimos, ou textos fechados.

Essa forma de fazer teatro não é gratuíta, tem uma história “embutida” nela, tem
um processo de construção teatral feita por muitos e muito antes de nós, como afirma
Christine Hamon:

Profundamente enraizado na corrente do autoativismo, o teatro de agitprop


aparece de início como uma nova prática social da arte: não mais grandes
autores/as – mesmo que muitas vezes alguém assuma a responsabilidade
literária assinando o texto – mas sim um coletivo de autoria na maior parte
dos casos; não mais atores e atrizes conhecidos, mas um grupo anônimo de
intérpretes. Por isso, não há mais texto a servir e respeitar, mas uma colcha de
retalhos transformável de acordo com as circunstâncias políticas e
necessidades locais. O texto da peça de agitprop, maleável, seguidamente
readaptado, torna-se assim um instrumento, não um fim em si mesmo. (2012,
pág.42).

São importantes essas referências para nossa pesquisa, para compreender em


quais grupos, e pensamentos estamos nos apoiando em nossas produções. Mesmo em
quais são as fontes a serem bebidas.

A peça: “A peleja do boi bumba contra a águia imperiá” 15 é uma peça que
observamos o esforço de trabalhar com narrador, com coro a partir de um personagem
que representa uma coletividade maior. O boi, nesse contexto, realiza uma aproximação
popular, no entanto, para trazer uma temática que nem todos da coletividade teriam
“interesse” em debater, que são os problemas sociais, políticos e econômicos do país.
Em outra situação, que não o teatro, dificilmente as pessoas iriam parar para escutar
sobre o assunto.

O assunto central: Área de Livre Comércio das Américas - ALCA. Mas, o


conjunto de países latinos não se calou diante desse absurdo. Por meio do teatro o MST-
CTO16, com a peça: “A peleja do boi bumbá contra a águia imperiá”, levou as ruas o
problema que estava posto naquele momento. O assunto em questão fazia parte da
efervescência dos principais protestos, marchas de contestação por parte dos
15
Peça construída coletivamente pela Brigada Nacional Patativa do Assaré, durante a segunda etapa de
formação de curingas do MST com o CTO , em junho de 2001, no Rio de Janeiro, com direção de
Augusto Boal.
16
Centro do Teatro do Oprimido, e Augusto Boal.
38
movimentos sociais, entidades, grupos organizados e outros, contra a implantação da
ALCA, encabeçada pelos Estados Unidos da América, na vigência da presidência de
Bill Clinton.

O que significava e significa os Estados Unidos da América para os países


periféricos desde aquele período, anterior a ele, até a atualidade? País hegemônico, com
forte concentração econômica, uma ameaça ao protagonismo dos países latinos e do
mundo, pela sua posição de país em ascensão, para isso faz dos demais países degraus
para sua escalada ao sucesso, como por exemplo: a ALCA, entre muitos outros acordos
e planos.

A força de diferentes frentes populares apresentou o descontentamento da


população em relação o que significava a ALCA para o povo, expresso nas ruas, em
diferentes Estados do Brasil, e momentos de manifestações diversas, inclusive que
antecederam ao FSM, como mostra a foto:

E em local oportuno, o Fórum Social Mundial 17, se apresentou o problema de


uma forma festiva, em clima de festa, com muita ironia, recurso característico do teatro
de agitação e propaganda.

São dezessete personagens, que apresentam a peça com muita descontração, em


clima de circo, de festa, de animação, que logo de inicio, faz a chamada nesse clima, e
apresenta sem delongas o lugar de onde está sendo falado e quem fala de uma forma
simples, mas que conclama os presentes a uma divisão:

CAPITÃO: - Atenção! Muita atenção! Senhoras e senhores! Respeitável


público! O CTO-MST tem o prazer de apresentar “A peleja de boi bumbá ...
MR. ALCA: ... contra a águia imperiá!”
CAPITÃO: Vamos repartir o boi!
(2007, p.95, caderno Teatro e Transformação vol. 1).

A linguagem teatral promove a reunião e interação de pessoas de diferentes


grupos sociais, diferentes concepções política, partidárias, pois a cultura é algo que
unifica a humanidade, reúne, proporciona o debate, pois desde os nossos primórdios a
vivência em grupos nos possibilitou a sucessão da espécie. Com a evolução nos
reunimos mais, para garantir à evolução social da vida humana, com isso a cultura, o
17
II Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em fevereiro de 2002.
39
teatro são formas de expressão que nos possibilitam uma análise e reflexão da vida e das
relações complexas que estabelecemos enquanto seres racionais.

A identificação do público com a peça nos interessa, pois vai discutir a situação
política, econômica, social do país, de outra forma que não o discurso político direto, até
mesmo porque esse está desgastado e desacreditado.

Aqui se apresenta a divisão de algo, e só pode dividir alguma coisa com alguém
quando esses “alguéns” estejam presentes, logo o público se interessa em um primeiro
momento em que será a parte que lhe cabe.

EUA representado pela ‘águia imperiá’, simbolicamente é o grande interessado


na divisão, mas aos poucos a denúncia do grande coro se apresenta, com força, vigor,
cor e voz que toma posse da situação denunciando, de um jeito ritmado, com cantoria, o
povo (em coro) que tem a representação de alguns dos estados brasileiros:

Entra o grupo contando a “Partilha do Boi”:

Ê boi ê boi ê boi do Ceará


Quem não gosta deste boi
Quer nos americanizar

Ê boi ê boi ê boi do Piauí


Quem não gosta deste boi
É do FMI
Moom é do FMI

Ê Boi ê boi ê boi do Maranhão


Quem não gosta desse boi
Não mantém a tradição
Moom não mantém a tradição... (2007, p.95, Caderno Teatro e
Transformação vol. 1).

A primeira parte da peça comunica ao público a nossa alienação política e


ideológica em relação aos Estados Unidos da América, seu significado para o Brasil e
todos os países periféricos, a influência negativa cultural que nos é colocada
cotidianamente, “sem que possamos revidar”, de maneira imediata, ‘aceitamos’ sem
grandes contestações, está dado, por parte do senso comum. Pelos meios de
comunicação social, pela indústria cultural, pelo interesse da grande hegemonia política
e interesse de classe.

40
Expressa em termos claríssimos pelo personagem: MR. ALCA, em alto e bom
tom ao que estavam se propondo, fazer da cultura mercadoria, da vida mercadoria,
modernizar sinônimo de esquecer a própria identidade de nação, (coletividade):

MR. ALCA
Deixe de besteira! Esse negócio de cultura nacional é coisa do passado.
Cultura é mercadoria! Com a Coca-cola, a Nike, e o hamburger vocês já
começaram a avançar. O boi tem é que se modernizar. O passo agora é
privatizar. (2007, p.98, Caderno Teatro e Transformação vol. 1).

Principalmente os meios de produção em sua maioria, este é um país que tem


posses, na indústria fílmica, desenvolvendo através dos diferentes mecanismos da
cultura uma introjeção de apropriação dos sonhos das pessoas, que perpassa vários
setores da sociedade, no que se refere a produção da vida.

A peça expressa com eficácia, através de uma simples expressão, no conjunto da


mesma, que é: quer nos americanizar, com uma potência no argumento que faz ser
escutada sem naturalidade, espanta. Quem quer nos americanizar? Por quê?... São
questões que ficam nas entrelinhas, sem ser ‘aprofundadas’, uma das lições aprendidas,
nas formas dramatúrgicas do teatro de agitação e propaganda, são as simbologias.

De acordo com Christine Hamon:

A necessidade de inserir no arcabouço estreito de um esquete de


agitação uma análise política precisa sugeriu que se recorresse a certos
procedimentos, primeiramente o do atalho simbólico como meio de
expressão privilegiada de relações sociais e políticas. (2012, pág. 43 Miolo).

Conforme a autora citada acima o boi bumba faz parte desse “atalho simbólico”,
em que o público poderá se identificar. A brincadeira maliciosa que os dois personagens:
Capitão e MR. ALCA fazem na peça mexe com o imaginário do público, colocam em
xeque compreensões e concepções de vida, valores culturais. Conforme o diálogo da
peça:

41
CAPITÃO
Não! O boi bumbá é alimento culturá! Que é servido em todas as mesas do
Brasil, para pobres e ricos, índios, pretos e brancos, homens e mulheres,
jovens e senis.

MR. ALCA
Por isso que o Brasil é atrasado! Tem como símbolo cultural um bicho como
o boi ! Enquanto o boi caga e baba no chão a águia soberana e encantadora
baila formosa pelos ares conquistando o mundo.

CAPITÃO
O nome boi vem de longe, é nossa raiz popular! É tradição
e costume do nosso Brasil nação! Muito mais que sua águia que voa vale o
nosso boi aqui no chão. (2007, pág. 98-99, Teatro e transformação social -
Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop).

Mas, esses argumentos são contrapostos pelo MR. ALCA a todo o momento e
aos poucos, com argumentação pesada, vai tirando simbolicamente Estado por Estado
do Brasil, alegando finalidades “maiores”, como por exemplo: E o boi de São Paulo –
já tá no bolso do Banco Mundial (Caderno de Teatro e transformação social – vol.1 –
Teatro Fórum e Agitprop pag.103).

A opção do nome da peça também diz muito do que irá tratar: “A peleja do boi
bumbá contra a águia imperiá”. Os termos escolhidos, de posse de uma linguagem
coloquial, que comunica diretamente com o público, uma mensagem de alerta, é uma
peleja, uma luta, uma briga. Logo se anuncia uma divisão, uma distribuição, de algo
coletivo inteiro em partes, simbolicamente através do boi, anunciando a morte súbita
financeira do Brasil.

No entanto, ao escutar e perceber que o boi que está brincando com o público,
não é o mesmo “boi bumba”, as pessoas refletem, começam a escutar o que o coro está
trazendo de conteúdo, em sua cantiga. Pois os Estados da federação, que estão em
questão no texto, identificam diretamente o público, as pessoas dos Estados, mesmo que
não sejam os seus as pessoas se interessam ao escutar a história em saber do que se trata
cada um dos Estados, qual o assunto.

A ligação é imediata pelos acontecimentos dos estados em relação à política do


país, dos acontecimentos, de acordo com o coro, que segue:

Ê boi ê boi ê boi da Paraíba


Quem não gosta desse boi
42
Desconhece Margarida
Moom desconhece margarida

Ê boi ê boi ê boi de Minas Gerais


Quem não gosta deste boi
São as multinacionais
Moom são as multinacionais.

Ê boi ê boi ê boi do Rio de Janeiro


Quem não gosta deste boi
É o capital estrangeiro
Moom é o capital estrangeiro

Ê boi ê boi ê boi do Rio Grande do Sul


Quem não gosta desse boi
É a favor do Mercosul
Moom é a favor do Mercosul

Ê boi ê boi meu boizinho de Sergipe


Quem não gosta deste boi
Vota em Fernando Henrique

(2007, pág. 96, Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e


Agitprop).

A peça da Brigada Patativa do Assaré mescla um tom de alegria, decontração,


folclórico, carnavalesco, pelo figurino e que reflete uma energia contagiante. De forma
carismática, envolvente, traz para a rua uma temática política do país, com uma
fortíssima crítica a politicagem, aos acordos realizados com outros países, por meio dos
governantes e direções, em prol de interesses de poucos, onde os maiores prejudicados,
nesse caso, são os brasileiros e o povo – classe trabalhadora.

A linguagem que o teatro utiliza possibilita que o público acesse uma


determinada informação interessadamente, se aproxima da peça sem compromissos,
sem cobranças, de uma forma que cativa, que envolve. Diferentemente de um discurso
político, de promessas, propagandas, extensos e cansativos que ao terminar o discurso,
resta o cansaço e o pouco entendimento a respeito do assunto, e poucos ouvintes,
principalmente.

