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©Susana Durão, Isadora Lins França, 2018

©Papéis Selvagens, 2018

Coordenação Coleção Stoner


Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez

Capa e diagramação
Martín Rodríguez

Imagem de Capa
María Elvira Díaz-Benítez

Revisão
Brena O'Dwyer

Conselho Editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina) 1 Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) 1 Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) J Jeffrey Cedefio (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) 1 Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) 1 Mônica Menezes (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

P418 Pensar com método/ Organizadoras Susana Durão, Isadora Lins


França - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018.
224 p.: 16 x 23 cm - (Stoner; v. 9)

ISBN 978-85-85349-08-0

1. Pesquisa - Metodologia. 1. Durão, Susana, 1970-. II. França,


lsadora Lins, 1978-. IL

CDD 001.42

Elaborado por Maurício An1orn1ino Júnior - CR86/2422

Este livro foi financiado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Hu1nanas (IFCH) da
Universidade Estadual de Ca1npinas (UNICAMP).

[2018]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gn1ail.com
papeisselvagens.con1
O ensino de história na era digital:
PARA CITAR: potencialidades e desafios 1
RODRIGUES, Aldair. O ensino de História na era digital: potencia-
Aldair Rodrigues
lidades e desafios. In: DURAO, Susana; FRANCA, Isadora (Orgs.).
Pensar com método. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018. pp. 145-175.
Introdução

Este ensaio tem por objetivo desenvolver uma reflexão


crítica sobre o ensino de História na era digital com ênfase nas
transformações que as tecnologias de informação e comunicação
(T!Cs) 2 provocam nos processos de produção e transmissão do
conhecimento no contexto contemporâneo. Serão destacadas as
dimensões sociais, culturais e políticas relacionadas à popularização
dos dispositivos tecnológicos digitais e as contradições que lhes são
subjacentes.
As reflexões que seguem estão ligadas à minha experiência
como, professor das disciplinas do departamento de História da
UNICAMP direcionadas para formação inicial (HH690 Estágio
Supervisionado em História - graduação) e continuada de
professores (ME204 - Produção de Material Didático e o Universo
Virtual - do programa de mestrado profissional em História) e aos
debates ocorridos por ocasião das semanas de ensino de História,
organizadas pelos nossos alunos em 2017 e em 2018.3 O intenso
intercâmbio com os estudantes de graduação e com os professores
do mestrado profissional foi fundamental neste exercício de pensar
sobre questões contemporâneas tangentes ao ensino de História.

1Sou grato aos amigos e colegas pelas leituras críticas e sugestões: Lucilene
Reginaldo, Vinícius Lustoza, Diego Pereira e Raquel Gomes.
z Sobre o processo de definição desta terminologia e uma extensa Jista de indicações
bibliográficas acerca do tema, consultar: Bertoldo & Mill, 2018.
3 A programação dos eventos pode ser encontrada nos seguintes websites:

https://www.ifch.unicamp.br/ifch/noticias-eventos/ graduacao /í-semana-ensino-


historia-unicamp (2017) e https://www.ifch.unicamp.br/ifch/noticias-eventos/
departamento-historia/ii-semana-ensino-historia-ensino-historia-quem-quem
(2018).
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Humanidades digitais os custos da sua substituição e gestão. 5 Como veremos neste ensaio,
o ensino de História é igualmente impactado pelo conjunto destas
Nas Ciências Humanas, a importância assumida pelas novas transformações tecnológicas.
formas de armazenamento, acesso, produção e representação
dos conteúdos e do conhecimento no meio digital tem sido objeto
de estudos no campo denominado Humanidades Digitais. O qual A interface e a fragmentação da atenção
abarca projetos que, de alguma forma, utilizam a tecnologia e, para
sua execução, demandam uma relação interdisciplinar com outras Fragmentação é uma das palavras-chaves que funcionam
áreas do conhecimento até então tendencialmente apartadas dos como ponto de ancoragem para analisarmos as transformações
profissionais das Humanidades, mormente a computação. 4 · recentes que atravessam nossas interações com a informação e o
Um dos principais eixos de definição das Humanidades conhecimento, impactando diretamente as práticas de aprendizagem.
Digitais prende-se ao desmantelamento de uma suposta neutralidade Tal dimensão pode ser compreendida em cinco níveis diferentes.
do suporte de registro da textualidade e da informação em geral. Do ponto de vista da materialidade, os dispositivos digitais
Segundo Burdick et ali, a longa estabilidade do impresso, que fizeram com que múltiplas facetas da vida social convergissem
remonta a meados do século XV (quando houve a invenção da prensa para uma mesma tela, seja do notebook, do computador pessoal,
de tipos móveis por johannes Gutenberg na Alemanha), impediu do tablet ou do celular. Neles temos acesso aos conteúdos da esfera
que profissionais da área das Ciências Humanas percebessem do entretenimento (músicas, filmes, seriados, vídeos em geral),
criticamente a materialidade de suas práticas envolvendo o processo acesso a notícias, serviços, correspondência pessoal (e-mail), redes
de inscrição da informação nos suportes. No contexto digital, as de relações e contatos (redes sociais), textos de várias ordens,
"transformações na materialidade da informação e nas tecnologias de ferramentas de trabalho e mecanismos de busca de informações,
mídias comunicacionais nos permitem perceber que os meios não são entre outras. Quando conectados à Internet, estes aparelhos
neutros, mas parte do processo de criação de significados" (Burdick, propiciam a constituição de uma subjetividade hiperconectada que
2012, p. 83). Neste cenário, as novas ferramentas, técnicas e mídias se define pelo acionamento de todas aquelas esferas. Ao mesmo
que permeiam o trabalho dos profissionais de Humanas passaram a tempo que permite a realização quase simultânea de múltiplas
demandar a inter-relação de saberes específicos, englobando, além tarefas por uma mesma pessoa, o desdobramento de tudo isso
da computação, áreas como design gráfico, estatística, engenharia de é a fragmentação da atenção humana. O mecanismo que melhor
dados etc. sintetiza esta dimensão é o funcionamento das notificações (sonoras
Dentro das Humanidades digitais, uma das dimensões que ou ícones na tela) de recebimento de novas mensagens ou interações
mais tocam a área de História diz respeito aos desafios enfrentados, de toda ordem, fazendo com que as atividades sejam cada vez menos
junto aos profissionais da arquivística, na digitalização de diversos
e amplos conjuntos documentais do passado até então preservados 5 Sobre esta questão, consultar: Innarelli, Humberto Celeste. 2015. Gestão da
em bibliotecas, arquivos e museus. Além da digitalização, todo preservação de documentos arquivísticos digitais: proposta de um modelo conceitua!.
o processo de preservação do patrimônio digital demanda São Paulo: ECA/USP. A respeito da definição de património digital e herança
cuidados específicos em razão da alta obsolescência dos aparatos digital, ver: Dodebei, Vera. 2008. "Património digital virtual: herança, documento
e informação". Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia,
tecnológicos, repositórios e mídias de armazenamento, servidores e realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasíl; Alker, Zoe
& Donaldson, Christopher. 2018. "Digital Heritage''. journal of Victorian Culture,
' Riande, 2018; Burdick, 2012; Alves, 2016; Cohen, 2008; Soares, F.; Rovai, M.; Volume 23, lssue 2, 27 April, pp. 220-221, https://doi.org/10.1093/jvcult/
Carvalho, B. & Porto Junior, F. G. R. 2017; Luchesi, 2012. Começa a emergir nos vcy019; UNESCO, 'Charter on the Preservation of Digital Heritage' (13 out 2003)
últimos anos uma abordagem crítica em relação ao tema. Por exemplo: Hui Kyong http: / /portal.unesco.org/ en/ ev.php-URL_ID=l 77 2 l&URL_DO=DO _TOPIC&URL_
Chun; Grusin; )agoda & Raley, 2016. SECTION=201.html.
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lineares em razão de tantas demandas e estímulos. No mundo propiciando a fragmentação da atenção do leitor.
laboral, em um contexto de retrocessos nos direitos trabalhistas, a Esta expenencia marcada pela fragmentação (ou
hiperconexão tem como efeito as extenuantes cargas de trabalho subjetividade fragmentada) tornou-se possível na medida em que a
remoto e as notificações incessantes de mensagens instantâneas e textualidade foi desterritorializada, desprendendo-se dos suportes
e-mails, esbatendo as linhas que separavam a vida profissional da materiais que a continha. 7 Historicamente, outras transformações
vida pessoal. marcantes na materialidade dos suportes da cultura escrita mudaram
Na busca de informações na web, a fragmentação ocorre as práticas de leitura e suas funções na relação com o conhecimento,
em um segundo nível que se prende ao fato de o principal motor como, por exemplo, a passagem da leitura do rolo de pergaminho
de busca de conteúdos (o Google) funcionar por palavras. A cada na horizontal para a leitura em códex na Idade Média. 8 Entretanto,
palavra ou frase inserida no buscador, o usuário depara-se com tais mudanças jamais aconteceram na escala proporcionada pelos
uma quantidade cada vez maior de links para páginas e arquivos recursos digitais que tornaram o contato com o texto menos refém
que contêm a informação desejada. Os critérios de hierarquização da gestualidade e do corpo humano.
dos resultados não são transparentes, a configuração de seu O conjunto de transformações e rupturas em análise não fica
algoritmo não é acessível ao público e fica concentrada nas mãos isolado do espaço escolar, penetra a realidade dos alunos e marca
de uma das maiores corporações do capitalismo moderno. junto profundamente suas práticas de aprendizagem e suas maneiras
com a informação, aparece a publicidade de serviços correlatos ao de se relacionar com conteúdos diversos. Portanto, como veremos
que foi buscado. no tópico seguinte, as ferramentas pedagógicas devem contemplar
Ao entrar em um dos arquivos ou páginas que resultaram estas dinâmicas para que os alunos se sintam identificados com elas
da busca, a fragmentação acontece ainda em um terceiro nível: há e parà que os professores desenvolvam estratégias para lidar com a
sempre a possibilidade de fazer uma busca por palavra dentro do aprendizagem no contexto da atenção fragmentada.
texto (via editar/localizar ou ctrl+ L; ctrl + F). Nestas práticas de
contato com a textualidade, ao mesmo tempo que se chega com
rapidez ao que se procura, perde-se a noção do todo. A obra que Nativos digitais e exclusão social
havia sido concebida para ser lida por completo é acessada de
forma fragmentada. Do ponto de vista geracional, uma extensa literatura
A textualidade digital carrega ainda uma outra vem debatendo os efeitos que as transformações relacionadas à
característica que rompe com a experiência da leitura no paradigma penetração das T!Cs na sociedade exercem na educação. De um
gutenbergiano: a hipertextualidade. Diferentemente do que era lado, temos um grande percentual de professores que se formaram
inscrito no papel, o texto digital comporta a sobreposição de vários e entraram nas redes de ensino quando as tecnologias digitais
outros textos em uma mesma tela, bastando clicar na palavra ainda não haviam se popularizado. De outro, temos os alunos que
que contém a porta para o hiperlink (ou que foi marcada com o nasceram na era digital e cresceram com os aparatos tecnológicos
recurso de hiperlink do editor de texto ou navegador web) para
se chegar a outro texto ou recurso multimídia. O texto que contém 7 Segundo Lévy, "Os dispositivos hipertextuais nas redes digitais desterritorializaram
estas sobreposições organizadas em hiperlinks é denominado o texto. Fizeram emergir um texto sem fronteiras nítidas, sem interioridade
hipertexto. 6 Sua leitura não foi pensada para seguir um curso linear, definível:' Lévy, Pierre. 1999. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34.
8 Chartier destaca, por exemplo, o impacto que a passagem da leitura dos rolos de
pergaminhos para os livros em códex, na Idade Média, representou para as práticas
6
Pierre Lévy defini que "Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo de leitura reflexiva, pois passou a permitr simultaneamente a anotação e a reflexão.
que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário." Lévy, Chartier, Reger. 1999. A aventura do Lívro do leitor ao navegador: conversações com
Pierre. 1999. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34. jean Lebrun. São Paulo: Editora da Unesp, Imprensa Oficial.
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em suas mãos e em múltiplas dimensões da sua experiência humana. virtual tendem a se tornarem mais tênues na subjetividade das
Dentre a oscilante diversidade terminológica cunhada para crianças e adolescentes nascidos a partir dos anos 1990 e 2000.
definir esta clivagem geracional, uma das que gozaram de maior Na v1sao de Prensky, as abordagens pedagógicas
alcance é a de Marc Prensky (2001), a qual propõe os conceitos de centradas na transmissão linear e vertical de conteúdos estariam
nativo digital e imigrante digital. A base da formulação é a analogia fadadas ao fracasso, pois os nativos digitais estudam de forma
entre o aprendizado sobre o funcionamento dos aparelhos digitais e hiperconectada, exercendo várias atividades ao mesmo tempo
o aprendizado de uma língua estrangeira, destacando seus impactos (música, entretenimento, chats com amigos etc.) e preferem lidar
na cognição. Para Prensky, assim como a aquisição da segunda língua com as informações e com o conhecimento de modo mais aleatório
desenvolve-se em uma área do cérebro diferente de onde ocorre a e menos linear, privilegiando o fluxo tentativa e erro; preferem ver
aprendizagem da primeira, nativos e imigrantes digitais processariam os gráficos e imagens antes do texto; preferem aprender de forma
a relação corpo-tecnologia de maneira diversa. Os imigrantes digitais lúdica, principalmente por meio de jogos. 10
manifestariam uma série de hábitos característicos de seu "sotaque", Se historicamente as tradições envolvendo a passagem do
como, por exemplo, a impressão de e-mails ou a necessidade de fazer acúmulo dos saberes e conhecimentos sempre foi ensinada aos mais
uma ligação para conferir se seu destinatário recebeu a mensagem jovens pelos mais velhos, na era digital o sentido se inverteria. Os
eletrônica que lhe foi enviada. Em síntese, o autor e seus seguidores mais jovens demonstrariam, agora, conhecer melhor os recursos e
argumentam que a cognição sofre profundas transformações no suportes digitais, podendo pesquisar conteúdos de seus interesses
contexto digital (Prensky, 2001).9 autonomamente. Trata-se, segundo Prensky, de uma ruptura sem
Robert Darton, refletindo sobre as relações entre precedentes na história da humanidade.
gestualidade, corpo, tecnologia e consciência da nossa presença ' Recentemente as teses do autor passaram a receber uma
no mundo, desenvolveu o conceito de sentido das pontas dos série de críticas. Em sua maioria destacam a forma monolítica como
dedos, que oferece subsídios para refletirmos sobre a mediação Prensky definiu toda uma geração, supostamente influenciado
que os celulares exercem na subjetividade dos alunos. Segundo por um determinismo tecnológico e até biológico em sua análise.
o autor, "Gerações mais velhas aprenderam a sintonizar girando O segmento social que se encaixaria na sua definição para nativos
botões em busca de canais; gerações mais jovens alternam canais digitais seria uma minoria de jovens privilegiados habitantes de
de imediato, apertando um botão. A diferença entre girar e alternar países localizados majoritariamente no hemisfério norte.U Outras
pode parecer trivial, mas deriva de reflexos localizados em áreas críticas, com base em relatórios sobre níveis de domínio técnico da
profundas da memória cinética:' Mais adiante, conclui que "Somos
guiados pelo mundo mediante uma disposição sensorial chamada de 10
Prensky, Marc. 2001. "Digital natives, digital immigrants". On the Horizon, NCB
Fingerspitzengefühl pelos alemães. Se você foi treinado a guiar uma University Press, vol. 9, n. 5, Oct., pp. 1-6. Outras abordagens críticas sobre a
caneta com seu indicador, observe a maneira como os jovens usam o definição "nativos digitais" podem ser encontradas em: Bayne, Sian & Ross, Jean.
polegar em seus celulares e perceberá como a tecnologia penetra o 2011. '"Digital Native' and 'Digital Immigrant' Discourses". ln: Land R. & Bayne
corpo e a alma de uma nova geração:'(Darton, 2010, p. 11). Ou seja, S. ( eds.), Digital Difference. Educational Futures Rethinking Theory and Practice,
vol 50. pp. 159-171. Flávia Vieira, em sua experiência de desenvolvimento de
os celulares são usados como se fossem uma verdadeira extensão do
um aplicativo voltado para alunos de escola públíca da periferia de Indaiatuba
corpo. Consequentemente, as barreiras entre mundo real e mundo discutirem o tema da cidadania, elaborou uma interessante reflexão sobre as
relações entre texto e imagem na percepção dos alunos que participaram do
9
Consultar também: Pescador, Cristina M. 2010. "Tecnologias digitais e ações de processo ·de construção do dispositivo. Cf. Vieira, Flávia. 2018. Ensino de História,
aprendizagem dos nativos digitais". V-CINFE ~ Congresso Internacional de Filosofia e construção de identidades políticas e práticas cidadãs: resistências e desafios na
Educação, UCS; Silva, Patricia Konder Llns e. 2014. "O mundo dos nativos digitais': contemporaneidade. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
Biblioteca viva. Texto parcial da palestra apresentada durante o 7!1 Seminário 11
Por exemplo: Koutropoulos, Apostolos. 2011. "Digital Natíves: Ten Years After".
Internacional de Bibliotecas Públicas e Comunitárias. fournal o/Online Learning and Teaching, Vol. 7, No. 4, December, pp. 525-538.
152 ! Pensar com método O ensino de história na era digital 1 153