Com brincadeira, descontração, a rima e o colorido da peça vão apresentando os


próprios protagonistas da história de uma forma interessante, através do coro, com
muita animação, se introduz a crítica:

Pra onde vai a tripa fina?


Vai pra Jovelina
43
E um bom taco do filé?
Pra patativa do Assaré
A buchada e o mocotó?
Pra turma do CTO
Pra quem a língua do boi?
Pra Caterine já foi
E a cabeça e o coração
Vai pra toda a nação
Ê boi o boi ...
(2007, pág. 96, Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e
Agitprop).

Demonstrando que esse ‘boi’ é de toda a nação e não só de alguns, não tem
partes mais ou menos importantes, é um conjunto que cada parte tem sua importância na
totalidade, e os donos são: a nação, e não um ou dois.

A forma teatral, por meio do trabalho dramaturgico, apresenta formas de como


didaticamente sucitar o debate entre as pessoas, sem necessáriamente ter uma ação
central construída sobre climax e episódios novos. De acordo com Hamon:

O modelo do teatro psicológico, que ao longo de algumas horas desenvolve


uma ação central construída sobre clímax e episódios novos, não é mais
necessário. A grande dramaturgia de estrutura linear cede espaço a um
espetáculo de forma fragmentada. Isto é o que mais chama atenção num
espetáculo de agitprop: a sucessão de pequenas cenas breves, variadas,
eficazes, renovando a todo instante o interesse e a combatividade política da
espectadora e do espectador por meio desta diversidade. Esta estrutura formal
não é única e as influências que marcaram o agitprop no seu início
certamente o explicam. (2012, pág. 42-43 Miolo).

Acreditamos que essa seja uma das formas que mais aproxima os diferentes,
para o debate de assuntos comuns do país, seja ele de ordem política, economica, social,
cultural... De trazer para a “roda” as preocupações, os assuntos mais pungentes, as
temáticas em questão na sociedade. Uma estrutura simples, com coro, dois personagens
principais, cenas não extensas que apresentam com pujança o problema.

Ao revisitar o texto “O autor como produtor” em uma releitura da professora Iná


pensamos na relação da obra com a vida concreta, dos brasileiros e o envolvimento dos
sujeitos produtores da mesma, com o debate sobre a ALCA. A peça nos faz refletir essa
organização, estabele as relações de poder, de hierarquia produzida pelo meio social
(MR. ALCA, Capitão, que negociam a vida de uma nação inteira, por meio desse
44
diálogo artístico representa-se a vida do país, naquele momento), que está latente na
vida no período referente e na obra refletida, 2001/2002.

Conforme Costa:

Um primeiro passo para tratar dialeticamente do problema consiste


em inserir a obra literária no contexto das relações sociais vivas, que são
determinadas pelas relações de produção. Deve-se então perguntar qual é a
relação de uma obra nas relações sociais de produção de seu tempo. Uma
obra pode estar de acordo com elas, submeter-se criticando, submeter-se
endossando e até mesmo fazendo apologia: nestas hipóteses ela é regressiva.
Mas ela pode pretender revolucionar as relações de produção. (2010, pág.
01).

Nesse caso, o contexto da obra estava dado, pois estava em trâmites nos espaços
de decisão a assinatura da ALCA, e a classe trabalhadora estava mobilizada nas
diferentes frentes na tentativa de impedir que este grande equívoco fosse levado a
diante.

A qualidade da obra não está restrita ao fato de aderir as causas revolucionárias,


mas sim de acompanhar o movimento das relações concretas estabelecidas vivamente
nela.

A hierarquia, a complexidade e diposição dos personagens na peça,


apresentaram de certa forma a disposição de poder do país em meio a um grande
acontecimento, que foi o Fórum Social Mundial 18 e o descontentamento de uma boa
parcela da sociedade que não concordava com a forma de “intromissão” do capital
estrangeiro, na vida social do país o Brasil.

A peça demonstrou estéticamente um efeito de cena interessante, porque de


forma simples, com poucos personagens, com uma linguagem direta em coro, apresenta
as contradições do Brasil, naquele momento histórico, que era a descentralização dos
bens nacionais, sendo comercializados para outros países. Mexendo diretamente com

18
Segundo a Wikipédia - O Fórum Social Mundial (FSM) é um evento altermundialista
organizado por movimentos sociais de muitos continentes, com objetivo de elaborar
alternativas para uma transformação social global. Seu slogan é Um outro mundo é possível

45
um público específico que estava participando do evento (FSM), que está traçando
linhas coletivas de como combater essa prática.

O personagem Capitão faz a mediação com MR. ALCA, para que não “leve” os
Estados, não se aproprie do território nacional, é uma negociação, provocação,
conforme o texto:

CAPITÃO
Epa! Já se foram quase todos! Mas esse não vai não senhor!
Porque esse é o boi do Rio Grande do Sul, do Chimarrão, dos Pampas, do
Érico Veríssimo, do FSM. Esse, cabra da peste, tu não carrega nem a pau!
MR. ALCA Deixe de asneira, o Rio Grande do Sul já tá na fronteira do
comércio internacional. Vô limpá daqui essa sujeira que se chama Fórum
Social Mundial! Vô acaba com a utopia cortando as suas asa!
CAPITÃO Me diga que eu já tô ficando azul, pra onde vai o boi do Rio
Grande do Sul?
MR. ALCA Já estou diluindo no Mercosul!
(2007, pág. 103, Teatro e transformação social vol. 1).

A eficácia estética da peça tem a ver com a elaboração e apresentação da mesma,


pois essa passou por um percurso de elaboração, onde a experiência política dos
militantes envolvidos na história, bem como as opções ao apresentar a mesma forma
foram levados em consideração. Era de interesse daquele grupo apresentar a peça, no
evento grandioso que foi o FSM, pela repercussão que dava, bem como, pelo número
de pessoas politizadas que lá estavam. Sendo essa uma forma de estimular a discussão e
aprofundamento político a cerca do tema.

Por compreender a importância que tem o teatro, na luta de classes, nos debates
mais ferverosos de tomada de decisão do próprio país, é que investimos nesse fazer.

Compreendemos no MST que se faz necessário realizar aproximações e


identificações, com outros grupos de teatro, a fim de fortalecer os vínculos com a classe
trabalhadora, através de uma linguagem que historicamente nos foi negada: o teatro.

Enquanto Movimento Social do campo nos interessa a aproximação e parceria


com outros grupos de teatro, porque reforça a ideia de que não estamos sós, temos
muitos parceiros, que falam, estudam e se colocam diante da insatisfação do sistema
vigente e do abismo que ele nos “propõe” diariamente, como saída: o individualismo, a
competitividade, a barbárie, o caos...
46
3.2 - A Bundade do Patrão

Joga a bomba em nossas costas criando confusão, o patrão


se fortalece com a nossa divisão!19 (2007, pág. 119).

Conforme o título e a epígrafe selecionada nos apresentam um pouco da


temática da peça que será abordada. A forma com que a hierarquia do poder afetam os
trabalhadores... Os bônus não pertencem a quem vive da própria força de trabalho, pois:
o individualismo, a competitividade, o ser melhor, corresponde ao fortalecimento dos
patrões, que representam o sistema em vigência.

No Forúm Social Mundial de 2001 e 2002, apresentamos peças construídas


coletivamente pela Brigada Patativa do Assaré, do MST, a fim de trazer temáticas
conflituosas, diferentes temas pertinentes a serem debatidos, apresentados para a
sociedade.

Entre elas a peça “A Bundade do Patrão 20”, é um dos casos, elaborada e


apresentada no mesmo período, que aconteceu o FSM em Porto Alegre. Fruto da
construção de um coletivo estadual de teatro do RS: “Peça Pro Povo”, como parte do
processo de expansão do trabalho da Brigada Nacional Patativa do Assaré.

Parte de um pressuposto de problema coletivo com caráter social, com humor,


comédia política, sem muitos adereços e figurinos, uma peça de agitação e propaganda.

Apresenta-se a fragilidade que existem nas relações humanas, no trabalho das


fábricas, ocasionadas pela pressão do sistema político e econômico vigente no país. A
cooptação da classe empresarial contra a classe trabalhadora, a política do favor, a crise
de atuação do sindicalismo urbano.

19
Teatro e Transformação Social. Volume 1.Teatro Fórum e Agitprop. Caderno das Artes – Rede
Cultural da Terra – 2007.
20
Peça de agitação e propaganda construída coletivamente pelo Coletivo Peça pro Povo, do
MST/RS, em janeiro de 2005, no centro de Formação Sepé Tiaraju – Viamão – RS.
47
O local em que foi apresentada a peça, sem dúvida, teve um valor simbólico
grandioso, pois continha densa representatividade de pessoas, organizações,
movimentos e entidades do mundo, majoritariamente um grupo de pessoas que
acreditam que um novo mundo é possível, conforme o lema do Fórum. Assim,
proporcionando um debate qualitativo, das contradições apresentadas na peça, que são
as contradições do mundo em que vivemos.

Uma peça curta, que inicia com algo que nos une enquanto classe trabalhadora
do mundo, que é um trecho do hino da internacional socialista 21, como o espaço foi
propicio a identificação, ao iniciar a apresentação chama a atenção, o coro e a entoação
do hino, independente em um primeiro momento de ver ou não quem está entoando,
pois tem potência na entoação de voz, força em cena. Logo se percebe que é uma
apresentação teatral pelos adereços de cena.

Como prólogo o Coletivo utilizava outro coro que era a referência do Coletivo
Peça pro Povo: Peça pro Povo é um Coletivo de teatro, MST – RS, originado a partir da
Brigada Nacional de Teatro do MST – Patativa do Assaré

Com a finalidade de propagandear e chamar o povo para formar uma roda,


quando a peça seja apresentada na rua, para fazer o cortejo, utilizada materiais de
percussão, latinhas/chocalho e as pessoas se apresentam de dois a dois, com acrobacia
(em duplas: um no pescoço, nas costas, formando águia). Cantando até formar um
círculo, ou semicírculo:

Peça pro povo

Peça o que

Se aproxime e você vai ver

Ver o quê?
21
O poema que deu origem ao hino A Internacional foi escrito, em junho de 1871, por um lutador
sobrevivente da Comuna de Paris, Eugéne Pottier. Em 1887, ele publicou uma coletânea de seus poemas,
entre os quais estava A Internacional. Pottier conta que compôs esta poesia em junho de 1871, pouco
depois da derrota da Comuna, mas só a publicou pela primeira vez naquela coletânea. A música, logo em
seguida, será composta por um belga de nome Pierre Degeytter, para um coral operário da cidade de Lille,
norte da França. Assim A Internacional começou a ser cantada por grupos de operários socialistas e
anarquistas a partir do começo da década de 90. Giannotti, Vito. A origem do hino A Internacional abril
de 2001 Fonte: "Florilége de la Chanson Revolutionaire" (1995).
48
Peça pro povo

Peça o que

teatro livre

Você vai ter

Peça pro povo

Peça o que

Reforma agrária

e comida pra valer

Peça pro povo peça

Peça o que

Reforma agrária e

Beleza pra viver!!!

Senhores patrões, chefes supremos


Nada esperamos de nenhum.
Façamos, nós quem conquistamos
A terra-mãe, livre e comum.

Essa peça foi construída coletivamente com um grupo de militantes do MST, da


Brigada Patativa do Assaré, com finalidade de dialogar com os participantes do FSM.
Para tanto, nos reunimos antecipadamente ao evento, convidamos camaradas para
realizar uma análise de conjuntura política do país e do mundo, para entendermos em
que contexto estava produzindo. Pois conhecedores da técnica, precisávamos, sem fugir
da realidade em que vivíamos fazer a junção de politizar as peças que estávamos
propondo, não se esquecendo da práxis revolucionária.

Reunidos por uma semana anterior ao FSM pensamos, elaboramos e


construímos as cenas da peça A Bundade do Patrão, desde as cenas ao título da peça foi
algo coletivo de muitos debates e conversas no grupo para chegar a melhor
denominação à peça.

49
A primeira apresentação foi para um grupo de estrangeiros, que vieram para o
FSM com ‘frio na barriga’, pois era a primeira apresentação do grupo, apresentamos, e
segundo aquele grupo, após a apresentação, em diálogo afirmaram que ficou
esteticamente potente e de eficácia para apresentar as contradições do sistema.

O primeiro espaço em que apresentamos foi no centro de formação Sepé Tiaraju,


em Viamão, cidade metropolitana de POA, espaço em que ocorria a oficina que deu
origem ao ‘Coletivo Peça pro Povo’, que foi a forma orgânica de reprodução do
trabalho da Brigada Nacional no Estado do Rio Grande do Sul.

Com humor se inicia a peça, a posição inicial se dá através de um semicírculo


em que os atores e atrizes giram as costas e ironizam a “bondade do patrão” dizendo
bem alto ao público o nome da peça, de uma forma que negando essa bondade, que é
usada a palavra bundade. Acompanhamos:

TODOS (virando a bunda para o público e rebolando sincronizadamente)


...bundade do patrão.
CORO (de frente para o público, cantando em ritmo de rap)
Chegou a hora da verdade,
Não tem jeito não,
Chegou a hora de ver
o que quer o patrão! (2 ou 3X)

(2007, pág. 116, Teatro e transformação social – Vol.1 – Teatro


Fórum e Agitprop).

Chegou a hora da verdade, mostrar o que pensa o patrão, o sujeito que representa
a classe dominante, e logo qual será a reação dos trabalhadores daquela fábrica, o que
pensam, como se comportam, o que pode ser feito a partir do que pensa o patrão.

As políticas de boa vizinhança, entre o sensato e a sobrevivência que está


atrelado ao meio de produção de quem detém o poder: é o patrão, o que irá acontecer
por detrás nos bastidores, um suspense que a todo o momento é desvelado. Porque a
ocasião na peça coloca de forma direta, sem rodeios os problemas que o momento de
evolução tecnológica coloca.

A apresentação das falas dos seis personagens trabalhadores da fábrica se dá por


meio de um rap construído coletivamente, com cuidado de representar as diferentes

50
faixas etárias, tendo como base as rimas, e através delas apresentando o pensamento de
cada personagem e sua condição na fábrica.

Uma peça que apresenta a realidade da fábrica com a chegada das inovações
tecnológicas, com ela um número elevado de trabalhadores postos no “olho da rua”.
Com essa conjuntura a organização dos sindicatos, direitos trabalhistas, greves, com
essa situação as contradições são gritantes. Um dos materiais importantes para a
construção da peça foi a reportagem de Miguel Stedile na Revista Sem Terra sobre a
crescente precarização das condições de trabalho nas fábricas e o aumento da vigilância
e controle sobre os trabalhadores, com câmeras e outras formas de monitoramento.

Pontos de vistas que destoam de um personagem para o outro, cada um tentando


manter-se em seu posto de trabalho, mesmo que para isso coloque em risco a própria
integridade, o caos da humanidade tornando-se algo normal, naturalizado. Conforme
podemos contrastar com os depoimentos dos personagens.

TERESA
Meu patrão é muito bão,
meu patrão é bão demais,
vou ficá do lado dele,
porque meu patrão é bão.
ALINE
Vocês pensam demais,
em puxá saco de patrão,
vocês precisam pensar
é na sua condição!
MARIANA
Meu patrão era tão bão,
meu patrão era tão bão,
mas agora que estou grávida
quer me dar a demissão!
GUILHERME
Esse é o meu primeiro emprego
eu quero assegurar,
porque desempregado
eu não vou ficar!

(2007, pág.117, Teatro e transformação social – Vol.1 – Teatro


Fórum e Agitprop).

Cada um deles apresenta uma situação que está posta que é a própria condição
em que se encontram, de exploração extrema, da disputa para permanecer naquela
condição como se fosse prêmio, de única possibilidade “de ganhar a vida”. O suor do
51
próprio trabalho não como edificador do sujeito, mas como única condição de
sobrevivência.

A precarização do trabalho em todas as faixas etárias, em algumas ainda pior, e


se for feminino e grávida o problema é dobrado. Com o rap sem pressa, apesar de a peça
ser curta vai apresentando as contradições que vivemos no Brasil, descaso, intolerância
com a classe trabalhadora – fácil de ser substituída.

A peça acontece bem marcada pelas cenas, a primeira cena,Antes da reunião,


demarca um mal estar, uma desconfiança, entre patrão e funcionários, o que seria o
motivo da reunião, mesmo que um dos grandes males feitos por parte do patrão é
colocar uns contra os outros- intrigando-os, assim vingando a sua opinião como a
soberana, e ele como o patrão bonzinho, que não manda ninguém embora e que além de
tudo permite que os funcionários entre eles “decidam” seus próprios destinos, conforme
a fala do patrão Marco Aurélio:

MARCO AURÉLIO
Que bom encontrá-los todos aqui. Porque o que tenho a
lhes dizer é de suma importância. A minha empresa está
passando por um momento muito difícil e para contornar a
situação, precisaremos tomar medidas de contenção de
despesas. Portanto, a medida é a demissão, e vocês, como
se conhecem muito bem, escolham entre si quem deixará a
minha empresa.
CORO (intercalando as vozes)
Eu disse que era demissão, eu falei, eu tinha certeza, taí.
MARCO AURÉLIO (quando já ia embora, dando meia-volta)
Ah! Já ia me esquecendo. Pra vocês verem como eu me
preocupo com vocês, pensei em tudo. Para não
sobrecarregar os que ficarem com a carga de trabalho
daqueles que vocês demitirem, eu comprei uma máquina
moderna, que substituirá a mão de obra de dois de vocês. (2007, pág.
118-119, Teatro e transformação social – Vol.1 – Teatro Fórum e Agitprop).

A ironia expressa na fala do patrão Marco Aurelio é a expressão do quanto


podemos “decidir por nós, escolher por nós” no modelo de sociedade vigente, de algum
modo o patrão joga o peso, a responsabilidade para os trabalhadores que não tem culpa
nenhuma dessa estrutura montada do capital, que tem como princípio a exclusão, a
competitividade, enfim, os valores do capital.

52
E ainda deixa uma falsa imagem que se preocupa com os trabalhadores e que
comprou uma máquina que substituirá os companheiros de trabalho, deixando-os assim
devendo obrigação para o patrão, e a decisão que irão tomar nada mais é que justa.

A peça trabalha uma ideia de autoconsciência, vai apresentando a contradição, o


coro vai tendo essa função de revelar:

CORO
Joga a bomba em nossas costas criando confusão, o patrão se fortalece com a
nossa divisão! Duas vezes pegam as lanças e se direcionam ao público,
sussurrando Eu quero ficar, eu tenho que ficar. (2007, pág 119).

Percebem que o que o patrão faz é jogar uma enorme responsabilidade para os
trabalhadores “uma bomba”, mas que mesmo assim é necessário, pelas condições
objetivas da vida concreta, que precisam ser explorados para ter acesso a outros bens,
que o “deus dinheiro” irá proporcionar.

E esse fetiche cega a maioria dos trabalhadores da sociedade vigente, devido ao


modo de produção que está em vigor. Mesmo que para isso usem “lanças”, que foi a
metáfora utilizada na peça, cada um tem que garantir o seu lugar no mundo da
exploração através do trabalho precarizado.

A ideia das lanças na peça se apresenta como uma boa metáfora, do quão
espinhoso é esse meio, onde a hierarquia, o medo de ser mandada embora, a disputa, a
juventude, o vigor da juventude está em destaque, quem pode mais e tem mais força de
trabalho a ser explorada. Pode permanecer enquanto tem utilidade para os interesses do
capital, nada mais que uma força de trabalho barata, e que se reclamar tem uma fila do
lado de fora esperando para tomar o posto.

Lembro-me do prefácio que Boal fez ao Caderno das Artes: 1. Teatro representa
de uma forma ilustrada esse problema:

Por que tantos porquês, que não são nunca questionados?

São dogmas, e a dogmática economia mundial preza mais o dinheiro


abstrato do que a fome concreta, o lucro e não o se humano. A África

53
agoniza? Não importa: ela já não é mais lucrativa como nos séculos passados
– morram todos!

Na Idade Média eram inquisidores que viajavam mundo a fora à


caça aos incréus; hoje são os negociadores do FMI. Ontem ameaçavam
fogueiras; hoje, bancarrotas.

O segundo dogma é uma cópia fiel da vida na selva, onde as bestas


mais fortes – leões, onças, panteras... – delimitam a seu bel prazer a sua área
de caça, e aí ninguém entra. Os latifúndios das feras são sustentados por suas
possantes patas e dentes afiados; os dos grileiros pelos jagunços e suas armas.

O mundo não pode parar. Os humilhados e ofendidos brasileiros já


tentaram dois caminhos principais. O primeiro, foi a crença ingênea de que o
Desenvolvimentismo seria para o bem de todos, e para sempre. Acreditou-se
na máxima: “É preciso deixar crescer o bolo antes de dividi-lo!” O bolo
cresceu, foi assado e comido antes que os famintos pudessem provar bocado.
(2007 pág. 06).

Os porquês do capital não têm respostas para o trabalhador, têm somente muitas
perguntas sem respostas. Utilizando-nos dessa metáfora, na selva do capital o bolo é
comido quentinho e para os pobres – trabalhadores, nem os farelos. As leis que regem
esse universo têm seus aliados contados e acertados previamente é pouco, um grupo
restrito: meia dúzia de famílias tem o controle das principais indústrias do mundo.

Compreendendo como se dá o funcionamento da sociedade, compreendemos as


relações sociais estabelecidas a partir dela, e não fora dela, os valores cultivados são
desse universo, os personagens da peça: “A bundade do patrão”, representam bem,
simbolicamente, o selvagem mundo do capital, em vigor e potencial funcionamento.

Em seguida, da notícia começa um alvoroço dos trabalhadores defendendo os


seus postos de trabalho e interesses pessoais de o porquê tinham que ficar, e vai
tomando corpo a cena, conjuntamente com as lanças que são apontadas para o público,
na medida em que cada personagem defende o seu ficar. Existe um efeito que faz com
que o público se sinta incomodado com a situação, de perceber a contradição da
estrutura.

O sindicalista na peça tem uma tarefa interessante que impulsiona, movimenta o


conjunto dos trabalhadores e aponta para uma saída coletiva, que pensando como classe
pudesse ser a mais sensata:

54
SINDICALISTA
Vamos nos unir! Esse patrão está querendo rachar a nossa
força! Tem trabalho para todos, precisamos procurar nossos
direitos, vamos fazer uma GREVE!
CORO
Greve?!!! (2007, pág. 120)

Após a situação ser apresentada, todos param, dá tempo dos personagens e do


público pensarem a respeito do que está sendo proposto, e o que isso significa em
contexto brasileiro, em realidade dada.

O encaminhamento para o desfecho da peça também traz um dado interessante,


como se resolve, com cartazes e um tempo de silêncio, em seguida uma surpresa, e
entoam uma parte do hino da internacional e saem de cena.

Aline coloca um cartaz no pescoço do sindicalista escrito:


DESEMPREGADO e dá um pé na bunda do sindicalista, que quase
cai na frente do público. Todo o elenco sai em fila indiana, com as
lanças na mão esquerda e o punho cerrado, entoando o estrofe da
Internacional.
CORO
Senhores patrões, chefes supremos
Nada esperamos de nenhum.
Façamos, nós quem conquistamos
A terra-mãe, livre e comum.