informática, argumentavam que a geração considerada nativa digital PERCENTUAL DE DOMICiLIOS


apresentava dificuldade para resolver problemas que demandam COM ACESSO À INTERNET •
2016
conhecimento informático e o tempo que passavam na Internet seria
48.l
mais voltado ao entretenimento, redes sociais e chat.12 Em termos milhões
teóricos, segundo Koutropoulos (2011, p. 257), as práticas de
aprendizagem apresentadas por Prensky como novidades do meio 7),l
)U

digital já ocorriam no contexto analógico, como o método tentativa e


erro analisado por Piaget.
No caso brasileiro, a desigualdade social e regional torna '·'
insustentável qualquer discussão que aborde os nativos digitais de
forma homogênea ou como uma faixa etária monolítica. Há múltiplas
clivagens neste segmento populacional (nascido na era digital)
estruturadas por elementos como gênero, etnia, raça, classe social,
capital cultural dos pais, local de moradia, e, relacionado a tudo
isso, a qualidade do acesso à Internet e a capacidade de adquirir os Fonte: !BGE, PNAD Contínua, 2016.
dispositivos digitais.
A ubiquidade dos celulares nos domicílios forneceu um dos
Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de
principais canais de acesso à Internet: 94,6% das conexões foram
Domicílio)/IBGE publicados este ano indicam uma estagnação da
por este canal, enquanto o acesso via computador pessoal englobou
difusão dos computadores pessoais entre a população e um aumento
63,7% da amostra, e via tablet, 16,4%, conforme infográfico abaixo:
extraordinário na posse de aparelhos celulares nos domicílios,
estando presentes em 92,6% da amostra. Quanto à conexão à
Internet (adotando o generoso critério: você acessou a Internet
nos últimos três meses?), a mesma pesquisa constatou importantes ! ·UtilliJiç,ío <J,1 fot~rnel
, '. 64,7.,;, <h> p<'>J<>•i <kllhl'<",,.,,, "'"' !k ;d>do >m~"'"'" l~•ncl,
desigualdades. Regionalmente, Norte e Nordeste comparativamente
apresentam baixo nível de acesso e, considerando o critério renda,
nacionalmente, como era esperado, o acesso à Internet tende a
diminuir entre as classes sociais mais baixas. ':': Wc::.,,.u.as.... J~·J.>w~"I• rn~N-..J~id><f~~-Z5r.!h.1MH)>t>l~
MO<ª"'""' d~ ;,Jµl~ ~ôhtfü">~ M~rNJ\,

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!~l(l<(>el, N~"' r,,,~''"'J'" ~.,, '"""f'"~Y•il•"" f•O< J;J,.

Fonte: IBGE, PNAD, 2016.

Independente do acesso, temos que questionar a qualidade


da conexão. Embora a pesquisa não tenha verificado este aspecto,
não é difícil estimar que nas classes C, D e E as pessoas tendem a usar
aparelhos com menos memória e menor velocidade de processamento,
além de os planos de dados serem limitados por conta de seus custos.
São fatores que podem limitar a qualidade da navegação de acordo
12
com as fraturas que organizam a sociedade brasileira.
The fallacy of the digital natives: http:/ /www.ecdl.org/digitalnativefal!acy.
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Qualquer política púbiica voltada ao ensino que lance não pode ficar centrado apenas na figura do professor.
mão da produção de material para Internet (incluindo o Ensino Talvez uma das manifestações deste confronto entre um
à Distância-EAD), deve levar em conta tais fatores relacionados aparato educacional concebido no paradigma analógico e jovens
à exclusão e desigualdade digital. 13 Segundo Santos (2006), em nascidos na era digital sejam as idas e vindas nas medidas legais
uma realidade social como a brasileira, a desigualdade digital a respeito dos smartphones em sala de aula, tanto no Brasil como
pode aprofundar ainda mais a desigualdade social e a exclusão no mundo. Nas escolas da rede estadual de São Paulo, por exemplo,
dos serviços públicos mediados por tecnologia e aumento do após 10 anos da lei nº 12.730, de 11 de outubro de 2007,1 5 que
desemprego e exclusão social, na medida em que vivemos na proibia o uso do celular nas aulas, foi aprovada a lei nº 16.567, em
sociedade do conhecimento. Diversos autores salientam também 06 de novembro de 2017 revertendo a interdição: "Artigo 1º - Ficam
que projetos de inclusão digital que buscam atacar esta realidade os alunos proibidos de utilizar telefone celular nos estabelecimentos
seriam inócuos se investissem apenas no acesso a aparelhos, de ensino do Estado, durante o horário das aulas, ressalvado o uso
deixando de considerar a formação dos professores e o contexto para finalidades pedagógicas:' 16
social onde a escola e os alunos estão inseridos. 14
A despeito das diferentes clivagens, vistas anteriormente,
que podem estar submergidas no termo nativo digital, acreditamos Ferramentas pedagógicas e a nova estética da narrativa histórica
que o acesso à Internet e às novas formas de buscar conteúdos no
contexto digital estão ubiquamente presentes na vida das crianças Os recursos digitais oferecem novas formas e novas
e adolescentes que nasceram após o advento da Internet, mesmo possibilidades de apresentação das evidências históricas, exercendo
que em aparelhos de baixa qualidade. Configura-se uma tensão na impacto nas ferramentas pedagógicas ao facilitar a visualização
cultura escolar quando entram em contato, de um lado, professores tridimensional, interativa e animada de representações de processos
que se formaram na cultura analógica do paradigma gutenbergiano históricos, particularmente aqueles que ocorreram em largos arcos
e, de outro, alunos que, em graus variados, relacionam-se com as temporais e, por isso, demandam o manejo didático de grandes
informações a partir de outras lógicas. Esta tensão vai adquirir feições massas de informações.
muito específicas a depender da origem social dos estudantes, do grau A visualização do volume e fluxos do tráfico transatlântico
de penetração dos recursos digitais na escola e do grau de abertura, de escravos em dois minutos 17 exemplifica a escala destas
habilidades e familiaridade do professor com os aparatos digitais. Ou transformações e os cuidados metodológicos que devem ser adotados
seja, a tensão envolve todo o aparato educacional, portanto o debate na utilização de recursos desta natureza. O processamento de dados,
o ambiente colaborativo e o trabalho em equipes interdisciplinares
13
Sorj, Bernardo & Guedes, Luís Eduardo. 2005. "Exclusão digital: problemas que as tecnologias de comunicação digital proporcionaram
conceituais, evidências empíricas e políticas públicas". Novos estudos - CEBRAP, viabilizou a formação de um grande consórcio entre universidades e
São Paulo, n. 72, pp. 101-117, jul.; Grossi, Márcia Gorett Ribeiro; Costa, José Wilson pesquisadores de vários continentes com o objetivo de reunir e tratar
da & Santos, Ademir José dos. 2013. "A exclusão digital: o reflexo da desigualdade o imenso conjunto de informações dispersas sobre as embarcações
social no Brasil". Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, SP, v. 24, n.
negreiras. Constitui-se assim o mais importante e completo banco
2, pp. 68-85, mai./ago.; Oliveira, Maria Lívia Pacheco de & Pinho Neto, Júlio Afonso
Sá de. 2016. "Brecha digital e o acesso à informação: projetos de inclusão digital".
Humanidades Digitales: Construcciones locales en contextos globales. Asociación
Argentina de Humanidades Digitales, Buenos Aires; Santos, Edvalter Souza. 2006. "https://www.al.sp.gov.br/norma/?id=74333
16 https://www.al.sp.gov.br /repositorio/legislacao/lei/2017 /lei-16567-
Desigualdade social e inclusão dígital no Brasil. Tese de Doutorado, Universidade
Federal do Rio de Janeiro. 06.11.2017.html
14
Por exemplo: Kenski, Vani Moreira. 2007. Educação e tecnologias: O novo ritmo da " http://www.slate.com/articles/life/the_history_of_american_slavery /2015 /06 /
informação. Campinas: Papirus. animated_interactive_of_the_histo:ry_of_the_atlantic_slave_trade.html
156 1 Pensar com método O ensino de história na era digital 1 157

de dados sobre o tráfico transatlântico de escravos: slave trade


database. 18 A partir das informações sobre cerca de 20.000 viagens,
os editores do portal gratuito slate.com produziram uma animação
de dois minutos em que cada viagem é representada por um ponto,
o qual varia em tamanho de acordo com o número de pessoas
escravizadas a bordo. Cruzando com informações cronológicas, o
vídeo exibe ainda o local de partida no litoral africano e o porto de
chegada nas Américas.

Fonte: Slate. 20

Ao fundo da tela, em um quadro, pode ser observada a


inserção do ano da viagem na curva geral do volume do tráfico ao
longo do tempo em um gráfico animado. Este projeto bem-sucedido,
desenvolvido a partir dos dados da base slavevoyages.org, testemunha
o impacto das tecnologias digitais na área de História e seu potencial
a partir do trabalho em equipe interdisciplinar de programadores,
designers gráficos, estatísticos, jornalistas e historiadores.
O uso didático do vídeo, no entanto, demanda uma série
de cuidados metodológicos. Em suas múltiplas facetas, na mesma
Fonte: Slate. 19 medida em que o contexto digital proporciona a constituição de uma
subjetividade fragmentada, a representação da informação histórica
Ao acionar o botão "pause" e clicar no ponto que se em tela, sobretudo aquela de natureza audiovisual, poderia resultar
encontrava em movimento, o usuário obtém informações sobre o em uma interpretação linear do tempo histórico e de processos de
país que detinha a embarcação, um breve histórico de suas viagens grande complexidade. O risco é a reconstituição de uma história
transatlânticas e o link que remete à sua ficha no banco de dados, linear e evolutiva dos séculos de tráfico negreiro, invisibilizando os
a qual fornece ainda a lista das fontes primárias que subsidiam a múltiplos contextos em que se desenvolveu, seus diferentes sujeitos
informação. e as realidades interiorianas às quais esteve articulado nos dois lados
do Atlântico, entre outros aspectos. Portanto, o recurso digital não
dispensa as práticas que envolvem todo exercício de análise histórica
em sala de aula: cruzamento com informações textuais e material
didático e paradidático, além da contextualização adequada que
18
deve ser desenvolvida pelo professor. Assim, o uso do vídeo atinge
O site encontra-se disponível em português, incluindo seções com recursos e
materiais educativos: http:/ /www.slavevoyages.org/
20 http:/ /www.slate.com/ articles /life/the_history_of_american_slavery /2015 /06 /
" http:/ /www.slate.com/articles/lífe/the_history_of_american_slavery/2015 /06 /
animatedjnteractive_of_the_history_of_the_atlantic_slave_trade.html animated_interactive_of_the_history_of_the_atlantic_slave_trade.html
158 ! Pensar com método
O ensino de história na era digital ! 159