(2007, pág. 120, Teatro e transformação social – Vol.1 – Teatro


Fórum e Agitprop).

Essa reação da personagem Aline, nos remete a ideia de que o teatro de agitação
e propaganda trata, ou seja, não dá respostas, mas faz a propaganda, faz pensar, traz os
problemas expõe com eficácia, mesmo em cenas simples, sem grandes elaborações de
cenário e figurino, mas que nos faz viajar pelo mundo da vida real, da dureza que o
mundo do capital nos expõe todos os dias, desnaturalizando, desmistificando, fatos e
questões que talvez pudessem ser dadas.

Pois se pensássemos outro tipo de forma teatral, poderia ter uma estrutura
baseada no drama, onde a grávida fizesse um drama por estar grávida e ter que ficar no
trabalho, ou qualquer outro personagem e se relacionasse diretamente com o patrão,

55
seria outro desfecho, que com certeza não teria a mesma eficácia do debate e o impacto
que teve.

Conforme Christine Hamon 1977.

Este é um outro aspecto importante do teatro de agitação: fazer


espectadores/as se implicarem diretamente na ação. Do mesmo modo que o
cartaz político é dirigido a “você” e muitas vezes com o dedo apontado para a
pessoa designada, o teatro de agitprop recorre à implicação direta, seja
incitando o público a participar fisicamente do espetáculo, por exemplo no
processo de agitação, onde as pessoas da audiência frequentemente entram
em cena; seja sublinhando de maneira explícita que a mensagem política é
diretamente direcionada a elas pela intervenção de uma pessoa com função
de narrar ou conduzir a peça (mestre/a de cerimônia), trazendo à tona o seu
significado. (2007, Miolo pág. 44-45,).

O cartaz de desempregado poderia ser para qualquer um do público, ou seja, os


espectadores/as se identificam de imediato, porque a história que está sendo contada ali
é a história dos trabalhadores se reconhecem enquanto classe. O papel do coro faz essa
interlocução direta com o público.

Quando chegou o grupo de estrangeiros, com alguns companheiros do MST que


os acompanharam, logo após conhecerem o Assentamento e o centro de formação Sepé
Tiaraju, reunimo-nos para a apresentação, na plenária do centro, local que comporta
aproximadamente 250 pessoas. Arrepia mesmo ao relembrar, contar mesmo depois de
tantos anos... Pois foi um momento ímpar na construção da nossa história enquanto
coletivo de militantes trabalhadores do teatro em um Movimento Social como o MST.
Que o teatro tem essa força que identifica, promove sentimentos e compreensões,
estudamos, tínhamos conhecimento, mas ao vivenciar é diferente, e só quem vivencia
sente.

Sim, sem mais delongas, o fato foi que ao iniciarmos a apresentação, antes de
aparecer os personagens, iniciamos entoando o hino da internacional o trecho:
Senhores, patrões, chefes supremos, Nada esperemos de nenhum Sejamos nós quem
conquistemos a terra mãe livre e comum! Quando começamos, foi unanime, todos os
estrangeiros que estavam presentes, levantaram-se das cadeiras e passaram a entoar
junto, em sua língua materna: ou idioma oficial e dialetos: alemães, ingleses,
portugueses, africanos...
56
Como percebemos que estavam entoando junto, aumentamos as vezes que
entoávamos o hino e o fizemos mais vezes, pois era inexplicável o que estava
acontecendo, cada um em sua língua, no mesmo ritmo, entoando o que nos unifica
enquanto uma das simbologias da classe trabalhadora.

Mas não foi só isso, a simbologia que utilizamos na peça foram lanças que cada
personagem tinha, e de acordo com as falas individuais cada um se apresentava e
contava com gestos corporais mais ainda para esse grupo, para ser mais compreensiva, a
expressividade do grupo que estava presenciando a peça era muito interessante porque o
que faltava nas palavras, os gestos e a contextualização iam complementando. Uma
peça curta, que pareceu ter um tempo maior naquela apresentação.

Depois da apresentação, dando seguimento a uma prática da Brigada Patativa do


Assaré, na maioria das vezes, fizemos uma roda de conversa, nesse caso, com a
contribuição de uma pessoa que ia fazendo a tradução, alguns só entendiam o dialeto, e
uma que outra palavra em português. O diálogo foi muito interessante, muitas pessoas
se emocionaram frente à situação, colocando a importância que a linguagem teatral
pode ter, as suas compreensões do tema em questão, relacionando com as realidades de
seus países, desde a revolução industrial, a exploração do trabalho, a desvalorização da
mulher, as questões trabalhistas, a força do sindicalismo e suas oscilações... Enfim, as
diferentes temáticas suscitadas a partir da peça.

Pensando a peça, como uma peça de agitação e propaganda funcionou, uma peça
não extensa, que tem um assunto em questão de agitação, que desperta para uma
consciência do problema, a partir do debate gerado. O assunto da peça funcionou
conjuntamente com a forma com que foi apresentado.

Na peça: “A Bundade do Patrão”, a organização da peça se dá através de vozes


coletivas, a musicalidade traz a mensagem de uma classe social, que por meio da peça
apresenta as tensões e contradições da “evolução” tecnológica, apresenta as relações de
poder que existe dentro da categoria dos operários na fábrica, traçando uma apologia a
figura do patrão.

57
A forma com que está descrito o assunto a ser apresentado, já diz algo aos
espect’ atores, bem como a ação teatral. Pois de acordo com Marildo Menegat 22 em suas
pesquisas:

Determinação da dialética da relação recíproca de forma e conteúdo, segundo


Hegel: “O conteúdo não é mais do que a mutação da forma em conteúdo, e a
forma não é mais do que a mutação do conteúdo em forma”. (2008, p.01).

Ou seja, tanto a forma quanto o conteúdo são irmãos gêmeos univitelinos, estão
umbilicalmente unidos, fazem parte de uma construção que se completa, não
desassociada. A forma apresentada em uma obra tem em si o conteúdo social em
questão, porque a forma já é o conteúdo social sedimentado. Essa ideia que Adorno
trabalha nos faz pensar um pouco mais aprofundadamente a respeito desse conjunto
importante na construção de uma obra artística.

A forma em que o conteúdo está apresentado, diz muito da obra na forma


proposta, o jeito apresentado é parte constituinte, não está à parte, mas sim faz parte.

A peça: “A Bundade do Patrão”, tem contido em sua estrutura o teatro de


agitação e propaganda. A nossa aprendizagem com as experiências anteriores, dessa
forma de teatro, tem uma conotação interessante, que chama a atenção, por se apresentar
com características próprias de ação teatral do MST. Que se difere ao apresentar uma
temática polêmica na sociedade, que é o embate de concepção de classe, onde apresenta
a hierarquia da construção da sociedade.

Essa situação transparece na peça através da fala, que é coletiva, com um grupo
de operários que apresentam a falta de condições de sobrevivência e nível de exploração
em que estavam vivendo, tendo que negociar a própria vida, deixando explicita a
política de favores entre as categorias.

Voltando as apresentações realizadas com essa peça, antes de leva-la para ser
apresentada no evento do FSM foram realizadas muitas apresentações na vizinhança do
centro de formação Sepé Tiaraju, para os assentados/as e outros convidados da cidade,
22
Marildo Menegat, na condição de comentador de plenário da mesa “Cultura, império e imperialismo”,
da conferência Dilemas da Humanidade: diálogos entre civilizações. Publicação: Rio de Janeiro:
Contraponto, 2008.
58
como o acesso ao Assentamento em relação à cidade era rápido, muitas visitas recebia-
se.

A aceitação em relação às peças acontecia de uma forma interessante,


geralmente se fazia as apresentações no final do dia, os moradores se aproximavam
montava-se a roda, e iniciava-se a apresentação seguida de debate, que sempre alguma
sugestão vinha a mais da comunidade, em relação à cena, fosse de roupa, de fala de
personagem, sugestões de canções, enfim essa troca existia de forma solidária e
contribuía no enriquecimento da produção. Que sem sombras de dúvida, o termo
coletividade era empregado de inicio a fim.

E, principalmente porque ali, no momento em que estão vivenciando a cena de


teatro as pessoas se reconhecem no trabalho, estabelecem relações de como acontece no
cotidiano, fatos que o teatro apresentou, depois ficam as referências dos personagens,
fazem relações, a verossimilhança existe. O teatro é uma possibilidade de reconhecer e
pensar como poderia ser diferente, o quanto é incrível, nunca havia pensado dessa forma
a respeito desse assunto... As contradições do mundo do trabalho são representadas pela
peça, através da forma com que está estruturada e organizada - é desvendada por
pequenas cenas ilustrativas de como os trabalhadores são meras: mão-de-obra fáceis de
serem substituídas, descartáveis.

Essa ‘revelação’ feita ao público oportuniza várias interpretações, bem como a


reflexão de como essa estrutura reflete em nossas vivências enquanto classe
trabalhadora, o fato de ser substituídos por máquinas, de colocar os iguais uns contra os
outros, sem que se deem conta disso. Enfim a selvagem organização do sistema
capitalista é apresentada na peça de uma forma sutil e que envolve a reflexão dos que
presenciam a apresentação.

A apresentação para outros grupos de teatro também foi uma experiência


interessante, produtiva para a Brigada Patativa do Assaré, pois possibilitou à discussão,
o diálogo com grupos que fazem teatro há mais tempo que o MST, percebendo e
apontando alguns limites que poderia avançar. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui
Traveiz contribuiu nesse processo com reuniões, debates teóricos a cerca das temáticas a
serem montadas.

59
Na barraca do teatro no FSM, se apresentaram vários grupos de teatro do mundo,
em um espaço com as lonas erguidas com livre acesso de quem quisesse participar. A
socialização com outros grupos de teatro do Brasil e do mundo somaram positivamente
nas nossas produções, a troca, o conhecer uns os trabalhos dos outros, mesmo que em
alguns casos, a língua era diferente, esse não foi o impeditivo para aprendermos juntos.

3.3 Peça teatral “A mulher da roça”

A peça de teatro: “A mulher da roça” é uma peça que se propõe na sua forma
dramatúrgica, ao Teatro Fórum, técnica desenvolvida por Augusto Boal. Diferentemente
as peças anteriores que analisamos, essa tem uma estrutura diferente.

Essa peça é fruto da construção coletiva do Coletivo “Peça pro Povo”, do


MST/RS, em janeiro de 2005, coletivo esse, que foi formado a partir do trabalho da
Brigada Nacional Patativa do Assaré. Posteriormente essa peça foi apresentada várias
vezes internamente no MST, nos acampamentos do “8 de março”. A peça foi gravada
como rádio-teatro, e durante a Marcha Nacional pela Reforma Agrária (2005) foi
encenada ao vivo como rádio teatro para os doze mil marchantes conectados com rádios
individuais na rádio Brasil em Movimento, situada no caminhão de som principal que
acompanhou a marcha.

A transformação da arte teatral que ocorrera por intermédio de Piscator,


Brecht e tantos outros nas primeiras décadas do século XX viria ocorrer no
Brasil somente na década de 1960. Veremos que o passo “adiante” de Boal,
como resposta ao acuamento imposto pela ditadura, será unir o palco e a
plateia numa grande assembleia, procurando repor, por meio do Teatro
Fórum, os termos do debate que a ditadura interrompeu. A ação teatral é
deslocada da centralidade do espetáculo, para dar vez à discussão de
situações e contradições a partir do problema proposto. (VILLAS BÔAS
texto será publicado na revista do Instituto de estudos Brasileiros (IEB) da
USP, www.ieb. Usp.br)

60
Pressupõe a presença em cena do público, como Boal mesmo costuma dizer, no
Teatro Fórum, não tem espectador, mas sim espect’ator 23, é uma junção de expectador e
ator, pois nessa forma teatral se apresenta o problema e em seguida o público, após ser
instigado é convidado a entrar em cena e assumir o papel do oprimido, entrar em cena e
dar a sua contribuição na história, outro possível desencadeamento.