•"••••• ••u-••-• 1•-·-• >•1>-•••-• "" ·-• U ~--~~· "~<>"•••-•••-• .. - ,.,,_ 1•••b•"-" ,.,..,
seu potencial quando inserido dentro de um conjunto mais amplo dais da imprensa rnrloca."" Mas - durma-se com um ham!hu destei; - cor-
dõt•s, ~mmbistM ou foliõl's podiam ~L'r m11ítas t'Uis:i.;; ao nil'S!llO tempo. l'ur
de estratégias pedagógicas desenvolvidas pelo docente da disciplina. isso, a !l>guas de disll'tncia da africmlid:1dt• atrihuicfa aos seus tcmí\'cis tam-
Outro efeito que pode demonstrar os impactos dos bores e longe da imagem {iuc ccn.';1 a origem do samh::i, o Prima\'l'nl cant:wa
nas mas um ~IT~l!Q.!JiJ~~t11 .. A viúva alegre-, sucesso dl' fronz U>h!1r cm .i' íl
dispositivos tecnológicos digitais no ofício do historiador são as r906, d\•vid;nncnk• adaptado pttnt o p;1ssl'io da "pancadaria":"'
mudanças na própria estética da narrativa histórica. A tela permite a
construção de uma escrita que combina simultaneamente os recursos
textuais alfabéticos, a imagem, o vídeo e o áudio. Na narrativa digital,
o lugar do sujeito leitor é reposicionado, pois a dinâmica da leitura
está mais centrada na sua iniciativa, na medida em que é menos
linear e mais interativa. 21 A exposição às várias camadas do texto está
atrelada ao modo como escolhe acionar ou não os hiperlinks, ícones
e botões que abrem imagens ou ligam sons atrelados ao conteúdo Cunha, Maria Clementina Pereira. 2016. Não tá sopa: sambas e sambistas no Rio de
sobre o qual vem lendo. Chartier (1999) e Levy (1999) destacam janeiro, 1890-1930. Campinas: Editora da UNICAMP, p. 52.
que historicamente as práticas de leitura sempre foram subjetivas,
relacionais e dependiam do repertório cultural e social do leitor, No fluxo da leitura interativa, o sujeito leitor tem a
a inflexão está na escala em que isto ocorre no meio digital, dadas possibilidade de deslocar o seu foco visual para a sensibilidade
todas as possibilidades de exploração do conteúdo na tela. auditiva e ouvir a música referida pelo texto; voltar e deslocar a
Podemos citar a coleção Históri@ Illustrada, 22 da Editora da atenção para fotografias ou vídeos, acionando a sensibilidade visual
UNICAMP, como exemplo de um projeto editorial que busca tornar e auditiva; e assim sucessivamente. As várias camadas do texto são
a produção historiográfica esteticamente mais atrativa ao leitor acionadas a partir dos interesses que movem a leitura.
inserido no contexto digital. Em seu primeiro título, Não Tá Sopa, Por conta dos limites deste ensaio, restringimo-nos a
Clementina Pereira (2016) analisa a História do samba no Rio de explorar os exemplos acima. Porém, é possível encontrar na Internet
janeiro recorrendo à justaposição de texto, 180 imagens de sambistas uma quantidade crescente de outras ferramentas digitais que podem
e locais onde transitavam e tocavam e, de forma inovadora, cerca de auxiliar o professor de História. É o caso do projeto Detetives do
40 fonogramas áudios das músicas. Passado, da Escola de História da Universidade Federal. do Estado
do Rio de janeiro (UNIRlO), coordenado por Anita Correia e Keila
Grinberg, em que é possível trabalhar o tema da escravidão no
século XIX por meio de jogos digitais organizados a partir de casos
retirados de fontes primárias: http:/ /www.numemunirio.org/
detetivesdopassado /.

Fake history, "revisionismo" conservador e ataques ao professor


de História
21
Sobre narrativa digital, consultar: Andrade, Rafael Reis de. 2018. Hístória, Em seus anos m1c1a1s, a disseminação da Internet via
Narrativa e Netflix: a construção simbólica na era digital. Dissertação de Mestrado, aparelhos de celular com tecnologia smartphone sustentou uma
Universidade Estadual de Campinas.
22
leitura eufórica de que a democracia estaria em expansão (Hindman,
Sobre a coleção, consultar o link: https://www.cecult.ifch.unicamp.br/ 2009). Os grandes órgãos da mídia corporativa perdiam o monopólio
publicacoes/ colecao-histori-illustrada
160 ! Pensar com método O ensino de história na era digital ! 161

da circulação das notícias e as novas formas de conexão interpessoal, As disputas e distorções de narrativas sobre o passado (ou
sobretudo as redes sociais, possibilitavam novas dinâmicas de fake history) podem ser enquadradas nesse conjunto mais amplo de
mobilização social e ação política. O ápice desta percepção seria a reveses e contradições decorrentes das rupturas proporcionadas
primavera árabe transcorrida entre finais de 2010 e 2011, quando pelas tecnologias digitais. As TICs erodiram as fronteiras que
ditaduras foram derrubadas por protestos de massa em diversos definiam os espaços formais e informais de aprendizagem e de
países do Oriente médio (Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Iêmen e Barein). acesso a conteúdos tocantes a temas clássicos dos currículos
Nos anos seguintes, uma série de acontecimentos abalaram a leitura escolares (Trindade, 2018). Em uma escala sem precedentes, a
que se fazia da popularização da Internet móvel. Entre eles, podemos Internet permitiu a busca e replicação de informações de maneira
destacar a recomposição de forças autoritárias no Oriente Médio (e cada vez menos mediada pelos aparatos institucionais do campo
o prolongamento da crise na Síria); a eclosão dos movimentos de da educação (bibliotecas, escolas, centros de estudo etc.) ou pelos
massa convocados pela Internet na Turquia, em 2013 e a ascensão professores.
do autoritarismo no país; e, por fim, o papel das fake news, teorias Para verificar como esse fenómeno no mundo digital
conspiratórias e uso abusivo de big data (escândalo da Cambridge relaciona-se a uma crise do ensino de História, elegemos a emergência
Analytica) na campanha eleitoral Donald Trump e na ascensão de do discurso "revisionista" sobre a escravidão e o tráfico negreiro.
movimentos extremistas na Europa. A divulgação indiscriminada Além de coincidir com a difusão da Internet, a popularização de
de notícias falsas (sobretudo via Facebook, WhatsApp e Instagram) memes e posts sobre os dois temas ocorreu no contexto dos debates
através da manipulação de imagens, imitações de layouts de sites acerca das políticas públicas de combate ao racismo estrutural
de notícias mainstream, e vídeos evidenciam os tensionamentos que começaram a ser formuladas em meados da década de 1990
trazidos pelas mídias digitais para a experiência democrática e, sobretudo, nos anos 2000. Ainda que tímidas, o poder público
contemporânea. proéurava responder a pautas históricas dos movimentos negros.
A polêmica, a controvérsia e a vertiginosa atração pela Dentre elas, podemos elencar as ações afirmativas (cotas étnico-
novidade são alguns dos principais combustíveis que movem a raciais) para acesso às universidades e a lei 10.639, que estabeleceu
viralização de conteúdos no ambiente das redes sociais, onde em 2003 a obrigatoriedade do ensino de História da África e da
o usuário ocupa uma posição central. Seu engajamento com os cultura afro-brasileira nas escolas.
conteúdos publicados em posts, memes, links para vídeos e matérias
é o que propaga o material via compartilhamento ou outras formas
de reação. Além disso, robôs e perfis falsos podem ser utilizados
para acelerar a viralização dos conteúdos.
Tais dinâmicas estão inseridas em um modelo de negócios
bilionário em que as principais receitas são provenientes das verbas
de publicidade segmentada, tornada possível com o processamento
dos dados que constantemente deixamos nos nossos dispositivos
digitais. Os algoritmos são configurados para mostrar nossas
preferências ideológicas, níveis de renda, hábitos de consumo e
modos de vida. Assim, o acesso à informação, que deveria ser um
direito relacionado ao exercício da cidadania, vai paulatinamente
se estruturando em função de um consumidor, empoderando um Manifestação durante a reunião da SBPC em Salvador, 1981
cidadão consumidor. Foto: juca Martins; Acervo: UNICAMP/ AEL [Arquivo Edgard Leuenroth),
Fundo Voz da Unidade
162 1 Pensar com método O ensino de história na era digital 1 163