O processo de construção da peça foi a partir da demanda do Setor de Gênero do


RS, para debater o problema do machismo nas áreas de Assentamento, e em relação às
mulheres participarem do processo da luta. Dada à necessidade de se construir uma peça
que trouxesse essa temática para o diálogo, foi que um grupo de militantes pertencentes
ao Coletivo de teatro MST – RS Peça pro Povo reuniu-se e criou o texto.

A demanda de fazer peças que tivessem as temáticas abordadas a partir do que


seria discutida no encontro era uma demanda permanente. Pois um dos papeis que o
teatro cumpre é ser uma ferramenta potente de discussão, debate, diálogo, a partir de um
problema social.

A linguagem teatral possibilitava o diálogo do problema, sem que houvesse uma


identificação pessoal e direta das mulheres, no caso do machismo, após as
apresentações, e mesmo os fóruns que a peça proporcionava as mulheres que faziam
intervenção, ou mesmo que debatiam diziam eu conheço “Zé”, eu já vi, ou ainda lá
perto de casa a minha vizinha, uma amiga, mas nunca era com ela, falar do outro é mais
fácil do que falar de si própria, apesar de se identificar, ter propriedade no debate, é
mais fácil o debate, o opinar, distanciadamente do problema.

Muitas companheiras se colocavam no debate e defendiam o seu ponto de vista,


até mesmo arrumando embate sério com o personagem opressor, a ponto de querer
bater, enfrentar na força física.

A peça “A mulher da Roça”, desde a elaboração até as apresentações todo o


processo acreditamos que despertou a formação da consciência que vai para além do
elaborado, serviu para que as mulheres pensassem a sua relação com a luta e a vida
política que estão envolvidas, de que maneira estão participando e se envolvendo com
as diferentes decisões.

23
Segundo, Boal quem participa de uma apresentação de Teatro Fórum, não é mero espectador, mas sim
um espect’ator, pois se apresenta também, faz parte da apresentação, por poder intervir, fazer parte da
apresentação, é ator também, por isso a denominação: Espect’ator.
61
As reuniões do grupo de teatro para essas construções das peças, aconteciam no
espaço da secretaria estadual e no alojamento do MST - RS, três ou quatro dias antes do
encontro de mulheres – os ‘8 de março’. Com muita alegria, estudo, elaborações,
improvisos, empolgações, lembranças das próprias vivências às vezes até havia
empolgação demais nas interpretações, defesas de ideias, forma de como ficava melhor
os temas que estávamos preparando. As intermináveis buscas nas cartilhas de gênero,
nas construções coletivas do MST, o estudo fez e faz parte desse processo como
orientador.

Conjuntamente com esse processo a preocupação de como apresentaríamos a


própria história, ou seja, a forma - e que implicava no conteúdo e vice–versa. Nesse
momento, passamos a ter uma preocupação maior em apresentar com qualidade estética
e eficácia política as peças, fruto do trabalho Coletivo e estudo conjuntamente com a
Brigada Patativa do Assaré.

São cinco personagens na peça: Joana, Zé Vicente, Comadre Chica, Tio Sam,
Coro. O Coro é composto por todos os personagens da peça. Essa peça demarca um
nível interno, orgânico do reconhecimento do papel do teatro pelos demais setores da
organização, como no caso, o de gênero.

Tanto foi importante essa peça para a organização internamente, para o debate e
aprofundamento do tema da participação da mulher na luta que foi apresentada em
espaços como, por exemplo, a Marcha Nacional de 2005 24, espaço de debate e
aprofundamento com as pessoas envolvidas e mais interessadas nesse debate.

24
12 mil participantes caminhando, uma cidade itinerante pela Reforma Agrária. Sem Terra vindos de 23
estados brasileiros encontraram-se em Goiânia para marchar até Brasília. Eles começaram a caminhada
em 2 de maio no dia 17 do mesmo mês. 15 dias de estrada, 200 km percorridos à pé pela BR 060, em uma
média diária de 16 km percorridos em 5 horas.
62
Considerações Finais

A arte tem o potencial de nos fazer olhar para frente ou para traz, para o
passado, dependendo do ponto de vista. Na verdade, creio que a arte projeta
uma memória do futuro na medida em que organiza esteticamente
contradições do processo histórico. É uma articulação dialética entre passado
e futuro e precisa cumprir a função de organizar uma percepção de mundo e
de vida diferente da que está estabelecida, construir o próprio caminho. A arte
não pode ser vista como mero objeto, mercadoria. (FROZZI: 2010, p. 09)

A arte como produção da vida, mediada pelo trabalho e pela cultura, se manifesta
como um mundo de probabilidades alternativas ao mundo da mercadoria em que
vivemos imersos. Apresenta-se como uma “brecha”, uma possibilidade de fazer o sonho
se tornar realidade, através da cultura, da arte, do teatro, atravessado pela concretude da
vida e das condições objetivas em que ela está inserida.

A Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré teve um importante papel


na formação e conscientização desse grupo de militantes que estiveram inseridos nela,
em termos de formação política – ideológica, por meio da linguagem do teatro.
63
A Brigada conseguiu sinalizar concretamente para uma perspectiva de produção
contra-hegemônica produzindo coletivamente, quebrando com a lógica do espetáculo,
em um processo de autogestão, sem um diretor/a, de maneira que todos tinham o
domínio do todo: desde a dramaturgia, a apresentação, dos bastidores até os comentários
posteriores à apresentação.

O processo de produção (técnicas, teoria e prática teatral) foi sendo apropriado, sem
que o foco ficasse unicamente no produto: “a peça”, a ênfase foi conferida ao processo
de produção. Percebíamos no desenvolver das produções algumas contradições, para
tanto trabalhávamos na estrutura formal das peças para que a forma de representação
estivesse de acordo com o que estávamos debatendo.

Conforme Bonassa:

La Brigada “Patativa do Assaré” fue una gran propulsora del debate y


principalmente a partir de la práctica sobre la capacidad transformadora del
arte, principalmente por medio del teatro. Miles de militantes del MST, de
una manera u otra, participaron de ese proceso y a partir de sus
planteamientos ayudaron a insertar el quehacer artístico como una práctica
tan militante como las de los demás sectores del Movimiento. (2012, pág.
82).

A autora aponta para a importância desse despertar coletivo do MST, para a


capacidade transformadora da arte. E, cuidadosamente, aponta para um “melindre” que
ainda existia, de que, quem faz teatro são os que não têm o que fazer, os “desocupados”.
Por outro lado, com o trabalho realizado por quase treze anos, a visão em relação ao
fazer artístico na Organização, passou a ter outros pontos de vistas, que não somente o
entretenimento, mas a emancipação crítica e politizada dos sujeitos envolvidos.

As técnicas teatrais e peças construídas no decorrer da existência da Brigada


Patativa do Assaré contribuíram esteticamente para o conjunto do MST, para a formação
e consolidação da consciência social, dos militantes que faziam teatro, bem como para
os que de maneira indireta faziam parte desse processo.

64
Cada peça que a Brigada construiu coletivamente teve a preocupação em trazer com
outra linguagem os problemas, as contradições do meio social em que vivemos, desde
as questões mais elementares, como o preço pago por um litro de leite, até questões que
envolvem o global – como, por exemplo, a luta contra a ALCA.

Podemos constatar que a Brigada teve uma importante contribuição no trabalho


intersetorial, para qualificar o processo de formação nos diferentes espaços do
Movimento, ou seja, setores como: formação, educação, saúde, gênero, frente de massa,
produção etc. Muitos integrantes da brigada foram convocados à pensar como o teatro
poderia ser potencializado no processo de formação política, no processo de educação
popular, na educação de jovens e adultos, no fortalecimento do trabalho de base, nas
ações de agitação e propaganda, nos programas de formação em saúde, etc.

Do ponto de vista estético, podemos afirmar que a consolidação da Brigada


Nacional de Teatro Patativa do Assaré do MST, em 2001, proporcionou
questionamentos, a respeito da estética das obras, tanto das que elaborávamos, quanto
das que assistíamos. O MST passou a ter um grupo maior de pessoas que conseguiam
analisar criticamente as obras de arte, e olhar com mais propriedade para a estética dos
seus feitos e dos feitos externos, trazendo um amadurecimento político, cultural e
artístico para o conjunto da Organização.

O Movimento nas suas diferentes frentes de atuação buscou, com mais


intensidade, a partir da construção e consolidação da Brigada Patativa do Assaré, ter
uma atenção maior para que as produções tanto plásticas, de painéis e das músicas,
buscando evitar a incosciente perpetuação da representação hegemônica da realidade.

A Brigada Patativa do Assaré foi marcada por várias fases, de construção e


consolidação, bem como de fragilidades em relação a continuidade, de acordo com
Bonassa:

La experiencia de la Brigada está marcada por varias fases, desde la


capacitación con el teatrólogo brasileño Augusto Boal, creador de la
metodología del Teatro del Oprimido, pasando por intercambios con grupos
de teatro de Brasil, hasta llegar a los primeros contactos con las piezas
didácticas de Bertholt Brecht, las técnicas de agitación y propaganda, etc.
(2012, pág.82).

65
A consolidação da Brigada proporcionou aos seus militantes um aprimoramento
teórico interessante, que impulsionou muitos dos envolvidos diretamente e
indiretamente, a estudar, em diferentes áreas, para qualificadamente contribuir no MST,
nas diferentes frentes e espaços, internamente e na relação com a sociedade. Em cursos
como:

- História da Arte na Universidade do Oriente, em Cuba, e faz mestrado na mesma


universidade, por intermédio de parceria entre o MST e o governo cubano;

- Licenciatura em Educação do Campo, promovido no ITERRA, em parceria com o


MST/RS;

- Geografia na Unesp, turma específica fruto de parceria do MST com aquela


universidade;

- Turma específica do curso de história promovido para assentados da Reforma


Agrária, em parceria do MST com a UFPB;

- Curso de Serviço Social, em curso promovido pela UFRJ em parceria com o


MST;

- Curso especial de Licenciatura em Artes realizado pelo MST em parceria com a


UFPI, financiado pelo Pronera, e finalizado em 2013;

- Graduação em jornalismo (2001), mestrado em Comunicação Social (2004) e


doutorado em Literatura (2009) na Universidade de Brasília.

- Curso de Ensino Médio do ITERRA, com especialização em Comunicação e


Artes (2011);

- Graduação em História em curso promovido pelo ITERRA em parceria com a


UFSC;

- Agronomia na UFPA.

Assim como em outros tempos históricos, outros trabalhadores fizeram sua história
teatral que contribuiu para a construção de um pensamento crítico em relação ao meio
social em que estavam inseridos. Dessa maneira o CPC para nós deixa um grande
legado, de acordo com Rayssa:

66
O Centro Popular de Cultura, movimento político-cultural que nasce tendo
como acúmulo as experiências e conquistas do Teatro de Arena, de sua
junção com o Teatro Paulista do Estudante, do esforço para superar as
contradições e os desajustes que seus integrantes viam no Arena, do contato
com o Movimento de Cultura Popular, da atmosfera e experiência política
propiciada pelo fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, surge encarando
como tarefa necessária o contato com “as camadas revolucionárias da
população”. Formado por um grupo de artistas e intelectuais de esquerda que
encarava a arte como uma das trincheiras de luta pelo socialismo, o CPC
traçou metas e não se desenvolveu de maneira puramente espontaneísta ou
ingênua como, por vezes, a crítica quis fazer crer. (2010, pág.162).