Esse conjunto de mudanças desestabilizou a legitimidade e a para importância de Zumbi (e a posse de escravos por africanos)"
naturalização das disparidades étnico-raciais brasileiras, provocando e do dia da consciência negra e cotas étnico-raciais. Costumam
no debate público importantes fraturas nas teses da democracia postar memes, vídeos e textos a respeito da escravidão no Brasil
racial, até então a principal matriz ideológica das leituras sobre as e sobre a história da África, sobretudo o escravismo. Partem de
relações raciais no país. Como argumentos e evidências históricas uma racialização de sua história, e em um nível mais profundo,
foram acionadas na agenda de reivindicações e nas justificativas procuram deslocar a atenção de problemas do racismo estrutural
legitimadoras das políticas públicas, a reação contrária recorreu para o continente, em uma operação na qual a ideia de raça passa
também a discursos históricos para atacar o reconhecimento que o a ser o principal eixo organizador da sua imagem. Não há espaço
Estado começou a promover da existência do racismo no país e seus para a história das múltiplas sociedades existentes na África em
efeitos na cidadania da população negra. sua complexidade, com formas de hierarquização social, conflitos,
Apesar de multiforme e difuso, podemos localizar a matriz diferenças, estratégias de domínio pessoal, ou seja, elementos
das ideias presentes nos discursos revisionistas das mídias sociais constitutivos de qualquer experiência humana.
em autores best sel/ers, como o livro Guia politicamente incorreto da Lucilene Reginaldo (2017) formulou um exemplo que
História do Brasil, 2009, de Leandro Narloch e o livro O mínimo que pode ilustrar com muita eloquência o contraste estabe'.ecido
você precisa saber para não ser um idiota, 2013, de Olavo de Carvalho. nestes discursos entre a história da Europa e a história da Africa.
Ambos incorporaram em suas obras um suposto "revisionismo No caso específico da escravidão, formula-se uma expectativa
histórico" versando sobre temas como tráfico e escravidão (sobretudo de que os africanos seriam um único povo (o povo negro/os
o envolvimento das elites africanas no comércio transatlântico), negros) que falhou moralmente em estabelecer uma solidariedade
Quilombo dos Palmares e a construção social da memória de naturál entre si (afinal, seriam todos de uma mesma raça, naquela
Zumbi como herói. Se na historiografia as revisões sobre consensos linha de pensamento), traíam-se e se escravizavam. "Os negros
interpretativos bem estabelecidos emergem de agendas de se escravizaram"; "os negros vendiam os negros;', uma linha
pesquisa que se apoiam em evidências empíricas, cuidados teóricos interpretativa em que a história começa e termina na Africa, tirando
metodológicos lastreados em ampla bibliografia e em conexão com o foco da desigualdade social e étnico-racial brutal no Brasil de
o contexto histórico onde o historiador está inserido, o revisionismo hoje. jamais se pergunta quais eram os sujeitos escravizadores e os
populista das redes sociais é seletivo, interessado, ideologicamente sujeitos escravizados. Tornam-se apenas negros.
simplificador, produzido e consumido de acordo com a propensão Em um exerc1c10 de estabelecimento de paralelos
ideológica do seu produtor e do seu leitor, constituindo uma espécie contrastantes, a professora nos lembra que nunca abordamos a
de história à la carte. história do Nazismo, por exemplo, a partir de uma chave explicativa
A intensidade adquirida pelo fenómeno nas mídias digitais
e na sociedade brasileira impõe uma série de desafios ao professor 23 Aqui igualmente a ideia de raça é central. Essencializa-se pessoas de origem
de História no contexto do acirramento da polarização política e africana, projetando a ideia de que deveria haver uma solidariedade "natural" entre
ideológica que remonta ao contexto pós-junho de 2013 e, sobretudo, elas na escravidão. Além deste fator, é importante lembrar que estes temas não são
após a crise política e económica que se aprofundou nos anos tabus na historiografia" profissional. Desde a década de 1980 abundam trabalhos
que analisam a posse de cativos por indivíduos libertos, porém são situados no
de 2014, 2015, 2016 e 2017. Entre as estratégias adotadas na quadro mais amplo do funcionamento da escravidão. Trata-se sempre, como alerta
disputa pela hegemonia política, principalmente no contexto do Ricardo Pirola, de uma minoria dos proprietários quando se considera os cerca de
impeachment de Dilma Rousseff, grupos como Movimento Brasil 5,5 milhões de africanos trazidos para o Brasil. Já no discurso revisionista populista
Livre (MBL) mobilizaram-se na Internet em torno de uma série de esse dado ganha um peso desproporcional na explicação da escravidão, deslocando
temas que consideravam ser da agenda da esquerda, com destaque o foco de outros fatores. Pirola, Ricardo. 2017. "Cotas raciais: disputas políticas e
apropriações do passado"". Calourada - Gradução em História 2017. IFCH-UNICAMP.
22 mar.
164 ! Pensar com método O ensino de história na era digital l 165

centrada na ideia racializada: de que "os brancos estavam matando ser situadas no plano do desenvolvimento de material didático
os brancos" na época da Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, e paradidático, ainda em volume incipiente, o que aponta para a
a história europeia é recuperada em sua complexidade, com suas necessidade de os departamentos de História se engajarem em
dimensões econômicas, políticas, sociais, culturais, ideológicas projetos voltados para História da África e da cultura afro-brasileira.
etc., que vão explicar e inscrever a ascensão do Nazismo dentro Os recursos digitais podem trazer muitas contribuições para sanar
de um processo histórico conflituoso, onde sabemos quais eram tais lacunas.
os diferentes agentes históricos e suas posições nas relações Por fim, é fundamental também discutir a centralidade da
assimétricas de poder (Reginaldo, 2017). É a História que impede escravidão na formação histórica do país e o acúmulo histórico das
a racialização como visão explicativa deste passado. Exercício desigualdades sociais e raciais que inviabilJza a cidadania pi.ena da
semelhante deveria ser adotado para nossa aproximação sem tabus população afrodescendente no presente. E como se a h1stona de
com a história da escravidão na África no contexto mais amplo das um crime contra a humanidade que esteve no centro de formação
formas de subordinação pessoal nas sociedades linhageiras; as histórica brasileira fosse legitimada no presente com base no fato
complexas hierarquias sociais; 24 e suas transformações a partir da de que alguns grupos nas sociedades africanas se beneficiaram da
pressão da demanda atlântica, durante a vigência do tráfico negreiro. escravização e comercialização de milhares de seres humanos para
Ou seja, como toda sociedade complexa, as múltiplas e heterogêneas as Américas. Urge ainda, nestas discussões, evitar a armadilha da
organizações sociais africanas possuem dinâmicas de conflitos, tese da "dívida histórica", que poderia restringir o debate ao passado
grupos dominantes e grupos dominados; aliados e inimigos; insiders (do Brasil e da África) e à busca de "culpados". A dívida é com o
e outsiders. Qual era o lugar da escravidão nestas sociedades? Quem presente, com cidadãos brasileiros. ,
poderia ser escravizado? Como a demanda europeia intensifica e " Além de temas relacionados à escravidão e à Africa, outros
transforma estas dinâmicas? tópicos clássicos dos currículos escolares têm sido ideologicamente
A lei 10.639 (2003),25 que tornou obrigatório o ensino de apropriados de forma difusa pela retórica revisionista de matriz
História da África e da cultura afro-brasileira, ainda é relativamente conservadora que se difunde no meio digital. 26 Por exemplo no caso
recente, o que dificulta abordagens que partam das questões acima do Nazismo, a retórica inflamada das redes sociais propaga que o
.propostas. A grande maioria dos professores em sala de aula formou- regime era de esquerda, sobretudo por conta da palavra "socialista"
se em uma época em que História da África não fazia parte dos no título do partido de Hitler: Partido Nacional-Socialista dos
currículos dos departamentos de História. Outras barreiras podem Trabalhadores Alemães. Apesar de bastante disforme, é possível
localizar na obra de Olavo de Carvalho o esforço interpretativo
24 Sobre escravidão na África, consultar: Lovejoy, Paul E. 2002. A escravidão na
para, de alguma forma, deslocar o Nazismo do espectro ideológico
da direita (no caso, extrema direita) e aproximá-lo da esquerda
África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
Thornton, John. 2004. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico (socialista), embora o autor não afirme categoricamente o que
1400-1800. Rio de janeiro: Elsevier; Meillassoux, Claude. 1995. Antropologia da passou a circular nas mídias sociais. Em artigo publicado em O Globo
escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Thorton, John. e reproduzido em seu livro O mínimo que você precisa saber para ser
1983. The Kingdom of Kongo: civil war and transition, 1641~1718. Madison, Wis.:
um idiota, o autor afirma:
University ofWisconsin Press; StellweH, Sean. 2014. Slavery and slaving in African
History. Cambridge: University Press; Gareth, Austin. 2017. "Slavery in Africa". ln: A fraude adquire ainda maior potencial destrutivo quando
Eltis, David; Engerrnen, Stanley; Drescher, Seymour & Richardson, David [eds.), The reforçada pelo pressuposto absolutamente mentiroso, conforme
Cambridge World History ofS/avery. Cambridge University Press, vol. 4.
25
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Sobre uma
avaliação da aplicação da lei, ver: Janz, Caroline & Cerri, Luis Fernando. 2018. "Treze 26 No caso da ditadura civil~militar, consultar: Genari, Elton Rigotto. 2018.
anos após a lei n 9 10.639/03: o que os estudantes sabem sobre a história da África?". Revisionismo, memória e ensino de história da ditadura cívil~militar. Dissertação de
Afro-Ásia, 57, pp. 187-211. Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
166 1 Pensar com método O ensino de história na era digital 1 167