Estabelecendo vínculos com o fazer teatral, dos diferentes períodos históricos,


acreditamos que o MST, com a Brigada Nacional Patativa apresentou frutos
significativos de tensões, de contradições da sociedade em que estamos inseridos.

Assim como o CPC, o MST através da Brigada Patativa do Assaré procura


aliados fazendo a relação com a sociedade por meio do teatro, com temáticas, assuntos
que abordam a organização da sociedade, com suas tensões e contradições.

Pensando a experiência da Brigada de forma comparada com a do Centro


Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), avaliamos que a
Brigada Patativa do Assaré conseguiu dar passos significativos nessa construção
artística da classe trabalhadora, no despertar de consciências críticas, de forma contínua
por mais de uma década. Essa ação não retilínea, não com intenção de ilustrar, mas
talvez em forma de espiral, com muitas contradições, podemos dizer que a Brigada
Patativa tem seu mérito, pela qualidade de intervenção política realizada por meio das
suas produções.

A Brigada Patativa do Assaré em seu processo de produção e apropriação da


técnica que se inicia em 2001, tem continuidade e muitos frutos, novos grupos
espalhados nos diferentes Estados da federação, com intervenção politicamente
consistente. Temos treze anos de intervenção nos diferentes espaços da sociedade. Esse
processo não está agora em 2013, encerrado, mas em aprimoramento, de acordo com os
frutos existentes.

Esse fato é valoroso para o conjunto do MST, um Movimento camponês, que


chega a três décadas, em 2014, tendo a consciência da importância da cultura e da arte,
67
das diferentes linguagens, bem como, a potência da linguagem teatral na intervenção
direta na sociedade e, internamente para sua base. É um fato relevante que o maior
movimento camponês brasileiro e da América Latina tenha investido de forma
consistente e permanente por uma década em sua produção teatral

Como Brigada de teatro fomos além, pelo fato do processo já ter nascido com a
consciência da socialização direta dos meios de produção, proposta por Boal e
demandada pelo MST. Ou seja, os camponeses não participaram como público e em
potencial como produtores, eles participaram desde o primeiro momento como
protagonistas da produção teatral.

No decorrer do processo de consolidação e afirmação da Brigada Patativa do


Assaré chegamos a ter mais de 40 grupos espalhados por mais de 15 estados brasileiros,
o que proporcionou muitos outros grupos e coletivos formados a partir dessa
experiência, no processo de multiplicação e apropriação da técnica. Demonstrando a
consistência do trabalho para o conjunto do MST e para além dele, na sociedade.

Muitas foram às conquistas nesse processo de forjar novas consciências a partir


do teatro, no entanto, muitos limites também se apresentaram no decorrer dessa
trajetória. Com algumas exceções de peças, não conseguimos avançar num crescente na
qualidade de nossa produção dramatúrgica. Deixamos à desejar no que se refere a
“lapidação” da dramaturgia de nossos trabalhos.

As contradições dramatúrgicas identificadas na produção da Brigada são várias,


mas vale ressaltar que a peça: “Nem tudo o que se planta colhe”, que não foi possível
efetuar a análise neste trabalho, está sintetizada essa contradição entre forma e
conteúdo. Ou seja, a produção dessa peça era para fazer Fórum, no entanto, a forma
com que foi construída e apresentada tornou impossível o Fórum. Talvez seja a peça que
melhor sintetize o impasse a que a Brigada chegou e buscou superar por meio do estudo
a partir de 2004.

Dos limites que apontamos, um dos principais é a dificuldade de continuação de


um processo de formação permanente. O fato da maioria dos nossos grupos mais fortes
não existirem mais também foi um fator limitante da continuidade

Os grupos mais fortes que tínhamos e faziam teatro foram se desestruturando,


pois, na medida em que os militantes se destacavam no teatro, eram convidados,
68
indicados e até convocados a assumirem outras demandas no conjunto da Organização.
Inclusive, alguns dos integrantes da Brigada Patativa do Assaré integraram a
coordenação nacional do MST, como foi o caso de Juliana Bonassa, como dirigente do
MST de SP, de Andréia, como dirigente do MST de SC, de Mineirinho, como dirigente
do escritório nacional do MST do RJ e coordenador do Coletivo Nacional de Cultura, e
de Rafael Villas Bôas, como coordenador do Coletivo Nacional de Cultura do MST.

A maioria dos/as militantes que concentravam maior “consistência” política,


tinham mais que uma tarefa: o teatro e frente de massas 25, o teatro e a relação com a
sociedade – setor de formação, setor de educação... E assim como temos no MST
diferentes frentes e uma demanda grandiosa de militantes preparados para assumir as
tarefas, em alguma parte fica “descoberto”. Esses fatos, apresentamos como parte das
contradições que temos.

A falta de continuidade dos encontros nacionais, e formações específicas com a


Brigada Patativa do Assaré, também se configuram como um grande limite.

Acreditamos que estamos em um momento histórico de retomadas, de estudo, e


de rever nossas produções, bem como os limites que percebemos, para criar meios de
superá-los. É importante que sejam retomadas as formações nacionais da Brigada
Patativa do Assaré, com o conhecimento da nova reestruturação que há.

Somos frutos dessa história, dessa grande família MST que nos orgulha, como
camponeses/as, afirmamos que somos fruto dessa história e dessa luta, que é um dos
Movimentos camponeses mais duradouros e consistentes politicamente no Brasil, que
tem em seu território iniciativas e cultivo da cultura e da arte vinculada com a luta de
classes. Que traz em seu ventre o cultivo e a importância da arte como mestra de sua
Organização, que tremula nas bandeiras vermelhas o sonho possível de construção de
uma nova sociedade.

25
Um coletivo de militantes que realizam trabalho de base, com o objetivo de trazer novos acampados,
para o processo de conquista da terra, no MST.
69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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dinâmica da produção teatral do MST. Brasília: MST, 2005, mimeo.

BERLINCK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas: Papirus,


1984.
BETTI, Maria Silvia. Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo: EdUSP, 1997.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro:
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BOGO, Ademar. “Linguagem em Prosa e Verso: uma mediação para a formação da


consciência”. Departamento de Educação/ Campus Universidade do Estado da Bahia –
UNEB Departamento de educação campus x, 2011. Monografia de conclusão de curso
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BORGES, Rayssa Aguiar. CPC DA UNE: PARA ALÉM DE REDUCIONISMOS E
PRECONCEITOS Análise das peças Brasil, Versão Brasileira e O petróleo ficou
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Literária e Literaturas, do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, 2010.
70
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inserção do Teatro do Oprimido no MST. 2005.
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1996.

COSTA, Iná Camargo. Ciclo estética “Contra o drama”. Palestra, SP, dia
12/09/2005
COSTA, Iná Camargo. Em debate: A PAUTA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
A CULTURA.

COSTA, Iná Camargo. Estudo sobre teatro político, realizado durante reunião da
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COSTA, Iná Camargo. Nenhuma lágrima: Teatro Épico em Perspectiva Dialética.


São Paulo, Editora Expressão Popular, 2012.

COSTA, Iná Camargo. Palestra sobre o ensaio: “o autor como produtor”. São Paulo:
Anca, 2005.

COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. Petrópolis, Editora Vozes, 1998. Por Maria
Sílvia Betti, texto.

E OS TEXTOS DE MEMÓRIA DAS ETAPAS E DAS REUNIÕES COM O CTO


E DA Brigada nacional de Teatro Patativa do Assaré, do período.

Ensaios sobre Arte e cultura na \formação. Rede Cultural da terra. Caderno das artes. SP.
MAXPRINT Editora e gráfica ltda. SP, 2005.

ESTEVAM, Douglas. Cultura, política e participação popular. São Paulo, 2006,


Livro Interativo da Teia, Editora Cultura em Ação, 2007.

ESTEVAM, Douglas. Trajetória de uma estética política do teatro. Texto publicado


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GRUPO PEÇA PRO POVO. Monografia de conclusão de curso de graduação,
Universidade de Brasília Faculdade de Planaltina Licenciatura em Educação do Campo

71
Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, 2010. Monografia de
conclusão de curso de graduação.
HAMON, Christine. Formas dramatúrgicas e cênicas do teatro de agitprop. In: Le
théâtre d´agit-prop de 1917 à 1932. Volume 1. BABLET, Denis (Org.). France: La
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LOBO, Roberta. Crítica da imagem e Educação: reflexões sobre a
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conclusão de curso de graduação. Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências
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contramão da mercantilização da vida. Monografia de conclusão de curso de
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Cooperativa Pedagógica de Aprendizado do Magistério – COOPAM. Setor de educação.
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Org. Pontão de Cultura Rede Cultural da Terra. Lutar Sempre! Estudos sobre
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72
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Publicação: Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo, Editora Perspectiva, 2004.

SZONDI, Peter. Teoria e drama moderno. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 2001.

ANEXOS

73
Peça 1 - A peleja de boi bumbá contra a águia imperiá

Peça construída coletivamente pela Brigada Nacional Patativa do Assaré, durante a


segunda etapa de formação de curingas do MST com o Centro do Teatro do Oprimido
(CTO), em junho de 2001, no Rio de Janeiro, com direção de Augusto Boal. A peça foi
apresentada pelo elenco da Brigada Nacional no encontro nacional de curingas
promovido pelo CTO em dezembro de 2001 no Rio de Janeiro, no 10° Encontro
Nacional do MST, em janeiro de 2002, em Belo Horizonte e no II Fórum Social
Mundial, em Porto Alegre, em fevereiro de 2002.

Personagens:
Boi de Goiás Boi do Espírito Santo Boi do Rio Grade do
Boi do Amazonas Boi da Bahia Sul
Boi do Maranhão Capitão Boi do Paraná
Boi de Sergipe Mr. Alca Boi de São Paulo
Boi da Paraíba Boi do Ceará Boi do Rio de Janeiro
Boi de Pernambuco Boi do Piauí Boi de Minas Gerais

CAPITÃO
Atenção! Muita atenção! Senhoras e senhores! Respeitável público! O CTO-MST tem o
prazer de apresentar “A peleja de boi bumbá ...
MR. ALCA
... contra a águia imperiá!”
CAPITÃO
74
Vamos repartir o boi!
Entra o grupo contando a “Partilha do Boi”:
Ê boi ê boi ê boi do Ceará
Quem não gosta deste boi
Quer nos americanizar
Ê boi ê boi ê boi do Piauí
Quem não gosta deste boi
É do FMI
Moom é do FMI
Ê Boi ê boi ê boi do Maranhão
Quem não gosta desse boi
Não mantém a tradição
Moom não mantém a tradição
Ê boi ê boi ê boi da Paraíba
Quem não gosta desse boi
Desconhece Margarida
Moom desconhece margarida
Ê boi ê boi ê boi de Minas Gerais
Quem não gosta deste boi
96 Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop
São as multinacionais
Moom são as multinacionais.
Ê boi ê boi ê boi do Rio de Janeiro
Quem não gosta deste boi
É o capital estrangeiro
Moom é o capital estrangeiro
Ê boi ê boi ê boi do Rio Grande do Sul
Quem não gosta desse boi
É a favor do Mercosul
Moom é a favor do Mercosul
Ê boi ê boi meu boizinho de Sergipe
Quem não gosta deste boi
Vota em Fernando Henrique

75
Vamos repartir o boi minha gente?
Vamos!
Pra onde vai a tripa fina?
Vai pra Jovelina
E um bom taco do filé?
Pra patativa do Assaré
A buchada e o mocotó?
Pra turma do CTO
Pra quem a língua do boi?
Pra Caterine já foi
E a cabeça e o coração
Vai pra toda a nação
Ê boi o boi ...
MR. ALCA
Stop! Stop! Stop! (cantarola o ritmo da música N.Y )
CAPITÃO
Vamos cantá gente!
MR. ALCA
Stop! Stop!
CEARÁ
Quem é você?
MR. ALCA
O que?! Quem sou?! Mr. Alca!!!
PIAUÍ
Quem?! Mr. Alcá?!
MR. ALCA
No! No! Mr. Alca! Representante da Águia Imperiá! Little
friends, ladies and gentleman, a apresentação de vocês até
que é interessante, mas isso aí não combina mais com o Brasil
moderno de hoje! Eu venho lhes trazer uma proposta
tentadora.
PIAUÍ E CEARÁ
Tâ! Tâ! Tâ! Tââânnnnn!