já demonstrei em artigos anteriores que cataloga na direita cotidiano em geral. Por meio destes circuitos, o ambiente digital
o nazismo alemão, uma ideologia revolucionária, socialista, propicia a configuração de uma crise profunda do ensino de H~stória,
estatizante, materialista e anticristã como o marxismo, e que só desestabilizando o lugar do professor na sala de aula e os canones
se distingue dele por associar sistematicamente o ódio ao burguês interpretativos que informaram a constituição do currículo com o
com o ódio ao judeu. 27 qual trabalha. Ao se deparar com as teses "revisionistas" trazidas
pelos alunos, confrontação direta ou censura P?dem ser abordage~s
A propagação nas redes sociais das teses anônimas 28 de pouco frutíferas. Talvez o melhor caminho .seia a pr_?ble.matizaça?,
que o Nazismo era de esquerda levou grandes portais de notícias dos elementos subjacentes ao teor dos discursos revisromstas ,
a fazer matérias abordando a questão, o que sempre acaba em procurando entender os lugares por onde se difundem e quais os
discussões acaloradas nas seções de comentários nas redes sociais interesses que podem estar por trás da sua disseminação. Que papel
ou no próprio site.29 A controvérsia ganhou tamanha proporção que cumprem na polarização política e ideológica?
a página da embaixada da Alemanha no Brasil posicionou-se sobre o Acreditamos que a crise nos referenciais da História que
assunto, afirmando que o nazismo era de extrema direita, o que não eclodiu na era digital é aprofundada atualmente. em razão de o
foi suficiente para convencer uma série de perfis que questionaram estatuto do professor vir sendo deslegitimado por conta .da ação
o vídeo na seção de comentários da página. 30 Em matéria recente política de movimentos liderados pelo Escola sem Partido. Por
apoiada em várias obras de referência historiográfica, o veículo meio de vídeos e posts nas redes sociais, o movimento projeta
Deustche Welle procurou mapear o circuito do discurso e suas um estereótipo em torno do professor de História que o coloca
formas de propagação, concluindo que este é um falso debate que sob suspeição ao caracterizá-lo como "esquerdista", "comunista",
só faz sentido no contexto de acirramento da polarização política "doutrinador", "globalista", entre outros termos. Por trás de um
brasileira. Na Alemanha esta não é uma questão, ali há consenso de discurso legitimador neutro, o movimento defende uma agenda
que o Nazismo foi um regime de extrema direita. 31 ideológica conservadora e cerceadora da liberdade de cáted.r~,
Embora à primeira vista os "revisionismos", as apropriações da pluralidade de matrizes de pensamento, ataca qualquer vies
e as disputas ideológicas de narrativas da História soem absurdos considerado progressista nos costumes e das liberdades individuais
e causem espanto, eles não ficam restritos às mídias digitais e advoga uma pedagogia conservadora. Em síntese, a ofensiva
(Facebook, YouTube, Whatsapp, etc.). Penetram o senso comum, promove a criminalização ideológica do professor, do material
chegando aos alunos que a eles estão expostos na Internet e no didático e das práticas de ensino. 32
O professor de História, como qualquer outro profissional,
7
2 Olavo de Carvalho. 2001. "Extrema direita e extrema burrice", O Globo, 8 dez. não é infalível ou inquestionável. Se mães e pais acreditam que pode
http://www.olavodecarvalho.org/extrema-direita-e-extrema-burrice/.
haver casos de abusos de poder institucional ou pedagógico nas
28
O ambiente digital permiti a edição e replicação ( ctrl + c/ ctrl + v) rápida de aulas, esta questão deve ser debatida sem tabus, mas por intermédio
conteúdos, tensionando o paradigma contemporâneo em torno das ideias de autoria.
2
de práticas democráticas, a começar pelos fóruns da própria escol~.
9 Costa, Camilla. 2017. "O nazismo era um movimento de esquerda ou de direita?",
jamais deve ser seguido o caminho da censura e do cerceamento a
BBC Brasil, 7. https:/ /www.bbc.com/portuguese/salasocial-39809236; 2018.
"Grupos de direita no Brasil contestam embaixada alemã sobre nazismo'', Folha de
São Paulo, 16 set.. Disponível em: https:/ /wwwl.folha.uol.com.br./poder/2018/09/ n 2016. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (o.rg.), A íde'}logia do
grupos-de-direita-no-brasil-contestam-embaixada-alema-sobre-nazismo.
movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. Sao Paulo:
shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha
Ação Éducativa. Disponível em: http://acaoeducativa.org.br/wp-content/
30
https: / /twitter.com/Alemanha_BR/ status/10373032 79724781568 uploads/2017 /05/escolasempartido_miolo.pdf; Frigotto. Gaudêncio (org.J: 2017.
31 Brasileiros criam debate que não existe na Alemanha. Deutsche Welle, 17 de Escola "sem" partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade bras1le1ra. Rto
setembro de 2018. Disponível em: https:/ /www.dw.com/pt-br/brasileiros-criam- de janeiro: UERJ, LPP; Professores da Faculdade de Educação da USP comentam o
debate-que-n%C3%A3o-existe-na-alemanha/a-45531446 projeto Escola sem Partido: http:/ /www4.fe.usp.br/escola-sem-parttdo.
168 ! Pensar com método O ensino de história na era digital 1 169

liberdade de cátedra, como são as campanhas lideradas por grupos Considerações finais: o lugar do professor no paradigma do
conservadores que dão sustentação ao Escola sem Partido, que excesso
moralmente se legitima projetando uma neutralidade ao mesmo
tempo que adota práticas persecutórias, realizando blitz, encorajando O acúmulo das reflexões no campo das ferramentas e práticas
o denuncismo, silenciamento e exposição sensacionalista de pedagógicas, em geral, e do ensino de História, em particular, nas
professores nas redes sociais. últimas décadas convergiu para o consenso acerca da necessidade
Os fenómenos analisados derivam de uma crise profunda de superação de abordagens centradas na sucessão linear de
do ensino de História que se configurou na confluência do contexto eventos na linha do tempo e explicados por relações de causa e
digital com a polarização político-ideológica que marca a crise em que efeito. Defende-se que os conteúdos não sejam trabalhados a partir
o país se encontra mergulhado. Portanto, o curso de licenciatura em da memorização de grandes eventos, datas e nomes de heróis e
História deve encarar esta nova realidade e discutir a problemática. personagens históricos, como eram as representações sociais acerca
No que toca à atuação dos profissionais, o campo da do ensino de História. Advoga-se um paradigma que propicie o
divulgação científica e difusão do conhecimento histórico ganha estudo de temas centrados na multiplicidade de sujeitos que fazem a
ainda mais importância nesta conjuntura. Se há uma ofensiva em história, cujo curso é marcado por diferentes percepções e ritmos do
que a memória e a História estão sendo disputadas nas redes sociais tempo, permanências, rupturas e descontinuidades. 35
e na Internet, este espaço impõe-se como uma nova dimensão Os caminhos teóricos e metodológicos percorridos na
do trabalho do profissional da área de História, ainda que seus superação daquelas concepções conteudísticas agora podem nos
contornos não sejam claros e não tenham lastro institucional. 33 oferecer subsídios para refletirmos sobre abordagens adequadas
Demanda a formulação de métodos e práticas específicas para este aos desafios envolvendo o ensino de História na era digital. A
mundo ainda pouco conhecido pelos departamentos de História. Um po'ssibilidade de recuperar conteúdos por meio da busca por
aluno de ensino fundamental e médio está mais exposto a discursos palavras em qualquer aparelho conectado à Internet provoca uma
e imagens propagadas nas redes sociais acerca de temas sensíveis importante inflexão nas práticas de aprendizagem. Mapas, datas,
como História da África e da escravidão do que às teses oriundas de nomes de personagens, espacialidade e localização dos eventos e
pesquisas vanguardistas escritas a partir de rigorosos métodos de fenómenos históricos podem ser facilmente encontrados. Ou seja,
investigação com base em evidências históricas. currículos e materiais pedagógicos orientados para a transmissão
Exemplo bem-sucedido e inspirador nesse sentido é a página vertical de conteúdo factual e descritivo tornam-se obsoletos e
do Facebook "O Incorreto no Guia Politicamente Incorreto de História acentuam a decadência dos métodos de aprendizagem centrados
do Brasil", atualmente com 2.858 seguidores, 34 que rebate teses
presentes no livro de Narloch com evidências históricas produzidas
pela historiografia profissional (incluindo referências bibliográficas) 35Bittencourt, Circe. 1990. Livro didático e conhecimento histórico: urna História do
em linguagem acessível formatada em post. saber escolar. São Paulo: Loyola; __. 1988. Pátria, civilização e trabalho. O ensino
de história nas escolas paulistas (1917-1939). São Paulo: s/e.; _ . 2001. O saber
histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto; Fonseca, Thaís Nívía de Lima. 2004.
História e Ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica; Karnal, Leandro ( org.).
2003. A História na sala de aula: conceitos, práticas, propostas. São Paulo: Contexto;
33
Sobre as relações entre redes sociais e professores, embora não trate Mattos, Jlmar Rohloff de (org.). 1998. Histórias do ensino de História do Brasil. Rio de
especificamente dos desafios enfrentados pelos professores de História, consultar: Janeiro: A.ccess; Monteiro, Ana Maria. 2007. Professores de História: entre saberes e
Bueno, Maysa De Oliveira Brum. 2014. Cultura digital e redes socíais: Incerteza e práticas. Rio de Janeiro: Mauad; Nadai, Elza. 1993. "O ensino de História no Brasil:
ousadia na formação de professores. Tese de Doutorado, Universidade Católica Dom Trajetória e perspectivas". Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25/26,
Bosco. pp.163-174, set. 92/ago.93; Napolitano, M. 2006. "A História depois do papel". ln:
34 Pinsky, Carla (org.), Fontes Históricas. São Paulo: Contexto.
Acesso em: 17 set. 2018, Facebook.
170 1 Pensar com método O ensino de história na era digital 1 171

na memorização. 36 - É possível encontrar outras páginas que oferecem abordagens


Acreditamos que o ensino contemporâneo de História deve divergentes e contrapontos ao mesmo assunto? Se sim, cotejá-las e
ser articulado com uma reflexão crítica das diferentes dimensões identificar as diferenças.
dos processos históricos e contribuir para a formação de um aluno
pesquisador que saiba navegar no excesso de informações oferecido Além disso, advogamos também um ensino de História que
pela Internet. Ao buscar uma palavra no Google o estudante se possibilite a reflexão crítica e a consciência social e histórica acerca
depara com uma quantidade de páginas, links e hiperlinks que das dimensões económicas, corporativas, desigualdades e relações
tendem ao infinito. Desta forma, é superado o paradigma anterior de poder assimétricas subjacentes aos aparatos digitais que mediam
em que a cultura escolar tinha como estratégia a gestão da escassez o acesso à informação e ao conhecimento na contemporaneidade.
dos conteúdos registrados em poucos recursos mediados pela Os motores de busca e repositórios de informações devem ser
escola ou um conjunto limitado de material didático, tais como abordados, para além de suas funcionalidades, como parte de
dicionários e enciclopédias. Em síntese, os projetos pedagógicos e circuitos económicos mais amplos, pois a configuração de seus
as ferramentas didáticas que permitem a viabilização dos processos algoritmos e a disposição dos conteúdos na tela não são resultados
de aprendizagem devem ser orientadas para práticas que promovam de processos neutros. Tais questões constituem, a nosso ver, uma
o "aprender a aprender". 37 Algumas questões podem auxiliar nestas das fronteiras atuais do campo de reflexões em torno do ensino de
reflexões quando um aluno acessa conteúdos na Internet: História.

- Quem são os autores (formação etc.) ou instituições (escola?


Universidade?) que produziram o conteúdo da página encontrada? Referências bibliográficas
- Que referências bibliográficas utilizam?
- As informações baseiam-se em fontes primárias? Se sim, quais? Alker, Zoe & Donaldson, Christopher. 2018. "Digital Heritage".
- Quais outros conteúdos o mesmo website já produziu? Qual sua journal of Victorian Culture, Volume 23, lssue 2, 27 April, pp. 220-221,
orientação ideológica? https://doi.org/10.1093/jvcult/vcy019; UNESCO, 'Charter on tbe
Preservation of Digital Heritage' (13 out. 2003) bttp://portal.unesco.org/
en/ ev.pbp-URL_ID= 1772 l&URL_DO= DO_TOPI C&URL_SECTI ON= 201.html.
36Fonseca, 2003. Consultar também: Quaresma, Thatianne Ponce; Nakashima, Alves, Daniel. 2016. "Humanidades Digitais e Investigação Histórica
Rosária Helena Ruiz & Feitosa, Lourdes Madalena Gazarini Conde. 2015. "Recursos em Portugal: perspectiva e discurso (1979-2015)". Práticas da História 1,
digitais do portal do professor no ensino de História". Mimesis, Bauru, v. 36, n. 1,
n.º 2, pp. 89-116. Humanidades digitais no Brasil -1 Seminário Internacional
pp. 57~102; Barros, Daniela Melaré Vieira & Brighenti, Maria José Lourenção. 2004.
"Tecnologias da Informação e Comunicação & Formação de professores: Tecendo em Humanidades Digitais no Brasil 2013: https://www.youtube.com/
algumas redes de conexão". ln: Rívero, Cléia Maria L. & Gallo, Sílvio. A formação de watch?v=AlWbAAayEUE
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