76
CAPITÃO
Mas que proposta é essa?!
MR. ALCA
Venho convidar vocês para participar da Área de Livre Comércio das Américas, sob
meu patrocínio. Nós, filhos do grande irmão do norte, decidimos oferecer uma grande
oportunidade para que vocês, irmãos pobres do continente, menos Cuba é claro,
enriqueçam em um curto espaço de tempo. Como? Decidimos acabar com as tarifas
alfandegárias e com todas as barreiras econômicas! Vamos criar um único bloco
comercial no continente! De modo que vocês poderão adquirir nossos sofisticados
produtos e nós compraremos as suas quinquilharias. Tudo isso a preço de banana. A
propósito, nós compraremos as suas bananas também! Mas tudo isso com uma
condição!
PIAUÍ E CEARÁ
Tâ!Tâ!Tâ!Tââânnnnnn!
CAPITÃO
Opa!
MR. ALCA
Trocar esse boi por essa formosa águia!
CAPITÃO
Não meu povo! Não podemos aceitar que acabem com o nosso boi! O nosso boi
brasileiro! E deixar que ele seja substituído por esse símbolo que vem do estrangeiro!
MR. ALCA
Deixe de besteira! Esse negócio de cultura nacional é coisa do passado. Cultura é
mercadoria! Com a Coca-cola, a Nike, e o hamburger vocês já começaram a avançar. O
boi tem é que se modernizar. O passo agora é privatizar.
CAPITÃO
Não! O boi bumbá é alimento culturá! Que é servido em todas as mesas do Brasil, para
pobres e ricos, índios, pretos e brancos, homens e mulheres, jovens e senis.
MR. ALCA
Por isso que o Brasil é atrasado! Tem como símbolo cultural um bicho como o boi !
Enquanto o boi caga e baba no chão a águia soberana e encantadora baila formosa pelos
ares conquistando o mundo.
CAPITÃO

77
O nome boi vem de longe, é nossa raiz popular! É tradição e costume do nosso Brasil
nação! Muito mais que sua águia que voa vale o nosso boi aqui no chão.
MR. ALCA
O que o senhor tá dizendo não é o que os meus olhos estão vendo. Come here! Come
here my captain! My captain, em particular, o senhor fica com a fama, vai pra TV e
lança CD! Enquanto eu gerencio o capital! O que acha?
CAPITÃO
Vamos resistir meu povo! Não de ouvido a esse estrangeiro. Não vamos permitir que
esse tal de mister acabe com o boi bumbá, pois se acabar com o boi como é que os
Estados vão ficar. Vamos repartir o boi! Vamos repartir o boi! (cantam o início da
música) Pra onde vai o boi do Ceará? Ceará do povo jangadeiro, de Patativa da Assaré,
então como é que é? Pra onde vai o boi do Ceará?
MR. ALCA
Ceará! Quá! quá! quá! Tio Patinhas, Pato Donald, melhor dizendo McDonald’s. Ceará,
televisão, vô dá uma empresa de avião!
CAPITÃO
Pra quê? Já temos a Embraer!
MR. ALCA
Qual é, a Embraer tá fálida, deixe de resistência, não queremos concorrência. E cala a
tua boca se não vou denunciar aquela história da vaca louca!
CAPITÃO
E pra onde vai mesmo o boi do Ceará?
MR. ALCA
Vai de avião pro Canadá!
CAPITÃO
Etâ que lasqueira, lá se foi o boi do Ceará! E agora me diga meu povo, pra onde vai o
boi do Piauí? Piauí do Parnaíba, do sítio arqueológico Raimundo Nonato e da Lenda do
Cabeça de Cuia. Então meu povo pra onde vai o boi do Piauí?
MR. ALCA
Piauí precisa de dólar do FMI. Pra construir hidrelétricapra solucionar o problema do
apagão e projeto de irrigação pra resolver a seca do sertão.
CAPITÃO
Isso é desculpa pra privatização. Pra vendê o velho Chico, o nosso rio da integração!

78
MR. ALCA
Vai dizê que isso não é bom?!
CAPITÃO
Pra onde é que vai o boi do Piauí?
MR. ALCA
Eu digo e vô repeti. Boi do Piauí vai pras garra do FMI!
CAPITÃO
Eta peste já foi dois. Mais esse num leva não porque esse é o boi do Maranhão. Terra de
Gonçalves Dias e do reggae brasileiro, aqui é que num vai mais entrá estrangeiro. E
então pra onde vai o boi do Maranhão?
MR. ALCA
Já que você falou em integração, taí a globalização, com a base de Alcântara vocês vão
ter o mais moderno sistema espacial, eis a grande vitória do capital!
CAPITÃO
Eis aí uma coisa ilegal, invadir a nossa zona espacial burlando a nossa soberania
nacional. Aí é entregação total!
MR. ALCA
Deixe de besteira homem que isso não faz mal, globalização, união, evolução, sem
precisa do poder sair das nossas mãos.
CAPITÃO
Vamos sair do Nordeste que o negócio tá bravo! Vamo vê pra onde vai o boi do Paraná.
Terra de erva mate, da congada das araucárias, e dos guerreiros do Contestado. Eu
aposto que esse boi não vai. Então meu povo, pra onde vai o boi do Paraná?
MR. ALCA
Paraná, a moda country que tá pegando por cá: botas, cintos, fivelas, chapéus de
cowboys. E uma base militar para ajudar o governador.
CAPITÃO
Vixe Maria que terror! Não estou acreditando! Essa base militar é pura roubalheira! Foz
do Iguaçu já estão levando! Então pra onde vai o boi do Paraná?
MR. ALCA
Vai pra OEA, pra garantir a segurança contra o terrorismo internacional. Foz do Iguaçu
é questão estratégica na defesa contra o mal!
CAPITÃO

79
É, vamo pro Centro-Oeste, pra onde vai o boi de Goiás? Goiás do arroz do pequi. Esse
não sai daqui!
MR. ALCA
Vamo aplica muito dinheiro na Chapada dos Veadeiros: turismo ecológico: rafting,
canoagem, skate e outras bobagens. E no nosso plano de expansão, já estamos perto da
capital federal, pra garantir nosso quintal.
CAPITÃO
Isto é sacanagem! Tá cheirando a ladroagem. E quem vai levar o boi do Goiás?!
MR. ALCA
Goiás vem pra nós que temos mais!
CAPITÃO
Já to ficando arretado! Vô te mostra um boi de cano! Boi do Maracatu, do forró de
Gonzagão! Terra de Virgulino Lampião!
MR. ALCA
Eletrifico o forró, e transformo em rock o frevo e Maracatu. Todo mundo vai dançar ao
som do Indigo Blue.
CAPITÃO
Ô xente, tá maluco, eu já tô ficando avexado, pra onde vai ficando o boi
pernanmbucano?!
MR. ALCA
Esse vem pra nós, pros norte-americanos!
CAPITÃO
Poxa! Tô ficando preocupado. Essa foi demais! Mais o boi de ferro tu não leva não, que
é o boi de Minas Gerais. Terra dos inconfidentes, Guimarães Rosa, muito ritmo e prosa.
Então como fica o boi das Minas Gerais?!
MR. ALCA
Fiat, Mercedes, Coca-Cola e a modernização das empresas que nós acabamos de
comprar: Vale do Rio Doce e Usiminas. E precisa de mais?! Esse boi já pertence as
multinacionais! Gerando emprego até demais!
CAPITÃO
Credicruz, folia de reis, vou rezá pra seu espanto! Vá logo me dizendo pra onde vai o
boi o Espírito Santo?!
MR. ALCA

80
Pra incurtá a transação, e aumentá a tecnologia de transgênicos na produção, vô já lhe
respondendo que o boi do Espírito Santo vai pra Monsanto!
CAPITÃO
Oxalá vixe maria, quem vai levá o boi da Bahia? Candomblé, Castro Alves, capoeira e
magia. Pra encerra me diga qual o destino do boi da Bahia?
MR. ALCA
Esse vai pra Ford e companhia. Segundo ACM, gerou milhões de empregos melhorando
a qualidade de vida do povão.
CAPITÃO
Ufa já tô cansado, mas tem um boi que tu não leva, é o boi de São Paulo. Mas esse é
coisa de espião, é melhor nem perguntar. Sobre o boi de São Paulo, qual destino terá?
MR. ALCA
Mais industrialização e uma agência da Cia pra acabar com a criminalidade, com a
baderna e com a sua indignação!
CAPITÃO
E o boi de São Paulo que tal?!
MR. ALCA
Já tá no bolso do Banco da Mundial!
CAPITÃO
Epa! Já se foram quase todos! Mas esse não vai não senhor! Porque esse é o boi do Rio
Grande do Sul, do Chimarrão, dos Pampas, do Érico Veríssimo, do FSM. Esse, cabra da
peste, tu não carrega nem a pau!
MR. ALCA
Deixe de asneira, o Rio Grande do Sul já tá na fronteira do comércio internacional. Vô
limpá daqui essa sujeira que se chama Fórum Social Mundial! Vô acaba com a utopia
cortando as suas asa!
CAPITÃO
Me diga que eu já tô ficando azul, pra onde vai o boi do Rio Grande do Sul?
MR. ALCA
Já estou diluindo no Mercosul!
CAPITÃO

81
Só resta um! Esse é de muita riqueza vc não carrega com certeza! É o boi do Amazonas,
Cobra Norato, boto cor de rosa e pedra preciosa. Esse tu não tosa. E o boi do Amazonas
como é que é?!
MR. ALCA
Amazonia é o meu filé! Pulmão do mundo! Vô protege a fauna e a flora da região e
fabricá remédio pra auto-sustentação.
CAPITÃO
Já levaram tudo! Esse boi é a salvação. Esse boi é viril, como é que fica meu povo, pra
onde vai o boi do Brasil?!
MR. ALCA
Vai pra puta que pariu!!!

82
Peça 2 - A bundade do patrão

Peça de agitação e propaganda construída coletivamente pelo Coletivo Peça pro Povo,
do MST/RS, em janeiro de 2005. A peça discute, por meio da comédia política, a
modernização das táticas de cooptação da classe empresarial contra a classe
trabalhadora, e a crise de atuação do sindicalismo urbano.

Personagens:
Teresa – que trabalha há 15 anos na
fábrica
Mariana - grávida
Aline - 17 anos
Sindicalista
Laura - a queridinha/amante do patrão
Guilherme - 18 anos, todo certinho,
está no seu primeiro emprego
Marco Aurélio - Patrão

83
PRÓLOGO
Elenco entra em fila, cantando a música por três vezes.
Senhores patrões, chefes supremos
Nada esperamos de nenhum.
Façamos, nós quem conquistamos
A terra-mãe, livre e comum.
A cada parada, há uma convocatória.
ALINE
Venham, venham todos! Mulheres, crianças, homens bonitos. Você! É tú mesmo! Tú do
olho “verde” Ou outras características que venham a ter os espectadores. A maior peça
de teatro do planeta dos humanos, do meu patrão, “A bundade do patrão”. Outro
personagem faz uma convocatória semelhante à da Aline. Depois de cantar a música,
todo o elenco se organiza para a apresentação. Um dos personagens vira-se para o
público e diz: A...

TODOS (virando a bunda para o público e rebolando


sincronizadamente)
...bundade do patrão.
CORO (de frente para o público, cantando em ritmo de rap)
Chegou a hora da verdade,
Não tem jeito não,
Chegou a hora de ver
o que quer o patrão! (2 ou 3X)
Cada personagem se destaca e canta sozinho uma parte do rap, que é repetido, depois,
por todos.
TERESA
Meu patrão é muito bão,
meu patrão é bão demais,
vou ficá do lado dele,
porque meu patrão é bão.
ALINE
Vocês pensam demais,
em puxá saco de patrão,
vocês precisam pensar
é na sua condição!
MARIANA
Meu patrão era tão bão,
meu patrão era tão bão,
mas agora que estou grávida
quer me dar a demissão!
GUILHERME
Esse é o meu primeiro emprego
eu quero assegurar,
porque desempregado
eu não vou ficar!
LAURA
Assim não saio não,
assim não saio não,
quero a minha parte
ou vou ferrar o meu patrão!
SINDICALISTA
Todos iguais no Sul e no Norte,
os patrões exploram os trabalhadores
até a morte!
Todos se sentam num banco e ficam apreensivos, esperando a chegada
do patrão.
CENA 1 - ANTES DA REUNIÃO
TERESA
O que será que o patrão quer? Alguma coisa, que não ia chamar todos por chamar.
GUILHERME
Será que é por causa da gravidez da Mariana?
ALINE
Não, não! Eu aposto que isso é coisa de gente daqui de dentro. Aponta para a Laura,
com ironia.
SINDICALISTA
O que será? Coisa boa não deve ser. Entra o patrão por trás deles. Tosse.
MARCO AURÉLIO
Que bom encontrá-los todos aqui. Porque o que tenho a lhes dizer é de suma
importância. A minha empresa está passando por um momento muito difícil e para
contornar a situação, precisaremos tomar medidas de contenção de despesas. Portanto, a
medida é a demissão, e vocês, como se conhecem muito bem, escolham entre si quem
deixará a minha empresa.
CORO (intercalando as vozes)
Eu disse que era demissão, eu falei, eu tinha certeza, taí.
MARCO AURÉLIO (quando já ia embora, dando meia-volta) Ah! Já ia me
esquecendo. Pra vocês verem como eu me preocupo com vocês, pensei em tudo. Para
não sobrecarregar os que ficarem com a carga de trabalho daqueles que vocês
demitirem, eu comprei uma máquina moderna, que substituirá a mão de obra de dois de
vocês.
CORO
Joga a bomba em nossas costas criando confusão, o patrão se fortalece com a nossa
divisão! Duas vezes pegam as lanças e se direcionam ao público, sussurrando Eu quero
ficar, eu tenho que ficar.
TERESA
Eu tenho que ficar, eu sou viúva, tenho quatro filhos pra sustentar, pago aluguel, eu
tenho 15 anos de fábrica, por isso eu tenho que ficar, o que vai ser de mim?!
ALINE
Eu tenho que ficar! Essa velha está aqui há 15 anos, o Guilherme chegou ontem, a
Mariana tá grávida, amanhã ou depois sai pra cuidar do filho, é até perigoso ficar no
emprego, eu tenho apenas 17 anos, eu tenho que ficar, o
que vai ser de mim?!
MARIANA
Eu tenho que ficar! Eu estou grávida, o que vai ser do meu filho, do aluguel, de tudo?
Quem está há mais tempo pode dar espaço pros outros, o que vai ser de mim?!
GUILHERME
Eu tenho que ficar! Esse é o meu primeiro emprego, nem currículo eu fiz ainda. O
sindicalista só quer colocar uns contra os outros, a Laura, essa oferecida, só quer ficar se
oferecendo para o patrão, o que vai ser de mim?!
LAURA
Eu tenho que ficar! Eu tenho mais currículo. Insinua-se com seios, pernas, corpo. Eu
tenho pós, esses nem sabem o que é uma pós, por isso eu tenho que ficar, o que vai ser
de mim?!
SINDICALISTA
Vamos nos unir! Esse patrão está querendo rachar a nossa força! Tem trabalho para
todos, precisamos procurar nossos direitos, vamos fazer uma GREVE!
CORO
Greve?!!!
Aline coloca um cartaz no pescoço do sindicalista escrito:
DESEMPREGADO e dá um pé na bunda do sindicalista, que quase cai na frente do
público. Todo o elenco sai em fila indiana, com as lanças na mão esquerda e o punho
cerrado, entoando o estrofe da Internacional.
CORO
Senhores patrões, chefes supremos
Nada esperamos de nenhum.
Façamos, nós quem conquistamos
A terra-mãe, livre e comum.

Peça 3 - Mulher da roça


Construção coletiva do Coletivo Peça pro Povo, do
MST/RS, em janeiro de 2005. Posteriormente essa peça foi
gravada como rádio-teatro, e durante a Marcha Nacional
pela Reforma Agrária (2005) foi encenada ao vivo como
rádio-teatro para os doze mil marchantes conectados com
rádios individuais na rádio Brasil em Movimento, situada no
caminhão de som principal que acompanhou a marcha.
Personagens:
Joana
Zé Vicente
Comadre Chica
Tio Sam
Coro
86 Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop
CENA 1 - AGRICULTURA FAMILIAR
CORO
Eu vou, eu vou
Pra roça agora eu vou
Eu vou, eu vou
Pra roça agora eu vou ...
Conversa na roça
JOANA
Que calor, né home?

É mesmo!
JOANA
Mas se chovesse daria feijão dos bão.

Pois é muié véia, eu tava até pensando numa tal de soja
transgênica, diz que é só plantá que ela resiste a tudo, deu
até na TV, numa propaganda dessa tal de Monsanto, parece
que produz muito mais e é mais barato, e nóis nem
precisemo ficar o dia todo na roça.
JOANA
Mas se nóis só plantemo soja, o que é que vamos dar de
comer pros nossos filhos, marido?

Deixa de ser boba. Nóis vamo ganhar mais dinheiro e menos
Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop 87
preocupação. Com esse clima do jeito que anda, esse sol de
rachar, nem vamo precisá mais se cozinhar nesse calor.
JOANA
Não sei não, Zé.
Saindo da roça e indo pra casa. Na cozinha.

Ô muié, me faça um chimarrão.
JOANA
Faz você, ué, não percebe que eu tô fazendo a bóia pra nóis?

Deus que me perdoe, não sei pra que casei, então!
JOANA
Pois eu casei pra ser tua companheira e não tua escrava.

Êta mulherzinha incomodativa, tá ficando muito folgada.
Ele mesmo serve o chimarrão.
CENA 2 - AGRONEGÓCIO
Entra Tio Sam. Ao fundo, som musical de violão. Ele fala em
português, com forte sotaque. Algumas palavras em inglês são
pronunciadas.
88 Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop
TIO SAM
Eu, I am, eu sou, the solution, a solução, de sus problems,
para seus problemas, para os problems de Brasil. Trago
comigo o agronegócio, a semente transgênica, a
monocultura, a tecnologia de ponta, e muito money no
bolso. E sabem para que tudo isso? Para melhor
desenvolvimento e progresso da desumanidade, ah, quer
dizer, da humanidade.
CORO
Plantá, plantá
Plantá soja pra mudá?
Plantando soja nóis vamo enricar (fazendo sinal negativo)
Ao mesmo tempo do coro, Tio Sam vai indicando ao Zé onde ele
deve plantar a semente, com o objetivo de encurralar o público. Joana
vai atrás do marido fazendo caretas. Será que é uma boa solução?
Pode ser, mas...
CORO
Tem comida em sua mesa
Agradeça ao estrangeiro
O Brasil exporta mais
Agradeça o estrangeiro
Sua lavoura produz mais
Agradeça ao estrangeiro
Agronegócio é coisa boa
Agradeça ao estrangeiro
Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop 89
CENA 3 - O CONFLITO
Joana está lixando as unhas e ouvindo músicas doidas em som
altíssimo. Ela dança assistindo TV. A comadre Chica bate na porta
e chama por Joana, que custa ouvir.
COMADRE CHICA
Comadre! Ô comadre! Plaft, plaft, plaft... Já gritando Comadre
Joana!
JOANA
Ô comadre, entre.
COMADRE CHICA
Tudo bom comadre? Quanto tempo!
JOANA
Eu até tava com saudade, Chica!
COMADRE CHICA
Comadre, o que aconteceu com a tua horta tão bonita e as
galinhas que corriam no terreiro?
JOANA
O Zé vendeu as galinhas e terminou com a horta para
plantar soja.
COMADRE CHICA
Mas comadre, tu permitiu? Tu não sabe que isso vai ser a
destruição dos pequenos agricultores, dos assentados?
JOANA
Na TV mostra que nós vamos todos enricar plantando soja
transgênica.
90 Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop
COMADRE CHICA
Isso não é verdade Joana, eles mostram isso para enganar
os agricultores. Vocês não têm participado das discussões
do Movimento?
JOANA
Não temos tempo.
COMADRE CHICA
Como assim? Tu sempre tiveste tempo de participar,
ajudava nas lutas, nos encontros, eu estou te achando muito
desanimada.
JOANA
É comadre, as coisas não estão fáceis. Achei que a vida ia
ficar melhor, mas não, me sinto uma inútil, sem nada para
fazer. Não estudo mais, não participo das lutas... Tô muito
desgostosa com essa minha vida.
COMADRE CHICA
Comadre Joana, vamos voltar pra luta, vamos pra marcha de
Brasília, pode levar as crianças, vai ter ciranda e escola itinerante.
JOANA
Será, comadre? Vou pensar melhor.
COMADRE CHICA
Então pense. Num outro dia eu volto para saber, até logo.
CORO
Pensar, pensar, pensar agora eu vou...
Zé Vicente chega, todo arrumadinho.

E aí muié, tudo pronto?
Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop 91
JOANA
Quase, meu marido.

Mas pelo jeito teve gente por aqui?
JOANA
Teve sim, foi a comadre Chica.

O que ela queria? Sim, porque aquela, quando aparece, não
presta.
JOANA
Ela veio me convidar pra marcha dos Sem Terra.
ZÉ (espantado)
Tá loquiando agora muié? Nem pense nisso. Nosso tempo
de marchá já se foi, a gente já tem terra e vive bem.
JOANA
Pior é que tô pensando em ir.

Ah! mas não vai mesmo. Tu já tem tudo o que tu queria: as
pintura, as panela, essas modernidade, até comprei duas
TV’s pra tu, o que que tu vai querer com marcha?
JOANA
Duas TV’s não, véio, um é o tal de microondas. Virando-se
para o público Ele sempre foi meio burrinho, desde mocinho,
coitado! Para ele E despois eu vou marchá sim, quero ajudar
na luta que ainda é nossa também.
92 Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop

Muié, tu tá me afrontando, eu já tô ficando vermeio de brabo,
meu bigode já tá suando de desgosto.
JOANA
Pois o problema é teu. Eu tô indo, porque em casa fico só
criando bunda e assistindo essas porcarias de TV, que só
deixam a gente iludida.

Mas se é esse o problema, essa tua bunda tá por demais de
boa.
JOANA
Zééé! Tu tome jeito, porque até já trocou nossa cama de
casal por uma de solteiro pra sobrar mais espaço pra
plantação da tal transgênica.

Muié, eu já te disse. Não vai e pronto!
JOANA
Tu tá é muito machista mesmo, tu tinha melhorado um
pouquiiiiiiiinho, agora tá desse jeito.
CORO
Será que ela vai?
Vai, vai, vai
Será que ela não vai?
Será que ela vai?
Vai, vai, vai
Será que ela não vai?

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